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BIOPODER E AUTOIMUDIDADE: O COLAPSO DA SEGURANÇA NO RASTRO DA

DESCONSTRUÇÃO – FOUCAULT E DERRIDA EM DEBATE1

Isabela Costa2
Manoel Uchôa3

Resumo: Na biopolítica, Foucault refuta o modelo da soberania como discurso de legitimação. Para tanto, propõe
duas formas de analisar o Estado. Primeiro, o poder estatal sustenta-se por dispositivos não derivados dele. Contudo,
encontramos, na forma estatal, uma organização desses mecanismos difusos e heterônomos atualizados numa
homologia. Segundo, a guerra é o princípio de sua análise política. O poder só se exerce na luta. Nessa medida, o
biopoder é assunção da vida biológica dos corpos individuais e populacionais: “fazer viver, deixar morrer”. Numa
contrapartida suplementar, Jacques Derrida propõe um novo tratamento à soberania. Na salvação (saúde) de seu
corpo artificial, a soberania constitui-se num processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu”
soberano contra si: “fazer viver, fazer morrer”. Essa é a aporia radical da biopolítica. Sendo assim, o objetivo deste
artigo é analisar a relação entre biopoder e auto-imunidade na constituição de uma nova perspectiva de soberania.

Palavras-chave: Biopoder; Auto-imunidade; Soberania

Introdução: duas genealogias do poder.


A análise tradicional do poder é balizada principalmente pela categoria de legitimidade.
Por um lado, a produção da crença de um fundamento do poder permite afirmar sua justiça e
validade. Por outro, as formas que regulam esse processo precisam se instalar nas instâncias mais
específicas da sociedade. Nesse sentido, dois modos de tratar o funcionamento do poder se
sobressaem. Um pretende encontrar a justificação da estrutura de dominação; outra desloca o
problema da fundamentação em virtude de uma ramificação das relações de dominação. Embora
não se possa resumir o poder à questão da legitimação, as análises daquele provem das
construções dessa.

1
Trabalho preparado para sua apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos:
governamentalidade e segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014;
2
Isabela Maria Bezerra Costa. Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail:
costa.bela.bc@gmail.com
3
Manoel Carlos Uchôa de Oliveira. Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail:
manoel.cuo@gmail.com
A posição de Michel Foucault surge enquanto uma negação do paradigma da
legitimidade na medida em que desloca a questão do fundamento para o problema do
funcionamento do poder. Foucault pretende redefinir a pergunta pelo poder justamente na
negação da legitimidade, logo, negação do modelo de soberania vigente na modernidade. A
genealogia enquanto estratégia de estudo evoca a emergência dos mecanismos de poder a partir
das relações de força. Em contrapartida, Jacques Derrida assume o problema da tradição a fim de
desconstruir os pressupostos da fundamentação do poder. Sua estratégia não é menos
genealógica, porém lida com as forças que sustentam a própria autoridade legitima e soberana.
O ponto de partida desse trabalho assume a dificuldade em decidir pela negação ou
afirmação do fundamento de poder e da soberania. O que chama a atenção é que entre uma
posição e outra há um limiar de negociação oferecendo novas perspectivas para o estudo do
poder. Não é à toa que referências contemporâneas, como Agamben, Negri, Laclau, Esposito,
tentaram lidar com o choque dessas duas formas de conceber o poder. Por isso, pretende-se
tomar a posição limítrofe na mediada em que um espaço de contaminação possibilite às duas
genealogias um debate em torno do problema da Soberania.
Tomando a obra de Foucault primeiramente, o binômio “morrer-viver” está no cerne da
discussão deste trabalho. No modelo de soberania, há o postulado do “fazer morrer, deixar
viver”; enquanto no paradigma biopolítico, “fazer viver-deixar morrer” é o contraponto de uma
nova maquinação das relações de poder. A primeira parte é dedicada a essa exposição. Por outra
via, o poder ao tentar marcar a conservação de seu corpo segue em uma autodestruição que, antes
de ser um acidente, é fator constitutivo de sua legitimação. Por isso, entre a soberania e o
biopoder foucaultianos, haveria um terceiro elemento transversal e intrigante: a auto-imunidade,
cujo funcionamento é uma repetição infernal, “fazer viver, fazer morrer”. Nesse sentido, pode-se
pensar um desvio dessa maquinação no intuito de pensar um poder de liberação que signifique
um “deixar viver, deixar morrer”, o verdadeiro sentido da liberdade derridiana. Mesmo assim,
não tão distante da proposta ética de Foucault.

1 A genealogia foucaultiana do poder; a descontinuidade entre soberania e biopoder


Michel Foucault, no seminário “Em Defesa da Sociedade”, preocupa-se em delimitar
uma analítica do poder. Sua pretensão é oferecer uma genealogia a partir das forças que
constituem mecanismos de produção da verdade e da dominação. Para tanto, é necessário pensar
na instância da guerra permanente como ponto emergência das formas jurídicas modernas: o
poder só se exerce na luta. O mecanismo de poder é fundamentalmente o mecanismo de
combate:

Primeiramente isto: que as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade como a
nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força
estabelecida em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra
(FOUCAULT, 1976. p 15).

Numa inversão do aforisma de Clauzewitz4, a política é pensada como a continuação da


guerra. Nesse sentido, o poder político insere essas relações de força, e as perpetua dentro das
instituições, na própria linguagem, na economia, em suas desigualdades, e principalmente na
normalização dos corpos individuais e coletivos: “A repressão nada mais seria que o emprego,
no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra contínua, de uma relação de força
perpétua” (FOUCAULT, 1976. p 17). Se, na modernidade primeira, a segurança tem seu escopo
no interior da escatologia pacificadora do soberano, a biopolítica, ao contrário, atua na
estabilização do fluxo metabólico da sociedade.
O edifício jurídico de toda a Idade Média for construído em torno do poder régio. Com
isso, o poder soberano era tratado sobre duas óticas: como era perfeitamente encaixado e
legitimado pelas normas jurídicas, sendo efetivamente o corpo vivo da soberania, e como, para
conservar sua legitimidade, ele teria seu poder limitado e enquadrado em regras de direito. “O
papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder: o
problema maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da
soberania” (FOUCAULT, 1976. p 23). O corpo vivo se legitima em uma dupla injunção: a
maquinação jurídica permite operar a morte materialmente, ao mesmo tempo, inclina a salvação
do corpo mortal (ainda que vivo) no etéreo corpo real (KANTOROWICS, 1998).
Tal técnica terá como finalidade mascarar o mecanismo principal de governo: a
dominação, a obrigação legal de obediência. O direito é quem instaura e vincula as relações de
dominação. Sua dinâmica se constitui em uma tática de regressão em que o ato normativo mais
concreto é subsumido em uma cadeia que se encerra e sustenta na vontade soberana. Num
contraponto, Foucault observa a descontinuidade nessa forma tradicional, ao passo que não

4
Foucault, em pensamento baseado no princípio de Carl von Clausewitz: “A guerra não é mais que a continuação
da política por outros meios”; Ela não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento da política, seu
prosseguimento por outros meios” (Vom Kriege, liv. I, cap. 1).
apenas a dominação centralizada e descendente do rei para seus súditos, mas a funcionalidade de
uma rede mais complexa e abrangente, de relações de força e dominação dentro da própria
sociedade, semeada dentro das próprias relações recíprocas entre os indivíduos. Essa é a nova
característica atuação do poder. O poder se exerce em cadeias dentro dessas relações
interpessoais.
A análise do direito deve ser feita, primordialmente, a partir dos constantes processos de
sujeições que ele instaura. Enquanto a lei pretende ser entendida como sinônimo de paz, ao
contrário, a norma é a ritualização guerra para a produção constante das verdades. Essa “paz” da
lei é onde, surdamente, acontece a guerra. É uma guerra é silenciosa. A ritualização da guerra
depende de uma estratégia histórica que Foucault explicita: o racismo. A guerra racial é o
paradigma da nova configuração do poder. Na luta entre as raças, o biopoder encontra sua
emergência. A genealogia da biopolítica está ligada a “genética” dos indivíduos e populações.
Desde sua formação, a soberania moderna construiu-se baseada principalmente na
centralização do poder. Evidenciada pelo surgimento de unidades políticas resistentes ao tempo,
como as grandes dinastias, criou-se assim solidas instituições burocráticas de governo e o mais
importante: o consenso sobre a necessidade de existência de um soberano e sobre o dever básico
de obediência e submissão completa a esse poder.
A noção da soberania moderna conclui-se efetivamente na noção do Estado possuir
direitos absolutos, incondicionais e indiscutíveis. Com isso, o poder soberano era exercido
justamente no poder de decisão sobre vida e morte de seus súditos.
Porém, o contexto e fundamento das relações de soberania, a partir do século XVII,
sofreriam mudanças essenciais em suas fórmulas de governo. Métodos de disciplina e
regulamentação surgiram como novos aparatos de governo visando maior controle e regulação
social. Tal mudança foi a revolução da biopolítica na forma de atuação do Estado e da soberania.
Onde antes reinava o “deixar viver, fazer morrer”, típico do poder absoluto do soberano sobre os
corpos de seus súditos, agora a ordem é o “fazer viver, deixar morrer” dentro de uma assunção
da vida biológica dos corpos individuais e populacionais.
A biopolítica da espécie humana, trabalhada por Foucault, consiste em um conjunto de
processos de controle da natalidade, de mortalidade e longevidade de uma população. A
biopolítica nada mais é do que a inclusão da vida propriamente dita na política. O que se instaura
agora é uma mudança na forma de dominação, que irá se dar em duas formas e em dois
momentos que se conectam e prescindem um do outro: o da disciplina e o da regulamentação.
O primeiro trata-se de uma organização individual do sujeito, de técnicas de como
aprimora-lo, dentro de uma rede complexa onde o poder iria se exercer visando a uma
“tecnologia disciplinar do trabalho”. “Mais precisamente eu diria isto: a disciplina tenta reger a
multiplicidade dos homens na medida em que deve ser vigiados, treinados, utilizados e
eventualmente punidos” (FOUCAULT, 1976. p 204). Já a segunda ultrapassa os limites de uma
disciplina. Ela preocupa-se com o homem na multiplicidade e pluralidade, na sua “massa
global”. É a “biopolítica da espécie humana”: o interesse no indivíduo, mas como membro de
uma coletividade.
Dentro desse biopoder irá surgir outro mecanismo de controle: a questão do Estado de
Segurança. O policiamento, a higienização, o discurso da necessidade da preservação da
segurança social e o controle dos contingentes sociais são técnicas de subjetivação e
governamentalidade usadas pelo Estado. A questão central da análise de Foucault será onde e
como os mecanismos de segurança vão atuar dentro das questões sociais e biológicas das
espécies. O mecanismo da disciplina necessita da segurança. Segundo Foucault:

Porque, afinal de contas, para de fato garantir essa segurança é preciso apelar, por
exemplo, e é apenas um exemplo, para toda uma série de técnicas de vigilância, de
vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do que eles são, de classificação da sua
estrutura mental, da sua patologia própria, etc. Todo um conjunto disciplinar que viceja
sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar. (FOUCAULT, 2008. p 11)

Tais técnicas de segurança consistem em boa parte na transformação e remodelagem de


técnicas jurídicas-legais e de disciplina já existentes em busca de uma nova justificativa para sua
aplicação. “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos
mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina”
(FOUCAULT, 2008). Ou seja, o soberano estará constantemente criando novas medidas para
assim criar novas justificativas para o exercício do controle da população. É recriação de
justificativas de dominação clamando por uma maior e constante necessidade de segurança
social.

2 A genealogia de Jacques Derrida: da crítica da violência à auto-imunidade.


Nesse sentido, Jacques Derrida, em Força de Lei, tece um contraponto ao argumento da
ordem pacificadora do Direito. Enquanto Foucault expõe o índice das formas jurídicas na guerra,
Derrida reativa a crítica da violência de Walter Benjamin. O conceito de violência no sentindo
5
Gewalt é introduzido: é sempre uma força estatal autorizada e legitima. O conceito de violência
(Gewalt) pertence à ordem simbólica do direito, da política e da moral – de todas as formas de
autoridade ou autorização, ou pelo menos de pretensão à autoridade.
O Estado, e por tanto o direito, agem sempre dentro da dimensão do enforciability, que
Derrida (2003, p. 12) qualifica como a força intrínseca do direito: “Ela é a força essencialmente
implicada no próprio conceito de justiça enquanto direito, da justiça na medida em que ela se
torna lei, da lei enquanto direito. ” A justiça só pode tornar-se justiça quando recorre à violência
desde seu início, para assim adentrar à lei e ao direito
Isso nos permite analisar a relação da violência no direito em sua homogeneidade. “A
violência não é exterior ao direito, ela ameaça o direito no interior do direito” (DERRIDA, 2007.
p 81). Ela não consiste, essencialmente, em exercer sua potência ou uma força brutal para obter
específicos resultados, mas em ameaçar ou destruir específica ordem do próprio direito.
Numa contrapartida suplementar, Derrida propõe um novo tratamento à soberania dento
do aspecto do biopoder. Na salvação (saúde) de seu corpo artificial, a soberania constitui-se num
processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu” soberano contra si: o
“fazer viver, fazer morrer”.
Numa linha paralela ao que Derrida propõe, é interessante anotar a reflexão de
Roberto Esposito enquanto paradigma da imunização na superação da concatenação da
biopolítica em relação ao poder soberano. Na tentativa de reconciliar esses dois processos
modernos, Esposito admite o trabalho do negativo entre vida e poder no processo de
subjetificação da modernidade. O paradigma da imunidade, desenvolvido por Roberto Esposito,
possibilita um entremeio na leitura entre a biopolítica e a desconstrução:

A imunidade não é apenas a relação que liga a vida ao poder, mas o poder de
conservação da vida. Ao contrário, de tudo que pressupõe o conceito de biopolítica -
entendido como resultado do encontro que em certo momento se dá entre dois elementos
componentes - deste ponto de vista não existe poder externo à vida, assim como a vida
não se dá nuca fora das relações de poder. Olhada nessa perspectiva, a política não é
senão a possibilidade, ou o instrumento, de conservar viva a vida. (2010, p. 74)

5
Termo Gewalt – Walter Benjamin “Por uma crítica da violência”: Frequentemente traduzido por “violência”, mas
possui um significado mais amplo. Significa também poder legítimo, autoridade, força pública. Pode significar o
domínio ou soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou autorizada: a força de lei.
O soberano seria a primeira figura imunitária no cerne da conservação da vida. Na
verdade, a condição espectral não é um pressuposto, mas aquilo mesmo que sustenta a dinâmica
biopolítica do soberano. Não é à toa que esta demanda o sacrifício e edifica a lei e o direito em
torno desse rito. Mesmo a guerra não é senão uma exigência soberana para que o corpo mortal
dos súditos verte seu sangue. Por isso, opera-se por dentro, nem antes nem depois, na
possibilidade efetiva da auto-imunização.
A questão da auto-imunidade é tratada onde a razão do Estado, ao mesmo tempo que
torna-se ameaçante, teria o poder de ameaçar a si própria, constituindo uma aporia radical da
biopolítica. Hora é ameaça, hora ameaça-se. Ela ataca-se para proteger-se:

De se perder a si própria, de naufragar por si própria, eu preferiria dizer de se auto-


imunizar para designar uma estranha lógica ilógica pela qual um vivente pode
espontaneamente destruir, de forma autônoma, aquilo mesmo que, nele, se destina a
protegê-lo contra o outro, a imunizá-lo contra a intrusão agressiva do outro.
(DERRIDA, 2009)

Não pode existir soberania que não alimente sua própria auto-imunidade. Mesmo tendo
em vista que o princípio da autodestruição auto-imunitária causará a ruína de outro princípio,
proteção de si (integridade intacta de si), ele se faz necessário por ter sempre em vista uma
“sobre-vida invisível e espectral” (DERRIDA, 2003). Essa é a grande aporia do auto-imune.
Essa aporia tem necessidade fundamental, pois será a forma que o Soberano poderá abrir-
se, para assim, poder decidir sobre o outro, ao futuro, à incerteza, às variações, à morte, em fim,
ao que é distinto e ainda fora de seu controle e previsão. Esse será o constante processo do
reenvio auto-imunitário.
Em Vadios, Derrida propõe essa análise a partir do conceito de Democracia porvir. O
processo auto-imunitário, portanto, é a própria democracia que consiste sempre no reenvio. Esse
reenvio consiste em sempre enviar a algum lugar a democracia. Ela se expulsa ou se rejeita, se
exclui a pretexto de se proteger e para isso, deve se rejeitar, expulsar, alocar ou suspender,
colocando para fora seus inimigos domésticos. O reenvio, nesse ponto, já dificulta a condição do
poder e do político, pois no discurso interna a cidadania democrática não há pressuposto teórico
imediato para distinguir o amigo e o inimigo enquanto cidadãos. Todo cidadão é ao mesmo
tempo potencialmente amigo e inimigo. Uma repetição constante do incluir e excluir:

Este duplo reenvio (reenvio de - ou ao - outro e adiamento) é uma fatalidade auto-


imunitáia inscrita mesmo [à même] na democracia, mesmo no conceito de uma
democracia sem conceito, mesmo numa democracia desprovida de mesmidade e de
ipseidade, de uma democracia cujo conceito permanece livre, sem embraiagem
determinada, em roda livre, no livre jogo da sua indeterminação, mesmo nesta coisa ou
nesta causa propriamente o que é, nunca ela mesma. (2009, p. 94)

Não se pode perder de visa que ao tratar do corpo democrático ou da soberania está-se
tratando de uma multiplicidade de corpos. Não se pode não falar em corpos, isto é, na articulação
imanente que esse reenvio produz até mesmo no instante em que se calcula e, principalmente, se
decide “cortar a própria carne”. Essa dinâmica carnívora é a instância “cruel” da violência mítica
(aquela que funda e conserva do direito). A crueldade é a condição de expor a carne viva ao osso
do processo de violência legítima.
Cortar, ainda que a suture posteriormente, mantém, no corpo soberano, a capacidade de
reorganizar a si mesmo, embora nunca coincida consigo mesmo. O corpo mortal do soberano
está à disposição da violência, que o sacrifica a fim de sacralizar seu corpo etéreo. A violência
que subjuga a vida para assegurar a vida possui seu discurso na geração de uma teologia política,
segundo Derrida. É o poder de toda uma cultura e mentalidade de “cortar na própria carne”,
propriedade da carne auto-imunizada. Em suma, o carnofalo-logogocentrismo:

Na nossa cultura, o sacrifício carnívoro é fundamental, dominante, regulado pela mais


ala tecnologia industrial, tal como é também a experimentação biológica sobre o animal
- tão vital a nossa modernidade. [...], o sacrifício carnívoro é essencial à estrutura da
subjetividade, quer dizer, também ao fundamento do sujeito intencional e, senão da lei,
pelo menos do direito, permanecendo aqui a diferença entre a lei e o direito, a justiça e o
direito, a justiça e a lei aberta sobre um abismo. (2003, p. 32)

A marca disso é a excepcionalidade constitutiva da soberania, desde Carl Schmitt


(AGUILAR, 2004), que Derrida assume enquanto problema à desconstrução. É o processo que o
soberano pode ferir ou até suspender o próprio direito, justificando a necessidade de proteção do
ordenamento ou de preceitos fundamentais, como a segurança nacional. Constantemente os
direitos dos cidadãos são feridos e usurpados visando tal “sobre-vida invisível e espectral”. Aqui,
tal ato de quebra remeterá sempre ao processo de reenvio desse direito, visando à remodelação
das estruturas sociais.
A relação entre soberania, representada pelo Poder Legislativo e Poder Executivo, será
sempre fadada à destruição. A própria necessidade de existência de um Poder Executivo para
garantir e afirmar sua própria soberania já mostra sua subjetivação. Essa é a própria característica
constitutiva e originária do corpo político: uma característica de auto-imunidade. Num constante
ato de opressão, o soberano acabará sempre por usurpar o poder do Legislativo ao quebrar com a
lei.
3 Valorização da vida e clamor à morte
3.1 O racismo
É dentro dessa análise que pode-se entender como o Soberano atua nessa lógica do
biopoder. A análise a ser feita é como, nesse cenário de valorização da vida, a partir dos
mecanismos de segurança, disciplina e regulamentação, o Estado irá clamar a morte e decidir
sobre quem irá morrer.
Foucault mostra claramente qual será o critério para tal seleção: O racismo. Mas não
apenas o biológico, evolucionista ou étnico, e sim em relação aos criminosos, doentes mentais,
adversários políticos, etc. Ele será justamente a representação da auto-imunidade. Será o corte
entre o que deve viver e o que deve morrer. A construção social e hierarquia de raças mediante
sua qualificação como boa ou ruim vai permitir o Estado fazer cesuras, divisões, no interior do
biológico ao qual o biopoder se dirige.
Outra característica do racismo irá aparecer na relação guerreira de “o quanto mais você
matar, mais viverá”, mas agora será um enfrentamento não guerrilheiro, mas biológico. A
exterminação do grupo inferior, da parcela degenerada da população, trará, à parcela boa e
saudável, fortalecimento. A morte do outro acarreta na segurança pessoal dos demais. É a criação
de um inimigo por seu biótipo para exterminá-lo clamando à segurança social. A busca é pela
eliminação do perigo biológico e o fortalecimento da própria espécie.
Nesse sentindo, em duas obras como “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex e “A
Ralé Brasileira” de Jessé de Souza, é possível fazer análises iniciais relacionando como o
racismo do biopoder pode ser, e foi, aplicado durante toda a história brasileira.
O primeiro fala de um verdadeiro holocausto dentro de um hospício Colônia, na cidade
mineira de Barbacena, com cerca de sessenta mil mortos. A grande maioria, estimada em 70% da
população que residia ali, não tinha doenças mentais, mas eram ditos diferentes da sociedade e
ameaçadores da ordem pública, os chamados “Ignorados de Tal”.

Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos,


mães solteiras, alcoólatras, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos
os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. Mas eram apenas vítimas do
poder político e social (…). Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais
haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para
um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por
amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a
maioria vinda de São João del-Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes
após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se
recusavam a pagar pelo programa. (ARBEX, 2013. p 25)

As internações, assinadas por delegados e concretizadas por viaturas policiais, mostram


como o manicômio Colônia, assim como os campos de concentração nazistas, é a representação
clara do Estado de Exceção como norma e como desejo. Desejo não só governamental, mas
social. E, dessa forma, segundo uma perspectiva de Giorgio Agamben (2010. P. 166), quando a
exceção, a quebra com o próprio direito, é desejada, inaugura um novo paradigma jurídico-
político, onde a norma torna-se indiscernível da exceção.

O campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado,
no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer medição. Por isso o
campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se
biopolítica (AGAMBEN, 2010. p 167)

Esse é a verdadeira face do racismo: a tentativa de eugenização da sociedade, por uma


aniquilação propriamente dita, justificada por uma situação fictícia de perigo que tais
“Ignorados” supostamente oferecem. Seja em hospícios, como o Colônia, ou nos presídios
brasileiros, onde um inimigo penal, de características físicas e econômicas precisas, são tratados
como escória social.

3.2 Os presídios brasileiros e o inimigo do direito penal


Esse será o ponto chave do livro “A Ralé Brasileira”. A discriminação de uma parcela da
sociedade dentro de uma visão “economicista”, onde haverá uma cesura entre quem “nasceu para
o sucesso” e quem já “nasceu para o fracasso” (SOUZA, 2009). Tal visão economicista, baseada
na divisão de classes, leva em conta apenas a renda como critério de divisão dos indivíduos e
será o argumento de decisão de qual será o lugar dele no sistema social. Porém, tal critério
camufla fatores e precondições sociais, emocionais, morais e culturas que constituem a vida de
cada cidadão. Esses são os grandes fatores que permitem compreender como é a desigualdade
social no Brasil ontem e hoje.
A classe denominada como “ralé” não tem essa denominação apenas por não ter dada
renda mensal, mas principalmente por não se encaixar nos padrões éticos e comportamentais
compartilhados pelas classes alta e média. O estilo de vida, a educação e o comportamento
perante a sociedade é o primeiro choque e divisor do “homem bom” para o “homem ruim”.
Esse processo de distinção é reiteradamente reproduzido e constitui uma legitimação da
desigualdade tão enraizada no pensamento social. Jessé de Souza argumenta:

Na realidade, a “legitimação da desigualdade” no Brasil contemporâneo, que é o que


permite a sua reprodução cotidiana indefinidamente, nada tem a ver com esse passado
longínquo. Ela é reproduzida cotidianamente por meios “modernos”, especificamente
“simbólicos”, muito diferentes do chicote do senhor de escravos ou do poder pessoal do
dono de terra e gente, seja esta gente escrava ou livre, gente negra ou branca. (SOUZA,
2009)

Tal ato de escolha de uma parcela social como ruim, típica do racismo, será a escolha de
um inimigo do direito penal. E essa escolha sempre será uma escolha política, seja em âmbito
nacional ou internacional. As decisões estruturais (dos governos) atuais assumem, na prática, a
forma pré-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exercício do poder de
designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total (ZAFFARONI, 2011).
A cisão do inimigo acarretará no tratamento diferenciado: o direito lhe nega a condição
de pessoa. Ele é visto tanto para o governo, quanto para a sociedade, apenas como um ser
perigoso que fatalmente causará danos em qualquer local que esteja, e com isso é justificada a
privação de certos direitos fundamentais supostamente inalienáveis. Essa qualificação
“coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com
racionalizações” (ZAFFARONI, 2011).
A privação do caráter de pessoa, e da abstenção aos direitos que os ditos inimigos sofrem,
é a primeira e mais clara incompatibilidade com os princípios básicos do Estado de Direito que
se apresenta:

Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de
pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é,
quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e
simplesmente como um ente perigoso (ZAFFARONI, 2011).

A tática preponderante para justificação de todas essas relações de exclusão será o medo.
Se a população tem medo, ela apoiará qualquer discurso e medida que acabe com o perigo, seja o
assassinato em massa - visto claramente nas “pacificações” em favelas brasileiras - seja a perda
da privacidade, tudo em nome do reiterado discurso de segurança.
O mais denso, entretanto, virá depois disso: a tendência de despersonalização de toda a
sociedade. A precisão e cautela dos atos cotidianos torna-se extremamente necessária para evitar
confrontos com os interesses políticos governamentais. Uma sociedade que vive em torno da
necessidade de segurança como primordial e a leva até suas últimas consequências - como
segregar, enjaular e indiretamente matar pessoas no cárcere ou legitimamente por ações de
“pacificação” policial - de certa forma, autoriza e clama o aumento do controle punitivo do
Estado, assim como a diminuição da sua própria liberdade em função de uma preservação de sua
segurança.
A política, nacional ou internacional, constitui-se no constante movimento de definição
entre amigo e inimigo. Tal movimento será a justificativa para a aplicação de futuras retaliações.
O movimento de escolha do inimigo nacional mostra-se ao excluir a parcela frágil da sua própria
sociedade, e em caráter internacional, quando coloca como inimigo a nação que contraria seus
interesses.
A partir do momento que alguém é tratado como perigoso têm-se argumentos que
legitimem a retirada de direitos, segregação destes e a aplicação de qualquer medida necessária
para conter o mal que esse ser pode causar, em nome de um bem posto como superior: a
segurança social.

Conclusão

A auto-imunidade é constitutiva da soberania ao mesmo tempo que é o limiar do


biopoder. Ao incorporar a negação da vida para afirmar sua conservação, o soberano lida com
seu corpo múltiplo oscilando práticas que são balizadas do ciclo da vida e da morte. Na produção
do seu corpo vivo, há a estruturação de um corpo etéreo que trabalha a negatividade no seu
interior.
Por um lado, “fazer morrer, deixar viver” é condição para negar a vida na morte a partir
de uma distinção interna de seu próprio corpo. Isto é, produzindo seus corpos estranhos como um
estranhamento de si mesmo. Por outro lado, “fazer viver, deixar morrer” consiste no reenvio do
estranhamento para adiar sua aniquilação total. A fim de sobreviver, gera práticas difusas que
reorganizam e suturam as escaras soberanas. Contudo, se até mesmo as escaras são soberanas,
elas representam, por si, o risco iminente de autodestruição.
Não há uma reconciliação simétrica e identitária na relação de um com o outro, pois a
auto-imunidade é o que impossibilita a ipseidade do soberano, embora, ao mesmo tempo, seja ela
a condição de sua possibilidade. A capacidade de decidir sobre si mesmo na vida e na morte é o
fundamento da própria soberania. A auto-imunidade é o traço de um poder que encontra seu não-
poder enquanto uma forma de transgressão de si mesmo.

Referências bibliográficas

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro / Daniela Arbex - 1˚ ed. - São Paulo: Geração Editorial, 2013
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