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Nkisi na Diáspora
raízes religiosas Bantu no Brasil
Nkisi na Diáspora
raízes religiosas Bantu no Brasil
Título: Nkisi na Diáspora: raízes Bantu no Brasil.
São Paulo: 2013. 92 p.; 20cm x 20cm.
Impresso em alta alvura, 150g/m3
Fontes: Rotis Sans Serif, Rotis Semi Sans, Europe Sister.
Palavras-chave:
1. cultura 2. Brasil 3. religião 4. África 5. educação.

ISBN 978-85-67030-00-5

Realização:
Acubalin - Associação de cultura Banto do litoral norte - SP.
www.acubalin.org.br - acubalin@acubalin.org.br
Agradecimentos: Marcia Micussi (in memoriam); Ana
Helena Passos, Camila Camargo Vieira, Flávia Bandeca
Bianzetto, Ataualpa de Figueiredo Neto.
Organização: Janaína Figueiredo
Textos: Kabengele Munanga; Nilma Lino Gomes; Amauri
Carlos Ferreira; Janaína de Figueiredo; Patrício Carneiro
Araújo; Dilma de Melo Silva; Maria Paula Fernandes
Adinolfi; Camila Camargo Vieira; Flávia Cristina Bandeca
Biazetto; Joanice Conceição; Vanessa Silva; Ataualpa de
Figueiredo Neto (Táta Kajalacy).
Revisão de texto: Flávia Bandeca Biazetto
Xilogravuras: Ulysses Boscolo
Projeto Gráfico e editoração: Mª Cecília Magalhães
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Galinha d’angola: o mito

Kerere, a galinha d’angola, sempre quis conhecer


os segredos da magia. Um dia resolveu voar
e descobrir, com Zambi, esses segredos.
Voou, voou o mais alto possível e lá, nas alturas,
com Zambi, conheceu todos os segredos.
Quando desceu à terra, Zambi a tinha
transformado em Kerere, a galinha pintada,
guardiã dos segredos do mundo.
Por isso, a galinha d’angola tornou-se
o símbolo do saber e dos mistérios da vida.

Táta Kajalacy
SUMÁRIO
PREFÁCIO 08
Nkisi na Diáspora
Prof. Kabengele Munanga

CAPÍTULO I 12
Educação e diversidade: a ignorância religiosa
no caminho do preconceito?
Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

CAPÍTULO II 30
Nkisi na Diáspora
Janaína de Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo

CAPITULO III 43
África Bantu, de que África estamos falando?
Dilma de Melo Silva

CAPITULO IV 49
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil
e a emergência dos candomblés congo-angola
Maria Paula Fernandes Adinolfi

CAPITULO V 65
Escola: lugar de discutir religião?
Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto

CAPITULO VI 76
Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições
Joanice Conceição, Vanessa Silva

CAPITULO VII 85
Ritos de Angola
Entrevista com o sacerdote Tatá Kajalacy
8 PREFÁCIO - Nkisi na Diáspora - Prof. Kabengele Munanga

PREFÁCIO

NKISI NA DIÁSPORA
Prof. Kabengele Munanga

Prof. Kabengele Munanga é Doutor em Antropologia na escassez ou insuficiência de livros e materiais didáti-
Social pela USP. É Professor Titular da Universidade de cos e pedagógicos de qualidade ou nas lacunas na
São Paulo. Tem experiência na área de Antropologia, com formação dos educadores sobre a importância da diver-
ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras, sidade humana e cultural. Estão, sobretudo, no próprio
atuando principalmente nos seguintes temas: racismo, preconceito e como dizia o grande mestre Florestan
identidade, identidade negra, África e Brasil. Fernandes “no preconceito de ter preconceito”, que é
uma das características do racismo à brasileira. Daí o
O livro “Nkisi na Diáspora” reúne textos de autoria de motivo de alguns dirigentes de escola e professores
pesquisadores e estudiosos (homens e mulheres) con- recusarem-se a cumprir a lei, justamente porque “não
ceituados por sua produção intelectual sobre a cultura existem preconceitos raciais em suas instituições”.
negra e as questões que atormentam sua plena inclusão
na sociedade brasileira. Acompanhado de uma excelente Esse preconceito se expressa, muitas vezes, quando
entrevista do sacerdote Tatá Kajalacy sobre a visão do aparecem nas propostas curriculares sobre a diversidade
mundo e do cosmos no Candomblé Angola. Esta co- cultural as palavras “Candomblé”, “Umbanda” ou
letânea traz preciosos subsídios que a sociedade precisa outras que remetem às religiões brasileiras de matrizes
para implementar um sistema educacional plural e uma africanas. Sem saber exatamente do que se trata
pedagogia centrada na diversidade cultural que constitui pelo conteúdo, as reações de recusa acompanhadas
nosso patrimônio coletivo. de violência verbal são de natureza preconceituosa
com certa dose de intolerância religiosa. Aliás,
As dificuldades enfrentadas na aplicabilidade da Lei ninguém gostaria de ser “tolerado”, mas sim de ser
10.639/03, que neste ano completa seus dez anos considerado, simultaneamente, igual e diferente e,
de existência, não estão somente, como acreditamos, consequentemente, respeitado.
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“Onde já se viu, ensinar Candomblé para minha filha ou


meu filho na escola, quando a minha própria religião
não é ensinada!” Aqui está o equívoco, a desinfor-
mação é até certa ignorância, palavra forte, mas que
no momento não consigo substituir. Concordo que
a religião é um assunto privado que não deveria ter
voz num espaço educativo, que é a escola pública, em
nome do respeito à diversidade. Ou se ensina todas as
manifestações religiosas ou não se ensina nenhuma!
Mas não é disso que se trata, quando se fala de re-
ligiões brasileiras de matrizes africanas nos conteúdos
curriculares multiculturais. Ninguém obriga a ensinar
as liturgias dessas religiões ou seus dogmas.

Trata-se apenas da história do negro no Brasil que a Lei


10.639/3 obriga a ensinar na Escola. Ora essa História
é uma de resistência em defesa da dignidade e da
liberdade humanas dos escravizados africanos e seus
descendentes brasileiros, os afrodescendentes. Não
há como falar dessa resistência sem partir de onde
começou: a resistência religiosa. Por isso, vou retomar
alguns aspectos dessa história para poder situá-los
para que se possa entender a razão de ser do livro
e também do documentário “Nkisi na Diáspora”.

Com efeito, o encontro da África com as Américas se


fez, como é sabido, através do tráfico transatlântico,
pelo qual milhões de africanos, homens e mulheres,
foram transportados para as Américas, onde foram
escravizados para desenvolver as colônias ocidentais,
depois da fracassada tentativa de escravizar os povos
indígenas que foram dizimados (estima-se em vários
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milhões de homens, mulheres e crianças, algumas


vezes povos inteiros desapareceram), tanto na América
do Norte (Estados Unidos e Canadá) como nos países
da América do Sul.

Esse processo foi acompanhado pela destruição


sistemática da memória histórica dos africanos e de
seus descendentes e pela destruição de suas identidades
e culturas. Essa destruição da memória começava já na
travessia a bordo dos navios negreiros, quando, sem
consentimento, eles eram batizados e convertidos ao
cristianismo, substituindo seus nomes étnicos e identi-
tários, pelos nomes dos traficantes.

Nos países de destino eram proibidos pelas leis e


por perseguições policiais, de manter suas tradições
e cultuar seus deuses, para reforçar o processo
de destruição das identidades já iniciada a bordo
dos tumbeiros. Destruir a memória histórica de
um povo e a sua identidade cultural faz parte
de qualquer processo de dominação. Dai a razão
de ser do rolo compressor do sistema escravista vi-
gente em toda a América.

Surpreendentemente, a resposta da resistência cul-


tural não demorou. No caso do Brasil, começou pela
religião, núcleo mais duro da resistência. Os escraviza-
dos desenvolveram estratégias para driblar as leis e
perseguições policiais e continuaram clandestinamente
a praticar seus cultos e cultuar seus deuses. Estratégias
que os estudiosos chamam de sincretismo, conceito cer-
tamente discutível. Sem música, dança e certos gestos
PREFÁCIO - Nkisi na Diáspora - Prof. Kabengele Munanga 11

apropriados não há como entrar em comunicação Aqui está a contribuição do livro “Nkisi na Diáspora”,
com os deuses. Sem objetos simbólicos de arte, não que além de trazer elementos dessa cultura de
há como materializar os deuses e deusas. Esses cul- resistência, ajuda na desconstrução de outro pre-
tos precisavam também de algumas plantas e ervas conceito e até mesmo da ignorância das pessoas
medicinais que, felizmente, o ecossistema brasileiro, que pensam que as matrizes africanas de religiões
bastante parecido com o de suas regiões africanas de brasileiras se reduzem ao panteão religioso jeje-
origem, pode oferecer para as necessidades do culto. nagô. O que é uma maneira de dizer que na África
Assim resistiram as religiões brasileiras de matrizes tudo é a mesma coisa e era a mesma coisa que os
africanas. Digo brasileiras porque elas reúnem fiéis africanos trouxeram para cá. Em outros termos, o livro
de todas as cores e origens. Num levantamento feito destrói o mito criado por alguns pesquisadores sobre
pelo sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de a superioridade cultural e religiosa do Candomblé
São Paulo, a maioria dos sacerdotes e sacerdotisas Jeje-nagô em relação ao Candomblé Congo-Angola
em cerca de 2000 Candomblés da Grande São Paulo ou simplesmente Angola. Todos contribuíram e
é de brancos, descendentes de italianos, portugueses, trouxeram aportes culturais que fazem parte da re-
alemães, franceses e outros. sistência cultural africana no Brasil no mesmo pé de
igualdade. Essas religiões constituem hoje o legado
De fato, foi a partir dos terreiros, ou espaço de
cultural dos afrodescendentes e um patrimônio religioso
culto, que a resistência cultural vai se estruturar e
de todos os brasileiros sem discriminação da cor da pele.
se organizar clandestinamente em todos os sentidos:
Estudar os dois candomblés, isto é, Angola e jeje-nagô,
a resistência artística na música, dança, artes plásti-
em sua especificidade histórica faz parte do princípio
cas, organização social nos valores da solidariedade
do respeito à diferença embutido no espírito da lei
africana e do sistema de parentesco extenso. No
10.639/03. Aqui está a razão de ser do livro “Nkisi na
candomblé, encontram-se pai, mãe, irmãos, para
Diáspora”, cuja leitura será sem dúvida enriquecedora.
quem não tem. Não há homofobia, como em muitas
religiões, pelo contrário. Homens e mulheres têm
pleno estatuto de sacerdote em pé de igualdade. As
religiões de matrizes africanas no Brasil, neste sen-
tido, fazem parte da história dos afrodescendentes no
Brasil, história que devemos ensinar sem preconceito.
A religião é cultura e a lei recomenda que a história
dessa cultura seja ensinada na escola pública sem
confusão com as liturgias e os dogmas.
12 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: A IGNORÂNCIA


RELIGIOSA NO CAMINHO DO PRECONCEITO?
Nilma Lino Gomes
Amauri Carlos Ferreira

Nilma Lino Gomes é doutora em Antropologia Social/ É importante, desde já, destacar o que entendemos por
USP. Professora da Faculdade de Educação da UFMG. diversidade. Essa é compreendida como a construção
Coordenadora geral do Programa Ações Afirmativas social, cultural, histórica e política das diferenças
na UFMG. Reitora da UNILAB - Universidade da Inte- (GOMES, 2008). Estamos nos referindo, portanto, ao
gração Internacional da Lusofania Afro-brasileira. fato de que aquilo que aprendemos na sociedade e na
cultura como marcadores da diferença não é um dado
natural; antes, é a construção social produzida nas re-
Amauri Carlos Ferreira é doutor em Ciências da Re-
lações sociais, ao longo da história, e nos contextos de
ligião UMESP. Professor de Filosofia e Ética da Pontifí-
poder. Por isso, certas diferenças com as quais lidamos
cia Universidade Católica de Minas Gerais/PUC Minas.
hoje e que são, até mesmo, demandas de movimentos
Educar para (e na) diversidade tem sido um modo sociais poderiam não fazer parte da nossa vivência há
promissor de acompanhar as gerações que chegam ao alguns anos. É no processo histórico, social e cultural
mundo. Esse é o dever de quem educa. O diverso quando e nas relações de desigualdade estabelecidas em socie-
indaga a educação está à procura de reconhecimento dade que as diferenças vão se organizando. Os coletivos
de direitos e de um modo de ser e estar no planeta. Ao sociais cuja diferença é tratada de forma desigual se
mesmo tempo, está no processo de construção de um articulam politicamente e constroem identidades que
ethos do diverso, no qual o outro se mostra numa rela- lhes deem sentido e significado como sujeitos sociais
ção de igualdade na espécie e de diferença cultural. O e históricos. As diferenças são, portanto, formas de
ser humano é diverso e afirma sua diversidade na forma expressão concretas de sujeitos e coletivos sociais e se
de pensar a vida na relação com o outro, instaurando a encontram dentro do complexo contexto que chama-
convivência ética. mos de “diversidade”.
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É estranho, porém, pensar como essa mesma di-


versidade encontra dificuldade para ser reconhe-
cida como direito em nosso país. Apesar de termos
um discurso que exalta a nossa intensa diversidade
cultural como algo que nos faz peculiar enquanto
nação que se apresenta diversa pela sua composição
étnica, racial, religiosa, regional, de gênero, diversidade
sexual e outros modos de ser e viver, também con-
vivemos com as mais diversas formas de preconceito e
discriminação em relação a essa mesma diversidade. Isso
nos leva a indagar: como pode haver preconceito contra
os coletivos sociais que se afirmam diversos dentro de
um país tão marcado pela diversidade?

A resposta afirmativa a essa indagação precisa ser


retomada à medida que o modo de se relacionar com
o outro geralmente se ancora sobre a ignorância da
própria participação de diferentes povos, culturas e
identidades que configuram o nosso país, desde os
primórdios da nossa formação social. Uma formação
que se instaurou no ato da violência da colonização, da
tentativa de genocídio dos indígenas, da escravização
dos diferentes povos africanos, do domínio da terra
e dos territórios pelo poder colonial. Esse poder é
reeditado no contexto da globalização capitalista e
hoje se expressa nos desmandos dos empresários da
terra, no crescimento do agronegócio, nos grupos
e partidos políticos conservadores que resistem e
impedem a realização de uma reforma agrária digna
e justa e que se opõem à luta contra o racismo, o
sexismo, a homofobia e tantas outras formas de
opressão e discriminação.
14 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

Muitas vezes, diante de tal situação, apresentamo-nos à escravidão, por milhões de africanos arrancados de
indignados, porém imóveis. Nem sempre reconhecemos suas terras. Para garantir a sua sobrevivência, a sua
que somos devedores a esses povos e a essas culturas. humanidade e as suas referências culturais e identi-
Embora possa parecer, eles não foram exterminados. tárias, os diferentes africanos escravizados produzi-
Antes, resistiram e se recriaram em outros moldes ram, reconstruíram e ressignificaram as crenças do
nesse contexto tenso em que articula, ao mesmo seu lugar de origem, a sua relação com o cosmos e o
tempo, diversidade, desigualdade e violência. mundo mítico. Muito do que viviam em suas terras e et-
É nessa conjuntura que as diferentes expressões e nias foi reconstruído, metamorfoseado no contexto da
práticas culturais de matriz africana se constroem, opressão, dando origem a outros ritos, cultos, crenças e
reconstroem, significam e ressignificam o seu modo mitos. E essa não é uma característica somente desses
de ser e viver no Brasil. Entre elas, destacam-se as re- povos. Outros grupos sociais e étnico-raciais fizeram e
ligiões de matriz africana e sua luta constante para ser fazem o mesmo em processos de exploração e opressão.
tratadas com respeito e dignidade e ter o direito à Mais do que religião, estamos falando do fenômeno das
livre realização dos seus cultos e manifestação dos seus crenças, da produção pelos seres humanos de rituais,
ritos, assim como garante a Constituição Federal. conceitos, tradições que nos ajudem a explicar o que
julgamos inexplicável no mundo, que nos ajude a dar
Neste artigo, tematizaremos o modo de perceber as
sentido à vida, que nos possibilite criar algum tipo de
religiões de matriz africana, com base no documentário
explicação para a nossa finitude, que nos ajude a lidar
Nkisi na Diáspora – Raízes Religiosas Bantu no Brasil,
emocional e psicologicamente com o sofrimento.
destacando o processo de responsabilidade e de
reconhecimento da diversidade cultural e étnico-racial Dimensões e fenômenos da vida social a que, para
do que fomos e somos. Não se reconhecem as religiões de muitas pessoas, a racionalidade e a consciência não
matriz africanas pelo que elas são. Isso elas já mostraram são capazes de responder.
e mostram no modo de resistir à dominação colonizadora
Segundo Santos (2010), no Brasil existe pelo menos
e religiosa, mas pelo que elas representam para nossa
mais de uma expressão religiosa, cuja raiz se encontra
identidade em metamorfose e de fronteiras culturais.
no continente africano com sua vastidão e complexi-
dade. Estamos falando de um legado dos povos que
O DIREITO À LIBERDADE DE CRENÇA foram trazidos da África, como escravizados, durante
E OS PROCESSOS EDUCATIVOS mais de três séculos de regime escravista. O conteúdo
dessas religiões é dinamicamente preservado, mesmo
As religiões de matriz africana foram produzidas diante da perseguição dos senhores de engenho,
historicamente no Brasil, no contexto de resistência da hostilidade e da vigilância da Igreja Católica, da
Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira 15

tentativa de seu embranquecimento por parte dos es- direito, vale ressaltar a luta dos movimentos sociais,
píritas kardecistas e, mais recentemente, da intolerân- das comunidades de terreiro e demais organizações
cia dos grupos neopentecostais. da sociedade civil pela garantia do direito à diferença
como constituinte dos direitos sociais e humanos. Em
Ainda assim, os terreiros de candomblés das nações
uma perspectiva democrática, os movimentos sociais
Keto, Jeje, Angola, Ijexá, Efon e Xambá, o Batuque do
reconhecem que os sujeitos sociais são iguais como
Rio Grande do Sul, o Omolocô, o Terecô e algumas ver-
cidadãos, e por isso todos devem gozar dos direitos
tentes da Umbanda, em níveis diferenciados, constituem
sociais. Lutam pela igualdade social e pela justiça
a base significativa das religiões de matrizes africanas
social. Ao mesmo tempo, esses mesmos movimentos
no Brasil. Em cada um desses segmentos religiosos,
trouxeram para o Estado e para a sociedade a luta pelo
há códigos socioculturais que reinstauram linguagens
direito à diferença. Uma nova gramática sócio-política
e símbolos de religiosidade africana, que expressam
se forma, sobretudo a partir do final dos anos 1970,
um sentido de sagrado que difere da matriz judaico-
após o término da ditadura militar, no Brasil: temos
cristã. Há trocas comunitárias e compartilhamento de
direito a ser diferentes, e essa diferença tem de ser
saberes, experiências de vida e Axé ou Gunzo (força
respeitada e incluída no campo dos direitos. E é nesse
vital), nos processos de iniciação, na sacralização de
seres dos reinos vegetal, mineral e animal, nas festas aspecto que temos a garantia da liberdade de crença
e nos rituais fúnebres. São formas diferenciadas de religiosa, de acordo com os incisos VI, VII e VIII do art.
estabelecer a relação cultura e natureza, das quais a 5º da Constituição Federal de 1988, que tratam dos
última é compreendida como algo superior ao mundo direitos e deveres individuais e coletivos:
criado pelos seres humanos. São, portanto, formas de
sociabilidade humana (SANTOS, 2010, p. 43-44). Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
A incompreensão da dimensão da religiosidade na vida e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-
lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
humana, somada aos processos de dominação e ao
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
racismo, produz uma situação de ignorância em relação
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de
às religiões de matriz africana e aos conceitos prévios
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
ou preconceitos na percepção de várias pessoas e, em religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
específico, em determinados setores de outras religiões. aos locais de culto e as suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de
A superação desse estado de coisas pode ser feita por
assistência religiosa nas entidades civis e militares de
meio de vários caminhos; porém, dois se destacam internação coletiva;
como principais: o direito e a educação. No caso do
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Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira 17

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo IV – promover o bem de todos, sem preconceitos
de crença religiosa ou de convicção filosófica de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
ou política, salvo se as invocar para eximir-se de formas de discriminação.
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção
cumprir prestação alternativa, fixada em lei. de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-
lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
Nesse sentido, o que hoje chamamos de “práticas de segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
intolerância religiosa”, no Brasil, sobretudo aquelas XLII – a prática do racismo constitui crime inafian-
praticadas em relação às religiões de matriz africana, çável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
aos seus credos, aos fiéis, aos cultos, aos mitos e às termos da lei.

formas de expressão, é inadmissível em um Estado


democrático e de direito. É, portanto, considerado um O conhecimento desses princípios constitucionais que
crime, uma vez que viola direitos fundamentais garan- desencadearam outros aparatos legais em todo o país
tidos pela Constituição Federal. deveria também ser inserido nos regimentos escolares,
nos projetos políticos pedagógicos e na formação inicial e
Quando a intolerância religiosa dirigida às religiões de
continuada de professores. Embora possa parecer, mesmo
matriz africana é acompanhada do discurso racista
que encontre respaldo no nosso aparato legal, não há um
que recai sobre aqueles que as praticam, relacionando
acordo sobre o respeito e o direito à liberdade de crença
de forma negativa as suas referências vinculadas ao
religiosa quando falamos em religiões de matriz africana
continente africano e ao fato de terem sido trazidas no
na sociedade em geral, e na escola, em particular.
plano cultural e simbólico pelos milhões de africanos
escravizados durante o processo do tráfico negreiro, Apesar de o nosso Estado ser considerado laico, o trato
incorre-se em mais um crime: o racismo. A prática do discriminatório e preconceituoso dessas religiões e seus
racismo é também considerada crime pela Constituição seguidores tem sido movido por interesses privados de
Federal. Aqueles que a realizam devem ser denunciados pessoas, autoridades, políticos, educadores adeptos a
e punidos, de acordo com a lei. outras matrizes religiosas. Mais do que intolerância,
vivemos um contexto cada vez mais acirrado de vio-
Cabe ao Estado brasileiro, segundo o inciso IV do art. 3º lência religiosa, somada à discriminação, ao precon-
e o inciso XLII do art. 5º da Constituição Federal: ceito racial e ao racismo. Essa violência se alimenta da
ignorância sobre o diverso e gera inicialmente atitudes
Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da de preconceito que, aos poucos, extrapolam para as
República Federativa do Brasil:
mais diversas expressões de violência e racismo.
18 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

Infelizmente, essa situação é alimentada pela própria e cidadania, ter uma visão ecumênica das religiões e
legislação educacional de caráter nacional e impregna crenças e que a religião é uma dimensão da cultura e
os sistemas de ensino, por meio de regulamentações da vida humana, na realidade, ao que se tem assistido
regionais e locais. A inserção do ensino religioso na em várias escolas públicas e redes de ensino, no Brasil,
escola pública, de matrícula facultativa, considerado é o predomínio da interpretação judaico-cristã e cristã
como “parte integrante da formação básica do cidadão” do mundo, em detrimento das outras formas de crença
nos §§ 1º e 2º do art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da e outras religiões.
Educação, Lei nº 9.394/96, pode ser considerado uma
A situação é realmente muito séria e merece a nossa
contradição em um Estado considerado laico, como é
atenção. Mesmo que a intenção de alguns educadores
o caso do Brasil. Talvez, mais do que contradição, ela
que assumem a disciplina “ensino religioso” ou algo
é a expressão de forças de poder históricas em nossa
similar constante do currículo escolar digam realizar (e
sociedade que sempre marcaram a relação Estado e
alguns de fato o fazem) um trabalho pedagógico que
Igreja e a relação público e privado.
não reproduz práticas proselitistas, é difícil afirmar
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, que isso não aconteça. Geralmente, o interessado em
é parte integrante da formação básica do cidadão trabalhar com tal disciplina e, até mesmo, a orientação
e constitui disciplina dos horários normais das es- de alguns editais de concurso público que selecionam
colas públicas de ensino fundamental, assegurado
o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
docentes específicos para essa área tendem a primar
vedadas quaisquer formas de proselitismo. por profissionais que professam ser adeptos dessa ou
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os daquela religião. Há, portanto, dificuldade em separar
procedimentos para a definição dos conteúdos do aquilo que é crença, ou seja, uma escolha de vida e
ensino religioso e estabelecerão as normas para a existencial, da postura ética e profissional exigida
habilitação e admissão dos professores.
àqueles que atuam na educação. Melhor esclarecendo,
aqueles cuja atividade profissional incide sobre os
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil,
constituída pelas diferentes denominações religiosas, processos de formação de crianças, adolescentes, jovens
para a definição dos conteúdos do ensino religioso. e adultos em longo prazo.

É também importante considerar que, cada vez mais,


Por mais que se apregoe que o intuito de tal inserção aumenta o número de pessoas que se definem sem
não seja a prática do proselitismo (o próprio texto legal religião e ateias. Essas estão dentro das escolas, e essa
diz isso!), que a intenção é a escola inserir o estudo posição precisa ser considerada e garantida como di-
da história das religiões, discutir as questões de ética reito em um contexto social e educativo que diz primar
Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira 19

pela liberdade de crença. Ora, a “não crença” deveria Na educação, essa responsabilidade pelo mundo as-
ser um direito garantido por um Estado que se con- sume a forma de autoridade. A autoridade do educa-
dor e as qualificações do professor não são a mesma
sidera laico e por suas instituições sociais. coisa. Embora certa qualificação seja indispensável
para a autoridade, a qualificação, por maior que seja,
nunca engendra por si só autoridade. A qualificação
EDUCAÇÃO DE LONGO PRAZO do professor consiste em conhecer o mundo e ser
capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua
Caberia à educação problematizar essas questões. É autoridade se assenta na responsabilidade que ele
nesse campo que ela deveria entrar com aquilo que é assume por este mundo. Face à criança, é como se ele
fosse um representante de todos os habitantes adul-
o seu ofício para desconstruir preconceitos e instau-
tos, apontando os detalhes e dizendo à criança: – isso
rar práticas para a autonomia, e não para o reforço de é o nosso mundo (ARENDT, 1992, p. 239).
desigualdades e preconceitos. A educação de longo
prazo pode ser um dos caminhos para minimizar o Para apresentar o que é o mundo, o processo educativo
preconceito e a violência religiosa. Ela se realiza e se leva tempo. É o tempo da formação de conceitos
expressa no acompanhamento de crianças, adoles- iniciais. É o tempo de uma longa duração para o mundo
centes e jovens em seu processo educativo. de crianças, adolescentes e jovens da educação básica.

Para educar, é preciso saber e conhecer sobre Ao que tudo indica, o sentimento de ódio e de exclusão
o assunto e torná-lo inteligível e relacional. às religiões de matriz africana em nosso país, sedi-
Mas existem senões nesse processo que é o da mentadas em nosso imaginário, dá-se pela ignorância
desconstrução de conceitos sedimentados. No caso diante do que elas são e representam. Uma falta de
de crenças religiosas apegadas à tradição religiosa conhecimento formada em contextos de dominação e
do Livro Sagrado e de seus representantes, ocorre, de relação de poder. Não há respeito e reconhecimento
no processo de ensino-aprendizagem, a formação de ao que se ignora.
conceitos que, quando coletivizados, são geradores
Essa ignorância faz parte de uma história colonial
de preconceitos. O aprendiz só muda de situação que impõe sobre nós um processo tenso e dialético de
quando percebe o diferente como igual na espécie e invisibilidade e visibilidade: a invisibilidade dos sujeitos
reconhece no Outro crenças constituintes de sentido. sociais e suas práticas e a sua visibilidade subalterna
Cabe àquele que educa saber sobre o assunto e colada as visões estereotipadas, preconceituosas e de-
mostrar o que é o mundo e no sentido arendtiano monizadas sobre o Outro e seus modos de crer e viver. Tal
responsabilizar-se por ele: situação recai sobre todos os praticantes das religiões de
matriz africana, quer sejam negros, quer sejam brancos.
20 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

Contudo, aos negros, soma-se ainda o racismo, o que na qual se aprende o acompanhamento de valores de
torna a situação não só de ignorância, mas também de longa duração. Aprendem-se valores religiosos. Nos
violência. registros dessas religiões, o vivido mítico se perde nos
desvãos da escritura sagrada. É assim na narrativa
Podemos indagar: como pode a educação e a escola,
sagrada das origens, quando se abre, por exemplo, o
a primeira entendida como processo formador e a
livro de Gênesis.
segunda como a instituição onde essa formação
se realiza, alimentar, reproduzir, incentivar ou se Nas várias religiões de matriz africana, existe o ser su-
manterem omissas diante de tais práticas? premo e criador, que é expresso em nomes diferentes.
Os nomes que ficaram mais conhecidos e reconhecidos
estão na tradição dos yorubás, ou seja, Olodumare e
O FUNDAMENTO MÍTICO DA CRIAÇÃO
Olorum, como o controlador do universo. Abaixo uma
Em toda religião, a memória fixa um acontecimento e narrativa constante dessa tradição:
o torna história. Para as religiões do livro como o ju-
No princípio Olodumare criou o mundo e tudo que
daísmo, o cristianismo e o islamismo, o corpus moral se
nele está. Criou o homem para ajudá-lo. Criou as
fundamenta nos ensinamentos desse e institui o que é forças da natureza, os Orixás que vivem no Orum
certo e errado, o que é o bem e o que é o mal. As religiões (céu). É a criação do mundo narrada onde existe o
possuem indivíduos que cuidam do templo, dos símbolos deus criador de tudo. É assim que se explica a cria-
e da propagação da fé. São autoridades reconhecidas ção. No princípio existiam dois mundos: Orum e Ayê.
Orum espaço sagrado dos orixás e o Ayê espaço dos
e legitimadas socialmente. Em todas as religiões, essas seres vivos. Olodumare pede a seu filho Orixanila para
autoridades cuidam dos fiéis de tal modo a orientá-los executar a tarefa de criar o espaço para a humani-
em relação ao divino. Nas religiões de matriz africana, dade e lhe entrega uma cabaça com ingredientes
isso não é diferente; em algumas delas, o pai de santo ou especiais: a terra escura primordial, a galinha de cinco
dedos, uma pomba e um camaleão. A terra precisava
a mãe de santo tem essa autoridade sobre os membros
ser lançada sobre a imensidão das águas que habitava
do culto e tem suas obrigações com as divindades. o Ayê. A galinha de cinco dedos deveria ficar ciscando
a terra para alargá-la. A pomba em seu vôo demar-
Como em qualquer religião, ocorre uma necessidade caria a orientação da terra e criaria o ar. O camaleão
de explicação de onde viemos, quem somos, para onde observaria a execução do trabalho de Orixanilá para
vamos. Em religiões que possuem o livro sagrado, a contar a Olodumare. Essa é cabaça da criação. Esse é
percurso do Orum para o Ayê.1
crença mítica das origens faz parte dessa educação

1| Disponível em: <http://pt.netlog.com/paicesar/blog>. Acesso em: 31/10/2011


Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira 21

Como em qualquer tradição mítica, o princípio criador Nas religiões de matriz africana, o aprendizado mítico
engendra seu poder da criação. Não há obediência está no modo de ser e viver dos crentes expressos em
total. O princípio transgressor se coloca. ritos, música, dança, alimentação, etc. O que mantém
viva a tradição é o saber de memória. O que se vive é
Oriximila consulta o oráculo (Ifá) e ele ordena o que uma extensão do que se é. De tal maneira que o mito
deve ser feito. Deve Oriximila fazer oferenda a Bara
em ação faz parte do agir da própria natureza. O mito
(Exu). Oriximila não segue o que deve ser feito. Em
conseqüência de seu ato de insubordinação, o cansa- se refere numa perspectiva de Mircea Eliade,
ço toma-lhe o corpo. Ele pára, descansa. Bebe o Emu
(aguardente da palmeira do dendezeiro) e adormece. como sendo o relato de uma história verdadeira,
O filho mais jovem de Olodumare, Oduduá, conta ao ocorrida nos tempos dos princípios, illo tempore,
pai o acontecido e pede ao pai para terminar a tarefa quando uma realidade passou a existir, seja uma
da criação. Enquanto Oriximila dormia, Oduduá cria a realidade total, o cosmo, ou tão somente um frag-
terra dos seres viventes. A galinha cisca, a pomba voa, mento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie
o camaleão observa. Os elementos primordiais estão animal ou vegetal, um comportamento humano. O
sendo criados e manipulados. O ciscar da galinha cria mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos
a terra firme, o voar da pomba cria expande o ar, o de que modo algo, que não era, começou a ser
camaleão ao observar cria o fogo. Oriximila acorda e (BRANDÃO, 2007, p. 35-36).
vê o mundo criado se arrepende. Olodumare dá a ele
outra tarefa que é a de criar o homem.
O mito torna-se uma história verdadeira para quem o
Oriximila usa o barro e água vai dando forma ao profere, o que lhe garante o poder da narrativa sobre o
barro. Seres inanimados são criados de todos os
tempo em sua circularidade. O sair das origens e a elas
jeitos. Vai esculpindo e colorindo o barro. Olodumare
sopra-lhe as narinas. O ser humano surge a imagem retornar, como a circularidade dos dias e das estações e
e semelhança. O mundo e o homem estão criados. na comemoração das festas é o nascimento e o retorno
Olodumare não tem fi-lhos no Ayê. Ele é o senhor da ao Ilé (mãe terra), em que o rito traz de volta o mito, o
criação e de nada necessita. O contato com Olodumare acontecimento, uma vez que o rito é o movimento do
se dá mediante os orixás... É o senhor de tudo.2
mito. É por meio dele que “o homem se incorpora ao
mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que
Esse é um dos mitos da criação. Há outros. Como em jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato
qualquer outra cultura, a divindade cria o mundo e uma transcendência vivida” (BRANDÃO, 2007, p. 39).
os seres. Ao entrarmos em contato com as tradições
religiosas de outras culturas, percebemos que elas Para compreender esse processo mítico nas religiões
também possuem um ser que cria o mundo. de matriz africana, torna-se fundamental lembrar que

2| Disponível em: <http://pt.netlog.com/paicesar/blog>. Acesso em: 31/10/2011


22 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

essas se desenvolvem dentro de um contexto social e alimentando dela num movimento de tornar mais efi-
cultural tipicamente cristão, uma vez que, no Brasil, caz a força vital. É uma forma de não esquecer que
muitas pessoas, ao serem indagadas pelos pesquisa- o ser humano pertence a essa energia desde sempre.
dores, entrevistadores do censo e curiosos, em sua Mas de que maneira o crente das religiões de matriz
maioria, se dizem cristãs: católicas, protestantes em africana se mantém fiel ao divino, sendo parte dele? O
suas diversas denominações, espíritas kardecistas. que é próprio da identidade de cada um?
Expressam a religião do livro na qual o mito da criação
É preciso reconhecer que existe uma complexidade
é contado, e não vivido e narrado. comum a todas as religiões na qual elas se apegam e
As religiões de matriz africana, como, por exemplo, se legitimam: é o elemento do mistério. O que não se
o candomblé e a umbanda, ao trazerem de volta o explica se aceita e se resigna. O mistério ao fazer parte
dessas religiões, como também dos seus princípios or-
mito vivido mediante o rito, causam estranhamento
denadores, advém dos orixás ou Nkisi. Segundo Prandi
àqueles que são ignorantes dessa prática religiosa.
(2001), o elemento aglutinador das religiões de matriz
Nessas religiões, há um tempo da repetição. O que se
africana é o orixá.
vive já é conhecido. Por isso, conhecer os ancestrais
é se conhecer. É se repetir no gesto, na forma, é se
Para os iorubás tradicionais e os seguidores de
compreender melhor no processo de existir. sua religião nas Américas, os Orixás são deuses
que receberam de Olodumare ou Olorum, também
É no modo de viver o sagrado que as religiões se chamado de Olofim em Cuba, o ser supremo, a
diferenciam, e, no caso das religiões de matriz africana, incumbência de criar e governar o mundo, ficando
a crença na força da natureza expressa a divindade e, cada um deles responsável por alguns aspectos da
natureza e certas dimensões da vida em sociedade e
para tal, necessita ser conservada, distribuída, vivida. da condição humana. Na África, a maioria dos Orixás
Essa natureza compreendida como uma força vital merece culto limitado a determinada cidade ou
estabelece um campo energético ligando o ser humano região enquanto uns poucos têm culto disseminado
por toda ou quase toda extensão de terras Iorubás.
ao universo e aos reinos vegetal, animal e mineral. Para
Muitos orixás são esquecidos, e outros surgem em
que isso seja possível, o ritual da música, da dança e da novos cultos. O panteão Iorubano na América é
alimentação faz do som e do gesto a ligação ao sagrado. constituído de cerca de uma vintena de orixás, e,
tanto no Brasil como em Cuba, cada Orixá, com
Esse ritual se estende ao modo de viver do adepto que poucas exceções é celebrado em todo o país (p. 20).
registra em seu tempo de existir a relação necessária
com a divindade e com os outros. De tal maneira que Os orixás fazem parte do mistério de várias religiões
o crente está ligado a essa força e necessita estar se de matriz africana. Sendo assim, entender tal mistério
Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira 23

pode nos ajudar a compreender aproximações e seme- um mundo que tem ancestrais que são cultuados. Uma
lhanças entre o orixá dos Yorubás, o vodum dos jejes e forma de relacionar com o deus de onde emana toda
os inquice dos bantus, uma vez que “todas essas divin- a força. É assim que as forças do bem e do mal se or-
dades eram vistas como forças espirituais humanizadas, denam e fazem o mundo vibrar. Essa ideia de um deus
com personalidades próprias, características físicas, único é marcada por divindades secundárias que fazem
domínios naturais, e alguns viveram na terra antes de o elo com o deus criador. Essas divindades secundárias
se tornarem espíritos divinizados (SILVA, 2005, p. 60). são representadas pelos espíritos dos ancestrais. É pre-
ciso ressaltar que esse culto aos ancestrais é um modo
Tendo em vista a complexidade do Panteão africano e
de compreender essa relação com o criador, mas há um
o modo como esses povos foram se adaptando às ter-
panteão religioso complexo nessa cultura. A força vital
ras brasileiras, alguns autores afirmam que as principais
etnias que se destacaram no processo da dispersão é a que move o mundo dos vivos. O ser humano é a
causado pelo tráfico negreiro, no Brasil, são pertencen- criatura por excelência que compreende a importância
tes a grupos bantus e sudaneses. Segundo Silva (2005): dessa força vital que está em tudo que existe. É assim
que se explica a relação com as forças do bem e do mal
Os sudaneses englobam grupos originários da que, segundo Munanga (1995):
África Ocidental e que viviam em territórios hoje
denominados de Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Togo. Qualquer ser humano é colocado numa relação de
São entre outros, os iorubas ou nagôs (subdivididos forças vitais. Algumas mais desenvolvidas que sua
em queto, ijexá, egbá, etc.), os jejes (ewe ou fon) própria força. Essas forças mais desenvolvidas são
e os fanti-achantis. Entre os sudaneses, vieram o próprio deus, os antepassados, os defuntos da
algumas nações islamizadas como os haussás, tapas, linhagem, da família; são os pais, os feiticeiros, os
peuls, fulas e mandingas [...]. Os bantus englobam bruxos, etc. Elas podem influenciar sua vida no bom
populações localizadas no atual Congo, Angola e sentido (saúde, poder, promoção na profissão, etc.),
Moçambique. São os angolas, caçanjes e bengalas, aumentando a sua força vital. Ou no mau sentido
entre outros. Deste grupo calcula-se que tenha vindo (doença, morte pobreza, insucesso na profissão,
um maior número de escravos. Foi também o que etc.) diminuindo sua força vital. Por isso o culto aos
maior influência exerceu sobre a cultura brasileira, ancestrais, criado por um mundo e por um deus,
tendo deixado marcas na música, na língua e na que dele se distanciou, constitui o aspecto mais
culinária, etc. [...] (p. 26-27). observável da cosmovisão bantu sem se reduzir a ele
(p. 62-63).

Para os bantus, ocorre a existência de um único cria-


dor, que pode ser Zambi, Mvidi, Kalunga, entre outros. Essa força vital mantém os indivíduos nessa relação
É o criador do mundo. Cria-o e depois dele se distancia. com o divino; cultuá-la representa mantê-la de tal
Deixa o mundo para que os filhos possam dele cuidar. É forma a conservá-la em seus ritos e modos de vida.
24

Esse processo de culto que remete à existência é co-


mum em qualquer religião. É uma questão de sentido,
um modo de explicar a realidade e vivê-la.

Entender a África na sua diversidade cultural é


compreendê-la composta de várias regiões em que
essa força tem sua herança. Em várias regiões, a re-
ligião é praticada tendo como referência simbólica a
prática do culto aos ancestrais. É na diáspora que se
organiza outro modo de ser e praticar o culto a essa
força que para alguns é representada pelos orixás ou
nkisis advindos de vários povos e regiões da África. Na
sociedade escravocrata, a violência se instaurou sobre
os africanos escravizados. Nesse processo, na opinião
de alguns autores, houve o risco do ser humano se
perder, pois:

a morte social despe o cativo de seus ancestrais, de


sua família, e de sua descendência, retira-o de sua
comunidade e de sua cultura, desonra-o simbólica
e ritualmente. Ele é reduzido a um exílio perpétuo
e perde sua dimensão na eternidade, ao deixar de
sacrificar aos antepassados e ao morrer sem sua
progênie, pois seus filhos a ele não pertenceriam e
estão proibidos de lhe erguerem o mais simples dos
altares (COSTA e SILVA, 2002, p. 86).

No entanto, apesar de o projeto colonizador e es-


cravista ter como intenção a destruição do sistema
de valores desses povos via imposição simbólica e
de força, diferentes formas de resistência foram or-
ganizadas. Contra a ação violenta de cerzir sobre as
culturas colonizadas uma cultura outra, os africanos
escravizados e seus descendentes recriaram a vida,
25

sua história e suas referências. A religiosidade de matriz


africana foi um dos principais veículos nesse processo.

Uma das formas de violência imposta pelo poder colo-


nial foi o ritual de batismo. Àqueles que foram feitos
cativos se processava no nome. Um nome dado sem
escolha dos familiares, sem aceite do seu povo, sem
a força da ancestralidade. Em um pedaço de papel,
a inscrição de um nome. Nas palavras de Malandrino
(2009, p. 10) citando Glasgow: “Seu nome é João,
o seu é Francisco, o seu nome é Pedro, enquanto ia
colocando um pouco de sal sobre a língua do cativo.
Por fim, com um aceno de mão, o sacerdote entoava:
Agora vá com boa vontade”.

É pelo nome que se identificam coisas e pessoas. Pelo


batismo, faz-se pertencer à religião cristã. Contudo, o
nome de origem continuava secreto para os africanos
escravizados. Ele só será manifesto na força da palavra
que instaura o sentido. Segundo Malandrino (2009, p.
11), para as pessoas de tradição bantu, o nome é parte
constitutiva que completa a pessoa, já que explica a na-
tureza própria do ser individual, mostra a sua realidade
e descobre a sua interioridade.

É a esse processo de violência corporal e simbólica pro-


duzido na diáspora que a chamada religião dos orixás
sobreviveu a partir de sua transmissão oral, do rito de
iniciação e dos cultos numa manutenção pelo mito,
pelo rito e pela magia. Um processo de identificação
diferente das religiões apegadas ao livro sagrado, que
propõem um saber abstrato de valores morais. A força
vital dos adeptos das religiões de matriz africana é vivida
26 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

no espaço sagrado denominado “terreiro” e conservada de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Hoje,
no ori (cabeça) do ser humano. a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96)
foi alterada pela Lei nº 10.639/03 e esta, por sua vez,
É na força do pensamento mítico em ação que a
religião dos orixás sobreviveu e sobrevive tendo seu foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação
lugar sagrado, o terreiro, e sua força vital expressa no por meio do Parecer CNE/CP 03/2004 e pela Resolução
orixá, que, ao ser cultuado, demarca suas dimensões e CNE/CP 01/2004. Existem diretrizes curriculares nacio-
características. Segundo Consorte (2004, p. 199), “cada nais que orientam os sistemas de ensino e as escolas em
terreiro representa um território africano ampliado, relação ao trato da questão africana e afro-brasileira.
abrangendo grupos provenientes de uma mesma área
Se a reflexão dos educadores sobre as religiões
lingüística e não apenas do lugar de origem do culto de
um determinado orixá, vodum ou inquice”. de matriz africana se ancorasse no que dizem tais
documentos, poderíamos ter na escola uma instituição
Ao se estudar as religiões de matriz africana, precisa- que orientasse seus estudantes na compreensão do que
se ter o cuidado de não incorrer na generalização de representam as tradições afro-brasileiras e o lugar dos
estabelecer vínculos únicos ao modo de crer, mas estar diferentes credos nesse contexto, sem proselitismo.
atento às diferentes narrativas sagradas que se expres-
Não se trata de ministrar o ensino religioso, mas de
sam em cada culto. Em uma de suas expressões, o culto
uma ação educativa que ajude os estudantes e suas
aos orixás, o orixá é cultivado, e cada um é eterno e
famílias a superar a ignorância e o preconceito sobre
diferente em cada fiel. É o processo de dominar a força
vital para ser uma expressão do próprio orixá. A varie- essas religiões e seus adeptos.
dade dessa força é a própria expressão de alternativas Não se trata de instaurar o ensino desse ou daquele
de se viver bem e em harmonia. Viver como extensão
credo religioso na escola. Posicionamo-nos firmemente
do orixá desempenhando seus papéis sociais. Entender
contra essa postura e, até mesmo, indagamos a
esse processo é se entregar a essa força que é culti-
persistência do art. 33 da LDB e do §1º do art. 210
vada e assessorada em sua morada. Como em qualquer
outra religião, os fiéis se encontram para renovar suas da Constituição Federal, que dão margem a tantas
forças, manter relação com a divindade e seguir o distorções e desmandos de práticas proselitistas dentro
caminho de se viver bem com ela. da escola pública e nos sistemas de ensino. No contexto
de um Estado democrático, em uma sociedade com
CONSIDERAÇÕES FINAIS intensa diversidade religiosa e ainda com pessoas
que não professam nenhum tipo de fé, não há como
Chamamos a atenção para as diretrizes e as leis educa- deixar de indagar até que ponto a existência desses
cionais que versam sobre a obrigatoriedade do ensino princípios legais, mesmo que expressem preocupação
Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira 27

com “a formação básica comum e o respeito aos valores cristãos com uma leitura fechada e preconceituosa so-
culturais, e artísticos, nacionais e regionais” (Caput do bre o mundo e, sobretudo, o universo religioso e mítico
art. 210 da CF), não incorrem em um desacordo com a africano e afro-brasileiro.
própria ideia do princípio da liberdade religiosa. Se essa
Cabe ao educador se deixar levar por esse tipo de
liberdade religiosa está garantida por lei e se sabemos
situação ou fazer da escola o lugar de diálogo aberto ao
que coexistem em nossa sociedade várias formas de
diverso? Cabe ao educador se omitir diante da violência
credo religioso, então, como a escola pública terá
religiosa? Ou cabem a esses profissionais atitudes
condições de ministrar um “ensino religioso”? Se essa
preconceituosas que resultem no trato agressivo às
disciplina tem sido transformada por algumas escolas no
crianças, aos adolescentes e aos jovens que praticam
trabalho pedagógico em torno do tema da ética e da
religiões de matriz africana? Por um acaso as escolas
cidadania, por que a Constituição Federal e a LDB não
públicas brasileiras proíbem os seus estudantes de usar
nomearam dessa forma a referida disciplina? crucifixos como adereços? Ou de levar a Bíblia para
ler no pátio individualmente ou com seus colegas? É
Contudo, se a lei ainda admite que o ensino religioso, de
possível e ético um docente arrancar guias de orixás
matrícula facultativa, será uma disciplina dos horários
de uma criança do candomblé ou da umbanda? Ou
normais das escolas públicas do ensino fundamental
dizer, durante a aula ou na interação com estudantes
(art. 210, § 1º da CF) há, aqui, uma obrigatoriedade. e colegas, que os africanos trouxeram para o Brasil o
Como fica essa situação em um Estado que se diz laico? culto a satanás?
O mais interessante a indagar é que, em nossa Preconceito, ignorância e racismo caminham juntos.
atividade como professores e pesquisadores, mesmo Por isso, a sua superação exige estratégias conjuntas e
quando encontramos docentes da Educação Básica coletivas. E, cada vez mais, exige que se efetive o Estado
que ministram ensino religioso nas escolas públicas e de direito. A formação e a informação aos docentes são
dizem trabalhar na perspectiva da cultura, da ética e muito importantes. Práticas de intolerância religiosa,
da cidadania, da história e da ciência da religião, as porém, não devem ser admitidas. Sabemos que, muitas
religiões de matriz africana raramente aparecem como vezes, elas são advindas da ignorância e geradoras de
tema de estudo. Também não é discutida a presença preconceito. Contudo, quando se somam ao racismo,
do preconceito, da intolerância e da violência religiosa elas se transformam em violência. Nesse caso, devem
vividos pelos seus fiéis na sociedade. Quando indaga- ser tratadas como crime, uma vez que ferem o direito
dos, esses profissionais relatam que tal postura diz do cidadão, garantido constitucionalmente. É sempre
respeito ao receio da reação dos estudantes e de seus bom lembrar que, em um Estado democrático, a ética e
familiares, geralmente, aqueles que pertencem a grupos o direito caminham juntos.
28 Educação e diversidade: a ignorância religiosa no caminho do preconceito? - Nilma Lino Gomes, Amauri Carlos Ferreira

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29
30 Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo

NKISI NA DIÁSPORA
Janaína de Figueiredo
Patrício Carneiro Araújo

Janaína Figueiredo é doutoranda pelo Departamento Entende-se aqui por diáspora não apenas um movi-
de Antropologia da PUC/SP. Coordenadora de projetos mento de deslocamentos populacionais, mas também
socioeducativos da ACUBALIN. de transformações do espaço, redefinições de fron-
teiras e, finalmente, de encontros culturais.

Patrício Carneiro Araújo é doutorando pelo Departa- De acordo com Hall (2011), por muito tempo a diáspora
mento de Antropologia da PUC/SP, bolsista FAPESP. foi concebida como uma viagem marcada pelo desejo
de retorno. Nessa lógica, as identidades se fechavam
Atlântico negro, África na ideia de origem e o tempo passava a ser subjugado
Ó minha mãe guardiã, África pelo desejo de regresso à terra natal.
Meus ancestrais, África
Vamos saudar, África
O paradoxo da diáspora negra se colocava, por um
Num canto profundo
Que se espalha no mundo, África lado, entre um tempo histórico, talvez linear, das
Diáspora afora, África conjunturas sociais e econômicas impostas pela colo-
Todos nós uma, África.1 nização, e, por outro, o tempo mítico, representado
simbolicamente pela imagem de um possível retorno
A epígrafe acima nos remete a pensar sobre a experiên- às origens e ao passado.
cia da diáspora negra, na medida em que se constitui
como um dos marcos do processo de (re) criação das A África era evocada como fonte, revitalização e res-
identidades culturais no Brasil. gate de um passado guardado e imaginado. Essa foi a

1| Atlântico negro. In, CD Cultura de resistência: Treme Terra. São Paulo (morro do querosene): Produtora Treme terra e Instituto Nação, (s/d).
Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo 31

insígnia que norteou os processos de construção das interpretação deve ser flexibilizada, pois segundo Hall
identidades culturais na diáspora.2 (2011), a construção de nossas identidades é histórica.

Ao mesmo tempo em que o Novo Mundo era criado pela Assim, refletir sobre as experiências da diáspora negra
lógica da modernidade ocidental, da qual a escravização significa compreender o papel desempenhado pelos
de populações africanas foi um dos pilares, também, era mitos e os seus desdobramentos culturais. Contudo,
determinado pelos contatos e entrelaçamentos culturais também significa repensá-las à luz de outra dinâmica
entre as populações oriundas de regiões africanas temporal em que o passado imaginado e o futuro dese-
distintas. A convivência entre os povos da diáspora jado dialogam com as contingências históricas.
propiciou a invenção e a afirmação dessa África mítica.
Esse mito forjou as direções e formatos do diálogo Nesse sentido, a vinda forçada de populações negras
que se impunham aos diferentes povos africanos africanas e todo o contexto de violência que marcou
que não apenas traziam o desafio de reinventar as tais chegadas ao Brasil colonial impõem a essas
suas existências, mas também de criar estratégias de populações a necessidade de entender as novas formas
negociação com a estrutura colonial e, assim, com o de seu pertencimento étnico e de imaginar a sua
próprio colonizador. identidade cultural.

No entanto, se os mitos, como destaca Eliade (2008), A partir daí a África, no Novo Mundo, tornava-se a
por um lado, podem se constituir como substratos das referência cultural, para os processos de construção
ações humanas. Por outro, ao serem apropriados pelos da identidade negra, e, também, uma alternativa
homens, ganham diferentes sentidos, pois o tempo subversiva ao domínio colonial. Tornou-se o ponto de
histórico lhe confere marcas e alguns destinos. Como partida, a metáfora que passou a mediar os encontros
afirma o próprio Eliade, quando diz que: “Qualquer que culturais e, dentro das relações de poder, a resistência
seja a sua natureza, o mito é sempre um precedente e (Hall, 2011). Ao se reapropriar dessa África mítica, no
um exemplo, não só em relação às ações – sagradas ou contexto colonial, colocou-se em jogo os modelos
profanas – do homem, mas também em relação à sua culturais dominantes, dando voz e visibilidade a
própria condição” (ELIADE, 2008, p.339). grupos marginalizados.

Não obstante a importância dos mitos nos sentidos No entanto, cabe ressaltar que não se tratou apenas
atribuídos aos diversos aspectos da vida social, sua de um embate cultural polarizado, entre grupos

2| Estamos utilizando o conceito de identidade (ou identidades) do autor Stuart Hall, ao defini-la como parte de um processo histórico
que a torna múltipla, aberta, contraditória, desarticulada e fragmentada. As identidades culturais se processam nos diálogos e conflitos
entre o sujeito, grupos e as representações sociais e culturais que compartilham dentro e fora das fronteiras nacionais (HALL, 2001).
32 Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo

dominantes e dominados, divididos pelas relações buscamos aqui por em evidência a sua memória que,
desiguais de poder. Nas situações de diáspora, por muito tempo, esteve circunscrita, conforme Pollak
geralmente cria-se um espaço onde as diferentes (1987), à esfera subterrânea da memória oficial.
matrizes culturais dialogam, originando uma trama
simbólica que reconfigura as fronteiras desses contatos,
tornando-as mais fluídas e plácidas. CANDOMBLÉ: NAÇÕES E IDENTIDADE.

Nesse espaço, o que Hall (2011) denominou lugares de O tráfico negreiro trouxe para o Brasil populações es-
passagens, as fronteiras não são excludentes e nem cravizadas oriundas de diferentes regiões do continente
rigidamente demarcadas, mas são tênues e movidas africano. Esse contingente populacional se dividia em
por uma lógica hibridizante. Não significa dizer que os diversas composições étnico-linguísticas chamadas, ge-
mecanismos de poder e seus conflitos estejam ausen- nericamente pelos colonizadores europeus, de nações.
tes dessas relações, ao contrário, eles estão inerentes e A ideia de nação, como aponta Parés (2007), esteve
marcam as nuances do processo. presente entre os traficantes de escravos, sobretudo,
Dentro dessa perspectiva, é possível dizer que o universo nos séculos XVII e XVIII que estabeleciam um paralelo
cultural e o religioso afro-brasileiros constituíram uma entre dois contextos políticos: as monarquias europeias
das interfaces desses encontros culturais promovidos e as africanas.
pela diáspora negra no Brasil. Encontros inseridos em
No entanto, essa correlação não traduzia o conjunto
relações de poder, nas quais a interpretação dessa África
de fatores que configurava as identidades das so-
mítica criou um conjunto de combinações culturais e re-
ciedades africanas, pois como Parés destaca: “[…] a
ligiosas formando as chamadas religiões afro-brasileiras.
identidade coletiva das sociedades da África ocidental
Nesse sentido, o presente artigo busca analisar, a era multidimensional e estava articulada em diversos
partir do filme documentário Nkisi na Diáspora: raizes níveis (étnico, religioso, territorial, linguístico, político).
religiosas bantu no Brasil, a trajetória dos nkisis no […]” (PARÉS, 2007, p.23).
cenário da diáspora negra brasileira. Esse caminho
analítico pretende recompor os processos identitários e as Assim, o autor especifica que a ancestralidade, a estru-
dinâmicas culturais que envolvem a história das religiões tura de parentesco, a língua, a cidade, o território e até
afro-brasileiras e, em particular, do Candomblé angola ou mesmo as marcas físicas do corpo, constituíam fatores
congo angola. de pertencimento étnico e/ou comunitário.

Ao refletir alguns elementos que compõem o uni- Cabe ressaltar que tais elementos identificatórios
verso religioso do Candomblé angola e congo-angola, estavam sujeitos às mudanças históricas que poderiam
Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo 33

redefinir essas identidades coletivas, dinamizando assim, As denominações étnicas, segundo o autor, são as formas
as relações intra e extra grupos. como internamente um grupo organiza os seus processos
identificatórios. Já as metaétnicas (ou externas), são as
Porém, a concepção de nação compartilhada seja pelos
referências utilizadas pela sociedade para classificar grupos
traficantes, seja pelas sociedades africanas, ganhou no
étnicos heterogêneos. Essas denominações, no entanto, não
Brasil colonial outra conotação. Nesse momento, ela
são estanques, ao contrário, dialogam e se relacionam po-
deixou de ter um conteúdo político e étnico se tornando
dendo transformar a denominação metaétnica em étnica.
um mecanismo de classificação, muito mais de natureza
Fenômeno muito comum nos processos diaspóricos.
administrativa e tributária das novas demandas do tráfico
de escravos do século XVIII. É dentro dessa perspectiva que a ideia de nação se formou,
ou seja, ora dialogando com as nomeações generalizantes
É nesse contexto que a diversificação das rotas e a dos por-
oriundas da elite branca colonial; ora se apropriando desses
tos trouxeram outros critérios para nomear a diversidade de
códigos e demarcando os novos limites étnicos entre os gru-
povos trazidos para o Brasil, não necessariamente os mes-
pos africanos e seus descendentes no Brasil.
mos utilizados na África. Termos como: nação Mina, Angola,
Congo, Jeje, Nagô eram generalizações relacionadas, muitas Vemos, assim, o termo nação inserido nos múltiplos pro-
vezes, às áreas de embarque, aos reinos, cidades ou mesmo cessos de entrelaçamentos culturais que resultaram em
às nomeações alheias e as genéricas de grupos africanos, novas formas de diferenciação étnica entre os grupos. No
incorporadas pelos traficantes de escravos. entanto, a partir do século XIX, com o fim do tráfico, a na-
ção como elemento de pertencimento étnico e estratégia
No entanto, essas formas de classificação criaram uma rede
social perdeu o seu significado operativo nas relações de
de significados simbólicos e culturais que contribuíram,
poder. Essa mudança deslocou a nação étnica para o uni-
sobremaneira, nos processos de (re)construção e
verso religioso, criando as chamadas nações de Candomblé.
manutenção das identidades étnicas dos africanos no Segundo as palavras de Lima (1974), o resultado desse pro-
Brasil. Isso porque apropriar-se desse repertório de cesso foi que: “Nação passou a ser, desse modo, o padrão
significados, nomes, códigos culturais variados passou a ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia. Em
ser uma estratégia de sobrevivência social das populações outras palavras, nação passou a designar uma modalidade
africanas dentro do sistema escravista colonial. de rito ou uma forma organizacional definida em bases
religiosas” (LIMA, 1974, apud, Parés, 2007, p. 102).
Parés (2007), ao refletir sobre a construção da identidade
étnica dos povos jejes, pontua duas chaves explicativas para Parés (2007) amplia a explicação dada por Lima (1974),
compreender a configuração das chamadas “nações” no destacando que as nações de Candomblé passaram a se
Brasil colonial: as denominações étnicas e metaétnicas. caracterizar como espaços em que as identificações e
34 Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo

diferenciações étnicas ocorriam por meio de elementos religiões de matrizes africanas foram norteados por uma
como, principalmente, a língua, ritos, danças, os instru- ideia hierarquizadora que privilegiava um culto, o nagô-
mentos musicais, cantos entre outros aspectos culturais. iorubano, em detrimento de outros. Essa postura por
parte da intelectualidade e também do “povo de santo”
Seguindo a divisão estabelecida por Edson Carneiro,
ficou conhecida como nagocentrismo (DANTAS, 1987).
as nações de Candomblé podem ser classificadas em:
Nação Ketu (língua iorubá); Nação Ijexá ou Jexá (iorubá); No Brasil, esse movimento partiu da Bahia e se espalhou
Nação Jeje (fon); Nação Angola (bantu); Nação Congo pelas outras regiões do país. Esse fenômeno, grosso
(bantu); Nação congo-angola (bantu); Nação de Caboclo modo, caracterizou-se por uma predominância dos
(modelo afro-brasileiro)3 (CARNEIRO, 2008, p. XVI). elementos culturais ligados às populações africanas da
África ocidental, mais especificamente de regiões que
Essas nações, embora, adotem um conjunto de aspectos
hoje compreendem grande parte da Costa da Guiné, da
que demarcam as suas diferenças e fronteiras, na
atual Nigéria à Costa do Marfim.
situação da diáspora, os processos históricos travados
não são uniformes. Isso significa dizer que as nações de Essa sobreposição de traços culturais encontrou ter-
Candomblé trocaram experiências e dialogaram entre reno fértil no campo religioso, já que, conforme a
si selecionando e tomando emprestados elementos de memória histórica, os primeiros terreiros de Candomblé
diferentes nações. foram autodenominados como nagô-ketus. Os regis-
tros orais também apontam a casa Ilê Asé Iyá Nassô
É possível dizer que a língua (ou o encontro etnolin-
Oká (Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho) como
guístico) que predominava em cada nação se constituía
o primeiro templo religioso de origem nagô, fundado
como a fronteira mais visível entre o “povo de santo” e,
em Salvador, no bairro da Barroquinha.
dessa forma, fator de contraste significativo e de iden-
tificação entre os grupos. A isso se somou o conjunto Outros terreiros como o Ilê Asé Opô Afonjá e o Gantois
de entidades, comumente denominado “panteão”, que deram a sua contribuição para cristalizar uma ideia de
também se caracteriza como um fator importante de originalidade, legitimidade e pureza de culto, geral-
diferenciação entre as nações de Candomblé. mente associada à cultura religiosa nagô.

Entretanto, não obstante às diferenças presentes en- Parés (2007) destaca que o processo de nagoização
tre as nações, durante muito tempo, os estudos das está associado a um conjunto de fatores que levou não
3| Em algumas regiões do Brasil, existem mesmo nações menos conhecidas, mas que reúnem muitos adeptos e que reivindicam origens
de pertencimento bantu, como é o caso da nação Moçambique na Paraíba. Porém, por não existirem referências ou estudos sobre essas
comunidades, é provável que se trate de processos culturais e religiosos recentes.
35

apenas à criação de um mito de origem e pureza, mas


silenciou a contribuição de outros ritos na história do
Candomblé.

O autor explica que as origens desse fenômeno


podem ser localizadas, internamente, no contexto
pós-abolição, em que o número de terreiros na Bahia
multiplicou e a liderança passou a estar sob o domínio
das mulheres mestiças. Essa difusão parece estar, em
parte, associada aos processos de exclusão vivenciados
pela população negra e a mestiça na virada do século
XX. Tal marginalização impulsionou a população negra
a construir a sua identidade racial e cultural, bem
como buscar outros espaços de fácil trânsito social e
de resistência, como o Candomblé.

As identidades assumidas pela população, sobretudo


mestiça, firmavam-se a partir do mito África e da ideia
de origem. Esse mito tornou-se elemento estruturante
no imaginário cultural desse período. Não foi por acaso
que em fins do século XIX surgiram várias manifesta-
ções culturais, como os grupos carnavalescos, cujos
nomes são sintomáticos: “grupo Pândegos da África e
Embaixada Africana” (PÁRES, 2007).

Dentro desse contexto de revitalização da África


mítica, muitos terreiros - como Gantois - passaram
a reivindicar e disputar um lugar na história, cuja
origem africana se constituía como elemento legiti-
mador. Nas palavras de Parés:

A africanidade construía um fator diferencial, um


capital simbólico para enfrentar a concorrência
das casas de fundação recente. Essa reafirmação
36 Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo

identitária estaria reforçada também pela crença uma narrativa histórica a partir da tradição oral [...]
de que as práticas ‘africanas’ eram mais eficazes e (PARÉS, 2007, p. 160).
‘fortes’ do que as discriminadas práticas ‘crioulas’
dos especialistas religiosos recém-chegados (PARÉS,
Articulada com esse nacionalismo, uma relação entre
2007, p.159).
Bahia e Costa africana se estabeleceu a partir dos
ex-escravos que retornaram à África, mas mantinham
Esse imaginário mobilizou um duplo processo: por
ligações comerciais, familiares e afetivas com a so-
um lado, incentivou a estigmatização e exclusão das
ciedade baiana5. Esses contatos criaram um trânsito
manifestações consideradas crioulas e, por outro,
cultural intenso, cuja valorização da tradição nagô no
e-nalteceu a identidade iorubá ou nagô, como porta-
dora dessa africanidade. Brasil constitui o seu resultado mais imediato.

Outros fatores de ordem externa contribuíram para o Entretanto, um dado é fundamental nessa altura da
culto nagô se colocar como tradição religiosa superior discussão: os povos iorubás cultuavam divindades
a outras, a saber, a hierarquização entre os povos afri- chamadas orixás. Já os bantus cultuavam os nkisis.
canos acometida pelos colonizadores, particularmente, Hoje, no Brasil, quando se fala de religiões afrobrasilei-
no século XIX, com a chamada Renascença de Lagos 4. ras, automaticamente se pensa em orixás.
Na África, as sociedades iorubanas em oposição à
estrutura colonial passaram a valorizar os aspectos E os nkisis como ficam? Ora, pouco se conhece, pois,
culturais que as compunham dando origem a um certo diferentemente do que acontece com os orixás, os
nacionalismo cultural (PARÉS, 2007): nkisis ainda não fazem parte do imaginário brasileiro
mais abrangente.
A burguesia negra dessa pujante cidade (refere-se a
Lagos), diante da exclusão social e racial imposta pelo Contudo, o paradoxo se instala, pois as influências cul-
colonialismo, começou a promover um ‘nacionalismo turais bantu estão fortemente arraigadas na cultura
cultural’ como forma de contestação. Afirmando brasileira. O léxico do nosso português é uma grande
a especificidade de uma ‘raça-nação’ iorubá, esse prova disso. Indiscutivelmente, como tem mostrado
movimento cultivava a língua iorubá, adotava formas
Castro (1983) e Peter (2011), a presença de palavras
de vestir africanas, coletava a sabedoria ancestral
em forma de provérbios, contos e poesias, criava de origem bantu no português falado no Brasil é

4| Lagos é uma cidade localizada no sudoeste da Nigéria, na costa do Atlântico, no Golfo da Guiné. Por muito tempo, Lagos serviu de
entreposto comercial de escravos, controlado pelos reis iorubás.
5| Parés cita alguns casos dessa intercomunicação entre Brasil e África: como o babalaô (sacerdote) Martiniano Eliseu de Bonfim, cuja
contribuição resultou na fundação do terreiro Axé do Opô Afonjá. Outros nomes, como Joaquim Francisco Devodê Branco, liberto que
também fazia parte desse circuito intercontinental. PARÉS, N. Idem, p.160.
Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo 37

consideravelmente maior do que a de palavras de des/re/articulando, de acordo com circunstâncias im-


origem iorubá. Assim como os Candomblés angola postas e com as possibilidades oferecidas pela diáspora.
ou congo-angola estão espalhados por várias regiões Bernardo (2003) assinala essa característica da diáspora
brasileiras, apresentando suas especificidades litúrgi- ao dizer que “(...) [ela] significa necessidade de trânsito
cas e culturais. em várias direções, de transposições de fronteiras, espe-
cialmente das fronteiras de inúmeros grupos étnicos afri-
Essa ambiguidade entre a preponderância dos canos que chegaram ao Brasil” (BERNARDO, 2003, p.37).
ritos iorubanos no imaginário religioso brasileiro
e a variedade das marcas simbólicas, linguísticas e No continente americano, as divindades africanas que
religiosas, entre outras, que se remete a uma origem resistiram à travessia transatlântica tentavam sobre-
bantu, recentemente, tem mobilizado pesquisadores, viver, assim como acontecia com os sujeitos que que-
lideranças religiosas e outros setores da sociedade a riam continuar lhes cultuando. Ambos sobreviveram.
questionar a primazia dessa visão nagocêntrica no Entretanto, tais divindades sofreram um longo trajeto
processo formativo do Candomblé. Algumas pesquisas de reconstrução cultural cujas diferentes combinações
têm trazido para cena os povos bantus como uma possíveis lhe legaram um conjunto diversificado de
estratégia de quebrar o silenciamento dessa memória práticas rituais e manifestações religiosas.
denominada por Pollak (1989) de subterrânea.
Assim, se partirmos do pressuposto que o Candomblé
Seguindo essa ótica, Previtalli (2008) destaca que “mui- é um sistema religioso que nasce em fins do século XIX
tos movimentos culturais e terreiros de candomblé an- como resultado de múltiplos processos de reinterpre-
gola têm buscado firmar uma identidade étnica ‘banta’ tação e sincretismos, é possível afirmar que o modelo
como “um instrumento que mobiliza e justifica a nação bantu esteve presente na sua conformação.
angola [...]” (PREVITALLI, 2008, p.21).
De fato, quando pesquisamos sobre as origens mais
remotas do Candomblé, podemos perceber que no
A SAGA DOS NKISIS processo de sua institucionalização houve um conjunto
de práticas religiosas africanas que o antecederam,
A empresa escravagista disseminou as diversas como o calundu. Caracterizado como um dos primeiros
etnias africanas pelos vários continentes. Esses esforços, registrados, de práticas religiosas, de cunho
povos passaram a imprimir, nas regiões em que se coletivo, influenciadas, possivelmente, pelas tradições
estabeleceram, as marcas das suas culturas. da África Central, dos povos bantus.

Estruturas sociais, formas de organização familiar, re- O próprio nome já trazia em si as marcas da cultura
presentações coletivas e sistemas religiosos foram se bantu, uma vez que a palavra calundu deriva de línguas
38

bantas como o quimbundo e o kicongo. Assim, Silveira


(2006) explica a origem dessa palavra:

Antes de mais nada, definamos calundu, procurando


inicialmente sua origem africana, segundo afirmação
do pesquisador angolano Óscar Ribas: “Espírito de
elevada hierarquia e evolução”, vem do quimbundo
kilundu, derivado de kundûla (herdar), “alusão ao
modo de transmissão”; com um complemento:
“representam almas de pessoas que viveram em época
remota, numa distância de séculos”. Em Angola nas
expressões populares, calundu também adquiriu o
significado que tem atualmente no Brasil, de irritação,
mau humor (SILVEIRA, 2006, p. 177).

Calundu iria adquirir, ainda, aqui um novo sentido: o


de manifestação religiosa africana na qual se cultuava
divindades e espíritos de ancestrais vindos daquele
continente. De certa forma, é possível dizer que esse
calundu deu origem ao Candomblé.

Mas a influência dos povos não se resume ao termo


que designa essa religião. Pesquisas clássicas como
as de Mott (1994), as de Silveira (2006), as de Souza
(1999), entre outros, comprovam que boa parte dos
primeiros calundus de que se têm notícia no Brasil,
consistiam em cultos de origem bantu, ou seja, eram
nkisis que a maioria dos calunduzeiros cultuava. E isso
pode ser percebido nos autos dos processos policiais
ou inquisitoriais instalados contra esses calunduzeiros
e calunduzeiras.

Dessa forma, dos seis calundus registrados no


Brasil colonial analisados por Silveira (2006) quatro
Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo 39

apresentavam elementos ligados à cultura religiosa dos alguns anos depois sem deixar pistas. Mas enquanto
povos da África Central e ao culto dos nkisis. Dois deles esteve em Sabará os nkisis foram ali cultuados.
apresentavam provas explícitas de que se tratavam de
culto a nkisis e não a orixás. Outros registros demonstram que os nkisis também eram
cultuados em outras regiões do Brasil, até porque a popu-
Um deles era o calundu do negro liberto Domingos lação banta era numericamente maior do que a iorubá.
Umbata,6 registrado na capitania de São Jorge dos
Ilhéus (hoje Ilhéus, Bahia), em 1646. Veja, em pleno sé- É a partir da descrição existente acerca desses
culo XVII os nkisis já eram cultuados na Bahia. O outro proto-candomblés angola que Mott (1994) e Silveira
era o calundu da famosa “calunduzeira, curandeira e (2006) analisam as influências do culto dos nkisis na
constituição do Candomblé do século XIX.
adivinhadeira”, como a chamaram as autoridades poli-
ciais coloniais do Brasil, Luzia Pinta. Assim, se por um lado, o termo calundu designava
genericamente práticas religiosas circunscritas à
Além dos detalhes deixados pela polícia e pela inquisição
atividade adivinhatória e de cura do século XVIII, por
que perseguiram, prenderam e julgaram Mameto Luzia,
outro, traduzia uma primeira tentativa de reconstrução
é por meio da sua biografia que sabemos que nascera
e reinterpretação dos fragmentos culturais bantu
na cidade de São Paulo de Luanda, em Angola.
transladados. Prandi (2005) destaca que:
Consta nos documentos que apesar das implicações
[...] nem só de orixás se constitui o panteão das
que era ser escravizada em um país escravocrata, religiões africanas no Brasil. A estratégia banta de
Luzia foi valente e corajosa ao ponto de comprar a sua adoção aos inquices africanos, que não podiam ser
alforria depois de trinta anos de cativeiro, tornando- transferidos ao Brasil pelo fato de estarem presos
se uma mameto-diá-inquisse (sacerdotisa do culto ao território em que originalmente eram cultuados,
ampliou e diversificou o leque de divindades e enti-
aos nkisis), incorporando, além de um caboclo, as dades cultuadas nos terreiros (PRANDI, 2005, p.121).
divindades bantas Kaiongo e Inzaze.

Indo viver na imediação de Sabará, Minas Gerais, Luzia Nessa lógica, a força vital denominada moyo ou gunzo
instalou na sua casa um culto aos nkisis. Presa pela que ligava o individuo à sua terra, ao clã e aos seus
Santa Inquisição em 1741, ela foi levada para Lisboa ancestrais se refez no Novo Mundo e encontrou a sua
onde foi interrogada, julgada e condenada, sumindo base litúrgica no candomblé angola ou congo-angola.

6| O próprio nome Umbata, denuncia a origem banta do líder religioso, já que Umbata vem de Mbata que era o nome de uma das seis
províncias que teriam dado origem ao reino do Congo onde o sistema religioso girava em torno do culto aos nkisis.
40 Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo

O nkisi era concebido na África como objeto Muitos estudos convergem para a discussão das se-
confeccionado pelos sacerdotes para louvar os melhanças entre nkisis e orixás. Em se tratando de
ancestrais e a sua terra. No outro lado do atlântico, uma experiência diaspórica, ocorreram proximidades
desconectados com os seus ancestrais, nkisi se entre o culto nagô e bantu no Brasil. Porém, ainda que
transforma em forças naturais (denominadas por as similaridades e correspondências entre esses sejam
alguns sacerdotes de energias) pertencentes ao mundo inegáveis, pois resultam de processos hibridizadores,
animal, vegetal e mineral. Esses mundos apresentam nota-se “uma dinâmica paralela de diferenciação ‘étnica’
um trânsito multidirecional e se ligam por diferentes estabelecida a partir de uma série discreta de elementos
canais recompondo a unidade entre natureza e cultura rituais” (PARÉS, 2007, p. 15).
(GIROTTO, 1999).
Nesse sentido, ao contrário da afirmativa, sobretudo
Dentro dessa cosmovisão, o homem, núcleo central dessa de Roger Bastide (1974), de uma simples transposição
trama, se torna o portador dessas forças naturais herdadas do culto nagô na organização dos ritos bantus, os par-
pelos seus ancestrais. Quanto maior a cumplicidade do cos estudos já apontam que:
indivíduo com as suas forças naturais (nkisis), maior a sua
plenitude, ou melhor, a sua força vital. o que parece certo é que esse fenômeno, mais do
que assimilar, configurou a negociação e o inter-
Os nkisis se revestem de características naturais, liga- câmbio de práticas e procedimentos rituais. Afinal,
das aos fenômenos da natureza, bem como morais, como nem só de bantu se faz o angola, nem tudo é
iorubá no candomblé, como comprovam as etimolo-
condicionadas pelo mundo social e mítico. Segundo gias de muitos termos de uso geral. E até mesmo o
as práticas adotadas em algumas comunidades de ter- seu nome, candomblé, tem origem congo-angolana,
reiros, todo indivíduo carrega, em média, sete nkisis. e não iorubana (LOPES, 2010).
Sua junção e combinação, de acordo com a tradição
oral, determina a personalidade, as características CONSIDERAÇÕES FINAIS
físicas e as etapas da vida do indivíduo no mundo dos
vivos. Após a morte, a energia que movia esse indi- Ao refletir sobre a participação dos povos bantus na
víduo retorna para a natureza. Zambi, no Candomblé construção do candomblé, a tentativa, neste artigo,
angola, é o criador do mundo e o ponto convergente foi destacar a diversidade religiosa que compõem o uni-
dessas energias. Assim, o individuo está ligado a Deus verso cultural afro-brasileiro e, ao mesmo tempo, abrir
a partir do seu nkisi e em contato com outras energias o caminho para repensar o quanto essa memória ‘banta’
que circulam no ecossistema. foi silenciada na historiografia brasileira.
Nkisi na Diáspora - Janaína Figueiredo, Patrício Carneiro Araújo 41

Todavia, alguns estudos já indicam caminhos. Para CASTRO, Yeda. Das línguas africanas ao português
começar, a busca dos primeiros terreiros de candomblé do brasileiro. Afro-Ásia, CEAO, SA, nº 14, 1983.
angola que originaram a partir dos tatás (sacerdotes) CARNEIRO, Edson. Candomblés da Bahia. 9a. edição,
mais antigos, como Gregório Maquende e Roberto São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008 (raízes).
Barros Reis. O primeiro viveu entre 1874 a 1934 na
DANTAS, Beatriz Góis. Pureza e poder no mundo dos
Bahia e o segundo parece ter sido o fundador em 1850,
candomblés, in Carlos Eugênio Marcondes de Moura (org.),
aproximadamente, do primeiro terreiro de culto bantu Candomblé: desvendando identidades (novos estudos sobre
no Brasil. Reis estabeleceu o marco dos primórdios do os orixás). São Paulo: EMW, 1987, PP121-28.
Candomblé angola, na sua forma institucionalizada.
Seus descendentes, a sacerdotisa Maria Genoveva do ELIADE, MIRCEA. Tratado de História das Religiões.
Bonfim, conhecida como Maria Neném, falecida na Tradução Fernando Tomás, Natália Nunes. 3a. ed.,
Bahia em 1945, deram origem aos troncos e linhagens São Paulo: Martins Fontes, 2008.
do Candomblé angola, principalmente, a partir dos seus HALL, STUART. Da Diáspora: identidades e mediações
filhos de santo: Manuel Bernardino da Paixão, líder do culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende [et al].
candomblé do Bate-Folha, fundado em 1916 e Manuel 1a. edição atualizada, Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.
Ciríaco de Jesus, fundador em 1919 o Tumba Junçara
______. A identidade cultural na pós modernidade.
(LOPES, 2010).
Tradução Tomás Tadeu da Silva [et al] 6a. edição. Rio de
Essas genealogias somadas aos apontamentos de Janeiro: DP&A, 2001.
algumas chaves interpretativas sobre o candomblé SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz.
angola, como os nkisis, vão reorganizando o lugar que São Paulo: Companhia das Letras, 1999
essa matriz pretende ocupar, a saber, da sua partici-
pação na formação do candomblé. Não se pretende MOTT, Luiz. O calundu-angola de Luzia Pinta: Sabará,
com isso hierarquizar os ritos, mas sim de indicar 1739. In: Revista IAC, Ouro Preto, nº1, p. 73-82, dez. 1994.
outras possibilidades. PARÉS, Nicolau Luis. A Formação do Candomblé: História
e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2007.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, 2 vols. a formação da língua portuguesa. Contexto: São Paulo, 2011.
São Paulo: Pioneira/EdUSP, 1974.
PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: orixás na alma
BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães. brasileira. São Paulo, Companhia das letras, 2005.
São Paulo: Educ; Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
42

PREVITALLI, Ivete Miranda. Candomblé: Agora é Angola.


São Paulo: Annablume; Petrobrás, 2008.

POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento, Silêncio.


In: Estudos Históricos nº3, edta. Revista dos Tribunais Ltda.
(Edições Vértice), São Paulo, 1989.

SILVEIRA, Renato da. O calundu, ancestral do candomblé,


e as duas políticas coloniais. In: O candomblé da
barroquinha. Processo de constituição do primeiro terreiro
baiano de ketu. Salvador: Edições Maianga, 2006.
p. 153-773.

SITES CONSULTADOS:
LOPES, NEI. Especial Candomblé: terreiro resgatado.
Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/
artigos/especial-candomble-terreiro-resgatado.
Acesso em: 11 set. 2012.

http://www.culturaderesistencia.org.br/.
Acessado em: 09 set. 2011.
África Bantu, de que África estamos falando? - Dilma de Melo Silva 43

ÁFRICA BANTU,
DE QUE ÁFRICA ESTAMOS FALANDO?
Dilma de Melo Silva

Dilma de Melo Silva é Profª.Doutora do departamento Essa denominação para se referir ao grupo supracitado
da ECA/USP. de africanos foi proposta pela primeira vez por W.H.I.
Bleek, que, em 1851, estabeleceu as bases para o estu-
O objetivo desse artigo consiste em discutir, a do comparativo das línguas bantu. Etmologicamente,
partir do filme Nkisi na Diáspora: raízes religiosas o radical ntu, significa ser humano, pessoa, e ba é o
bantu no Brasil, alguns elementos que estruturam plural, ou seja, Bantu significa as pessoas, os seres
o pensamento bantu, assim como perfazer certos humanos. Além da semelhança na questão linguística,
aspectos da organização social desses povos, em essa população possuía religiosidade, crenças, rituais
África e os seus desdobramentos no Brasil. e costumes muito similares, enfim uma cultura com
características idênticas e outras específicas que os
tornavam semelhantes e bem próximos entre si.
OS POVOS BANTUS
Há 3000 ou talvez 4000 anos, os Bantu saíram da
Os povos chamados no Brasil de Bantu dizem respeito
floresta equatorial - a região que é hoje ocupada
a um grupo linguístico, compreendendo milhões de
pelos Camarões e pela Nigéria - e dividiram-se em
africanos, com quase 500 subgrupos com inúmeras
dois movimentos diferentes: para o Sul e para Leste,
línguas, atingindo aproximadamente 2/3 da África
originando um grande fluxo migratório, cujas causas
Negra, totalizando cerca de 170 milhões de pessoas.
são desconhecidas e que se estendeu até ao século XIX.
Assim, esse nome, Bantu, não se refere a uma unidade
étnica racial, mas a uma comunidade cultural com uma Nosso interesse sobre esses povos é grande, pois as pri-
civilização comum e línguas similares. meiras correntes de escravizados trazidos para o Brasil
eram formadas quase que totalmente pelos de origem
44 África Bantu, de que África estamos falando? - Dilma de Melo Silva

“Bantu”, notadamente vindos de Angola e do Congo.


Esses africanos aqui foram chamados de: Banquelas
ou Bangalas; Rebolos; Munjolos ou Monjolos; Makuas;
Musikongos; Moçambiques; Kabinda.

Devemos ainda acrescentar que ao grupo Bantu per-


tencem cerca de 600 línguas, entre elas Kimbundo e
Kikongo, que contribuiram para formação de palavras
e expressões idiomáticas, cujas origens são ignoradas
pelos falantes da Língua Portuguesa no Brasil.

Quanto à localização geográfica, atualmente, ocupam


a África Central, Oriental, o sul da Etiópia e grande
parte da África Austral. Estariam, pois, nos países:
África do Sul, Angola, Botswana, Burundi, Camarões,
Gabão, Kênia, Lesotho, Malawi, Moçambique, República
Democrática do Congo(ex-Zaire) República do Congo
Brazzaville, Ruanada, Uganada, Zâmbia e Zimbabwe.

Mapa retirado do site: http://midiaetnia.com.br/wp-content/uploads/2010/10/Aula


-Prof-Antonio-Carlos-Malachias-Geografia.pdf, acessado no dia 05 jan. 2012.

tendo produzido obras em diversos materiais: madeira,


COMO ERAM ESSES POVOS? pedra, argila, marfim, bronze, prata, ouro, coral.
Alguns traços culturais desse povo são apontados Quanto à organização social, desenvolveram várias
pelos estudiosos: criação de rebanhos de bois e ca- formas de governo muito complexas, baseando-se
bras, sendo, portanto, povos pastores, com excelente ou em ordem genealógica - clãs e linhagens, ou em
conhecimento na prática da agricultura, por exemplo, processos iniciáticos – faixas etárias, ou por chefias -
do cultivo do sorgo e outras espécies de milho miúdo. diferentes modalidades de unidades políticas. Alguns
Além disso, conheciam a metalurgia do ferro e do Estados centralizados tiveram longa duração e man-
cobre sabendo fabricar ferramentas de metal; tinham tiveram contatos com países fora da África, como foi
ainda uma produção artística altamente sofisticada, o Reino do Congo, cuja existência data do século XIII.
África Bantu, de que África estamos falando? - Dilma de Melo Silva 45

Apesar de serem povos sem escrita, desenvolveram Os povos bantu concebem essa noção, explicando a
acurado registro histórico, por meio da tradição oral realidade a partir da concepção da existência dessa
e da existência de especialistas nas narrativas, os força vital. Sua fonte mais primordial é o pré-existente,
documentalistas, chamados griots, que mantiveram que dela se serviu para engendrar a ordem natural
as informações históricas e míticas pela poesia e pela dentro de situações diferenciais, especificamente
música. Eles narram feitos importantes para história a cada sociedade, que define o seu próprio pré -
e para a construção da identidade de seu povo. Hoje,
existente. A origem não humana da força vital e a
muitos dos conteúdos de suas canções são comprovados
crença da possibilidade de sua atuação nas práticas
por achados arqueológicos. Ademais, muitos objetos de
humanas explicam porque as esferas em que atuam
arte também condensam informações codificadas que
estão sendo interpretadas e confirmam as narrativas da são consideradas sacralizadas.
tradição oral. Ela se revela em quatro formas fenomênicas que estão
interligadas, não existindo em separado: A primeira é
A FILOSOFIA BANTU MUNTU, a pessoa, o ser humano, compreendendo tantos
os vivos como os mortos, é a força dotada de inteligên-
Os trabalhos de pesquisa do missionário belga Placide cia, é, pois, o ser-da-inteligência, que tem consciência
Tempels ajudam-nos a entender um componente de de sua existência, sendo capaz de atuar sobre ela. Diz
suma importância sobre os princípios estruturadores da respeito, portanto, à pessoa viva e aos antepassados; o
realidade, as concepções filosóficas bantu. Outro estu- fato de alguém ter morrido não tira sua característica de
dioso que deve ser citado é Aléxis Kagame, que estudou o MUNTU, pois essa abarca vivos e não vivos; visto que o
conceito de metafísica do tempo no pensamento Bantu. existir e o viver não se confundem. O ser-de-inteligência
é o existente que continua sua existência mesmo quando
O universo é concebido como sendo formado por
já não faça parte do mundo dos vivos.
energia, que é uma força-ser, ou um ser-força, pre-
sente em todas as formas reveladoras da realidade; a A segunda categoria é KINTU: o ser-sem-inteligência,
energia cósmica é constituinte do mundo visível e do as forças que não podem atuar sobre si mesmas e que se
invisível, do material e do imaterial, do existente e do
fazem ativas pela ação de um MUNTU. A esta, perten-
pré-existente, do objetivo e do subjetivo.
cem as plantas, as ferramentas, a terra, os minerais, os
Essa força vital é chamada de NTU (em ioruba utensílios e os fenômenos da natureza. Nela, está tudo
é chamada de AXÉ) que está presente em todas o que serve para o sustento e preservação do MUNTU.
as instâncias da vida, estando nela envolvidos os Assim, os Bantu são potências imóveis, esperando uma
homens, a natureza e a sociedade. ordem de um Muntu; estão intrinsecamente ligados,
46 África Bantu, de que África estamos falando? - Dilma de Melo Silva

porque esse elo não pode ser concebido em separado HERANÇA BANTU
uma vez que a mesma força vital os uni e os nutri.
Em nossa cultura existem elementos civilizatórios
A terceira categoria HANTU é o ser - localizador do africanos que desafiaram séculos de dominação do
tempo e espaço, e que não pode ser entendido e tronco branco-cristão e continuam pulsantes em nossos
percebido fora do Ser e do espaço. A quarta categoria cotidianos. Desta forma, a herança cultural bantu foi
é KUNTU, a força modal, uma modalidade valorativa, a fundamental para a configuração da cultura brasileira,
beleza, a alegria, o prazer, a felicidade, a apreciação, a sendo um dos pilares da resistência à imposição da
fruição estética; e também o riso e o choro. A arte estaria cultura européia nos anos de colonização. Essas
situada nesta categoria, uma vez que o objeto artístico supervivências culturais devem ser reconhecidas e
é capaz de atuar como uma força que desencadeia valorizadas por cada um de nós, pois suas raízes estão
comportamentos, sentimentos, emoções ou sensações. fincadas no solo africano, berço da Humanidade.

Nas suas práticas religiosas, há sempre a presença Contudo, em nosso país, a historiografia escrita a
de instrumentos de percussão, da dança e do canto; o partir da visão hegemônica dá pouco, ou nenhum,
poder propiciatório das palavras é sempre reiterado pela destaque a esta presença, omite ou deforma tudo o
força vital nela contida. Igualmente nos fenômenos de que se relacione com o continente africano. O pouco
possessão pela crença na possibilidade do MUNTU entrar que se sabe são noções distorcidas e preconceituosas.
em contato com os não vivos. Desta forma, também,
entendemos a importância dos cultos aos ancestrais, A Lei Federal 10.639 de 09 de janeiro de 2003 torna
antepassados que já não vivem, mas que existem. O obrigatória a presença da temática da História e Cultura
pré-existente está sempre no vértice das forças como o Afro-brasileira e Africana no currículo escolar brasileiro,
espírito criador, dotado de poder por si mesmo; depois, mas, o material disponível para o professor utilizar em
estão os antepassados fundadores da comunidade; o sala de aula ainda é escasso. Assim, o documentário
culto aos ancestrais é a base dessa religião africana, Nkisi na diáspora: raízes religiosas bantu no Brasil, traz
existindo sacerdotes qualificados para se comunicarem elementos preciosos para compreendermos as mani-
com os ancestrais: Nganga Mbakulo, festações religiosas de Angola presentes entre nós.

Há estudos que apontam para a existência de pessoas Deve ser ressaltada, ainda, a herança linguística dos
capazes de usarem os “cestos de adivinhação”, ou seja, povos bantu em nosso país, visto que são várias as
de praticarem os jogos adivinhatórios, auxiliando as palavras e as expressões idiomáticas africanas que
pessoas a se orientarem em momentos decisivos ou estão integradas ao português contemporâneo do
difíceis em suas vidas. Brasil. Além disso, é necessário lembrar a participação
África Bantu, de que África estamos falando? - Dilma de Melo Silva 47

da mão de obra africana na produção nacional, Como decorrência dessa premissa, temos alguns con-
correspondendo aproximadamente a setenta por cento ceitos estruturantes de uma civilização tradicional
dos trabalhadores do país, que acompanharam os africana, como: a palavra, que é o sopro ou fluido vital
vários ciclos de desenvolvimento: da cana-de-açúcar; que contém energia, desencadeia ações, transmite
conhecimentos, socializa, orientada, ordena; muitas
na Bahia e em Pernambuco, do ouro; em Minas Gerais
das sociedades africanas sendo ágrafas, a oralidade
e Mato Grosso, do algodão nos estados sulinos.
ganha dimensão de enorme importância, pois é por
Outro traço cultural peculiar dos povos Bantu destaca- meio da palavra que a comunidade acumula e trans-
mite o saber, e também se sustenta. A palavra sendo
se pelos instrumentos musicais: tambó, candongueiro,
dotada de força, uma vez que é proferida não volta à
quinjeque, engone, ingoma, zambê (percussão). Cuía, pessoa, devendo ser usada adequadamente.
puíta e cuíca ( fricção). E também pelos ritmos presen-
tes em nossa música popular. Homem entendido como síntese de alguns elementos
vitais em interação permanente, constituindo o corpo
Contudo, a estrutura social escravista, separando as e a espiritualidade; o corpo, o complexo externo, a
pessoas em classes superpostas, levou a uma alteração espiritualidade, a existência visível, a respiração e a
dos valores civilizatórios, pois os brancos não conse- imortalidade.
guiam compreender uma cultura tão diferente da sua. A noção de socialização, caráter comunitário da
A religião africana passou a ser considerada demoníaca existência, formação da personalidade que é tarefa
por não ser cristã. Os diferentes espaços sagrados dos comunitária; a educação se dá a partir de grupos
terreiros são verdadeiros pedaços da África transplan- por faixas etárias, grupos de idade; o conhecimento
tados para nosso país, reflorescendo, neste solo, a transmitido a partir de rituais iniciáticos - ritos de
beleza da festa, o esplendor do cerimonial, a abundân- passagem, de permanência; todos têm acesso, no
tempo devido, a todos os conhecimentos do grupo.
cia dos alimentos, a intensidade da música e da dança.
O conceito de morte, fator de desequilíbrio, dis-
solução da união vital; a superação da morte se dá
VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRICANOS
por meio de rituais, pelos quais o homem/mulher se
Além da noção de força vital (NTU ou AXÉ), cada transforma em ancestral.
sociedade define o seu pré- existente estabelecendo Temos ainda a noção de família que no caso africano
assim a origem sacralizada das relações dos homens é sempre a família extensa, formada por pai, mãe,
entre si e com a natureza. A vitalidade dessa força se filhos, primos, sobrinhos, tios, avós, sendo matrilinear
manifesta na vida cotidiana, no real objetivo e subjetivo. ou patrilinear.
48 África Bantu, de que África estamos falando? - Dilma de Melo Silva

A concepção de produção, ligada à terra, principal re- concepção da história no pensamento bantu. In: RICOEUR,
curso para a obtenção da sobrevivência, sacralizada por Paul. As culturas e o tempo. Petrópolis: Editora Vozes,1975.
ser doação do pré-existente; os homens podem usá-la, LEITE, Fabio. A questão ancestral. São Paulo:
têm direitos e deveres para a demarcação do seu uso, Casa das Áfricas, 2008.
não de sua posse. Os ancestrais fundadores estabelece-
TEMPELS, Placide. La philosohie bantuue. Paris:
ram os pactos com a terra, as alianças, obedecendo a
Présence Africaine.
ritos de devolução, respeitando-a (ver o tamanho das
enxadas e enxós, a origem sagrada exige que os instru-
mentos para sua manipulação sejam fornecidos por ela
mesma); a produção de bens é suficiente, inexistindo
a lógica do acúmulo da produção de excedente para o
lucro, ou da exploração do homem pelo homem.

O poder; em sociedades sem Estado, é fortemente con-


centrado com relação às unidades de produção, mas
difuso em relação à sociedade global. Nas sociedades
com Estado, o poder real está centralizado num clã ou
agregado de uma família; mas, em ambos os casos há
Conselhos de família e da comunidade, de notáveis,
ligados aos ancestrais ou a gerações de iniciados.

À luz destas concepções que configuram a africanidade


diz respeito a esses valores civilizatórios em sociedades
diferenciadas encontráveis por toda a região subsaa-
riana; eles nos dão a dimensão do distanciamento da
lógica desses povos e as do mundo ocidental, orien-
tado pelo acúmulo pelo desperdício, pela desigualdade
e pela exploração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
KAGAME, Aléxis. A percepção empírica do tempo e
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi 49

A PLURALIZAÇÃO DO CAMPO AFRO-RELIGIOSO


NO BRASIL E A EMERGÊNCIA DOS CANDOMBLÉS
CONGO-ANGOLA
Maria Paula Fernandes Adinolfi

e voduns dos povos Yoruba e dos Fon em relação às


Maria Paula Fernandes Adinolfi é Bacharel em História
tradições religiosas da área do Congo e Angola, prati-
e Mestre em Antropologia Social pela Universidade
cadas por diferentes etnias embarcadas nos portos de
de São Paulo. Doutoranda em Antropologia Social e
Loango, Malimbo, Cabinda, Mpinda, Luanda, Benguela e
Cultural pela Vrije Universiteit Amsterdam, ligada ao Cunene, entre outros. No entanto, os trabalhos surgidos
projeto de pesquisa “Heritage Dynamics. Politics of nesse período prestaram-se mais a criticar a construção
authentication and aesthetics of persuasion in Ghana, da noção de autenticidade dos cultos de orixás, utili-
Brazil, South Africa and the Netherlands”. Técnica em zando o conceito analítico de “pureza nagô” (FRY 1986,
Ciências Sociais do Instituto do Patrimônio Histórico e DANTAS 1988, CAPONE 2004, PRANDI 1991), do que a
Artístico Nacional. desenvolver pesquisas mais detalhadas sobre a religio-
sidade dos povos bantu no Brasil. Suas conclusões in-
Cada pedaço de chão, cada pedra fincada, dicavam que a (re)africanização das práticas religiosas
um pedaço de mim.
Ilê Aiyê, o povo Bantu ajudou a construir o Brasil. afro-brasileiras, entendida como sinônimo de nagoiza-
(“Heranças Bantu”, Paulo Vaz e Cissa)
ção, era uma tendência consolidada entre os terreiros
que disputavam prestígio e legitimidade, nos quais os
elementos de origem bantu tenderiam a desaparecer ou
ao menos a ser dissimulados.
A tendência à excessiva valorização das tradições re-
ligiosas advindas do Golfo do Benin na formação das Sobre a religiosidade bantu no Brasil, há que se con-
religiões afro-brasileiras tem sido criticamente anali- siderar, é certo, a multiplicação de estudos históricos
sada há mais de duas décadas, colocando em xeque sobre as Irmandades de Homens Pretos na Colônia e
a ideia de uma “superioridade” dos cultos aos orixás a participação de escravos e libertos da África central
50 A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi

nessas instituições. No entanto, é sempre na chave de diferenciação das nações comportavam alianças,
da relação com o catolicismo, ou da tradução dos mas também a rivalidade entre elas. A partir da década
sistemas religiosos da África Central, principalmente de 1980, e especialmente da de 1990, contudo, tais
dos Bakongo, em termos católicos, que essas pesquisas dinâmicas têm atendido menos à competição e mais à
avançaram (MELLO E SOUZA 2002, REGINALDO 2005, pluralização do campo afro-brasileiro.
REIS 1997, QUINTÃO 2002). A já secular lacuna nos estu-
Procurarei argumentar que os principais fatores a
dos afro-brasileiros sobre os candomblés congo-angola,
propiciar este movimento em direções aparentemente
no entanto, persiste, salvo raros trabalhos que trazem
contraditórias são a emergência do neopentecostalismo
este enfoque específico (BOTÃO 2007, PREVITALLI
como rival no campo religioso e a consolidação de um
2008, VATIN 2001). Independentemente, porém, das
paradigma multicultural nas políticas públicas no país.
etnografias, este segmento vem ganhando visibilidade
Examinarei os processos político-institucionais que
e construindo suas próprias estratégias de autenticação
promovem a autenticação da “nação bantu”, situando
dentro do campo religioso afro-brasileiro – incluindo aí
os terreiros congo-angola como importantes agentes
o estabelecimento de linhagens e narrativas de origem
não só do campo religioso afro-brasileiro, mas também
largamente ignoradas pelos estudos acadêmicos.
do campo político-cultural no Brasil contemporâneo.
Neste artigo pretendo abordar as atuais dinâmicas
Este trabalho refere-se às dinâmicas socioculturais em
desse campo, marcadas por um movimento em dupla
curso, principalmente na Bahia. No entanto, como o
direção: por um lado, verifica-se uma pluralização do
candomblé, constituída a partir de uma demarcação candomblé baiano tem tido um papel modelar dentro
mais nítida das fronteiras entre as “nações”. Por outro, do campo das religiões afro-brasileiras, pelo prestígio
processa-se uma unificação das casas e nações ao re- e autenticidade que lhe são atribuídos, definindo-se
dor de uma agenda política comum, no fim do século as “grandes casas” da Bahia como “matriz” de di-
XX. É pertinente questionar o porquê, neste momento versas outras espalhadas pelo Brasil, os fenômenos
histórico, torna-se tão importante para as lideranças descritos neste artigo apontam uma tendência que se
religiosas divulgar na esfera pública a multiplicidade de consolida em âmbito nacional, já que os movimentos
modalidades rituais, que ao mesmo tempo diversificam políticos e as associações do povo de santo surgidos
e unificam as religiões afro-brasileiras. Não se pode na Bahia também têm se ramificado nacionalmente.
negar que desde a institucionalização do candomblé Além disso, no final do artigo, trato brevemente de
até sua consolidação como religião e cultura frente à fenômenos ocorridos também em São Paulo, onde os
sociedade nacional (ou seja, desde o último quartel do candomblés angola têm concorrido para a autentica-
século XIX até o final da década de 1970), as dinâmicas ção de uma cultura bantu paulista.
51

EMERGÊNCIA NEOPENTECOSTAL
E INSTAURAÇÃO DO PARADIGMA
MULTICULTURALISTA NO BRASIL
DO FIM DO SÉCULO XX

Com a ascensão das religiões neopentecostais nos anos


1990, a necessidade de marcar presença no espaço pú-
blico e de fazer-se respeitar enquanto religião tornou-
se o ponto central da agenda política do candomblé.
Na verdade, é esse confronto que dá ensejo à própria
formação de uma agenda política enquanto tal. Os
ataques promovidos pelas denominações neopente-
costais, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), contra o candomblé, por elas denominado de
“religião do demônio”, por meio das pregações em seus
cultos, dos meios de comunicação que controlam, dos
livros que publicam e mesmo de ataques físicos a tem-
plos e adeptos das religiões afro-brasileiras, tornaram-
se frequentes em diversos locais do país. O auge desta
“guerra santa” foi a morte de Mãe Gilda, do Axé Abassá
de Ogum, em Salvador, em 2000, em decorrência de
um infarto acarretado, de acordo com sua família,
pelas atribulações sofridas por causa da publicação
de notícias difamatórias contra ela na Folha Universal
(pertencente à IURD) e invasões a seu terreiro por
membros da Deus é Amor. Esse episódio foi também,
porém, uma mola propulsora para a formalização do
Movimento contra a Intolerância Religiosa, instituído
naquele ano, e para as tomadas de ações judiciais con-
tra as agressões neopentecostais, em particular junto
ao Ministério Público (REINHARDT 2006, SILVA 2007).
52 A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi

O candomblé sempre foi marcado pela acentuada No ano de sua fundação, o CEN promoveu em Salvador,
autonomia de cada terreiro, e as Federações criadas em parceria com diversas entidades, a 1ª Caminhada
para congregá-los nunca obtiveram muito êxito, tal pela Vida e Liberdade Religiosa, que em 2011 teve sua
como a FENACAB (Federação Nacional dos Cultos 7ª edição e já foi replicada em diversas outras cidades
Afro-Brasileiros). As “grandes casas” não se sentem do país. Outra importante iniciativa foi uma campanha
representadas por ela, e as “pequenas casas” muitas junto ao povo-de-santo para declarar o candomblé ou
vezes a veem mais como um órgão coercitivo, umbanda como sua religião ao responder ao censo 2010,
fiscalizador e fiscalista do que uma entidade de apoio chamada “Quem é de axé diz que é” 1. O exemplo dessa
e representação. Entretanto, a necessidade de resistir entidade mostra como o povo de santo passou, nos anos
aos ataques neopentecostais, junto à apropriação 2000, a buscar articulações junto a uma base social mais
do candomblé como ícone de resistência negra por ampla, que lhe permitisse angariar aliados fora da esfera
segmentos importantes do movimento negro, levou religiosa, nos movimentos em prol da justiça, direitos
ao surgimento de novas entidades, com vistas à humanos, cidadania e igualdade racial, para propiciar
mobilização política dos terreiros e a sua representação seu acesso a mecanismos jurídicos de defesa, mediante
coletiva na esfera pública. É o caso, por exemplo, do a reivindicação de direitos coletivos e difusos.
Coletivo de Entidades Negras (CEN), criado em 2005,
Mas se o fator neopentecostal é importante para
que difere das agremiações negras da década de 1970
entender discursos e práticas de unificação do povo
e 1980, como o MNU e a UNEGRO, justamente pela
de santo, que busca superar divergências e disputas,
ênfase em pontos da agenda específica das religiões
ao menos na esfera pública, ele não explica sua cres-
de matriz africana, como a luta contra a intolerância
cente diversificação interna. Em um contexto no qual
religiosa e pela regularização fundiária dos terreiros.
“diversidade” é um atributo extremamente positivado,
Tal diferença pode ser notada nos símbolos dessas
o bordão “igualdade na diferença”, derivado da instau-
entidades, o do MNU são três punhos erguidos ração de um paradigma multiculturalista nas políticas
segurando uma lança, o que evoca ao mesmo tempo públicas, e particularmente nas políticas culturais, tem
o gesto dos Panteras Negras, as reivindicações dos se consolidado também entre as nações de candomblé.
trabalhadores e a luta de Zumbi, o do CEN é um oxê O deslocamento da cultura para o centro da arena
estilizado, o machado duplo que é a ferramenta do política é distintivo das mudanças no discurso político
orixá Xangô, cujo atributo, dentre outros, é a justiça. no fim do século XX, relacionado às insuficiências das

1| O vídeo promocional da campanha, veiculado na imprensa, pode ser visto no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=09pVl_
LfbSU&feature=related, acesso em 20 jan. 2012.
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi 53

noções universalizantes de bem comum e soberania convive, paradoxalmente ou não, com o emprego de
popular características da democracia liberal, assim uma linguagem jurídico-política bastante homogênea
como à exaustão da linguagem das classes e partidos e universalizada para reivindicar direitos à diferença e
políticos para descrever o universo social, conforme com a criação de instituições de tipo federativo para
observa Paula Montero (1998). Em um contexto de congregar e representar politicamente os “diferentes”.
fragmentação dos atores sociais e de emergência de
Também, em consonância com alguns processos de
reivindicações ao redor de novas categorias, como
etnogênese, são os atores mais desprovidos do capital
gênero e raça, a cultura torna-se a linguagem na qual
simbólico conferido pela etnicidade, ou seja, aqueles
se exprimem diferenças e direitos sociais. Segundo
menos identificados pela sociedade envolvente como
Rosaldo (1999), o conceito de “cidadania cultural”
pertencentes a uma etnia diferenciada e em virtude
passa a relacionar-se às políticas por meio das quais
disso dotada de direitos específicos, aqueles que muitas
atores não-hegemônicos articulam visões alternativas
vezes encabeçam os movimentos políticos calcados na
de identidade e pertencimento para reivindicar direitos
diferença – como os indígenas do Nordeste do Brasil
e reconhecimento em sociedades dominadas por um
ou os quilombolas urbanos. No caso do candomblé,
cânone branco e masculino.
é a categoria “nação” que assume valor diacrítico
As particularidades étnico-culturais adquirem um pa- nos processos de diferenciação internos ao campo,
pel de relevo, assim, na vida política contemporânea. e os terreiros da “nação congo-angola” ou “bantu”
Contrariando não apenas os prognósticos de desapa- vêm assumindo papel proeminente nos movimentos
recimento feitos por seus primeiros estudiosos, mas político-identitários do povo de santo2.
também as análises antropológicas mais recentes
que vaticinavam a nagoização homogeneizante, as
PLURALIZAÇÃO DAS NAÇÕES
religiões afro-brasileiras têm acentuado suas diferen-
E AUTENTICAÇÃO DA NAÇÃO
ças em relação a outras religiões, particularmente o
CONGO-ANGOLA
catolicismo, mas também multiplicado suas fronteiras
internas, seguindo uma dinâmica comum aos proces- O evento que talvez possa ser considerado como um
sos de etnogênese verificados no Brasil e no mundo, marco inicial deste processo é o Encontro de Nações
nos quais uma crescente afirmação da diferença de Candomblé, promovido pelo Centro de Estudos

2| Sobre o conceito de nação de candomblé, ver o clássico estudo de Vivaldo da Costa Lima 1976. O conceito de ‘nação’ nos Candomblés
da Bahia. Afro-Ásia 12: 65-90, assim como uma discussão mais ampla e atualizada feita por Luis Nicolau Parés 2006 A Formação do
Candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora Unicamp, cap. 1.
54

Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia


em articulação com alguns terreiros, em 1981 (cujos
anais foram publicados em 1984). Esmeraldo Ementério,
“Seu Benzinho”, falecido ogã do Tumba Junçara, terreiro
que junto ao Manso Banduquenque (Bate-Folha) é
considerado uma das “matrizes” do candomblé congo-
angola na Bahia, fez um pronunciamento na ocasião,
alertando para a grande lacuna nos estudos afro-
brasileiros a respeito do candomblé congo-angola,
e pedindo que os acadêmicos se voltassem a este
tema, demonstrando perceber quanto do prestígio e
legitimidade dos grandes terreiros lhes é conferido pelo
lugar que ocupam nas etnografias, conforme aponta
Vagner Gonçalves da Silva (2000). Mas essa foi também
uma oportunidade de convocar as outras nações à
luta pela visibilização do candomblé. Consolidava-se a
ideia de que o candomblé, sendo múltiplo, é uno, pois
as divindades de cada nação – que a partir de então
passam a serem evocadas na esfera pública por sua
denominação específica, orixás, voduns e inquices, e
não mais a serem todas englobadas sob a designação
de “orixás” – apesar de diferentes, corresponderiam a
uma mesma energia, o mesmo tipo de força espiritual.
Além disso, as resistências comuns à escravização
e às perseguições policiais são invocadas como
vínculos históricos a unir as nações de candomblé. A
multiplicidade, assim, passaria a ser fundamental no
seu posicionamento político (CEAO, 1984).

O âmbito dos estudos afro-brasileiros não ficaria


impermeável a estas mudanças. Na década de 2000,
surgem publicações sobre nações do candomblé baiano
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi 55

nunca antes contempladas por estudos específicos, trazia a frase “Xangô dobra os couros para os 90 anos
o que mostra que a dinâmica de diferenciação e desta maravilhosa casa de Angola”. Um dos objetivos
especialização dos terreiros repercute também no foi “discutir e redimensionar a importância histórica do
campo acadêmico, no qual se procede a uma partilha terreiro do Bate-Folha, que é um dos mais tradicionais
e “desbravamento” de territórios de investigação ainda da Bahia", de acordo com Florivaldo Cajé, membro do
em grande parte inexplorados. Estes antropólogos Alaketu e coordenador das mesas-redondas do evento. 3
vêm sendo reconhecidos por seu conhecimento
Essa não foi a primeira atividade de cooperação recente
especializado sobre cada uma das nações até então
entre o Bate Folha e o Opô Afonjá. Em 2000, Mãe
sub-representadas ou insuficientemente estudadas:
Stella, a ialorixá desse terreiro, solicitou o tombamento
jeje (Parés 2006), nagô de Cachoeira (diferente,
do Bate Folha em ofício enviado ao Ministério da
segundo os adeptos, do nagô-ketu de Salvador e do
Cultura, dando início a um processo que resultaria no
ketu de Cachoeira) (SOUSA JR 2005) e congo-angola
tombamento da casa congo-angola como patrimônio
(VATIN 2001).
cultural nacional em 2003 (ADINOLFI, 2009). No
Eventos públicos, de congregação do povo de santo, ofício, ela pede ao Ministro e ao Presidente do Iphan
mas abertos à participação de outros segmentos, tam- que “olhassem para os destinos e a existência do
bém adotaram denominações específicas para cargos, candomblé de outra nação, do povo Angola, também
divindades e rituais em cada nação: é o caso do Alaiandê essencial para a memória e a religiosidade dos negros”.
Xirê - Festival Internacional de Alabês, Xicarangomas
e Runtós, criado por iniciativa da Sociedade Cruz Mas, se houve investimento simbólico de terreiros
Santa do Opô Afonjá no fim da década de 1990, para de diversas nações, inclusive das “casas de elite”
apresentar performances e debates relativos ao ofício nagô-ketu, para legitimar as múltiplas ortodoxias do
do tocador dos tambores em rituais no candomblé e candomblé, são os terreiros “bantu” que fariam as
promover um intercâmbio entre as nações. É interes- maiores investidas para tornarem-se “estabelecidos”.
sante que, após oito edições do evento terem ocor- Consideremos as estratégias de construção de
rido no espaço do Ilê Axé Opô Afonjá, em 2006 ele autenticidade empregadas por terreiros menos
foi transferido para o Bate-Folha, para celebrar os 90 prestigiosos que o Bate-Folha, que não possuem sua
anos daquela casa e para comemorar a amizade entre ancianidade ou as ligações históricas com terreiros
Mãe Aninha e Bernardino, segundo Cléo Martins, uma nagô, legitimados como o Opô Afonjá. Veja-se, por
das organizadoras. O panfleto de divulgação do evento exemplo, a fala de Laércio Sacramento (Tata Lembaraji),

3| Informações contidas na matéria “Bate-Folha abriga Alaiandê Xirê pela primeira vez. Festival de sacerdotes músicos das três nações
do candomblé agrega diversidade negra”, de Flávio Costa, publicada no Correio da Bahia, Acesso em 02 dez. 2006.
56 A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi

Tata do Manso Kilembekweta Lembafurama, o Terreiro cultural, no caso dos bantu inversamente o valor cultural
de Jauá, que foi reconhecido em novembro de 2006 tem sido invocado para legitimar sua autoridade religiosa.
como patrimônio cultural do estado pelo Instituto do
Uma trajetória exemplar desse novo tipo de construção
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia:
de autoridade é a de Makota Valdina Pinto, do Tanuri
O Manso Kilembekweta Lembafurama é Angola- Junçara, um terreiro angola situado no Engenho Velho
Muxicongo. Isto porque tenho uma raiz do Bate-Folha da Federação, Salvador. Ela tornou-se uma proeminente
e Bernardino, embora filho de Maria Nenem angoleira, liderança do candomblé, não apenas por sua atuação
já trazia uma raiz Muxicongo. Temos por norma só religiosa ou pelo prestígio anterior de seu terreiro, mas
cultuarmos os Nkisis, Caboclos e nossos Ancestrais,
não cultuamos Orixás. Não por uma questão de
fundamentalmente por seu papel como intelectual do
purismo, mais para conservarmos nossa identidade e candomblé, e particularmente do candomblé bantu.
para evitar sermos engolidos pelo Ketu (...)4 Professora aposentada, ela é estudiosa da obra de Fu-
kiau Bunseki, intelectual mukongo que esmiuçou os
Essa fala sintetiza os objetivos de distinção frente a sistemas cosmológicos bakongo, nos quais ela tem se
outras nações: é preciso resistir à homogeneização baseado para identificar e reconstituir saberes rituais
nagoizante, não para ser “mais puro”, mas para e litúrgicos do candomblé angola. Aclamada também
“conservar a identidade”. O culto a entidades específicas, como importante militante negra e educadora do
bem como a recuperação da língua ritual, das cantigas, bloco afro Ilê Aiyê, Makota Valdina teve seu nome
dos títulos e de uma mitologia próprias fazem parte da dado ao Núcleo de Estudantes Negros da Universidade
busca das “raízes” da nação. Para tal, Tata Lembaraji Católica de Salvador, fundado em 2003, e em 2005
fundou o Centro de Estudos e Pesquisas das Tradições foi proclamada "Mestra de Saberes" pela Prefeitura
de Origem Bantu (CEPTOB). A ideia da recuperação do Municipal de Salvador. Sua biografia tornou-se um
conhecimento ritual perdido por meio de “estudos e documentário, “Makota Valdina: Um jeito negro de ser
pesquisas” é recorrente no movimento de “bantuização”, e viver”, financiado pela Fundação Cultural Palmares/
assim como a utilização de meios consagrados de MinC. Em 2010, o prestigiado Bando de Teatro do Olodum
preservação da memória, como museus e memoriais, tal montou o espetáculo “Bença”, apresentando vídeos com
qual o Memorial Kisimbie (Águas do Saber), fundado em reflexões sobre a vida, a morte, o tempo e a senioridade,
2011 por Tata Anselmo Santos, no Terreiro Mokambo. feitas por “mais velhos” do candomblé, dos quais Makota
Pode-se especular que, se para os terreiros nagô é a Valdina é talvez a figura mais proeminente no resultado
autoridade religiosa que lhes confere valor como bem final da montagem.5 Além da luta contra a intolerância

4| Esta fala é um trecho do depoimento de Tata Laércio no sítio eletrônico do Terreiro de Jauá, dentro de uma página denominada
“Reafricanização”. http://www.terreirodejaua-ba.kit.net/reafricanizacao.htm , acesso em 20 jan. 2012.
5| V. http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/148/bando-de-teatro-olodum-190575-1.asp,acesso em 02 jan. 2012.
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi 57

religiosa e pelo reconhecimento da importância primeiras e mais consolidadas é a Associação Cultural


cultural e social do candomblé para a população negra de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU),
subalternizada de Salvador, a atuação política de criada em 2000, que se propõe a congregar terreiros e
Makota Valdina também compreende a defesa das ações outras entidades culturais de matriz bantu,
afirmativas nas universidades públicas, a denúncia
do extermínio da juventude negra, a contestação do
contribuindo para o resgate das suas tradições,
apartheid instituído pelas cordas dos trios elétricos no promovendo e incentivando ações culturais que
carnaval baiano, dentre muitos outros itens candentes visam à defesa e promoção da cidadania nas áreas
da agenda política do movimento negro baiano e de educação, saúde, profissionalização, promoção
nacional. De forma incomum para as lideranças social, segurança alimentar, pesquisa de campo,
“tradicionais” dos candomblés baianos, Makota registro histórico, preservação do patrimônio
material e imaterial.6
Valdina tem envolvimento direto também na política
partidária, tendo-se engajado há anos na campanha
de candidatos negros da esquerda, principalmente da Esta definição da missão institucional constava no site
vereadora Olívia Santana, “a Negona”, do PC do B. Sua da ACBANTU em agosto de 2009, mas posteriormente
atuação, quase uma epítome do novo modelo de ação foi ligeiramente modificada. Tais objetivos têm
do movimento negro em Salvador no início do século estreita correspondência com a agenda de diversas
XXI, é marcada pela imbricação entre o político, o ONGs e principalmente com diversas políticas do
cultural e o religioso. governo federal na era Lula, que até certo ponto tem
tido continuidade na gestão de sua sucessora Dilma
Além de lideranças individuais como Makota Valdina, Roussef. Não sem razão, a ACBANTU é parceira de
uma miríade de entidades, eventos, projetos e redes ONGs e de diversos programas das três esferas do
(principalmente virtuais) têm surgido para sedimentar governo, além de membro de diversos conselhos que
a autoridade dos candomblés congo-angola. Uma das atuam junto a órgãos governamentais.7 Os idiomas da

6| V. http://www.acbantu.org.br/missao , acesso em 01 ago. 2009


7| As parcerias estabelecidas são, em 2012: na esfera federal: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS, Fome Zero,
Ministério da Cultura, Ministério da Ciência e Tecnologia, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade - SEPPIR, Secretaria
Especial de Direitos Humanos - SEDH, Fundação Cultural Palmares, Companhia Nacional de Abastecimento - CONAB, Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação -FNDE; na esfera estadual Bahia: Secretaria de Desenvolvimento Urbano - SEDUR, Secretaria de
Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza - SEDES, Secretaria da Cultura - SECULT: Fundação Pedro Calmon e Instituto do Patrimônio
Artístico e Cultural da Bahia, Assembléia Legislativa da Bahia; na esfera municipal: Prefeitura Municipal de Salvador - Secretaria
Municipal de Reparação -SEMUR, Casa de Angola na Bahia, Casa do Benin, Rede Mocambo, Afro Gabinete Jurídico Institucional -
AGANJU, Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável - DRS Banco do Brasil e os Povos de Terreiros. As informações constam no
site http://www.acbantu.org.br/parceiros, acesso em 21 jan. 2012.
58 A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi

cultura e da cidadania fornecem o vocabulário comum dessa política fez com que as comunidades-terreiro
com que se articulam tais projetos e ações: “resgate da fossem reconhecidas como PCT – já que o Decreto não
tradição”, “promoção da cidadania”, “preservação do nomeava quais comunidades cabiam nessa definição,
patrimônio cultural”. As relações entre a ACBANTU e apenas delineava as linhas gerais do que se entendia
os programas governamentais foram se aprofundando como PCT: “grupos culturalmente diferenciados e que
e mutuamente se redefinindo, como se pode perceber se reconhecem como tais, que possuem formas próprias
pela ligeira modificação de sua missão institucional de organização social, que ocupam e usam territórios e
em seu sítio eletrônico, reformulado, quando acessado recursos naturais como condição para sua reprodução
novamente em 21 de janeiro de 2012: cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utili-
zando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
Aglutinar pessoas e grupos a fim de dar visibilidade transmitidos pela tradição”.9
à história da Civilização Negra Brasileira, resgatando
as tradições, promovendo e incentivando ações De forma muito semelhante ao que ocorre com
culturais, visando à defesa e fomento da cidadania,
os quilombolas, percebe-se uma redefinição das
buscando garantir que os Povos e Comunidades
Tradicionais Afrodescendentes gozem, de fato, dos comunidades-terreiro em termos de categorias meta-
direitos civis e políticos inerentes a nação brasileira, étnicas que se tornam sujeitos de direitos coletivos,
nas áreas de terra, educação, saúde, cultura, respeito sobretudo o direito do acesso à terra. A definição de
religioso, trabalho, segurança alimentar e nutricio- PCT – na qual também se incluem os quilombolas,
nal, entre outros.
além de povos indígenas, ciganos, ribeirinhos,
comunidades de fundo de pasto, dentre outras – implica
Esta mudança reflete a consolidação da categoria
intrinsecamente na circunscrição a um território. Não
“Povos e Comunidades Tradicionais” no âmbito das ações
acidentalmente, a defesa do direito à terra, que não
do governo federal, a partir do Decreto 6.040/2007, constava expressamente nos objetivos da ACBANTU em
que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento sua formulação anterior, hoje aparece incorporada à sua
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais missão institucional. Porém, é importante notar que a
(PCTs).8 Outros órgãos, como o Ministério da Cultura, identificação primária de uma comunidade tradicional
do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, logo se dá em termos de sua “diferenciação cultural”: é a
adotaram a categoria para a elaboração de programas e “especificidade cultural” que fundamenta e justifica
editais. O engajamento da ACBANTU na implementação suas reivindicações de direitos.

8| Conforme sítio eletrônico do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome: http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/


povosecomunidadestradicionais, acesso em 21 jan. 2012.
9| Decreto n. 6040 de 07 de fevereiro de 2007, Art. 3º, inciso I.
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi 59

Mas quais são as particularidades culturais que ca- contexto muito mais amplo de práticas culturais com
racterizam os “candomblés de matriz bantu”, neste as quais partilharia estruturas musicais, poéticas e cos-
processo de diferenciação interno ao campo das mológicas. Além disso, há uma grande reivindicação
religiões afro-brasileiras, hoje potencializado pela do reconhecimento de Zumbi como herói de origem
instauração de um paradigma multicultural nas bantu e do quilombo como instituição social originada
políticas públicas? E, retomando a hipótese levantada na África Central.
acima, como o “valor cultural” tem sido invocado para
legitimar a autoridade religiosa de algumas casas e O segundo ponto é a inserção do candomblé congo-
lideranças das nações congo e angola? Como tentarei angola em uma rede transatlântica de práticas
argumentar, dois pontos tornam-se fundamentais religiosas presentes em vários pontos da diáspora bantu
nesta articulação do religioso com o cultural que tem nas Américas, fundadas na pertença a uma civilização
de amplo predomínio territorial no continente
caracterizado os candomblés bantu.
africano, que teria levado o aporte tecnológico do
ferro, melhorias agrícolas e uma elaborada estrutura
BANTUIZAÇÃO E CULTURALIZAÇÃO social fundada em linhagens segmentares a dois
terços daquele continente. Conforme já apontado
O primeiro ponto ressaltado pelos angoleiros é a por outros pesquisadores a respeito do contexto do
amplitude da contribuição cultural dos povos bantu estado de São Paulo (BOTÃO 2007, PREVITALLI 2008),
ao Brasil. A anterioridade da chegada dos povos da o movimento de “bantuização” é também uma forma
África Central e sua prevalência numérica ao longo de de reafricanização. Busca-se recuperar os vínculos
todo o período da escravatura, fatos já confirmados com as cosmologias de povos bantu para suprir uma
por diversos estudos históricos sobre o tema, são lacuna que é um ponto sensível, pois muitas vezes
frequentemente citados como evidência de que “o ressaltado nas etnografias “nagoístas”: a suposta
Brasil é bantu”. As amplas marcas deixadas na cultura ausência de uma mitologia específica entre os povos
brasileira, sedimentadas em práticas como o samba, a congo-angola. Neste esforço, inserem-se os “estudos
capoeira, o jongo, o maculelê, o maracatu e as conga- e pesquisas” sobre a cosmologia bakongo e o culto de
das, muitas das quais se tornaram verdadeiros ícones antepassados mbundo, assim como um interesse pelo
da identidade nacional e de identidades regionais, são sistema divinatório dos povos da Lunda (nordeste de
reivindicadas como parte dessa “identidade bantu”. Angola), principalmente os Chokwe, chamado ngombo,
Desta forma, o candomblé congo-angola não seria “reinventado” em alguns terreiros de São Paulo (ADOLFO
uma prática religiosa isolada, mas alocada em um 2008).10 Na falta de uma literatura sobre o candomblé

10| Cabe ressaltar que o termo “reinventado” foi usado em destaque gráfico, pois o sistema divinatório supracitado não aparece em
fontes consultadas no Brasil em décadas precedentes, somente sendo encontrados no estado de São Paulo mais recentemente.
60

angola no Brasil, as fontes consultadas são as abundantes


obras de cunho etnográfico ou de oralitura dos povos
de Angola, escritas por angolanos ou portugueses
residentes em Angola e em geral ligados a algum nível
da administração colonial, ou missionários, como José
Redinha, Mário Fontinha, Óscar Ribas e os padres
Adriano Barbosa e Carlos Estermann, entre outros.

No sudeste, região com ligações históricas bem


menos intensas com a tradição nagô que a Bahia, a
bantuização calcada na imersão nas “raízes profundas”
da “cultura paulista” ou da “cultura mineira” tornou-se
uma alternativa à nagoização, e tem encontrado amplo
respaldo nas camadas médias intelectuais paulistanas,
em busca de autenticidade na sua vivência da cultura
popular. Numa cidade amplamente representada
como “cosmopolita”, onde imperaria uma ausência
de tradição, uma ampla mistura (ou justaposição)
de culturas de todas as partes do país e um afã
inesgotável pelo novo, o moderno, tal movimento de
“volta às raízes” pode parecer à primeira vista uma
contradição. No entanto, como diversos autores que
têm explorado a ideia de autenticidade como um
conceito-chave para entender a sensibilidade moderna
demonstram, esta busca é um fenômeno bastante
difundido em sociedades que sentem que “perderam
algo” na trilha da modernidade, e apresenta-se como
uma válvula de escape para a sobrevivência em uma
sociedade e uma forma de vida considerada “artificial”,
“forjada” e “alienante” (LINDHOLM 2008, VAN DE
PORT 2005b, 2011). Torna-se assim compreensível o
renovado interesse de jovens universitários, em sua
61

maioria brancos, por uma “cultura de raiz do sudeste”,


que engloba diversas expressões até então pouco
pesquisadas da cultura bantu, como o jongo, o batuque
de umbigada, as congadas e moçambiques, as folias de
reis, a modalidade de samba denominada “samba rural
paulista”, bem como o candomblé angola.

Um exemplo de terreiro paulista que tem lançado mão


de estratégias de culturalização para consolidar sua
tradição religiosa é o Inzó Tumbensi, em Itapecerica da
Serra, um terreiro que se afilia à raiz de Maria Neném.
Liderado por Tata Katuvanjesi, nele se desenvolve o
Projeto Muxinji – As culturas tradicionais de origem
bantu em São Paulo. Este terreiro também promoveu
três edições, desde 2003, do Encontro das Tradições
Bantu no Brasil (ECOBANTU), em parceira com o
Centro Internacional das Civilizações Bantu (CICIBA),
sediado no Gabão.

O Encontro procura promover a dimensão diaspórica


das culturas bantu, reeditando a ideia de “fluxos e
refluxos” entre as duas margens do Atlântico, proposta
por Pierre Verger a respeito das relações entre Bahia e
o Golfo do Benin. Como dito acima, o restabelecimento
de vínculos com a África e a inserção em uma rede
mais ampla de práticas culturais e religiosas torna-se
uma forma de autenticação. A própria estratégia de
renomeação da nação congo-angola como “nação
bantu”, termo que passa a ser amplamente empregado
pelas entidades e redes, também faz parte da transna-
cionalização das compósitas identidades bantu, há um
tempo religiosas, culturais e meta-étnicas. Por outro
62 A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi

lado, este evento demonstra que há um interesse similar derivados do reconhecimento como patrimônio cultural
na direção oposta: os países da África Central e Angola nacional. Esta reconfiguração das identidades religiosas
também têm investido na consolidação da categoria nos termos da cultura possibilita a interlocução dos
bantu para reforçar seus vínculos com sua diáspora. candomblés congo-angola com o Estado, a partir do
uso de um vocabulário comum às diversas agências e
O último aspecto a ser ressaltado quanto à série de organismos estatais, ao mesmo tempo em que propicia
eventos ECOBANTU é a referência, no próprio nome, novas formas de aquisição de prestígio na esfera pro-
à ligação das práticas religiosas bantu com práticas priamente religiosa.
de preservação da natureza. Não terei espaço aqui
para desenvolver este ponto, que, no entanto, Contradizendo os arautos da nagoização, as comu-
é fundamental nos discursos do candomblé em nidades religiosas de matriz bantu cada vez mais se
geral para legitimação de suas práticas, situando-o diferenciam enquanto nação, buscando a reconexão
com saberes rituais da África Central, reivindicando
como precursor de ações ambientalistas (VAN DE
seu espaço na esfera pública e o reconhecimento de
PORT 2005a). Sua faceta “ecológica” parece ser
sua especificidade religiosa.
particularmente relevante para os candomblés bantu,
os quais, por razões que merecem ser pesquisadas,
parecem ser mais identificados no imaginário do povo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de santo com o domínio da natureza (o que talvez
esteja relacionado à sua conexão com os candomblés ADINOLFI, Maria Paula F. Uma outra pureza: a patri-
de caboclo, remetendo-se à clássica associação dos monialização das “religiões afro-brasileiras de matriz
bantu”. Trabalho apresentado no Painel Convidado IV, “A
indígenas com a natureza, e não com a cultura).
experiência religiosa e suas delimitações”, IV Congresso
da Associação Portuguesa de Antropologia, 9 a 11 de
CONCLUSÃO Setembro de 2009, ISCTE/Lisboa, 2009.

ADOLFO, Sérgio Paulo. Candomblé Bantu na Pós-


Procurei mostrar como tem se dado, no fim do sé-
Modernidade. 1o Encontro do GT de História das Religiões
culo XX, os processos de autenticação dos candomblés
e Religiosidades. Maringá, 2008.
congo-angola, renomeados como “religiões de matriz
bantu” ou “candomblé bantu”, como resposta às novas BOTÃO, Renato U. dos S. Para além da nagocracia: a (re)
configurações do campo religioso e principalmente africanização do candomblé nação angola-congo em
como forma de exercer agência na esfera pública, es- São Paulo. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais.
pecialmente com relação às políticas culturais, reivindi- Marília, UNESP, 2007.
cando sua parte dos dividendos simbólicos e materiais CAPONE, Stephania. A busca da África no Candomblé:
A pluralização do campo afro-religioso no Brasil e a emergência dos candomblés congo-angola - Maria Paula Fernandes Adinolfi 63

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Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto 65

ESCOLA: LUGAR DE DISCUTIR RELIGIÃO?


Camila Camargo Vieira
Flávia Cristina Bandeca Biazetto

Camila Camargo Vieira é doutora pela PUC-SP. três presentes nos estudos de Jostein Gaarder e Victor
Hellern, em “O livro das religiões”:

Flávia Cristina Bandeca Biazetto é doutoranda A religião é um sentimento ou uma sensação de ab-
FFLCH-USP. soluta dependência. (Friedrich Schleiermacher- 1768
-1834)
Este artigo pretende explanar sobre os laços entre Religião significa a relação entre o homem e o poder
religião e escola, presentes na história da educação sobre-humano no qual ele acredita ou do qual se sente
brasileira. Ao examinar esse panorama, notamos que as dependente. Essa relação se expressa em emoções es-
religiões de matrizes africanas foram sempre inferioriza- peciais (confiança, medo), conceitos (crença) e ações
(culto e ética). ( C.P Tiele – 1830- 1902)
das em relação às outras praticadas no país. A desvalori-
zação de aspectos culturais africanos, como as práticas A religião é a convicção de que existem poderes
transcendentes, pessoais e impessoais, que atuam
religiosas, é uma das facetas inerentes às práticas
no mundo, e se expressa por insight, pensamento,
racistas do Brasil. Como consequência da depreciação intenção e ação. ( Helmuth von Glasenapp 1891- 1963).
da cultura negra, as temáticas que tangem o universo
afro-religioso ainda são evitadas nas práticas escolares.
Se nos atentarmos, notaremos que nos trechos supra-
citados a ideia de subjetividade perpassa as diferentes
definições. Entretanto, suas manifestações podem
O DIÁLOGO ENTRE CULTURA E RELIGIÃO:
variar de acordo com os espaços culturais.
RELIGIÕES AFRO BRASILEIRAS
Rubem Alves sugere a possibilidade de se fazer uma
Ao passar em revista pela literatura atual sobre re-
ligião, depara-se com diferentes definições. Citaremos reflexão sobre a religião, aproximando-a das teorias
66 Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto

psicanalíticas. À luz de suas reflexões, pode-se inferir utopia. Como os homens são diferentes, seus mundos sa-
que o homem produz objetos desejados: grados, seus rituais, seus símbolos também são distintos.

a sugestão que nos vem da psicanálise é de que o Assim, podemos entender que “toda realidade é por-
homem faz cultura a fim de criar os objetos do seu tadora de um sentido humano e invoca o cosmos in-
desejo. O projeto inconsciente do ego, não importa o teiro para significar a validade da existência humana”
seu tempo e nem o seu lugar, é encontrar um mundo
(BERGER & LUCKMANN).
que possa ser amado. Há situações em que ele pode
plantar jardins e colher flores. Há outras situações,
entretanto, de impotência em que os objetos do seu
Segundo a perspectiva psicanalítica, é possível
amor só existem através da magia e da imaginação interpretar que a religião tem como cerne a necessidade
e do poder milagroso da palavra (ALVES: 1981: 19). de buscar um sentido para vida humana, podendo ser
entendida como uma questão existencial, compartilhada
Quanto mais distantes os objetos desejados, maior por meio de crenças, rituais e símbolos por um grupo de
é o esforço humano de buscar sentido para vida. A pessoas.
religião surge como uma possibilidade construída de
desvendar a natureza, a qual o homem mostra-se À luz de teorias antropológicas, citaremos a definição
cada vez mais não adaptado, e a realidade desorde- de Geertz:
nada, segundo o desejado.
Um sistema de símbolos que atua para estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições
Com a religião, os homens passam a discriminar con-
e motivações nos homens através da formulação
dutas, objetos, atribuindo-lhes valores, os quais seu de conceitos de uma ordem de existência geral
destino, vida e sua morte dependerão. Se nos aproxi- e vestindo essas concepções com tal aura de
marmos deste fenômeno milenar, notaremos que a teia factualidade que as disposições e motivações
parecem realistas (GEERTZ, 1989, 104/105).
de símbolos inerentes a uma religião é compartilhada
por um grupo de pessoas que “vivem também de sím-
Ao encontro do pensamento de Geertz, podemos re-
bolos, porque sem eles não haveria ordem, nem sentido
produzir um trecho de Pierre Bordieu, no qual é apre-
para a vida e nem vontade de viver” (ALVES: 1981: 26).
sentada a ideia de que:
É possível compreender que a religião se vale de códigos
culturais compartilhados por meio de sinais invisíveis às […] a religião permite a legitimação de todas as
propriedades características de um estilo de vida
realidades diferentes e àqueles que não pertencem ao singular, propriedades arbitrárias que se encontram
mesmo grupo. Isso porque as entidades religiosas são objetivamente associadas a este grupo ou classe na
entidades imaginárias, que buscam a ordem, esperança e medida em que ele ocupa uma posição determinada
Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto 67

na estrutura social (efeito de consagração como do processo histórico, é possível aproximar esta ideia
sacralização pela naturalização e pela eternização.) do conceito de cultura, entendido neste estudo como
(BORDIEU, 1967, 46).
um padrão de significados transmitido historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de concepções
Os conceitos religiosos espalham-se para além de seus
herdadas expressas em formas simbólicas por meio
contextos, no sentido de fornecer um arcabouço de
das quais os homens comunicam, perpetuam e desen-
ideias gerais em termos das quais pode ser dada uma
volvem seu conhecimento e suas atividades em relação
forma significativa a uma parte da experiência -
à vida (GEERTZ, 1989).
intelectual, emocional, moral, de acordo com Geertz.
Seguindo os caminhos sugeridos pela aproximação pro-
Percorrendo caminhos interpretativos sugeridos pelo
posta, é possível fazer o desdobramento que permite com-
antropólogo supracitado, as ações humanas, inde-
preender a cultura como um fenômeno inscrito no social,
pendentemente se individuais ou se em grupo, devem
sendo a religião uma de suas formas de manifestação.
ser analisadas e compreendidas sem desvinculá-las do
poder simbólico inerente a elas: Diante das reflexões iniciadas neste estudo, fica
evidente que os cultos de matrizes africanas são sem
Para um antropólogo, a importância da religião está dúvida religiões, e não feitiçaria ou cultos gentílicos
na capacidade de servir tanto para um indivíduo
como para um grupo, de um lado como fonte de con- como foram denominados pejorativamente no período
cepções gerais, embora diferentes, do mundo, de si do Império. Aqui, entendemos que as religiões de ma-
próprio e das relações entre elas (GEERTZ, 1989, 140). trizes africanas são:

Quando nos focamos nas práticas religiosas mantidas todas as expressões religiosas em que existe algum
tipo de transe ou possessão mediúnica (de orixá,
pelos grupos sociais, nota-se um sistema solidário e com- inquice, vodum ou ancestral) e rituais de iniciação,
partilhado de ritos, símbolos, crenças e, em certa medida, públicos ou privados, envolvendo a comunidade
de uma moral que são praticados e transmitidos entre com cânticos e danças, ao som de instrumentos de
percussão, comandadas por um/a ou mais de um
os adeptos de um determinado culto sagrado. Assim, os
sacerdote ou sacerdotisa, amparado/a por um tipo
símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de de oráculo africano, bem como mitos e histórias
um povo - sua visão de mundo, o que pensa, o caráter e africanas (SANTOS, 2010b, p. 52-53).
a qualidade de sua vida, disposições morais e estéticos.
Todas as manifestações sagradas de matrizes africanas
Ao entendermos a religião como um conjunto de
podem ser consideradas uma forma de resistência cul-
símbolos que são transmitidos por gerações, dentro tural de povos da diáspora negra. Relembrando que em
68 Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto

diferentes lugares e tempos históricos, os homens buscam A PRESENÇA DAS RELIGIÕES


compreender sua própria existência por meio de práticas DE MATRIZES AFRICANAS
religiosas, portanto inseparáveis de suas culturas. NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Dessa forma também, os negros trazidos para o Brasil, É irrefutável que as temáticas que perpassam as religiões
na época da escravidão, ressignificaram suas práticas re- de matrizes africanas foram tabus em sala de aula, por
ligiosas, recriando seus cultos e rituais sagrados em uma muitas décadas da história nacional. Um dos motivos foi
tentativa de manter viva sua memória e identidade. As a proximidade entre a religião católica e o Estado, du-
religiões africanas foram não só suporte da manutenção rante muitos anos da história do Brasil. Outro pode ser
da história do negro na diáspora, como também a base atribuído à intolerância religiosa presente em nosso país.
de fortalecimento existencial da geração escravizada e Entendemos que:
das posteriores.
[...] é a falta de respeito diante das práticas e crenças
Deve-se esclarecer que respeitar e conhecer as religiões alheias. Manifesta-se quando alguém se recusa a deixar
ou expressar opiniões diversas. A intolerância pode
de matrizes africanas não é uma tarefa restrita à popu-
traduzir-se pela rejeição ou exclusão de pessoas por
lação negra, mas sim de todos os brasileiros de diferentes causa de sua crença religiosa, opção sexual ou mesmo
origens, como um exercício de compreensão da história por seu tipo de vestimenta ou corte de cabelo. (BORGES;
nacional e do processo de dominação cultural eurocên- MEDEIROS; D`ADESKY, 2002, p.50)
trica em que os povos colonizados foram submetidos.
A falta de informação sobre as religiões de matrizes
No Brasil, há várias tradições religiosas de matrizes africanas e sobre os processos históricos que resultaram
africanas, recebendo em diferentes regiões denomi- na hegemonia da visão eurocêntrica no ensino religioso
nações variadas – candomblé na Bahia e São Paulo, no Brasil cristaliza antigos estereótipos que alimentam
Xangô em Pernambuco e Alagoas, Tambor de mina este quadro de intolerância que ainda se faz presente nas
no Maranhão e Pará, batuque no Rio Grande do sul e escolas. No tópico a seguir, há uma tentativa de explanar
macumba no Rio de Janeiro. os mecanismos que sustentaram a marginalização dos
Entretanto, deve-se ressaltar que apesar dos diferentes povos africanos e suas culturas.
nomes que recebem e das variações de cultos, todas
as religiões de matrizes africanas mantiveram em seu A RELIGIÃO NA ESCOLA BRASILEIRA
cerne o culto de ancestrais, divindades da natureza,
sendo transmitidas por meio da tradição oral e rituais O presente histórico tem como objetivo mostrar que a
sagrados milenares. presença da religião é inerente à história da educação
69

brasileira. Entretanto, é notável que algumas


manifestações religiosas, como as práticas sagradas
afrobrasileiras e as indígenas, não puderam, no
espaço escolar, ser protagonistas de discussões que
permitissem problematizar aspectos da cultura e da
formação da sociedade brasileira.

O ensino religioso na educação iniciou-se com a Igreja


Católica durante o período colonial, entre os séculos XV
e XVIII, por meio da Companhia de Jesus. Com a ex-
pulsão dos jesuítas em 1759, o que se perdurou foi o
sistema de padroado, cabendo à Igreja o domínio do en-
sino religioso. Nessa época, era obrigatório ser católico,
não havendo outra opção na instrução religiosa escolar,
e o sistema educacional era voltado para catequese.

No Brasil Colônia, as liberdades individuais, inclusive


religiosa, eram tolhidas. Portanto, as religiões da população
negra e indígena eram desqualificadas, inferiorizadas
e menosprezadas como algo ruim, relacionadas ao
“demônio”. Somente a religião católica, vista como obra
de Deus, era aceita. Durante todo esse período, a Igreja
Católica sempre liderou, interferindo e direcionando o
ensino religioso como parte do currículo escolar.

Com a implantação da República, em 1889, a


Constituição Imperial decretou a separação entre a
Igreja e o Estado. Desse momento em diante, pas-
sou a existir a liberdade de crenças, o que fez surgir
conflitos com a Igreja Católica, pois o ensino religioso
passaria a ser leigo e não mais tutelado por nenhuma
tradição religiosa.
70 Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto

Com a abolição da escravatura e com o advento da inteligência. O racismo como ideologia nasce dessa
República, os cultos afrobrasileiros foram reconhecidos hierarquização biológica, explicando a dominação de
como religiões, mas não deixaram de ser hostilizados e um povo sobre outro por meio desses critérios ditos
inferiorizados, sofrendo preconceitos e discriminações científicos. O eugenismo, por sua vez, está diretamente
condizentes com o eugenismo e as teorias racialistas ligado a essas teorias, e consistia no enaltecimento,
disseminadas no fim do século XIX e inicio do século por intelectuais da época, dos “tipos puros”, da “pureza
XX. Nesse período, a Igreja Católica continuou tentan- racial”, sobretudo da população branca - contra a mes-
do, de diversas maneiras, instituir o ensino religioso tiçagem, que era vista como sinônimo de degeneração
nas escolas públicas, seja em horário de aula, seja fora racial e social. Consequentemente, o desenvolvimento
do espaço escolar. de uma nação seria resultado de sua conformação ra-
Para se compreender as teorias racialistas, é necessário cial pura. Aqui no Brasil, esta teoria não só legitimou a
entender como surgiu a concepção de raça. Esse escravização dos povos negros, como também afetou
conceito dialoga com a Biologia e com a Botânica do de maneira significativa as religiões de matriz africana,
período do Iluminismo, século XVIII, em que o mundo que foram vistas, como degeneradas, “primitivas”,
passaria a ser explicado não mais pela religião e sim atrasadas e inferiores com relação às outras religiões.
pela racionalidade. Na história das ciências naturais foi
Retomando os caminhos que entrelaçam a educação e
usado primeiramente na Zoologia e na Botânica para
a religião, em 1930, no Brasil, houve uma suspensão da
classificar as espécies animais e vegetais. No caso das
política de neutralidade religiosa nas escolas públicas,
ciências humanas, serviu para explicar as diferenças
o que abriu possibilidades para que o ensino religioso
entre os homens e os “outros”, diferentes dos europeus,
católico retornasse às escolas. Porém, segundo Costa
notadamente os indígenas e os africanos, vistos como
Neto (2010), com o decreto 19.941 configurou-se
povos “primitivos” ou bárbaros.
um debate, que se mantém até hoje, sobre o Ensino
Nesse contexto, o conceito de raça, inspirado nas ciên- Religioso entre aqueles que pleiteavam sua manuten-
cias naturais, é para explicar o “outro”, baseados nos ção, o que aproximou Igreja e Estado, e os opositores
critérios morfológicos da cor da pele, na fenotipia. No que acreditavam na laicidade das instituições e escolas
século XIX, outros critérios além da cor da pele foram públicas. Nesse movimento, os “Pioneiros da Educação
acrescentados - formato do nariz, lábios, queixo, Nova” produziram um “Manifesto” pela reconstrução
crânio - resultando em cada vez mais categorias classi- educacional no Brasil em que se propõe a “laicidade,”
ficatórias que estabeleciam uma hierarquização entre (Costa Neto, 2010, p.51). No entanto, o ensino religioso
os povos que incluía até mesmo aptidões morais e de católico permanecia nas escolas, quase sem diferenças.
Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto 71

Após o fim da Segunda Guerra, a promoção da aber- na educação e no Estado. No desenrolar do processo
tura política por Vargas e com o fim do Estado Novo, histórico, o ensino religioso manteve-se presente na
houve uma Assembleia Constituinte (1946) em que educação pública fazendo parte do currículo escolar,
ainda se notava a polêmica do ensino religioso, que, resultado, em grande parte, por pressão de movimen-
acabou sendo mantido, como matrícula facultativa nas tos cristãos e suas associações.
escolas oficiais e ministrado de acordo com a confissão
do aluno, manifestada por ele, ou pelo seu responsável Em 1997, o Conselho Nacional de Educação (CNE),
legal (COSTA NETO, 2010, p.54). manifestou-se pelo reconhecimento do caráter leigo
do Estado, instituindo como atribuições da escola
A ideologia da democracia racial, difundida na década a matrícula facultativa e disponibilidade física para
de 1930, tinha por objetivo promover a ilusão de que seu mister e sua conclusão, ficando o ensino religioso
havia uma convivência harmoniosa entre todos os aos cuidados dos “representantes reconhecidos pelas
membros da sociedade brasileira e que havia a livre próprias igrejas”, e preservando às escolas a liberdade
manifestação de todas as religiões, cultivando a ima- de não integrarem esse ensino a seus currículos:
gem da identidade miscigenada do Brasil. No entanto,
esta ideologia tratava-se, concretamente, de uma No que compete ao Conselho Pleno, concluímos
política assimilacionista, ou seja, buscava camuflar os este Parecer reafirmando que, para a oferta do
ensino religioso nas escolas públicas de ensino
mecanismos de exclusão das religiões de matriz afri-
fundamental, da parte do Estado, e, portanto dos
cana como também das manifestações culturais ne- sistemas de ensino e das escolas, cabe-lhes, antes do
gras, ao sincretizá-las e moldá-las ao catolicismo e ao período letivo, oferecer horário apropriado e acolher
que era permitido pelo Estado. As religiões de matriz as propostas confessionais e interconfessionais
africana eram assim folclorizadas, vistas como exóticas das diversas religiões para, respeitado o prazo do
artigo 88 da Lei 9.394/96, ser incluída no Projeto
e pouco respeitadas, se comparadas às outras religiões
Pedagógico da escola e transmitida aos alunos e
brasileiras, sobretudo às cristãs. pais, de forma a assegurar a matrícula facultativa
no ensino religioso e optativa segundo a consciência
Em meio ao processo de escamoteação da importância dos alunos ou responsáveis, sem nenhuma forma de
das religiões afro para a história nacional, as discussões indução de obrigatoriedade ou de preferência por
sobre o Ensino Religioso ressurgiram com a Constituição uma ou outra religião (COSTA NETO, 2010, p.59).
Federal de 1988, trazendo de volta o debate entre os
defensores do ensino laico, representados pelos docen- Passou a ser competência dos Estados e Municípios a
tes do Ensino Superior e Sociedade Brasileira para o organização dos conteúdos do Ensino Religioso, assim
Progresso da Ciência (SBPC) e a interferência da Igreja como das normas para habilitação dos educadores/as.
72 Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto

Tendo em vista que a Educação tem como uma de suas É necessário ressaltar a importância de se conhecer
funções problematizar e dar aos alunos suporte para outra visão de história, diferente da que nos foi en-
compreender e respeitar a diversidade sócio-cultural sinada, alçando assim as religiões afro-brasileiras a
brasileira, determinações oficiais asseguram a “plurali- um renovado patamar de compreensão, sem com isso
dade de orientações” (Parecer CNE/97/99) na formação tornar uma imposição, ou obrigação de aceitação, mas
e na prática pedagógicas, incluindo conhecimentos sim desconstruindo estereótipos tão arraigados no
específicos das religiões de matrizes africanas. imaginário social brasileiro.

No ano de 2010, o Conselho Nacional de Educação, Diante do histórico da folclorização das religiões
através da sua Câmara de Educação Básica, editou a afro-brasileiras, apresentá-las de maneira séria
Resolução n.04, de 13 de julho de 2010, em que define e compromissada aos alunos é uma forma de
as diretrizes curriculares para a Educação Básica em problematizar os estereótipos construídos acerca
seu artigo 14, letra “f” traz o ensino religioso incluído do tema. Somente ao discutir em sala de aula a
na base comum da educação básica e como área e diversidade cultural que compõe o nosso país, formada
conhecimento, (COSTA NETO, 2010, p.61). por diferentes povos com diversos pertencimentos
étnicos, é que se avançará rumo a uma educação
Nesse sentido, o Ensino Religioso deverá ser oferecido multicultural, sem racismo e inclusiva.
em toda a educação fundamental, consultando às
religiões existentes atualmente no Brasil. Sendo assim, CONSIDERAÇÕES FINAIS
excluir as religiões de matrizes africanas na formação
Historicamente, no Brasil, as práticas e os praticantes
do currículo, consiste atualmente em crime de
das religiões afro foram perseguidos e discriminados,
responsabilidade de todos aqueles servidores públicos
o que resultou em intolerância religiosa e em ações
responsáveis pela educação básica nos Estados, no discriminatórias contra seus praticantes, nos dias
Distrito Federal e nos municípios brasileiros (COSTA de hoje, observadas na tendência ainda presente de
NETO, 2010, p.62). folclorizar e de demonizar essas religiões. No intuito
de mudar os rumos dessa trajetória, surgem, em con-
Este breve histórico teve como objetivo mostrar como
textos políticos distintos, duas leis: uma, supracitada,
o ensino religioso entrou no currículo escolar brasileiro, que prevê o ensino religioso multicultural e outra que
nas suas diferentes épocas e como as religiões de ma- aborda o ensino da história e da cultura afro-brasileira
trizes africanas, perseguidas e inferiorizadas ao longo e indígena1. Entretanto, mudanças efetivas ainda são
da história, ficaram fora desse processo. pouco notadas na contemporaneidade, no que tange

1| Lei 11645/08 prevê a abordagem de conteúdos referentes à história da cultura afro-brasileira e indígena no ensino fundamental e
médio, tanto no sistema público quanto e privado.
Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto 73

uma revisão do papel dos grupos étnicos mencionados Rever a história oficial que nos foi contado por
na história do Brasil. décadas dos negros no Brasil requer pesquisas dos
educadores e esforços para desmistificar e atribuir a
Quanto à lei 11645/08, podemos citar Rosangela
real importância das religiões de matrizes africanas
Sarteschi:
para a configuração da sociedade contemporânea
brasileira. Para esse trabalho em sala de aula, as
é preciso ter clareza que as mudanças devem pro-
vocar bem mais do que a mera inclusão de novos práticas comparatistas podem ser enriquecedoras, pois
conteúdos; elas evidenciam que as relações sociais é possível mostrar aos educandos que, se por um lado,
e pedagógicas bem como os procedimentos de todas as religiões se aproximam em relação a alguns
ensino, as condições oferecidas para aprendizagem
e o delineamento dos objetivos da educação sejam
elementos estruturantes, por outro se distanciam
profundamente repensados (SARTESCHI. 2011). em crenças particulares de cada uma delas, uma vez
que não é possível dissociá-las de suas determinantes
As análises de Sarteschi vão ao encontro do escopo culturais, espaciais e temporais.
deste artigo que não é discutir a legitimidade do
Se pensarmos que a escola é uma representação das
Ensino religioso como área de conhecimento, mas sim
ações sociais, ela torna-se, para o educador, um espaço
problematizar a forma de abordá-lo no que tange às
especialmente conveniente de clarificação dos conhe-
religiosidades africanas. Diante disso, cabe ressaltar
cimentos dos educandos sobre as religiões de matrizes
que a sobrevivência dos povos negros da diáspora
africanas e, consequentemente, de povos que consti-
no Novo Mundo ia ao encontro de suas práticas re-
tuíram o Brasil, bem como um palco privilegiado para
ligiosas e que seus templos eram também espaços de
mediação e problematização dos conflitos presentes
importância política e de resistência no Brasil colonial.
em sala de aula que sejam reflexos da intolerância
O documentário Nkisi na Diáspora – Raízes Religiosas religiosa.
Bantu no Brasil tematiza alguns ritos religiosos do
candomblé e também resgata partes da história dos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
negros da diáspora. Os conteúdos desenvolvidos nesse
material áudio visual contribuem não só para informar ALVES, Rubem. O que é Religião? São Paulo,
Círculo do livro, 1994.
seu público, como também denuncia a intolerância
religiosa, sintetizando assim, temas importantes que BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
proporcionam uma aproximação com questões históri- Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro
cas e contemporâneas dos negros em nosso país. Gráfico, 1988. 292 p. Disponível em: <http://www.planalto.
74 Escola: lugar de discutir religião? - Camila Camargo Vieira, Flávia Cristina Bandeca Biazetto

gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
Acesso em: 29 de out. 2011.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases


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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.


Trad. de Sergio Miceli et. al. São Paulo: Perspectiva, 1967.

BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social


da realidade. Petrópolis, Vozes, 1974.

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GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry.


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Companhia das Letras, 2005.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de


Janeiro: Guanabara, 1989.

MUNANGA, Kabengele, GOMES, Nilma Lino. Para entender


o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas
e caminhos. São Paulo: Global: Ação Educativa, 2004
(Coleção Viver, Aprender).

SARTESCHI, Rosangela. A Lei 11.645/08 e o ensino de


literatura afro-brasileira em perspectiva. In: XI Congresso
Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 2011, Salvador.
Anais do XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências
Sociais. Salvador, 2011.
75
76 Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva

TRADIÇÃO CULTURA BANTU:


FEMINISMO E CONTRIBUIÇÕES
Joanice Conceição
Vanessa Silva

Joanice Conceição tem pós-Doutorado no Programa bem diferentes entre si. Esse ntus, quer dizer seres
Nacional de Pó-Doutorado da CAPES, junto ao programa humanos antes de virem para cá construíam suas ca-
sas, brincavam, estudava, aprendiam, nadavam nos
de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade seus rios, dançavam ao som de seus instrumentos
Federal da Paraíba; Doutora e Mestre pelo Programa musicais, faziam suas panelas e suas comidas, seus
de Pós-Graduação em Ciências Sociais∕Antropologia da penteados, seus enfeites, seus filhos e suas famílias
(LIMA: 2005, p, 30-31).
PUCSP; Membro do Grupo de pesquisa Ritual, festa e
performance.
Neste texto objetiva-se discutir a participação das
mulheres negras nas religiões de matriz africana e sua
Vanessa Silva é mestre em Políticas Públicas e For- forte atuação no feminismo negro opondo-se, assim,
mação Humana pela UERJ (2010); Pedagoga pela ao feminismo ocidental.
UERJ (2004); Orientadora Educacional na Fundação
de Apoio a Escola Técnica, Coordenadora Pedagógica O documentário Nkisi na diáspora: raízes religiosas
da Casa de Davi; Especialista em Educação e Relações bantu no Brasil resume de forma exemplar as contri-
Étnico Raciais, pela UFF/RJ (2006). buições dos povos bantus na formação da identidade
religiosa no Brasil, bem como, sinaliza a atuação deste
Mas de qual África as pessoas negras descendem? segmento étnico nas tessituras de sociabilidade e de
E eu? Mesmo depois que cresci, não descobri. Mas reconstituição cultural das negras e negros que aqui
aprendi que para o Brasil vieram povos principalmente
foram obrigados a desembarcar.
de alguns pontos africanos. Ou melhor, de portos
africanos. Isso há muito tempo. E, se é de lá que
vieram muitas pessoas negras, o meu passado deve
A captura e as vendas das mulheres africanas para o
ter vindo junto (sic). Mas eram centenas de etnias, e Brasil e diversas partes do mundo transformaram a
Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva 77

própria concepção do papel das mulheres negras na tra-balho quer pela religião. É a partir desta perspectiva
sociedade colonial, na medida em que os espaços de que refletiremos sobre o papel feminino na construção
trabalho urbanos foram abertos para a circulação da cultura religiosa brasileira.
dessas mesmas mulheres.
Das principais etnias africanas que chegaram ao Brasil,
No entanto, dentro das cidades, a rua era e, ainda o inicialmente, grande parte estava entre o grupo lin-
é, em certa medida, um lugar masculinizado, uma vez guístico Bantu, proveniente das regiões da África
que a mulher branca, naquele contexto, estava confi- Centro-meridional e Oriental. “A maioria dos centro-
nada ao campo doméstico. africanos partiu de portos nas costas de Loango e
Angola, lugares que pertenciam a somente três cul-
Assim, pode-se dizer que o trânsito de mulheres negras
turas regionais: a do Congo, Umbundo e Ovibundo”.
nos centros comerciais não apenas criou fissuras sim-
(HEYWOOD, 2009, p.8).
bólicas na imagem da mulher, como a paisagem urbana
ganhou outros contornos estéticos. Essas mulheres, Os bantus povoaram mais intensamente a região
advindas do território africano, deram um colorido Sudeste, em particular os Estados do Rio de Janeiro,
especial com suas roupas, seus colares e as formas de São Paulo e Minas Gerais durante todo o século XVI,
pentear seus cabelos, agregando beleza à atividade de (KARASCH, 2000), trazendo vastas experiências co-
mercial, religiosa e também tecnológica, todavia a
vender produtos alimentícios nas ruas das cidades.
religião bantu encontrava-se pulverizada em todo o
Os registros históricos demonstram o cotidiano de território brasileiro.
trabalho dessas mulheres, dedicadas a inúmeras ativi-
No que se refere aos negros e as negras da África
dades, como lavar roupas, vender água, frutos e outros
Ocidental chegaram, somente ao Rio de Janeiro a partir
afazeres femininos, já que o homem não tinha acesso
do século XIX, não ultrapassando 7% neste território.
à esfera doméstica. Contudo, é bom ressaltar que para Desembarcaram maciçamente na região nordeste do
além do vender as africanas estavam em todas as partes Brasil no final do século XVIII e início do XIX, na última
da cidade, articulando politicamente suas vidas e a vida fase do tráfico, empregados em sua maioria, em trabalhos
de pessoas ligadas à religião e ao seu grupo étnico. urbanos e domésticos na Bahia, Pernambuco e Maranhão.

Dessa forma, desde a época escravista a mulher negra Segundo Lopes (2006), havia ainda uma forte pre-
tem um papel preponderante na economia do país e sença daomeana também em Minas Gerais, em virtude
na construção de redes de sociabilidades quer pelo do ciclo do ouro. Os nagôs1, como eram conhecidos

1| Nome genério pelo qual se tornaram conhecidos no Brasil os africanos do grupo iorubá.
78

genericamente, vieram da África Ocidental, sendo eles


numerosos, após o período de 1835, no Rio de Janeiro,
em virtude do tráfico interno. “Foram esses aportes
civilizatórios, então, que moldaram a cultura africana
no Brasil, a qual se manifesta em variadas formas de
conhecimento, religioso, arte e lazer” (LOPES, 2006, p.8).

Apesar das condições desumanas dos africanos e seus


descendentes, submetidos a toda sorte de poder, suas
tradições culturais e religiosas fizeram com que nações
de diferentes lugares se encontrassem para preservar
sua visão de mundo contrária à eurocêntrica e he-
gemônica, a saber, a visão branca e católica.

CONTRIBUIÇÃO FEMININA
À IDENTIDADE BRASILEIRA

O papel da mulher na proto-história é destacado pelo


antropólogo Jacques Dupuis (1989), a partir de seus
estudos sobre a paternidade. Ao descrever e comparar
várias narrativas mitológicas, o pesquisador concluiu
que todo o ser humano deve a sua existência à mulher.

Em uma época remota, não se reconhecia o poder


masculino. Tanto que, em muitas culturas a vida so-
cial, a religiosa e a sexual eram delegadas à mulher.
Cabia e pertencia a elas, o exercício de um poder
incontestável, impressos pelos poderes da gestação
e a filiação, que lhes eram, ou melhor, são exclusivas.
“As mulheres eram então consideradas depositárias
de uma ciência oculta transmitida desde tempos ime-
moriais” (DUPUIS, 1989, p.12).
Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva 79

Seguindo os caminhos interpretativos dessa citação, depositárias das forças invisíveis do passado, ga-
cabe ressaltar que a maioria das culturas acredita na rantindo a continuidade e a permanência de sua es-
existência de um mundo paralelo ao dos vivos, para pécie pela via da descendência direta ou indireta, em
onde o indivíduo vai após a morte; considera que haja sua vida comunitária. Por meio das mulheres que os
um lado físico e outro espiritual, relacionando, assim, a ancestrais prolongam-se e as linhagens se estabelecem
vida à responsabilidade feminina. pelos séculos através do sangue materno. (THEODORO,
2009, p.228)
Segundo Theodoro (2009), algumas sociedades não
ocidentais, em especial as bantas, a mulher ocupa um É, sobretudo, por meio dos mitos que o homem supera
a dicotomia existente entre o mundo físico e o cultural;
significativo e honroso lugar em sua comunidade. Tal
é também por eles que se explicam a origem, suas
relevo se dá mediante a narrativa de que a mulher
razões, suas causas, bem como a criação do universo.
banta foi considerada mãe-agricultora-doadora de
Ainda que os mitos apresentem ligeiras diferenças de
sangue-linhagem (THEODORO, 2009, p. 228). Como
uma sociedade para outra, mesmo assim conduzem a
revela o mito da tradição oral bantu: uma convergência.

Woot, herói lendário do Kassai, apareceu em casa, Evocar os seus símbolos, ancestrais, orixás, nkisis,
embriagado e totalmente despido. Seus filhos riram voduns e suas tradições é estabelecer uma relação de
dele, ridicularizando-o. Suas filhas, pelo contrário,
cobriram-no com um manto, aproximando-se de
sobrevivência de elementos fulcrais no desempenho e
costas com muito pudor. Woot indignou-se com a fortalecimento de valores culturais essenciais à per-
atitude dos filhos, deserdando-os e impondo-lhe manência dos saberes e fazeres negros.
ritos de iniciação. Quanto às filhas, premiou-as com
a matrilinearidade e com a obrigação de passar a A singularidade das narrativas míticas, ritualizada pela
descendência através de seus casamentos. Desta circularidade do tempo e espaço, é ressignificada, não
maneira, a filiação é uterina e o filho passa para a somente pelos ancestrais míticos, reais e familiares
linhagem da mãe, cujo sangue o integra na sociedade.
A mulher transmite dignidade, conserva o sangue e
(LOPES, 2004, p.58), mas potencializa a buscar um
o lar, sendo que o pai, para todos os efeitos sociais e sistema organizativo que possibilite a felicidade ou um
religiosos é o tio materno. No entanto, o sistema man- estado de bem-estar pleno.
tém o equilíbrio entre o feminino/masculino, já que os
homens é que possuem a autoridade, o poder de pai Assim, a partir do complexo sistema matrilinear
e o exercício dos direitos (THEODORO, 2009, p.228). religioso, reelaboraram-se no Brasil diversas culturas
africanas, cujo “produto de algumas afiliações,
O mito de fundação explica que as mulheres trazem existindo, portanto, vários candomblés: Angola, Congo,
o mistério da vida advindo da sexualidade. Elas são Efan etc” (BARROS, 2003, p.17-18).
80 Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva

Fig. 1 Fig. 2 Fig. 3

Fig. 1: Bate Folha, primeiros filhos de santo. Fonte: tatakiretaua.webnode.com.br. Fig. 2: Genoveva do Bonfim - a Maria
Neném. Fonte: matambatombencineto.blogspot.com. Fig. 3: Tumbajussara. Fonte: kandimbafilms.blogspot.com

RESISTÊNCIA FEMININA

Alguns registros orais indicam Genoveva do Bonfim, A sabedoria e a perspicácia dessas negras mulheres do
candomblé é a prova mítica de seu poder de fato e direito.
conhecida por Maria Neném, como uma das percussoras
O matriarcado gestado pelas vias de um poder informal,
do candomblé Angola na Bahia. Iniciada por Roberto
não as anulam nem social, nem politicamente, já que con-
Barros Reis, angolano de Cabinda pertencente à etnia
tam com o reconhecimento de toda a sua comunidade.
Bakongo, Maria Neném marcou os primórdios, segundo
relatos orais, do que conhecemos por Candomblé As mulheres negras do candomblé eram, e ainda o são,
Angola. Daí o nome “a mãe do Angola”, difundido entre as guardiãs da memória2. Agregam-na e cuidam-lhe,
o povo de santo. perpetuando-a em cada cabeça feita3. Transmitindo
o conhecimento, a forma de aprendizagem (BARROS:
Maria Neném, como outras sacerdotisas, recriou, no
2003, p. 50) de que “a iniciação ou clausura é um dos
espaço do terreiro, os laços identitários e étnicos, bem momentos privilegiados desse aprendizado, o qual pode
como restituiu novos modelos familiares. se prolongar por vários anos”, sendo uma experiência

2| Cf: GOMES, Angela de Castro. A guardiã da memória. Acervo – Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v.9, n.1/2, p.17-30,
jan./dez. 1996.
3| É uma expressão muito utilizada nas casas de Candomblé que se refere ao ato de raspar a cabeça, ou seja, iniciar-se na religião.
Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva 81

que introduz o neófito a outra vida, a outra história de para assegurar suas culturas. Le Breton (2006), em suas
nascimento. análises, aponta:

Essa memória, preservada e recontada pelas sacer- O corpo é uma realidade mutante de uma sociedade
dotisas negras, se inscreve também no próprio corpo. para outra: as imagens que o definem e dão sentido
Simbolicamente, em cada homem ou em cada mulher a sua existência invisível, os sistemas de conhe-
cimento que procuram elucidar-lhe a natureza, os
nascido para seu nkisi, vodun ou orixá, conecta-se e ritos e símbolos que o colocam socialmente em cena,
reconta-se em seus corpos outro tempo herdado do as proezas que poderia realizar e as resistências que
panteão negro nagô, jejê, angola. oferecem ao mundo são incrivelmente variados,
contraditórios até mesmo para nossa lógica aris-
O estudo de grupos afro-brasileiros requer uma inves- totélica do terceiro excluído, segundo a qual se a
coisa é comprovada seu contrário é impossível […]
tigação não apenas das questões históricas, mas tam-
(BRETON, 28-29, 2006).
bém acerca do corpo, pois foi nele que os escravizados
criaram condições para a sobrevivência de suas cul-
A condição do que é ser homem ou ser mulher de uma
turas, inscrevendo, guardando e performando o que
nação ou de outra não se limita apenas à inscrição do
hoje chamamos de culturas afro-brasileiras.
corpo; essa circunstância resulta do embricamento so-
É de David Le Breton4 (2006, p. 39) a afirmação cial, ligando-se aos sistemas educativos e aos modos de
de que “o corpo é o primeiro e o mais natural vida de cada sujeito. Dito de outro modo, cada povo fez o
instrumento do homem, ele é modelado conforme os que foi necessário para que suas culturas sobrevivessem.
hábitus culturais”, produzindo eficácias simbólicas
A forma como cada pessoa escolhe para empreender
e materiais. A afirmação de Le Breton (2006) é seus projetos, muitas vezes, passa pela performa-
reveladora, no sentido de mostrar que o corpo serve tização, incluindo o clivo do poder, do segredo e da
como instrumento de dominação ou de resistência. recusa. Esses elementos agrupam-se como barreiras
para fortalecer os grupos.
No nosso caso, no que se refere ao corpo negro nos
rituais religiosos e seus símbolos e também fora do O movimento das estruturas centrais suscita nos indi-
espaço sagrado, ele se revela como peça estratégica víduos novas formas de lidar e significar novos frag-
na configuração dos papéis socioculturais desempenha- mentos e, nesse sentido, as mulheres foram importantes
dos. Homens e mulheres usam a performance corporal para que a cultura bantu fosse mantida, recriando o

4| Antropólogo francês, especialista na área de estudos sobre o corpo, sobretudo na obra A sociologia do corpo (2006), aponta várias
formas de uso do corpo.
82 Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva

universo simbólico, performando, adaptando a reali- Ainda que elas apareçam na história oficial como ser-
dade local, mas acima de tudo, preservando o essencial viçais da casa-grande e como vendedoras de produtos
dos bantu, nas diásporas de todo mundo. alimentícios, todavia, não se atribuem a elas o papel
fulcral na história feminista do país, tendo em vista
Normalmente, quando se fala em gênero, logo se
que na época em que as mulheres negras circulavam
remete às diferenças corporais entre mulheres e ho-
pelas ruas com seus tabuleiros, as brancas estavam
mens assentadas na biologia, que definem o que consti-
confinadas ao espaço doméstico.
tui o feminino e o masculino, reforçando as dicotomias.
Tais características fazem parte de uma construção Foi com elas que as mulheres brancas começam a sair
advinda do senso comum, baseada nas crenças de insti- do anonimato e passaram a ser vistas nas ruas, até
tuições sociais e culturais sobre a diferenciação do sexo mesmo sem a companhia de seus maridos. Portanto,
biológico, sem levar em consideração o entendimento este artigo teve o papel de visibilizar às mulheres
das relações socioculturais de gênero, sem ter em conta negras que contribuíram, de um modo geral, com a
que o gênero é produto das interações sociais e que história e que ficaram à margem da sociedade; apesar
pode variar quando se assenta nos aspectos culturais de terem criado, por meio de seu trabalho, uma nova
(FASTING, 2006). forma de verem e serem vistas.

Seguindo esse raciocínio, as mulheres bantu, em certa Há que se recuperar a capacidade intuitiva, o
medida, não se relegaram enquanto mulher, mas elas conhecimento e a sabedoria com que lidaram e lidam
optaram por priorizaram a cultura, que está forte- com o cotidiano. Dessa maneira, as atividades exercidas
mente presente nos candomblés angola. Desse modo, por elas nos diferentes setores sociais - notadamente
as negras e os negros escravizados e seus descendentes nos candomblés, congadas, moçambiques, irmandades
estão a perpetuar as raízes desta milenar cultura bantu negras, participação no comércio no Brasil colônia -
no nosso país. não apenas impulsionaram a economia e deram brilho à
paisagem urbana e cultural; mas também criaram uma
CONSIDERAÇÕES FINAIS nova concepção de comércio, do que é ser mulher e de
cultuar os nkisis (Inquices). É interessante notar que
Como foi assinalado no decorrer do texto, a histo- suas atitudes fizeram a diferença, apropriando-se dos
riografia brasileira e os estudos dedicados ao negro conhecimentos adquiridos em Áfricas e introduzindo
brasileiro negligenciaram a participação feminina em uma nova forma de economia, reconstruindo e
vários setores sociais, principalmente na preservação reelaborando diferentes estratégias, dando a suas vidas
da memória negra e na economia. novos contornos político-sociais (CONCEIÇÃO, 2004).
Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva 83

Ser mulher negra no conjunto das representações de no documentário Nkisi na diáspora: raízes religiosas
gênero e da formação da masculinidade hegemônica bantu no Brasil nos fez retomar fatos da história bantu
é remontar os grandes mitos da criação, as grandes que, por vezes, ficam submersos na homogeneização
histórias das mães ancestrais das diásporas africanas da história religiosa de matriz africana, posto que
em diversas partes do mundo e, sobretudo, empreender durante muito tempo, falou-se da inferioridade desse
esforços para lutar contra as estruturas dominantes povo e de sua cultura em detrimento de outros, a
que sempre as colocam em posição de subalternidade. saber, o Ketu. Por muito tempo e ainda hoje, pensa-se
a África como um continente homogêneo, do mesmo
As negras africanas, forçadas aqui a aportarem, e suas modo se pensa as religiões de matriz africana. Urgem
descendentes souberam criar estratégias e condições iniciativas que possam tornar cada vez explícitas a
necessárias para subverter a ordem vigente, elevaram e diversidade africana, em particular, as bases religiosas
elevam às mulheres a uma posição de respeito e dignidade. bantu que de igual modo dão relevo ao complexo
É preciso ficar atento para a importância da inclusão das religioso brasileiro.
religiões de matriz africana nos currículos escolares.

Nesse sentido, a reivindicação por parte dos movi- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


mentos negros se traduziu em 2003 na edição da
Lei 10.639 e, mais recentemente, na Lei 11.645/2008, BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução
ambas reestabelecem o diálogo e rompem com a linha e tradução do russo Paulo Bezerra; prefácio à edição
de ensino fundamentada em apenas uma civilização, francesa Tzvetan Todorov. 4ª ed. – São Paulo: Martins
contrariando própria pluralidade cultural do Brasil. Fontes, 2003. – (Coleção biblioteca universal)
Fundamentalmente, a lei é um passo significativo, BARROS, José Flávio Pessoa de. Na minha casa: preces
mas, para além do estabelecimento legal, tornam-se aos orixás e ancestrais. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
necessárias políticas públicas efetivas que funcionem
CONCEIÇÃO, Joanice Santos. Duas metades, uma
como mecanismo viabilizador inclusive da própria lei.
existência: produção de masculinidades e feminilidades na
A sociedade brasileira não pode negligenciar Irmandade da Boa Morte e no Culto de Babá Egun. Tese de
a contribuição singular da população negra e, Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sobretudo, das mulheres que tão bem representaram e São Paulo, 2011.
representam as grandes personagens ilustres de África. ______Mulheres do partido alto: elegância, fé e poder –
Estudar a história dos africanos, aqui no Brasil, não é um estudo de caso sobre a Irmandade da Boa Morte. 2004.
a mesma coisa que estudar a participação de homens Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica
e de mulheres. Escrever este pequeno artigo ancorado de São Paulo, São Paulo, 2004.
84 Tradição cultura bantu: feminismo e contribuições - Joanice Conceição, Vanessa Silva

DUPUIS, Jacques. Em nome do pai: uma história da Letrinhas, 2005.


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Tradução Ingrid de Castro Vompean Fregonez, Thaís Cristina 236, 2009.
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LIMA, Heloisa Pires. Histórias da Preta. Ed. Companhia das


Ritos de Angola - Entrevista com o sacerdote Tatá Kajalacy 85

RITOS DE ANGOLA
Entrevista com o sacerdote Tatá Kajalacy

percussoras, segundo registros orais, do Candomblé


Angola em São Paulo nos anos de 1960. Com Manunde,
Tatá Kalalacy segue um tronco do Angola que tem a
sua origem, provavelmente, em Aracaju com a velha
Nanã, a sacerdotisa Manadeuí.

A partir da década de 1990, Tatá Kajalacy tem se dedi-


cado à militância política extrapolando os muros do
terreiro e se voltando ao enfrentamento do racismo
e à intolerância religiosa no Litoral Norte Paulista.
Hoje, com o seu terreiro reconhecido pelo Instituto
de Patrimônio e Histórico Nacional (IPHAN) como sítio
arqueológico, luta pela igualdade racial, tornando-se
uma liderança política importante na região.

O Sr. como sacerdote, detentor de um saber e dos se-


Ataualpa de Figueiredo Neto é sacerdote do terreiro Ilê gredos do Candomblé, poderia explicar o que é Nkisi?
NZambi, localizado em Caraguatatuba, São Sebastião/
Nkisi quer dizer em português SER. Esse Ser se divide
SP. www.ilenzambi.com.br.
em dois mundos: o visível, constituído pela matéria e
por tudo que naturalmente existe: vegetais, minerais e
O sacerdote Tatá Kajalacy (Ataualpa de Figueiredo
animais; e o invisível, que é o campo energético criado e
Neto) foi iniciado no Candomblé Angola em 1970
pela sacerdotisa Oyá Ice, filha de Manunde, uma das emitido pelo visível. Na verdade, segundo o candomblé
86 Ritos de Angola - Entrevista com o sacerdote Tatá Kajalacy

de Angola, o mundo se divide em 7 elementos: Água, Por que existem os sacrifícios nos candomblés?
mineral, vegetal, animal, fogo, ar e terra ( incluindo o
núcleo, Zambi). Essa união é fundamental na existência O ecossistema é completo, influente e capaz de se
auto-alimentar. Com raríssimas exceções, uma espécie
da vida. Todos esses elementos são fontes geradoras
se alimenta da mesma, portanto esse é basicamente
de Nkisi e fazem parte do nosso culto. É importante
o sentido do sacrifício de animais. Além de sagrado,
destacar que esses elementos dialogam entre si,
é também um reforço energético e é por isso que, de
transpondo as fronteiras que os dividem. Zambi, o
acordo com o Nkisi, varia o tipo de animal.
núcleo central, é o nosso Deus, além de ser o criador
dessas energias, está também presente em cada uma Em tantas outras religiões o sacrifício também
delas. O importante é que para nós do candomblé de constitui parte do que chamamos de sagrado. A
Angola tudo é vida e se estamos conectados a Deus, pergunta talvez seria, por que só no candomblé o
tudo é, de certa forma, divinizado. sacrifício ganha um sentido negativo?

O que é um terreiro de candomblé?

O terreiro de Candomblé é uma ressiginificação, aqui no


Brasil, do espaço físico, social e cultural das sociedades
africanas. Não somente se reproduz os ritos, como
também o dia a dia, a cosmogonia africana, a forma de
ver o ser humano, principalmente, em suas diferenças.
Em nosso país, funciona também como um potencial
político-social.

O Sr. poderia nos explicar por que a figura do Exu ou


Aruvaiá no Angola é tão negativa dentro da nossa
sociedade?

A figura do Exu, que é um Nkisi, foi sincretizada com


o demônio europeu e, por isso, carregou o aspecto
negativo desse personagem bíblico. Na verdade, no
candomblé, esse Nkisi chamado Aruvaiá é a própria
existência terrena, que nos ensina a lutar pela
sobrevivência, nos defendendo diante dos obstáculos
87

existentes durante o nosso ciclo vital. Na nossa visão,


o mundo não se divide em bem e mal. Assim, a figura
criada de Exu ou Aruvaiá como ligado ao mal não faz
sentido no nosso rito.

Existem, no candomblé de Angola, práticas educati-


vas? Quais?

Analisando a vida de um terreiro nos dias de hoje,


podemos dizer que ela é composta de diversos
compromissos sociais no sentido de educar e preservar
a cultura afro brasileira em suas diversas manifestações.
Para começar, a transmissão do saber no candomblé é
pela oralidade o que traz uma categoria de resistência
às formas hegemônicas da escrita. O espaço do
terreiro é um lugar negro, logo se deve voltar às ações
socioeducativas de preservação da cultura e memória
negra. Durante muito tempo, sacerdotes e sacerdotisas
ficaram restritos aos muros do terreiro. Hoje, não
se diferindo muito de outros tempos, a intolerância
religiosa contra as religiões de matrizes africanas
nos impõe o desafio de transpor esses muros e lutar
pelo nosso lugar na sociedade. Lugar de respeito e
legitimidade que nos cabe. Lugar de direito.

Ao falarmos de lugar negro, falamos também de


políticas públicas para legitimar esse espaço. Como
o Sr. percebe as ações de tombamento do terreiro?

Acho que é uma ação importante para o


reconhecimento, talvez institucional, dos terreiros de
candomblé como espaços de saber e de valor histórico.
Mas, acho que essa ação deveria ser ampliada. Muitos
88 Ritos de Angola - Entrevista com o sacerdote Tatá Kajalacy

tombamentos são realizados, mas pouco articulados religiões de matrizes africanas deveria ser fiscalizada,
com as prefeituras, secretarias de cultura, educação e pois isso gera muitos conflitos diretos ou indiretos.
turismo. Nosso terreiro se tornou sítio arqueológico, As pessoas que desconhecem o candomblé colocam o
mas o que mudou para nossa comunidade? O racismo, desconhecido na berlinda. E num mundo em que se
na sua vertente chamada intolerância religiosa, trava fala da diversidade, na prática, onde está?
o processo. E nosso espaço mesmo com o poder
Qual seria a sua proposta para esse problema da
federal o reconhecendo como lugar de saber, não foi
intolerância religiosa?
reconhecido pelo município e continuamos sendo alvos
de preconceito, discriminação e excluídos dos espaços Primeiro, acho que as religiões de matrizes africanas
institucionais. Nenhuma escola, secretaria de cultura devem se organizar politicamente e pleitear lugares
e turismo vieram nos propor um diálogo. Então eu me na esfera de poder. Acho também que o Estado deve-
pergunto: o que mudou? ria formular uma política de combate ao racismo e à
intolerância religiosa, uma de suas faces. Se houvesse
O Sr. e a sua comunidade já sofreram ações
um trabalho educativo com a população de tornar
discriminatórias?
positiva a imagem da memória negra do Brasil, talvez o
Olhe, dizem que no Brasil vivemos de forma harmônica candomblé pudesse ser mais aceito enquanto uma re-
que não há conflitos raciais e/ou religiosos. Onde ligião e não “seita de macumbeiros”. Nós do candomblé
isso acontece? Porque aqui, no litoral norte paulista, não aceitamos esse lugar que nos querem perpetuar, a
os conflitos existem de toda ordem e em diversos saber, de um culto primitivo, exótico. Nossa religião foi
graus. Não conseguimos acesso aos espaços público estigmatizada por um movimento racista que mantém
(praça, teatro, praça de eventos) ou se conseguimos os estigmas, os preconceitos e as discriminações con-
sempre temos uma série de entraves. No bairro onde tra negros e mestiços no Brasil. Somos pertencentes a
o terreiro está localizado há mais de 35 anos, era uma uma religião de resistência com uma filosofia religiosa
zona rural que a partir dos anos 70 foi se urbanizando. que se diferencia das matrizes cristãs, mas que nem por
Nele, houve o crescimento de pentecostais e isso é inferior.
neopentecostais, criando um conflito com a nossa
Para fecharmos, o Sr. poderia citar 10 aspectos do
comunidade que, hoje, precisa ser escoltada pela
Candomblé?
polícia nas procissões. E o Estado, qual seria o papel
dele nesse conflito? Ficamos a Deus dará. É a política 1- O Candomblé Angola é monoteísta, ou seja,
do salve-se quem puder. A propaganda negativa por acreditamos em um Deus, chamado Zambi.
parte de pentecostais e neopentecostais com relação às
Ritos de Angola - Entrevista com o sacerdote Tatá Kajalacy 89

2- Zambi criou e faz parte de um universo natural 10- Existem Nkisis que explicam algumas experiências
(podemos chamar de ecossistema) e humano. humanas, como: a libido (bombogira), a fecundação
(dandaluna), a infância (vunje). Também alguns senti-
3- Esse universo natural é dividido e subdividido em
mentos humanos recriados socialmente: o ímpeto, a
elementos naturais chamados Nkisis. Exemplo: o
sobrevivência, a sedução, a cura, a sabedoria, a paixão
encontro do mar com o rio forma um elemento natural
entre outros.
e, portanto, um Nkisi que pode ser representado na
natureza e também no ser humano.

4- No mundo humano, os Nkisis dotam os indivíduos


de características psicológicas, espirituais e físicas re-
lacionadas aos elementos da natureza onde os Nkisis
se originaram. Exemplo: Kaitumba, Nkisi dos oceanos.
Os indivíduos desse Nkisi apresentam determinadas
características físicas, psicológicas e espirituais.

5- Todos os Nkisis são herdados pela ancestralidade.

6- Toda família tem uma memória ancestral dinamizada


pelos Nkisis. No tempo dos Nkisis, o presente é a soma
de muitos tempos passados.

7- Existem nessas combinações de elementos naturais


mais de 200 Nkisis e, assim, de tipos de humanos.

8- Nosso rito é realizado com a música (tambores), a


palavra (a cantiga) e o movimento corporal. É assim
que alcançamos a Deus, mostrando vitalidade, pois
acreditamos na vida e não na morte.

9- Fazemos oferendas para os Nkisis, pois é uma forma


de manipular as energias em favor do Humano. Daí
alguns pesquisadores nos chamarem de uma religião
antropocêntrica porque o Homem está no centro desse
universo mágico-religioso.
SOBRE O ORGANIZADOR
A ACUBALIN – Associação de Cultura Banto do
Litoral Norte Paulista - é uma entidade sem fins
lucrativos, Ponto de Cultura, apartidária e não-
governamental. Seu objetivo consiste em combater
práticas racistas. Para tanto, a instituição desenvolve
ações sócio-educativas voltadas à promoção da
igualdade racial e de valorização do universo
cultural-religioso afro-brasileiro.

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