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Flor esta n Fer na ndes

A CONTESTAÇÃO
NECESSÁRIA
Retratos intelectuais de inconformistas e revolucionários
Do mesmo autor
Florestan Fernandes: sociologia crítica militante

Clássicos sobre a Revolução Brasileira

Da Guerrilha ao socialismo: a revolução cubana

Marx, Engels, Lenin: a história em processo

Nós e o marxismo

Poder e contrapoder na América Latina

Significado do protesto negro


Florestan Fernandes

A CONTESTAÇÃO NECESSÁRIA
Retratos intelectuais de inconformistas e revolucionários

2ª EDIÇÃO

EXPRESSÃO POPULAR

SÃO PAULO – 2015


Copyright © 2015, by Editora Expressão Popular

Revisão: Dulcinéia Pavan


Projeto gráfico, capa e diagramação: ZAP Design
Organização e pesquisa: Vladimir Sacchetta

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: Ática, 1995


1ª edição: Expressão popular, 2015
1ª reimpressão: junho de 2017

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


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Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500
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SUMÁRIO

NOTA EDITORIAL.................................................................................................... 9

A CONTESTAÇÃO NECESSÁRIA: ESTRATÉGIA E DESAFIOS DA


AUTOFORMAÇÃO DOS TRABALHADORES.......................................................... 11
Roberto Leher

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO............................................................................ 31

PARTE 1 – O INTELECTUAL E A RADICALIZAÇÃO DAS IDEIAS............................ 39


LULA E A TRANSFORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO............................ 49
AS FACES HUMANAS DE JOSE MARTÍ................................................................. 73
SIGNIFICADO ATUAL DE JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI......................................... 79
CAIO PRADO JÚNIOR: A REBELIÃO MORAL........................................................ 95
ROGER BASTIDE: A DOAÇÃO DO SER................................................................ 103
ANTONIO CANDIDO: UM MESTRE EXEMPLAR.................................................. 107
OCTAVIO IANNI: O ENCANTO DA VIDA..............................................................113
RICHARD MORSE: O HISTORIADOR ENQUANTO JOVEM................................... 121

PARTE 2 – PRÁTICA POLÍTICA RADICAL ........................................................... 129


LUIZ CARLOS PRESTES: ESPERANÇA E REVOLUÇÃO......................................... 141
GREGÓRIO BEZERRA: INTEGRIDADE E GRANDEZA........................................... 145
CARLOS MARIGHELLA: A CHAMA QUE NÃO SE APAGA.................................. 151
HERMÍNIO SACCHETTA: AMIGO E COMPANHEIRO DE JORNADA ................... 157
CLÁUDIO ABRAMO E O JORNALISMO............................................................... 165
HENFIL: O MAIS FELIZ DE VOCÊS....................................................................... 169

PARTE 3 – REFORMA EDUCACIONAL: A CONTRIBUICÃO


DE FERNANDO DE AZEVEDO.............................................................................. 173
FERNANDO DE AZEVEDO: UM AUTÊNTICO REFORMISTA................................. 179
Les dieux qui me formâtes
je ne vis que passant
ainsi que vous passâtes*

Apollinaire


*
Deuses que me formastes: vivo apenas passando, tal como vós passastes.
NOTA EDITORIAL

Gostaríamos de agradecer a Florestan Fernandes Jr., a Heloisa


Fernandes e a Vladimir Sacchetta que, gentilmente, autorizaram a
reedição deste livro do professor Florestan Fernandes. Gostaríamos
de agradecer também ao professor Roberto Leher que prontamente
se dispôs a fazer uma nova apresentação para esta edição.
O texto de Florestan Fernandes se mantém tal qual publicado
em 1995. Acrescentou-se apenas as datas de falecimento de Octavio
Ianni e Richard Morse.

Os editores
A CONTESTAÇÃO NECESSÁRIA: ESTRATÉGIA
E DESAFIOS DA AUTOFORMAÇÃO DOS
TRABALHADORES

ROBERTO LEHER*

Escrito em um contexto em que Florestan Fernandes lutava


ativamente na frente intelectual, enfrentando graves problemas
de saúde e o transformismo que repercutia no pensamento crítico
mundial, A Contestação Necessária: retratos intelectuais de inconfor-
mistas e revolucionários tem como origem Em busca do Socialismo,
obra sua recusada pela Cortez (Cereza, 2005)** por ser um livro ul-
trapassado em virtude da queda do muro de Berlim. Reorganizada
com “a cooperação fraterna e incansável de Vladimir Sacchetta,
que desconhece sacrifícios para facilitar a minha vida” (p. 37)***, deu
origem aos seus dois livros póstumos. O primeiro, A Contestação
Necessária..., publicado pela Ática, e o último organizado com a
colaboração de Osvaldo Coggiola da USP, cujo título original foi
mantido (Em busca do Socialismo), publicado pela Xamã, ambos
em 1995. O “Prefácio” à Contestação..., elaborado por Florestan, foi


*
Professor da Faculdade de Educação da UFRJ e de seu programa de pós-graduação,
pesquisador do CNPq, Cientista de Nosso Estado/ Faperj e colaborador da Escola
Nacional Florestan Fernandes.
**
Haroldo Ceravolo Cereza, Florestan: a inteligência militante. São Paulo: Boitempo,
2005.
***
Todas as referências aos excertos de A Contestação Necessária elaborados por
Florestan Fernandes estão indicadas pela página, entre parênteses.
12 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

concluído três semanas antes da internação para o transplante de


fígado, 21 dias antes de seu falecimento, em 10 de agosto de 1995.
A presente edição, pela Expressão Popular, se reveste de grande
significado simbólico. A Editora é um projeto intelectual de grande
envergadura do MST que nomeou a sua principal escola com o
nome do sociólogo marxista: Escola Nacional Florestan Fernandes
(ENFF). A presente publicação celebra os 10 anos da Escola e é
uma homenagem dos trabalhadores do campo ao intelectual, por
ocasião dos 20 anos de sua morte, projetando a sua obra para o
futuro, tornando-a acessível aos trabalhadores e à juventude nos
espaços de cultura que mantêm a chama do pensamento crítico.
Esta obra permite atualizar suas reflexões e análises sobre os
desafios das lutas de classes em um contexto de feroz ofensiva do
capital. Embora, à primeira vista, seja uma coletânea de artigos
e ensaios sobre destacados sujeitos inconformistas, seu alcance é
muito maior, pois permite retomar problemáticas teóricas presentes
em suas duas grandes obras explicativas da formação econômico-
-social brasileira: Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, 1968
(SCS) e A Revolução Burguesa no Brasil, 1975 (RBB). O fulcro da
análise é essencialmente o problema da estratégia revolucionária.
São duas as principais nervuras que organizam a seleção e a con-
tribuição dos intelectuais abordados:
O primeiro eixo é a chamada crise do dito socialismo real,
exposta pela queda do muro de Berlim (1989) e pela dissolução
da URSS (concluída em 1991), que foi considerada pelos setores
dominantes – e por muitos partidos, movimentos e intelectuais
provenientes da esquerda – como uma crise terminal que remeteu
o socialismo ao museu de antiguidades, um tema morto da história
dos séculos XIX e XX: “épocas ultrapassadas e irrecuperáveis” (p.
32). De modo aparentemente contraditório, contudo, os centros
de pensamento do capital simultaneamente jogaram uma pá de cal
sobre o socialismo e recrudesceram a ofensiva política, ideológica e
R oberto L eher • 13

militar contra qualquer manifestação anticapitalista. “Na plenitude


de sua vitalidade, irradia-se a impressão de que o Estado capitalista
depara-se com ameaças e sortilégios emanados do socialismo ou do
marxismo” (p. 31). As ideologias do fim da história, das classes e
das lutas de classes, longe de serem inerciais e passivas, vinham (e
vêm) sendo diligente e sistematicamente difundidas pelos centros
de pensamento do capital que “procuram não deixar pedra sobre
pedra” (p. 31): “impõe-se a aniquilação: varrer essas tendências
político-filosóficas da memória histórica” (p. 32).
Nessa ofensiva, livros como o de Francis Fukuyama O fim da
história foram transformados em best-seller mundial*, erigindo
os pilares da ideologia dominante. A história é o ponto nodal. A
sua recusa unifica correntes pós-modernas e neoliberais, ambas
visceralmente hostis ao marxismo. Para fazer frente às ideologias
dominantes, Florestan irá se esmerar teórica, epistemológica e pe-
dagogicamente na aplicação do método histórico na presente obra.
Por circular na universidade, na imprensa, nas editoras, nos
sindicatos e em outros círculos de esquerda, Florestan observa que
o pensamento progressista ecoa essas referências, muitas delas de
cariz pós-moderno, que difundem a ideologia do fim do trabalho,
da exploração, das classes e das lutas de classes: a repercussão das
obras de Adam Schaff, Alain Tourraine, André Gorz, Claus Offe,
Robert Kurtz, a despeito de suas enormes diferenças, concorre
para a difusão da tese do fim do trabalho, tema que comporá
as preocupações teóricas do sociólogo. Importantes sindicatos
abandonam a perspectiva de classe, colocando em seu lugar o
sindicalismo-cidadão, movimentos sociais recusam a identidade
“trabalhadores” em prol da raça, etnia e gênero que, como salienta
Florestan, mantêm, entretanto, graus distintos de radicalidade.


*
Susan George, “Como o pensamento tornou-se único”, Le Monde Diplomatique,
agosto de 1996.
14 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

A particularidade dos negros e índios não é uma invenção pós-


-moderna. Desde seus clássicos sobre os Tupinambá (publicados em
1949 e 1952) e sobre os negros na sociedade de classes (1955, 1964,
1972 e 1989), temas vigorosamente tratados em seu mandato de
Deputado Federal pelo PT na constituinte (1987-1990), Florestan
vinha colocando em relevo as lutas indígenas e dos negros contra
a segregação e o racismo e, em A contestação..., as suas expectativas
quanto ao protagonismo desses sujeitos são muito visíveis, embora
expressando preocupação com o abandono da crítica ao capitalismo
por parte de muitos desses movimentos.
A ofensiva ideológica contra o socialismo transtornou a própria so-
cial-democracia. Em 1995, já no governo Cardoso, Florestan identifica
uma tendência – cujo principal foco foi europeu – que seria duradoura
e recontextualizada na América Latina: “A social-democracia (...) se
amalgamou ao controle conservador, interno e externo, da economia,
da cultura e do Estado. Serve como instrumento de continuidade no
poder das elites das classes dominantes e de contemporização com
os baixos salários e a exclusão de milhões de indivíduos da sociedade
civil” (p. 32). Naquele contexto, em especial no final dos anos 1980,
entretanto, os trabalhadores estavam se reorganizando, ampliando as
greves, as ocupações de terras improdutivas, uma nova Central Sindical
classista havia se constituído (CUT, 1983) e estava em franca expansão;
o PT havia obtido mais de 30 milhões de votos, levando Florestan a
avaliar positivamente a perspectiva socialista no país: “O socialismo,
porém, encontrou canais de autodefesa relativa. O pensamento radical
enervou-se e reativou nichos de sobrevivência construtiva” (p. 32).
Florestan elabora um pergunta orientadora, agudamente atual,
que interpela os intelectuais e os movimentos sociais: “sucumbiram
à onda conservadora ou ainda contam com os meios para criar
ideias suscetíveis de elaboração prática, no plano político-cultural?”
Segue o sociólogo: “certas tendências radicais ou revolucionárias
do passado in flux possuem vitalidade suficiente para desencadear
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novas composições partidárias e na ‘transformação do mundo’?”


E, finalmente, insere uma questão estratégica, pois envolve as
alianças de classe em debate, entre as correntes do PT e de outras
organizações de esquerda: “o radicalismo burguês ainda pode ou
não suscitar impactos positivos sobre processos centrípetos de
modernização autóctone da ordem social?” (p. 33).
Como é possível depreender das questões que motivam o livro,
Florestan sabe estar contracorrente e não foge de sua responsabi-
lidade de produzir conhecimento capaz de fomentar e orientar as
lutas sociais no Brasil. Após um período de descenso, os sindicatos,
os estudantes e os partidos de esquerda haviam protagonizado,
parcialmente, a luta exitosa pelo impeachment de Collor. Mas para
onde seguir? Qual a estratégia? A confusão política não ensejou
o avanço das lutas em perspectiva da constituição da classe em si
e para si. Ao contrário, deflagrou nas correntes majoritárias da
esquerda enorme expectativa quanto às futuras eleições de 1994
e, por isso, o caminho eleitoral e institucional ganhou força, o que
levou a ajustes programáticos e nas alianças políticas. No entanto,
lastreado pelo Plano Real, Fernando Henrique Cardoso venceu as
eleições com facilidade, empunhando um discurso apresentado
como coetâneo dos novos tempos, aberto ao neoliberalismo na
economia e a um suposto progressismo social anunciado pela
Terceira Via de Giddens e Blair e pela experiência espanhola de
Felipe González. No início de seu mandato foi intensa a adesão de
muitos quadros intelectuais e organizações não governamentais a
uma alternativa que se anunciava como progressista, representada
por um intelectual uspiano que, afinal, fora assistente de Florestan
e era considerado o “príncipe dos sociólogos brasileiros”. As pergun-
tas que conduzem a elaboração do livro evidentemente recusam a
alternativa, mas, demonstrando realismo crítico, problematizam
os impasses, hesitações e guinadas teóricas nas organizações de
esquerda e na elaboração do pensamento crítico, duramente gol-
16 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

peado pela ofensiva dos centros de pensamento que sustentavam


o neoliberalismo como ideologia do fim da história.
A contestação necessária é uma tentativa de reter e discutir mani-
festações do pensamento crítico. A obra busca resgatar a trajetória
de intelectuais de distintos modos contestadores da ordem vigente,
“a contrapelo”, nos termos de Walter Benjamin, e que almejaram
vias políticas, culturais, teóricas, em favor da superação da injusta
ordem social. “Focaliza como seu objeto o eclodir de aspirações
utópicas, que foram destroçadas pelas classes dominantes e pelo
recurso extremo a duas ditaduras. Assinala esperanças frustradas,
que se encontram pairando sobre a sociedade brasileira” (p. 36).
O livro não se propõe, por conseguinte, a ser uma história das
ideias, nem tampouco um livro de biografias de personagens inte-
lectuais. A questão que motiva Florestan é a práxis revolucionária,
a possibilidade de modificar a correlação de forças nas lutas de
classes. O exame dos teóricos da esquerda no Brasil não objetiva
realizar uma análise heurística dos autores, pois, como há tempos
observava o sociólogo (A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec,
1978), não é possível um pensamento socialista vigoroso, original,
sem uma classe trabalhadora impetuosa nas lutas, organizada em
movimentos socialistas fortes, capaz de manter centros de formu-
lação teórica original. “Se o movimento dos trabalhadores e os
sindicatos, com seus aliados de ocasião ou permanentes, formam
uma base ‘fraca’ tanto à radicalidade teórica quanto à radicalidade
prática, [os intelectuais] exibem limitações insuperáveis” (p. 34).
Coerente com o seu método, brilhantemente expresso na apre-
sentação de Marx e Engels (K. Marx e F. Engels: história, organi-
zação e introdução. São Paulo: Ática, 1983, Introdução publicada
pela Expressão Popular, incluindo a introdução a Lênin, em 2012)*


*
Florestan Fernandes, Marx, Engels, Lenin: a história em processo, São Paulo:
Expressão Popular, 2012.
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examina a problemática do pensamento crítico considerando que


o Brasil não é uma unidade de análise que se basta, embora a
pesquisa tenha que, necessariamente, particularizar a formação
social brasileira. Na primeira seção do livro, “O intelectual e a
radicalização das ideias” Florestan dá voz a dois importantes
intelectuais para pensar a realidade latino-americana: José Martí
e José Carlos Mariátegui. A questão nacional e a necessidade de
um pensamento marxista original dão o tom da análise que, nesta
primeira parte, compreende também Lula, Caio Prado Jr., Roger
Bastide, Antonio Candido, Octavio Ianni e Richard Morse. Na
segunda seção, agrega os intelectuais que se destacaram na “Prá-
tica política radical”, como Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra,
Carlos Marighella, Hermínio Sacchetta, Cláudio Abramo e Henfil.
Na última seção, apresenta as contribuições de Fernando de Aze-
vedo para a reforma educacional liberal recusada, paradoxalmente,
pelos liberais burgueses; questão da maior importância teórica na
obra de Florestan, pois ao analisar o motivo da derrota da luta em
defesa da escola pública em 1961, o sociólogo redimensionou a sua
compreensão do que, até então, parecia ser uma reação sociopática
à mudança social por parte da burguesia, compreendendo, a partir
de SCS (1968) e mais sistematicamente, em RBB (1975), a natureza
particular, própria, da revolução burguesa no Brasil, uma “revolu-
ção sem revolução” que guarda semelhanças com a via prussiana
estudada por Lenin na revolução de 1905 e com a revolução passiva
analisada por Antonio Gramsci, e congruente com o capitalismo
dependente, o fundamento da heteronomia cultural.
O segundo eixo é justo o problema, teorizado sistematicamente
na RBB, sobre a particularidade da turva, sinuosa, contraditória
revolução burguesa no Brasil que impossibilita até mesmo reformas
educativas liberais-democráticas, como pode ser visto na seção 3,
dedicada a Fernando de Azevedo, expressão do “radicalismo bur-
guês” (p. 173) que não viu sua obra educacional vicejar.
18 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

Mas o capitalismo periférico é selvagem porque nele pressões internas


(das classes sociais dominantes) e pressões externas (sofridas no plano
da produção e comércio ou na esfera político-estatal das nações im-
periais) caminham juntas, impedindo a dinamização dos processos
estruturais de mudança. (p. 173-174)

Com efeito, enquanto nos países que realizaram revoluções


burguesas a quente, enfrentando o Antigo Regime e, no caso dos
EUA, as oligarquias escravistas do Sul, paulatinamente a educa-
ção pública “ganhou maior envergadura e suporte coletivo”, no
Brasil “ela tem sido sufocada, porque ritmos intensos de alteração
amedrontam as elites das classes dominantes, que temem desloca-
mentos do poder” (p. 174). “As propostas de reforma educacional
que [Fernando de Azevedo] endossou receberam um violento
ataque reacionário e conservador” (p. 174). “O aspecto crucial
da situação esclarece-se na rapidez com que suas reformas foram
solapadas e destruídas ou nas reações ao modelo integrativo da
USP, na qual as antigas faculdades isoladas relutavam e resistiam
aos impulsos renovadores abruptos da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras” (p. 176).
Ao analisar as contribuições de Fernando de Azevedo, Florestan
está teorizando sobre a impossibilidade de reformas liberais de cariz
iluminista, apenas pelo convencimento dos setores dominantes de
sua racionalidade e dos valores democráticos que carregam, pois,
como assinala o sociólogo, sem o protagonismo dos trabalhadores
e deserdados da terra a ‘revolução dentro da ordem’ não se realiza.
E Azevedo, a despeito de se professar socialista, não logrou romper
com a sua condição burguesa: “A fórmula ‘fazer as reformas edu-
cacionais nas escolas antes que o povo as faça nas ruas’ pressupõe
identificações que não deixam dúvidas. A atração pela radicalidade
socialista matizava a vontade de ser diferente. Mas não se tradu-
zia em realizações práticas” (p. 176). A proposição de Florestan é
inteiramente outra:
R oberto L eher • 19

Feita a revolução nas escolas, o povo a fará nas ruas, embora essa
vinculação não seja necessária. Na China, em Cuba, na Rússia, sem
passar pela escola, o povo fez a revolução nas ruas. Mas, em um país
como o Brasil, é necessário criar um mínimo de espírito crítico ge-
neralizado, cidadania universal e desejo coletivo de mudança radical
para se ter a utopia de construir uma sociedade nova que poderá
terminar no socialismo reformista ou no socialismo revolucionário.
Eu prefiro a última alternativa. Fernando de Azevedo optaria pela
primeira. (p. 195)

O travamento da reforma efetiva da instrução pública pela


reação das frações burguesas dominantes, imperializadas, leva
Florestan a investigar exaustivamente os nexos entre as frações
burguesas locais e a burguesia hegemônica, concluindo, em SCS,
que as frações burguesas locais não são vítimas do imperialismo,
mas parceiras ativas, embora subordinadas. Desse modo, é im-
perativo investigar a particularidade da dominação burguesa no
Brasil, mas sempre a partir das classes e das suas relações internas
e externas. Isso significa compreender sob outro prisma a chama-
da questão nacional, recusando a identificação dos interesses das
frações burguesas locais com os interesses da Nação, conforme
assinalam Martí, Mariátegui, Prado Jr. e Marighella.
Florestan persegue o debate sobre a revolução burguesa sus-
citado pela Declaração de Março de 1958 do PCB que propug-
nava uma etapa nacional-democrática em aliança com os setores
burgueses potencialmente antilatifundiários, anti-imperialistas e
adeptos da modernização industrial, uma hipótese então neces-
sária, conforme reconheceu Florestan (A condição de sociólogo,
1978), mas refutada por ele em sua análise sobre o capitalismo
dependente (SCS, 1968) e que, ao ser retomada em outros termos
em meados dos anos 1990, no contexto da estratégia democrá-
tico-popular, leva o sociólogo a indagar sobre o significado do
radicalismo burguês no Brasil e a propor novos enfoques para a
questão nacional.
20 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

“A inclusão de José Martí corresponde a uma necessidade


premente de avaliação mais objetiva da descolonização e do nacio-
nalismo libertário. Ignora-se, no Brasil, esses traços importantes
da periferia”. De fato, o nacionalismo libertário propugnado por
Martí “emerge do ímpeto de massas populares na luta contra
o neocolonialismo e o imperialismo. Os dois processos refluem
entre si e dão origem a um patamar mais complexo da revolução
nacional” (p. 35). A originalidade de seu enfoque sobre a questão
nacional claramente advém e é engendrada pelo pensamento vivo
do autor cubano:
Era preciso avançar na direção de um pensamento revolucionário
próprio da América Latina e forjar soluções revolucionárias espe-
cíficas, que não poderiam ser importadas nem da Europa nem dos
Estados Unidos (de onde saíram a velha dominação colonial e o novo
imperialismo). (p. 77)

A particularidade latino-americana é abordada também em seu


texto sobre Mariátegui, redigido em 1994, igualmente elaborado
sob intensa pressão da ofensiva do capital contra o socialismo e, em
especial, contra o marxismo. Sobressai no artigo a originalidade do
pensamento do Amauta que apreende o desenvolvimento desigual
do capitalismo, exigindo a remoção das lentes eurocêntricas para
interpretar a realidade peruana:
Os progressos do capitalismo redundam em aumento geométrico da
barbárie. Essa realidade sempre foi subestimada de uma perspectiva
eurocêntrica. Um marxista peruano, todavia, não tem porque se
enganar a respeito. Basta olhar para trás ou para o presente. (…)
Uma civilização que repousa na riqueza, na grandeza e no poder
por quaisquer meios exige um sistema social de exclusão, opressão e
repressão. (p. 81)

No mesmo diapasão compreende a grandeza da análise de Caio


Prado Jr sobre a revolução brasileira, recusando o mecanicismo dog-
mático da interpretação stalinista sobre os países ditos da periferia:
R oberto L eher • 21

O seu livro de maior repercussão foi divulgado em 1966 – A revolução


brasileira – e possui uma importância política excepcional. Contém
um desafio ousado à ditadura. Mas constitui uma reflexão desafiadora
e um repúdio ao mecanicismo “marxista”, forjado depois da ascensão
de Stalin ao poder e da influência manietadora da Terceira Interna-
cional. (...) Os países dependentes, coloniais e neocoloniais tinham
sido metidos em um mesmo saco e em mesma camisa de força, que
pressupunham que a revolução pudesse ser “unívoca”, monolítica,
dirigida segundo uma fórmula única, a partir das diretrizes da Terceira
Internacional e da União Soviética. (p. 101)

O mesmo posicionamento crítico ao marxismo evolucionista


da Terceira Internacional guiada por Stalin pode ser encontrado
em Gregório Bezerra que, em suas memórias, sustenta a necessi-
dade de uma análise não eurocêntrica e heterônoma da sociedade
brasileira: “A meu ver, tínhamos cedido demais, em busca de uma
união nacional que não conseguíamos fazer e, em consequência
disso, nos isolamos bastante das massas sofridas, em virtude da
nossa posição reboquista com relação à burguesia (Memórias, v. 2,
p. 57, apud Fernandes, 2015, p. 148-149)”.
A perspectiva de Marighella, conforme Florestan, decorre
menos dos estudos teóricos e mais de sua práxis revolucionária, a
exemplo de Bezerra:
O que qualifica e distingue as posições assumidas por Carlos Ma-
righella é o propósito de romper com uma linha adaptativa, que
retirava o Partido Comunista do polo proletário da luta de classes,
convertendo-o em “cauda” permanente e em esquerda potencial da
burguesia. (p. 154)

Esses dois eixos são adensados em sua magistral síntese do


significado da liderança de Lula da Silva. Deixando em “suspenso”
os aspectos de caráter mais conjuntural, em função das eleições de
1994, em que Lula foi candidato sob cerco da mídia oligopólica, o
texto é um mergulho na formação recente da classe trabalhadora
no Brasil. Em páginas pulsantes de imagens fortes, esclarecedoras
22 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

sobre as formas de dominação impostas pelo capitalismo depen-


dente em suas expressões mais brutais de atraso, do mandonismo,
da opressão, ele localiza a formação do moderno proletariado a
partir do estudo das migrações no contexto em que o capitalismo
está demandando força de trabalho barata, tanto para a construção
civil, como para a indústria:
A programação capitalista resolveu o impasse, sob a pressão inflexível
da necessidade de mão de obra barata, o que quer dizer abundante
e desqualificada. Logo, correntes humanas de diversas procedências
assumiram a figura de torrentes de seres que despencavam para o Sul
ou para Brasília, na conquista de trabalho, comida e “um lugar para
arranchar-se”. (p. 53)

A mobilidade populacional não fez do Brasil uma Nação. O


Brasil, observa Florestan, não se nacionalizou, pois não se consti-
tuiu como uma Nação em que caibam todos os rostos humanos;
longe disso, persistem desigualdades brutais que negam a humani-
dade dos que estão submetidos às mais brutais condições de vida.
Os nexos classe, raça, área regional, se adensam na formação social
do país. E ao comporem essas torrentes humanas, sob difícil apren-
dizado, teriam de ser ressocializados de modo radical: “Tinham de
se tornar trabalhadores, para ‘ganhar a vida’ sob uma modalidade
ignorada de relação com o capital, e urbanitas, moradores de algu-
ma região ou bairro da cidade” (p. 53). Essa dinâmica populacional
explica muito o dilema educacional brasileiro, investigado por ele
no início dos anos 1960.
Já não mais no campo, arrancados que foram de certos espaços
sociais plenos de significados e imaginários, milhões de jovens estão
sendo instados a trabalhar nas fábricas, entrando em um novo
mundo, em que outras culturas políticas estão presentes, como co-
locará em relevo Florestan ao analisar o significado dos imigrantes
europeus que conheciam experiências dos anarquistas, comunistas
e socialistas e forjaram núcleos de suporte nos sindicatos, igrejas,
R oberto L eher • 23

escolas e bairros que puderam abrigar uma pequena fração desses


“malditos da terra”. “Entre a República Velha, o Estado Novo e
a Terceira República em trânsito final, transcorreram processos
marcantes. A imigração estrangeira trouxera para o Brasil técnicas
sociais de luta de classes, de uso de greves, de grêmios de auxílio
mútuo e de partidarismo político” (p. 55). A despeito de não ser
um processo amplo e massivo, “o grão de sal político nunca foi tão
denso quanto alguns analistas acreditam” (p. 55), o “inconformista
não precisava calar-se sob os tacões de mandões de mentalidade
estreita e de tradições sufocantes. Havia alguma plenitude para a
vida e para o sonho que ecoavam no ambiente” (p. 54).
As maiores torrentes migratórias ocorreram em períodos de
ditadura, como as de 1935 e de 1964 que objetivavam uma forma
de “tutela secularista” (não a do “coronel” ou do “chefe rústico”)
(p. 54). Isso explica, em parte, as formas de manejo do domínio
por meio da ação dos setores dominantes sobre as organizações se-
culares, como os sindicatos, submetidos a refinado controle estatal:
A ditadura de Getúlio Vargas imitou fórmulas italianas dentro de uma
maldade tipicamente brasileira. Enquanto parecia servir aos operários
e aos sindicatos, fomentou o sindicalismo amarelo, o líder sindical
pelego a serviço do Estado e, por seu intermédio, da burguesia e dos
desígnios do Ministério do Trabalho (...). A ditadura militar foi mais
direta: definiu, como ponto de partida, a greve como ‘perigo social’
e os operários como ‘inimigos de classe’. (p. 54-55)

A urbanização, a industrialização, os efeitos contraditórios da


I Guerra Mundial e da Crise de 1929 engendraram experiências
de lutas que produziram algo indesejável para a burguesia: “o
trabalhador criou, como agente coletivo, por suas mãos, o traba-
lho como categoria histórica” (p. 56). A importância desse fato,
observa Florestan, é de exponencial significado para a história da
luta de classes no Brasil e que justamente será o foco da ideologia
dominante nos anos 1990: suprimir o trabalho como categoria
24 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

histórica. Na segunda metade do século XX, o sindicalismo ama-


relo foi questionado por lutas e greves que engendraram os germes
de um sindicalismo crítico à tutela estatal. Não casualmente, os
setores dominantes tiveram de intrometer-se no porvir da classe
trabalhadora: “E rendeu o controle de algumas instituições através
das quais as classes dirigentes iriam imiscuir-se, mais tarde, no
íntimo da formação do operário e intervirem suas lutas sociais” (p.
56), a exemplo da criação do Senai e na regulação dos conflitos por
meio do Ministério do Trabalho. Mas as classes assalariadas “mos-
traram seus punhos”, como se depreende das grandes greves dos
anos 1950, tema abordado de modo original por Marcelo Badaró
de Mattos em Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro, 1998.
Com a ditadura de 1964 é possível constatar um recuo na força
própria da burguesia ao ceder aos militares o controle do mundo
do trabalho. Mas a ditadura amordaçou as organizações dos tra-
balhadores que, entretanto, lograram manter germes de rebeldia,
com apoio oculto de setores da igreja católica, seja nas CEBs, seja
na CNBB, processo que possibilitou greves de grande relevância
em plena vigência da ditadura em seu apogeu repressivo, como a
de Osasco em 1968. As bases para um sindicalismo independente
do Estado e dos patrões foram sendo forjadas nesses restritos espa-
ços que possibilitaram germinar um sindicalismo que não fosse a
“cauda da burguesia” (p. 57).
As lutas sindicais que marcam o período final da ditadura, for-
jando os trabalhadores como classe em si não deixaram de assimilar
a ideologia expressa na (dita) teoria do autoritarismo, formulação
vigorosamente criticada por Florestan, em sua obra Apontamentos
sobre a “teoria do autoritarismo” (1979). Esta formulação ideológica
contribuiu para a efetivação de uma transição democrática pelo
alto, em que o final formal da ditadura não exigiu qualquer autocrí-
tica das classes dominantes que a sustentou e dela se beneficiaram.
De fato, trata-se de uma transição sem qualquer acerto de contas
R oberto L eher • 25

efetivamente democrático e, sobretudo, sem o questionamento


do projeto burguês que se nutriu da ditadura. A dita teoria, em
linhas gerais, reconhece o caráter modernizante da ditadura, mas
a crítica por seu autoritarismo (retirando da crítica o modelo eco-
nômico), atribuindo a uma etérea sociedade civil os atributos da
democracia, da criatividade e da inventividade. Como as principais
representações dessa edulcorada sociedade civil, no contexto do
final da ditadura, eram os meios de comunicação monopólicos, as
entidades empresariais, as igrejas, foi possível reorganizar o bloco
no poder de modo que, uma década mais tarde, um novo arranjo
liderado pelo setor financeiro pudesse se consolidar.
Esse movimento de recomposição da hegemonia, entretanto,
repercutiu sobre os trabalhadores: “O furor do movimento ope-
rário, disposto a avançar se conseguisse as condições necessárias
dentro da classe e da sociedade civil, sofreu um declínio sensível
(seu radicalismo terminou onde começaria a luta de classes sem
quartel)” (p. 57).
Diante da paulatina perda de ímpeto revolucionário dos tra-
balhadores e suas organizações, Florestan indaga sobre o enigma
da história da luta de classes no Brasil:
Sem completar seu processo de integração como classe em si, os traba-
lhadores e seus movimentos sociais atreveram-se a exigir democracia
com liberdade e igualdade de oportunidades.
Dada essa moldura, é possível recolocar-se o principal enigma de
nossa história. Por que as contradições internas tão chocantes e bár-
baras não desencadearam as reformas e revoluções capitalistas, pelo
menos a partir das fraturas da ditadura militar e da oposição frontal
da conciliação pelo alto das diversas facções da burguesia? (p. 57)

A sua argumentação é densa e penetrante. Problematiza os


esquemas de interpretação que atribuem os obstáculos à persis-
tência do passado colonial, imperial ou da República oligárquica
no presente e, ao mesmo tempo, as formas de interpretação que
explicam os obstáculos às diferentes manifestações da dependência
26 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

imperialista (exógena): “Alguma coisa brecou a história apartir de


dentro” (p. 58).
Na perspectiva florestaniana é preciso buscar a chave interpre-
tativa da fragilidade do projeto burguês (fragilidade em termos
de um projeto autopropelido de nação), patenteado pela cessão de
funções cruciais para os militares, na correlação de forças das lutas
de classes. Em sua interpretação, os subalternos não lograram força
para interpelar de modo imperativo os dominantes que, por isso,
puderam seguir com sua “revolução sem revolução” sem maiores
sobressaltos. “Os de baixo não davam um basta, porque temiam
agravar seus males. Os de cima comandavam sem receber dos de
baixo uma cobrança definitiva” (p. 58).
Na avaliação de Florestan, contudo, houve um curto período
em que, em virtude da crise entre as frações burguesas dominantes,
e do levante das lutas populares e sindicais, foi possível vislumbrar
uma alteração na correlação de forças. Com apoio de um arco
mais amplo de forças, foi possível erigir a CUT, o PT, o MST,
reorganizar a UNE, situação que permitiu avançar na agenda da
‘revolução dentro da ordem’. “Em plena crise da ditadura militar
na decomposição do poder coercitivo do governo e das classes
dominantes sobrou maior espaço histórico para a desobediência
civil dos oprimidos” (p. 59). Lula da Silva foi parte desse turbilhão,
expressando, naquele contexto, mudanças políticas que convulsio-
navam as formas de luta dos de baixo. É importante assinalar que
Florestan não vê em Lula o personagem do herói redentor, mas
reconhece e celebra as suas qualidades de líder político. Em meio
ao turbilhão, por que as lutas não foram mais longe e, ao contrário,
regrediram para reivindicações cidadãs, conformadas com a ordem
social que mantém os fundamentos do capitalismo dependente: as
expropriações e a exploração brutal do trabalho?
São muitos os interrogantes apresentados para tentar vislumbrar
o significado de liderança de Lula, entre os quais, Florestan destaca
R oberto L eher • 27

uma última questão: “Como se explicava o anseio de renovação sem


uma cultura socialista sedimentada (o que se nota até hoje)?” (p. 63).
O problema da formação é de importância axial para Florestan.
Implicitamente, a indagação remete para a questão estratégica da
ultrapassagem da classe em si para a classe para si; da revolução
dentro da ordem para a revolução fora da ordem. O fulcro do
problema estratégico não dependia, apenas, do dirigente Lula. E
o desenrolar dos acontecimentos, na avaliação de Florestan, não
pôde ser alterado no sentido de avançar na organicidade classista
dos sindicatos. [Lula] “Teve que se defrontar com um desvio que
redundou, mais tarde, na fundação da Central Única dos Traba-
lhadores (CUT) como agregação de estados vassalos e autônomos”
(p. 65). O salto organizativo se deu na frente partidária, com a
criação do PT:
Nos confrontos com os capitalistas nacionais e estrangeiros viu o que
era óbvio: os trabalhadores careciam de um polo político próprio para
dinamizar a sociedade civil segundo seus interesses, valores e ideologia.
Não podiam “cercar” o inimigo real. Contando com um partido,
porém, teriam como organizar-se para os embates nas altas esferas
do poder político específico, isto é, estatal e governamental. (p. 66)

O balanço das experiências, muitas delas virtuosas, dos pri-


meiros anos da década de 1990, permite Florestan projetar o que
seriam as principais tensões do partido: “As duas tendências mais
fortes no PT ou levam à social-democracia ou ao socialismo re-
volucionário” (p. 69). Novamente, Florestan retoma a estratégia:
Por isso, temos de desenterrar e de refinar duas antigas noções em-
pregadas pelos clássicos da reforma social e da revolução social: as de
“revolução dentro da ordem” e de “revolução contra a ordem”. Resistir
a essas noções traduz medo diante do capitalismo e perda de confiança
no socialismo como alternativa de civilização sem barbárie. (p. 70)

Está claro para Florestan que a dialética revolução dentro e


fora da ordem não equivale à fórmula etapista, “reforma, revolução
28 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

burguesa, acúmulo de forças proletárias e revolução”. O espaço da


reforma depende do teor da revolução burguesa e, nesse sentido, a
questão estratégica já esta redefinida desde SCS e RBB: “No Brasil e
na América Latina, a revolução burguesa foi interrompida em níveis
precoces, favorecendo a coexistência do arcaico, do moderno e do
ultramoderno” (p. 70). Na apreciação de Florestan, “A opção de
Luiz Inácio por visões prospectivas de desenvolvimento capitalista
interno – que o incorpora às experiências social-democráticas – são
nítidas” (p. 71). Novamente, é na luta de classe e nas formas de
consciência ativamente desenvolvidas pelos trabalhadores em luta
que as expectativas de futuro são depositadas: [a revolução dentro
da ordem não impede] “a revolução contra a ordem se o clamor
pelo socialismo difundir-se como fogo no palheiro” (p. 72).
O desafio reiterado por Florestan é a formação dos “de baixo”,
submetidos a um verdadeiro apartheid educacional, visto que até
a escola pública universal de cariz liberal lhes foi negada, mas
também em virtude dos dilemas educacionais que fazem com que
os educadores, frequentemente, sigam uma pedagogia que nega
o diálogo e o reconhecimento do outro como protagonista. O
destaque conferido à trajetória de Bastide, na USP, e, sobretudo,
ao trabalho sociológico e literário de Antonio Candido, são um
dos pilares da presente obra. Em Parceiros do Rio Bonito, obra
clássica de Candido (1964), o crítico literário e companheiro de
lides políticas e acadêmicas de Florestan promoveu um profundo
giro teórico e pedagógico, de extraordinária importância para a
formação educacional e política que estão entranhadas na estratégia
para e no socialismo de Florestan:
Por seu intermédio, um tipo de homem pobre ‘livre’ ganhou espaço
na estante dos clássicos. Iluminou-se uma parcela do Brasil dos de
baixo, o que eles são, como gente e portadores de uma civilização
excluída e de uma sociedade subalternizada. Ampliou-se a área dos
nossos contemporâneos que não são coetâneos da história oficial,
R oberto L eher • 29

mas que apresentam um desafio: eles não podem ser apenas “objeto”
da reforma agrária ou dos movimentos libertários e humanitários da
sociedade civil. Ou os agentes da história oficial os destroem, como
estão fazendo, ou eles próprios terão de ser portadores das reivindica-
ções que revolucionam, como os terremotos catastróficos, a história
do Brasil real. (p. 110)

Compreender a história desses “outros”, invisibilizados na his-


tória oficial e na narrativa dos setores dominantes, leva Florestan a
conferir largo espaço às lutas, à história e aos anseios dos negros,
tema que compartilhou com Bastide e com Octavio Ianni, assim
como os povos originários, preocupação que admirava em Mariá­
tegui, como nos expropriados da terra, a exemplo de Gregório
Bezerra, a quem Florestan presta proletária homenagem:
Posto à prova mostrou-se à altura dos seus pares ancestrais e retirou
do sofrimento a mais contundente humilhação dos carrascos: revelou
a ira popular e o orgulho imbatível do ser espoliado, que derrota o
inimigo voltando contra ele a vergonha da desonra, da covardia atroz
e da desumanidade bestial. (…) Ele não fala para o povo – é o próprio
povo que fala pela sua voz. (p. 146, 148)

A mesma conduta encontra em Marighella:


Carlos Marighella alargou a teoria, para que nela coubessem as cruel-
dades sofridas pelos de baixo; e estendeu a prática, incluindo nela
coerência e firmeza. Porta-se com equilíbrio, ficando rente aos ques-
tionamentos essenciais. (...) Elaborou, desse modo, suas concepções
de síntese, adequadas às atividades concretas, opondo-as às abstrações
do padronizado ABC do comunismo. (p. 135)

A relação pedagógica somente pode ser libertária em comunhão


com os espoliados, expropriados e explorados e examinando histori-
camente as situações concretas das lutas de classes. Em um contexto
contrarrevolucionário, inclusive nas universidades, a inclusão de
publicistas socialistas como Cláudio Abramo, portador de notável
“imaginação jornalística”, Hermínio Sacchetta “Sonhava com a
autonomia ideológica dos trabalhadores, com a autoemancipação
30 • A contestação necessária : estratégia e desafios da autoformação dos trabalhadores

coletiva que iria alterar os rumos da civilização” (p. 161) e Henfil,


autor de uma “arte criada para exaltar a humanidade da pessoa e
condenar os filisteus, os abusos do poder e o egoísmo dos podero-
sos” (p. 170), conferem coesão e coerência à Contestação necessária.
Magnífica a sede de conhecimento de Luiz Carlos Prestes para
melhor compreender a formação social brasileira: “Há, por trás
dessa concepção, a ideia de que a personalidade revolucionária
precisa interagir com os progressos da ciência e da pesquisa cien-
tífica” (p. 132).
Os desafios para o “fazimento” da classe, como argumenta
Florestan, envolve primordialmente a experiência das lutas, a
organização da classe e, concomitantemente, a formação política
e a instrução pública. Não é possível desvincular a educação, em
sentido mais amplo, da estratégia política. O fato de que a obra
de Florestan se mantém viva em grande parte pela principal escola
dos trabalhadores, a ENFF, é, nesse sentido, uma vitória das lutas
empreendidas pelo grande pedagogo socialista para que o conhe-
cimento fosse um objetivo estratégico das lutas dos trabalhadores.
O MST reconhece o valor da teoria, da história, do trabalho e, por
isso, reivindica o legado florestaniano. A publicação de A contesta-
ção necessária pela Expressão Popular é uma generosa contribuição
para a ciência da história, em especial em um contexto de grande
opacidade teórica. Após 20 anos do falecimento de Florestan
sua obra vem ganhando crescente importância, em especial por
estar entranhada nas lutas do mais importante movimento social
brasileiro e por ser objeto de sistemática reflexão original de sua
Escola Nacional que vem promovendo as já obrigatórias Semanas
Nacionais Florestan Fernandes em sua sexta edição e, mais recen-
temente, um sistemático curso sobre o seu pensamento. Que os
leitores desfrutem e discutam avidamente a presente obra!

Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 2015


PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

A maior controvérsia dos países capitalistas que conduzem os


grandes processos históricos se vincula à extirpação do socialismo.
Merece meditação o fato de que, após o desmantelamento da Guerra
Fria, aumente de modo incessante a fobia até contra versões frágeis
da social-democracia. Não se trata só de intolerância e de estigma-
tização. Parece que o capitalismo oligopolista automatizado, no
extremo da concentração da riqueza, da alienação do pensamento e
da reorganização do poder estatal, reflete-se através de imagens que
lhe subvertem a natureza. Na plenitude de sua vitalidade, irradia-se
a impressão de que o Estado capitalista depara-se com ameaças e
sortilégios emanados do socialismo ou do marxismo.
A propaganda conservadora insistiu tanto na representação
de que seriam religiões, na forma e nos conteúdos, que terminou
caindo na própria armadilha. Os paralelos com o gandhismo des-
vendaram que é fácil derrotar ideologias puramente políticas. Mas
seria quase impossível destroçar um movimento que combinasse
o religioso e o político. A comparação com o cristianismo aflorou
como mais ameaçadora. Daí, certamente, o pânico diante do
anarquismo, do socialismo e do marxismo. Procuram não deixar
pedra sobre pedra, especialmente depois de experiências concretas
32 • P refácio à primeira edição

que desdobram o pavor da repetição de tentativas revolucionárias,


sanadas de erros que já são bem conhecidos.
Impõe-se a aniquilação: varrer essas tendências político-filosó-
ficas da memória histórica. Patenteia-se que é inviável convertê-las
em épocas ultrapassadas e irrecuperáveis da evolução cultural do
mundo ocidental. Elas são intrínsecas a essa evolução. Não podem
subsistir como departamentos degradados de história das ideias
nas universidades ou focos de mera erudição.
A onda conservadora, sem paralelos na história da humanida-
de, possui seu centro dinâmico nos países em que o capitalismo
oligopolista se redefiniu, em função da globalização da economia
mundial e das transformações do Estado, para adaptar a sociedade
civil ao neoliberalismo e à modernização decorrentes. Ela volta,
disfarçadamente, a modelos pré-democráticos, reduzindo-se dia
a dia a proporção de cidadãos “responsáveis” e “participantes” e
excluindo-se a massa dos “eleitores” da condição de cidadãos váli-
dos. Essa onda despejou os seus efeitos na periferia, com intensidade
variável, dado que a ela se agregaram conflitos raciais, étnicos e
religiosos que pareciam superados ou os riscos de revivescências
revolucionárias.
A periferia, contudo, não esmagou todas as modalidades de ra-
dicalização social e política. A revolução anticolonial e nacionalista
subsiste e o significado do socialismo preservou-se ou enriqueceu-
-se em diversas regiões. Ele permanece como alternativa histórica,
embora sofrendo distorções que se afastam dos ideais igualitários,
democráticos e humanitários de suas fontes europeias originárias.
No Brasil ocorreu um deslocamento de rumos do socialismo e
da social-democracia. Esta se amalgamou ao controle conservador,
interno e externo, da economia, da cultura e do Estado. Serve
como instrumento de continuidade no poder das elites das classes
dominantes e de contemporização com os baixos salários e a ex-
clusão de milhões de indivíduos da sociedade civil. O socialismo,
F lorestan F ernandes • 33

porém, encontrou canais de autodefesa relativa. O pensamento


radical enervou-se e reativou nichos de sobrevivência construtiva.
Essas condições novas provocam indagações sobre os papéis
dos intelectuais nos movimentos sociais ou sobre o destino de sua
produção. Sucumbiram à onda conservadora ou ainda contam
com os meios para criar ideias suscetíveis de elaboração prática, no
plano político-cultural? De outro lado, certas tendências radicais
ou revolucionárias do passado in flux possuem vitalidade suficiente
para desencadear novas composições partidárias e na “transfor-
mação do mundo”? Por fim, o radicalismo burguês ainda pode
ou não suscitar impactos positivos sobre processos centrípetos de
modernização autóctone da ordem social?
As perguntas apontam a necessidade de sondagens sobre o
passado que se incorporam ao presente e não podem impedir
um futuro com outras perspectivas. O quadro catastrófico não
é tão sombrio. O atraso aninha potencialidades que estão sendo
arrasadas nos países imperiais. Há um vazio político que protege a
emergência ou o reaparecimento de forças sociais que não puderam
ser eliminadas. A confusão que os controles ultraconservadores
impuseram sobre a inteligência e sobre o comportamento radical
não surge, aqui, com o ímpeto destrutivo que apresenta na Europa
e nos Estados Unidos.
A contestação necessária é uma tentativa de reter e discutir mani-
festações dessa natureza. Apesar de suas insuficiências, em vista dos
materiais utilizados e da falta de um fio condutor na reelaboração
interpretativa adotada, representa um ponto de partida para outras
reflexões de maior envergadura. O que importa, no momento, é
que restabelece o valor de uma herança intelectual e política que
parecia condenada ao esquecimento ou à supressão pela violência.
Note-se: a preocupação central retoma a questão de como as
ideias, produzidas pelos intelectuais, transformam-se em conheci-
mento crítico (ou não) e, por sua radicalidade, engendram forças
34 • P refácio à primeira edição

sociais, através de orientações inconformistas ou rebeldes dos


trabalhadores e de outros grupos de uma sociedade acentuada-
mente fechada às mudanças sociais impostas de baixo para cima.
A conexão apontada é ainda embrionária, devido à opressão e à
repressão das classes privilegiadas.
A segunda parte – “Prática política radical” – complementa
a primeira – “O intelectual e a radicalização das ideias”. Há inte-
lectuais cujo pensamento e ação militantes reelaboram ideias que
procedem da academia e dos estudos sistemáticos sobre o Brasil,
a América Latina e a “globalização” das economias, da cultura e
da organização do poder estatal das nações capitalistas centrais,
nesta fase de desenvolvimento antagônico das nações ricas. No
plano abstrato despontam convergências que se esfarelam no nível
concreto.
As reflexões, nesta esfera, tomaram como referência agitadores
socialistas e os fermentos de radicalidade ou de ultrarradicalidade
segregados por partidos revolucionários, desde a época da ditadura
Vargas até a recente ditadura militar. Foram escolhidas ao acaso
personalidades que militaram nas manifestações de contraviolência
e se dedicaram à rebelião socialista. O tratamento analítico pre-
cisou ser alterado, abrangendo espaço maior. Texto e contratexto
podem parecer um exagero expositivo. Eles se impunham, porém,
para salientar e corrigir aspectos pouco conhecidos da realidade.
Existem muitas diferenças entre esses agentes do pensamento
e da ação potencial ou abertamente insurgentes. Seu objetivo
prendia-se à construção de uma sociedade nova, por via reformista,
radical ou revolucionária. Ao contrário do que propagam os de-
fensores da ordem, entrechocaram-se tendências divergentes nessa
prática política, oriundas de debilidades dos trabalhadores e seus
partidos, evidenciando uma esquerda com laços de união débeis
e destituída de uma cultura política sólida. Se o movimento dos
trabalhadores e os sindicatos, com seus aliados de ocasião ou per-
F lorestan F ernandes • 35

manentes, formam uma base “fraca” tanto à radicalidade teórica


quanto à radicalidade prática, exibem limitações insuperáveis.
A inclusão de José Martí corresponde a uma necessidade
premente de avaliação mais objetiva da descolonização e do
nacionalismo libertário. Ignora-se, no Brasil, esses traços im-
portantes da periferia. O primeiro processo brota da rebelião
contra o estatuto colonial. O nacionalismo libertário emerge do
ímpeto de massas populares na luta contra o neocolonialismo e o
imperialismo. Os dois processos refluem entre si e dão origem a
um patamar mais complexo da revolução nacional. Com raras e
parciais exceções, os intelectuais e ativistas políticos de esquerda
desdenham esses aspectos da realidade, que explicam por que a
revolução burguesa ficou contida nos cenários históricos e políti-
cos de uma revolução interrompida, fato que seria fecundo para
situar não só as debilidades do capitalismo selvagem, como para
refletir sobre as raízes de uma revolução que continua oscilante e
incapacitada para desencavar mudanças sociais espremidas entre
o controle interno e externo das massas insatisfeitas e a sufocação
das forças sociais de renovação ou criação da sociedade nova.
Martí exemplifica um universo de pensamento e ação no qual
tais limitações foram eliminadas. Esse universo culminou na
guerrilha, no exército rebelde e no ódio popular que retiraram
da revolução o conteúdo burguês, orientando-a na direção do
socialismo.
A terceira parte – “Reforma educacional: a contribuição de
Fernando de Azevedo” – representa, na essência, um desdobra-
mento da segunda parte, pois a radicalidade do pensamento e da
ação reformista aparece lá. Todavia, dado o vulto e a significação
das contribuições de Fernando de Azevedo, pareceu-me mais
congruente considerá-lo à parte. Isso permitiu-me duas coisas.
Primeiro, discutir a reforma dentro do contexto propriamente
burguês. Segundo, localizar o estrangulamento das reformas capi-
36 • P refácio à primeira edição

talistas em sociedades de classes periféricas e associadas, tomando


o Brasil como referencial.
Os donos do poder tolhem a irradiação dessas reformas
típicas, engolfados em sua resistência tenaz a uma sociedade
de classes aberta e democrática. O reformador, como o revolu-
cionário, é definido de modo intolerante como se ele incitasse
a “inquietação contra a ordem”, inimigo dissimulado de sua
estabilidade social e política. Esse é o ingrediente compulsivo da
revolução burguesa em sua manifestação segmentada, como uma
revolução interrompida em todos os seus ritmos históricos, lentos
ou relativamente acelerados, durante lapsos curtos ou longos de
tempo. A tenacidade do reformador desse porte é fundamental à
compreensão das inconsistências da mudança social e à necessi-
dade de interromper reformas e revoluções capitalistas antes que
elas cheguem a afetar os dinamismos de uma sociedade imantada
em interesses, preconceitos e controles que resguardam o statu
quo de ondas reformistas ou revolucionárias “dentro da ordem”,
que ameaçam direta e indiretamente os privilégios e as posições
de dominação racial, econômica, social, política e ideológica das
classes altas.
Com isso, Fernando de Azevedo não foi privado do sentido
histórico que atribuía à sua obra teórica e às suas atividades prá-
ticas. Ele se iludia quanto à potencialidade do meio para absor-
ver as reformas que implementou. Mas, as inibições e posterior
destroçamento de suas reformas são índices que circunscrevem
o atraso como técnica de dominação social e de defesa cega da
estabilidade política.
A contestação necessária focaliza como seu objeto o eclodir de
aspirações utópicas, que foram destroçadas pelas classes dominan-
tes e pelo recurso extremo a duas ditaduras. Assinala esperanças
frustradas, que se encontram pairando sobre a sociedade brasileira.
O livro não tem a pretensão de ser mais inclusivo, como ocorre
F lorestan F ernandes • 37

com a obra já clássica de Carlos Guilherme Mota, A ideologia da


cultura brasileira (1933-1974).
Espero que o título – A contestação necessária – seja entendido
à luz das reflexões concatenadas neste prefácio. Por pobre que
pareça, ele evoca o remoto passado escravocrata e o tempo recente
das ditaduras civil-militares. Em consequência, repõe o impera-
tivo de salvar esperanças, que sobrevivem e crescem no substrato
de uma sociedade capitalista fomentadora de contradições que
convertem a radicalidade em estilo de pensamento e de ação,
indispensável à construção de um futuro limpo da canga arcaica
e ultraconservadora.
Agradeço a cooperação fraterna e incansável de Vladimir
Sacchetta, que desconhece sacrifícios para facilitar a minha vida,
e à Editora Ática, que vislumbrou no livro inicialmente entregue
sua versão atual.

São Paulo, 20 de julho de 1995


Florestan Fernandes
PARTE 1
O INTELECTUAL E A
RADICALIZAÇÃO DAS IDEIAS

Esta primeira parte contempla algumas dimensões humanas


de intelectuais que escapam à corrente e remam contra ela, con-
forme o alcance de seu temperamento, de sua vocação política e
de seu inconformismo.
Comecei com algumas considerações sobre Lula. Egresso do
Nordeste, sofrendo as agruras e os preconceitos dos que se engol-
faram em migrações internas, intensificadas na década de 1930
por políticas de Getúlio Vargas, teve de enfrentar fortes obstácu-
los à classificação social como proletário. Por sua inteligência e
capacidade­de luta, saltou de líder sindical a líder político. Gestou
as ideias mais inventivas contra o atrelamento do sindicato ao Es-
tado, como parte de uma “paz burguesa”, arquitetada cruamente,
e tentou unificar os sindicatos numa central única. Ele descobriu
o significado da subalternização dos trabalhadores aos capitalistas,
apostando, com outros companheiros, na organização dos de baixo
em um partido próprio, o Partido dos Trabalhadores (PT). Cortou,
assim, o nó górdio que prendia lideranças sindicais de vulto à “cau-
da do movimento burguês”. Travou suas lutas em conflitos sociais
cotidianos com os empresários. Alcançou, por seu valor, a votação
mais alta do país, em 1986, quando apresentou sua candidatura
40 • O intelectual e a radicalização das ideias

a deputado federal constituinte. Entre outras coisas, consagrou-se


por duas vezes – 1989 e 1994 – como candidato à presidência da
República, escudado por porcentagens de preferência eleitoral que
puseram a alta burguesia e os estratos conservadores das classes
médias em pânico. Em ambas as ocasiões as manobras que o
afastaram da ocupação da presidência envolveram manipulações
dos partidos da ordem e dos donos do poder econômico, típicas
do clientelismo mais agudo.
Por que começar com ele? Porque Lula simboliza, em grau
extremo, o operário como inventor de ideias e atesta que o socia-
lismo não está morto: o movimento operário, assim como outros
movimentos verticais convergentes do PT (dos negros, mulheres,
indígenas, crianças de rua etc.) carregam consigo detonadores de
alta-tensão. Ele logrou descobri-los e dinamizá-los. Afirmou-se,
pois, como intelectual orgânico das classes destituídas ou subal-
ternizadas, com alta capacidade de provocar tentativas históricas
de arrancar o Brasil da barbárie.
A tradição europeia associou anarquistas, socialistas e comu-
nistas no combate ao nacionalismo reacionário das pátrias. O ciclo
das reformas revolucionárias do capitalismo e os vínculos deste
com tendências ultraconservadoras não permitiram entender que
o nacionalismo possui várias polaridades – uma delas revolucio-
nária. Isso se evidenciava em Cuba, no século XIX, e iria tomar
contornos específicos nos países coloniais, no século seguinte.
José Martí, sem ser um socialista, situa-se como o expoente do
nacionalismo revolucionário na América Latina. As peculiaridades­
de Cuba, que realiza tardiamente a ruptura com a metrópole es-
panhola e alcança o apogeu de sua primeira revolução graças ao
ardor nacionalista do seu povo, exigiam um pensamento e uma
prática política calibrados, que orientassem a revolução nacional.
Martí foi o apóstolo, como dizem os cubanos, dessa conexão.
Devido à invasão contínua dos interesses ianques, cresce precoce e
F lorestan F ernandes • 41

rapidamente um imperialismo duro, que dominou, até a revolução


de 1959, toda a cena histórica. Pondo-se na dupla perspectiva da
América ibérica e de Cuba, Martí elevou-se à altura de um pensador
e publicista continental. Poeta, ensaísta político e homem de ação
denodado, logrou difundir suas ideias e galvanizou os embates da
primeira revolução, na qual sacrificou sua vida. Como se percebe,
fundiu, em suas lutas e realizações, teoria e prática, tornando-se
o antecessor de maior envergadura do levante guerrilheiro e da
revolução socialista.
A seguir, recorri a uma simulação fecunda: o que faria José
Carlos Mariátegui nesta era de incerteza para o socialismo? Ele
sucumbiria à moda e à propaganda demolidora do marxismo nas
nações capitalistas hegemônicas? Minha suposição é que Mariáte-
gui possuía uma personalidade incorruptível e indomável. Baseio-
-me no fato de que ele foi pioneiro em duas frentes: na pugna com
conservadores, que encaravam o marxismo como ilusão; e na crítica
a companheiros que não avançavam com sua fibra e perspicácia
na interpretação da situação histórica peruana e latino-americana.
Não cedeu o passo. Levou seus combates às últimas consequências,
oferecendo a todos as mesmas respostas de quem sabe o que e por
que faz. Em consequência, sua figura admirável eleva-se como
exemplo em um universo de oportunismo e capitulação.
Exagerava suas opções teóricas ou práticas? O êxito do capi-
talismo acarretava o abandono da utopia? Nada disso. A história
avança por um curso que é construído por seres humanos, e as
contradições que os separam aumentaram sem cessar. Ele lembra
que nossas raízes brotam e sobrevivem na América Latina. A esco-
lha entre o colonial, o privilégio e a rebelião pode medrar segundo
ritmos históricos lentos e sinuosos. Mas ela não se desvanece como
as nuvens. A menos que a subalternização penetre e paralise os que
sofrem a opressão e a miséria, sucumbindo à condição de escravos.
42 • O intelectual e a radicalização das ideias

Caio Prado Júnior propõe outro enigma: o aristocrata que


abomina o privilégio. Um homem rico, inteligente, de vocação
política enaltecida, pertencente à classe dominante e dirigente,
que lhe entregaria o que quisesse para fazê-lo render-se à ordem
existente. E que, rompendo com tudo isso, preferiu ser um “traidor
de classe” na fidelidade ao confronto de vida e morte entre os de
cima e os de baixo. Torna-se um intelectual fecundo, pioneiro no
campo da investigação histórica e geográfica, capaz de arriscar-se
a incursões pela economia e pela lógica dialética. Como entender
tal “salto no escuro”? Dirigente da Aliança Nacional Libertadora,
em 1935, aderiu a um levante de antemão visivelmente débil para
o enfrentamento policial-militar e as possibilidades de um partido
que ainda erguia as vigas de sua construção. Joaquim Nabuco não
foi tão longe e, por suas interpretações, nem José do Patrocínio. Na
história paulista só Antonio Bento ostentou semelhante audácia,
sem análoga criatividade intelectual. Caio era audacioso e um
paladino da causa que endossou. Nunca abandonou, entretanto,
o apego a ser, em sentido lato, um escritor. Não se vergou nem
tombou no campo de batalha. Mas deu um exemplo que seduziu
os jovens estudantes e professores daquele momento.
Foi muito mais longe. Desmascarou a “história oficial” e, graças
ao marxismo, enxergou o quanto foi podre e continuou a apodrecer
o símbolo da “ordem e progresso”. Como investigador, político,
ativista e intelectual serviu com hombridade, várias vezes de modo
independente, ao Partido Comunista. E arrojou-se a uma crítica
penetrante e sistemática à estratégia comunista determinada no
exterior, quando isso se abateu como uma fatalidade. Em suma,
o casamento do “filósofo” e do “proletário” não carecia, como a
burocracia partidária supunha, da humilhação e da submissão.
Como Mariátegui, portanto, plantou o marxismo na América
Latina e esperava de seu partido uma orientação revolucionária
específica e coerente. Caio seria capaz de evidenciar os meandros
F lorestan F ernandes • 43

do capital mercantil e do capitalismo monopolista da era atual.


Mas não sucumbiria aos impasses do “socialismo está morto”.
A marca francesa do Departamento de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras aflorou no ecletismo. Não
havia, portanto, um ensino polarizado politicamente. Os autores e
pensadores de esquerda apareciam nos cursos e nas aulas em função
do tema e sua importância. Um estrito trabalho acadêmico, por
sua vez, cindia a personalidade dos professores. Ensino e pesquisa,
dentro da universidade; atividade política, fora de seus muros. A
ebulição dos anos 1950 e as agitações legais ou clandestinas da
década seguinte e de parte dos 1970 tinham um endereço certo.
Passava-se do reformismo para preocupações revolucionárias, que
uniam vários professores e alunos nas atividades e determinações
decorrentes do meio social. Essas circunstâncias acentuaram as
predisposições socialistas já existentes.
Os três curtos escritos seguintes ressaltam os conteúdos do
horizonte intelectual e o pendor de cultivar a verdade. Por motivos
de geração, de preferências intelectuais e de natureza dos vínculos
com o socialismo, Roger Bastide, Antonio Candido e Octavio Ianni
não se confundem em nada. Mas a presença deles aqui é impositiva.
Todos os três adiantam o fundamental: ninguém pode ser
socialista sem certas qualidades especiais, certos traços de perso-
nalidade que não decaem, elevados ao máximo por um Romain
Roland. O horizonte socialista não se articula com a condenação,
a indignação, as predisposições tortuosas. Se não fosse assim, o
que diferenciaria o socialista no mundo em que vivemos? Como
ser inconformista ou radical e suportar a civilização capitalista sem
se render? De onde extrair o suporte psicossocial do socialismo?
Não poderia escrever extensamente sobre nenhum deles.
Alinhá-los com carinho e compreensão, deixando que as palavras
subissem à tona e esclarecessem qual é o tipo de solidariedade e de
amor que sublinham suas ideias (e sentimentos), consistia no máxi-
44 • O intelectual e a radicalização das ideias

mo que estava ao meu alcance. Na lógica da síntese, essa natureza


transmuta-se e percebe a fundo – e as rejeita com vigor – as con-
tradições que se alimentam das iniquidades. Por isso, comecei por
Roger Bastide, que repudiava os atritos que envolvessem violência.
É visível que entre os europeus Bastide é responsável por um
notável efeito de demonstração sobre os aprendizes de sociólogos.
Alguém pode ser puro até as raízes mais íntimas do corpo e da
pessoa sem centrar sua vida nos conflitos de classe – na violência
como arma da razão? Irmão de todos os seres humanos, irradiava
a solidariedade como o calor emana do sol. “Entregava-se” aos
negros, sem recusar-se aos “outros”. O negro comum brasileiro era
tão bom companheiro quanto um chefe tribal africano. Com este,
Bastide falava com o corpo, o olhar e o toque das mãos ou através
da união afetiva como estado de comunhão. A literatura negra,
especialmente brasileira, as religiões e os mitos de raízes africanas
traduziam formas de ser tão respeitáveis e esclarecedoras quanto
tudo que fosse erudito ou acadêmico.
Em Antonio Candido fica-se mais distante dessa purificação
integral. Ela, porém, orienta sua avaliação dos escritores e suas
ideias, em busca das qualidades e aspectos positivos, no respeito
que exige do crítico o balanço mais equilibrado possível. Por essa
razão, procede ao elogio de Oswald de Andrade, mas se identi-
fica, de fato, com o esforço de perfeição de Mário de Andrade.
Desloca-se entre os caipiras com a desenvoltura que alimenta sua
elaboração acadêmica, potenciando o teor humanista da sociologia
em uma tensão máxima com a “neutralidade científica”. Encara o
estudante ou o companheiro inexperiente como se fosse um guia, a
negação do “mestre” e do “sábio”. Examina uma tese ou analisa um
livro com desprendimento e precisão, o que não o impede de ir ao
fundo da crítica criadora (mesmo a negativa). Abraça o socialismo,
aceitando os reformistas e os revolucionários com equanimidade,
embora prefira combater as desigualdades extremas pacificamente
F lorestan F ernandes • 45

ou com o mínimo de violência. Sua ótica do homem e da civilização


difunde-se por sua obra, porque ela não é mera superposição de
convicções em moda. Sua marca de socialismo é tolerante e aber-
ta, facilitando a compreensão de correntes destoantes e o balanço
crítico de seus significados e contribuições.
Acho que Octavio Ianni é um “desconfiado”: submete pessoas
e coisas a um exame atento, preliminar na aceitação ou recusa
posteriores. Sua inteligência e dedicação ao ensino carregam a
tonalidade de um personagem histórico que dizia que o grande
moralista é aquele que avalia os homens partindo dos defeitos. O
socialismo está arraigado à sua concepção da ciência e do mundo.
Antes de exaltá-lo, cumpre escarafunchar o capitalismo em seus
meandros e modificações, não para fazer o prognóstico de que ele
se acha abatido, em vias de extinção. Chegar ao socialismo é muito
difícil, embora seja essa a convicção que projeta sentido trans-
formador às investigações nas ciências sociais e na descoberta de
oscilações dos momentos históricos culminantes. Como se abrem
as oportunidades históricas e como elas podem ser distorcidas ou
sufocadas pelo próprio poder de corrupção do capitalismo? As
tendências históricas são duradouras mas também são explosivas.
O que parece indicar algo – como a consolidação da revolução
proletária – pode esconder a sua antítese. Isso não quer dizer que
o socialismo esteja condenado à aventura ou ao oportunismo.
Deve-se aprofundar o rigor de análise da realidade, apanhando-a,
como queria Marx, enquanto totalidade histórica.
Por sua vez, “lutar pelo socialismo” não implica fomentar
dogmatismos – que podem ser desmentidos no curso da história.
A “boa” prospecção socialista deve começar pelos fluxos mundiais
e chegar aos processos continentais e nacionais. Caso isso não su-
ceda, o socialista segue fórmulas, não descobre ideias em choque
mortal no âmbito da ação. Preservar e inovar são, pois, os dois
lados de uma moeda, cujo valor reside na predisposição do povo e
46 • O intelectual e a radicalização das ideias

das classes despossuídas de participar da história para a alterar. Se


o partido dos rebeldes e dos revolucionários não tiver lucidez para
desencavar o que lhe compete fazer, em dada situação histórica,
perde a “sua” oportunidade. Recomeçar equivale a um passo mais
difícil do que encetar um processo novo, o que tem sido usual no
Brasil e na América Latina. Em resumo, as premissas da renovação
histórica procedem da rebeldia dos mais fracos. Embora muito
numerosos, eles não as concretizam se o conhecimento objetivo e
a ação coletiva eficaz não estiverem ao alcance das mãos.
A última inquirição levanta uma problemática diversa. Ela toma
como foco um brilhante “brasilianista” e “americanista” – Richard
Morse – para assinalar limites e impossibilidades de seu modelo de
interpretação. Como liberal norte-americano típico, seu pensamen-
to possui nuanças conservadoras e acadêmicas que o protegem dos
processos que investiga e da projeção crítica nos sujeitos e situações
examinadas. Companheiro da geração a que pertencemos – An-
tonio Candido e eu –, compartilhou da fermentação das ciências
sociais nas décadas de 1950 e 1960 em São Paulo. Suas análises
incidem sobre a evolução que vai dos primórdios de São Paulo
ao surto comercial e industrial que constituiu a metrópole. Isso
deixa evidentes duas coisas: a essência empírica da monografia e a
natureza de seus andaimes teóricos.
Em cotejo com a tradição histórica local, rompeu com a história
descritiva de um Varnhagen ou de um Taunay. Na esfera teórica
inseria-se nos avanços da demografia, da história e da sociologia
urbanas, florescentes nas universidades dos Estados Unidos. Há, no
entanto, uma brecha entre seu estilo de historiador e obras como
as de Caio Prado Júnior e, mesmo, de Sérgio Buarque de Holanda.
Em comparação com o que tentavam os investigadores brasileiros
da mesma geração e da intelligentsia, sua rotação de perspectivas
representava um salto que ignorava a comunicação da universidade
com a sociedade. Faltava-lhe uma ruptura agressiva com o passado
F lorestan F ernandes • 47

e a visão de um acontecer que não se interrompesse nas instituições-


-chave, na metrópole emergente e na ansiedade de uma “era de
mudança”. Aparentemente, as transformações provinham do tope,
mas as irrupções de baixo para cima eram muito mais possantes.
O paralelo com a evolução dos Estados Unidos poderia ilu-
minar o cenário. Os valores do historiador, porém, restringiram
seu campo de aprofundamento no cosmo moral da cidade e na
fogueira oculta de suas contradições. Os que cuidam da observação
participante deveriam indagar: quem participa, como e por quê?
Repudiando a “história oficial”, engendrava outra, mais complexa,
integrativa e provocadora. Essa “história objetiva” nova provinha
da reclusão do investigador, postado como “estranho” e “neutro”.
Se ele se liberasse da “responsabilidade universitária”, que carregava
como proteção de si próprio diante de iniquidades degradantes,
e introduzisse o pensamento crítico negativo na análise daquela
sociedade in flux – sem trair o toque liberal e sem contaminar-se
com o enfoque subjacente socialista –, ele poderia chegar a uma
reconstrução crepitante. Ela serviria como a contribuição de um
intelectual “estranho”, produtor de ideias assimiláveis pelos ope-
rários e agentes sociais contestadores, que sonhavam com outro
tipo de cidade.
Eis-me ao encerramento desta parte da concatenação. Ela
não se submete ao pessimismo deste fim de século. Ao contrário,
acarreta uma constatação crucial: o socialismo não morreu! Ele
existe e vive na ótica reformista ou revolucionária de subalternos,
operários ou não, e nas atitudes dos intelectuais que alimentam as
correntes das ideias contestadoras. Negar que o socialismo morreu
impõe deveres de explicação, de consciência e de ação. Os que
carregam a afirmação do socialismo como alternativa histórica
situam o capitalismo na orla de uma crise gestada por ele mesmo.
A democracia como valor em si e para si eclode em um palavrório
que encurrala a produção intelectual no equivalente do silêncio
48 • O intelectual e a radicalização das ideias

astucioso e na submissão passiva. Vida e morte, no plano consi-


derado, são processos históricos. Temos de ir além, de enfrentar
a tarefa de “modificar o mundo”, ainda que isso nos custe caro
demais. Não nos subordinamos a uma ótica liberal. Por isso, que
razões poderiam impor o neoliberalismo como fator de controle na
criação do pensamento e nos incentivos do conformismo à ordem
“pós-capitalista”?
LULA E A TRANSFORMAÇÃO
DO BRASIL CONTEMPORÂNEO*

Garanhuns, PE, 1945


Líder sindical e político, muda-se de Pernambuco
para Santos em 1952. Cinco anos depois, em São Paulo,
consegue seu primeiro emprego. Em 1969, como suplente,
integra a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo e Diadema, elegendo-se presidente em 1975,
com 92% dos votos. Reeleito em 1978, participa ativa-
mente das mobilizações e greves do ABC, onde organizou
a grande manifestação de 10 de maio no estádio de Vila
Euclides, que reuniu cem mil trabalhadores. Com a fun-
dação do Partido dos Trabalhadores em 1980, torna-se
seu primeiro presidente. Participa da criação da Central
Única dos Trabalhadores (CUT), em agosto de 1983.
Como candidato a deputado federal, nas eleições de
1986, recebe a maior votação do país e passa a integrar a
Comissão de Sistematização da Constituinte. Nas eleições
presidenciais de 1989 recebe 31 milhões de votos; perde
para Fernando Collor por 4 milhões de votos. Em 1994,
concorre novamente à presidência da República.

Quando se fala na candidatura de Lula à presidência e se


procede a restrições de senso comum ou de má-fé, convém lem-
brar que ele foi deputado constituinte e, por sinal, o que recebeu a
maior votação em todo o país. Exerceu seu mandato com exemplar
dedicação e, como presidente do Partido dos Trabalhadores (PT),
organizou um governo paralelo que não deu trégua ao ex-presidente
Collor, posteriormente apanhado em falcatruas e deslizes que o
levaram ao impeachment. Se as elites econômicas, políticas e mi-
litares não tivessem jogado o peso de sua resistência contra Lula,


*
Publicado na revista Praxis, Belo Horizonte, n. 2, set. 1994, p. 7-25.
50 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

ele teria sido eleito presidente do Brasil e nós não enfrentaríamos


as crises política, econômica, social e cultural que reduziram a
frangalhos a República pós-ditatorial.
Depois de ouvir vários pronunciamentos e opiniões dos que
não chegam a compreender a grandeza de um candidato com o
passado, o presente e o futuro de Luiz Inácio Lula da Silva, e mo-
vem contra ele uma campanha de difamação sem precedentes e
também sem dignidade, achei que seria oportuno reunir algumas
reflexões que colocam o Homo politicus na esfera da razão. Todos
merecem respeito, mesmo os condenados, e ninguém pode ser acu-
sado por ato que não praticou – e jamais o faria – por sua natureza
e concepção do mundo. Até hoje, o presidente do PT honrou a
herança dos deserdados e seu dever de agir para modificar o cruel
destino deles na sociedade em que vivemos.
Os parágrafos seguintes visam dar uma ideia de conjunto
do significado de sua vitória sobre as vicissitudes da pobreza e o
compromisso tácito que ele assumiu de suprimir a barbárie – ou
pelo menos diminuí-la – em nosso país.
As sociedades capitalistas com extremas desigualdades econô-
micas, sociais, culturais, raciais, políticas e regionais enfrentam
problemas e dilemas históricos de difícil solução. Se as elites das
classes dominantes forem muito egoístas e praticarem, em associa-
ção com as nações capitalistas hegemônicas, formas de espoliação
e exploração sistemática dos sem classe, das classes trabalhadoras e
de ralas classes médias impotentes, a violência e a contraviolência
instauram-se de modo aberto ou oculto no estilo normal de vida.
As religiões e o espírito humanitário de raiz ideológica difundem
a submissão passiva e promessas mais ou menos utópicas. Mas a
própria estrutura íntima da situação histórica impõe a opressão
automática e a repressão crescente como garantia de “defesa da
ordem” e de “proteção legítima dos interesses de todos”, mesmo
das vítimas. O corolário dessa realidade vem a ser a brutalização
F lorestan F ernandes • 51

da pessoa humana, o desemprego em massa ou em proveito dos


que mandam, a fome e a ignorância dos subalternos e oprimidos.
Estes só mantêm a memória folclórica ou mística e a esperança
mágico-religiosa ou teologal, frutos da doutrinação inerente à
dominação de classe. Ou sucumbem aos costumes e à tradição
ou aceitam a expulsão do meio, que pode tornar-se crônica, sob o
modelo de migração espontânea, expiatória ou organizada como
empresa lucrativa.
Esse tipo de sociedade capitalista já foi designado como pré-
-capitalista (por conter elementos débeis e dispersos decorrentes
do capital entesourado ou aplicado em transações elementares) e de
subcapitalista (por ele arbitrar o trabalho pelo custo da subsistência
vegetativa e anulá-lo com o contrapolo do capital, submergindo-o em
uma dinâmica própria, na qual o agente econômico se autodeter-
mina e gera explorações quase escravas, semisservis e neocoloniais).
A alteração dessa sociedade mais tradicionalista que capitalista,
embora receba as duas qualificações com múltiplas ambiguidades
e pelo fetichismo do dinheiro é intrincada e sinuosa. Ela depen-
de antes de fatores exógenos, que de influências desagregadoras
imediatas. Sua inclusão em uma “sociedade nacional” com fortes
impulsos de mudança global tem sido a via principal da mudança.
Ocorre que ela pode associar-se à “ordem nacional” como se esta
fosse o escudo de sua persistência e, mesmo, do seu fortalecimento.
As elites das classes dominantes adquirem, por várias razões, o
empenho de manter sua estabilidade e os intercâmbios parasitários
resultantes. Isso bloqueia as populações praticamente segregadas
dessas sociedades, que ficam excluídas das perspectivas das mu-
danças da “sociedade global”. Entregues ao despotismo local,
vicejam ou florescem segundo ritmos seculares muito lentos, com
frequência, deslocados subitamente por regressão.
Elas ficam, portanto, dependentes da evolução – ou da revo-
lução – da “sociedade nacional global”. Certas sedições desabam
52 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

graças a fluxos de insurgência carismática fundada na fé ou por


rebeliões que reúnem, como heróis, bandidos supostos ou reais.
Deixam atrás de si manchas ou rios de sangue. E atiçam a opressão
e a repressão, revelando que os “compadres” e “protegidos” fictícios
são inimigos da ordem em potencial e “precisam ser contidos pelo
cabresto”. Não há dó nem piedade. A alternativa “obediência cega” é
única, válida para todos. As máscaras dos de cima não se destinam
a esconder. São uma espécie de perversidade que sulca mais fundo
nos corpos e nos espíritos dos “homens de confiança”. Estes doam
tudo nessa inversão rústica da vinculação ao senhor – a vida, o
trabalho, a honra, sua e da família – e o que parecem possuir não
lhes pertence. O direito do cutelo da escravidão era, pelo menos,
mais claro. O direito do chefe rústico não conhece fronteiras. Ele
toma, compra, vende, dá e pune conforme suas conveniências e
interesses preestabelecidos. O espaço do pobre não se dissociou
por completo da tragédia do homem pobre livre sob a escravidão.
Ou ele ganha o mundo ou fica atado à sina de reproduzir esse
autoritarismo destrutivo no âmbito do lar e da localidade. Se for
um valente fica. Se for um forte busca outras plagas, tangido pela
seca, pela fome ou pela dor de “não ser gente” perante si mesmo
e diante de seus iguais.
E a instauração de uma “sociedade nova”? Ela se deu dentro
do colonialismo e do capitalismo associado. Para chegar a ela não
basta percorrer longas distâncias – é preciso ter algo de seu, para
enfrentar a misteriosa jornada e vencer o duplo apego à terra e
ao temor das crenças mágicas e religiosas. Arrancar as raízes é
morrer um pouco. Quebrar-se por dentro e arder por fora. A ex-
pulsão, ainda que inexorável, exige um complemento. A atração
compensadora, que procede do desconhecido, só encontra aval no
“basta!” ou em falatórios e acenos dos que se julgam melhor nas
comunidades estranhas em que vivem. Assim como se formou
a tradição da permanência, forjou-se a contradição de “sair do
F lorestan F ernandes • 53

buraco”, de desenterrar-se. Este componente psicossocial é chave.


Ele também representa um “chamado da terra”, contudo de uma
terra incógnita e impenetrável enquanto não adquire força a cor-
rente de migração interna, voluntária ou involuntária. A progra-
mação capitalista resolveu o impasse, sob a pressão inflexível da
necessidade de mão de obra barata, o que quer dizer abundante e
desqualificada. Logo, correntes humanas de diversas procedências
assumiram a figura de torrentes de seres que despencavam para o
Sul ou para Brasília, na conquista de trabalho, comida e “um lugar
para arranchar-se”. Por caminhos tortos, fortuitos e imprevisíveis,
o Brasil não se nacionalizou. Mas estabeleceu-se uma trama de
veias que estendeu e aprofundou certas ligações orgânicas entre
os Brasis carregados nas costas desses desterrados, que destruiu
identidades rústicas ou semirrústicas e se projetou nos oprimidos
das cidades e nelas agitou os germes de uma idade nova, complexa
e promissora. Esses proscritos fundiam-se aos poucos com outras
gentes e aprendiam, ao mesmo tempo, ofícios novos e aspirações
incentivadoras. Tinham de se tornar trabalhadores, para “ganhar
a vida” sob uma modalidade ignorada de relação com o capital,
e urbanitas, moradores de alguma região ou bairro da cidade.
Engolfavam-se em dois mundos desafiadores e que lhes abriam
as portas para outros desdobramentos, que complicavam e en-
riqueciam sua ressocialização. Conquistaram, pois, a identidade
diferenciada emergente com enormes sacrifícios.
Na cidade, por precárias que fossem as fases de adaptação e
assimilação, os migrantes assinalavam seu valor. A humanização
da pessoa sofria seus percalços. Mas ela recebia apoios diversos. Na
fábrica e nos sindicatos ou em suas igrejas e na vizinhança: aqui
a regra era outra. “Quanto tens, quanto vales”, como prescrevia
o provérbio. Não atravessaram de um “quadro rústico” para um
“quadro urbano” – nem todos se davam bem na aventura. Muitos
se viram atirados de um estilo de miséria para outro, bem como
54 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

de uma rusticidade para outra. Uma legião de “malditos da terra”


iria travar contato com o universo que o diabo repeliu. As ondas
sucessivas e as pessoas particulares obteriam quinhões diferentes de
exclusão, segregação, desemprego, fome, mendicância, prostituição,
crime esporádico e organizado, violências sangrentas, trabalho
e emprego, solidariedade por vezes acima da raça e geralmente
através da cor, educação escolarizada e ascensão social. Os núcleos
de suporte, além do sindicato, da fábrica, das igrejas, abrangiam
também a escola e os bairros. O importante é que a rebelião achava
vários canais de manifestação simultânea e que o “lugar ao sol”
podia ser encontrado e perseguido como uma impulsão de raça,
de classe e de religião. O inconformista não precisava calar-se sob
os tacões de mandões de mentalidade estreita e de tradições su-
focantes. Havia alguma plenitude para a vida e para o sonho que
ecoavam no ambiente.
Coincidências históricas fizeram com que o grosso das migra-
ções se desse em períodos de crises econômicas, sociais e políticas
– particularmente depois de 1935, sob duas ditaduras implacáveis,
que temiam os de baixo e pretendiam submetê-los a uma tutela
secularista (não a do “coronel” ou do “chefe rústico”). Quanto mais
estimulava a transferência para os centros urbanos dos confins dos
sertões ou das pequenas cidades e das comunidades locais, mais a
burguesia se sentia insegura com esses deslocamentos que encarava
como incontroláveis. A mão de obra barata ameaçava sair muito
cara! O edifício de paz burguesa elevou-se, assim, sobre os ombros
pisoteados dos trabalhadores e a deterioração interna dos sindicatos.
A ditadura de Getúlio Vargas imitou fórmulas italianas dentro de
uma maldade tipicamente brasileira. Enquanto parecia servir aos
operários e aos sindicatos, fomentou o sindicalismo amarelo, o
líder sindical pelego a serviço do Estado e, por seu intermédio, da
burguesia e dos desígnios do Ministério do Trabalho. Organizados
ou não, portanto, os líderes sindicais e os operários tangenciavam
F lorestan F ernandes • 55

a vontade burguesa, como cauda de suas relações com o Estado


e dos seus propósitos sociais. A ditadura militar foi mais direta:
definiu, como ponto de partida, a greve como “perigo social” e os
operários como “inimigos de classe”. O Estado, simulando pairar
acima das classes, de fato, favorecia pacífica ou repressivamente as
posições da burguesia, nacional e estrangeira.
Mas havia outra coincidência histórica, mais marcante, à qual
poucos prestam atenção. Entre a República Velha, o Estado Novo
e a Terceira República em trânsito final, transcorreram processos
marcantes. A imigração estrangeira trouxera para o Brasil técnicas
sociais de luta de classes, de uso de greves, de grêmios de auxílio
mútuo e de partidarismo político. Os imigrantes consideravam-
-se cidadãos e impunham respeito aos contratos, graças aos
consulados de seus países (algo típico, por exemplo, nos conflitos
entre os colonos italianos e os fazendeiros). O grão de sal político
nunca foi tão denso quanto alguns analistas acreditam. Ele era
suficiente, porém, para dissociar diversos segmentos da massa
dos trabalhadores da ideologia das classes dominantes. A maioria
poderia imitá-las. Grupos ativistas sindicalistas e principalmente
anarquistas opunham tenaz resistência ao falso republicanismo
vigente e faziam exigências quanto aos níveis dos salários, às con-
dições de trabalho e ao trabalho de mulheres, crianças e velhos,
que eram uma vergonha social. Surgiram os sindicatos de profissão
e os confrontos da cavalaria e das tropas para sufocar as greves e
restringir sua liberdade de ação. Irrompeu a atuação contestatória
dos anarquistas e dos anarcossindicalistas, mais tarde rearticulada
pela presença do Partido Comunista. Estava montada uma arma-
dilha de contra-ataque à opressão e uma visão de “ordem social”
que não se circunscrevia à “legalidade”.
O crescimento urbano-comercial, as tendências à industriali-
zação e os efeitos contraditórios da I Guerra Mundial e da crise
econômica de 1929 construíram as bases de algo indesejável pela
56 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

burguesia: o trabalhador criou, como agente coletivo, por suas


mãos, o trabalho como categoria histórica. Ele deixara para trás
sua agregação amorfa. Entre os sociólogos, somente Max Weber,
fundado em Karl Marx, dera suficiente importância a essa trans-
mutação do aprendiz, do artesão e do assalariado de alta qualifi-
cação em contraponto da burguesia. Como categoria histórica, o
operário e o sindicato assumiam funções simétricas de autodefesa
e de contra-ataque às de que dispunha a burguesia. É claro que o
movimento histórico era, aqui, incipiente. Mas ele foi suficiente-
mente intimidador para obrigar a burguesia a ceder parcelas de
seu poder político indireto no Estado, através de um governo que
se iniciou sob os auspícios do liberalismo e terminou em uma di-
tadura civil com suporte militar. Esse acontecimento não punha,
de imediato, os trabalhadores assalariados ou semiassalariados ao
abrigo dos riscos da opressão e da repressão. E rendeu o controle
de algumas instituições através das quais as classes dirigentes iriam
imiscuir-se, mais tarde, no íntimo da formação do operário e inter-
vir em suas lutas sociais. Todavia as classes assalariadas mostraram
seus punhos à ordem existente e davam o primeiro giro histórico
para sua conversão em classe em si. Duas décadas mais tarde elas
efetuariam o segundo giro, nas grandes greves dos anos 1950.
O que é mais curioso, nesse panorama, é a fragilidade da bur-
guesia e a fraqueza correlata dos trabalhadores em tirarem maior
proveito de seu avanço societário. Após o governo Goulart, o que
assistimos equivale a um recuo burguês, com a entrega negociada
de todo o poder aos militares que comandaram o golpe de Estado
e a contrarrevolução, em nome da defesa da ordem, da família e
da democracia (um retrocesso a “Deus, Pátria e Família”), que os
elementos fascistas não ousaram conduzir às últimas consequên-
cias. Os trabalhadores e seus sindicatos e confederações foram
amordaçados e sua sobrevivência subordinava-se à submissão
integral. Como os cristãos em Roma, os que se mantiveram em
F lorestan F ernandes • 57

condições de desobediência civil foram obrigados a calar e a ran-


ger os dentes. Jogados no fundo do poço, de lá se ergueram por
conta de sua resistência – defensiva e ofensiva – e da colaboração
ativa que receberam dos rebeldes ocultos (várias personalidades e
instituições-chave nas quais a ditadura receava tocar).
O movimento sindical tornou-se um verdadeiro movimento
social, que se recusava a agir como cauda da burguesia. Os sindi-
catos mais ousados trataram de organizar-se nas bases, dentro da
fábrica, sabotando a produção, inventando novos tipos de greves
que o despotismo burguês não sabia combater e organizando o
próprio sindicato como comunidade de diálogo e de luta – a escolha
ficava por conta dos patrões. No final, o ciclo militar não se encerra
completamente. Mas deixa progressivamente o campo de batalha
preservando o poder das classes dominantes e suas elites e sem
meios para deter o avanço dos trabalhadores como classe em si. O
furor do movimento operário, disposto a avançar se conseguisse as
condições necessárias dentro da classe e da sociedade civil, sofreu
um declínio sensível (seu radicalismo terminou onde começaria a
luta de classes sem quartel).
O trabalho, como categoria histórica, ficara plantado no centro
dos dinamismos que passaram a orientar o funcionamento do Esta-
do e todas as atividades centrais do governo, de significado político
nacional. Sem completar seu processo de integração como classe
em si, os trabalhadores e seus movimentos sociais atreveram-se a
exigir democracia com liberdade e igualdade de oportunidades.
Dada essa moldura, é possível recolocar-se o principal enigma
de nossa história. Por que as contradições internas tão chocantes e
bárbaras não desencadearam as reformas e revoluções capitalistas,
pelo menos a partir das fraturas da ditadura militar e da oposição
frontal da conciliação pelo alto das diversas facções da burguesia?
Não basta apelar para o passado colonial, imperial ou da Repú-
blica oligárquica. Tampouco é suficiente rastrear fatores e efeitos
58 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

explicativos ligados à difusão das relações de dependência com as


sucessivas formas de imperialismo. Alguma coisa brecou a história a
partir de dentro. A paralisia burguesa nasce dos meandros de elites
conservadoras, estamentais ou de classes. Mas elas concentraram,
como minoria, a riqueza, a cultura e o poder e não revelaram ne-
nhuma predisposição para tirar o país do atoleiro, como seria do
seu interesse maior. Por quê? Não existem atavismos históricos e,
depois das ebulições que fermentaram, até sob a extrema opressão
e repressão de 1964 em diante, elas foram impelidas ao conhecido
lema: agir ou perecer. A fraqueza dos de baixo, determinada por
condições que se reproduziram em situações variáveis, foi a espi-
nha dorsal do ânimo quebradiço daqueles que deviam chocar-se
com a ordem “legal” e rebentá-la de alto a baixo. Fragilidade dos
privilegiados por fraqueza dos oprimidos, apesar de suas retaliações
locais ou regionais, permitiu que o capitalismo que nos coube fosse
um capitalismo selvagem. Os de cima imprimiam continuidade
à “legalidade”, que pertencia só a eles. Os de baixo não davam
um basta, porque temiam agravar seus males. Os de cima co-
mandavam sem receber dos de baixo uma cobrança definitiva. O
desequilíbrio modificava muito pouco a transformação da ordem
ilegal, coberta pelo manto falso de um Estado de direito fictício.
Os de baixo poderiam enfrentar e alterar tal ordem social, podre
por fora e por dentro!
Demorou quase um quarto de século para que essa reciproci-
dade de impossíveis principiasse a balançar e apontasse em outra
direção, a do esboroamento. Em termos relativos, os de baixo deram
um salto inferior à sua situação de classe real, nas zonas rurais e
urbanas (mesmo considerando-se comunidades metropolitanas de
maior porte e São Paulo, a megalópole). É necessário que se descon-
tem os anos de compressão inicial e as fragmentações incessantes
que isolaram o campo da cidade ou que alcançaram maior fer-
mentação depois da década de 1950, no interior dos sindicatos, das
F lorestan F ernandes • 59

confederações e dos partidos de esquerda. O “inimigo principal”,


no centro dos embates, fomentava as divisões e dissensões. Além
disso, as classes dominantes promoviam conciliações sucessivas,
impondo-se como alvo o “inimigo número um da ordem pública”.
Tais obstáculos atrasaram uma evolução tendendo gradualmente
para o clímax. Não impediram que a situação de classe dos de
baixo se consolidasse, que as convergências mais importantes
aflorassem e que elas se irradiassem por toda a sociedade. Novos
aliados, procedentes dos setores ameaçados das classes médias, de
entidades radicais da sociedade civil e de parcelas consistentes da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (comunidades
de base, instituições formais constituídas para defrontar-se com
problemas específicos, a Teologia da Libertação, minoritária mas
combatente da linha de frente, e a própria política global da CNBB,
favorável ao inconformismo como fonte de equilíbrio democrático
nos conflitos de classe) reforçaram o ativismo militante das forças
sociais subalternizadas.
O reformismo ofereceu o ponto de apoio para uma política de
saltos múltiplos concomitantes dos de baixo, embora o fermento
revolucionário definisse utopias concretas realizáveis (ou seja, a
superação da opressão capitalista por dentro da ordem). A situação
de classe sofria alterações que provinham dos interesses e valores
variáveis dos agentes coletivos e sua diferenciação constante. Os
movimentos sociais imbricavam tanto na situação de classe condi-
cionante, quanto na diferenciação que atingia, ao mesmo tempo,
alta mobilidade e rapidez com habilidade espantosa. Em plena
crise da ditadura militar na decomposição do poder coercitivo do
governo e das classes dominantes sobrou maior espaço histórico
para a desobediência civil dos oprimidos. Pela essência de sua longa
maturação, os movimentos operários e sindicais marcharam à fren-
te, selando a sorte da ditadura e a natureza das crises econômicas
e políticas subsequentes. Mas seguiram-se realizações paralelas
60 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

do movimento negro (o movimento social mais antigo, pois se


organizara como tal em seguida ao abolicionismo dos brancos para
os brancos), o movimento das mulheres (pouco eficaz na prática,
por dissociar a liberação das mulheres do núcleo ideológico dos
conflitos de classes, mas de elevado efeito de demons­tração), o
movimento indígena (confinado em áreas restritas, mas impor-
tante por conferir peso social ao genocídio como prática cotidiana
e estratégica), o movimento dos sem-terra (subestimado em suas
origens, mas herdeiro de uma tradição revolucionária da luta pela
democratização da posse da terra e da política agrária, cujo cresci-
mento e combatividade o colocaram no eixo das alianças de classes
expropriadas e da desobediência civil como métodos de desagrega-
ção da ordem ilegal vigente), o movimento das crianças de rua e
de combate à fome (que carregava consigo o desmascaramento do
caráter cristão e pacífico de uma democracia que congelava, mes-
mo após a ditadura militar e a Constituição de 1988, a cidadania,
os direitos sociais fundamentais e a democracia) etc. Constata-se
que tudo que o bloqueio militar pretendia estabilizar moveu-se
inapelavelmente; e o retrato do Brasil, falseado pela burguesia nos
idos de 1960, impusera-se sem que nenhuma força das elites das
classes dominantes pudesse impedir.
A Constituição de 1988 legitimou a ação defensiva e ofensiva
dos movimentos sociais, dos seus agentes humanos e da democracia
como estilo de vida, apesar das disparidades aviltantes impostas
pela estrutura da sociedade e dos dinamismos da cultura ou da
presença exorbitante do Estado no patrocínio dos mais iguais.
“Inacabada”, ela ficou a meio caminho, sem levar até o fundo as
exigências e expectativas do povo. De qualquer modo, avançou
requisitos para outras conquistas (que não foram implantadas por
desinteresse de regulamentações legais que deveriam nascer no
próprio Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, três poderes
que equacionam a República democrática em função do statu quo,
F lorestan F ernandes • 61

respeitados os interesses e os valores das classes dominantes e do


monopólio que elas exercem através da representação). Criou-se um
contraste exasperante. O país já está caminhando sobre seus pés e
pensando segundo sua cabeça. Mas permanece nos três poderes da
federação, principalmente no Legislativo, invertido, de cabeça para
baixo. Minorias articuladas formulam o que ele deve ser, enquanto
maiorias em rápido processo de articulação veem-se confinadas ao
papel de espectadoras, de coadjuvantes ou de fonte de legitimação
alienada. Eis aí o erro de cálculo: as eleições disputadas por Luiz
Inácio Lula da Silva servem de marco e de sinal de que as coisas não
são mais assim... Mitos e realidades do passado remoto e recente ou
do presente in flux foram ou estão sendo desmascarados e desmora-
lizados. Os de baixo, finalmente, equiparam-se à situação de classe
de que desfrutam concretamente. Ou os de cima modificam seu
horizonte político e seu comportamento ultracentralizador ou logo
não acharão quem os obedeça. O medo dos deputados e dos sena-
dores diante de atitudes de repulsa e rejeição serve de contraprova
dessa descrição. A ordem legal está em contradição com a ordem
social. Esse é o fato crucial. Se o equilíbrio instável entre ambas
não proceder de cima, ele terá de impor-se de baixo para cima. As
crises e as perdas serão maiores – e piores para os de cima. Mas o
capitalismo possui uma lógica política. Os privilegiados da terra
não poderão usufruir para sempre de certas vantagens pré e sub-
capitalistas, e chegou o momento de uma escolha: ou eles toleram
reformas e revoluções inerentes ao capitalismo ou eles regredirão
a uma posição neocolonial na era dos monopólios gigantes e de
seu tipo de imperialismo “conquistador”. A alternativa procederá
de uma rebelião popular incontrolável. O povo deixou de ser o
espectador surdo, mudo e manietado.
Esta excursão talvez seja longa demais para o objeto restrito
deste texto. Não me toca a ambição de situar o herói na história em
processo. Ela se impunha, todavia, para a compreensão do significa-
62 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

do histórico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele é parte do turbilhão


em que se gestou a sociedade brasileira de nossos dias. Era preciso,
pois, evocar fatos e processos que ainda não são claros à percepção
das elites econômicas, intelectuais e políticas. Para elas, ele ainda é
o nordestino que “teve sorte” e que “soube aproveitar-se da boa-fé
dos operários do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo”.
Não aprenderam nada com suas mutações de importância histórica.
O ensaio de Frei Betto sobre Lula (Lula, o metalúrgico, São Paulo,
Estação Liberdade, 1989) os auxiliaria a conhecer o homem, o
operário, o sindicalista, o deputado, o candidato à presidente da
República e o líder do PT. Mas o que menos se quer é conhecer as
faces históricas de um político visceral, que atraiu profundamente
a curiosidade de Ulysses Guimarães, que soube pressentir a sua
importância no atual cenário político. Aos que ignoram os diversos
aspectos de sua carreira, tomo a liberdade de indicar a biografia
simples mas significativa de Frei Betto.
Há na vida de Luiz Inácio Lula da Silva os anos que abrangem
a tragédia do excluído e oprimido e o período em que sua ativi-
dade pessoal o colocou em interação com os ideais proletários de
transformação da sociedade brasileira. É difícil, mas clara, essa
separação. Uma infância de nordestino pobre de uma família
grande, mas instável, que esteve mais em companhia da mãe do
que do pai. Uma família, enfim, de corte tradicionalista, que se
viu arrancada do solo e, pelas contingências da pobreza, deslocou
o seu núcleo para o Sul, arrastada pelas correntes migratórias.
Sofrimento, trabalhos penosos e incertezas delimitavam seu ho-
rizonte cultural. Depois de alfabetizado, a primeira realização de
monta confunde-se com o curso no Senai (Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial) e a incorporação à condição proletária.
As experiências na fábrica alargaram e enriqueceram aquele hori-
zonte cultural. O choque entre o tradicionalismo e o radicalismo
operário deixou sulcos profundos na percepção e explicação da
F lorestan F ernandes • 63

realidade. Luiz Inácio não era uma personalidade qualquer. O


modo pelo qual redefiniu seguidamente seus rumos evidencia isso:
uma capacidade incomum de autoaprendizagem e de reflexão sobre
si e sobre os outros situam-no, ao mesmo tempo, como alguém
que quer romper a rotina opressiva do ambiente, inclusive a da
fábrica. Há muitas lacunas sobre os pontos altos e baixos dessa fase
de desabrochar de um rebelde potencial. O quanto experimentou
dos influxos desenvolvimentistas, comunistas e anticomunistas,
correntes entre operários? E como as opções se dirigiram para o
trabalho, sujeito ao despotismo patronal intermediado por chefes
de seções e fiscais de turma, e pela castração política do trabalha-
dor em período anterior à ditadura militar, mas intensificada pelo
aparato policial repressivo? O quanto de atitudes negativas ou
positivas recebeu de um sindicalismo atrelado ao Estado, cão de
guarda dos patrões, e como elas desafiaram a sua argúcia crítica?
Quão extensas e profundas foram suas participações dos grupos
conspirativos, que reergueram o movimento operário por dentro
da situação de trabalho e formularam as exigências de um “novo
sindicalismo”? Qual era o grau de tensão emocional e racional
que teve o condão de vincular o operário a aspirações de liderança
que culminavam em descontentamento e ruptura com os padrões
vigentes de acomodação cultural e política? Como se explicava o
anseio de renovação sem uma cultura socialista sedimentada (o
que se nota até hoje)?
Visto de fora, a primeira marca perene da presença de Luiz
Inácio aparece no remanejamento do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo – afirmar-se contra a ordem existente no mundo
operário sem romper os limites do inconformismo aceito pelos
capitalistas. Os patrões ficaram espantados com um líder sindical
que formulava as reivindicações salariais e de melhoria das con-
dições de trabalho e de maior segurança para o trabalhador sem
tempestades em copo d’água. Um líder operário intransigente, mas
64 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

que pretendia negociar sem ameaças. Elaborou-se, pelos meios de


comunicação de massa, o estereótipo do novo tipo de liderança
sindical, preso aos objetivos diretos e indiretos das negociações e
liberado das controvérsias ideológicas. Os empresários sentiam-se
estimulados a trocar opiniões e a ceder onde parecia inevitável.
Ele ganhou o qualificativo de “líder sindical inteligente”, como se
fosse o padrão do “trabalhador exemplar” no capitalismo. Outro
passo incisivo de Luiz Inácio voltava-se para a técnica existente
das formações sindicais. Não era fácil combater o sindicalismo
dos pelegos e dos líderes sindicais oportunistas, atados pelas duas
mãos ao governo e aos interesses patronais. Sem dúvida, esse sin-
dicalismo teve o seu momento. Mas ele se esgotara econômica e
politicamente. Os riscos do controle estatal e da autocracia patronal
ficaram evidentes ao longo da contrarrevolução. Como também
se patenteara que a força social dos operários, dos sindicatos e das
confederações volatizava-se com indesejável facilidade. Sob muitos
aspectos, aquela força social, intrínseca à situação de classe avança-
da, negava a capacidade de luta social dos trabalhadores e isolava-se
dentro de uma concha compensada por mera propaganda pseudo-
partidária e ideológica. Por fim, o último marco: como difundir
concepções inovadoras de organização e de luta sindicalista, dados
tantos obstáculos. Foi neste momento que conheci Luiz Inácio e
seus propósitos mais amplos. Li várias cartas e documentos que
propunham aos sindicatos uma espécie de união interpares. Jamais
os trabalhadores, os sindicatos e as centrais operárias chegariam
a algum lugar sem fundir suas diversas frentes de luta social e de
acumulação de forças. A situação de classe imperante favorecia
esse salto maior. A resistência ergueu-se de barreiras psicológicas,
nascidas da ambição pelo poder tão arraigada na liderança sindical,
de corte antigo ou moderno. A natureza agreste e de cooperação
competitiva dos sindicalistas não deixa de ser compreensível. Eles
não são anjos. Mas Luiz Inácio nunca conseguiu conectar suas
F lorestan F ernandes • 65

formulações sobre o sindicalismo com os sindicatos vivos e suas


lideranças. Teve que se defrontar com um desvio que redundou,
mais tarde, na fundação da Central Única dos Trabalhadores
(CUT) como agregação de estados vassalos e autônomos.
Essa passagem do operário a líder sindical e as duas veredas
que se abriram para um novo estilo de negociação com os patrões
e uma tentativa de articulação entre sindicatos e centrais operárias
assinalam um ápice de carreira política. Os êxitos do Sindicato
dos Metalúrgicos de São Bernardo difundiram-se pela sociedade
e promoveram o realce que ele conquistara nos duros embates da
classe operária. Nos dois pontos, porém, ele venceu pela metade e
teve de engolir muitas amarguras. Os empresários logo descobri-
ram que ele não era o “nosso homem no meio operário” e fizeram
uma contramarcha de descrédito pessoal que não encontrou res-
sonância porque os interesses de Luiz Inácio incrustavam-se entre
os operários e as populações pobres no vir a ser de classe social
em si. No final, dissiparam-se as confusões de negociação aberta
como vitória do patrão, o que lhe foi muito útil. Os líderes sin-
dicais pelegos, muitos com identidades políticas radicais e servos
de seus partidos, e até de aparência revolucionária, moveram céu
e terra contra uma ameaça inconcebível. Perdiam prestígio social,
máquinas do partido e posições de negociação com a burguesia
que arruinaram projetos políticos que transcendiam aos sindicatos
e às centrais operárias. Tomaram a si aquilo que os empresários
faziam, engalfinhando-se em pugnas que implicavam a desmora-
lização de Luiz Inácio. Este, exibindo uma ponderação matreira,
fez um giro de 180 graus, que iria culminar na instalação do PT
e na fundação da CUT.
Sem bases teóricas mais amplas, partiu da situação de classe
dos trabalhadores e dos oprimidos em geral. No conjunto, a série
de eventos encadeados envolvia processos econômicos, culturais,
sociais e políticos. Como a descompressão da ditadura permitia
66 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

aproveitar o caminho percorrido de maneira mais sólida, Luiz


Inácio começou pelo que era mais urgente e estava ao alcance das
mãos. Nos confrontos com os capitalistas nacionais e estrangei-
ros viu o que era óbvio: os trabalhadores careciam de um polo
político próprio para dinamizar a sociedade civil segundo seus
interesses, valores e ideologia. Não podiam “cercar” o inimigo
real. Contando com um partido, porém, teriam como organizar-se
para os embates nas altas esferas do poder político específico, isto
é, estatal e governamental. De imediato, o alcance da inovação
parecia pequeno, pois outros partidos anteriores, como o PCdoB
(Partido Comunista do Brasil) e o PCB (Partido Comunista
Brasileiro), e formações radicais de classe média, parassocialistas,
haviam falhado nessa tentativa. As circunstâncias históricas eram
outras. O PT mourejou para crescer, mas em uma década lograra
êxitos sem precedentes. Com o PT, o operário chega ao Congresso
Nacional e trava batalhas cujo alcance pode ser medido pelo que
conseguiu, aliado a outros partidos de esquerda ou a facções de
centro-esquerda. Luiz Inácio lança-se, por essa via, a um cenário
nacional ávido por ouvi-lo e por segui-lo. Suas práticas de liderança
combinavam um máximo de democratismo com um mínimo de
autoritarismo. Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte,
punha as questões em debate na bancada do PT, sem quase inter-
ferir nas discussões; por fim, entrava em cena com uma solução
inclusiva (isto é, que apanhava os problemas pela raiz). Assim surgia
a proposição a ser posta em votação, quase sempre aprovada pela
maioria. O produto consistia na decisão do partido, negociado
depois por ele próprio, por outros membros individuais ou por
pequenos grupos da bancada. Os confrontos – de grande ou pe-
quena monta –, se davam nas diversas comissões. Nelas firmava-se
o ganha, perde ou modifica, com a bancada sempre pronta para
reunir e retomar os debates de aceitação ou rejeição e o líder atento
ao desenrolar simultâneo das soluções de real importância para o
F lorestan F ernandes • 67

PT. Nesse sentido, revelou-se um líder de espírito político aberto,


que concedia prioridades visíveis a questões ligadas aos assalariados,
aos sindicatos operários e aos confortos ou necessidades de que são
privados os setores desvalidos da população.
A CUT foi concebida como a esfera de auto-organização
livre dos trabalhadores. Ocorreram, dentro dela, conflitos que
viscejaram por causa de curto-circuitos entre modelos mais de-
mocráticos de organização (práticas que cresceram sob o jugo
ditatorial) ou de sindicatos associados por convergências nascidas
da própria condição operária, mas intermediadas desde a origem
até o topo. A rapidez com que a CUT se firmou na constelação
empresarial e política parece surpreendente. Mas é preciso atentar
que ela fortalecia sindicatos que, isolados, teriam baixo poder de
barganha e porque ela preenchia o vácuo legado pela arquitetura
da “paz burguesa” montada por Getúlio Vargas e sustentada pelos
governos posteriores. Luiz Inácio desempenhou distintos papéis
burocráticos, políticos e de relações entre estratégia e tática dentro
do movimento operário na formação e evolução da CUT. Recu-
sou qualquer fusão entre as duas instituições – a CUT e o PT –,
embora fosse evidente que pôs lado a lado um braço econômico
forte das lutas sociais dos trabalhadores e um braço político ativo
para alçar aquelas lutas ao lugar onde elas se decidem. Na prática,
prevaleceu um intercâmbio orgânico, que separava idealmente as
duas instituições, mas as impulsionava à unidade ou à convergência
de objetivos nucleares. As greves gerais e, principalmente, a elabo-
ração da Constituição de 1988 deixam esse efeito em claríssima
evidência.
Os elos dessa exposição encadeiam operário, líder sindical e
vocação política invulnerável. Esta merece saliência especial: ela
impregna todas as atividades de Luiz Inácio Lula da Silva e bro-
tou assim que surgiram as oportunidades para sua eclosão. Foi o
que lhe proporcionou vantagem sobre a concorrência com outros
68 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

líderes sindicais, alguns de mais renome na ocasião. Foi também


o que lhe permitiu sobrepor-se à intimidação empresarial e acu-
mular vitórias em várias greves complicadas, nas quais lhe valeram
sua intuição para transtornar técnicas desgastadas de conflito e
recorrer à imaginação política para antecipar os resultados alter-
nativos possíveis. Essa vocação política natural refinou-se com
notável rapidez e impunha a procura de assessorias confiáveis e
competentes. Seguindo seu procedimento habitual, os assessores
definiam relações entre meios e fins, forneciam dados conclusivos,
mas nunca deram a fórmula recomendável e suscetível de correções
por ensaios de erros e acertos. Portanto, a vocação política nascia
da complexa combinação de experiência, informações fidedignas,
intuição e imaginação política invulgares.
Na Assembleia Nacional Constituinte pude acompanhar como
sua personalidade política funcionava, a mente criadora de um
autêntico “homem de ação”, imbuído de uma práxis de “transfor-
mação do mundo”.
Os momentos típicos de sua carreira política poderiam, pois,
englobar funções extrapolíticas e parapolíticas. Como líder sindical,
por exemplo, estimulou greves e manifestações operárias carregadas
de significado político: greves que desafiavam os limites prescritos
pela ditadura aos trabalhadores, aos sindicatos, aos cidadãos e às
instituições tidos como “perigosos”; ou o grande comício reali-
zado em Vila Euclídes, em 1980 – que transtornavam qualquer
disposição de tolerância pelo regime. O melhor, entretanto, seria
demarcar em sequência os momentos específicos de competição
pelo poder político-estatal. Além da candidatura frustrada para
ocupar o governo do Estado de São Paulo, a listagem abrange:
a candidatura de deputado federal constituinte; a candidatura à
presidência da República, quando caiu nas armadilhas das elites
das classes dominantes, da difamação proliferada pelos meios de
comunicação; o uso pioneiro do “gabinete oculto” (denominado
F lorestan F ernandes • 69

“governo paralelo”) que favoreceu uma investigação sistemática


do desgoverno Collor (fonte de sondagens e conhecimentos que
transcendiam ao âmbito de ação de uma tentativa de modernização
arcaizante e de técnicas de rapinagem que associam os empresários
nacionais e estrangeiros no solapamento da soberania nacional);
a sua “campanha civilista” – através das várias caravanas da cida-
dania – que percorreu, de Norte a Sul, todas as regiões do Brasil,
com o fito de desvendar as realidades ignoradas por um governo
isolado em Brasília, prisioneiro de seu degredo geopolítico e mi-
litar; a atual candidatura à presidência, amparada por alianças
com os partidos da esquerda e pelos radicais de centro-esquerda,
dispostos a modernizar o país fora e acima de acordos tutelados e
monitorados a partir das corporações gigantes, das nações centrais
e de suas conglomerações político-diplomáticas, controladas pela
Europa, Estados Unidos e Japão.
Não se trata de voltar ao desenvolvimentismo e maiores dispa-
ridades econômicas, raciais, culturais, regionais e políticas. Tam-
pouco de desembarcar com a maior pressa e cegueira possíveis em
uma globalização mistificada e em um neoliberalismo falsificado.
Mas também não há uma obsessão pelo isolacionismo nacionalista
que pretenda refazer os caminhos dos Estados Unidos e do Japão
fora de época. O PT, em suas principais correntes internas, é um
partido dos trabalhadores que aspiram construir uma sociedade
nova sob o socialismo. Todos sabem o quanto isso é impraticável
observando a velha estratégia do “quanto pior melhor”. Pior para
quem? Melhor para quem?
Cabe, neste escrito, uma digressão. As duas tendências mais
fortes no PT ou levam à social-democracia ou ao socialismo re-
volucionário. Nenhuma delas é suicida. No ABC do marxismo
aprendemos que o grau de desenvolvimento capitalista condicio-
na as possibilidades e as perspectivas de uma revolução social.
Ninguém parece disposto a pagar preço inútil de uma revolução
70 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

social predestinada ao malogro e à regressão. Por isso, temos de


desenterrar e de refinar duas antigas noções empregadas pelos
clássicos da reforma social e da revolução social: as de “revolução
dentro da ordem” e de “revolução contra a ordem”. Resistir a essas
noções traduz medo diante do capitalismo e perda de confiança no
socialismo como alternativa de civilização sem barbárie.
O programa do PT visa saturar os requisitos da primeira noção.
A burguesia, na Europa e nos Estados Unidos, deu pleno curso à
revolução burguesa por causa do poder de pressão dos de baixo
e de seus aliados nas classes sociais intermediárias. A revolução
burguesa só foi realmente burguesa em seus primórdios, quando
ela se debatia com o antigo regime e buscava o apoio dos de baixo
(nos Estados Unidos a equivalência desse processo precisa ser tirada
dos aristocratas e escravocratas do Sul). Ao irromper como poder
absoluto a burguesia tentou brecar a revolução. Não conseguiu
porque o desenvolvimento capitalista acelerado pôs frente a frente
os antagonismos de classe, alimentados pelos que rejeitavam a
interrupção da revolução. No Brasil e na América Latina, a revo-
lução burguesa foi interrompida em níveis precoces, favorecendo
a coexistência do arcaico, do moderno e do ultramoderno.
Ficaram, assim, imensos vazios não preenchidos pela ocupação
remunerada, pela eliminação de desigualdades iníquas, de padrões
indignos de vida, de ignorância e de ralas oportunidades educa-
cionais, de cidadania restrita e de democracia como estilo de vida
dos privilegiados. A segregação e a discriminação étnicas e raciais
não foram arroladas, porque elas constituíam, por si mesmas, a
base de uma burguesia colonialista e ultraespoliativa, como se a
semiescravidão adquirisse estabilidade na sociedade civil capitalista.
O programa do PT ergue-se como uma ruptura com o passado
colonial, com o neocolonialismo instaurado com a transferência da
Corte e com a situação de dependência que desatou aparências da
revolução burguesa ao que se restringia à importação de técnicas
F lorestan F ernandes • 71

sociais, culturais e políticas manipuladas em favor de privilégios


de minorias organizadas sob os modelos de dominação de castas
ou de classes, de acordo com os ritmos e rumos das transformações
internas. A questão nada tem a ver, hoje, com a restauração de uma
revolução burguesa exógena em pleno trópico. Mas de debelar os
problemas e dilemas sociais provocados pela inércia das elites dos
estamentos (no passado remoto) e das classes sociais (no passado
recente e no presente). Como diriam os educadores da década de
1930: a educação não é privilégio. É primordial democratizar a
sociedade civil e o Estado. O desenvolvimentismo criou esperanças
que nasciam frustradas, porque ignorava as reformas e revoluções
decorrentes do capitalismo maduro. Não é preciso repetir o elenco
das mudanças estruturais. É suficiente colocá-las em seu lugar e
ressaltar que elas são transitórias para os que almejam o socialismo
como meta final. Dadas as alterações ocorridas nas relações de
classes e a capacidade de impor mudanças capitalistas de baixo
para cima, o conjunto de transformações profundas confunde-se
com a revolução dentro da ordem. O capitalismo não voa em ca-
cos pelos ares. Porém, a ruptura com superposições de estruturas
coloniais, neocoloniais e de dependência persistentemente redefi-
nidas, segundo estratégias de determinadas nações hegemônicas,
de conglomerados de corporações gigantes e de uma globalização
do mundo do capital, deixa de funcionar como ameaça, fator de
deformações e limite ao desenvolvimento capitalista interno. A re-
volução permanente assume feições complicadas na atual periferia.
A opção de Luiz Inácio por visões prospectivas de desenvolvi-
mento capitalista interno – que o incorpora às experiências social-
-democráticas – são nítidas. A ruptura interna já é, por si mesma,
um fardo pesado para um governo e um Estado em crise e desafia
a resistência sociopática à mudança estrutural das elites das classes
dominantes. O reformismo e o revolucionarismo circunscrito (às
relações raciais ou à educação, por exemplo) podem ser aceitos por
72 • L ula e a transformação do B rasil contemporâneo

várias classes sociais e facções de classes sociais. E não negam, por


si mesmos, e tampouco impedem a revolução contra a ordem se
o clamor pelo socialismo difundir-se como fogo no palheiro. Um
partido dos trabalhadores não pesca soluções confinadas – ele
transcende o statu quo e a ordem social existente. Para que ele ganhe
maior espaço histórico impõe-se que os inconformistas atinjam a
radicalidade em condições históricas nas quais possam instituir
a democracia da maioria, combinando igualdade com liberdade
e outros alvos concomitantes ou sucessivos. Luiz Inácio silencia
sobre tais desafios, porque sabe que a revolução dentro da ordem já
inscreve os antagonismos sociais na dinâmica normal das relações
de classes e em uma rede ampla de transformações que, se forem
concretizadas, converterão o Brasil em um país capaz de produzir
– e não só consumir – a civilização moderna. Enquanto os neoli-
berais sonham com o enterro do socialismo, a própria sociedade
capitalista favorece o seu renascimento nos moldes das exigências
históricas e conforme os princípios filosóficos que o erigiram na
invenção mais sublime da mente criadora dos seres humanos.
AS FACES HUMANAS DE JOSE MARTÍ*

Havana, 1853 – Boca de los Ríos, 1895


Poeta, político e escritor cubano, desde muito jovem
lutou pela independência de seu país, tendo sido por duas
vezes condenado à prisão e deportado para a Espanha.
Residiu no México, Guatemala, Venezuela e Estados
Unidos, onde publicou diversas obras. Trabalhou incan-
savelmente pelo desenvolvimento da América Latina, que
inspirou também sua obra literária com a qual antecipou
o modernismo. Além de artigos para jornais e revistas,
escreveu Epistolario, Versos sencillos, Versos libres, La
pasión de Cuba, La pasión de América.

Finalmente temos em português uma coletânea de textos de


José Martí e podemos divulgar entre os jovens uma das mani-
festações mais puras e profundas do pensamento revolucionário
latino-americano: Nossa América (com introdução de Roberto
Fernández Retamar e prefácio de Fernando Peixoto, São Paulo,
Hucitec, 1983).
Essa iniciativa editorial tão importante merece algumas consi-
derações especiais. Primeiro, pelo que ela ensina sobre o que deve
ser uma antologia. Roberto Fernández Retamar realizou uma obra
criadora na seleção dos textos. Vários assuntos são focalizados,
através de escritos efetivamente antológicos.
Só um conhecimento maduro da obra de Martí e um fino
espírito crítico permitiriam condensar em pouco mais de 250
páginas as múltiplas facetas de um pensador versátil, inventivo e
provocante. Segundo, pela excelência da introdução, que desvenda


*
Resenha do livro Nossa América, coletânea de textos de José Martí, publicada por
Leia Livros, abr. 1984.
74 • As faces humanas de J ose M artí

a grandeza de uma personalidade literária e política ímpar, com


a probidade requerida pelo personagem e a ousadia intelectual de
que ele sempre foi um paladino. Portanto, uma introdução que
preenche todos os requisitos de um guia de estudos exemplar. Ela
própria é um texto marcante e antológico.
Qual é a função de um texto de uma coletânea? Não é só abrir
uma porta (ou algumas portas) da produção de determinado au-
tor. Ele deve, sobretudo, permitir um convívio: o acesso à pessoa
de José Martí; e proporcionar um diálogo: o que ele nos convida
a pensar sobre suas ideias, suas posições e suas lutas, ainda hoje
vivas e muito atuais. Ele está presente de corpo inteiro, em sua in-
tegridade e humanidade. Um homem modesto e sincero, amante
de Cuba, identificado com os pobres, os excluídos e explorados,
tão capaz de ser sensível aos encantos de Marx, de um Bolívar, de
um Whitman ou de um Wilde, quanto de mostrar-se rude diante
dos maus e extremamente duro diante da opressão; objetivo e
realista a ponto de combinar a intuição do poeta à sensibilidade
do jornalista e à precisão do cientista social; acima de tudo um
lutador e um educador, pronto a servir, a colocar o seu talento e
o seu ardor revolucionário a serviço da liberdade de Cuba e da
emancipação da Nossa América (a América de origem indígena,
africana e ibérica). Todas essas faces humanas de José Martí são
contempladas nos textos, e ele se dirige ao leitor como se o tempo
tivesse sofrido uma rotação e nós nos tornássemos os destinatá-
rios primordiais dos seus artigos ou os ouvintes imediatos de suas
preleções. As verdades que ele propaga são nossas verdades e sua
figura se desprende dos textos como se estivéssemos em contato
direto, numa conversa prolongada e necessariamente envolvente,
que o repõe como um mestre das novas gerações.
Seria possível apanhar cada um dos escritos e sobre eles montar
um comentário exigente. Todavia, não acho que seja essa a melhor
maneira de receber este livro e de encaminhar as relações com o
F lorestan F ernandes • 75

autor. A antologia projeta o homem (é curioso, ela poderia dar


ensejo a que refletíssemos sobre os prodígios de seu talento). Esse
homem que era filho de espanhóis pobres e que se converteu no
paradigma do ser cubano dentro de uma perspectiva libertária, igua-
litária e humanitária, que sofreu todas as amarguras da perseguição
política desde a juventude, recebendo como prêmio à sua coragem
indômita desterros sobre desterros, e que nunca se abateu diante
do infortúnio, soube aproveitar esses desterros e infortúnios para
descobrir o que era a Espanha, a América Latina ou os Estados
Unidos. Amadurecer dentro da dor, aprender a ser humano através
do sofrimento, preservar os ideais e fazê-los crescer sem tirar os pés
da terra e sem converter a utopia (ou o sonho) em um mecanismo
compensatório, seja no plano psicológico, seja nas esferas da cultura
e da política. Esse homem teria de tornar-se um sábio e, por ser
um revolucionário convicto, teria de infundir à ideia e à prática da
revolução um caráter maduro, refletido e dialético. Como salienta
em um dos escritos: “Não é à forma das coisas que nos devemos
ater, e sim ao seu espírito. O real é o que importa, não o aparente.
Na política, o real é o que não se vê” (p. 203).
Acaba sendo difícil “etiquetar” um revolucionário desse porte.
O seu texto sobre a morte de Marx não revela o socialista. Porém,
o seu magistral painel sobre “A guerra social em Chicago” não
poderia ser elaborado sem uma forte identificação com o socialismo
e o anarquismo. Os que ficam dentro da fórmula do “democra-
tismo radical” ou do “democratismo revolucionário” não cobrem
o percurso do seu pensamento crítico. Tome-se, por exemplo, os
seus painéis sobre os Estados Unidos, ou a sua ininterrupta reflexão
sobre o que é a outra América, que nasceu de uma fusão de raças
e de culturas e que exige uma revolução igualitária para não se
reproduzir como um prolongamento das contradições da Europa
feudal e capitalista, como, segundo ele, ocorreu na América do Nor-
te. José Martí recusa todos os paroquialismos – até mesmo os que
76 • As faces humanas de J ose M artí

poderiam proceder do anarquismo, do socialismo e do comunismo.


Não obstante, o perímetro de seu pensamento revolucionário ex-
cluía o que se deu como história nos Estados Unidos (a associação
da riqueza às formas mais egoístas e odiosas de dominação racial e
de luta de classes) e incluía como premissa teórica a mais completa
igualdade econômica, racial e social de todos os homens. Tratava-se
de um equacionamento precursor do nacionalismo democrático,
igualitário e libertário que floresceria muito mais tarde através das
“projeções sociais do Exército Rebelde”, em Cuba, ou da revolução
social na Nicarágua.
Os Estados Unidos cumpriram uma influência capital na for-
mação e no amadurecimento desse pensamento revolucionário. Os
que ficam muito rentes à conhecida frase “vivi no monstro e lhe
conheço as entranhas” (p. 252) podem simplificar as coisas. José
Martí era um homem extremamente objetivo e honesto: reconhe-
cia a variedade e a multiplicidade dos Estados Unidos; por isso,
separava com clareza onde estava e no que consistia a grandeza da
República do Norte e qual era o seu calcanhar de aquiles, aquilo que
repetia a América Latina desprezada ou reproduzia uma realidade
histórica ainda pior. De um lado, os Estados Unidos representavam
objetivamente um anti, aquilo que não era compatível com uma
sociedade equitativa, socialmente justa, racialmente humanitária,
politicamente democrática. Eles não comportariam a revolução
que José Martí acreditava prestes a nascer em Cuba e nas Anti-
lhas – a revolução que liberaria a Nossa América dos perigos que
a ameaçavam e que faria nascer um novo equilíbrio em todo o
mundo contemporâneo. De outro lado, José Martí compreendeu
com toques de gênio o destino imperial dos Estados Unidos. Sobre
isso escreveu várias vezes páginas realistas e vibrantes. A revolução
na América Latina não passava, apenas, pela negação do que era
a ordem econômica, racial, cultural, social e política dos Estados
Unidos. Ela teria, para converter-se em realidade histórica alterna-
F lorestan F ernandes • 77

tiva, de neutralizar e de destruir a impulsão imperial que provinha


da propensão ao neocolonialismo norte-americano. Sobre isso, ele
não cultivava ilusões. Ou revolução em Cuba, nas Antilhas e no
resto da América Latina. Ou submissão ao jugo imperial despótico,
embora hipócrita, da pátria da “burguesia puritana”.
É notável que essas ideias encontrassem ressonância mas, ao
mesmo tempo, ficassem mais ou menos na penumbra. Qualquer
estudioso universitário – do México ao Brasil ou à Bolívia – sabe
de cor as reflexões de Tocqueville (principalmente as mais inspi-
radas e as mais favoráveis à propagação do mito da democracia
norte-americana). No entanto, José Martí não era um viajante
simpático ao “novo mundo”. Era um emigrado e como tal sofreu
na própria pele os dramas que descreve com referência aos negros,
aos italianos, ou aos irlandeses católicos nos Estados Unidos. Ele
não engrandecia o ponto de partida; sofria a realidade esmagadora
de uma sociedade consolidada em expansão. E por aí descobriu
o essencial: era preciso avançar na direção de um pensamento
revolucionário próprio da América Latina e forjar soluções revo-
lucionárias específicas, que não poderiam ser importadas nem da
Europa nem dos Estados Unidos (de onde saíram a velha domi-
nação colonial e o novo imperialismo). A revolução não é só um
“produto político”. Ela é também uma realização histórica, à qual
o intelectual da Nossa América deve devotar humildemente a sua
vida, toda a sua vida! Essa é a maior lição de Martí, homem terno
e sonhador, mas um revolucionário implacável.
SIGNIFICADO ATUAL DE
JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI*

Lima, 1895-1930
Político e pensador peruano, foi o primeiro inte-
lectual americano a aplicar de forma rigorosa o modelo
marxista do materialismo histórico à realidade concreta
da América hispânica. Em 1919, com bolsa de estudos,
transferiu-se para a Itália, onde experimentou a influên­
cia de pensadores marxistas. De regresso ao Peru em
1923, integrou-se à Aliança Popular Revolucionária
Americana (Apra), encabeçada por Víctor Raúl Haya
de la Torre. Após abandonar as fileiras do Apra, criou a
revista Amauta (1926-1930), através da qual difundiu
suas teorias políticas. Em 1928 desempenhou papel fun-
damental na fundação do Partido Comunista Peruano.
Nesse mesmo ano publicou sua obra capital, 7 Ensaios
de interpretação da realidade peruana.

O recurso à diversa realidade entre Europa e


América Latina, como defesa perante o eurocentris-
mo, já era uma característica do movimento intelec-
tual latino-americano daqueles anos. Já estava, por
exemplo, no discurso de Haya [de la Torre]. Só pouco
depois, com Mariátegui, pôde registrar-se a passagem
a uma atitude de toda uma perspectiva cognitiva, em-
bora não seja claro se isto foi o produto de uma elabo-
ração consciente. Não foi, em todo caso, sistemática.
(Quijano, 1991, p. XI)

Já se discutiu muito as contribuições de Mariátegui: com vistas


à sua formação, maturidade intelectual e política, compreensão do
marxismo e dos múltiplos temas que abordou com originalidade


*
Publicado originalmente, em comemoração ao seu centenário, no Anuario
Mariateguiano, Lima, Amauta, v. 6, n. 6, 1994.
80 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

e espírito criativo, relações com o mundo histórico circundante e


exterior, integridade, penetração e denodo pessoal. Nenhum dos
assuntos e atributos chegou a ser esgotado. Ele escapou, entretan-
to, às falhas da memória coletiva e sua presença superou todas as
formas de isolamento que ameaçaram sua obra ainda em vida. Isso
aconteceu porque foi mais que “um fermento radical” da ordem
– um autêntico revolucionário, que exerceu influências pioneiras
com raízes profundas na realidade americana.
Interessa-nos o que ele representaria, hoje, graças às peculia-
ridades do seu pensamento e ação, nesta trágica etapa de negação
do socialismo. Parece que o capitalismo oligopolista automatizado
e “global” suprimiu para sempre as diversas correntes do anarquis-
mo, do socialismo e do comunismo. O marxismo, em particular,
espelharia não a humanidade em vir a ser e o seu futuro, mas as
quinquilharias arcaicas dos meados do século XIX, na Inglaterra
e na França. Estraçalhado pelo apogeu da Guerra Fria, seria o
índice de debilidades congênitas e dos paradoxos que esmagaram
“ideólogos dogmáticos” com suas fantasias exóticas. Adeus ao
marxismo e às suas ilusões!...
É uma aventura arriscar-se às indagações que proponho. Contu-
do, o significado do marxismo lançou centelhas luminosas sobre os
dilemas teóricos e práticos com os quais Mariátegui se confrontou,
embora em instantes que descortinavam fortes esperanças e nos
quais as querelas apenas desvendavam os germes de uma evolução
previsível. Ele não usava anteparos estreitos e sucumbiu, menos
que outras figuras marcantes do marxismo, às acomodações que
cegaram ou paralisaram sucessivas gerações de revolucionários
experimentados.
É obvio que Mariátegui não engoliria a mistificação do “socia-
lismo está morto”. Ele sabia amadurecidamente que o capitalismo
não consegue resolver os “problemas humanos”, que ele gera e mul-
tiplica. O “axioma” de Schumpeter, segundo o qual o capitalismo
F lorestan F ernandes • 81

só sucumbiria por seus êxitos, jamais caberia em sua cabeça. Sua


convicção era clara: os progressos do capitalismo redundam em
aumento geométrico da barbárie. Essa realidade sempre foi subes-
timada de uma perspectiva eurocêntrica. Um marxista peruano,
todavia, não tem porque se enganar a respeito. Basta olhar para trás
ou para o presente. Êxitos e progressos trazem consigo contradições
crescentes – no extremo fatal, implosivas. Uma civilização que
repousa na riqueza, na grandeza e no poder por quaisquer meios
exige um sistema social de exclusão, opressão e repressão. Ela pode
manter-se e reproduzir-se, liberando suas potencialidades fascistas
e racistas, ou seja, a devastação da natureza, da humanidade e da
cultura. É sua estrutura, funcionamento e ritmos históricos que
arruínam seus alicerces e sua continuidade. Não importa se os
agentes históricos sejam proletários ou todos os que repudiam a
iniquidade como estilo de vida.
Por isso, o diálogo com Mariátegui deve possuir a natureza de
uma opção lúcida. O que está dado como uma “sociedade aberta”
ou como uma “ordem social-democrática” fecha-se para a imensa
maioria (silenciosa ou contestadora) e só oferece “democracia” às
elites no poder (isto é, às elites das classes dominantes). A questão
não abarca todas as técnicas, instituições e valores sociais dessa
civilização. Mas seus fundamentos axiológicos e tecnológicos,
asfixiantes e incoercivelmente corrosivos. Portanto, nos dias que
correm, Mariátegui – ao contrário de tantos anarquistas, social-
-democráticos, socialistas e comunistas – encontraria dentro de si
a indagação fundamental: como representar e explicar a totalidade
histórica intrínseca ao capitalismo monopolista automatizado? O
que ele promete de novo à evolução da humanidade e da “civiliza-
ção pós-moderna”? O que ele reserva aos de baixo, à “escória”, ao
“trabalhador mecânico” inativo, aos estratos inferiores e interme-
diários das classes médias? O que ele remete e arranca da periferia,
subcapitalista ou em desenvolvimento capitalista, e àqueles países
82 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

nos quais a lenta transição para o socialismo não foi ainda arrasa-
da? Ciência, tecnologia, tecnocracia racionalizada foram, por fim,
colocadas a serviço de “homens livres e iguais” ou servem apenas
à concepção romana de riqueza, grandeza e poder – repetida no
“destino manifesto” dos Estados Unidos e na conglomeração de
potências que encarnam a mesma aspiração de atingi-la? E qual
é a essência civilizatória desse capitalismo ultramoderno? Ele
contém a propensão para abolir as classes, a dominação de classes
e a sociedade de classes? Ou as oculta por trás de uma miragem
pela qual a “ideologia” escamoteada reaparece com vigor nunca
pressentido no “neoliberalismo”?
Os 7 Ensaios de interpretação da realidade peruana e Em defesa
do marxismo delimitam a postura de Mariátegui. O intelectual
orgânico da revolução não se trai e tampouco atraiçoa os ideais,
as certezas e as esperanças que a tornam uma realidade próxima
ou remota. Os que têm sorte vivem os momentos decisivos da
revolução. Os que devem trabalhar por seu advento ou contra as
adversidades que os detêm e parecem suprimi-los “para sempre”
multiplicam sua capacidade de luta política e refinam suas qua-
lidades críticas. De um lado, porque precisam ir até o fim e até o
fundo – sem ambiguidades e fraquezas, que facilitariam a desmo-
ralização e a adesão aos vitoriosos por circunstâncias. De outro
lado, porque as revoluções proletárias irromperam em sociedades
de desenvolvimento desigual, atrasadas diante dos recursos da ci-
vilização capitalista e irremediavelmente pobres, “colonizadas” ou
neocoloniais e dependentes. O marxismo não compendia receitas,
seja da “sociedade ideal”, seja dos meios para chegar à transição
propriamente dita e ao comunismo. As ilusões eurocêntricas
difundiram uma ótica revolucionária que não procede de Marx
nem de Engels, identificados com os proletários e suas miseráveis
condições de vida na passagem da reprodução simples para a acu-
mulação acelerada. Nada ruiu “para sempre”. O que se evidencia
F lorestan F ernandes • 83

são as dificuldades inerentes a uma revolução tão complexa, que


tem em mira uma nova sociedade, uma nova civilização e um
novo ser humano.
Vejo em Mariátegui o intelectual marxista mais puro e apto
para perceber o que sucedeu; e, se estivesse vivo, para traçar os
caminhos de superação que ligam dialeticamente a terceira revo-
lução capitalista à plenitude madura do marxismo revolucionário.
Marx referiu-se uma vez aos vários marxismos possíveis. O erro
decorrente das primazias eurocêntrica e bolchevique, no seio do
marxismo como filosofia política, emana de uma obnubilação his-
tórica. Acreditaram na inevitabilidade do que deveriam provocar e
orientar como agentes coletivos; esqueceram a afirmação essencial
de Marx sobre os diversos graus do desenvolvimento capitalista e
seus impactos “naturais” sobre o curso das revoluções, capitalista
e socialista. Simplificando o marxismo, complicaram suas tarefas
práticas e bloquearam ou enfraqueceram os ritmos históricos das
duas revoluções, encadeadas por Marx e Engels objetivamente e
na noção concreta da “revolução permanente”. As distâncias que
separam Mariátegui de Haya de la Torre, por exemplo, originam-
-se de sua compreensão sem cesuras do marxismo. Só ele podia
compreender os ritmos lentos e graduais da revolução peruana e
a aceleração contínua de processos que afetavam o nacionalismo,
o populismo e o anti-imperialismo. A vitória destes só fincava na
realidade as premissas históricas do ciclo revolucionário decisivo,
que Haya de la Torre não pressentia nem desejava. Patenteia-se,
pois, o quanto Mariátegui transcendeu a órbita do marxismo
triunfante do seu tempo e o quanto ele compartilha conosco a
necessidade de ir mais longe ou perecer.
O desafio frontal do entroncamento do fim do século XX com
o século XXI refere-se ao socialismo e ao comunismo. Nunca o
que parece morto esteve tão vivo e chamejante. As contradições
do capitalismo monopolista da era atual encurtaram o espaço até
84 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

da social-democracia associada à reprodução da ordem. A Guerra


Fria e a recuperação da hegemonia norte-americana somam-se
aos conglomerados capitalistas continentais e à expansão sem
precedentes do mercado, sob o impulso da interação do capital
financeiro, empresas gigantes e tecnocracia automatizada. O
capitalismo monopolista perdeu, no entanto, a faculdade de
esconder-se por trás do espelho. Ele não pode ocultar ideologi-
camente as periferias que nascem e crescem dentro e através dele.
O “neoliberalismo” reduz-se a uma representação rudimentar do
modo de produção capitalista e os abusos internos e externos cres-
centes não alimentam qualquer utopia propriamente dita (“liberal
e libertária”). Assim, ao retirar o socialismo e o comunismo da
cena histórica, inocula e insufla nas massas insatisfações antica-
pitalistas. Ao mesmo tempo, os países que permanecem fiéis ao
marxismo e ao comunismo (apesar das aparências), como China e
Cuba, são focos de tensão e desempenham o papel de “aliados pe-
rigosos” ou simulam o papel mais arriscado de pseudossatelização
imperialista. Convivemos, pois, com uma situação histórica rica
para o socialismo e o marxismo revolucionário. Circunstâncias
que fomentam o inconformismo a partir de dentro e desembo-
cam em uma das saídas possíveis, seu enlace com o socialismo e
o marxismo, como alternativa para uma ordem social totalitária
que ignora suas estruturas e dinamismos reais. Os países que ainda
não se desprenderam do ventre materno revolucionário fazem
tudo o que podem, ainda que de forma oscilante, para conciliar
as pressões “neoliberais” com a continuidade e o fortalecimento
da pré-transição para o socialismo. Ao preparar-se para “ganhar
fôlego”, definem seu próprio campo no plano mundial e contra
as tendências da “globalização capitalista”.
Mariátegui não chegou a conhecer esse trâmite trágico. Mas
intuiu para onde caminhava o capitalismo monopolista – visível
em suas entranhas na América Latina (e no Peru de modo espe-
F lorestan F ernandes • 85

cial) – e apreendeu com dolorosa clareza os entrechoques da teoria


com a prática marxista na URSS (e como eles se equacionavam
externamente, graças à arquitetura e à relação entre meios e fins
na Internacional Comunista). Sempre foi discreto na defesa in-
transigente do marxismo. Sua discrição, porém, procedia de um
embrião dialético, não da ingênua propensão para forjar lealdades
destituídas de sentido revolucionário. Afastou-se o quanto pôde de
algo como a heresia vulgar. Sem confundir, porém, o marxismo
com os desvios mais ou menos graves da revolução russa pós-
-bolchevique e sua irradiação internacional. Suscitou desconfianças
iníquas e terminou envolvido em incompreensões que culminaram
em seu “congelamento programado”. Essa experiência dramática,
que se deu com outras figuras de projeção equivalente, conferiu
maior profundidade à sua ótica marxista. Eu a encaro como o fator
primordial da grandeza de sua perspectiva histórica e do conteúdo
cerrado adquirido por sua visão do marxismo, em todos os seus
desdobramentos.
O sofrimento, a autossuperação e a sublimação consciente
de esperanças e decepções permitiram-lhe interpretar o presente
como antecipação do futuro. Evitou as banalidades, que não
cabiam dentro de si mesmo e em sua relação com um complexo
mundo bipolarizado. E livrou-se, como Gramsci, dos grilhões
que poderiam, em outras circunstâncias psicológicas, morais
e políticas, forçá-lo à capitulação ou à alienação. Demonstrou
não só o seu estofo. Afirmou-se como o intelectual marxista por
excelência da América Latina. É pena, por isso, que tenha se
contido com tamanha hombridade diante da exposição de suas
descobertas e inquietações. Além de sua condição saliente de
“apóstolo do marxismo”, ele rastreia as premissas históricas do
marxismo como teoria e prática, no universo com o qual terçou
suas armas (delimitando, implícita ou explicitamente, como as
86 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

referidas premissas se definem, concretamente, nas Américas


Latinas do seu tempo).
Nada nos põe mais longe da “morte do socialismo” e do “fim
do comunismo”. Como pensador, nunca simplificou as coisas para
ninguém. A democracia não era um “valor universal”, um valor em
si e por si. Na mais precisa tradição clássica do marxismo, ela não
era uma instituição a ser herdada, mas construída coletivamente
pelos seres humanos, ao longo de um movimento interrompido
exatamente pela dominação de classe da burguesia. A transição
deveria quebrar a inércia e repor o processo em termos de novas
contradições, pois é da natureza do socialismo que a maioria com-
ponha, de fato, a premissa lógica e histórica de sua constituição e
dissolução. A sua plenitude dependeria, porém, dos meios e técnicas
socialistas de autoemancipação coletiva suscetíveis de sustentar,
intensificar e renovar o advento do comunismo. A luta de classes
teria de exaurir-se historicamente para que isso acontecesse. O jar-
gão dos “traidores do marxismo”, que racionalizam sua escabrosa
conversão “democrático-burguesa” com fórmulas vazias, está fora
de lugar e pressupõe uma mistificação inqualificável. Desse ângulo,
Mariátegui é o farol que ilumina, dentro da pobreza e do atraso da
América Latina, os limites intransponíveis da civilização capitalista
e as exigências elementares da “civilização sem barbárie”, que as
revoluções proletárias não lograram concretizar. Era cedo demais?
Elas perderam o rumo? Essas são perguntas que só a história em
processo poderia responder. As equações de Mariátegui classifica-
ram precisões contidas na tradição clássica, paradoxalmente como
se ele fosse um Max Weber a serviço do comunismo (repetindo,
de certa maneira, a tragédia de Gramsci).
É natural que o Peru ocupe uma posição privilegiada no pen-
samento de Mariátegui. Ele procede, não obstante, rente à tradição
marxista – o Peru não se descola das várias Américas e da inserção
passiva-ativa de todos os envolvidos nos mundos históricos dos
F lorestan F ernandes • 87

“conquistadores”, antigos e modernos. A sua condição de peruano é


básica. Ele tinha atrás de si e sob seu olhar uma grande civilização,
o destino dos seus portadores e os seus escombros. Isso o impelia
ao estudo do passado e do presente que nenhum outro marxista
de envergadura poderia realizar. E o obrigava não só à busca de
analogias e de diferenças que procediam ou da situação homóloga
das “nações emergentes” das Américas de matriz ibérica, ou do
caráter variável da colonização e da independência como processos
de longa duração. Sua inteligência sociológica foi, portanto, impul-
sionada para a investigação macro-histórica de modelo marxista.
Ela percorre um vasto horizonte e tem de esclarecer-se na Europa,
como fonte original do tipo de colonização direta, posta em prática
pelos invasores-exploradores, e nos Estados Unidos, pioneiros de
um estilo de imperialismo despótico e devastador.
O resumo acima é supérfluo e desnecessário. Arrisquei-me a
fazê-lo porque ele explica o que o intelectual polimórfico procurava
em seus estudos, na Europa e em suas investigações concentradas.
Ele não se aferrou ao marxismo por uma sedução da moda. O seu
percurso europeu se inicia sob auspícios intelectuais diversos, que
podiam encaminhá-lo por outras vias menos ásperas. Os 7 ensaios
de interpretação da realidade peruana permitem sondar por que ele
mergulhou sem retorno nessas vias e, depois, ultrapassando-as,
propôs-se enriquecer o marxismo fora e acima dos eixos eurocên-
tricos. Os que leram o breve mas pujante ensaio de Marx sobre a
Índia arriscariam um paralelo – mas ele é totalmente falso. Ainda
na órbita dos escritos de Marx, não seria descabido a introdução à
Crítica do direito em Hegel, que inaugura no pensamento europeu
a temática da sociologia da dependência nas relações da Alemanha
com a França. Ora, Mariátegui explorou essa temática em uma
direção menos dolorosa e cruel. O paralelo, embora brilhante,
também é falso. A atração de Mariátegui pelo marxismo, malgrado
outras influências divergentes e em dados momentos muito fortes,
88 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

brota da descoberta de uma resposta à sua ansiedade de observar,


representar e explicar processos históricos de longa duração e de
uma proposta revolucionária concomitante, que vincula dialetica-
mente passado, presente e futuro. Colonização e descolonização,
revolução social e ser peruano e latino-americano entrelaçavam-se
irreversivelmente. A captura da inteligência de Mariátegui não
provinha da escala de grandeza de Marx como filósofo, crítico da
ciência social existente e combatente do socialismo revolucionário
consequente. Ele deitava raízes mais profundas no esclarecimento
do ser, no entendimento integral de uma civilização nativa estiolada
pela colonização e na necessidade de romper com um opróbrio que
esta só explicava parcialmente.
Acredito que esta abordagem global apanha propensões inte-
lectuais abertas (por seu talento e pelas oportunidades culturais
da sociedade peruana e do mundo europeu) e decide as razões da
opção­pelo marxismo de um intelectual refinado, de vasta cultura
e de muitas inquietações – e elucida porque a escolha chegara tão
fundo à mente e ao coração de Mariátegui. Entenda-se, porém, que
essas mesmas razões sobrepunham-se a um impulso criador igual-
mente agudo, que o retirava da condição de prosélito. À medida que
suas indagações avançam, ele se mede com a tradição marxista mais
pura e exigente; e se eleva, dentro dos marcos culturais, peruanos
e latino-americanos, ao nível dos fundadores do marxismo, como
produtor de conhecimentos e homem de ação. Se tivesse vivido
até hoje, travaria muitos embates a favor e contra deslocamentos
das revoluções proletárias e não fugiria às constrições impostas por
esta época, que alarga e complica as tarefas teóricas e práticas dos
que se pretendem marxistas.
É evidente o que assinala esta última excursão sobre Mariátegui.
Após percorrer a epopeia e a queda da civilização inca e esquadri-
nhar os aspectos incisivos da evolução da economia, da sociedade
e do Estado no Peru, ele firmou um tirocínio sobre os conflitos
F lorestan F ernandes • 89

de párias, classes trabalhadoras, estamentos senhoriais e classes


dominantes que afirmava a revolução socialista como o ponto
de chegada e de partida de uma nova época. Aprendeu, em vida,
que a civilização capitalista possui desproporcional capacidade de
autodefesa e de contra-ataque para derrotar as insurreições e para
inibir revoluções proletárias vitoriosas em ascensão. Seus dirigentes
recorrem simultaneamente ao mercado, à mudança tecnológica,
à ciência, à cultura de massa, ao desenvolvimento e à retração da
produção, ao militarismo, às alianças contingentes ou permanen-
tes, à geopolítica, à diplomacia, à guerra etc., para estraçalhar ou
interromper insurreições internas e revoluções promissoras no
exterior. Trata-se, portanto, de uma civilização capaz de interferir
nos ritmos históricos cruciais e de tirar proveito imediato e de longo
prazo dessa vantagem. Ela pode, entretanto, sofrer as confrontações
internas e externas. Só o socialismo revolucionário pode intervir
nesse complexo processo e detonar ações de massas para refreá-lo,
enfraquecê-lo e destruí-lo. O movimento socialista não é só uma
alternativa de reforma social. Ele irrompe como a única ameaça à
existência e à sobrevivência de tal civilização.
A defesa do marxismo de Mariátegui fundava-se nesses dois
polos. Os ritmos históricos desencadeados e regulados no interior
e para fora pela civilização capitalista. A capacidade potencial do
socialismo de implodir essa civilização – também a partir de den-
tro e de fora – impondo-lhe ritmos históricos mais rápidos, mais
fortes e mais destrutivos. Não é o caso de recorrer-se a incursões
comparadas. Os fatos falavam por si (pelo menos até o desfecho
da Guerra Fria). Como outros marxistas (e revolucionários nacio-
nalistas não marxistas), Mariátegui sustentava a previsão de que a
erosão iniciada não se recomporia e tenderia a crescer após a Re-
volução Russa e várias insurreições que eclodiam em toda a parte.
Nesse contexto, a recuperação da iniciativa capitalista de agressão
poderia suscitar palavras de ordem: o “socialismo morreu” ou o
90 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

“comunismo acabou”. Sua base de sustentação empírica e prática


seria débil. O horizonte intelectual de Mariátegui estava preparado
para repelir tais formulações, malgrado ocorrências divergentes e
incongruências na prática socialista serem notórias à sua observação
e avaliação crítica. Prevalecia a confiança no socialismo revolucio-
nário e no marxismo que o convertera em figura-mestra legendária
dos revolucionários do Peru e das Américas.
Após sua morte veio o golpe fatídico. A URSS investiu demais
na Guerra Fria e seus desdobramentos. Retirou compensações po-
líticas valiosas para o chamado mundo socialista. E, em algumas
ocasiões, impôs derrotas auspiciosas aos adversários. Estes recorre-
ram aos métodos da luta clandestina, amparados por insatisfações
internas, conflitos de raças, etnias, religiões e classes dissimulados,
e por instituições especializadas na contrainsurgência, legais
e religiosas. O colosso que pareceria imbatível foi implodido,
provocando sua incapacidade de autodefesa e a conquista pelos
aliados dos baluartes que deveriam funcionar como periferia (até
mesmo na defesa do núcleo soviético). Ocorreu um desabamento
por etapas encadeadas. Fortaleceu-se a pseudoexplicação científica
do “fim das ideologias” e difundiram-se os slogans sobre o “desa-
parecimento do socialismo” e a “morte do comunismo”. Como
compensação, ofereceu-se o ersatz que repõe o “neoliberalismo”
em um universo de oligopólios, conglomerações de sistemas eco-
nômicos e a “globalização” como marca do novo tipo de imperia-
lismo. A análise sociológica desse conjunto de complexos micro e
macroeconômicos, sociais, culturais e políticos é uma empreitada
difícil. Um dos aspectos salientes tem a ver com a desigualdade
dos ritmos históricos, entre a civilização capitalista e a emergente
civilização semissocialista. Os ritmos históricos mais rápidos e for-
tes deslocaram os ritmos históricos mais lentos e fracos. As forças
humanas que sustentavam estes últimos ritmos históricos eram
extremamente desiguais. Encerrou-se um período de longa duração
F lorestan F ernandes • 91

da história recente. A vitória de uma civilização, no entanto, não


indica a “morte” ou o “fim” da outra. Novas correlações de forças
humanas terão de decidir o que irá sobreviver – a civilização com
ou sem barbárie, a longo prazo; ou combinações imprevisíveis no
presente.
Esse balanço sumário permite indagar: as proposições marxis-
tas mariateguianas absorveriam as fórmulas simplificadoras – “de-
saparecimento do socialismo”, “fim das ideologias” ou “morte do
comunismo” e seriam complacentes com o “neoliberalismo”? Há
um sentido da história, ao qual Mariátegui sempre esteve atento
de modo firme e lúcido. O Peru, agora com as Américas ricas e
pobres, encontra-se em uma encruzilhada. O capitalismo de nossos
dias é, por natureza, concentrador e centralizador. Tem de apoiar-se
na opressão e na repressão para reproduzir-se. O desafio impõe-se
pela “consciência falsa”, burguesa ou não, disseminada nas elites no
poder e entre os miseráveis e os desempregados que se desprendem
das classes médias “baixas” e, às vezes, “média” (segundo os concei-
tos norte-americanos). O capitalismo não dispõe de uma lâmpada
de Aladim para distribuir riquezas e voltar a “padrões dignos de
vida” para todos. O “neoliberalismo” consiste, de fato, em um
fascismo neocolonial. Constata-se, pois, uma “ironia do destino”.
O fantasma das sociedades pobres e subdesenvolvidas da América
Latina resultava de uma contradição: fascismo ou socialismo? Neste
contexto, as proposições de Mariátegui marchariam como antes,
de acordo com a redução de Engels: socialismo ou barbárie? São
proposições que não foram varridas pela tempestade. Mariátegui
ainda se ergue como um farol, que ilumina o horizonte intelectual
e político dos que querem conferir aos latino-americanos a opção
pelo marxismo.

TEXTOS DE REFERÊNCIA
92 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

Para leitores pouco enfronhados no pensamento de Mariátegui


ou como fonte de esclarecimento da exposição, incluo algumas
citações extraídas e traduzidas das edições peruanas utilizadas:
1. “O problema agrário se apresenta, acima de tudo, como o
problema da liquidação da feudalidade no Peru. Esta liquidação
devia realizar-se já pelo regime demo-burguês, formalmente estabe-
lecido pela revolução da independência. Mas no Peru não tivemos,
em cem anos de República, uma verdadeira classe capitalista. A
antiga classe feudal – camuflada ou disfarçada de burguesia republi-
cana – conservou suas posições”. (...) “As expressões da feudalidade
sobrevivente são duas: latifúndio e servidão. Expressões solidárias
e consubstanciais, cuja análise nos conduz à conclusão de que
não se pode liquidar a servidão, que pesa sobre a raça indígena,
sem liquidar o latifúndio” (7 ensayos..., p. 51). Esclarece, adiante:
“Não renegamos, propriamente, a herança espanhola; renegamos
a herança feudal” (p. 53).
2. “A unidade peruana está por fazer-se; e não se apresenta como
um problema de articulação e convivência, dentro dos confins de
um Estado único, de vários antigos pequenos estados ou cidades
livres. No Peru, o problema da unidade é muito mais fundo, porque
não é preciso fundir-se aqui uma pluralidade de tradições locais
e regionais, mas uma unidade de raça, de língua e de sentimento
nascida da invasão e da conquista do Peru autóctone por uma raça
que não conseguiu unir-se com a raça indígena, nem eliminá-la
nem absorvê-la” (7 ensayos..., p. 206).
3. “Até que ponto pode assemelhar-se a situação das repúblicas
latino-americanas à dos países semicoloniais? A condição destas
repúblicas é, sem dúvida, semicolonial, e, à medida que cresça seu
capitalismo e, em consequência, a penetração imperialista, tem
que se acentuar este caráter de sua economia. As burguesias na-
cionais, porém, que enxergam na cooperação com o imperialismo
a melhor fonte de proveitos, sentem-se suficientemente donas do
F lorestan F ernandes • 93

poder político para não se preocupar seriamente com a soberania


nacional. Estas burguesias, na América do Sul, que ainda não co-
nhecem, excetuando-se o Panamá, a ocupação militar ianque, não
têm nenhuma predisposição para admitir a necessidade de lutar
por uma segunda independência, como supunha ingenuamente
a propaganda aprista. O Estado, ou melhor, a classe dominante,
não procura ao menos um grau mais amplo e seguro de autonomia
nacional. A revolução da independência está relativamente muito
próxima, seus mitos e símbolos muito vivos na consciência da
burguesia e da pequena burguesia. A ilusão da soberania nacional
conserva-se em seus principais efeitos. Pretender que nesta camada
social firme-se um sentimento de nacionalismo revolucionário,
semelhante ao que com condições distintas representa um fator
de luta anti-imperialista nos países coloniais submetidos pelo
imperialismo nos últimos decênios na Ásia, seria um erro grave”
(Mariátegui, texto de 1929, apud Quijano, 1991, p. 203).
4. “O capitalismo deixou de coincidir com o progresso. Este
é um fato característico da etapa do monopólio” (En defensa...,
p. 37).
5. “O marxismo, onde se mostrou revolucionário – quer dizer,
onde foi marxismo – nunca obedeceu a um determinismo passivo
e rígido. Os reformistas resistiram à Revolução durante a agitação
revolucionária pós-bélica, com razões do mais rudimentar de-
terminismo econômico. Razões que, no fundo, se identificavam
com as da burguesia conservadora, e que denunciavam o caráter
absolutamente burguês, e não socialista, desse determinismo” (En
defensa..., p. 67).
6. “Só o socialismo pode resolver o problema de uma educação
efetivamente democrática e igualitária, em virtude da qual cada
membro da sociedade recebe toda a instrução a que sua capacidade
lhe dá direito. O regime educacional socialista é o único que pode
aplicar plena e sistematicamente os princípios da escola única,
94 • S ignificado atual de J osé C arlos M ariátegui

da escola do trabalho, das comunidades escolares e, em geral, de


todos os ideais da pedagogia revolucionária contemporânea, in-
compatível com os privilégios da escola capitalista, que condena as
classes pobres à inferioridade cultural e faz da instrução superior o
monopólio da riqueza” (Mariátegui, apud Quijano, 1991, p. 155).

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
ARICÓ, José (org.). Mariátegui y los orígenes del marxismo latinoamericano.
México: Siglo Veintiuno, 1978. (Cuadernos Pasado y Presente).
MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana.
Lima: Biblioteca Amauta, 1972 (usei também a edição brasileira para a
qual escrevi uma apreciação sociológica global).
_____. En defensa del marxismo; polémica revolucionaria. Lima: Biblioteca
Amauta, 1980.
QUIJANO, Aníbal, (org.) José Carlos Mariátegui. Textos básicos. Lima/México/
Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1991 (edição preparada e comen-
tada por Aníbal Quijano, que aproveitei na medida do possível).
CAIO PRADO JÚNIOR: A REBELIÃO MORAL*

São Paulo/SP, 1907-1990


Pensador marxista, ingressa no Partido Comunista
(PCB) em 1931 e dois anos mais tarde viaja à União
Soviética, publicando em 1934 o livro URSS, um novo
mundo. Foi vice-presidente da Aliança Nacional Liber-
tadora. Após o fracasso do levante comunista de 1935
esteve preso por dois anos. Exilou-se em 1937, regressando
ao país em 1939. Fundou a Editora Brasiliense em 1943
e elegeu-se deputado estadual pelo PCB em 1947, sendo
cassado no ano seguinte. Vive daí uma fase de grande
produção intelectual em que escreve várias obras. Foi
preso em 1964 e aposentado compulsoriamente da Uni-
versidade de São Paulo pelo AI-5 em 1969. Obtém asilo
no Chile, mas retorna ao país, sendo condenado pela Jus-
tiça Militar a dois anos de prisão. São de sua autoria: A
evolução política do Brasil (1933), Formação do Brasil
contemporâneo – Colônia (1942), História econômica
do Brasil (1945), Dialética do conhecimento (1963) e
A revolução brasileira, entre outros títulos.

O maior enigma posto por Caio Prado Júnior, como pessoa,


cidadão e pensador, é sua ruptura radical com a ordem social
existente. Tomo a palavra no seu sentido etimológico, salientado
por Marx ao afirmar que ser radical é ir à raiz das coisas. Lamento
o tempo perdido. Nunca lhe perguntei nada sobre sua ruptura
total com sua classe; e os escritos que focalizam sua trajetória não
iluminam esse período vital, de 1924 a 1928 e de 1928 a 1931. O
que se passou na evolução da consciência social crítica que o guiou
por transformações tão aceleradas e profundas?


*
Publicado sob o título: “Obra de Caio Prado nasce da rebeldia”, Folha de S.Paulo,
7 set. 1991. Caderno Letras, p. 5.
96 • C aio P rado J únior : a rebelião moral

Havia efervescência intelectual e política na cidade de São


Paulo. Os fatos são conhecidos. E São Paulo, como a única cidade
tipicamente burguesa do Brasil, tocava as mentes dos seres sensíveis,
conduzia os operários à inquietação social e os intelectuais progres-
sistas a uma atitude de quase repugnância diante de um quadro
doloroso de miséria, exploração e opressão. Ele não foi o único na
rebeldia. Oswald de Andrade, Pagu e outros modernistas ergueram
a bandeira da antropofagia e do inconformismo político como uma
condenação sarcástica e simbólica às omissões imperantes. Todavia,
ninguém saído das elites revela idêntica tenacidade, congruência
e disposição de ir até o fim, às raízes das coisas.
O modernismo só explica uma tendência à renovação, às vezes
temperada (ou destemperada) com oscilantes manifestações de ico-
noclastia. Caio Prado Júnior ostenta uma aceleração contínua, que
percorre uma passagem rápida do radicalismo democrático-burguês
para a oposição intransigente proletário-comunista. Mantendo-se
na mesma posição de classe, inverteu as baterias de seu combate e
tornou-se um militante, um político de proa (em 1935 já era vice-
-presidente da Aliança Nacional Libertadora) e, reiterando a troca
de identidade, em 1947 tornou-se deputado por São Paulo (aliás,
um deputado inovador e exemplar).
É óbvio que a ruptura política respondia às frustrações pro-
vocadas pelo destino do Partido Democrático (PD) e pela traição
dos “revolucionários” de 1930 aos ideais de subversão da ordem.
Havia, porém, outra ruptura paralela, de natureza moral: não a
substituição de mores, mas a ressocialização da pessoa dentro de
mores antagônicos. A passagem envolvia um renascimento para a
vida, do qual brotou e cresceu um comunista confiante na opção
na qual jogara tudo, desde a lealdade de classe até a relação inte-
lectual com o mundo e o comportamento político.
Os cincos anos de Faculdade de Direito também não explicam
uma evolução que converte o radicalismo intelectual em trans-
F lorestan F ernandes • 97

gressão. A instituição-chave na seleção e preparação dos guardiães


civis da ordem sempre alimenta o aparecimento de um pugilo de
filhos pródigos, que submergem na contestação aos costumes, ao
conservadorismo cultural e ao reacionarismo político; e depois
renascem, como Fênix, para resguardar a austeridade dos costu-
mes e a lei como a ultima ratio da defesa da ordem. O certo é que
Caio Prado Júnior não poderia escapar desse lapso de liberdade
tolerada. E convém reconhecer que, enquanto ela dura, essa liber-
dade é seminal. Ela sulca a imaginação, forjando uma insurgência
compensatória de curta duração. Contudo, ela é criadora e deixa
cicatrizes. Estimula muitas leituras e excursões proibidas ou de-
molidoras: ainda agora os bacharéis contam entre os universitários
que mais leem, dentro de um campo de irradiação muito vasto.
Portanto, suponho que o modernismo e a atividade estudantil
tiveram o seu peso. Mas estes não parecem decisivos. Diria que
contaram como reforço psicológico à predisposição arraigadamen-
te orientada para o inconformismo moral (aliás, o ano de 1920,
passado no Chelmsford Hall, na Inglaterra, possui o mesmo sig-
nificado, pelo avesso: como demonstração do que é uma sociedade
civil civilizada).
Se a proposição do enigma está correta, a resposta procede
de uma ruptura moral interior. Nós, no interior do marxismo,
sentimos alguma dificuldade em aceitar uma explicação fundada
exclusiva ou predominantemente em uma ruptura moral. Parece
que resvalamos para uma centralidade idealista, que coloca no
mesmo nível diversas rupturas convergentes (ideológicas, sociais,
políticas etc.). Todavia, há um momento de crise da personalidade
no qual o desabamento de estruturas mentais se conjuga com a
busca de outros conteúdos, com uma reorganização completa de
suas bases perceptivas e cognitivas. As tentativas de uma revolução
dentro de linhas radicais (a participação no PD e as expectativas
relacionadas com a “revolução liberal”) precipitaram o processo
98 • C aio P rado J únior : a rebelião moral

psicológico e político em outra direção, mas congruente, desven-


dada pelo Partido Comunista (PCB).
Esse é o significado de uma ruptura moral plena, pois ela não
se confina a certos fins circunscritos: desencadeia-se e prossegue...
O paradigma é fornecido por Gandhi (mas pode ser inferido de
alterações similares, experimentadas por revolucionários marxistas,
como Lenin ou Trotsky, situados nos limites de suas posições de
classe de origem). A vantagem desta interpretação está em que ela
permite entender as razões da consistência de Caio Prado Júnior,
quando confrontado pelo partido (na desobediência ao pragma-
tismo da disciplina e da hierarquia e, mesmo, no conflito com as
concepções nucleares extramarxistas da essência e dos rumos da
revolução socialista).
Portanto, não existe ligação “mecânica” entre as decepções e
a reorientação política, o entusiasmo militante inicial e a publi-
cação em 1933 (aos 26 anos de idade) do seu livro mais vibrante
e, ao mesmo tempo, o que reclama explicitamente o seu caráter
marxista: A evolução política do Brasil e outros estudos – Ensaios de
interpretação materialista da história do Brasil.
O subtítulo continha uma confissão para “escandalizar”, um
testemunho de que a ruptura avançara tão longe que não evocava
uma “ovelha negra” convencional, mas um pensador revolucio-
nário, com quem a sociedade burguesa teria de se haver. Uma
“explosão juvenil” que precisa ser compreendida no contexto
histórico, em termos da concepção de si próprio e da história sus-
tentada vivamente pelo autor. O livro resvala por lapsos lógicos,
descritivos e interpretativos, que mereceriam reparos de marxistas
experimentados. Mas quem poderia ser, dentro de nosso cosmos
cultural, mais marxista?
Ainda carregamos limitações que somente uma dura e longa
experiência no manejo do materialismo histórico convidaria a ul-
trapassar. As contradições não são situadas ao fundo e não lançam
F lorestan F ernandes • 99

luz sobre o “inferno” da vida nos trópicos e nas determinações


recíprocas que vinculavam a opressão senhorial à dinâmica da
opressão escravista, de escravos e “homens livres pobres”. O “Estado
escravista” continuou de pé, dentro da ótica dos que o viam como
um Estado constitucional, parlamentar e democrático.
No entanto, A evolução política do Brasil é um rebento maduro
e correspondia, como obra marxista, aos intentos de Caio Prado
Júnior. No patamar incipiente e mais puro de sua ruptura, ele dese-
nha a versão do Brasil que animaria suas investigações ulteriores e
dá sua resposta aos membros da classe social dominante e ao PCB,
no qual ingressara. Àqueles, para que descobrissem que construíam
e reproduziam, cotidianamente, a cadeia dentro da qual prende-
ram e degradaram a sua consciência social, a condição humana e
a ausência de saídas históricas dentro de falsos padrões de demo-
cracia. Ao último, para afirmar-se em toda a plenitude como um
intelectual revolucionário livre, pronto a avançar na conquista da
revolução social e na emancipação dos excluídos, dotado, porém, de
uma faculdade própria de submeter-se à disciplina e às orientações
partidárias. Compartilhava de sua estratégia: reformar, primeiro;
e destruir mais tarde aquele gigantesco presídio, designado como
Estado “moderno”.
Não obstante, não se prestaria a servir de peão a qualquer
conciliacionismo ou oportunismo “táticos”. O livro põe em evi-
dência, principalmente no ensaio primordial, qual é o sentido que
carrega e quais os desdobramentos que exige do autor para que
a construção de uma nova sociedade possibilitasse a criação de
um Estado realmente democrático e aberto aos aperfeiçoamentos
vindos de baixo.
A obra seguinte, aparecida nove anos depois (Formação do Brasil
contemporâneo – Colônia), adere a outro horizonte intelectual e po-
lítico. Mais depurado, como marxista e historiador, propõe-se uma
ambição ciclópica: uma devassa em quatro volumes da formação e
100 • C aio P rado J únior : a rebelião moral

evolução do Brasil, do regime colonial escravocrata à contempora-


neidade. Como historiador, Caio Prado Júnior preocupava-se em
cobrir as lacunas da história descritiva da maioria dos cultores da
matéria, e em corrigir as armadilhas das obras de síntese históri-
ca, algumas de alta qualidade, que prevaleciam naquele instante.
Como marxista, pretendia forjar uma obra-mestra que servisse
de fundamento para que as correntes socialistas e democráticas
(especialmente o PCB) pudessem formular uma representação
sólida das debilidades, do trajeto e dos objetivos específicos da
revolução brasileira.
Saiu apenas o primeiro volume, que evidencia uma solidez na
reconstrução empírica e uma firmeza nos delineamentos teóricos
a que não chega o livro anterior. Então, tivera tempo de absorver
rebentos da transplantação cultural, mediada pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, dos quais aproveitou inteligentemente,
em particular nas áreas da geografia e da história. Foi pena que não
fizesse o mesmo com referência à sociologia, pois é aí que refluem
as consequências negativas das omissões ou vacilações mais graves.
O talento para combinar várias disciplinas, entretanto, enriquece o
questionamento histórico e torna a contribuição mais compreen­
siva e esclarecedora.
A sociedade colonial e o modo de produção escravista encon-
tram, finalmente, o intérprete que iria considerá-las como uma
totalidade in statu nascendi e no seu vir a ser. Ela não seduziu só os
leitores eruditos e obrigatórios. Impregnou a imaginação histórica
de Caio Prado Júnior, convertendo-o em inventor e propagador de
uma visão própria da história do Brasil. Essa visão estava contida
no primeiro livro. Todavia, é na segunda obra que ela se expande
como a fonte de suas grandes descobertas e a objetivação de seus
amplos limites.
No conjunto, aproxima-se mais da história “positiva” que em
outras de suas realizações. O que não impede que elucide, por vezes
F lorestan F ernandes • 101

de modo definitivo, a problemática específica do nosso mundo


colonial. A começar pelo sentido da colonização e do desmasca-
ramento dos interesses da Metrópole, dos senhores e da grande
exploração mercantil, até o embrutecimento do escravo como coisa
e dos mestiços e brancos “pobres” como excluídos e ralé. Por isso
aí se acham os andaimes de seus estudos sobre a questão agrária
e o capitalismo mercantil, assuntos que o atrairiam sem cessar,
embora não possam ser devidamente explorados aqui.
O espaço também não comporta uma discussão, sumária que
seja, de sua História econômica do Brasil (1945), que o compeliu a
observar o vasto painel de longa duração como foco de referência
de problemas concretos. Se se impuseram algumas correções, estas
não tiveram, contudo, porte para impor uma revisão significativa
da concepção global.
O seu livro de maior repercussão foi divulgado em 1966 – A
revolução brasileira – e possui uma importância política excepcio-
nal. Contém um desafio ousado à ditadura. Mas constitui uma
reflexão desafiadora e um repúdio ao mecanicismo “marxista”,
forjado depois da ascensão de Stalin ao poder e da influência
manietadora da Terceira Internacional.
Nessa obra, Caio Prado Júnior procede a uma crítica severa
dos desvios de rota da revolução socialista, programados e impos-
tos como deformação do marxismo; o uso invertido e ditatorial
do centralismo democrático; a simplificação grosseira da teoria e
das práticas marxistas da luta de classes e da revolução em escala
mundial. Os países dependentes, coloniais e neocoloniais tinham
sido metidos em um mesmo saco e em mesma camisa de força, que
pressupunham que a revolução pudesse ser “unívoca”, monolítica,
dirigida segundo uma fórmula única, a partir das diretrizes da
Terceira Internacional e da União Soviética.
Desse ângulo, o livro retoma o marxismo como processo, que
nasce e cresce por dentro das classes trabalhadoras e na busca
102 • C aio P rado J únior : a rebelião moral

de sua autoemancipação coletiva, através da construção de uma


sociedade nova.
O núcleo de referência vem a ser o Brasil do momento da dita-
dura militar e do auge da Guerra Fria. O que impele Caio Prado
Júnior a retomar os temas de suas investigações, dissertando sobre
os marcos coloniais da dominação econômica, cultural e política da
burguesia, a debilidade dessa burguesia em termos de sua situação
histórica, associada e dependente, e os parâmetros da conquista da
cidadania e da democracia como requisitos da reforma agrária e
de outras transformações sociais. Ele fica exposto a várias críticas
teóricas e práticas, inclusive a da via reformista, gradualista e por
etapas da implantação do socialismo. Não obstante, recupera o en-
tendimento de Marx e Engels a respeito da revolução permanente,
segundo o qual ela é produto da luta de classes, não de utopias
melhoristas ou humanitárias.
Nessa ocasião, Caio Prado Júnior atingiu o clímax de sua gran-
deza como marxista, cientista social e agente histórico. Marchando
contra a corrente, realizou uma síntese da evolução do Brasil e uma
revisão em profundidade de questões concretas, intrínsecas a certos
dilemas políticos, como a reforma agrária. Buscou o alargamento
do marxismo para adequá-lo às condições históricas variáveis da
periferia, da América Latina e do Brasil. E demonstrou como o
intelectual, desempenhando seus papéis e sem transcendê-los pela
eficácia de partidos, pode alcançar o cume da militância exigente
e criativa.
Não carecemos estar de acordo com ele em tudo para realçar
o seu perfil marxista. Basta que enxerguemos a sua coragem de
enfrentar, sozinho, os riscos de errar e a repressão política brutal,
para admirá-lo ainda mais dentro e acima de sua produção como
historiador, geógrafo, economista, cultor da lógica e da teoria da
ciência, homem de ação e político representativo.
ROGER BASTIDE: A DOAÇÃO DO SER*

Nîmes, 1898 – Maisons-Laffitte, 1974


Filósofo francês, veio para o Brasil em 1938, a
convite, para integrar-se ao grupo de professores franceses
que, em 1934, participou da fundação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, origem da Universidade
de São Paulo. Permaneceu aqui até 1954, lecionando
e dedicando-se ao estudo de nosso país sob diferentes
perspectivas: sua história, o folclore, a poesia e as religiões
afro-brasileiras, as relações interétnicas. Em português,
publicou, entre outras, as seguintes obras: Psicanálise do
cafuné (1941), A poesia afro-brasileira (1943), Arte e
sociedade (1946), Relações entre negros e brancos em
São Paulo (1955).

Roger Bastide era um trabalhador infatigável. Eu ficava abisma-


do com o número de livros que ele levava e trazia diariamente da
biblioteca à sua casa. Roía a leitura com o ardor que transparecia
no consumo dos charutinhos. Erguia-se a aparência de um mundo
distante, seco, abstrato, no qual prevaleceriam as ideias e o toque
retraído de um acadêmico erudito tímido. Os assuntos variavam
muito. Iam de livros necessários aos cursos e materiais hetero-
gêneos de artigos meditados de antemão, sobre a poesia negra,
teorias sociológicas, o modernismo brasileiro, temas psicológicos,
alguma tradução que estivesse fazendo, à sua grande tese sobre
religiões afro-brasileiras, à nossa pesquisa sobre relações raciais
em São Paulo, novidades literárias, científicas ou filosóficas cuja
apreciação se impunha etc. O homem dos livros longe do homem
dos sentimentos ou da realidade? Um isolamento da vida que o


*
Publicado em Bastidiana. Cahiers d’Études Bastidiennes, St. Paul de Fourques,
França, n. 6, abr./jun. 1994, p. 33-35.
104 • R oger bastide : a doação do ser

afastasse e o resguardasse dos dissabores da obrigação de mergulhar


no cotidiano doloroso?
Eis aí a ponte de um falso enigma. Quem não tivesse contatos
frequentes com seus escritos, não refletisse sobre eles ou não inter-
pretasse suas entrelinhas (ou o duplo sentido do “conveniente” e
do “inconveniente” no que afirmava) jamais penetraria na riqueza
e nos desdobramentos puramente humanos de Bastide e sua obra.
O superficial, o artificial, o conciliatório, o malicioso, o objetivo e
o subjetivo interligados, o simplificado e o didático, tudo fechava
um círculo de reflexão que não separava razão e emoção, lógica
e subjetividade, pensamento geométrico e percepção sensível do
eu, do outro e da comunhão como um estado ideal do nós. Sua
posição relativista e pluralista não se reduzia a uma fuga ou a um
pacto de concessões e conciliações. A verdade ou o verdadeiro su-
biam à tona com delicadeza, permitindo que o outro descobrisse
por autoesclarecimento as máscaras ou as mistificações ocultas
através de seus idola.
Esse constitui um modo de ser que se transmite ao ator-
-professor, amigo, pesquisador ou autor – e que estabelece uma
conexão rara entre a pessoa do investigador e o sujeito da investi-
gação (que não possui esse caráter em tal ótica científica), porque
tem de emergir, forçosamente, como o igual, o companheiro ou
o amigo fraterno. Lembro-me de uma apreciação que fez quando
observei que ele não conhecia a língua do líder e mago religioso
com quem conversava. “Nós estamos de mãos dadas, olhando um
para o outro e permanecemos assim por longo tempo.” A “lingua-
gem das mãos” como técnica do corpo? Não. A recuperação da
simpatia como forma de comunhão e de comunicação. Bastide
gostava do livro de Max Scheller sobre as formas de simpatia. Pu-
nha em prática algo reconhecido sociologicamente: as relações de
companheirismo forjam personalidades comunitárias, incrustadas
na totalidade cultural comum. Há subjetividade nas descobertas;
F lorestan F ernandes • 105

mas o que a objetividade esconde quando uma psicóloga estuda


os filhos de uma família de classe média, partindo de pressupostos
estabelecidos fora e acima do circuito familiar? Suas conclusões do
que “viu” são objetivas, dentro do roteiro seguido. Mas coincidem
com o ethos dos membros das famílias e suas implicações? Interagir
no último degrau das manifestações das convergências e tensões
convencionais ou institucionais representa uma maneira de ser o
“outro” (e numa interação que ultrapassa os abismos da consciência:
duas personalidades totais fruem-se sem reservas ou defesas, em
uma espécie de conexão amorosa).
É curioso que um homem tão infenso ao exibicionismo
“entregue” sua pessoa à convivência. Não quer mostrar-se, mas
“receber” ou “dar”. Este ponto merece consideração. Nem na
aula, nem na produção intelectual, nem nas relações de ami-
zade Bastide permitia-se escamotear sua presença discreta. O
que possui um caráter fundamental para o entendimento de sua
obra, especialmente as de pesquisa empírica (embora o mesmo
ocorra, em menor grau, nos livros de sistematização ou de pro-
pósitos teóricos). Escapava, por exemplo, ao orgulho de Max
Weber, que desconfiava do leitor e massacrava-se mentalmente
para que a exposição fosse autossuficiente (mesmo em Economia
e sociedade). O leitor acaba assumindo um papel passivo. Se o
ponto de referência for Émile Durkheim, há uma ponte de liga-
ção: as premissas, porém, são dadas como as únicas solidamente
verdadeiras. O leitor poderá colaborar completando análises e
conclusões prefixadas. Roger Bastide reclama uma colaboração
íntima do leitor, dentro de linhas de preferências e indagações
próprias, que agucem a sua curiosidade e flutuem além daquilo
que estimula sua imaginação criadora. De dentro de sua obra,
instiga o transcender dos limites, pois o livro é mercadoria, e,
portanto, uma propriedade, mas o seu conteúdo não escapa da
sedução da liberdade e da vontade de ser.
106 • R oger bastide : a doação do ser

Essa busca singela e rara do interlocutor tende a extinguir-se. Os


autores-líderes contam com seu séquito. Um grupo que, a pretexto
de “continuar grandes descobertas ou teorias”, logra objetos para
excursões infindáveis em tópicos de importância para a carreira
acadêmica, mas congela a continuidade de um processo de inves-
tigação científica. O legado de Bastide vai em outra direção. A
cidadela da ciência social não fecha os seus portões a ninguém nem
estimula o estabelecimento de uma corte de serviçais enterrados
em tarefas circunscritas e intransponíveis. Restabelece-se, em todo
o vigor, a essência democrática da ciência, mais evidente na área
experimental. Os cruzados não o são do grande mestre, mas do
saber científico. Uma teoria inovadora abre muitos caminhos, que
exigem investigações especiais e, por vezes, condição sine qua non
do crescimento da ciência (ou da árvore da ciência). Os caminhos
livres requerem plena liberdade de escolher e de aproveitar talen-
tos ou condições favoráveis de investigação. Autores como Roger
Bastide, que “conversam com os leitores” e os instigam a ir além,
cumprem uma função dupla. Primeiro, a de humanizar-se, alte-
rando ou a natureza, ou as civilizações. Segundo, salientando que a
imitação e a apatia aniquilam o impulso indagador, de formulação
de questões novas e de perguntas inéditas. Em suma, ensinam que
a ciência envolve cooperação entre gerações e que ela acaba com
a “moda” tanto quanto com a “tirania intelectual” dos chamados
chefes de escola ou a opressão cultural.
ANTONIO CANDIDO:
UM MESTRE EXEMPLAR*

Rio de Janeiro/RJ, 1918


Professor de sociologia na Faculdade de Filosofia
(1942-1958) e de literatura brasileira na Faculdade de
Filosofia de Assis (1958-1961). Regressou à Universidade
de São Paulo em 1961 como professor de teoria literária
e literatura comparada até 1978, quando se aposentou.
Foi professor de literatura brasileira nas universidades
de Paris (1964-1966) e de Yale (1968). Como crítico li-
terário, colaborou na revista Clima (1941-1944), Folha
da Manhã (1943-1945) e Diário de São Paulo (1945-
1947). Integrante do antigo Partido Socialista Brasileiro
até sua prisão pela ditadura militar, em 1965, e membro
do Partido dos Trabalhadores desde sua fundação, em
1980. Dentre suas obras, destacam-se: Formação da
literatura brasileira, 2 v. (1959); Os parceiros do Rio
Bonito (1964); Tese e antítese (1964); Literatura e so-
ciedade (1965); Teresina Etc. (1980); A educação pela
noite e outros ensaios (1987); Recortes (1993);
O discurso e a cidade (1993).

Falar ou escrever sobre Antonio Candido é para mim extrema-


mente difícil. A geração à qual pertenço não seria a mesma sem a
sua presença e influência. Eu próprio não seria o mesmo se a vida
não me pusesse em contato com Antonio Candido, o seu carinho,
a sua severidade íntegra, a sua modéstia e orgulho intelectual –
enfim, a sua personalidade de educador, que se irradia irresistível,
como uma exigência de perfeição e de compromisso crítico.


*
Colaboração para a III Jornada de Ciências Sociais da Universidade Estadual Pau-
lista (Unesp), Marília, 31 de maio a 2 de junho de 1990. Publicada em: D’Incao,
Maria Angela & Scarabótolo, Eloisa Faria. Ensaios sobre Antonio Candido. São
Paulo, Companhia das Letras/Instituto Moreira Salles, 1992, p. 33-36.
108 • A ntonio C andido : um mestre exemplar

Uma existência fecunda, devotada ao estudo, ao cultivo do


talento dos jovens, ao ensino, ao florescimento da antiga Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras e da Universidade de São
Paulo, à contestação socialista constante e à esperança de que o
Brasil venceria, através dos mais humildes e dos trabalhadores, as
tragédias de sua dependência e subdesenvolvimento. Sem alarde,
sempre esteve na vanguarda ousada, realizando tarefas simples e
complexas, escondendo-se no anonimato mas enfrentando, sem se
perturbar, todos os riscos. Duas ditaduras e muitas incompreensões
cercaram a sua atuação inconformista, pois escapava à sua posição
na sociedade e ao controle das elites para servir às causas da justiça
social, dos jovens e dos oprimidos.
Em sua carreira percorreu três “estações”: a de agitador de ideias
por meio dos ensaios jornalísticos; a de professor e pesquisador
no campo da sociologia; a de professor de literatura comparada e
do invento literário, na qual se notabilizou convertendo a crítica
literária em forma de criação cultural e em ramo da literatura. Não
possuo competência para acompanhar o seu percurso em todas
essas esferas do pensamento.
A primeira “estação” foi muito fecunda. Ela vinha em seguida à
Semana de Arte Moderna e demonstrava o que a nossa Faculdade
representou para sacudir o atraso cultural no Brasil. Coube a An-
tonio Candido mostrar o que os “chato boys” significavam em um
mundo de mistificações e de colonização cultural permanente. Os
seus artigos, aguardados e lidos com sofreguidão, selaram o nosso
destino intelectual e político. Constituíamos uma ponte entre o
esplendor da civilização ocidental moderna e a rusticidade de nos-
sas origens remotas e recentes. Reagíamos à colonização invisível
sem repudiar o seu legado: autoemancipação destituída de rancor
e ressentimentos, com profunda afirmação da liberação mental,
ética e política. Víamos na rusticidade todos os seus elos e cadeias,
amando, porém, a condição humana de brasileiros e seus produtos
F lorestan F ernandes • 109

culturais, do folclore à “alta cultura”. Os modernistas haviam feito


bulha demais e quebrado muita louça. A nossa função consistia
em construir e em encaminhar os jovens em outra direção. Não
existiam galerias. Todos deviam participar do espetáculo e do
processo cultural envolvente. Equilíbrio e moderação, esse era o
sentido do roteiro que brotava de uma crítica cotidiana, convertida
por Antonio Candido em pregação de civilidade.
As outras duas faces mencionadas sempre caminharam juntas
na cabeça e na atividade docente ou de pesquisa de Antonio Can-
dido. Um humanista visceral, polido e radicalizado pela prática
socialista, a crítica constituía seu modo natural de interagir com
suas tarefas intelectuais e pedagógicas ou com seus papéis na
universidade e na sociedade. Como sociólogo, seria um erro supor
que ele tem menos importância que um grande scholar no reino
das letras. O clímax de sua produção literária é tão elevado que
obnubila a capacidade de avaliação dos que não acompanharam
passo a passo a sua evolução intelectual. Contudo, foi na seção
de ciências sociais que ele desenvolveu sua formação e se trans-
formou no mestre ímpar que é. Compreendeu as debilidades da
nossa situação educacional e tornou-se o “professor-ama-seca”, que
buscava dirigir a aprendizagem de maneira a facilitar a transição
de um curso médio precário para um terrível ensino superior, de
perfil europeu. Por seu exemplo e incentivo avancei com ele nessa
descoberta do outro e das vias de superação das carências que
faziam dos estudantes vítimas das más escolas. Eu não deixava de
ironizar, dizendo que éramos a “geração between”, que procurava
remover os excessos do nosso padrão de ensino, sem rebaixá-lo,
e adaptar os estudantes menos dotados ao choque cultural que
estavam condenados a sofrer. Caímos em algumas armadilhas.
Mas está fora de dúvida que, ao sair de sua pele, Antonio Candido
descobriu que era professor por vocação e calibrou sua imaginação
pedagógica a partir daquele que devia aprender (nunca do que devia
110 • A ntonio C andido : um mestre exemplar

ensinar). Essa maturação se realizou no âmbito das ciências sociais,


muito plástico e efervescente, profundamente aberto a “tudo que
é humano” e, portanto, estimulante como incentivo básico para
inserir um teor missionário à personalidade do professor. Graças ao
ensino, colocou a sociologia educacional em dia com a nossa época,
desvendou os segredos (e as limitações) da explicação sociológica (o
que se desvendaria, mais tarde, ao despojar a literatura comparada
de exageros do século XIX ou de uma visão determinista estreita)
e foi impelido a redigir vários ensaios decisivos, colecionados em
alguns de seus livros. O ponto de referência para a avaliação externa
fincou-se no livro no qual resumiu as conclusões de suas investiga-
ções sobre os caipiras do Bofete [Os parceiros do Rio Bonito, 1964].
A pesquisa foi feita com enorme sacrifício pessoal e a elaboração do
livro foi lenta e exigente. Por seu intermédio, um tipo de homem
pobre “livre” ganhou espaço na estante dos clássicos. Iluminou-se
uma parcela do Brasil dos de baixo, o que eles são, como gente e
portadores de uma civilização excluída e de uma sociedade subal-
ternizada. Ampliou-se a área dos nossos contemporâneos que não
são coetâneos da história oficial, mas que apresentam um desafio:
eles não podem ser apenas “objeto” da reforma agrária ou dos
movimentos libertários e humanitários da sociedade civil. Ou os
agentes da história oficial os destroem, como estão fazendo, ou eles
próprios terão de ser portadores das reivindicações que revolucio-
nam, como os terremotos catastróficos, a história do Brasil real.
Descritos e interpretados como uma totalidade, eles configuram
os parceiros que não são ouvidos e ganharam, por meio do livro,
presença histórica nos subterrâneos de uma sociedade civil em
tensão com o que ela não é, mas deveria ser.
A passagem de Antonio Candido da sociologia para o outro
setor poderia ter sido rápida e fácil. Como se sabe, ele ganhou o
concurso, mas não a cátedra de literatura brasileira. Por isso, a sua
trajetória foi penosa: começou na Faculdade de Assis e de lá voltou
F lorestan F ernandes • 111

para a Maria Antônia (Faculdade de Filosofia), permanecendo


durante longo tempo fora de um lugar que fizesse jus a seu valor,
talento e renome. Muitos entre nós sentíamo-nos constrangidos
com essa situação esdrúxula. O maior mestre da universidade brasi-
leira estava abaixo de outros, todos nós, que não poderiam disputar
com ele uma polegada de terreno. O seu prestígio crescera tanto,
dentro e fora do país, que poucos prestavam atenção à anomalia.
Eu e outros percebíamos que aquilo era insustentável e tornara-se
uma fonte de vergonha e de afronta. Ele próprio não se manifes-
tava e dedicava-se ao trabalho com ardor. Granjeara tal reputação,
que se impusera como um centro de procura único por parte dos
melhores candidatos à especialização e à pós-graduação. Literatu-
ra brasileira, crítica literária especializada, literatura comparada
desdobraram novos horizontes para a construção de um saber que
assinalava novos rumos ao desenvolvimento dos estudos universi-
tários. Mantendo o mesmo traço ameno e amigo nas relações com
seus estudantes, com a compreensão rigorosa de que tais relações
atravessavam a produção criadora, ampliou sua influência por todo
o Brasil, pela América Latina e pelos países centrais. O seu padrão
de análise crítica enriqueceu-se, purificando-se e aprofundando-se.
A moldura sociológica viu-se restringida ao que se poderia extrair
de outras disciplinas, que funcionam como técnicas e processos
de trabalho, explicação estética. Autor, textos, invenção literária
e público formam o objeto inclusivo da imaginação intelectual
produtiva. Sem a experiência sociológica, filosófica e de partici-
pação política anterior seria problemático que Antonio Candido
pudesse atingir a estatura que suas análises mais célebres exibem.
Escapou aos ismos, que circulavam nos ambientes acadêmicos, e
forjou recursos complexos de explicação, integrativos e de síntese,
que demarcam a obra da inteligência erudita e criadora, que, em
outros tempos, se caracterizariam como a ciência da produção
literária. Em nossos dias, de resistência ao “positivismo” e ao “cien-
112 • A ntonio C andido : um mestre exemplar

tificismo”, tal preocupação desvaneceu-se. O que não impede de


trazê-la à baila, para que se possa conferir à razão como dar conta
da categoria de saber a que chegou Antonio Candido, por seus
méritos, capacidade de trabalho e espírito inventivo.
Esta homenagem distingue um homem ilustre, representativo
do seu tempo e que conquistou a admiração de seus companheiros
por sua coragem e firmeza. Cumpre insistir: nesses 48 anos que
o conheço, primeiro por leitura e pouco mais tarde por uma en-
tranhada amizade, Antonio Candido nunca trocou de identidade
política. Não se lançou às pugnas da moda ou, simplesmente, à
“defesa da democracia”. Viu com enorme acuidade o quanto o
jovem intelectual e o professor podiam avançar como “radicais”.
Todavia, a espécie de radicalismo que coincidia com sua condição
humana era e é socialista. As duas ditaduras não o demoveram dessa
opção e as oscilações da moda tampouco abalaram suas convicções
mais íntimas. Ser um mestre exemplar é uma coisa. Ser um mestre
exemplar que não fica em cima do muro é outra. Ambos podem
ser grandes e até chegar ao tope na criação do saber abstrato.
Antonio Candido aceita o compromisso da ação e embrenha-se
nela. Mas não alardeia esse lado de sua personalidade, que não é
oculto, porque em nada tenta valorizar-se pelo dever cumprido. A
omissão abalaria a sua concepção de dever do homem, em geral,
e do intelectual, em particular. Basta-lhe não ser omisso, estender
as mãos aos companheiros de jornada infortunados e comparti-
lhar de suas ansiedades, de seus combates e de suas tentativas de
transformar o mundo.
OCTAVIO IANNI: O ENCANTO DA VIDA*

Itu/SP, 1926 – Campinas/SP, 2004


Cientista social multifacetado, com incursões
modernas e desbravadoras pela sociologia, antropologia
e economia. Doutor e livre-docente pela Universidade
de São Paulo, onde lecionou, foi professor visitante
nas universidades de Columbia (Nova York), Oxford
(Inglaterra), Complutense (Madri) e Autônoma (Méxi-
co). Membro da Associação Internacional de Sociologia,
deu aulas na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e foi professor na Universidade de Campinas
(Unicamp). Autor de vasta obra, publicada no Brasil e
no exterior, em que se destacam: Raças e classes sociais
no Brasil (1966), O colapso do populismo no Brasil
(1968), A formação do Estado populista na América
Latina (1975), A sociedade global (1992) e A ideia do
Brasil moderno (1994).

É difícil prestar depoimentos sobre amigos que possuem muita


importância para quem fala ou escreve. Conviver é uma coisa.
Reduzir experiências humanas profundas a algumas palavras ou
a certo número de páginas, algo bem diverso. De uma perspectiva
real, o depoimento apresenta as experiências pelo avesso. Nem se
trata da memória viva e criadora. Não “recupera” nada. Antecipa-se
à morte dos sentimentos e da razão, como se o existente, o feito e
o criado se desvanecessem do nada.
Senti muita dificuldade em evocar aqui a figura e a presença
de Antonio Candido. O mesmo sucede com Octavio Ianni. Passei
incólume por Caio Prado Júnior, porque o assunto básico não era


*
Contribuição à IV Jornada de Ciências Sociais da Unesp, Marília, 21 a 24 de
setembro de 1992. A ser publicado no livro Humanismo e compromisso; ensaios
sobre Octavio Ianni. São Paulo, Editora da Unesp, 1996.
114 • O ctavio I anni : o encanto da vida

ele, mas a conversão do “traidor de classe” no historiador e político


revolucionários. Diante de Antonio Candido só poderia ficar livre
para me expandir – se eu tivesse um ego mais dilatado. Quanto a
Octavio Ianni, há um enovelado de papéis, de compromissos afe-
tivos e de decapitações que nos deixaram no meio de um caminho
que a história retirou debaixo de nossos pés e de nosso alcance
objetivo. Tornei-o, com Fernando Henrique Cardoso e outros,
vítima de frustrações que me fizeram pensar em uma “geração
perdida”. Antigos alunos e colaboradores ergueram-me, através de
nosso trabalho conjunto, a alturas de que despenquei penosamente.
Não somos culpados, em qualquer sentido! Mas ajudamos a forjar
os monstros e as ruínas contra os quais desgastamos o melhor de
nós mesmos, para darmos “a volta por cima” e redefinirmos o
significado de nossa persistência e do espaço de futuro que ainda
usaríamos como um aríete nos combates da história, que se con-
vertem em civilização.
Poderíamos afirmar: estamos aqui! Não fomos derrotados! Po-
rém, também não vencemos a hidra de sete cabeças... Tampouco
conseguimos realizar os fins de uma atividade crítica e produtiva
de um ambicioso projeto de investigação, que se irradiaria de
São Paulo para o Brasil e a América Latina, como um marco de
autonomia científica. As sementes ficaram e medraram, porque o
pensamento é indestrutível e contamos com continuadores. Con-
tudo, perdeu-se a resposta ao desafio que subsiste, de ultrapassar
os parâmetros do eurocentrismo e do arrasador ianquismo.
Recordo-me de Ianni, com seu ar sério, tranquilo e ensimesmado,
ouvindo a aula numa troca de planos constante. Registrava e refletia,
atento ao que eu expunha e perdido em suas divagações. Parecia que
seu pensamento se soltava, pondo em dúvida e acreditando. Modesto
e retraído, obrigava-me a voltar ao início de minha aprendizagem
em 1941. A palavra certa seria “desconfiado”. Como eu, levara
para a faculdade contas a saldar com aquele mundo estranho. Um
F lorestan F ernandes • 115

tanto desajeitado ou esquerdo no reino de palavras, de equívocos e


de pessoas que ostentavam, com ou sem razão, certa superioridade
intelectual e social. Mas sempre ameno no convívio humano, como
se as exterioridades fossem secundárias e aleatórias. De fato, levou
pouco tempo para escavar seu nicho congenial. Sua turma era maior.
As atitudes e comportamentos se alteram com celeridade em uma
década. Os alunos dos anos 1950 não se dividiam em um grupo
maior, separado dos ádvenas. Moviam-se por simpatias e afinidades
culturais e, em menor escala, protopolíticas. O elo nucleador gravita-
va em torno dos estudos e das “grandes esperanças” (que se definiam
como precoces ambições de competir, de reconhecimento de valor
intelectual e de “fazer carreira” na própria faculdade). Inclinavam-se
à amizade e a somar esforços, embora o sangue simbólico jorrasse
sublimado dos vínculos morais.
Tudo isso não impediu que Ianni preservasse arestas do “es-
tranho no ninho”. Provinha de uma família de origem italiana,
na qual as tradições de solidariedade calavam fundo, e de uma
cidade como Itu, cuja proximidade de São Paulo oculta uma in-
suspeita distância cultural. Sua avaliação das pessoas e das coisas
era mais inflexível e ele precisava ser conquistado pelos amigos
e colegas. Trazia consigo, também, uma alegria de viver e uma
curiosidade insaciável, que ia dos livros e dos acontecimentos
às pessoas. Algumas amarguras marcavam suas preocupações e
vincavam ainda mais a implantação enraizada no cosmo moral
originário. Havia até incisiva rigidez em resistências que deveriam
atenuar-se ou desaparecer, em questões ligadas ao cotidiano ou
a autodefesas sintomáticas. Sua generosidade espontânea, vinda
da simpatia congênita, se encarregou de vencer em poucos anos
a quase totalidade dessas barreiras que o impediam de declarar:
“São Paulo, aqui vou eu!”.
O lado mais importante da trajetória da aprendizagem de Ianni
consiste no equilíbrio que se instaurou entre seus dotes intelectuais
116 • O ctavio I anni : o encanto da vida

e vocação científica – e derivadamente política – e a liberdade de


crescer e ressocializar-se (ou metamorfosear-se, como ele diria) em
múltiplas direções, interligadas ou díspares. Não se suponha que
ocorreram só sucessivas alterações nas formas, conteúdos e orien-
tações do talento. A base e o treino iniciais funcionaram como o
terreno que recebeu diversas sementes – e as fizeram germinar com
maior ou menor profundidade. O Ianni-aluno, o Ianni-doutor, o
Ianni-professor, o Ianni-viajante (que vai a todos os lugares que
pode conhecer, observar, interpretar e com isso enriquecer seus
consecutivos horizontes culturais) assinalam etapas de uma au-
tossuperação in flux permanente. Elas não rompem o arcabouço
formativo, ordenado nos 15 primeiros anos de aprendizagem e
amadurecimento, mas desvendam a curiosidade insaciável, seu
traço marcante, e que foi decisivo nos tempos de iniciação escolar
ou de pesquisa e de docência. A Faculdade e o tipo de ensino que
perfilhávamos têm muito a ver com essa evolução intelectual e
moral. Ela filtrou o seu encanto pela vida, que procede de sua
natureza herdada biológica, psicológica e socialmente, e o ampliou
e refinou. Incentivou, portanto, uma propensão que é a chave para
o entendimento de sua pessoa e de sua obra.
Cabe lembrar a sua devotação aos amigos, colegas ou não,
e aos alunos. A simpatia, nessa esfera, tanto separa e afasta uns
quanto aproxima e confraterniza outros. A curiosidade também
aviva a intensidade dos contatos. O humano seduz e atrai o homem
comum e o intelectual. Ninguém pode ser sociólogo, filósofo ou
socialista se não sentir o apelo profundo do grito da natureza ou
da civilização, que brota diuturnamente da simples coexistência
ou do fluxo dos sentimentos. Ianni cultiva o dom de ouvir essa
comunicação, real ou virtual, e de responder a ela como seja possível
ou necessário, sem subterfúgios. Por isso, não enxerga culturas ou
sociedades sem os que as produzem e sonda, em primeiro lugar,
o que os seres humanos dizem e fazem por si e consigo mesmos.
F lorestan F ernandes • 117

Eles não existem sem a história que concretizam. E, antes de ser


sociólogo ou investigador, impõe-se assumir a condição humana.
Esse é um valor que aplica aos estudantes, em particular àqueles
que carecem ser atendidos ou que são portadores da faculdade
de inventar. Em cada classe, ano a ano, forma um extenso grupo
de alunos e de aprendizes que projetam em sua personalidade o
mestre-modelo, e, muitas vezes, a imagem do substituto do pai.
O tempo se esvai, mas essa identificação perdura. Encontrei vários
testemunhos por onde ele passou, como professor, deixando os
sulcos de uma pedagogia imaginativa e libertária. O mesmo sucede
nas suas incursões como conferencista e agitador de ideias, em que
combina a dimensão intelectual com a política. E fico cogitando:
se ele escrevesse com a mesma têmpera estilística, persuasiva e
incitante do discurso, seria o primeiro clássico da língua entre os
modernos ou pós-modernos.
A curiosidade aguda e infinita conduziu Octavio Ianni por
vários temas. O nosso trabalho coletivo foi responsável por duas
escolhas – o negro escravo e livre e certas indagações sobre o
Estado. Como desdobramento desse trabalho também tiveram
importância a preocupação com as técnicas e métodos de in-
vestigação sociológica e o refinamento deles. No entanto, basta
percorrer a lista de suas publicações (livros, ensaios, artigos) para
constatar o quanto sua condição humana (científica, intelectual
e política) desdobrou-se por uma multiplicidade de objetos. Há
um esforço do sociólogo para enfrentar os desafios decorrentes de
sua profissão, do processo crítico do conhecimento. Par a par com
eles – com frequência transcendendo-os – comparece a inesgotável
necessidade de descobrir o enigma da ação recíproca entre natureza,
personalidade e civilização, em situações antípodas ou contíguas,
sem similaridades ou convergências independentes, sincrônicas
ou diacrônicas, quase sempre de crise. A natureza e a sociedade
detêm o segredo da formação do homem. Mas é ele que humaniza,
118 • O ctavio I anni : o encanto da vida

destrói e reconstitui a natureza; reforma e revoluciona a sociedade,


mantendo ou recriando a história que se insere nas tradições, ou
que se objetiva no poder de invenção e de difusão, e que assinala os
trajetos percorridos e a conquistar pela humanidade. Eis a resposta
de estudos que parecem desconexos ou perdidos na abundância de
investigações micro e macrossociológicas.
Nessa tentativa de compreensão e interpretação da realidade
existem os assuntos “menores” (por serem menos frequentes)
mas que são chaves para entender-se o Homo ludens, que confere
vitalidade à cultura popular e se projeta como o contraforte da
sociedade agrária; a “cultura da violência”, que não emerge apenas
como rebento do escravismo, do horizonte intelectual das classes
burguesas e das reciclagens do imperialismo; a interação entre a
cultura, o conformismo e a mudança social revolucionária, que cre-
pita diariamente e nos momentos decisivos das correntes históricas
latentes ou visíveis, conscientes ou inconscientes etc. Os assuntos
“maiores” (por sua centralidade explicativa) convergem todos
para o que se poderia chamar de ascensão e queda do capitalismo
(no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos,
culminando na globalização hodierna do capital).
Fazem parte desse conjunto de contribuições essenciais (ligadas
estrutural e historicamente aos assuntos “menores”) o negro na
sociedade brasileira do passado e do presente, movimentos políticos
como o populismo (privilegiando Vargas e Cárdenas), os aspectos
agrários das franjas de uma sociedade civil ultraopressiva e de um
Estado que se proclama constitucional e democrático mesmo sob
uma ditadura militar, as classes operárias em seu universo específico
e nas migrações que geram ou prometem tensões sociais prolon-
gadas, o Estado como instituição em processo de racionalização,
de concentração da violência burguesa interna e supranacional, ou
como agente de modernização constante da dominação de classe
e da diferenciação da sociedade de classes no Brasil etc. Como
F lorestan F ernandes • 119

periferia, desde a escravidão até as mais recentes transformações


tecnológicas do trabalho livre, da empresa agrária e industrial, e
da tecnologia civil e militar, o Brasil reflete, nos dinamismos do
capital, o destino atual e futuro das nações centrais.
Essa história pode ser captada a partir do colonizado ou do
espoliado e a partir das forças centrípetas ou centrífugas das nações
centrais e dos sucessivos padrões cambiantes de imperialismo. Des-
crita à luz da periferia (inclusive daquela que se avoluma nos centros
imperiais), ela não deixa ilusões: civilização e barbárie são as duas
faces da mesma moeda, e o socialismo reponta como o marco de
referência cristalino do esboroamento de toda uma longa e rica época
histórica. A globalização do capital e da sociedade civil nascida das
classes e das lutas de classes, focalizada da periferia, desvenda que
essa civilização acorda nos homens anseios que ela não tem condições
de satisfazer e os impele a sonhar com outra civilização, que per-
mita a sua negação. A sociologia não é a “rainha das ciências” (nem
mesmo das ciências sociais). Ela descortina, porém, o percurso da
civilização que a engendrou e seus rumos prováveis no tumultuoso
vir a ser que a desintegrará em diversas configurações civilizatórias
distintas, permeadas em graus variáveis por ideais socialistas de
vida em sociedade. A imaginação sociológica colide com a suposta
eternidade da “civilização pós-industrial”, embora reconheça o seu
potencial de estabilidade e de renovação. O planeta unificado pelo
mercado, pelas empresas gigantes e pelo Estado tecnocrático constitui
um mito projetivo. Ao atingir seu apogeu, é presumível que ele não
se dissolverá nas cinzas das ficções aterrorizantes; terá de arcar com
os mores e as esperanças que alimentaram os conteúdos positivos de
suas contradições. Pois, como escreve Ianni, “há sempre um estranho
pathos atravessando esse processo civilizatório” (o do capitalismo). Se
a história e a humanidade não terminam com ele, então acabaremos
por chegar a um ciclo de civilizações que terá como premissa essencial
a sociedade como a associação entre seres humanos livres e iguais.
RICHARD MORSE: O HISTORIADOR ENQUANTO
JOVEM*

Summit, NJ, EUA, 1922 – Pétioville, Haiti, 2001


Historiador e sociólogo, foi pioneiro dos estudos brasi-
lianistas, pertencendo à primeira geração de pesquisadores
norte-americanos que aqui desembarcou entre os anos
1930 e 1940. Com formação diversificada, seus interesses
vão do urbanismo à literatura modernista brasileira,
passando pela história das mentalidades nos trópicos. Em
1954, publicou o livro Formação histórica de São Paulo,
marco na historiografia sobre a cidade e nos estudos urba-
nos brasileiros. Foi professor nas universidades de Prince-
ton, Columbia, Yale e Stanford, secretário do Programa
para a América Latina do Wilson Center e conselheiro da
Fundação Ford, nos anos 1970. Publicou também dois
livros sobre cultura latino-americana: O espelho de Prós-
pero (1988) e A volta de McLuhanaíma (1990).

Richard Morse escreveu muitos trabalhos (livros, ensaios


e artigos) sobre cidades da América Latina. Alguns estudos são
comparativos, outros envolvem incursões eruditas e humanísticas.
Seu nome firmou-se na constelação de historiadores que praticam
simultaneamente a “história descritiva”, a “história comparativa”
e as tentativas de reflexões filosóficas sobre totalidades históricas
que situam o historiador ao lado e acima dos cientistas sociais.
Segundo penso, o seu livro típico e marcante é Formação
histórica de São Paulo (De comunidade a metrópole), que o fez vir
ao Brasil e o tornou um paulistano adotivo. Ele chegou aqui em
uma época na qual São Paulo expandia a sua universidade e não se


*
Texto apresentado no seminário “Cidade e Cultura Latino-Americana – A
Contribuição de Richard Morse”, em homenagem aos seus 70 anos, promovido
pela Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1992. Inédito.
122 • R ichard M orse : o historiador enquanto jovem

falava em “brasilianistas” ou “latino-americanistas”, uma fauna que


iria desabrochar posteriormente. Não era, pois, literalmente, um
historiador voltado para um assunto alheio às suas preocupações
científicas, críticas e filosóficas. Era alguém que se preparava para
o métier do historiador e que se lançava em sua primeira aventura
de explorar a formação e o desenvolvimento da comunidade. A
história como “produto do homem” e “obra de arte”. Todas as
civilizações possuem ramificações complexas e variadas. Escolhera
uma variante da civilização moderna em sua expansão ibérica,
através dos portugueses e descendentes, agentes do massacre dos
indígenas e da escravidão de estoques étnicos negros.
O jovem Morse, “Dick” para os íntimos, sentiu-se atraído pelo
universo humano. São Paulo desprendera-se, no interior do país, da
condição periférica na qual atravessara o período colonial. Ostenta-
va um orgulho pouco verossímil de “grande cidade”, embora fosse
tosca por dentro das mentalidades e aparentemente “avançada” nas
exterioridades da vida. Morse engolfou-se nos encantos das festas
dos acadêmicos e dedicou-se duramente às tarefas de desencavar
os materiais que lhe permitiriam apreender a evolução daquele
heterogêneo mundo histórico. O seu porte elegante, suas maneiras
gentis, sua alegria tímida e sua atração pelo belo sexo fizeram com
que navegasse como um pioneiro nas conquistas mais agradáveis
e nas mais difíceis. Não era nem um “norte-americano tranquilo”
nem um nativo em busca de novos horizontes. Mas ficava entre
os dois, como alguém que se fizera notado e querido, e, ao mesmo
tempo, buscava as raízes mais profundas do ser (combinados com
equilíbrio apolíneo e dionisíaco). Sua simpatia por São Paulo nada
tinha, pois, de superficial. Traduzia uma qualidade de sua segunda
natureza humana.
Em 1954 São Paulo mostrava as cicatrizes do passado, evidentes
na rusticidade das elites no poder, e punha à mostra a ferocidade do
futuro, transparente nos pobres desenraizados, nos salários baixos
F lorestan F ernandes • 123

e no padrão de vida modesto dos trabalhadores, na trepidação das


classes médias lutando para não decair ou para mover-se para cima,
na dureza crua das classes dominantes, uma rocha comparável aos
“barões ladrões” de outros povos da Revolução Industrial. Essa
composição, que articulava passado e presente e projetava a cidade na
satelitização do seu interior e de outros Estados, deve ter sido o desafio
que conduziu Morse a reconstruir e a interpretar o seu objeto como
uma totalidade in flux, nas suas origens, nos momentos históricos
decisivos e no ponto de chegada, que prometia outros desdobramen-
tos na direção do futuro próximo e remoto. Ele não desempenhou
o papel do “estranho sociológico”. Sempre se orientou pelos valores
da história e a identidade do filho adotivo, contendo os arroubos de
entusiasmo e afiando as possibilidades da explicação global.
É importante ressaltar esses aspectos. O primeiro trabalho
de envergadura do historiador não é, necessariamente, um item
superficial em sua produção. Como explicar o passo ousado de
partir do ponto zero da “colonização” (assinale-se: não da civi-
lização, pois as terras eram ocupadas por diversas populações
indígenas) e tentar percorrer os altos e baixos da transformação
da “comunidade” em “metrópole”? Não basta para isso a energia
juvenil. Carece do talento maduro, manejado pela imaginação
histórica que agregue capacidade de invenção, dedicação extrema
à exploração de fontes e de bibliografias exuberantes e confiança de
que certas tendências gerais à continuidade e à mudança possuem
fundamento in re. Desse ângulo, o historiador jovem ultrapassa a
categoria de idade – a competência, a argúcia e o espírito criador
ganham a primazia e decidem o que será a obra. Suas potencia-
lidades básicas de investigador – e não a condição de “estranho
sociológico” ou de “observador participante” – dirigem o fluxo do
trabalho e da invenção.
Morse encontrou certos caminhos desbravados. Mas não havia
qualquer estudo da formação e desenvolvimento da cidade como
124 • R ichard M orse : o historiador enquanto jovem

totalidade histórica. Poder-se-ia pôr em questão se o tratamento


conferido à documentação e se as descrições correspondem a uma
noção rigorosa de totalidade. Porém, em nenhuma passagem ele
se prende a esta compreensão, que brota do esforço de apreender
onde, como e por que São Paulo se articula como comunidade e
se metamorfoseia em metrópole. Também se poderia enfatizar
que a totalidade nunca se revela a partir de esferas da ecologia, da
economia, da sociedade, da cultura, da política etc. Suas percepções
não excluem as partes e suas articulações nos todos sucessivos.
Contudo, sem propor a priori como se concretizará a integração
do todo, algo variável quando se passa de agregados (menos que
totalidades) a comunidades de diversos tipos e a metrópole em
vir a ser. O fato deveras crucial é que todas essas constelações de
dados compõem o painel unificador (cujas condições, processos e
efeitos são apontados nos limites do essencial). Às vezes, a cultura
ganha maior relevo (como acontece com o parnasianismo e o
modernismo). No entanto, como entender a comunidade rústica
em desintegração ou a emergência da metrópole sem essas ênfases
reveladoras?
A economia parece merecer uma análise insuficiente. Mas a
alternativa é clara. Ou Morse abandonava um padrão de recons-
trução da história, que o obrigasse a operar como antropólogo
ou como sociólogo, ou continha as incursões na economia, para
extrair as forças econômicas comunitárias e supracomunitárias que
mantinham São Paulo como forma de vida rústica da periferia
da Colônia, ou estendia as indagações a fatos de menor impor-
tância dinâmica em sua diferenciação e reintegração. À medida
que o peso das tendências econômicas adquiria maior densidade
e maior importância explicativa, elas são apontadas com nitidez
e selecionadas para explicar os últimos estágios da comunidade e
a rápida eclosão metropolitana. O ecletismo no uso de conceitos
básicos (como “comunidade” e “metrópole”) e nas técnicas de
F lorestan F ernandes • 125

investigação ou nos métodos explicativos dilui-se paulatinamente,


sem desaparecer, pois ele emerge como a espinha dorsal de uma
imaginação histórica que pretende abrir-se em múltiplos focos de
entendimento de um processo histórico que parece simples, mas
apresenta enorme complexidade.
Há, sem dúvida, um elemento idealista, que permeia seu plura-
lismo eclético. Conceitos, como “cidade-mente”, adquirem saliência,
surgindo em título de capítulo e no texto. A abordagem, todavia, ex-
prime um clima intelectual nas academias de elite, que desprendia o
idealismo de tradições dogmáticas. Ela se entronca com posturas que
diluíam tanto o cientismo positivista e mecanicista, quanto a concep-
ção dialética da história como a “ciência do homem”. Esclarece-se,
assim, a contenção dos fundamentos filosóficos (inclusive pragmáti-
cos) da reconstrução e da interpretação das duas totalidades-polares,
a comunidade e a sociedade. Isso enriquece as indagações de longa
duração, à custa da perda do resgate do objetivo visto em si e por si e,
mais ainda, da compreensão e explicação em profundidade daquilo
que Morse consigna como “o tema condutor desta história”. Como
oposição de contrários e produto de antagonismos que desentranham
a “metrópole” (sociedade) na desintegração da comunidade estão
processos que repetem em segundo grau uma evolução típica origi-
nária. Tais processos foram descritos conceitualmente e superpostos
através de dinamismos históricos por Ferdinand Tönnies. Nem a
comunidade compósita colonial nem a sociedade de origem colo-
nial recente (“metrópole”) contêm afinidades indiscutíveis e densas
com as configurações civilizatórias das sociedades europeias. Não
há o intento explícito de proceder a paralelismos tão contundentes.
Contudo, “o tema condutor” procede dessa inspiração irrealizável e
que só transparece, até meados do século passado, como ilusão do
pensamento do colonizado.
A coragem de ir tão longe, nas aproximações, nasce menos das
influências diretas de Tönnies, que da obra dos urbanistas com
126 • R ichard M orse : o historiador enquanto jovem

treino em ciências sociais e prática na crítica comparada (às vezes


também práticas) dos dilemas provocados pela metropolização.
Nessa esfera a imaginação de Morse não falhou. O compasso
empírico e as projeções conjeturais apanharam audaciosamente
evoluções mais ou menos próximas. Não obstante, apesar das
ricas incursões na sondagem das vias do urbanismo nascente
(como fato e tendência) e do conhecimento da literatura sobre o
desenvolvimento econômico da América Latina e suas consequên-
cias presumíveis, os enigmas da história teriam de ser aprendidos
com a própria experiência humana. A hipótese que levanto não se
liga a lapsos juvenis, porém às dificuldades do intelectual norte-
-americano de sair de sua pele... Morse captou muito bem, em
exemplos ocasionais, as diferenças da expansão norte-americana
nas Américas ibéricas. Mas negligenciou o seu sentido imperialista
preciso e o quanto ela custaria mais caro para nós que o colonialis-
mo espanhol e lusitano. Os Estados Unidos e a Europa industrial
levaram o colonialismo até o fim e até o fundo graças aos dina-
mismos econômicos, geomilitares, socioculturais, diplomáticos e
políticos do capital oligopolista da era atual.
Isso já era visível, de uma perspectiva histórica, na década de
1950. O pós-guerra iluminou esses processos macrossociológicos,
desvendando a natureza do mundo criado pelas novas orientações
dos Estados Unidos e das corporações gigantes em escala mundial.
Alguns historiadores e ensaístas deram-se conta do que sucedia,
embora tenha sido na década de 1960 que as coisas ficaram trans-
parentes – definitivamente claras. O que chama a atenção é que
um historiador jovem, com o porte de Richard Morse, caísse na
armadilha de uma autonomia relativa do “tema condutor” em
países como o Brasil (repetindo um paradigma interpretativo do
colonizado). Havia uma larga faixa de situações e processos histó-
ricos determinados “a partir de dentro”. Entretanto, nos aspectos
mais incisivos, do período colonial até hoje, o mais importante
F lorestan F ernandes • 127

era determinado “a partir de fora”, mediante influências que não


podiam ser reduzidas, desviadas dos seus cursos ou anuladas. Desse
ponto de vista, a comunidade chegava a ter uma soma maior de
autodeterminação (principalmente na periferia do nosso mundo
colonial) que a “sociedade” (ou a metrópole). A metropolização
desencadeava forças histórico-sociais novas, muitas dotadas de
certa autonomia oscilante. Mas ela eclodia como um processo de
incorporação crescente aos megaprocessos civilizatórios, dos quais
as nações centrais e as multinacionais não abriam mão, os Estados
Unidos em particular (com sua filosofia do “destino manifesto” e
o pan-americanismo que significam as “Américas para os Estados
Unidos”).
Por essa razão, o historiador que se serviu de seu talento e
audácia juvenis para recuperar sucessivas formas de comunidade
e o arrancar da metrópole perdeu aquilo que poderia ser a sua
contribuição mais vigorosa e pioneira: a passagem da investigação
acadêmica altamente inovadora para a história crítica propriamente
dita. Deixou marcada a sua presença como renovador no estudo do
passado, em uma cidade tão complicada como São Paulo, ultrapas-
sando os limites estreitos da historiografia anterior. Todavia, perdeu
a oportunidade de figurar entre os fundadores da história crítica,
em uma ocasião em que se desmistificava a “história oficial” e se
procurava fazer da história o eixo das indagações que conduziam os
historiadores radicais contra a defesa cega ou vesga da ordem social
existente. Simpático a esses círculos e seu frequentador assíduo,
Richard Morse não se imiscuiu nos valores dos seus protagonistas
mais íntegros. Resguardou-se como e enquanto historiador, pro-
tegendo sua imaginação histórica criadora dos desafios da história
crítica e dos dilemas sociais de iniquidades humanas que ainda
hoje renovam o passado no presente.
PARTE 2
PRÁTICA POLÍTICA RADICAL

Nesta segunda parte arrolei alguns representantes da radicali-


dade política. Ser radical, como assinalava Marx, é ir ao fundo das
coisas. Há, entretanto, uma variedade de radicalismos, os quais
refletem as diversas modalidades do ser radical. Personalidade e
cultura fundem-se com as tensões e contradições da sociedade
e produzem atitudes e padrões de comportamento divergentes.
Reforma e revolução são processos que ocorrem historicamente,
forjando oportunidades para ajustamentos antagônicos à ordem
existente. Uma cidade como São Paulo, com seu centro industrial
e financeiro e com o protesto operário caminhando em muitas
direções, eleva a possibilidade de diferenciação e de eclosão, tanto
da reforma, quanto da revolução. As fronteiras entre uma e outra,
como demonstrou Rosa Luxemburgo, são labiais e instáveis. As
manifestações reformistas parecem mais fáceis de objetivação,
especialmente quando correlacionadas com o desenvolvimento
capitalista. Não obstante, a sociedade brasileira tende a solapar as
mudanças intrínsecas às reivindicações reformistas e a fechar-se
às alternativas revolucionárias dos de baixo.
Como na primeira parte, aqui também cingi-me a escritos que
resultaram de minha atividade como publicista. Resolvi, assim,
130 • P rática política radical

as dificuldades de um roteiro sistemático. São muitas as perso-


nalidades representativas, a exigir atenção. Elas não constam das
presentes reflexões, apesar de seu número e importância prática e/ou
teórica. Cuidei de um painel que apanha expressões características
de nossa radicalidade.
Ninguém poderá negar que Luiz Carlos Prestes projetou-se
como a personalidade-símbolo do comunismo no Brasil. Há
muita controvérsia a respeito de sua formação militar e de falhas
cometidas na direção do Partido Comunista. Nada disso empa-
na o renome que granjeou graças à sua dedicação ao partido e,
principalmente, aos trabalhadores e ao movimento sindical. Já
idoso e amargurado, com frustações alimentadas pelo imprevisível
desfecho de uma carreira consagradora como líder rebelde, jamais
deixou de solidarizar-se com as atividades sindicais marcantes e
de participar de manifestações políticas amplas. Os que podiam
observá-lo não tinham como evitar fortes comoções, mesmo que
no passado estivessem em trincheiras opostas.
Essa coerência não é exclusiva de Luiz Carlos Prestes. Ela cons-
titui algo típico dos membros de sua geração que exerciam papéis
de militância ou de direção. No seu caso pessoal, conseguiu vencer
deficiências teóricas que provinham da extrema posição hetero-
nômica dos Partidos Comunistas (PCs) da periferia. Estratégias e
táticas, com flutuações políticas determinadas em escala mundial
pela União Soviética, deixavam estreito espaço para a construção
de planos de agitação, de propaganda e levante global, adequados
às condições brasileiras.
Além dessa castração, acho que se deve reconsiderar o modo de
focalizar a equação pessoal, desvinculada de fatores e circunstâncias
mais ou menos incontroláveis da cena histórico-social, como se o
líder “pudesse tudo”. Essa aberração aparece como estranha na
proliferação crítica dos seus adversários, fortuitos ou persistentes.
A mais superficial análise marxista evidenciaria a necessidade
F lorestan F ernandes • 131

de correlacionar a prática política – reformista ou revolucionária


(pelo menos como intenção) – com a personalidade do líder e as
condições materiais e sociais de existência. Até que ponto o meio
circundante opera como freio ou multiplicador de diretrizes polí-
ticas comunistas? Prevalece, sobre tudo e contra todos, a vontade
do agente principal?
Fui levado a essas reflexões graças a um conhecimento mais
sólido das ideias de Jacob Gorender. Ele adquiriu sobre Prestes
uma familiaridade que me falta. Não obstante, as perguntas feitas
põem uma questão central. A sociedade, já madura para interven-
ções reformistas radicais e para a revolução social, em virtude de
um desenvolvimento capitalista insuficiente, favorece o polo da
dominação de classe. Ela filtra e concretiza desproporcionalmen-
te as pressões e os controles dos de cima, inseridos no comando
arbitrário da ordem estabelecida.
Cria-se, assim, um dique, o qual possibilita a sobrevivência da
extrema-esquerda, mas afoga a margem potencial dos grupos de
“alta periculosidade” e obriga a zigue-zagues penosos, não a um,
mas a todos os partidos ou movimentos antagônicos ao capita-
lismo. A mais estrita fidelidade aos princípios da luta de classes
não impede que, no terreno da ação, a prática “possível” entre em
conflito com a teoria revolucionária. É óbvio que se torna impe-
rioso fixar limites; e que as barreiras à ação não pressupõem nem
o derrotismo nem a passividade.
Supor que Prestes pudesse transformar essa situação seria o
equivalente político de que ele seria um fiat lux, antecipando,
por sua influência pessoal, reformas radicais e uma revolução que
exigem a presença ativa, coletiva e organizada dos trabalhadores
e seus eventuais aliados.
Há muitos aspectos da sua vida que merecem revisão. Toda-
via, sinto-me inclinado a tocar em um só deles: seu empenho em
estudar o Brasil e os avanços da teoria marxista (de um prisma
132 • P rática política radical

soviético), em sucessivos esforços no sentido de remover insufi-


ciências de uma formação intelectual acidentada. No primeiro
encontro que mantivemos, em minha casa, durante a campanha
eleitoral de 1986, ele queixou-se amargamente da escassez de obras
de investigação histórica e sociológica sobre a sociedade brasileira.
Referiu-se aos meus livros e aos de Celso Furtado dizendo: “agora
já existem livros sólidos. Em meu tempo, infelizmente, não con-
távamos com nada disso”. Trata-se de uma sede de saber que não
se entrosa com o ecletismo ou o “enciclopedismo” correntes entre
socialistas e comunistas de vezo romântico. Suas preocupações
pressupunham um duplo nexo entre marxismo e transformação
do mundo.
O fato político deveria destilar desdobramentos intelectuais.
Há, por trás dessa concepção, a ideia de que a personalidade
revolucionária precisa interagir com os progressos da ciência e
da pesquisa científica. Daí resultava uma disciplina de trabalho
motivada pelo autodidatismo e o autoaperfeiçoamento. O ator
político rebelde está obrigado a reelaborar a conexão recíproca
entre os objetivos de sua atividade e os avanços do saber teórico,
partidário ou acadêmico. Essa apreciação colide com uma imagem
difundida de menosprezo de Prestes pelos intelectuais. Nesse e em
outros pontos sua presença histórica clama por uma reavaliação,
que leve em conta a totalidade dos papéis que ele desempenhou
ao longo de uma sofrida e complexa trajetória.
Aqueles que acompanharam a vida de Gregório Bezerra sabem
que ele sempre foi um militante comunista voltado para a ação.
Tornou-se um dos heróis do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
na luta contra a ditadura militar. E um inimigo que não foi pou-
pado de sevícias e humilhações desumanas. Não cedeu nem se
vergou ao algoz. Ao contrário, nessas condições selvagens, elevou-se
ainda muito mais alto.
F lorestan F ernandes • 133

Num momento de crise, de crítica construtiva e de cisões, to-


mou a si uma demonstração prática. Percorreu vasta área buscando
adesão dos sem-terra e dos trabalhadores do campo às bandeiras
da revolução. Teve êxito surpreendente, embora efêmero. Havia
experiências acumuladas de reformistas e revolucionários no tra-
to com a questão da terra e dos seus deserdados. Todavia, nessa
esfera, os reformistas, que davam combate aos comunistas, foram
mais longe.
Nas rupturas então ocorridas era patente que a extrema es-
querda abria a sua frente, sem ir ao fundo dos conflitos. O PCB
contentou-se com uma simulação. Preferiu uma linha oficial equí-
voca de “marcar posição”, o que descontentou líderes e quadros
com outra visão das tarefas do partido. Os objetivos de Gregório
Bezerra não se acomodavam a essa necessidade de manter um
desafio candente em suspenso.
Ele cortou o nó górdio, evidenciando que “o campo estava ma-
duro” para agitações entre os “miseráveis da terra”, sem subterfúgios
diante da repressão e da perseguição dos proprietários, do governo
ou de grupos paramilitares norte-americanos camuflados. Usou
o que conhecia melhor: a prática como forma de comunicação
política. Os “teóricos”, como tática de autoproteção, segregaram
o partido numa redoma de vidro. Ele estilhaçou essa montagem
revelando concretamente que os de baixo teriam respondido com
ardor a uma conduta política contra a ordem, se essa opção rece-
besse endosso partidário vigoroso. Bezerra enfileirou-se ao processo
desencadeado pelos líderes que exigiam coerência entre as linhas
do partido e as funções que ele deveria protagonizar na esfera da
luta de classes, sem entregar-se a alardes revisionistas.
Sua herança manteve-se viva graças aos companheiros e segui-
dores, que formaram um núcleo de propagação e continuidade
de suas ideias revolucionárias. É preciso que se reconheça que a
prática exigente constitui a via de transformação da sociedade,
134 • P rática política radical

em países com os mais dolorosos dilemas sociais como o Brasil. O


sofrimento acicata os ânimos da população excluída ou humilhada
pela exploração crescente. Ele a estimula a identificar-se com as
mudanças radicais em seu comportamento diante dos agentes de
sua condenação à miséria e do Estado que os representa.
No cenário de violência decorrente da repressão policial-militar,
a morte trágica de Carlos Marighella ofuscou a trajetória de sua
vida. Vítima da ditadura, caiu baleado em uma emboscada infame,
arquitetada e realizada com apuro. Sua presença já havia incendiado
a imaginação dos jovens e de ampla parte da geração adulta com
inclinação radical. Todos queriam limpar o Brasil dessa nódoa e
esperavam a oportunidade propícia a manifestações incisivas.
O Marighella dos primeiros anos fora tragado no tempo e o
“último Marighella” acabou sendo mal conhecido no conjunto de
sua produção teórica. Ele percorreu o caminho da disciplina, mas
evoluiu na onda de rebelião contra os métodos de direção do PCB.
Nas duas etapas, ligadas entre si, a aquisição de experiência política
legal e clandestina e o florescimento autônomo da prática revolucio-
nária fervem no horizonte intelectual de um combatente ardoroso.
Contudo, é o “último Marighella” que interessa mais vivamente
ao estudioso da transformação e crise da esquerda revolucionária.
Ele rasga uma concepção do mundo original no Brasil. Vincula
a herança clássica do marxismo à efervescência do pensamento
contestador latino-americano. Não copia o “modelo cubano”,
dele extraindo apenas ensinamentos básicos. Em roteiro próprio,
prefere aproveitar os dados de uma situação histórica que pedia
uma representação de síntese.
As circunstâncias eram propícias às tarefas a que devotou sua
vocação crítica. A ditadura militar abriu brechas profundas em uma
realidade sempre mistificada. A revisão histórica e política propor-
cionava novas descobertas. Ao golpear a sociedade constituída, a
ditadura colocou em realce as debilidades do desenvolvimento ca-
F lorestan F ernandes • 135

pitalista e do Estado que favorecia os grão-senhores, da terra ou do


exterior. O desmascaramento atingiu níveis audaciosos e originais.
Na outra ponta, o retraimento da direção do PCB exigia um
ataque análogo. Nunca, antes, seus críticos chegaram tão longe
ou foram tão inventivos. Nem mesmo os trotskistas faziam-lhe
sombra, porque sua cisão mais importante trazia a marca de um
paradigma teórico e prático também importado. Carlos Marighella
alargou a teoria, para que nela coubessem as crueldades sofridas
pelos de baixo; e estendeu a prática, incluindo nela coerência e fir-
meza. Porta-se com equilíbrio, ficando rente aos questionamentos
essenciais.
Esse Marighella, que alcança a plenitude nos derradeiros anos,
interessa a todos nós pela maneira de colocar a problemática do
marxismo revolucionário no Brasil. Sua principal contribuição
consiste em realçar a adequação política envolvida nas asperezas
e nas possibilidades da sociedade brasileira. Sob muitos aspectos,
aparece entre os grandes revolucionários da nossa época, que não
assimilavam o marxismo passivamente, pois entenderam teoria
e prática como resultantes de condições históricas específicas,
combinadas a fins que se repetem em escala geral. Elaborou, desse
modo, suas concepções de síntese, adequadas às atividades concre-
tas, opondo-as às abstrações do padronizado ABC do comunismo.
Entre os personagens considerados, Hermínio Sacchetta conta
como amigo e companheiro de uma mesma jornada. Ele desem-
penhou, ao longo de sua vida, um papel singular: o de descobrir
talentos políticos abertos à atividade clandestina. Conheci-o no
início da década de 1940, quando os radicais convergiam para o
ataque ao Estado Novo e ao então ditador Getúlio Vargas. O núcleo
trotskista ativo filiava-se à Quarta Internacional e tinha acesso a
excelentes monografias e estudos que vasculhavam o panorama
revolucionário do mundo. Era uma iniciação marxista de alto ní-
vel. Pena que as questões teóricas fossem negligenciadas em favor
136 • P rática política radical

das ações de agitprop (agitação e propaganda) contra o regime. As


reuniões de células e a discussão do roteiro de publicação de livros
clássicos do marxismo suplementavam precariamente a formação
teórica dos militantes.
Sacchetta possuía dotes magnéticos. Era incisivo e convincente
nos debates do núcleo e na escolha das alternativas restritas de
combate a um presidente que desfrutava de imensa popularidade.
Além disso, a repressão afinava-se pelos padrões usuais, de perse-
guição policial implacável. Somente estudantes da Faculdade de
Direito tomavam o pulso da situação, arriscando-se ao desafio
frontal. Diante de um corpo estudantil pulverizado pelo medo ou
pela indiferença, constituíam um nicho de rebelião que os radicais
aproveitavam. Isso significava, também, perigos reais para os que
dividiam a praça pública com os estudantes. As humilhações como
as cusparadas e os xingamentos dos agentes policiais, precisavam
ser engolidas a sangue-frio.
Devido à cisão que liderou no PCB de São Paulo, prenuncia-
dora de fragmentações que iriam eclodir mais tarde, Hermínio
Sacchetta tornou-se um personagem odiado no partido. Nada o
impedia, porém, de manter-se firme na luta. O núcleo trotskista
dispunha de reduzida base operária. Predominavam intelectuais
e profissionais liberais de classe média, revoltados com a conjura
militar que deu suporte à implantação do Estado Novo. Todos
apoiavam Sacchetta com entusiasmo e admiração. Mestre na
arte de seduzir, ele preservava a unidade e o fluxo das realizações
clandestinas. Não era fácil conseguir êxito em um partido tão
frágil. A parte propriamente teórica apresentava estrangulamentos
inevitáveis. A área dos embates contra uma república deteriorada
atraía o esforço da maioria, com a divulgação de um jornalzinho
mimeografado de baixa circulação. Após a queda de Getúlio, o
regime não se desmantelou. Os trotskistas dedicaram-se às tarefas
consagradas pelas experiências anteriores – dentro dos princípios
F lorestan F ernandes • 137

e valores da Quarta Internacional – graças à maleabilidade e à


pertinácia de Hermínio Sacchetta.
Há ensinamentos importantes na organização e funcionamento
de pequenos grupos radicais e revolucionários. O trotskismo teve
aceitação imediata por personalidades já predispostas à sedição.
Entretanto, a dinâmica desses grupúsculos esbarrou com fronteiras
pouco claras à sua compreensão. Em sociedades mais diferenciadas
politicamente, eles tanto chegaram a representar problemas para
os partidos de grande envergadura, quanto um fermento que pre-
cipitou transformações da radicalidade por tendências extremistas
de identificação entre marxismo e revolução social.
No Brasil, o meio tosco reduziu o alcance potencial de ambas
as polaridades. Além disso, a saída de voltar-se para dentro, para o
fortalecimento rápido ou lento, enfrentava obstáculos práticos. O
clima de opressão brutal do Estado Novo, por sua vez, impunha
limites sufocantes à existência e sobrevivência dos grupúsculos revo-
lucionários, segregados do ambiente por barreiras de comunicação
e por temores que só a politização intensiva pode dissolver. Sobe à
tona o significado que eles adquiriram nas condições históricas com
as quais se defrontaram para levar precariamente à ação, objetivos
tão complexos. À luz dessas ponderações, Hermínio Sacchetta
emerge como um autêntico herói desconhecido.
Também fui amigo de Cláudio Abramo e o admirava por seus
dotes intelectuais. Ele possuía uma personalidade complexa e versátil,
ajustada às tarefas cotidianas do jornalista. Era encantador quando
queria e mais ou menos duro quando as circunstâncias exigiam a
crítica dos fatos e do comportamento das pessoas. Pertenceu ao
grupo trotskista de São Paulo, mas não é desse ângulo que interessa
a uma discussão de sua posição na extrema-esquerda. Era como e
enquanto jornalista que expunha anseios políticos e estancamentos
na mudança social. Eles se atritavam, descortinando ao jornalista
sagaz o calcanhar de aquiles da situação brasileira. Cultivava, dentro
138 • P rática política radical

de um estilo inteiramente produzido por suas habilidades como


comentarista, uma forma direta de comunicação com o leitor.
Nos contatos com outros atores do drama cotidiano, gostava
de exibir um ceticismo devastador. Era, contudo, um jogo de apa-
rências. No íntimo, distinguia aqueles que se assustavam com suas
atitudes dos que mereciam um tratamento carinhoso. Estes deviam
corresponder, na vida real, a padrões éticos exigentes, especialmente
na esfera política. Contribuiu para difundir nas entrelinhas o tipo
de consciência crítica inerente ao socialismo e preliminar a qualquer
manifestação de rebelião dos oprimidos.
Quem o lesse com sequência e acuidade experimentava o fas-
cínio de uma inteligência em choque permanente com a sociedade
burguesa, tal como ela se constituiu no Brasil. Nesse plano, não fazia
concessões aos filisteus, que infestam todos os níveis da política como
comércio. Daí uma radicalidade pura, na qual elementos abstratos
distilam o fator política. Nesse sentido, foi um grande precursor do
jornalismo moderno. Embora dissentisse da informação empírica,
por si mesma, forrava suas percepções e explicações de “fatos claros”.
O artesão cumpria os seus papéis de jornalista como alguém em-
penhado na revelação da realidade oculta. O radicalismo brotava em
pequenos comentários lúcidos, tomando de assalto o pensamento do
leitor. Cláudio Abramo espelhava propensões à crítica de ideias e de
acontecimentos políticos que iriam florescer mais tarde. Elas apareciam
despojadas de substância política e ideológica; embora dimensionadas
pelas influências do “jornalismo de massa”, da grande imprensa escrita
ou eletrônica, articulavam-se ao jornalismo como “obra de arte”. Por
sua vez, também aprendeu as cumplicidades características de uma
elite dirigente, de temor insano ao socialismo. Seu equilíbrio como
jornalista permitia balancear consciência crítica socialista e contenção
do cerceamento da ordem sobre seus raciocínios. Resguardava, assim,
sua arma predileta de combate intelectual e político.
F lorestan F ernandes • 139

Henfil explodiu na cena pública interagindo de imediato com


seu momento histórico e com os dramas da sociedade capitalista
no Brasil. Representante de uma geração “engajada” ocupava todo
o espaço político que o esquerdismo chegou a saturar. Não foi
marcado pelas experiências das décadas de 1940 e 1950, embora
no plano das leituras evidencie um aproveitamento sagaz do co-
nhecimento sociológico então florescente.
A sua radicalidade brotou e difundiu-se como febre entre os
leitores de jornal. Seus personagens, os Fradinhos, solapavam a
ordem social de forma inteligente. Faziam jus ao brocardo: corrigir
os costumes rindo. Não eram dissolventes, mas exteriorizavam uma
repulsa que exigia uma nova sociedade. O leitor precisava cooperar
com o autor. O frêmito da novidade que descobrira e passava adian-
te enriquecia e incitava a recusa do conformismo. Além disso, seus
livros levavam essa atitude a um plano mais rico e seletivo. Sua ida
aos Estados Unidos propiciou a criação de uma obra que demolia
o prestígio ianque, a racionalidade das corporações gigantes e do
tipo de Estado funcional para os modernos interesses capitalistas na
periferia. Toda a digressão sobre o hospital em que foi internado é
ácida e impiedosa. Sem perder o equilíbrio, esmiúça e desmascara
as aparências da organização “perfeita”. São páginas antológicas e
raras, que reduzem ao absurdo o american way of life.
Punha-nos diante de uma radicalidade política nascida da
produção artística, polarizada à esquerda. O consumidor da cul-
tura adquiria uma consciência social humanista e humanitária. A
solidariedade e as mudanças sociais de estrutura qualificavam a
tomada de posição prática, a partir da qual o universo era visto em
sua trepidação caótica e contraditória. Por isso, Henfil surge como
um meteoro, cavaleiro andante da reforma social. Numa época na
qual a juventude tendia à esquerdização, ele respondia do modo
mais ousado, desenhando as possibilidades de transformação que
não pareciam ao alcance das mãos. A morte precoce privou-nos
da sua convivência, mas deixou sulcos profundos no horizonte
cultural dos brasileiros revoltados contra a miséria e as destituições
que cimentam as rotas do privilégio e do poder.
LUIZ CARLOS PRESTES:
ESPERANÇA E REVOLUÇÃO*

Porto Alegre/RS, 1898 – Rio de Janeiro/RJ, 1990


Egresso da Escola Militar, participa do movimento
tenentista. Subleva o Batalhão de Santo Ângelo (RS)
em 1924. Adota a guerra de movimento e, unindo-
-se aos rebeldes paulistas, dá início à longa marcha da
Coluna Miguel Costa-Prestes. Em 1926, exila-se na
Bolívia, onde se aproxima do marxismo. Toma parte
das conspirações para a derrubada de Washington Luís
mas, em 1930, recusa o comando militar da revolução,
afastando-se dos tenentes. Viaja para URSS em 1931, de
onde retornaria quatro anos depois para liderar a revolta
comunista de 1935. Preso em março do ano seguinte,
passa nove anos na cadeia. Com a redemocratização de
1945, é eleito senador na bancada do PCB. Cassados os
mandatos comunistas em 1947, volta à clandestinidade
por cerca de dez anos. Com o golpe de 1964, tem seus
direitos políticos cassados novamente e vai para o exílio.
Anistiado em 1979, volta ao país.

A vida de Luiz Carlos Prestes atravessa a história do Brasil


e marca, dramaticamente, os limites da atividade libertadora,
nacionalista e revolucionária. Tornou-se herói antes de afirmar-se
como símbolo das possibilidades revolucionárias frustradas e foi
a sua lenda que levou os comunistas até ele: um partido “fraco”
buscava fora de seus quadros uma bandeira forte e o que parecia
ser o caminho mais rápido para a conquista do poder.
Inicia-se, assim, uma carreira política ímpar. Luiz Carlos
Prestes não foi do comunismo à revolução. Saltou da revolução
ao comunismo. O que quer dizer que o seu ardor revolucionário


*
Escrito em 1987 para uma publicação sindical. Inédito.
142 • L uís C arlos P restes : esperança e revolução

inquebrantável possuía raízes no solo histórico do nosso país e da


América Latina. Ele nasce e se alimenta da recusa firme e decidida
de uma ordem de privilégios, de iniquidades e de formas extremas
de exploração e opressão, que são repelidas com intransigência.
Foi isso que o separou dos companheiros da famosa marcha e que
não permitiu aos poderosos, Getúlio Vargas entre eles, atrair para
a órbita da ordem aquele militar rebelde atípico. À sedução do
poder ele preferiu a luta tenaz e incerta pela criação de uma nova
sociedade. É preciso que se reflita sobre isso, hoje e agora, aos 89
anos desse herói que caminhou da reforma para a revolução e fez
desta a razão de ser de sua vida. É o caminho de todos os grandes
revolucionários da América Latina. A recusa da sociedade existen-
te, da ordem de iniquidades e do mandão como lobo de outros seres
humanos. A via negativa, que aparece mesmo em Sierra Maestra:
o Exército Rebelde não possui uma concepção sobre a construção
de uma nova Cuba, mas aprendera e sabia muito bem o que devia
rejeitar, para converter a revolução social em realidade. Do Mé-
xico ao Brasil, de uma ponta a outra, o revolucionário não era o
produto acabado da luta de classes, da educação política através de
um partido revolucionário orgânico, a encarnação de uma vontade
proletária coletiva de autoemancipação e de autoliberação. Era o
rebelde que rompia com sua classe e com seus papéis sociais ou
que levava o protesto popular à esfera do político e, por vezes, da
luta armada.
A peculiaridade de Luiz Carlos Prestes tem a ver com as
condições econômicas e históricas do Brasil. Um partido comu-
nista com intelectuais de várias origens, inclusive anarquista,
com ramificações na frustração de setores decadentes das famílias
tradicionais, que remavam contra a corrente para manter-se pelo
menos em uma situação de classe média “pobre”, e com uma base
proletária e semiproletária difusa, que ia de pequenos comerciantes
a artesãos independentes e a operários organizados em sindicatos
F lorestan F ernandes • 143

profissionais, buscava uma chama exterior que despertasse o povo


para a insurreição e a conquista do poder. Na verdade, os poderosos
eram identificados como os “exploradores da nação”, excluídos do
nosso grupo (em termos da ótica libertária), e a própria revolução
era percebida como uma sorte de irredentismo, que teria de passar
como um elemento arrasador sobre a oligarquia, eliminando todos
os vestígios que a confundiam com o velho regime colonial. Em
suma, o antigo regime não desaparecera com a dominação por-
tuguesa. Crescera e fortalecera-se a ponto de ser o amálgama do
latifúndio com o imperialismo e de impedir o florescimento da
democracia, da unidade nacional e das liberdades políticas inerentes
ao Estado burguês. Este corporificava uma bastilha, cuja extinção
demarcaria o início de uma nova era.
Por aí Luiz Carlos Prestes chegou aos clássicos do marxismo
e iniciou uma aprendizagem política formal, que deslocou o foco
teórico e prático de sua posição de revolucionário. A sua devoção
entranhada à revolução ganha outro sentido e uma base social
congruente. Pela primeira vez em nossa história surge alguém
que iria descolar a revolução das transformações de superfície e
descobrir nos proletários a classe revolucionária, que mais cedo
ou mais tarde daria cabo não só da oligarquia e do antigo regime,
mas da confusão semântica que confinava a revolução ao mundo
do poder. A revolução era posta em seus próprios pés. Astrogildo
Pereira lograra uma vitória que ele mesmo não seria capaz de medir
e que iria exigir meio século de oscilações históricas dramáticas
para se esclarecer.
Muitos farão uma pergunta ingênua. Luiz Carlos Prestes não
é, antes, o símbolo da derrota da revolução proletária? O Partido
Comunista em crise não indica, objetivamente, que só existiam
miragens no ânimo dos defensores da luta de classes e da passagem
ao socialismo em um país tão submetido ao imperialismo e gover-
nado com rédeas curtas por uma burguesia despótica? A questão
144 • L uís C arlos P restes : esperança e revolução

não é tão simples. Um revolucionário que se vê batido no meio de


tantas lutas não significa a derrota de sua causa. A sua tenacidade
explicita algo mais complexo. Ela patenteia que a revolução não
só possui continuidade; que ela também se aprofunda. Afastado
do seu partido, ele amadurece a sua consciência de revolucionário
e o seu conhecimento teórico do marxismo, divorciando-se da
crise do partido e apontando saltos que ainda não foram tentados.
Além disso, o “sentimento revolucionário da massa”, a capacidade
de luta política dos proletários surge, nesse ínterim, como um fator
objetivo da história. E essa alteração recente coloca outros desafios,
estes sim ultrapassando a figura lendária do velho revolucionário
como pessoa e como agente histórico.
Esses são os parâmetros que se põem aos observadores que veem
criticamente. Luiz Carlos Prestes configura, para esses proletários
de origem social contemporânea e, com frequência, muito jovens,
a polaridade da esperança. Ele não é mais “o Cavaleiro da Esperan-
ça”. Esta imagem era parte de uma mitologia, que foi construída
sobre equívocos, por um partido que ainda não era proletariamente
revolucionário e socialista. A esperança que se equaciona é a espe-
rança coletiva de uma classe social que compõe a imensa maioria
e não tolera mais os de cima e está a um passo de lançar-se à de-
sobediência sistemática. Ele também não é mais o revolucionário
que elegeu uma classe social à qual serviria, pondo-se à sua frente.
A revolução proletária converteu-se em uma polaridade histórica
central. Portanto, ele não é o “chefe” ou o “líder”. Testemunha
uma situação e, ao mesmo tempo, simboliza a sua vitalidade. A
junção entre esperança e revolução se faz em sua pessoa e através
de sua pessoa como um dado do movimento histórico das classes
trabalhadoras. Por isso, ele surge como um termo de referência
e um elo de atração magnética. Aquele que não vergou repete a
história dos proletários e antecipa o seu desfecho!
GREGÓRIO BEZERRA:
INTEGRIDADE E GRANDEZA*

Panelas/PE, 1900 – São Paulo/SP, 1983


Camponês canavieiro aos cinco anos, empregado
doméstico de latifundiários aos dez e menino de rua
em Recife, para onde fugiu dos maus tratos, tornou-se
pedreiro em 1916 e militar seis anos depois. Ingressou
no Partido Comunista (PCB) em 1930. Dirigente da
Aliança Nacional Libertadora (ANL), em Pernambuco,
seria preso em novembro de 1935 e condenado a 28 anos
de reclusão. Libertado pela anistia, foi eleito deputado
federal constituinte do PCB. Cassado em 1947, mergu-
lhou na clandestinidade, dedicando-se à organização
de posseiros e trabalhadores rurais até 1964, quando foi
novamente capturado e vítima de torturas hediondas.
Condenado a 19 anos de cadeia pela ditadura militar,
seria um dos presos políticos trocados durante o sequestro
do embaixador americano em 1969. Banido do país, vi-
veu no México, Havana e Moscou, retornando ao Brasil
em 1979, com a anistia.

Gregório Bezerra cresceu, ao longo de sua vida, além e aci-


ma dos padrões humanos de integridade e grandeza da sociedade
brasileira. Não cheguei a conhecê-lo, mas sempre o admirei com
respeito: ele fazia parte do pequeno grupo dos que não cedem e
não se vergam, sendo ele próprio a mais bela e forte irradiação
do ser Povo, do transfigurar a dureza da vida em beleza humana,
em ação política consciente contra a miséria e a degradação dos
oprimidos. Era uma força telúrica e social, sempre pronto para
todos os sacrifícios e todas as lutas, no combate sem tréguas para
o qual arrastava, pela palavra e pelo exemplo, os deserdados da


*
Publicado em Folha de S.Paulo, 27 out. 1983.
146 • G regório B ezerra : integridade e grandeza

terra, incendiando mentes e corações com a chama de seu ardor


revolucionário.
É parte de nossa memória histórica a coragem com que enfren-
tou o suplício público. Cenas brutais, embora comuns em todo
o Brasil e particularmente no Nordeste da cana, com sua longa
tradição de pisas e da violência que desaba de cima para baixo em
função da vontade de tiranetes sanguinários, eclodiram pelas ruas
de uma cidade que não merecia aquela nódoa. A consciência na-
cional foi ferida, mas se esclareceu: os donos do poder mostraram
o que eram – a que vinham – e como iriam conduzir a República
institucional em relação ao “povo insubmisso”. Foi um verdadeiro
calvário que tocou aos cristãos e aos ateus, e colocou, acima do
desmascaramento da natureza íntima do golpe de Estado, a figura
exemplar do supliciado. Arrastado como um cão raivoso, Gregório
Bezerra mostrou que o ser humano se suplanta na desgraça e que
não há violência que possa abater um caráter firme e decidido.
Outras violências vieram depois – e muitas ainda mais bru-
tais e assustadoras. Contudo, nenhuma se comparou a essa, pelo
ódio extravasado, pelo banqueteamento público na carne e na
pessoa do vencido, pela ausência de civilização no massacre da
vítima indefesa. Esta, porém, não se despojou de sua dignidade
humana, ferida mas não destruída e tampouco acovardada. Posto
à prova mostrou-se à altura dos seus pares ancestrais e retirou do
sofrimento a mais contundente humilhação dos carrascos: revelou
a ira popular e o orgulho imbatível do ser espoliado, que derrota
o inimigo voltando contra ele a vergonha da desonra, da covardia
atroz e da desumanidade bestial. De norte a sul ficou claro que se
fizera o processo de um regime e que o mártir era, por seu desas-
sombro e capacidade de resistência civil, um herói político puro
e intemporal. As circunstâncias converteram o seu sacrifício em
realidade histórica, mas o que estava em jogo era o símbolo vivo
e perene de um povo insurgente.
F lorestan F ernandes • 147

Este poderia ser o clímax de uma vida e o ponto final grandio-


so da trajetória de Gregório Bezerra. Em um dado momento, ele
livrou uma nação – ou a parte maior da nação que não se deixou
corromper pelas ilusões que alimentaram e deram corpo à tirania
– do complexo de culpa, do rancor contra si mesma despertado
pela submissão passiva, e da vergonha coletiva compartilhada por
milhões de impotentes. Todavia, aquele não foi um momento
ocasional, um acidente pessoal e histórico, o ápice de uma vida de-
votada aos outros e à redenção dos oprimidos. Era o próprio modo
de ser de um homem que não se via como herói e repetiria, se fosse
preciso, mil ou cem mil vezes atos como aquele (ou ainda maiores).
Os limites de sua natureza humana transcendiam o episódio e, se
houve engrandecimento, este sim constituía um produto acidental
da história. A medida do homem do povo marcava os ritmos pes-
soais de Gregório Bezerra e estabelecia um estarrecedor contraste
com os “donos do poder”, vaticinando que em sua luta contra o
Brasil a República institucional nascia condenada ao malogro.
Os aspectos que desnudam essa particular grandeza humana
se tornaram bem conhecidos graças à publicação das Memórias
de Gregório Bezerra (editadas em dois volumes, em 1979 e 1980,
pela Civilização Brasileira). Não vem ao caso varar as páginas
dessa linda lição de vida, repetir o que a crítica já ressaltou. Mas
não iria mal evocar pelo menos dois tópicos das Memórias. Um
deles afeta a infância e a mocidade de Gregório Bezerra. Como
ele se solta do chão nativo e amadurece. O calibre de suas ilusões
e aspirações. Um sólido rebento popular, uma longa e obstinada
vocação para vencer a pobreza, a exclusão e a marginalização,
mantendo em toda a plenitude a impulsão do ser gente na órbita
histórica do mundo do povo. São límpidas e belas as páginas em
que podemos acompanhar a gradual projeção humana de Gregório
Bezerra a partir do arcabouço do existir comunitário primordial, do
qual nunca se desprendeu pelos conteúdos da razão; converteu-se
148 • G regório B ezerra : integridade e grandeza

no homem do Povo que saiu de um ambiente intelectual estreito,


mas que sustentou sua identidade originária com orgulho e dela
retirou a sua força psicológica criadora e rebelde. Por isso, mais
tarde, principalmente nas duras tentativas de combater a última (ou
mais recente) ditadura, ele não fala para o povo – é o próprio povo
que fala pela sua voz. Daí a facilidade com que aparentemente era
“seguido”. Extraía da substância do seu ser o que todos queriam,
exprimindo esse querer comum com as palavras políticas que os
outros não sabiam dizer (ou apenas conheciam por intuição, mais
ou menos parcial e obscuramente).
O outro tópico diz respeito ao significado deste homem para
a esquerda brasileira, que sempre usou uma telegrafia estranha
para se isolar da massa popular. Por sua própria natureza íntima,
Gregório Bezerra não era domesticado nem domesticável. O seu
senso de disciplina obrigava-o a palmilhar humildemente certos
caminhos que reprovava ou, pelo menos, com os quais não pode-
ria ser conforme sem mutilações. Militante firme, exemplar, que
dava de si tudo que tinha, no entanto ele era o contraste natural e
incisivo de qualquer modalidade de comunismo enlatado.
Referindo-se a 1947, por exemplo, Gregório Bezerra afirma:
Essa posição, a meu ver, apesar dos grandes movimentos de massa que
realizamos, em vários pleitos eleitorais, e das vitórias que obtivemos,
nos isolou um pouco dos setores mais radicais das massas populares.
Tanto é verdade que, em alguns casos, os operários, não suportando
mais os baixos salários, passavam por cima da orientação do partido
e deflagravam greves.
Quando os operários entravam em greve, o partido, que antes lhes
tinha desaconselhado essa forma extrema de luta, dava-lhes apoio,
fazendo autocrítica na prática (e o proletariado reconhecia que o
partido não o tinha abandonado). Mas o fato é que a orientação geral
do partido, naquele momento, levou-o a se atrasar em relação à luta
dos setores mais radicais da classe trabalhadora.
A meu ver, tínhamos cedido demais, em busca de uma união nacional
que não conseguíamos fazer e, em consequência disso, nos isolamos
F lorestan F ernandes • 149

bastante das massas sofridas, em virtude da nossa posição reboquista


com relação à burguesia (Memórias, v. 2, p. 57).

A sua integridade e objetividade qualificam também o diag-


nóstico referente à contrarrevolução em 1964:
A meu ver, confiamos demasiado no dispositivo militar dos nossos
aliados e subestimamos o dispositivo de nossos inimigos. Estávamos
com a cabeça cheia dos êxitos parciais. O nosso partido não estava
preparado para a luta armada e, em consequência, não preparou a
classe operária e as massas trabalhadoras para enfrentar o golpe.
Outro fator de nossa fraqueza era a nociva falta de unidade entre
as forças de esquerda. Os golpistas souberam aproveitar-se de todas
essas debilidades e alcançaram uma vitória tranquila (Memórias,
v. 2, p. 189).

Outras páginas, a seguir, indicam a potencialidade explosiva


das várias populações rústicas com que entrara em contato, numa
peregrinação revolucionária que desmente a propalada “tradição
de subserviência” e de “incapacidade política” das massas tra-
balhadoras rurais. Não é o oprimido que está longe do modelo
revolucionário. É este modelo que não se configura como realidade
histórica, à revelia das massas trabalhadoras.
Eis aí a figura enorme desse homem que morreu sem receber
os tributos que merecia pelos serviços que prestou às classes tra-
balhadoras brasileiras, às causas do Partido Comunista e à defesa
da revolução democrática no Brasil. Os jornais dedicaram páginas
inteiras a Raymond Aron, comprovando mais uma vez até que
ponto nos comprazemos com uma situação neocolonial na esfera
da cultura. Aron era um grande do pensamento europeu – mas seria
tão grande para nós? Ou pareceria Gregório Bezerra o anti-herói
nacional para uma consciência burguesa conservadora, culpada e
farisaica? Ora, pense-se o que se quiser, ele representa e exemplifica
a emergência do Povo na história. O Brasil nunca poderia ser mais o
mesmo depois dos episódios que degradaram a ditadura ao ponto
mais infame e mais baixo e, ao mesmo tempo, desmistificaram as
150 • G regório B ezerra : integridade e grandeza

falsidades e as ambiguidades das nossas “elites esclarecidas” e de


nossa propalada “tradição cristã”. Como diriam os católicos mili-
tantes mais ponderados: a sua vida é toda ela um testemunho de
rebelião criadora, de afã ou de ansiedade de autoaperfeiçoamento
e de identificação profunda com a democracia igualitária. Ele é o
elo que nos faltava para conferir ao movimento socialista revolucio-
nário uma sólida base na terra firme e o verdadeiro encravamento
no âmago da consciência popular.
CARLOS MARIGHELLA:
A CHAMA QUE NÃO SE APAGA*

Salvador/BA, 1911 – São Paulo/SP, 1969


Filho de imigrante italiano e de uma negra descen-
dente de escravos sudaneses, abandona a Escola Politécni-
ca da Bahia e ingressa no Partido Comunista Brasileiro
(PCB) em 1934. Preso e torturado em 1936 e em 1939,
permanece quase seis anos em Fernando de Noronha e
Ilha Grande, de onde saiu com a anistia de 1945. Eleito
deputado federal constituinte, foi cassado em 1947. De
volta à clandestinidade, trabalha na imprensa e orga-
nização do partido, ocupando vários cargos na direção
do PCB. Em maio de 1964 resiste à prisão, é baleado e
preso. Demite-se da comissão executiva em 1966 e torna
pública sua discordância com a linha pacífica do PCB.
Expulso no ano seguinte, organiza a Ação Libertadora
Nacional (ALN) e participa diretamente de ações da
guerrilha urbana entre 1968 e 1969, quando é assassi-
nado por uma equipe do Dops (Departamento de Ordem
Política e Social) chefiada pelo delegado Fleury.

O 4 de novembro de 1969 incorporou-se à história graças a


um feito policial-militar que culminou no assassinato de Carlos
Marighella. Faz, portanto, 15 anos que morreu o principal líder
e fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), figura política
que se tornara conhecida como militante do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), seu dirigente de cúpula e também seu deputado
no Congresso que elaborou a Constituição de 1946. Ele foi per-
seguido como a caça mais cobiçada e condenado à morte cívica, à
eliminação da memória coletiva. Só em 10 de dezembro de 1979,
quando seus restos mortais foram trasladados para Salvador, sua


*
Publicado em Folha de S.Paulo, 12 nov. 1984.
152 • C arlos M arighella : a chama que não se apaga

cidade natal, Jorge Amado proclamou o fim da interdição expia-


tória: “Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome
de baiano: Carlos Marighella”. No ano passado, removemos outra
parte da interdição, em uma cerimônia pública de recuperação
cívica e de homenagem que “lavou a alma” de socialistas e comu-
nistas de São Paulo.
Um Homem não desaparece com a sua morte. Ao contrário,
pode crescer depois dela, engrandecer-se com ela e revelar sua
verdadeira estátua à distância. É o que sucede com Marighella.
Ele morreu consagrado pela coragem indômita e pelo ardor
revolucionário. Os carrascos trabalharam contra si próprios; ao
martirizá-lo, forjaram o pedestal de uma glória eterna. Agora, esse
homem volta à atualidade histórica. Ele não redimiu os oprimi-
dos nem legou um partido novo. Mas atravessou as contradições
que vergaram um partido que deveria ter enfrentado a ditadura
revolucionariamente, acontecesse o que acontecesse. Desmascarou
assim a realidade dos partidos proletários na América Latina. Em
uma situação histórica de duas faces (como gosto de descrever),
contrarrevolução e revolução ficam tão presas uma à outra que são
os dois lados de uma mesma moeda. À superfície, parece que a luta
de classes opera em mão única – no sentido e a favor dos donos
do capital e do poder. Todavia, no subterrâneo (na “infraestrutura
da sociedade” ou no “meio social interno”) existem várias foguei-
ras, e o aparecimento de alternativas históricas pode depender de
“um punhado de homens corajosos” ou de partidos organizados
e preparados para a revolução.
Em vários países da América Latina, entre eles o Brasil, a bur-
guesia – apesar da dependência econômica, cultural e política – está
encravada nas estruturas de poder nacional e as controla com mão
de ferro. As ditaduras, “tradicionais” ou “modernas”, marcam as
oscilações súbitas, às vezes de curta duração, da guerra civil latente
para a guerra civil aberta. Nenhum partido dos oprimidos pode
F lorestan F ernandes • 153

pretender-se revolucionário, na orientação socialista ou comunista,


se não estiver preparado para enfrentar tenaz e ferozmente essas
oscilações. A “legalidade”, na acepção de uma sociedade civil
civilizada, é uma ficção. O grande valor de Carlos Marighella –
como de outros que enfrentaram corajosa e lucidamente aquelas
contradições, com a “crise interna do partido” – está no fato de
ter compreendido objetivamente e exposto sem vacilações o que
a experiência lhe ensinava. No diagnóstico, algumas vezes, ficou
preso a uma terminologia equivocada e a concepções mais ou me-
nos obsoletas, terminologia e concepções que ele pretendia apurar
e superar através de uma prática revolucionária consequente com
o marxismo-leninismo e com as exigências da situação histórica.
Por fim, acabou vitimado pela vulnerabilidade central: a inexis-
tência do partido que poderia abrir novos rumos na transformação
revolucionária da sociedade. Um partido desse tipo não nasce de
um dia para o outro. Requer uma difícil e longa construção. Ma-
righella caiu nos ardis que apontara, tentando derrotar o inimigo
onde era impossível fugir ao seu “cerco militar estratégico”. Não
fora ao fundo da análise da revolução cubana, ignorando o quanto
uma situação histórica revolucionária simplificara os caminhos
daquela revolução. A “via militar” revolucionária, no entanto, se
mostraria frágil sob o capitalismo dependente mais diferenciado
e, por vezes, avançado da América do Sul, especialmente depois
da vitória do Exército Rebelde em Cuba.
As deficiências e os equívocos de Carlos Marighella resultaram
de fatores incontroláveis e insuperáveis. Ele foi até onde seu dever
exigia, sem meios para tornar a missão necessária realizável. A re-
volução proletária não é um “objetivo” do partido revolucionário.
Ela é, ao mesmo tempo, sua razão de ser, seu sustentáculo e seu
produto, mas de tal modo que, quando o partido revolucionário
surge, ele é um coordenador, concentrador e dinamizador de
forças sociais explosivas existentes. Como assinalou Karl Marx,
154 • C arlos M arighella : a chama que não se apaga

“a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela


pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que
o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais
para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”. O que qualifica
e distingue as posições assumidas por Carlos Marighella é o pro-
pósito de romper com uma linha adaptativa, que retirava o Partido
Comunista do polo proletário da luta de classes, convertendo-o
em “cauda” permanente e em esquerda potencial da burguesia.
O seu marxismo-leninismo ficou muito mais próximo da
intenção que da elaboração teórica e prática consequente. O que
não o impediu de encontrar, através da prioridade política da prá-
tica e da acumulação de uma vasta experiência concreta negativa,
uma versão objetiva das sinuosidades do comunismo adaptativo
e tolerante que o marxismo acadêmico só descobriu tarde demais
ou, então, nunca teve gana de desmascarar. No momento mesmo
no qual nos vemos de novo impelidos para os erros do passado,
parece indispensável voltar às suas críticas e às razões de suas rup-
turas (ainda que seja impossível reabsorver o conjunto das soluções
teóricas e práticas que inspirou e difundiu). Em três pontos, pelo
menos, é indispensável tomá-lo como referência de uma purificação
marxista dos nossos partidos proletários revolucionários.
O primeiro ponto tem a ver com os vínculos diretos da teoria
com os fatos concretos e com a realidade, pela experiência crítica e
pela ação crítica. Essa orientação é básica para a elaboração de um
comunismo made in América Latina, construído por nós, embora
com raízes marxistas e leninistas. Ele situa em plano secundário o
intelectual “teórico”, eurocêntrico; e repele as “soluções importa-
das”, que impunham os modelos inviáveis de algum monolitismo
soviético, chinês etc. O segundo ponto é o mais decisivo, pois põe
em questão qual é o partido comunista revolucionário que deve
surgir das condições econômicas, sociais e políticas dos países da
América Latina (e do Brasil, em particular). Uma sociedade civil
F lorestan F ernandes • 155

que repele a civilização para todos e um Estado que concentra a


violência no tope para aplicá-la de forma ultraopressiva e ultrae-
goísta envolvem uma barbárie exasperada específica. Tal partido
deverá ser, sempre, uma espécie de iceberg, por mais confiável e
durável que pareça sua “legalidade”. Isso lhe permitirá interagir
dialeticamente nos dois níveis da transformação revolucionária
da sociedade – o burguês, por dentro da ordem; e o proletário e
o camponês, contra a ordem. O terceiro ponto refere-se à aliança
com a burguesia, que nunca deveria ter alcançado a densidade e
a permanência que atingiu. Um partido comunista dócil à bur-
guesia nunca será proletário nem revolucionário e terá, como sina
inexorável, que perverter a aliança política. “O segredo da vitória
é o povo.” O eixo de gravitação das alianças está, portanto, na
solidariedade entre os oprimidos; em suas lutas anti-imperialistas,
nacionalistas e democráticas, tanto quanto nas suas tentativas de
domar a supremacia burguesa, conquistar o poder ou implantar
o socialismo. Em suma, Carlos Marighella era um sonhador com
os pés no chão e a cabeça no lugar. Ele ainda desafia os seus perse-
guidores e merece dos companheiros de rota (e do antigo partido)
que levem seriamente em conta sua tentativa de equacionamento
teórico e prático do enigma do movimento comunista no Brasil.
HERMÍNIO SACCHETTA: AMIGO E
COMPANHEIRO DE JORNADA*

São Paulo/SP: 1909-1982


Jornalista, iniciou sua carreira na imprensa em
1928 no Correio Paulistano, tornando-se, em seguida,
redator de A Cigarra. Militante profissional do Partido
Comunista (PCB) a partir de 1934 foi, até 1937, um
dos principais editores do jornal A Classe Operária.
Por discordância com o Comitê Central, foi acusado
de “ fracionismo trotskista” e expulso do PCB, após
violenta campanha de difamação. Seis meses depois,
seria preso e condenado. Em 1939, tornou-se dirigente
do recém-fundado Partido Socialista Revolucionário
seção brasileira da Quarta Internacional, de orientação
trotskista. Trabalhou até 1969 em vários jornais: Folha
da Manhã, Folha da Noite, Jornal de São Paulo, O
Tempo, Shopping News, Diário de São Paulo e Diário
da Noite. Em agosto de 1969, por divulgar manifesto da
Ação Libertadora Nacional (ALN), foi novamente preso,
processado e impedido de exercer a profissão por cinco
anos. Somente em 1975 voltaria à imprensa, na editoria
de exterior da Folha de S.Paulo.

Conheci Hermínio Sacchetta por acaso. Um amigo, antigo


colega do curso de Madureza, Jussieu da Cunha Batista, trabalhava
como jornalista na Folha da Manhã. Sempre que eu podia, passava
pela redação, para batermos um papinho. Isso por volta de 1943.
Não me lembro exatamente quando fui apresentado a Sacchetta.
Ele era o secretário-geral e ia com frequência em busca de um ou
de outro jornalista, para dar ordens e supervisionar a produção.
Jussieu me apresentou a Sacchetta em uma dessas idas e vindas.


*
Publicado em ANTUNES, Ricardo (org.). O caldeirão das bruxas e outros escritos
políticos. Campinas: Pontes Editores/Editora da Unicamp, 1992.
158 • H ermínio S acchetta : amigo e companheiro de jornada

Ele sentia grande simpatia pelos jovens da Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras e abriu o seu encantador sorriso, ao saber que eu
estudava Ciências Sociais e estava no fim do bacharelado. Passei a
ser incluído no seu auditório de rotina e convidado para conversar
com ele em sua sala. Eram conversas rápidas, interrompidas por
sua tremenda carga de trabalho e pela variedade de assuntos que
devia enfrentar a cada momento. Daí ao cafezinho fora do jornal,
às conversas mais prolongadas e à amizade, que durou até o fim
de sua vida, foi um passo.
Como Sérgio Milliet me convidara para escrever em O Estado
de S.Paulo, no qual comecei a colaborar no início de julho de 1943,
(com três artigos sobre “O negro na tradição oral”), ele estrilou.
“Pombas, nós nos encontramos quase todos os dias e você vai
dar a sua colaboração ao Estadão.” Lembrei-lhe que ele nunca me
convidara para escrever na Folha, que nossas conversações eram
intelectuais e políticas, e não me movia o interesse de redigir ar-
tigos para vários jornais. Mas que estava às suas ordens. Ele fez
o convite formalmente, muito sério. O primeiro artigo saiu em
1/7/1943, sob o título “Livros que valem”. Isso estreitou mais os
contatos e a amizade.
Ele era um homem de atração magnética. Não conhecia os
meios-termos. Ia direto ao que fosse central. Como eu, estava
envolvido na luta subterrânea contra a ditadura Vargas. Só que
eu agia ao sabor das oportunidades, de informações de colegas da
Faculdade de Direito sobre encontros clandestinos, e, às vezes, não
confiava nos interlocutores, pois não possuía intimidade ou fami-
liaridade com eles. Os estudantes da Faculdade de Direito eram os
campeões da oposição a Vargas e à repressão policial. Misturava-
-me e ousava com eles nas escaramuças de rua ou conspirações
às quais comparecia mais gente, inclusive políticos profissionais,
intelectuais e burgueses radicais. Sacchetta abriu-me outra via de
combate, mais secreta e com propósitos revolucionários. Aos pou-
F lorestan F ernandes • 159

cos, alarguei minha convivência nessa área e acabei incorporando-


-me ao Partido Socialista Revolucionário (PSR). A militância que
ficava ao meu alcance não era intensa e profissional. Contudo, o
fato de pertencer aos quadros da Quarta Internacional abriu-me
novas responsabilidades e esperanças, outros horizontes. Vargas
e sua ditadura eram um alvo imediato. A revolução proletária
fixara-se como o objetivo essencial. Se não fizemos uma revolu-
ção – nem contra o Estado Novo nem contra a ordem existente
–, o meu pensamento, as minhas orientações políticas e a minha
personalidade sofreram uma mutação súbita. O socialismo vago,
reformista e utópico, iria ceder lugar a uma militância política
disciplinada, misturada com o contato com trabalhadores e inte-
lectuais trotskistas e com a agitação artesanal contra a ditadura.
Vi-me envolvido na elaboração de um jornal mimeografado, do
qual nos encarregávamos Sacchetta, José Stacchini e eu (rodado
de madrugada em minha casa), na sua distribuição e em uma cé-
lula da qual participávamos com Alberto da Rocha Barros, Plínio
Gomes de Melo e Vítor Azevedo (por pouco tempo, por ela andou
Luís Washington Vita, inquieto e em busca de seus verdadeiros
caminhos, que não se cruzavam definidamente com o socialismo
revolucionário). Para Sacchetta, eu me tornei “o Professor”. Vive-
mos juntos várias experiências contraditórias, inclusive a criação da
efêmera Coligação Democrática Radical e o desvanecimento das
esperanças de que a dissolução da ditadura nos levaria mais longe
do que a uma subdemocracia burguesa tutelada pelos militares,
sob o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra.
O que havia de melhor no mundo subterrâneo das atividades
políticas, que perduraram além da queda da ditadura Vargas, era
o convívio intelectual e político que mantínhamos com certa as-
siduidade e intensidade. Tornando-me assistente da Faculdade de
Filosofia e aluno de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia
e Política, eu enfrentava encargos intelectuais, discentes e docen-
160 • H ermínio S acchetta : amigo e companheiro de jornada

tes dispersos e pesados. Não podia ser um militante devotado a


todos os papéis e obrigações, ao mesmo tempo, pois logo entra-
ram em cena as teses (de mestrado e de doutorado), que iriam
ser uma fonte de atrito constante com os companheiros. Tendo
de trabalhar para ganhar a vida, pois o salário de assistente era
baixo demais, combinava tarefas no mundo prático com os arti-
gos para a Folha e o Estado, que roubavam o tempo que o pessoal
queria ver investido na ação política. Sacchetta sempre era o meu
advogado e buscava justificar-me e só tive um conflito sério, por
isso, com Vítor Azevedo. A frente legal ficara muito débil e a ação
subversiva, propriamente dita, demasiado confinada. Contudo, os
debates eram sérios e profundos; a documentação externa, vinda
do movimento internacional, alargava a visão dos problemas da
revolução mundial e dos seus entraves. Era nisto e nos lançamentos
da Editora Flama que se concentravam os verdadeiros vínculos
com a aprendizagem marxista e o processo revolucionário como
aspiração política decisiva. Coube-me traduzir a Contribuição à
crítica da Economia Política. O grupúsculo funcionava como uma
microuniversidade e impelia-me a descobrir por minha conta o
jovem Marx e a desvendar a sedução do seu pensamento científico.
Até que, por iniciativa de Sacchetta, atendendo às restrições que
os companheiros faziam ao pouco tempo que eu podia destinar às
nossas atividades obrigatórias, fui liberado da participação militan-
te. Ele nos convenceu de que eu seria mais útil na universidade e
produzindo como universitário. Não tinha dúvidas sobre a minha
firmeza e lealdade. E via com bons olhos que eu servisse à mesma
causa por outros meios.
Esta confissão não busca colocar-me como o personagem
principal. Ela revela Hermínio Sacchetta de corpo inteiro, em sua
mente e em seu coração. Um homem generoso e severo, altruísta
na dedicação à luta de classes, à revolução proletária no Brasil e no
plano internacional. Prendíamo-nos a uma utopia e ele mais que
F lorestan F ernandes • 161

qualquer outro. Ela constituía a razão de ser de sua vida. Sedutor


como pessoa e, ao mesmo tempo, capaz de exercer uma tirania
desconcertante sobre alguém que se convertesse em alter ego (como
sucedera com Stacchini). Quase consciente de seu narcisismo, po-
rém tão íntegro e espontâneo na exteriorização do egotismo, que
tudo se reduzia a um “charme” pessoal. Adorava o “Velho”, sem
queimar nenhum incenso no altar dessa veneração. Na melhor
tradição socialista, situava a cultura acima de todos os valores.
Admirava com sinceridade o talento e incentivava os jovens com
afinco. Sonhava com a autonomia ideológica dos trabalhadores,
com a autoemancipação coletiva que iria alterar os rumos da civi-
lização. Compensava suas incertezas através de um dogmatismo
sem ranços doutrinários, pois ele nascia da convicção inabalável
de que a luta de classes e a revolução socialista iniciariam a era de
um humanismo de novo tipo. A sua cultura teórica estava abaixo
de sua responsabilidade de dirigente e de suas tarefas práticas. Mas
estava muito acima da média dos militantes comunistas da época e
do atrasado campo político que a situação histórica nos reservava.
Trotsky e o trotskismo brotavam do íntimo de sua personalidade,
objetivando-se como um refúgio e uma reação compensatória
diante de um ambiente de dominação burguesa tosca e de brutali-
zação dos oprimidos, subalternizados e superexplorados. Não eram
simples fuga do real ou alternativa ao stalinismo. Constituíam uma
espécie de caminho real, que permitia enfrentar a tragédia sem
ceder um passo à violência destrutiva dos de cima, sem perder a
confiança na classe revolucionária, tão fraca e tão pouco preparada
para desempenhar suas tarefas históricas de demolição da ordem
e de construção de uma nova sociedade.
Esse homem defrontou-se com a ética do revolucionário nas
piores condições imagináveis. Lançou-se a várias aventuras e a mui-
tas realizações admiráveis. Foi destroçado pela máquina repressiva
de “preservação da ordem”, primeiro pela valorização e decapitação
162 • H ermínio S acchetta : amigo e companheiro de jornada

do talento, mais tarde pelo braço comprido da ditadura militar.


Adivinhava-se o seu drama interior, as frustrações, a tortura mental
que o dividia. Todavia, nunca demonstrou qualquer renúncia às
ideias e às posições assumidas. Também nunca revelou o desalento
que se generalizava. Permaneceu inteiriço, sempre jovial e decente
no trato humano – e sempre pronto para “o último sacrifício”,
que não teve a felicidade de fazer. A morte colheu-o antes que
novas esperanças denunciassem que a repetição do passado, pela
qual atravessamos, não era o fim de sonhos e ilusões. Esses anos,
que vão da década de 1940 ao término da década de 1960, talvez
tenham sido os mais fecundos de sua autossuperação e de sua
plenitude – os anos do maior ardor revolucionário, imbricados a
expectativas aparentemente sólidas de uma promessa socialista no
futuro próximo. Caímos em um ardil da história. Mas Hermínio
Sacchetta preservou o seu domínio interior e a força que projetava
a sua imaginação para frente, sem dobrar-se às vicissitudes que o
feriram e amarguraram. Enfrentou-as com serenidade e venceu-as
pelo amor-próprio, nascido do superego e do orgulho de um mar-
xista revolucionário inquebrantável.
Hoje, que se pensa sobre ele ligando-o à sua atividade polí-
tica e ao seu significado histórico, duas coisas merecem reflexão
prioritária. Primeiro, as distinções que se erguem ao confronto
entre o trotskismo intelectualista e o militante. As figuras que
marcaram o primeiro eram de tal peso, que ofuscaram os que
se dedicaram ao último. Não obstante, foram estes que desen-
cadearam o movimento no meio operário e entre os jovens, os
estudantes e as mulheres, que aplicaram as técnicas acessíveis
de agitação e propaganda, que recorreram à luta direta contra as
duas ditaduras. Também intelectuais timbravam por reproduzir,
em um meio acanhado e tosco, as aspirações do revolucionarismo
profissional de vanguarda. Falharam, porém ficou o exemplo.
Segundo, Hermínio Sacchetta suscita um problema específico de
F lorestan F ernandes • 163

interpretação da história política. Os cientistas sociais distinguiam,


sob vários ângulos, a personalidade-status, a personalidade básica, a
personalidade democrática, a personalidade autoritária etc. Poder-
-se-ia acrescentar outros conceitos. O que importa, no caso, é a
pergunta: o que leva um homem a resistir, ao longo de sua vida, a
todas as provações e “evidências negativas”, preservando intocável
sua integridade política?
Penso que, sob o capital industrial e as pressões destrutivas da
opressão ditatorial, a resposta de conteúdo político possui uma
natureza psicológica. Não existiam, para os trotskistas, um nicho
autoprotetivo e as defesas das solidariedades de um forte movimen-
to coletivo. A pessoa ficava largada a si própria, ao seu potencial ou
propensão de identidade abstrata com uma utopia revolucionária.
Esta aparece, pois, como o equivalente do “nós coletivo”, a fonte
imediata dos dinamismos psicológicos de autopreservação e de
autoafirmação. Mas há um contraste a salientar. O burguês típico
se protegeria através de dinamismos psicossociais centrados na si-
tuação de interesses, ou seja, na ideologia strictu sensu. O marxista
de extrema-esquerda, sob as incompreensões, as difamações e os
ataques que afetaram os trotskistas, dependia da formação de um
horizonte intelectual e político centrado na pureza da utopia. Ela
devia ser vivida nos limites extremos de tensão com a ordem social
vigente e com o vir a ser representado como gestação da socieda-
de nova. Portanto, o socialismo potencial, contido na variante
firmemente revolucionária da personalidade democrática, explica
a vitória sobre traumas, frustrações e decepções que “desmonta-
riam” o equilíbrio do eu nos casos comuns de inconformismo ou
de rebelião destituídos de idêntica polaridade utópica.
Lembro-me de um encontro pungente com Hermínio Sacchetta­,
na esquina da rua 7 de Abril com a rua Conselheiro Crispiniano.
Ele me tratou com cortesia exagerada, como o Professor, e disse
algumas amabilidades a Vladimir, seu filho, a meu respeito. Eu
164 • H ermínio S acchetta : amigo e companheiro de jornada

repliquei. Ele estava ressentido e arrasado. Tivera de arcar com


as consequências de uma demonstração de coragem, descrita por
Jacob Gorender, que a ditadura militar punira com severidade
atenuada. Mas fora despojado de seu emprego e enfrentava grandes
dificuldades financeiras e profissionais. Apesar da insegurança, es-
tava ereto, como sempre, mantinha o seu ar varonil sem arrogância
e demonstrava fé na ciência e no porvir. Não era o movimento
proletário revolucionário que o sustinha. Mas o socialismo como
chama interior, como convicção de que muitos precisam tombar – e
é normal e necessário que tombem – para que “a revolução triunfe”.
CLÁUDIO ABRAMO E O JORNALISMO*

São Paulo/SP, 1923-1987


Intelectual autodidata, pertenceu a uma família
de revolucionários – com avô anarquista e irmãos
trotskistas. Trabalhou no Jornal de São Paulo, Diário
da Noite, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.
Como secretário de redação do Estado, a partir de
1952, tornou-se um dos principais artífices da moderni-
zação desse jornal, sendo afastado em 1964 por motivos
políticos. Na Folha de S.Paulo, desde 1965, ocupou
as funções de secretário-geral e de diretor de redação.
Preso em 1975 pelo DOI-Codi, voltou à direção da
Folha no ano seguinte e completou sua grande reforma.
Por imposição dos militares, foi afastado do cargo em
1977. Retornou ao jornal em 1979, como membro do
conselho editorial e, em seguida, como correspondente
em Londres e Paris. Foi um dos fundadores, em 1977,
do jornal Leia Livros.

Muitos já escreveram sobre Cláudio Abramo como jornalista


e sua incomum competência profissional como secretário de reda-
ção, pau para toda obra na produção de um jornal e uma espécie
de mestre para os jornalistas aprendizes, iniciantes na carreira.
Gostaria de tomá-lo como protótipo para uma discussão do que se
poderia chamar de a imaginação jornalística. O jornalismo é um
ramo de atividade intelectual que corre parelhas com as ciências
sociais. Seus pontos de contato com a psicologia, a antropologia,
a sociologia e a história são tão grandes que a formação básica do
jornalista deveria incluir extensa e profunda familiaridade com as
técnicas de observação e de interpretação dessas matérias.


*
Escrito por ocasião do falecimento de Cláudio Abramo e publicado em Folha de
S.Paulo, 14 ago. 1988.
166 • C láudio A bramo e o jornalismo

Só que o jornalista lida com o evento potencial ou com a


ocorrência in flux, o que exige que ele fique atento ao que aconte-
ce, ao que poderia acontecer e ao que parece que aconteceu, mas
volatilizou-se sem se realizar. Em suma, uma esfera da realidade
em que ideologia, pessoa ou instituição e processos históricos
surgem no turbilhão do vir a ser mais volátil imaginável. Por isso,
a crítica dos “fatos” e das “informações” se torna muito complexa
e precisa incluir um treino maduro na análise e desmascaramento
dos dados. O concreto, que parece dar-se como ponto de partida
ou de chegada da reconstrução jornalística, é uma produção ana-
lítica e interpretativa. Se o jornalismo não corresponder a esses
requisitos do conhecimento crítico, ele se converte em agente de
“fabricação” de notícias e mero instrumento do ilusionismo da
cultura comercial de massa.
Por trás dessa perspectiva, quer o jornalista exiba ou não os
caminhos percorridos para chegar à representação do concreto e
quer ele exponha ou não os “dados empíricos” que dão funda-
mentos in re da representação, o jornalismo constitui uma forma
de conhecimento que exige imaginação criativa. E torna-se difícil
praticá-la com perícia, quando ela se comprime no espaço de que
dispõe um colunista. O leitor tem a impressão de que recebe apenas
ideias mais ou menos “pessoais”, que se esgotam com o cotidiano
de uma sociedade de cultura industrializada. No entanto, esse é
um terrível engano. O jornalista, nesse caso, arrola ideias – pois
trabalha com ideias –, mas as ideias são o conhecimento a que
ele chegou, apresentado de modo altamente abstrato e sintético,
com uma exigência adicional, que não se faz peremptoriamente
ao filósofo ou ao cientista social: extrema clareza, elegância e um
marcante estilo literário.
Cláudio Abramo ficou conhecido por sua virtù como jornalista.
Mas o que lhe conferiu glória e renome – e até o tornou temido aos
cortesãos do poder – foi essa condição de jornalista interpretativo.
F lorestan F ernandes • 167

A sua “mensagem” vinha em poucas linhas, às vezes duras, outras


vezes cortantes e veementes. Não se percebia a cirurgia. Porém,
tinha-se, quase sempre, o seu produto final, escrito com sobrie-
dade e com o perfil dele próprio, como pessoa. Os filósofos e os
sociólogos diriam que praticava um jornalismo crítico e militante
(no sentido de engajar-se à denúncia, ao dever da solidariedade
humana, à ciência que não se dissociara do humanismo e da trans-
formação do mundo). Enquadrar-se a um espaço restrito e infundir
à “mensagem” o seu teor de verdade desmistificadora e criativa, nos
limites da produção do jornal, cuja conexão de sentido se põe na
alta cultura e cujo motor está na acumulação do capital comercial,
são uma demonstração de talento indiscutível e exemplar.
O paradoxal em Cláudio Abramo procedia de seu vínculo
com o componente artesanal, que ele ultrapassara, e de sua auto-
frustração de não ser um “acadêmico”, um “universitário”. Discuti
com ele algumas vezes essa questão. A universidade é um meio,
não um fim em si. Ele havia superado, como vários colegas de sua
geração, a barreira da aprendizagem sistemática por via pessoal e
com brilhantismo. A média dos professores universitários está bem
abaixo de seu nível de autorrealização intelectual. E a universidade,
por sua vez, ao ser rejeitada, era-o sob uma superavaliação que ela
ainda não justifica. Todos caem em alguma armadilha psicológi-
ca. A sua era essa. Entretanto, ela acarretava uma consequência
negativa. Cláudio Abramo resistia à evidência da necessidade de
formação cultural especializada racional e exigente do jornalista.
Como consequência, mesmo depois de experiências que o con-
sagraram como professor honorário, não atinou com a exigência
de combater por faculdades ou escolas de comunicação de nível
universitário autêntico. Ele fora vitimado pela inexistência desse
recurso educacional e não chegara aonde devia por um aproveita-
mento precário ou impróprio de seu talento. Mas supunha que o
caminho artesanal abria a qualquer um o acesso a um lugar ao sol.
168 • C láudio A bramo e o jornalismo

Ora, é óbvio que ele era exceção, e que é urgente extinguir escolas
de jornalismo que fazem parte da indústria do ensino e ampliar o
campo das outras, que são verdadeiramente uma revolução cultural
dentro de nosso ambiente.
Outro aspecto a ser ressaltado é o do significado dos jornalistas
de envergadura em um período de crise nacional. A ditadura calara
a maioria dos intelectuais rebeldes. Os jornalistas que produziram
o tipo de jornalismo que caracterizei resumidamente acima foram
tolerados de modo tácito embora parcial. Os limites ficavam nítidos
dentro e fora das redações. Não obstante, havia uma linha divisória
mais ou menos flexível e certa tolerância. Forjara-se uma moldura
histórica que permitia contrabandear a crítica e o embate através
da embalagem da “verdade” ou da “descrição objetiva”. Em um
momento de amplo eclipse do intelectual engajado e de adesão
aberta dos talentos (inclusive nas universidades) à contrarrevolução,
abria-se, assim, uma esfera de crítica permanente aos desmandos
dos donos do poder, civis e fardados. Muitos foram os jornalistas
que avançaram até essa fronteira, e Cláudio Abramo notabilizou-
-se pela intrepidez com que assumiu os deveres de combatente na
primeira linha. Seus “comentários” cresceram sob esse clima e
interagiram com ele, ajudando naturalmente a acelerar a conquista
de maiores espaços da liberdade intelectual e política.
Dentro de um mundo histórico atrasado e colonizado, são
notáveis os feitos desse companheiro e amigo. Não conquistamos
uma sociedade nova e socialista, dentro de nossos sonhos de mo-
cidade. Contudo, chegamos até aqui com um legado importante
de integridade e esperança.
HENFIL: O MAIS FELIZ DE VOCÊS*

Ribeirão das Neves/MG, 1944 –


Rio de Janeiro/RJ, 1988
Henrique de Souza Filho foi descoberto como
cartunista no início dos anos 1960, quando trabalhava
na revisão da revista Alterosa, onde acabariam nas-
cendo os Fradinhos. Com o fim do periódico, levou seus
personagens para o Diário de Minas e, dali, para a
imprensa carioca: Jornal dos Sports, O Dia, Jornal do
Brasil, O Globo e Pasquim. Criou Zeferino e o bode
Orelana, Graúna, o paranoico Ubaldo e um Tamanduá
que sugava cérebros – figuras que acompanharam a cena
brasileira por mais de duas décadas, da ditadura militar
à campanha das Diretas-Já. Cabôco Mamadô, concebido
no início dos anos 1970, enterrava o que havia de mais
reacionário no país. Polivalente, fez televisão, escreveu
para o teatro e foi autor de vários livros: Hiroshima,
meu humor (1965), Henfil na China e Cartas à mãe
(1980), Diário de um cucaracha (1980), entre outros.

A morte de Henfil desencadeou um amplo movimento de


combate à indiferença dos poderes públicos em face da Aids e –
por que não dizer – da falta de solidariedade e de simpatia diante
dos aidéticos, pelos que se acreditam “sãos” ou “seguros” contra a
moléstia. O culto ecumênico celebrado em 11/1/1988, na Catedral
da Sé, foi o ponto alto das homenagens coletivas a Henfil, tendo
como principais celebrantes o pastor Edim Sued Abumanssur e o
padre Júlio Lancelotti. A importância do ato estava referida à ho-
menagem intelectual e política (não se pode separar as duas coisas
na personalidade e na produção de Henfil) e a uma enfatização
da consciência crítica do problema. No entanto, Henfil pairou


*
Publicado por Jornal da USP, ano IV, n. 34, fev. 1988.
170 • H enfil : o mais feliz de vocês

acima do culto. O lirismo e o amargor tocantes de seus versos


irão conosco pelo resto da vida. “E tenho amor. Muito amor. Mas
nunca dei uma flor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas sem
contato manual, sem intimidade, sem entrega.” Com suas pungen-
tes pergunta e resposta, dialeticamente unidas entre si. “Por que
desenho, por que escrevo cartas e agora peças? Aqui estão 14 anos
de solidão. Minha arte é fruto da minha impotência de viver com
vocês.” E sem rancor, no seu estilo de correr como sangue na veia
dos outros: “Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz
de vocês” (“Última carta”).
Convivi pouco com ele. Nem era preciso mais. As poucas vezes
que falamos era como se formássemos uma cabeça e um coração.
Por que essa crueldade da natureza, da vida e da cultura? Sermos
privados de um talento único, daquele que se deu todinho, numa
arte criada para exaltar a humanidade da pessoa e condenar os
filisteus, os abusos do poder e o egoísmo dos poderosos. Escolhia
adversários formidáveis: a grande burguesia, a ditadura militar, o
imperialismo, os Estados Unidos. Entregava-se a aliados fracos, o
ser humano despossuído e espezinhado, o trabalhador dentro de sua
luta incerta, a inteligência rebelde, os desesperados de toda espécie.
Com sua criação artística não visava a exaltação, o reconhecimen-
to, a glória. Era uma entrega permanente de uma humanidade
tão grande que não cabia dentro dele e extravasava. O verdadeiro
artista, autêntico na sua cólera, predisposto ao perdão dos que
acusava, demolindo-os pelo ridículo de suas vaidades, ambições
e prepotências, em busca da perenidade do ser e do aperfeiçoar-se
pelo amor e pelo sofrimento.
Pergunto: devemos misturá-lo com esse governo falso e cruel
do “tudo pelo social” (só que o “social” dos que mandam e des-
mandam), para aumentar e dar outro sentido ao combate à Aids e
ao convívio sem restrições a todos os aidéticos? Sua morte poderia
acarretar essa implicação. Contudo, ela jamais poderia ser um alvo
F lorestan F ernandes • 171

central. Todos sabemos que não existe, no Brasil, responsabilidade


diante dos “malditos da terra”, dos miseráveis, dos que trabalham
e ganham o pão com o suor do próprio rosto. O pão é-lhes rou-
bado, para engordar fortunas nacionais ou estrangeiras, privadas
ou estatais. Há uma muralha de indiferença e hipocrisia. Por
que esmagar a sua pessoa, a sua herança artística e política, a sua
alegria de ser e viver, o seu exemplo, de encontro a essa muralha
de pedra inabalável? Podemos condenar o governo e os serviços
públicos de saúde por sua morte, um crime evidente por si mesmo.
Todavia, nesse rol não aparecem os que se comovam com a perda
que sofremos e com os males que afligem o Brasil e poderiam ser
eliminados, reduzidos ou enfrentados com dignidade e respeito à
condição humana.
Volto a Henfil. Ele nos põe frente a frente com a natureza do
papel do intelectual, do artista, do criador em estado de comunhão
com os seus semelhantes, com seus companheiros de jornada du-
rante a vida, com os que nascerão depois. Ele é o nosso orgulho,
uma fonte de inspiração e de compromisso, testemunha de que a
condição humana deve ultrapassar o artista para que ele possa ser
grande e ganhar outra dimensão de vida na memória dos homens
e das mulheres e na memória histórica. Nisso a celebração do
culto ecumênico atingiu o clímax, como um preito aos que criam
para servir e não servem para ser lembrados nem engrandecidos.
O amigo, o companheiro, o homem que amou e recolheu o amor
dizendo “E nunca dei uma flor” cedeu tudo que tinha e merece
tudo que temos para dar. Caso raro entre os intelectuais, que des-
ponta como a regra (não a exceção) de um humanismo socialista.
PARTE 3
REFORMA EDUCACIONAL: A CONTRIBUICÃO DE
FERNANDO DE AZEVEDO

Em uma sondagem como a que foi realizada, seria estranho


não considerar o “radicalismo burguês”. A sociedade capitalista
requer reformas sociais com implicações revolucionárias para a
transformação da ordem estabelecida. O processo envolvido foi
designado, nos círculos socialistas, como “revolução dentro da
ordem”. Nos países centrais, o passado coloca em relevo a função
social das reformas. Educação, urbanização, distribuição e forma
de propriedade da terra, até a igualdade de todos os cidadãos diante
da lei, abrangem extenso rol de adaptações das superestruturas à
infraestrutura do sistema econômico, político e cultural. Em paí­
ses da periferia, esse rol se estende à descolonização, à revolução
nacional e à universalização da cidadania.
É claro que o desenvolvimento capitalista desigual e a expro-
priação colonial, neocolonial e sob a situação de dependência per-
manente fomentam a interrupção precoce de reformas essenciais ou
da revolução dentro da ordem. Assim, aparentemente deveria haver
continuidade e crescente aceleração dessas reformas ou revoluções.
Mas o capitalismo periférico é selvagem porque nele pressões in-
ternas (das classes sociais dominantes) e pressões externas (sofridas
no plano da produção e comércio ou na esfera político-estatal das
174 • R eforma educacional : a contribuicão de F ernando de A zevedo

nações imperiais) caminham juntas, impedindo a dinamização


dos processos estruturais de mudança.
Essas reformas e revoluções são tão importantes que os países
capitalistas, periféricos e centrais, formam técnicos e especialistas
em “reforma social”. Eles lidam setorialmente com a precipitação
e a eficácia das técnicas e ideologias que alimentam o pensamento
abstrato e o subvertem, criando o substrato cultural das inova-
ções mais urgentes para o equilíbrio e o “aperfeiçoamento” das
instituições-chave da sociedade. Há vários exemplos de tentativas
desse gênero no Brasil. A que ganhou maior envergadura e suporte
coletivo refere-se à instrução pública. Ela tem sido sufocada, por-
que ritmos intensos de alteração amedrontam as elites das classes
dominantes, que temem deslocamentos do poder.
A Associação Brasileira de Educação empenhou-se denoda-
damente na reforma educacional, em um momento no qual a
igreja católica ainda mantinha ressentimentos com a República e
buscava preservar sua hegemonia sobre o ensino, público e privado.
Houve um conflito de mentalidades e de interesses que se refletiu
na atuação ardorosa da Associação, por causa dos contrastes entre
os educadores liberais e os educadores que se batiam pelo conser-
vantismo cultural. Os líderes que se distinguiram nas polêmicas e
debates se autodefiniram pioneiros da Educação Nova, com Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo na vanguarda.
Por sua própria natureza, esse tipo de alteração das instituições
e da ordem tem como paradigma a evolução de determinado país
adiantado da civilização ocidental. No Manifesto dos pioneiros da
Educação Nova o referencial implícito foi a França. Os Estados
Unidos fascinavam alguns educadores, em especial Anísio Teixeira.
Mas o “modelo” tinha de ser a França, que havia realizado a refor-
ma do ensino mais ampla, até então, e possuía uma história mais
conhecida. O lado negativo da orientação adotada consiste em que
ela pressupõe um contexto histórico, cultural e institucional típico
F lorestan F ernandes • 175

de uma nação capitalista avançada. O lado positivo transparece


na qualidade, consistência e exequibilidade de alvos centrais de
mudança institucional (no caso, com referência ao sistema nacional
de educação escolarizada).
O convívio com Fernando de Azevedo levou-me a observar que
sua radicalidade esgotava-se nos limites da consolidação da ordem.
Essa perspectiva exige que premissas históricas de sua alteração
sejam predeterminadas, pois o “modelo” de uma nação central
significa cristalização de certas expectativas sobre a importância
da educação para a sociedade. Pessoalmente, ele se acreditava um
adepto do socialismo. Todavia, analisando-se a forma e os conteú­
dos­­de seu pensamento crítico, constata-se que a autoavaliação
subestimava as imposições especificamente burguesas.
A concepção subjetiva de que possuía uma compreensão
socialista do mundo esbarra com as fronteiras do próprio modo
de ser liberal-democrático. Não se trata, portanto, de um so-
cialismo frustrado. A natureza burguesa de sua personalidade
básica permitia um fluxo criador que não requeria substitutivos
ideais. Talvez se possa entender o equívoco de autoavaliação
remetendo-o a modalidades de socialismo “crítico” ou do “so-
cialismo cor-de-rosa”, como se dizia em linguagem corrente na
esquerda, às quais não escapou nem Karl Mannheim. A ilusão
do progresso contínuo e a percepção das consequências revolu-
cionárias (dentro da ordem) das transformações educacionais
favorecem uma interpenetração de valores contraditórios, que são,
não obstante, tão distanciados entre si que afastam aproximações
inconsistentes e desnecessárias.
No entanto, Fernando de Azevedo foi, dentro de sua geração,
uma figura singularmente acima do seu tempo. As propostas de
reforma educacional que endossou receberam um violento ataque
reacionário e conservador, raro na cena brasileira. Desde o início,
mereceu dos oponentes rancor e incompreensão. O paradigma da
176 • R eforma educacional : a contribuicão de F ernando de A zevedo

educação pelo qual se bateu não cabia dentro do horizonte cultural,


estreito e egoísta das elites no poder.
Comprovou-se, mais tarde, que mesmo os movimentos sociais
empenhados na defesa do desenvolvimento educacional chocavam-
-se com as ideias sobre educação e os ideais pedagógicos de Fer-
nando de Azevedo. A sociedade ficava aquém daquelas propostas.
E sua tradução prática, efetivada nas duas reformas do ensino e
na criação da Universidade de São Paulo (USP), foi demasiado
complexa para os padrões de ensino advogados pelas classes do-
minantes e sua oposição a reformas que evocavam uma utopia.
O aspecto crucial da situação esclarece-se na rapidez com
que suas reformas foram solapadas e destruídas ou nas reações
ao modelo integrativo da USP, na qual as antigas faculdades
isoladas relutavam e resistiam aos impulsos renovadores abruptos
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A ditadura militar
protagonizou o extremo voo cego da mentalidade conservadora
quanto à educação. As incompreensões e os interesses rasteiros de
dominação econômica e social alimentaram uma visão de delenda
Cartago.
Isso tudo realça a personalidade de Fernando de Azevedo como
homem que transcendia a sua época, ainda que de uma perspectiva
burguesa, e o significado intrínseco das mudanças educacionais
que tentara colocar em prática. As frustações poderiam contribuir
para uma superação de sua bitola de radicalidade. Coragem e dis-
cernimento não lhe impediriam esse feito. O seu enraizamento nos
modos burgueses (e durkheimianos) de pensar as transformações
educacionais constituía, entretanto, um freio no entendimento da
situação educacional concreta. A fórmula “fazer as reformas edu-
cacionais nas escolas antes que o povo as faça nas ruas” pressupõe
identificações que não deixam dúvidas. A atração pela radicalidade
socialista matizava a vontade de ser diferente. Mas não se traduzia
em realizações práticas.
F lorestan F ernandes • 177

Na verdade, os contrastes com as propensões de elites retrógra-


das e o horizonte intelectual médio sequer absorviam a radicali-
zação possível de sua utopia pedagógica. É duro reconhecer. Mas
a sociedade pode funcionar como o cemitério das inteligências
mais lúcidas e ousadas, pouco importando as categorias abstratas
de reforma e revolução sociais. Neutralizar o reformista é tão
consequente com a resistência à mudança quanto privar de espaço
político os revolucionários. Em limites extremos, um pode ser tão
“perigoso” quanto o outro, impondo-se mantê-los ao alcance de
controles sociais estritos e rígidos. (Aliás, no início das contro-
vérsias ardentes com círculos de ativistas católicos – e mais de 30
anos depois, quando da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, na transição da década de 1950 para a de 1960 – Fer-
nando de Azevedo e outros educadores igualmente radicais foram
indigitados como “comunistas”.)
FERNANDO DE AZEVEDO:
UM AUTÊNTICO REFORMISTA*

São Gonçalo do Sapucai/MG, 1894 –


São Paulo/SP, 1974
Pioneiro da Educação Nova no Brasil, foi diretor-
-geral da instrução pública do Distrito Federal (1927-
1930) e de São Paulo (1933), professor de sociologia
educacional no Instituto de Educação de São Paulo
(1933-1938) e na Faculdade de Filosofia (1938-1941)
e secretário de Educação do Estado (1942). Na Com-
panhia Editora Nacional fundou e dirigiu as coleções
“Biblioteca Pedagógica Brasileira” e “Brasiliana”, que se
tornaram marcos editoriais no país. Publicou, entre ou-
tras, as seguintes obras: Princípios de sociologia (1935) e
A cultura brasileira (1943).

O professor Antonio Candido nos fez um relato psicológico,


histórico e, ao mesmo tempo, sociológico de Fernando de Azevedo.
Não posso, nem nunca competi com Antonio Candido. Ao contrá-
rio, sempre o admirei muito. Acho que ele foi um scholar exemplar
da universidade brasileira. Por sua dedicação, pela capacidade de
ser tão humano quanto demonstrou aqui, pelas posições que sem-
pre manteve ao longo da vida. Sinto orgulho por sermos colegas
fraternos. Eu, que nunca tive irmãos, elegi em Antonio Candido
a figura do irmão. Nós dois vivemos durante alguns anos ao lado
de Fernando de Azevedo – e isso justifica esta nota introdutória.
Não podemos dizer que o conhecemos, porque não somos
psicanalistas e, se o fôssemos, provavelmente o conheceríamos


*
Depoimento prestado durante a “Semana Fernando de Azevedo”, promovida pela
Faculdade de Educação e pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade
de São Paulo, de 12 a 15 de abril de 1994.
180 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

ainda menos, por causa da complexidade de seu caráter e de seu


comportamento. De qualquer forma, Antonio Candido “fechou
a conta”.
Creio que a mim resta fazer algumas ponderações, pois se trata
de um depoimento que diz respeito à minha relação pessoal com
Fernando de Azevedo. Porque, afinal de contas, alguém como eu,
que nunca foi aluno de Fernando de Azevedo, acabou sendo seu
assistente, convivendo com ele durante longos anos. É também so-
bre as experiências que tivemos juntos – muitas vezes desagradáveis
para ele – e a alegria que ele me proporcionou, graças a seu lado
altruísta e, ao mesmo tempo, tolerante de encarar a rebeldia dos
colaboradores. Éramos dois rebeldes. Pode-se dizer que Antonio
Candido era o rebelde com luva de pelica, e eu era o rebelde que
não sabia usá-la.
A minha relação com o professor Fernando de Azevedo come-
çou da maneira mais estranha. Devido à pobreza, eu vivia na casa
da enteada de minha madrinha. Tinha que sustentar minha mãe.
Então, o dinheiro ganho no trabalho era usado para sustentá-la.
Por isso morava com Ivana Pirman de Castro e José de Castro,
que me proporcionaram um lar no qual pude viver com o conforto
que não teria em minha própria casa.
Um dia dona Ivana deu-me um recado: “O Dr. Fernando de
Azevedo quer falar com você”. “Dr. Fernando de Azevedo? Mas
como? Acho que a senhora tomou a anotação errada”. Ela disse:
“Ele queria falar com você e me pediu extrema urgência em lhe dar
o recado”. Isso foi em 1942. Eu havia ingressado como aluno na
Faculdade de Filosofia no ano anterior. É uma vergonha, porque
entrei tão velho... Mas fiquei na dúvida: telefono ou não telefono?
O que ele pode querer de mim? Por fim, liguei para saber. Fernando
de Azevedo atendeu e disse: “Tomei a liberdade de telefonar para
sua casa porque soube, através de colegas, de pessoas, professores
da Faculdade, que você tem sido um aluno especial. Você atraiu
F lorestan F ernandes • 181

a minha atenção por causa dos comentários que fizeram sobre


seus trabalhos”. Eu havia feito dois, um sobre a desintegração do
folclore e outro sobre a relação entre os folclores e a urbanização
de São Paulo, para a cadeira de sociologia I, do professor Roger
Bastide. O Dr. Emílio Willems solicitou o trabalho e, por iniciativa
de Bastide, pediu para que eu publicasse alguns artigos na Revista
de Sociologia. Willems disse a Fernando de Azevedo que eu tinha
talento de pesquisador. É uma espécie de talento que eu não sei
definir muito bem, nessa altura da vida, mas que naquela época
dava sentido a todas as minhas esperanças. Então, Fernando de
Azevedo continuou: “Eu queria ajudá-lo, e ponho à sua disposição
a minha biblioteca, a minha orientação e o dinheiro que você
precisar para resolver qualquer problema que tenha que enfrentar”.
Essa é uma coisa extremamente rara no Brasil. Um homem
com sua importância se preocupar com um aluno da Faculdade de
Filosofia, incógnito para ele, e abrir não só a bolsa, mas também
sua inteligência. Aquilo representou um grande estímulo para
mim. Como eu estudava folclore e tivera uma experiência humana
iniciada aos seis anos, aprendi que não se devia aceitar favores a
não ser em casos extremos, pois eles beneficiam mais quando não
se abusa deles.
Então respondi: “Agradeço muito sua oferta e, se precisar,
irei ao encontro do senhor. Mas fico muito comovido com o que
está acontecendo”. Ao que ele falou: “Por que você não passa na
Companhia Editora Nacional? Eu dirijo uma coleção. Estou lá”.
A editora ficava na rua dos Gusmões, de fácil acesso para mim,
devido ao trabalho que eu estava fazendo naquela ocasião.
Um dia tive coragem e fui até lá falar com Fernando Azevedo.
Apresentei-me e ele me recebeu como se eu fosse um velho amigo,
convidando-me a voltar outras vezes. Disse-me: “Olha, venha
conversar comigo. Gostaria de conhecer suas ideias, sua pessoa
e estou sempre aqui no dia em que você quiser”. “Preciso marcar
182 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

dia e hora?”, perguntei. “Venha quando quiser”, respondeu, “as


portas estão abertas para você”. Voltei lá diversas vezes. Certa
ocasião, quando Fernando de Azevedo já era diretor da Faculdade
de Filosofia, encontrei-o andando pelo corredor, cercado, como
sempre, por uma plêiade de pessoas. Ele se impunha com aquele
ar nobre, como se fosse um príncipe da corte de Luís XIV guiando
seu séquito. Então, ele me atraiu como um protegido e disse: “O
que você acha da Faculdade de Filosofia?” “Eu acho a Faculdade
de Filosofia a escola mais importante que temos hoje no Brasil”.
“Você gostaria de pertencer à Faculdade de Filosofia?” “Bom”,
respondi, “gostaria, mas esse é um objetivo muito difícil”. Como
aquele personagem tratado por Thomas Mann na trilogia José e seus
irmãos, eu procurei “aformosear” meu destino naquele momento.
E continuei: “É muito complicado abrir as portas da Faculdade de
Filosofia para uma pessoa como eu”. E ele, com aquele ar decidido:
“Isso nós veremos”.
Ficamos assim. Eu o visitava, nós conversávamos. Sempre fui
aluno de sociologia do professor Roger Bastide e, por quase um ano,
do professor Paul-Arbousse Bastide. Mesmo no curso de didática
pois, por acaso, o Dr. Fernando de Azevedo não me deu o curso
de sociologia educacional, substituído por Roger Bastide. De modo
que passei de ponta a ponta como estudante do professor Roger
Bastide. Portanto, aquele convite me surpreendeu – um homem
como ele, acenando-me com a possibilidade de voltar-me para a
Faculdade de Filosofia – e só fez aguçar as minhas ambições.
Aliás, eu já procurara a Faculdade de Filosofia para ser professor
de Ensino Secundário ou Normal. Havia em 1937, 1938, 1939, 1940,
não sei até quando, a possibilidade de um registro precário de pro-
fessor. Eu tinha esse registro e podia lecionar. Através do professor
Ênio Chiesa, que pertencia ao Ginásio Riachuelo, fui indicado para
uma escola aqui, em São Paulo, que estava procurando professores e
tinha um nível de pagamento correspondente à metade de um salário
F lorestan F ernandes • 183

normal. A pessoa encarregada da seleção não teve qualquer pudor


em dizer: “O senhor assina o seu nome e deixa esta área em branco
que o colégio preenche. Desde já devo esclarecer que o senhor vai
receber metade do salário normal”. Agradeci e saí. Fui então tratar
de ser professor formado pela Faculdade de Filosofia, como licencia-
do. Naturalmente preferiria fazer um curso de engenharia química,
mas este estava muito longe das possibilidades, porque seria preciso
tempo integral e eu não dispunha desse tempo todo.
Agora, o fato é que a relação com Fernando de Azevedo foi um
choque para mim, porque instigo uma ambição que não carregava
comigo: a de ser algum dia professor da Faculdade de Filosofia.
Vejam como a ocasião faz o ladrão... A partir daquele momento,
mudei a perspectiva sobre a minha vida futura, graças a esse epi-
sódio de um encontro em que percorríamos – o Dr. Fernando e
eu – uns 15 ou 20 metros do corredor da Faculdade de Filosofia,
que naquela ocasião funcionava no 3º andar, na Escola Normal
da Praça da República.
Depois disso, os encontros com ele foram realizados na Com-
panhia Editora Nacional e não se falou mais no assunto. Terminei
meu curso e o professor Paul Hugon tinha gostado do trabalho que
preparara para ele, sobre a evolução do comércio exterior no Brasil
de 1822 a 1940. Hugon me disse: “Isso aqui é a base de uma tese
de doutorado. Se você quiser fazer doutorado com este trabalho,
será o meu assistente”. Já era uma coisa muito mais concreta e vinha
depois da proposta meio evanescente do Dr. Fernando. Quando
me formei não achava que seria convidado por ele e pensava:
“Certamente já se esqueceu...”, e, nas conversas, nunca lembrei
que ele tinha aberto aquela perspectiva. A minha surpresa foi que
realmente ele se lembrava, e me convidou para ir à casa dele para
conversarmos sobre o assunto.
É algo curioso. Aí vocês vão ver a sua personalidade. Eu
canhestramente disse a ele: “Dr. Fernando, o senhor tem toda a
184 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

responsabilidade neste convite. O senhor está convidando um


aluno... eu não sou um professor. O senhor deveria chamar um
professor, essa é a sua responsabilidade. Se eu falhar, aí o senhor
não pode transferir a culpa para mim”. Ele levou um susto.
Acho que, pela primeira vez na vida, se deu conta de que não
se convida um assistente aleatoriamente. E quem me salvou foi
Antonio Candido.
Não sei se Antonio Candido lembra, mas ele, naquela perplexi-
dade, estava mais ou menos inclinado a dizer: “Acho que você tem
razão, é melhor procurar outro assistente”. Aí Antonio Candido
disse: “Olha, Dr. Fernando, nós todos sabemos muito bem que o
Florestan é burro, que não sabe nada, que incompetente não pode
ser assistente”. Dr. Fernando deu uma gargalhada e o convite ficou
acertado. Outros me procuraram e recusei com bom senso. Mas
não vem ao caso contar agora, porque estou falando de Fernando
de Azevedo e já abusei demais ao me colocar no cenário exatamente
para explicar o caráter desse homem, que não tinha os preconceitos
que depois se instalaram na Faculdade. Eu próprio só procurei
assistentes dentro de um circuito muito fechado de alunos. Com
critérios estritos, sem essa amplitude de visão a posteriori, muitos
anos depois descobri que, se tivesse agido de outra maneira, os
resultados provavelmente seriam os mesmos ou, quem sabe, até
melhores. Aqui está o retrato de um homem que se sente faquir
perante os princípios, porque tem a audácia de ir além das normas
e até do bom senso.
Tivemos outras situações que poderiam ser pitorescas, se não
fossem as implicações que envolviam. Vou poupá-los disso, em-
bora sejam episódios muito importantes para analisar o caráter
de Fernando de Azevedo. Relacionados comigo, foram episódios
que envolveram pedidos de demissão que Antonio Candido não
chegou a conhecer, a menos que o Dr. Fernando tenha cometido
indiscrições.
F lorestan F ernandes • 185

Trabalhamos juntos, ele nos delegou e nós dávamos cursos.


Houve a revolução das notas, que vale a pena contar. É interessante
ver como as coisas se passavam na cabeça dos professores brasilei-
ros, que tinham a capacidade de lecionar numa universidade. Eu
corrigia as provas, uma das coisas que o Dr. Fernando não gostava
de fazer. Então, eu ficava com uma parte e Antonio Candido com
outra. Certa vez, corrigindo provas, dei dez ao hoje professor Roque
Spencer Maciel de Barros. O Dr. Fernando opunha-se a que se
desse dez. Quando viu a nota, fez um ar contrariado: “Você pôs
dez. Mas dez por quê?”. “Porque foi um trabalho muito benfeito
para um estudante.” Ele disse: “Bem, eu venho de uma tradição, de
uma escola, na qual dez era para Deus, nove para os professores e,
para alunos excepcionais, a partir de oito”. Eu disse: “Bem, doutor,
então o senhor passe a ler as provas, porque os nossos critérios de
nota colidem”. Aí ele aceitou o dez. No ano seguinte, corrigin-
do provas, Antonio Candido deu dez a Maria Isaura Pereira de
Queiroz. O Dr. Fernando olhou assim de uma maneira sarcástica:
“Vocês estão querendo tornar o dez uma nota sem significado”.
Antonio Candido disse: “Ao contrário, esse trabalho merece dez
e é a nota que eu dei, a nota que o senhor deveria dar; porque é
um trabalho excepcional, então vale dez”. Fernando de Azevedo
ficou desolado: “Pronto. Acabou. Não sei mais como defender
critérios de avaliação”. Quer dizer, ruiu um tabu que vinha das
escolas normais e da mentalidade que prevalecia entre professores
a respeito da graduação da inteligência.
Agora, no convívio com Fernando de Azevedo como assistente,
tenho que esclarecer que éramos assistentes, por assim dizer, pela
metade. Na outra metade, éramos amigos. O assistente começava
a funcionar a partir do momento em que ele entrava e quando se
tratava de assuntos da cadeira. Fora disso, tínhamos um convívio
que nos levava a um bar para tomarmos um aperitivo ou, então,
como ocorreu comigo num conflito que tivemos... Eu não estava
186 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

querendo ceder numa das ocasiões em que Antonio Candido


não teve a oportunidade de me salvar. Fernando de Azevedo não
queria de maneira nenhuma que eu desse um passo que ia dar.
Aí ele disse: “Vamos dar um passeio na Barão de Itapetininga”.
“Mas, doutor, não tenho nada a fazer na Barão de Itapetininga.”
“Mas eu tenho.” Eu falei: “O que o senhor tem a fazer na Barão
de Itapetininga?”. “Tenho que comprar perfume.” Eu falei: “Não
me consta que o senhor precise de perfumes a esta hora”. “Pois é,
mas tem cada moça bonita vendendo perfume...” E lá fomos nós
atrás dos perfumes e tudo acabou da maneira mais amigável.
Esse é o lado mais humano de Fernando de Azevedo. Éramos
subordinados e uma espécie de auxiliares que ele via com muito
egoísmo. Ele não estava lá querendo que fizéssemos carreira. Ele
próprio queria fazer a nossa carreira, queria promover a nossa ascen-
são no curso, e esta era uma matéria na qual não se podia mexer.
Não posso contar alguns exemplos, para ilustrar, mas ele estava
decidido que seríamos professores, e quem nos levaria as cartas
seria ele. Quer dizer, absorveu ambições que deveriam ser nossas
e isso, eu notei, chegava até a nos prejudicar, porque, é claro, nem
eu nem Antonio Candido somos pessoas de ambição destituída de
valor. Tínhamos um senso de valor e havia um conflito de geração.
Essa relação que ele teve conosco era nitidamente amorosa, mas ao
mesmo tempo, era uma relação de posse, que ditaria uma espécie
de capacidade dele em decidir o nosso destino.
A única pessoa com quem ele conseguiu ir até o fim nesta
relação entre professores de valor foi exatamente com alguém que
não trabalhou na carreira, que foi o professor João Cruz Costa,
no episódio que Antonio Candido contou a respeito do AI-5. Ele
entrou com o professor Cruz Costa na sala em que este foi arguido
por um coronel e depois ficou sentado ali esperando a minha vez de
ser interrogado. Eu disse: “Dr. Fernando, o senhor não vai entrar
comigo nessa sala. Prefiro ser preso aqui do que ter alguém que me
F lorestan F ernandes • 187

defenda, que pretenda me defender desta represália que estamos


sofrendo”. Ele ficou muito contrariado comigo. Naturalmente
estava fazendo aquilo por puro altruísmo e compartilhando erros
que não cometeu. Porque, no meio de toda a luta contra a ordem
existente, cometemos erros e acertos. Os responsáveis éramos nós
que os cometemos. Cheguei a dizer ao Dr. Júlio de Mesquita Filho,
que me tirou de uma das listas de cassações em 1964: “Dr. Júlio,
o senhor tome tento no fato de que sou seu inimigo de classe e
que, se houvesse uma revolução que nos pusesse frente a frente, e
o senhor fosse condenado à morte, eu concordaria com isso sem
nenhum tipo de angústia. Portanto, não posso aceitar do senhor
uma coisa que eu não faria, e nunca mais se envolva em tentativas
de me proteger”.
Fernando de Azevedo se lançou – parece que era uma caracte-
rística dessa geração de homens – de um passado que está próximo
de nós, mas que ao mesmo tempo está longe. Era uma espécie de
consenso de elite. “Está decidido que se fulano cometeu um erro,
esse erro deve ser defendido por mim. Se ele vai sofrer alguma
punição, eu compartilho da punição e vou defendê-lo até onde
me for possível.” É uma mentalidade heroica, mas que calhava
mal na situação que estávamos vivendo. Esse tipo de solidariedade
desapareceu. Ninguém mais faz isso hoje. Agora, se o erro fosse de
caráter, de corrupção, a coisa era diferente. Por exemplo, um tesou-
reiro da Faculdade de Filosofia, muito amigo dele, um protegido,
cometeu um delito que ele considerava inaceitável. A pessoa perdeu
o cargo e perdeu junto a amizade do Dr. Fernando de Azevedo. Aí
eu estranhei, porque, pelos nossos critérios, estenderíamos a mão
a essa pessoa, ainda que não aprovando o ato, não é? Vejam como
os valores mudam e como as coisas se passam.
No trabalho tivemos diretrizes um pouco diferentes, por-
que, no campo da sociologia da educação, por exemplo, quando
Antonio Candido trabalhava nessa área, levava para a sala de
188 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

aula um conjunto de obras que o Dr. Fernando não chegou a


conhecer. O que não o impediu de ter escrito um manual de
primeira qualidade. O que recebemos do passado era ainda a
escola superior isolada, na qual havia as exceções. Como disse
Antonio Candido, o grande homem podia ir além do grande
intelectual, e ele compartilhava das duas condições. Mas vínha-
mos de uma influência contraditória. De professores franceses,
italianos hoje – não digo portugueses, mas havia portugueses
–; havia professores alemães e de várias nacionalidades, russos
naturalizados norte-americanos. Tínhamos uma visão do mundo
que correspondia àquilo que os pioneiros da Educação Nova que-
riam instalar através do manifesto deles. Queriam desencadear
no Brasil a revolução educacional burguesa. Quer dizer, queriam
nos colocar em pleno século XX. Mas, na prática, isso tudo era
um ideal, porque eles próprios não tinham meios para chegar a
esses fins e com isso, então, havia divergências nas relações que
se estabeleciam entre nós.
Às vezes, até a maneira enfática que usavam para sublinhar o
que pretendiam ensinar levou as pessoas da geração que vinha logo
depois da nossa a ridicularizar o Dr. Fernando. Isto porque, na aula,
quando dava um curso de sociologia de âmbito católico – no senti-
do universal –, começava na Antiguidade e terminava no presente,
embora o eixo fosse a sociologia positiva francesa. Ele batia com o
sapato no chão para salientar o que estava dizendo e citando. Por
exemplo, Comte: “Não confundam Comte, filósofo francês, com
Kant, filósofo alemão. Comte e Kant são dois filósofos distintos”.
Isto fazia com que os alunos reagissem de maneira negativa e não
avaliassem o que representou, para pessoas da geração dele, che-
gar a escrever um livro como Princípios de sociologia (1935) que
era o melhor manual que havia aqui, teoricamente, de sociologia
geral. Percorreram todo um caminho que vencemos, sem o ponto
de partida e de apoio dos professores estrangeiros, com os quais
F lorestan F ernandes • 189

tínhamos um outro problema, que era o da autonomia – receber


o conhecimento sem fazer o papel do colonizado.
Acho que pode ser um traço de orgulho meu, mas duas pes-
soas deram muito mais ênfase à questão da colonização – um foi
Fernando Henrique Cardoso e o outro fui eu. Cheguei a afirmar
que no Brasil não houve descolonização. Porque a descolonização
se engataria à revolução urbana, à revolução agrária, à revolução
industrial, à revolução educacional etc. Agora, Fernando de Aze-
vedo estava empenhadíssimo, com a geração a que ele pertencia,
em derrotar o passado, que estava vivo no presente, através da
educação e da cultura. Se lerem a história da Associação Brasi-
leira de Educação e a biografia de autores como Anísio Teixeira,
Lourenço Filho, Almeida Júnior e outros – juntamente com a de
Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, as duas maiores figuras da
educação moderna no Brasil daquele momento –, vocês constatarão
que pretendiam, ao contrário dos patrocinadores da fundação da
Faculdade de Filosofia e da Escola de Sociologia, colocar o Brasil
em um novo patamar. E é característico que esses professores, que
fizeram um papel tão grandioso, não lograram atingir os objetivos
visados. Por quê? Porque no Brasil, para as elites das classes domi-
nantes, o que era importante, o que era funcional, era deseducar,
não educar; educar os filhos das elites e deseducar a massa; manter
a massa fora da escola ou então colocar a massa dentro da escola
como futura mão de obra, qualificada ou semiqualificada, de vários
graus de desenvolvimento econômico. E nesse ponto, Fernando de
Azevedo foi uma figura que desempenhou papel muito importante,
e que nos obrigava a ter respeito por ele, respeito intelectual.
Não vou citar o nome de outro professor, da mesma geração
de Fernando de Azevedo, que teve até certa importância para
mim. Isso porque uma vez, como aluno, eu estava dando aula,
indo para lá e para cá, por falta de experiência, e ele então disse:
“Parece um papagaio andando no poleiro”. Agora, por esse e por
190 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

outros homens, não tínhamos respeito nenhum. Os alunos da


turma a que pertenci praticamente expulsaram alguns assistentes
não qualificados, que trabalhavam em várias cadeiras, sem critérios
ideológicos, por critérios estritamente de formação científica e de
valor intelectual. Fernando de Azevedo passou por todos esses
crivos. Sempre foi respeitado pelo jovem e sempre foi querido como
alguém que merecia ser considerado como uma figura ímpar.
Há vários episódios nas relações com ele e vou contar um que
foi muito doloroso para mim e mais ainda para ele. Diz respeito à
minha transferência da cadeira de sociologia II para a de sociologia
I. O professor Roger Bastide, que num dado momento precisava
voltar para a Europa, colocou o departamento diante do proble-
ma de que eu poderia ser a pessoa que deveria ficar em seu lugar.
Fernando de Azevedo não gostou da história, pois foi uma inter-
ferência direta, em público, na estrutura da cadeira de sociologia
II. Ele não perdia grande coisa, mas, de qualquer maneira, queria
ser o autor da iniciativa. Roger Bastide, que era uma espécie de
santo em matéria de inocência e em outros aspectos, não teve o
cuidado de verificar como uma transferência dessas envolvia uma
negociação complicada. O fato é que comecei a trabalhar nas duas
cadeiras, cheguei a dar 14 aulas por semana. No final, não aguentei
mais e tive, na sala do Dr. Fernando, uma briga seriíssima com ele.
Disse-lhe que o elemento que explicava a minha não transferência
era a sua atitude intransigente, intervindo para que eu não fosse
transferido. Ele disse: “Florestan, vamos conversar, vamos conversar
de coração para coração”. Aí dei uma resposta da qual me arrependo
amargamente: “Dr. Fernando, nós nunca mais conversaremos de
coração para coração, conversaremos de cabeça para cabeça”. Ele
olhou, ficou ruborizado, e as lágrimas correram-lhe pelas faces. É
um caso doloroso para se contar, mas importante para mostrar o
quanto ele era amigo dos amigos e como ele se prendia às pessoas,
se apaixonava por elas.
F lorestan F ernandes • 191

Da mesma forma, detestava o inimigo, enquanto tal. Cheguei


a promover a reconciliação dele com algumas pessoas, sendo uma
delas André Dreyfus. Na categoria de inimigo – já que anteriormente
eles haviam sido muito amigos –, Dreyfus era maltratado. Depois,
houve a reconciliação e os dois abraçaram-se e trataram-se cordial-
mente. A mesma coisa aconteceu com Júlio de Mesquita Filho, que
tinha o preconceito de que Fernando de Azevedo servira à ditadura
(do Estado Novo) e que pedagogo era pior que puta, por ser capaz
de servir a qualquer um. Aproveitando uma festa na Faculdade de
Filosofia, ao lado da biblioteca, no porão, perguntei ao Dr. Fernan-
do: “O senhor fala com Júlio de Mesquita Filho?”. “Ele é que não
vai querer me receber depois de todos os atritos que tivemos.” Eu
disse: “O senhor está muito enganado”. Fui procurar o Dr. Júlio de
Mesquita e falei: “Dr. Júlio, esse atrito entre o senhor e Fernando
de Azevedo é uma coisa boba; os senhores tiveram tanta importân-
cia na fundação desta Faculdade que é até uma vergonha para nós
que os dois estejam em posições antagônicas. O senhor não quer ir
comigo até Fernando de Azevedo, para se abraçarem?” “Pois é, mas
acho que ele está magoado comigo.” Eu respondi: “Bom, vamos
tentar”. E lá fui eu acompanhando o Dr. Júlio e botando os dois em
contato. Imediatamente todo aquele mal-entendido, que surgira em
rancor, em agressões recíprocas desnecessárias, acabou. Abraçaram-se
e passaram a conviver como antes, e Fernando de Azevedo voltou
a escrever no Estado de S.Paulo. Comigo a coisa foi diferente, pelo
fato de que tínhamos um temperamento impulsivo e, praticamente,
éramos capazes de ir à agressão, até o extremo limite. Quando vi
Fernando de Azevedo chorando, também chorei; e ficamos ali, como
duas crianças, nos abraçando e, naturalmente, ele disse: “Bom, eu
vou tratar de ajudar você a resolver o caso”. Assim nós tivemos o
problema resolvido e as relações normalizadas.
Agora, no que diz respeito ao trabalho, seria impossível ter um
chefe mais tolerante. Como Antonio Candido falou, ele aceitava
192 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

que nos dedicássemos ao nosso trabalho, que preferíssemos, e nos


apoiava inteiramente, como ocorreu em certa ocasião, por causa de
minha tese de doutorado. Havia por parte de um professor – Plínio
Ayrosa –, membro do Conselho Técnico e Administrativo, uma
tentativa de me pegar pela exigência do período legal de apresen-
tação da tese. Escrevi a primeira parte da Função social da guerra,
sobre a tecnologia guerreira, o que dava um volume datilografado
suficientemente extenso para ser uma tese. Aí esse professor, que
não era de pôr panos quentes, perguntou: “Todos entregaram a
tese?”. O professor Eurípedes Simões de Paula respondeu: “Sim,
todos”. “Bem, quero ver a tese de Florestan”, continuou Ayrosa.
Quando ele a abriu, na primeira página havia um recado meu,
escrito com letras garrafais: “Esta é a primeira parte do trabalho,
a segunda será entregue quando estiver pronta. Florestan Fernan-
des”. O professor disse: “Ele não fez e ainda nos manda um recado
malcriado desses! O que temos de fazer é demitir o Florestan Fer-
nandes”. Fernando de Azevedo se levantou e disse: “Ele já tem uma
tese aqui. E devo esclarecer a todos que ele é segundo assistente,
mas não é assistente de segunda categoria...”. No fim, ganhou a
batalha e a minha defesa de tese se processou normalmente.
Isso tudo dá uma ideia do clima em que nós vivemos e do
homem que Fernando de Azevedo era, que combinava audácia e
altruísmo, generosidade e disposição de se colocar a serviço dos
outros, algo raro num professor catedrático daqueles tempos.
Agora, passando a outras reflexões, um homem como esse, que
tinha um sentido profundo da história, ele próprio se considerava
uma figura histórica. Esse sentido da história não só o projetava
num conhecimento da realidade brasileira, como também na
avaliação de si próprio. Ele era capaz de se lembrar de tudo o que
fazia, como se tudo constasse de uma crônica, já que possuía uma
memória extraordinária. Isso vai até o fim da vida dele. Vivia com
amargura e solidão, apesar do convívio com amigos, colegas e
F lorestan F ernandes • 193

parentes. Ao mesmo tempo, porém, tratava-se de um homem que


sabia que o Brasil não podia permanecer como nos encontramos até
hoje. Ele não foi um pioneiro comemorativo, ele foi um pioneiro
real – ele, Anísio Teixeira e outros. Hoje sabemos – e eu próprio
cheguei a escrever sobre isso – que eles representavam uma tangente
burguesa da educação. Tinha de ser, e nós mesmos estamos presos
pela cabeça ou por outras partes do corpo a ideias e valores que não
somos nós..., que são o ídolo além da nossa história. Um homem
como Fernando de Azevedo sofria muito dentro das limitações de
uma sociedade que tentou modificar.
Então podemos refletir sobre isso. Como uma pessoa pode
transcender seu meio, pode transcender sua época, pode tentar
melhorar esta relação dolorosa com o meio e com a obra, através
de reformas que são simples e necessárias. A utopia, no caso, não
era do tipo “substituição do capitalismo pelo socialismo”. Era uma
utopia de superação de etapas semicapitalistas, paracapitalistas,
para uma plenitude daquilo que o capitalismo pode oferecer, se ele
realmente for capaz de proporcionar a todas as classes um mínimo
de dignidade, esperança e meios de subsistência.
Por isso, é muito interessante ver que Fernando de Azevedo
estava praticamente preso numa espécie de gaiola da qual ele fugia
pelas ideias, embora, no terreno da ação, tivesse feito muita coisa
que deixo de arrolar. Ele fez muitas coisas. Não foi um mero in-
conformista, foi um reformista no sentido autêntico e pretendia
alterar as instituições. Como sociólogo, sabia que, para alterar
instituições, era preciso alterar a sociedade, a economia, a cultura,
enfim, toda a civilização. Daí vem o grande enigma dessa perso-
nalidade que foi prisioneira de si própria; porque teve a grandeza
de ir além daquilo que um professor ou um educador poderia ser,
dentro da tradição brasileira.
É claro que, se fosse um conformista no sentido literal,
Fernando­ de Azevedo teria tido tudo o que pudesse desejar.
194 • F ernando de A zevedo : um autêntico reformista

Teria ocupado os maiores cargos da República. Seu talento era


reconhecido. Sua capacidade de ação era disputada e, no entanto,
ele realizou reformas que se esvaíram, como se esvaíram outras,
desde Carneiro Leão, Anísio Teixeira, até os últimos educadores
que trabalharam nessa área. Não há continuidade na reforma pelas
razões que ele apontou em A cultura brasileira (1943), nas amargas
memórias que escreveu de sua vida (História de minha vida, 1971)
e nas reflexões que fazia conversando conosco.
Na fundação da Universidade de São Paulo foram cometidos
grandes erros. Poderíamos dizer que foram erros liberais. O resul-
tado da mudança não foi submetido ao controle. Por quê? Porque a
Universidade e a Faculdade de Filosofia, que deveriam enriquecer
as classes dominantes de talentos, na verdade acabaram semeando
a sociedade brasileira com rebeldes. Assim, 1964 e todos esses anos
que vivemos, até o presente momento, constituem épocas em que a
parte atrasada do Brasil acertou as contas com a inteligência radical
dessa geração que continua a obra iniciada pelos abolicionistas.
Passando pelos abolicionistas autênticos, pelos que negociaram com
os fazendeiros, pelos tenentistas, pelos modernistas, pelos pioneiros
da Educação Nova, chegam até hoje exprimindo-se nos ideais de
partidos como o PT, em cujo programa não há nada de explosivo.
Ninguém está querendo dinamitar o Brasil, pelo menos na medida
em que se lançou uma tentativa de solução representativa e pelo
voto. O PT não se propõe explodir o Brasil. Mas a eleição de um
Lula constitui-se numa ruptura histórica com o passado. Porque, a
partir do momento em que o Brasil puder eleger um homem como
ele, todas essas coisas se terão alterado. O mesmo raciocínio pode
ser aplicado a Fernando de Azevedo, a Anísio Teixeira e a outros.
Se eles tivessem conseguido aquelas reformas dentro da ordem, as
contradições se acelerariam e, com a vontade ou contra a vontade
deles, o Brasil acabaria evoluindo com muito maior velocidade em
direções indesejáveis para as classes dominantes.
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Um homem da sabedoria de Fernando de Azevedo vai a


fundo nesse dilema. Não com subterfúgios, não com atitudes de
um homem erudito como Oliveira Viana. Ele vai de peito aberto,
disposto à luta, querendo a reforma. Parafraseando Antonio Carlos,
Fernando de Azevedo dizia: “Façamos a revolução na escola antes
que o povo a faça nas ruas”. Está num dos livros dele.
Feita a revolução nas escolas, o povo a fará nas ruas, embora
essa vinculação não seja necessária. Na China, em Cuba, na Rússia,
sem passar pela escola, o povo fez a revolução nas ruas. Mas, em
um país como o Brasil, é necessário criar um mínimo de espíri-
to crítico generalizado, cidadania universal e desejo coletivo de
mudança radical para se ter a utopia de construir uma sociedade
nova que poderá terminar no socialismo reformista ou no socia-
lismo revolucionário. Eu prefiro a última alternativa. Fernando
de Azevedo optaria pela primeira. Ambas são alternativas que nos
põem no fluxo da história, embora eu não tenha a mesma relação
de vontade, de poder, que ele possuía: ser uma expressão histórica
das forças intelectuais na sociedade brasileira.

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