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3 CLEMENTE ROMANO E A CARTA AOS CORÍNTIOS

A Carta de Clemente Romano no século I d. C., conforme já mencionado, foi


escrita por volta de 92 a 96 d. C. Essa carta estava entre os documentos encontrados em
1628, junto ao Códex Alexandrino. Em relação a essa descoberta é importante ressaltar
que Pereira Melo (2012, p. 182) nos dá um histórico sobre o códex:

O acesso ao texto da carta clementina foi possibilitado pelo Codex


Alexandrinus: manuscrito da Bíblia grega, presente do patriarca Cirilo
Lucaris ao rei Carlos I da Inglaterra em 1628. O códice contém a
totalidade dos livros do Antigo e do Novo Testamentos, ainda com
algumas mutilações, pelo que algumas palavras ou passagens são
ilegíveis. Também falta uma folha, que corresponde aos capítulos
LVII, 6 e LXIV, 1.1

A importância dessa carta de Clemente Romano aos coríntios no século I d. C.


para a história do cristianismo primitivo está no fato de que fornece informações dos
problemas enfrentados pelas primeiras comunidades cristãs, bem como orientações
doutrinais e formativas que essas cartas continham para os novos adeptos da religião
cristã. Nesse século foi um dos primeiros documentos doutrinários escritos depois dos
evangelhos e, portanto, a sua relevância para o estudo do desenvolvimento do
cristianismo.
Essa carta foi escrita para a comunidade cristã de Corinto, cidade grega,
dominada pelos romanos e, capital da província senatorial de Acaia. Era uma cidade
portuária, com fluxo intenso de pessoas de todas as regiões circundantes, e seus portos
eram movimentados por navios que traziam e levavam mercadorias. Por isso a
relevância dessa comunidade cristã, fundada por Paulo de Tarso em Corinto, para a
propagação dos cristãos e divulgação de seus ensinamentos. E para confirmar a
importância desta cidade, é necessário desvendar a história e como era influente no seu
tempo.

3.1 CORINTO NA ÉPOCA DE CLEMENTE ROMANO

1
O texto da carta de Clemente Romano foi descoberto primeiro no Códice Alexandrino bíblico do século
V (parágrafo 7.2c), onde está depois do Apocalipse de João; no entanto, está faltando uma folha que
continha o texto da 1 Clem. 57, 7-63, 4. O texto grego completo apareceu com a descoberta do Códice
Hierosolimitano (o mesmo códice que contém o texto grego da Didaquê) (KOESTER, 2005, 307).
Corinto era uma cidade Grega, situada a 80 km de Atenas, no lado sul do
Isthmus, que era uma estreita faixa de terra que une o Peloponeso ao continente da
Grécia, separando o mar Jônico (Golfo de Corinto), do mar Egeu (Golfo Sarônico).
Corinto, portanto, se situava na região de Acaia, Grécia, e, por ser uma cidade portuária,
era composta por cidadãos de várias regiões que vinham atrás do comércio, uma vez
que a ciência e a navegação foram desenvolvidas por estes estímulos e impulsos
estrangeiros. Tanto que os coríntios, no século VIII a. C, construíram as primeiras
trirremes, barcos providos de três grupos de remadores de cada lado (RICHETTI;
EGIDATI, 2006).
Tanto a água abundante como a geologia determinaram a localização de Corinto
pois a composição geológica forneceu os materiais básicos para a construção da cidade,
sendo que há calcários de barras de areia marinhas que vão desde o Golfo Sarônico até
Sikyon e são extraídos para a pedra. Essas pedreiras são vistas de longe e a sua
composição é tão macia que pode ser trabalhada como carpintaria, com uma coloração
amarelo avermelhada, o que possibilitava a sua exportação para a construção de
templos.
Corinto possuía quatro portos. Dois deles, Schoenus e Poseidona eram
possivelmente de ancoragem simples e atendiam as duas extremidades de Diolkos, uma
estrada pavimentada que foi construída ao longo desse Isthmo, com 6 km de extensão,
provável que tenha sido construído pelo tirano de Corinto, Periandro (Corinto – 585 a.
C.) em VI a. C. Entre 428 e 430 a. C. se sabe de cinco tentativas de cruzarem essa via
pavimentada com navios de guerra. Até que finalmente conseguiram esse transporte
como atesta Aristófanes (450 a. C – 385 a. C) em uma de suas comédias em que
Kleisthenes chora exasperado: “você tem uma espécie de Isthmo, em que puxa a proa
para lá e para cá, com mais frequência do que os Coríntios (transportar navios através
do Diolkos)”, o que nos sugere que o Diolkos era ativamente e regularmente utilizado
por navios mercantes ou então não haveria humor na piada de Aristófanes (SANDERS,
2005)
A extensão do território da Corinto arcaica, da península de Pérachora até os
limites com Sikyonians, cidades da província de Acaia, era de aproximadamente
900km², e a área cultivada era de 200km², o que correspondia a ¼ do território da pólis.
A região agricultável de Corinto era pequena, mas de fertilidade em razão da
precipitação pluvial que formava aguaceiros e inundava o sul. Assim houve a
diversificação da economia para o comércio, o artesanato, bem como a importação de
alimentos da Sicília para suprir as demandas. Para delimitarem as margens de seu
território, os coríntios construíram santuários no espaço rural e urbano, destacando-se na
região do Isthmo de Corinto o santuário de Poseidon, onde eram realizados os jogos
pan-helênicos (LIMA, 2010).
Corinto foi totalmente destruída pelos romanos em 146 a. C. e refundada por
César cem anos depois em 44 a. C., como uma colônia romana, tornando-se, na época, a
maior cidade da Grécia, agora sob o domínio romano, tendo o nome de Colonia Iulia
Flavia Augusta Corinthienses. Nesses cem anos até a sua refundação não se tem notícia
de nenhuma atividade nas ruínas de Corinto. Houve invasão e saques das cidades
vizinhas como Sikyonians, mas nenhum registro de atividades. Como estava em local
privilegiado, entre o golfo de Sarônica a leste e o golfo de Corinto a oeste, com a
refundação por César, tornou-se o principal porto da Grécia e um dos maiores centros
comerciais do mundo antigo (cerâmicas, metalurgia e confecção de tapetes).

Como observa o historiador Estrabão (63 a. C. -23 d. C.): “Corinto é chamada


rica devido ao seu comércio, facilitado porque situa-se no istmo e controla dois portos,
um dos quais perto da Ásia, o outro perto da Itália, o que torna fácil a troca recíproca de
cargas...”. Esses portos eram Lecaion, no golfo de Corinto, e Cencréia, no golfo
Saroniano. O Istmo era estreito em Esquemo, ao norte de ambos os portos, o que
resultava em navios que precisavam ancorar ao longo das margens (MEEKS, 1992).

Nos reinados de Tibério, Gaio e Cláudio houve grande impulso na


atividade de construção, que foi dando a Corinto cada vez mais a
aparência de cidade romana. Isto era mais visível na ágora, uma das
mais conhecidas. Era dividida em duas partes pelos edifícios de
terraço central, que iam de leste para oeste, “inferior [setentrional] e a
mais larga das quais se transformou no fórum do povo, enquanto a
parte superior e menor serviu como setor administrativo. ... No século
I, virtualmente todas as inscrições públicas eram em latim.... O
governo era típico de colônia romana, com duoviri e edis2 anualmente

2
Em Roma a única carreira honrável para quem era de alta posição social eram os cargos públicos. O
cargo de cônsul era o mais prestigioso, e depois dele seguia-se uma escala de cargos, em que geralmente
iniciava-se como soldado nas campanhas militares, com vinte anos, depois, com trinta anos, a de Questor,
que cuidavam da administração financeira, e, então estaria habilitado, depois de alguns anos a se
candidatar a senador automaticamente. Depois de Questor, o próximo cargo era Edil, que tinham a tarefa
de cuidar da manutenção das ruas, esgotos, templos, mercados e outras obras públicas. O próximo cargo
era o de Pretor, com deveres civis e militares, ficando com a administração da justiça e comando das
tropas de guerra. Somente o cargo de Cônsul ficava acima do cargo de Pretor. Havia ainda cargos que
eleitos. A profundidade dessa “romanização”, porém, não deveria ser
exagerada (MEEKS, 1995, 80).

Estrabão ainda relata que César colonizou corinto enviando “homens que
pertenciam na sua maioria à classe dos libertos”. Como não havia uma aristocracia
nativa, os colonizadores libertos tinham a oportunidade de ascenderem nas ordens
sociais e competirem para conseguir a marca de status que os tornariam membros da
aristocracia local. Para esse fim davam presentes à cidade para serem recompensados
com ofícios e honra públicos. Um exemplo de benfeitor da Corinto romana, no reinado
de Tibério (42 a. C – 37 d. C.), era Babbius Philinus (, que pelo nome indica ser um
liberto, enquanto seu cognome trai sua origem grega. Foi edil e depois, “em retribuição
por suas generosas doações, a colônia fez dele pontifex e duumvir”, e sua família veio a
ser uma das primeiras casas de Corinto. Também Erasto, contemporâneo mais jovem
que Babbius, foi o benfeitor que pavimentou o pátio oriental do teatro em estágio de
construção (MEEKS, 1995). Portanto, constata-se uma forma de ascender socialmente
na Corinto romana, uma forma de suplantar tantas opressões de seus conquistadores,
mesmo que o ardil seja a compra desse status.

Povoada pelos descendentes dos deserdados romanos e de ex-escravos


desarraigados, Corinto era o epítome da sociedade urbana criada pelo
Império Romano: um conglomerado de indivíduos atomizados
apartados das comunidades de apoio e das tradições culturais
particulares que antes haviam constituído suas identidades e
solidariedades corporativas de sírios, judeus, italianos ou gregos. Na
qualidade de libertos e pobres urbanos isolados de toda rede social
horizontal de apoio, eles ou já eram parte das camadas inferiores das
pirâmides de patronato que desciam pela hierarquia social à medida
que se expandiam as bases de poder dos que lutavam por altas honras
e cargos, ou estavam prontamente vulneráveis ao recrutamento por
tais camadas. Em meio a todas as pompas oferecidas pela elite cada
vez mais munificente e honrada, os coríntios tinham reputação de
pessoas incultas e carentes em termos de manejo social, em parte
porque os abastados exploravam em demasia os pobres (Alcífron,
Cartas 15 e 24) (HORSLEY, 2004, 239).

No império romano, proliferavam os santuários, templos e festivais em louvor a


Augusto, imperador, e seus sucessores, que eram cultuados pelas cidades gregas com
base na religião grega tradicional, e a iniciativa de erigir templos e instituir jogos em
nome do imperador se originava das elites urbanas ou províncias locais. O que não foi
eram eleitos de cinco em cinco anos, de Censor, que controlavam os cargos do senado e cuidavam do
censo de cidadãos. O ditador era um cargo extraordinário para decisões rápidas para salvar o Estado
Romano (MARTIN, 2019)
diferente em Corinto, em que a presença do imperador veio a dominar o espaço público,
com o novo Templo E, em estilo romano, ocupando uma estrutura no centro da cidade,
ao redor do fórum, na frente e entre as edificações (HORSLEY, 2004).
E assim, como um porto em que o movimento era intenso, era um lugar perfeito
para a propagação de bens e ideias. Corinto era uma cidade multilíngue, politeísta,
cosmopolita, visitada por muitos viajantes, comerciantes e marinheiros vindos de todo o
mediterrâneo. Paulo de Tarso fundou uma comunidade nessa cidade, pois ali era o ponto
nodal de comunicações terrestres e marítimas da Grécia meridional, uma posição
estratégica (SANDERS, 2005).
Segundo a tradição, foi fundada uma comunidade cristã em Corinto, por Paulo
de Tarso, que ficou de 50 a 52 d.C. nesta cidade, em atividade missionária, quando teve
problemas com os judeus na primavera de 52 d.C., sendo levado na presença do
procônsul Gálio para julgamento (Atos 18, 12-17), livre, ali ficou ainda alguns dias. Os
problemas nesta comunidade continuaram, pois Paulo de Tarso enviou outras cartas
para orientação dessa comunidade cristã (KOESTER, 2005).

Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, e Timóteo, o


irmão, à Igreja de Deus que está em Corinto, assim como a todos os
santos que se encontram na Acaia inteira. A vós, graça e paz da parte
de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (BÍBLIA DE
JERUSALÉM, 2002, p. 2017).

E assim também Clemente Romano, membro da comunidade de Roma enviou


esta Carta aos Coríntios, no primeiro século d. C., possivelmente por volta de quarenta
anos depois de Paulo de Tarso, tendo em vista uma formação, segundo Cristo, para a
comunidade em conflito, em específico a alguns fiéis que estavam promovendo a
discórdia naquela comunidade de fé.

3.2 A PRIMEIRA CARTA AOS CORÍNTIOS

Clemente Romano escreve a Primeira Carta endereçada à comunidade de


Corinto, representando a comunidade de Roma: “A Igreja de Deus peregrina em Roma,
à Igreja de Deus peregrina em Corinto” (I Clemente, Saudação, 2000, p. 45), com a
finalidade de dirimir problemas e cismas que estavam ocorrendo entre os membros
dessa comunidade. Conforme relatado nessa carta, os mais jovens estavam retirando os
anciãos de seus cargos como dirigentes desses fiéis.
A carta escrita por Clemente Romano, bispo de Roma, não apresenta indícios de
que Roma pudesse intervir nos problemas das outras comunidades, ao contrário, de
acordo com a linguagem e os argumentos utilizados por Clemente Romano, Roma não
podia reivindicar nenhum direito de interferir, mas o texto permite que se possa extrair a
capacidade de Roma de gerir os problemas que surgissem para que se solucionassem
conforme seus interesses (MORESCHINI&NORELLI, 1995).
Primeiramente se denota nesse preâmbulo uma maneira perspicaz, velada, de
exercer uma certa soberania sobre a comunidade de Corinto. Provavelmente uma
pequena ascendência de Roma sobre Corinto, mesmo porque esta era a sede do Império
romano, uma cidade com uma população maior.
A comunidade de Roma foi convocada a dirimir estes problemas de dissensões e
discórdia que viviam os cristãos em Corinto, demonstrando assim uma capacidade que
essa ordem possuía de solucionar problemas que surgissem nas outras comunidades
cristãs, o que se pode inferir que a missão de todos os fiéis cristãos era manter a unidade
da nova crença, conforme os ditames prescritos pelo modelo de Cristo, pois nesse
primeiro século d. C. podemos apreender a humildade com que os que estão nos cargos
de dirigentes se comportam e escrevem.
A I Carta de Clemente Romano aos Coríntios3 é um modelo de documento
cristão, muito utilizado nos primeiros séculos d. C. como formação cristã em várias
igrejas, conforme confirma Dionísio de Corinto, na sua carta ao papa Soter, cerca dos
anos 166-174 d. C, em que faz-nos saber que a Carta de Clemente era lida aos domingos
nas assembleias litúrgicas. Eusébio atesta que a mesma Carta era reconhecida como
autêntica e lida publicamente em muitas Igrejas nas assembleias dos fiéis. Também
Jerônimo confirma que esta era lida publicamente nalgumas partes: in nonnulis locis
publice legitur (LAMELAS, 2000).
Eusébio de Cesaréia (263 d. C. – 339 d. C) declara que não há dúvida de que a I
carta de Clemente foi escrita em nome da igreja de Roma à de Corinto. Nela Clemente
Romano expõe muitos pensamentos da Carta aos Hebreus, e inclusive utiliza
textualmente algumas passagens da mesma, mostrando assim com toda claridade que
este escrito não é recente (CESARÉIA, 2005, p. 91).
3
A epístola apelidada de II Carta Clementina não é de autoria de Clemente Romano; em realidade, é a
mais antiga homilia conservada até hoje (ALTANER; STUIBER, 1988, p.57).
Deste existe uma Carta universalmente admitida, longa e admirável,
que escreveu em nome da igreja de Roma à de Coríntios, tendo como
motivo uma sedição ocorrida em Corinto. Sabemos que esta carta foi
lida publicamente na assembleia na maior parte das igrejas, não
apenas antigamente, mas também em nossos dias (CESARÉIA, 2005,
p. 91- 110).

Lightfoot (1869), teólogo inglês que fez uma introdução para a Carta de
Clemente Romano, publicada nesse ano, destaca também estas indicações, em uma
tradução que fez da carta, atesta que: “Em suma, pode-se dizer que bem poucos escritos
da antiguidade clássica ou cristã são tão bem autenticados quanto esta carta”. Ele afirma
que não há dúvida razoável sobre a autoria desta Carta, dizendo que: “não apenas temos
testemunhos muito amplos e muito precoces do fato de Clemente ocupar o primeiro
lugar da Igreja Romana nessa época” (LIGHTFOOT, 1869, p.1-4).
Isto posto Cowper (1928) conclui que sem insistir muito na data precisa em que
foi escrita, a carta clementina orienta comportamentos e modelos a serem seguidos. E
complementa que a carta de Clemente Romano nos fornece três lições:
1) Presta um testemunho importantíssimo da antiguidade tanto pela
autenticidade como pela autoridade que nela se encerra em virtude dos
exemplos do Antigo Testamento com que se utiliza, o que não pode ser
negligenciado, e ainda como precursora dos livros do Novo Testamento.
2) A epístola de Clemente é valiosa na controvérsia com romanistas e
romanizadores.
3) As doutrinas inculcadas nesta epístola são essencialmente as agora
entendidas como evangélicas. Suas citações referentes às Escrituras são
consideradas como uma autoridade presente, com poder de decisão sobre os
cristãos. Ela é a autoridade final da qual não há apelo a nenhum outro
Tribunal existente, e dentre os homens aqui na terra, os cristãos devem
reconhecer este poder e se submeterem aos juízos de Deus (COWPER, 1867,
p.15).
Para Cowper (1928), toda a carta foi elaborada com muitos exemplos,
destacando-se a autoridade que Clemente Romano atribui a Deus. É uma Lei para os
homens, de onde não se pode recorrer a outra Corte que não seja a dele, pai de Cristo.
Não há outro tribunal para o qual se possa recorrer na terra. Portanto os cristãos
precisam resolver as suas desavenças entre eles mesmos e com seus superiores.
Também foi preocupação de Clemente Romano, em sua Carta, apontar um
modelo de doutrinar e ou formar o homem de Corinto, por extensão, o homem cristão,
segundo os ensinamentos da tradição e do próprio Cristo, bem como promessas de
cidadania celeste, a defesa da unidade e hierarquia da Igreja. E principalmente a família
solidificada na fé, na disciplina, na humildade, no amor, na obediência, na
hospitalidade, dentre outros comportamentos elencados para os cristãos.
De acordo com a maneira com que exorta a comunidade, Clemente apresenta a
carta em forma de parênese, uma forma de discurso moral que estabelece as atribuições
de cada membro daquela igreja bem como os seus deveres, num processo formativo dos
fiéis de Corinto para uma vida nova em Cristo. Essa era uma maneira de educar desde o
âmbito familiar, tendo como finalidade os comportamentos desejados de um bom
cristão, para com a sociedade e o Império. (KOESTER, 2005).

Os materiais que o autor utiliza nas seções parenéticas são de fácil


reconhecimento: a doutrina dos Dois Caminhos, especialmente os
catálogos de virtudes e vícios, as listas de deveres domésticos e
normas da comunidade. Das Escrituras procedem as coleções de
exemplos de virtudes e vícios; da tradição cristã, uma coletânea de
ditos de Jesus é citada duas vezes (13,2 e 46,8). Também pertencem a
fontes cristãs usadas no escrito uma coleção de Paulo (inclusive a
Epístola aos Hebreus) e materiais querigmáticos 4 e litúrgicos da igreja
do autor, entre os quais uma longa prece rogatória (59,3-61,3). Mas
Clemente recorre também a tradições pagãs, mais explicitamente a
uma descrição do mundo pela sabedoria de Deus (20,1-11), que pode
ter chegado ao autor por meio do judaísmo da diáspora, e também
materiais populares ilustrativos, como a história da Fênix (25,1-5)
(KOESTER, 2005, 310).

Sobre o ensino de dois caminhos aferimos que era comum nos tempos
helenísticos uma tradição antiga de orientar o homem e vamos encontrá-la em Hesíodo 5,
em Pinax de Cebe, um tratado filosófico moral que descreve uma pintura de dois
caminhos encontrada entre as doações votivas de um templo. Era um modo
“pitagórico”6 de interpretar a vida humana e usava como seu símbolo o Y, o sinal de

4
Querigmático: o Kerygma é a direção apontada pela atividade protréptica (refere-se à exortação ou
convite) cristã, que descreve a ignorância dos homens e promete lhes dar um conhecimento melhor e,
como as filosofias, se refere a um mestre e professor que possuiu e revelou a verdade (JAEGER, 2014,
19).
5
Hesíodo: poeta grego, da Beócia, autor de “Os Trabalhos e os Dias”, os Erga, poemas, apresentou a
mais viva descrição da vida campestre da metrópole grega do final do séc. VIII. Em Hesíodo revela-se a
segunda fonte da cultura, o trabalho (JAEGER, 1989, 59)
6
Pitagórico: Pitágoras de Samos, pensador jônico, descobridor científico, político, educador, fundador de
uma ordem ou religião. Aristóteles se referiu aos que procedem de Pitágoras, de pitagóricos,
considerando-os fundadores de um novo tipo de ciência, que eles designaram de Mathemata, isto é, “os
estudos”. Pitágoras é um homem universal, que abrange muitas coisas heterogêneas: a doutrina dos
encruzilhada em que um homem tem que decidir que caminho tomar, o bom ou o mau.
E ainda temos o mais antigo catecismo cristão, descoberto no século XIX, a Didaquê ou
Doutrina dos Doze Apóstolos, que também relata esse mesmo direcionamento dos dois
caminhos como a essência da doutrina cristã, que é acrescentado aos sacramentos do
batismo e da eucaristia (JAEGER, 2014).

Revel (1869) reforça essa forma instrucional de Clemente, quando comenta que:

[...] o propósito de Clemente, convenhamos é um propósito


essencialmente parenético, com nosso autor mostrando-se muito
ansioso para restabelecer entre os cristãos de Corinto, a concórdia e a
harmonia primitiva (cap. I-III, XIV, XV, XX, XXI, XLVI-XLVIII,
LIV), e a mente máxima para fortalecer os laços da nação subordinada
desacelerada por desacordos internos (XXXVII, XLIV, LVII)”
(REVEL, 1833, p.15).

Corroborando essas afirmações o próprio Clemente Romano se dirige aos fiéis


de Corinto de forma edificadora quando redige a Carta, no capítulo LXIII, versículo 2:

Efectivamente alcançareis grande alegria, se obedientes ao que por


nós foi escrito, por meio do Espírito Santo, cortardes pela raiz com a
injusta cólera da vossa rivalidade, conforme a exortação à paz e
harmonia que nesta carta vos fazemos (CLEMENTE, 2000, p.159).

Na citação acima, constata-se tanto a forma parenética, com a ênfase na


obediência ao que estaria prescrito na carta como comportamentos a serem seguidos,
uma forma de instrução latente, e ainda destaca exemplos de comportamentos relatados
na carta para serem seguidos pelo homem cristão, Capítulo XXI, 6:

[...] Respeitemos os nossos superiores. Veneremos os presbíteros.


Inculquemos aos novos a disciplina e o temor de Deus. Eduquemos as
nossas esposas no bem. 7. Adquiram o amável costume da pureza,
demonstrem um puro desejo de docilidade, evidenciem a discrição da
sua língua com o silêncio, ofereçam o seu amor não sob forma de
provocações, mas santamente e por igual a todos os que temem a Deus
(CLEMENTE, 2000, p.187-189).

Em relação à sua redação, com mais ou menos 65 capítulos, com ensinamentos,


direcionamentos e aconselhamentos à Igreja de Corinto, denota-se uma linguagem
simples, mas com referências clássicas e bíblicas encorajadoras aos fiéis cristãos, tendo
a propósito persuadir a viverem a sua fé dignamente e estimulando-os a mostrarem esta

números e os elementos da geometria, os primeiros fundamentos da acústica, a teoria da música e o


conhecimento do tempo e dos movimentos das estrelas e o conhecimento da filosofia natural milesiana
(JAEGER, 1989, 140).
nova crença aos que ainda não eram convertidos. Clemente Romano reforça que esses
novos cristãos precisavam ser o exemplo e não demonstrarem as suas fraquezas perante
à comunidade e suas famílias.
Clemente Romano não emite juízos em nenhum momento sobre o Império
Romano, ao contrário, ele escreve com cautela, direcionando os cristãos de Corinto,
com exemplos a serem seguidos mesmo o povo cristão sendo perseguido pelos
romanos, “não proclama a obediência e a submissão apenas no seio da Igreja, da
hierarquia cristã, mas também aos príncipes e governantes” (PEREIRA MELO, 2012, p.
201) sendo que Clemente Romano na oração final (LIX - LX-LXI), ainda reforça e pede
a Deus saúde, paz, concórdia e estabilidade para os imperadores.

Tu, Senhor, que lhes destes o poder e o reino, pela tua inefável e
extraordinária força, para que reconhecendo a glória e a honra que
lhes deste, lhes obedeçamos, sem nos opormos à tua vontade, dá-lhes
saúde, paz, concórdia e a firmeza, para que sem ofensa se ocupem no
governo que lhes confiaste (CLEMENTE, 2000, p.155).

Clemente Romano escreveu esta Carta aos Coríntios, com tão veemência e com
tantos exemplos que mostram a importância dessas direções explícitas nos primeiros
ensinamentos da religião cristã primitiva, uma maneira de educar que naquele período
se destacava no contexto social oprimente e desafiador imposto pelo poder dominante e
articulado do império romano.

3.3 MOTIVOS DA CARTA AOS CORÍNTIOS

No Início da Carta de Clemente Romano aos coríntios sobrevém o motivo bem


definido pelo qual ele se dispõe a escrever uma carta, ou seja, para encaminhar
ensinamentos, conselhos e diligências aos cristãos da comunidade em Corinto para que
parassem com as desavenças que estavam ocorrendo entre eles. No primeiro capítulo
desta Carta tem-se que:

Por causa de súbitas e sucessivas calamidades e adversidades que nos


sobrevieram, reconhecemos irmãos, ter prestado muito tarde a atenção
a factos preocupantes que, entre vós, eleitos de Deus, tiveram lugar: a
uma rebelião alheia e estranhas aos eleitos de Deus, indecorosa e
sacrílega, que algumas pessoas temerárias e audazes, estimularam a
um tal grau de falta de senso, que o vosso nome venerável, admirável
e estimado de todos os homens, foi grandemente enxovalhado
(CLEMENTE, 2000, p. 47).
No final da citação constata-se claramente a preocupação de Clemente Romano
com o fato de que muitos estavam tomando conhecimento dos desentendimentos entre
os cristãos de Corinto, o que propiciava uma imagem deturpada dessa comunidade,
antes tão unida e agora dando exemplos de comportamentos que não poderiam ser
aqueles que defendiam e eram os que atraíam mais adeptos para a nova crença, ou seja,
união, humildade, hierarquia, caridade, amor ao próximo, fraternidade, dentre outros.

Clemente Romano escreve na carta que um grupo de jovens se coloca contra os


anciãos que foram nomeados ao cargo pela inspiração espiritual dos apóstolos e que
estes presbíteros nunca fizeram nada que os pudessem dirimir, e, para corroborar esta
assertiva destaca-se no capítulo XLIV. 3 a 4, a nomeação dos presbíteros:

Sendo assim, reputamos injusto que sejam afastados do seu ofício


aqueles que foram constituídos em autoridade por eles (os apóstolos)
ou por outros honrados varões, com o consentimento de toda a Igreja,
e serviram irrepreensivelmente o rebanho de Cristo, humilde, serena e
dignamente, por longo tempo reconhecidos por todos. 4. Pois não será
pequeno pecado rejeitarmos do episcopado aqueles que ofereceram
irrepreensível e santamente os dons (CLEMENTE, 2000, p.123).

Clemente Romano não esclarece porque os mais jovens estavam descontentes


com a atuação dos anciãos e adverte que não esses não fizeram nada pecaminoso que
desse motivo para serem destituídos de seus cargos.

O motivo que deu origem à carta endereçada a Corinto foi a


destituição dos presbíteros por alguns membros jovens da igreja local
(1 Clem. 47,6). São muito poucas informações sobre essa revolta, que
o autor classifica como nefasta e ímpia (1 Clem. 1, 1,). Clemente diz
repetidamente que essa dissensão havia perturbado profundamente a
igreja de Corinto, mas não informa o leitor sobre as causas que a
provocaram (KOESTER, 2005, 309).

Assim temos que as causas de tais cismas na igreja de Corinto não estão bem
explicitadas na carta, mas sabemos que há desavenças entre os presbíteros e os membros
mais jovens, o real motivo do envio de uma carta de Roma, para a comunidade de
Corinto, apreendendo nas entrelinhas que Clemente Romano está em defesa dos mais
velhos, em que reafirma que os presbíteros foram nomeados por imposição espiritual e
que não tinham máculas em suas ações religiosas.
Clemente Romano até elogia os presbíteros no capítulo XLIV.6., e também os
inocenta: “Verificamos, pois, que vós depusestes do ministério uns que dignamente se
comportaram e governaram bem” (CLEMENTE, 2000, p.123).
Acerca da hierarquia apostólica na igreja cristã há um relato na Carta que
estabelece esta ordem com muita segurança e firmeza, em que Clemente Romano
reforça a hierarquia da comunidade como uma regra a ser seguida, demonstrando uma
autoridade de quem não quer ser desobedecido.
Para Clemente Romano, o homem cristão precisava seguir os ensinamentos
deixados pelo profeta, o Cristo, no Capítulo XXX. 1:

2.Efectivamente, Deus diz que resiste aos soberbos, mas dá a sua


graça aos humildes. 3. Unamo-nos pois àqueles a quem a graça divina
é concedida por Deus. Revistamo-nos de concórdia, pensando
humildemente, sendo continentes, afastando-nos de toda murmuração
e maledicência, justificando-nos com obras e não com discursos. 4.
Pois Ele diz: Quem fala muito, também escutará, ou crê o bem falante
ser justo? 5.Bem-aventurado o nascido de mulher, cuja vida é breve.
Não te excedas nas tuas palavras (CLEMENTE, 2000, p. 99, grifos do
autor).

Em relação à hierarquia apostólica, atente-se para o capítulo XLII, 1:

Os apóstolos anunciaram-nos o Evangelho de Nosso Senhor Jesus:


Jesus, O Cristo, foi enviado por Deus. 2. Sendo assim, se o Cristo foi
enviado por Deus e os Apóstolos por Jesus Cristo, este e aqueles
procedem ordenadamente da vontade de Deus. 3. De fato, depois de
terem recebido o mandato, certificados pela ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo, firmados na palavra de Deus e enfim
confirmados pelos Espírito Santo, partiram a evangelizar que o Reino
de Deus estava por vir. 4. Então, quando anunciavam a boa nova por
povos e cidades, constituíam em autoridade as suas primícias, que
eram aprovadas pelo Espírito Santo, para epíscopos e diáconos dos
que houvessem de vir a crer (CLEMENTE, 2000, p.119).

Conforme se constata Clemente Romano estava preocupado com o que as


autoridades da época iriam interpretar dessas desavenças na comunidade Cristã, por isso
aconselha aos rixosos que parem com estes desentendimentos e passem a ser exemplo
para a comunidade, ainda mais que eram alvo das autoridades romanas, tendo em vista
as perseguições mencionadas no preâmbulo da Carta, que foram promovidas por Nero
(67 d. C) e ou Domiciano (92 - 96 d. C).
A colônia Corinto, dominada pelo Império Romano, tinha um patrono e esse era
o Imperador Domiciano na época de Clemente Romano, que tinha o poder de manter a
ordem e a paz no império e isso emanava como uma imposição de reverência ao
príncipe supremo. E uma forma de respeito pelos dirigentes romanos era o ato de
nomeá-los como patronos, benfeitores, salvadores, filho de Deus, que sugerem um
status superior, e, em Corinto não era diferente, pois foram encontradas inscrições à
família imperial. Moedas circulavam com a efígie dos imperadores, templos eram
construídos para o culto à família imperial. Ou seja, era um ambiente em que não se
podia ignorar as autoridades que possuíam o poder, por isso a preocupação de Clemente
Romano em não deixar transparecer a dissensão na comunidade cristã (HORSLEY,
2004).
Na carta destaca-se a ênfase nos sentimentos de inveja e ciúmes descritas pelo
autor, e para demonstrar como maiores exemplos ele comenta sobre os apóstolos Pedro
que Paulo de Tarso, alegando que foram mortos por causa da inveja e do ciúme, como
se pode observar nas próprias palavras de Clemente Romano na Carta aos Coríntios,
Cap. III, 2:
Daí surgiram a inveja, o ciúme, a querela e a sedição, a perseguição e
a desordem, a guerra e a escravidão. 3. Deste modo, insurgiram-se os
indignos contra os dignos, os ignóbeis contra os nobres, os insensatos
contra os ponderados, os jovens contra os anciãos (CLEMENTE,
2000, p. 51).

Conforme o exposto, infere-se que o motivo da Carta foram as cisões que


estavam ocorrendo em relação aos chefes da comunidade, e tendo como razão, indicada
por Clemente Romano, os ciúmes e a inveja, uma vez que atesta que os presbíteros não
fizeram nada que os pudessem condenar. E Clemente é tão enfático que até sugere a
saída destes contenciosos da comunidade para sempre, na qual ele determina que devem
colocar em primeiro lugar na vida cristã, os propósitos da comunidade em detrimento de
si mesmos. Como se verifica no capítulo LIV.1., em que Clemente aconselha os rixosos
a deixarem a comunidade:

Quem, pois, de vós é generoso? Quem de vós é compassivo? Quem de


vós transborda de amor? 2. Que diga: se a revolta, a querela e os
cismas são por minha causa, cedo o meu lugar. Saio daqui, para onde
quiserdes, e faço o que for determinado pela comunidade. Que o
rebanho de Cristo viva a paz com os presbíteros que foram
constituídos em autoridade. 3. O que assim fizer receberá grande
glória em Cristo e em qualquer lugar será bem recebido. De facto, ao
Senhor pertencem a terra e a sua plenitude. 4. Assim actuaram e
actuarão os que levaram uma conduta digna de Deus, da qual nunca há
que arrepender-se. (CLEMENTE, 2000, p.139).

Isto posto temos o motivo da discórdia: dissidências entre os presbíteros e os


mais jovens, segundo a indicação de Clemente, além das recomendações deste para
sanar estes problemas. Destarte passemos a analisar a Carta no que ela contém, como
estrutura e divisões, destacando assuntos mais relevantes e as influências contidas na
sua redação.

3.4 ESTRUTURA E CONTEÚDO DA CARTA AOS CORÍNTIOS

A Carta de Clemente Romano aos Coríntios foi uma elaboração realizada de


forma pedagógica, com a intenção de instruir os cristãos de Corinto na resolução de
dissensões que estavam provocando uma divisão entre eles, uma comunidade que
sempre vinha sendo marcada por desavenças internas.
A forma de escrever com instruções e conselhos era a maneira com que a Igreja
e seus discípulos que iniciavam uma comunidade encontravam para exortarem seus
seguidores a manterem a unidade proposta. “Sabe-se que, nesse tempo, ao que parece,
essa unidade ainda estava no plano ideal, pois, oficialmente, as igrejas eram células
particulares, autônomas, que preservavam suas identidades, especificidades e decisões
internas (PEREIRA MELO, 2012, p. 187). Clemente Romano se utilizará também de
conceitos filosóficos desenvolvidos pelos gregos e romanos sobre o homem em
formação, para convencer mais fiéis para a comunidade.
Clemente de Roma dirige-se à comunidade de Corinto fazendo um apelo à
unidade e se apoiando na vontade expressa pelo Cristo e depois pelos apóstolos, além
dos exemplos dos considerados pagãos de dedicação ao bem comum elencados a partir
das tradições filosóficas e culturais (LIÉBAERT, 2000).
A divisão dessa carta é realizada de várias maneiras por muitos historiadores,
dependendo da visão de cada um, como por exemplo Berthold Altaner e Alfred Stuiber
(1988) que a dividem em três partes (ALTANER, 1988, p. 55-56)
Nessa pesquisa foi considerada a carta em Saudação, Preâmbulo, capítulos I a
III, depois capítulos IV a XXXVI, em seguida os capítulos XXXVII a LXI, e a última
parte nos capítulos LXII a LXV, sendo que essa divisão foi fundamentada na
segmentação elaborada pelo historiador José Joaquim Pereira Melo (2012) em que
estuda a carta dessa maneira, conforme descreve no artigo, aqui citado.
Clemente inicia a Carta que contém 65 capítulos com uma saudação aos
Coríntios: “A Igreja de Deus peregrina em Roma, à Igreja de Deus peregrina em
Corinto, aos chamados e santificados na vontade de Deus, por nosso Senhor Jesus
Cristo. A graça e a paz de Deus omnipotente cresçam em vós por Jesus Cristo”
(CLEMENTE, 2000, p. 45).
Depois da saudação há o Preâmbulo, capítulos I a III, em que descreve a
situação em Corinto, pedindo desculpas pela demora em escrever, devido às
perseguições da época. Clemente inicia com elogios à comunidade de Corinto e depois
descreve as consequências das discórdias.
Na primeira parte, capítulos IV a XXXVI, Clemente Romano inicia uma série de
exemplos de ciúmes e inveja descritos no Antigo Testamento, como Caim e Abel, José,
Moisés, Davi, Aarão e Maria que sofreram por causa desses sentimentos. Ele cita
também o apóstolo Pedro e Paulo, como mais próximos do seu tempo, descrevendo
como foram martirizados por inveja e rivalidade de seus contemporâneos.
Clemente Romano cita exemplos pagãos, como Danaídes e Dirce, personagens
mitológicos que foram torturadas por inveja, demonstrando um certo conhecimento da
cultura clássica, uma vez que os contos antigos relatavam a história sofredora dessas
mulheres.
Destaca o arrependimento necessário aos que pecam, citando Noé e Jonas do
Antigo Testamento; e disserta sobre obediência e fé, Humildade, Mansidão e dentre
outras virtudes em que o maior modelo foi Jesus Cristo.
No capítulo XXV, como exemplo de ressurreição ele fala sobre a lenda da
Fênix7, que ressurge das cinzas e vive por quinhentos anos, outra citação do
conhecimento clássico. Em relação à lenda da Fênix, Clemente Romano a utiliza para
demonstrar a forma com que o cristão pode alcançar a ressurreição, que seria concedida
por meio da fé em uma vida eterna, tendo em mente que conforme o mito, a Fênix viveu
quinhentos anos e ressuscitou das cinzas, e assim, qualquer homem que esteja no
caminho traçado por Cristo, também poderá almejar a ressurreição.
7
Ave fabulosa da Etiópia, que deu origem a uma das lendas mais difundidas da Antiguidade.
Do tamanho de uma águia real, plumagem de cores esplêndidas. Renasce das próprias cinzas.
A nova Fênix voa até Heliópolis do Egito, centro do culto do Sol ao qual a Fênix está associada.
O III Baruch 6-8 descreve o papel da Fênix em relação ao Sol. (PADRES APOSTÓLICOS,
1995, p.42).
No capítulo XXIV, Clemente evidencia os exemplos do ciclo da vida, em que se
baseia na natureza do mundo, em que tudo acontece sempre da mesma maneira: “2.
Vejamos, caríssimos, a ressurreição que se verifica no tempo. 3. O dia e a noite
manifestam-nos a ressurreição: adormece a noite, e surge o dia, vai-se o dia e vem a
noite” (CLEMENTE, 2000, p. 91).
Quando descreve a harmonia do universo, no capítulo XX, Clemente Romano
faz uma proeminência do ordenamento da natureza que coordena todo o universo sem
que haja um desvio sequer, salientando que os astros todos os dias seguem a mesma
trajetória para a perfeição da vida na Terra, o que vem a consubstanciar uma relação
com o pensamento clássico, na visão estoica da natureza, da physis, o universo como o
logos divino, perfeito e um deus que transcende este universo (LAMELAS, 2000).
Na segunda parte, capítulos XXXVII-LIX, Clemente ressalta como deve ser a
Hierarquia da Igreja e a unidade a ser conquistada pelos que creem em Jesus Cristo.
Primeiramente ele compara a comunidade com a organização militar, em que os
soldados são obedientes e respeitam a hierarquia, e completa com a comparação com o
funcionamento do corpo humano, em que todos os seus membros são necessários para a
saúde do ser humano.
Para Clemente Romano, a hierarquia e a ordem eclesiástica são fundamentais
para que a comunidade seja fortalecida na fé e na ordem, haja vista a designação
recebida pelos apóstolos para serem seguidas nos preceitos ditos pelo senhor. Segundo
ele, a vontade do senhor está em Cristo, que ordenou os apóstolos e estes receberam
instruções para instituírem os bispos e diáconos (CLEMENTE, 2000, p 119).
E, então, ele vai falar novamente na discórdia, exaltando a justiça e o amor para
resolverem as questões da comunidade, pedindo o arrependimento dos chefes da
revolta, que eles provem a sua resignação, sacrificando-se pelo bem comum, que seria a
submissão aos chefes, reconhecendo os próprios erros ou partindo para longe, com o
intuito de deixar os chefes onde devem estar e, prometendo a vida eterna para os que
obedecerem a Deus. cap. XLVI-LIX.
Clemente Romano requer o arrependimento dos revoltosos e a saída deles de
Corinto, como um exílio voluntário, momento em que está exercendo a sua autoridade
com a devida austeridade que o cargo lhe confere. Ele foi requisitado para sanar as
insurreições e está cumprindo o seu ofício.
Jaeger esclarece bem esta intenção de Clemente quando ele descreve que:
Ao modo da antiga arte retórica, ele lhes prova, por meio de muitos
exemplos bem escolhidos (hypodeigmata) os efeitos trágicos da
disputa de facções (stasis) 8 e da desobediência, e ele contrasta a esses
as bençãos da concórdia e da obediência, que ele divide
adequadamente como um segundo Demóstenes, em exemplos
extraídos do passado remoto e outros de outros tempos mais recentes
que seus leitores conheciam por experiência própria. Quando ele
chega ao ponto em que de acordo com os preceitos retóricos, o mais
terrível topos devia ser acrescentado, o de que a discórdia interna
havia destronado reis e destruído poderosos estados [...] (JAEGER,
2014, p. 23-24).

Na última parte, capítulos LXII a LXV, Clemente faz um resumo de tudo o que
disse numa grande oração, muito esclarecedora e deseja que a paz volte a reinar na
comunidade de Corinto. É a conclusão da Carta, como se vê a seguir, em que Clemente
se despede com eloquência. Para isso, é oferecido no Capítulo LX,

2. Não tenhas em conta o pecado dos teus servos e servas, mas


purifica-nos com a purificação da verdade, e dirige nossos passos,
para que andemos em santidade do coração, e façamos obras boas e
agradáveis aos teus olhos e aos olhos dos nossos superiores.
3. Sim, Senhor, manifesta-nos a tua face, para o bem na paz, para nos
protegermos com tua mão poderosa, e nos livremos de todo o pecado
e, pelo teu excelso braço, nos livremos de todos os que nos odeiam
injustamente.
4. Dá-nos concórdia e paz a nós e a todos os que habitam a terra,
como as deste aos nossos pais, que te invocaram santamente na fé e na
verdade, para que obedeçamos ao teu omnipotente e santo nome e aos
olhos das autoridades que nos governam (CLEMENTE, 2000, p.153-
155).

Assim sendo, a presente pesquisa segue para o próximo argumento, no qual se


estuda a maior colaboração e testemunho de um tempo, nesta Carta aos Coríntios, em
que apresentar-se-á a educação cristã e a formação do homem cristão, com as devidas
defesas de Clemente Romano.

8
Sobre o uso técnico de exemplos como um meio de persuasão na retórica grega. Stasis (desacordo,
disputa partidária) é um dos problemas mais discutidos no pensamento político grego. (JAEGER, 2014,
p.24)

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