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Isabela Costa2
Manoel Uchôa3
Resumo: Na biopolítica, Foucault refuta o modelo da soberania como discurso de legitimação. Para tanto, propõe
duas formas de analisar o Estado. Primeiro, o poder estatal sustenta-se por dispositivos não derivados dele. Contudo,
encontramos, na forma estatal, uma organização desses mecanismos difusos e heterônomos atualizados numa
homologia. Segundo, a guerra é o princípio de sua análise política. O poder só se exerce na luta. Nessa medida, o
biopoder é assunção da vida biológica dos corpos individuais e populacionais: “fazer viver, deixar morrer”. Numa
contrapartida suplementar, Jacques Derrida propõe um novo tratamento à soberania. Na salvação (saúde) de seu
corpo artificial, a soberania constitui-se num processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu”
soberano contra si: “fazer viver, fazer morrer”. Essa é a aporia radical da biopolítica. Sendo assim, o objetivo deste
artigo é analisar a relação entre biopoder e auto-imunidade na constituição de uma nova perspectiva de soberania.
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Trabalho preparado para sua apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos:
governamentalidade e segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014;
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Isabela Maria Bezerra Costa. Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail:
costa.bela.bc@gmail.com
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Manoel Carlos Uchôa de Oliveira. Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail:
manoel.cuo@gmail.com
A posição de Michel Foucault surge enquanto uma negação do paradigma da
legitimidade na medida em que desloca a questão do fundamento para o problema do
funcionamento do poder. Foucault pretende redefinir a pergunta pelo poder justamente na
negação da legitimidade, logo, negação do modelo de soberania vigente na modernidade. A
genealogia enquanto estratégia de estudo evoca a emergência dos mecanismos de poder a partir
das relações de força. Em contrapartida, Jacques Derrida assume o problema da tradição a fim de
desconstruir os pressupostos da fundamentação do poder. Sua estratégia não é menos
genealógica, porém lida com as forças que sustentam a própria autoridade legitima e soberana.
O ponto de partida desse trabalho assume a dificuldade em decidir pela negação ou
afirmação do fundamento de poder e da soberania. O que chama a atenção é que entre uma
posição e outra há um limiar de negociação oferecendo novas perspectivas para o estudo do
poder. Não é à toa que referências contemporâneas, como Agamben, Negri, Laclau, Esposito,
tentaram lidar com o choque dessas duas formas de conceber o poder. Por isso, pretende-se
tomar a posição limítrofe na mediada em que um espaço de contaminação possibilite às duas
genealogias um debate em torno do problema da Soberania.
Tomando a obra de Foucault primeiramente, o binômio “morrer-viver” está no cerne da
discussão deste trabalho. No modelo de soberania, há o postulado do “fazer morrer, deixar
viver”; enquanto no paradigma biopolítico, “fazer viver-deixar morrer” é o contraponto de uma
nova maquinação das relações de poder. A primeira parte é dedicada a essa exposição. Por outra
via, o poder ao tentar marcar a conservação de seu corpo segue em uma autodestruição que, antes
de ser um acidente, é fator constitutivo de sua legitimação. Por isso, entre a soberania e o
biopoder foucaultianos, haveria um terceiro elemento transversal e intrigante: a auto-imunidade,
cujo funcionamento é uma repetição infernal, “fazer viver, fazer morrer”. Nesse sentido, pode-se
pensar um desvio dessa maquinação no intuito de pensar um poder de liberação que signifique
um “deixar viver, deixar morrer”, o verdadeiro sentido da liberdade derridiana. Mesmo assim,
não tão distante da proposta ética de Foucault.
Primeiramente isto: que as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade como a
nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força
estabelecida em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra
(FOUCAULT, 1976. p 15).
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Foucault, em pensamento baseado no princípio de Carl von Clausewitz: “A guerra não é mais que a continuação
da política por outros meios”; Ela não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento da política, seu
prosseguimento por outros meios” (Vom Kriege, liv. I, cap. 1).
apenas a dominação centralizada e descendente do rei para seus súditos, mas a funcionalidade de
uma rede mais complexa e abrangente, de relações de força e dominação dentro da própria
sociedade, semeada dentro das próprias relações recíprocas entre os indivíduos. Essa é a nova
característica atuação do poder. O poder se exerce em cadeias dentro dessas relações
interpessoais.
A análise do direito deve ser feita, primordialmente, a partir dos constantes processos de
sujeições que ele instaura. Enquanto a lei pretende ser entendida como sinônimo de paz, ao
contrário, a norma é a ritualização guerra para a produção constante das verdades. Essa “paz” da
lei é onde, surdamente, acontece a guerra. É uma guerra é silenciosa. A ritualização da guerra
depende de uma estratégia histórica que Foucault explicita: o racismo. A guerra racial é o
paradigma da nova configuração do poder. Na luta entre as raças, o biopoder encontra sua
emergência. A genealogia da biopolítica está ligada a “genética” dos indivíduos e populações.
Desde sua formação, a soberania moderna construiu-se baseada principalmente na
centralização do poder. Evidenciada pelo surgimento de unidades políticas resistentes ao tempo,
como as grandes dinastias, criou-se assim solidas instituições burocráticas de governo e o mais
importante: o consenso sobre a necessidade de existência de um soberano e sobre o dever básico
de obediência e submissão completa a esse poder.
A noção da soberania moderna conclui-se efetivamente na noção do Estado possuir
direitos absolutos, incondicionais e indiscutíveis. Com isso, o poder soberano era exercido
justamente no poder de decisão sobre vida e morte de seus súditos.
Porém, o contexto e fundamento das relações de soberania, a partir do século XVII,
sofreriam mudanças essenciais em suas fórmulas de governo. Métodos de disciplina e
regulamentação surgiram como novos aparatos de governo visando maior controle e regulação
social. Tal mudança foi a revolução da biopolítica na forma de atuação do Estado e da soberania.
Onde antes reinava o “deixar viver, fazer morrer”, típico do poder absoluto do soberano sobre os
corpos de seus súditos, agora a ordem é o “fazer viver, deixar morrer” dentro de uma assunção
da vida biológica dos corpos individuais e populacionais.
A biopolítica da espécie humana, trabalhada por Foucault, consiste em um conjunto de
processos de controle da natalidade, de mortalidade e longevidade de uma população. A
biopolítica nada mais é do que a inclusão da vida propriamente dita na política. O que se instaura
agora é uma mudança na forma de dominação, que irá se dar em duas formas e em dois
momentos que se conectam e prescindem um do outro: o da disciplina e o da regulamentação.
O primeiro trata-se de uma organização individual do sujeito, de técnicas de como
aprimora-lo, dentro de uma rede complexa onde o poder iria se exercer visando a uma
“tecnologia disciplinar do trabalho”. “Mais precisamente eu diria isto: a disciplina tenta reger a
multiplicidade dos homens na medida em que deve ser vigiados, treinados, utilizados e
eventualmente punidos” (FOUCAULT, 1976. p 204). Já a segunda ultrapassa os limites de uma
disciplina. Ela preocupa-se com o homem na multiplicidade e pluralidade, na sua “massa
global”. É a “biopolítica da espécie humana”: o interesse no indivíduo, mas como membro de
uma coletividade.
Dentro desse biopoder irá surgir outro mecanismo de controle: a questão do Estado de
Segurança. O policiamento, a higienização, o discurso da necessidade da preservação da
segurança social e o controle dos contingentes sociais são técnicas de subjetivação e
governamentalidade usadas pelo Estado. A questão central da análise de Foucault será onde e
como os mecanismos de segurança vão atuar dentro das questões sociais e biológicas das
espécies. O mecanismo da disciplina necessita da segurança. Segundo Foucault:
Porque, afinal de contas, para de fato garantir essa segurança é preciso apelar, por
exemplo, e é apenas um exemplo, para toda uma série de técnicas de vigilância, de
vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do que eles são, de classificação da sua
estrutura mental, da sua patologia própria, etc. Todo um conjunto disciplinar que viceja
sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar. (FOUCAULT, 2008. p 11)
A imunidade não é apenas a relação que liga a vida ao poder, mas o poder de
conservação da vida. Ao contrário, de tudo que pressupõe o conceito de biopolítica -
entendido como resultado do encontro que em certo momento se dá entre dois elementos
componentes - deste ponto de vista não existe poder externo à vida, assim como a vida
não se dá nuca fora das relações de poder. Olhada nessa perspectiva, a política não é
senão a possibilidade, ou o instrumento, de conservar viva a vida. (2010, p. 74)
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Termo Gewalt – Walter Benjamin “Por uma crítica da violência”: Frequentemente traduzido por “violência”, mas
possui um significado mais amplo. Significa também poder legítimo, autoridade, força pública. Pode significar o
domínio ou soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou autorizada: a força de lei.
O soberano seria a primeira figura imunitária no cerne da conservação da vida. Na
verdade, a condição espectral não é um pressuposto, mas aquilo mesmo que sustenta a dinâmica
biopolítica do soberano. Não é à toa que esta demanda o sacrifício e edifica a lei e o direito em
torno desse rito. Mesmo a guerra não é senão uma exigência soberana para que o corpo mortal
dos súditos verte seu sangue. Por isso, opera-se por dentro, nem antes nem depois, na
possibilidade efetiva da auto-imunização.
A questão da auto-imunidade é tratada onde a razão do Estado, ao mesmo tempo que
torna-se ameaçante, teria o poder de ameaçar a si própria, constituindo uma aporia radical da
biopolítica. Hora é ameaça, hora ameaça-se. Ela ataca-se para proteger-se:
Não pode existir soberania que não alimente sua própria auto-imunidade. Mesmo tendo
em vista que o princípio da autodestruição auto-imunitária causará a ruína de outro princípio,
proteção de si (integridade intacta de si), ele se faz necessário por ter sempre em vista uma
“sobre-vida invisível e espectral” (DERRIDA, 2003). Essa é a grande aporia do auto-imune.
Essa aporia tem necessidade fundamental, pois será a forma que o Soberano poderá abrir-
se, para assim, poder decidir sobre o outro, ao futuro, à incerteza, às variações, à morte, em fim,
ao que é distinto e ainda fora de seu controle e previsão. Esse será o constante processo do
reenvio auto-imunitário.
Em Vadios, Derrida propõe essa análise a partir do conceito de Democracia porvir. O
processo auto-imunitário, portanto, é a própria democracia que consiste sempre no reenvio. Esse
reenvio consiste em sempre enviar a algum lugar a democracia. Ela se expulsa ou se rejeita, se
exclui a pretexto de se proteger e para isso, deve se rejeitar, expulsar, alocar ou suspender,
colocando para fora seus inimigos domésticos. O reenvio, nesse ponto, já dificulta a condição do
poder e do político, pois no discurso interna a cidadania democrática não há pressuposto teórico
imediato para distinguir o amigo e o inimigo enquanto cidadãos. Todo cidadão é ao mesmo
tempo potencialmente amigo e inimigo. Uma repetição constante do incluir e excluir:
Não se pode perder de visa que ao tratar do corpo democrático ou da soberania está-se
tratando de uma multiplicidade de corpos. Não se pode não falar em corpos, isto é, na articulação
imanente que esse reenvio produz até mesmo no instante em que se calcula e, principalmente, se
decide “cortar a própria carne”. Essa dinâmica carnívora é a instância “cruel” da violência mítica
(aquela que funda e conserva do direito). A crueldade é a condição de expor a carne viva ao osso
do processo de violência legítima.
Cortar, ainda que a suture posteriormente, mantém, no corpo soberano, a capacidade de
reorganizar a si mesmo, embora nunca coincida consigo mesmo. O corpo mortal do soberano
está à disposição da violência, que o sacrifica a fim de sacralizar seu corpo etéreo. A violência
que subjuga a vida para assegurar a vida possui seu discurso na geração de uma teologia política,
segundo Derrida. É o poder de toda uma cultura e mentalidade de “cortar na própria carne”,
propriedade da carne auto-imunizada. Em suma, o carnofalo-logogocentrismo:
O campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado,
no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer medição. Por isso o
campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se
biopolítica (AGAMBEN, 2010. p 167)
Tal ato de escolha de uma parcela social como ruim, típica do racismo, será a escolha de
um inimigo do direito penal. E essa escolha sempre será uma escolha política, seja em âmbito
nacional ou internacional. As decisões estruturais (dos governos) atuais assumem, na prática, a
forma pré-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exercício do poder de
designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total (ZAFFARONI, 2011).
A cisão do inimigo acarretará no tratamento diferenciado: o direito lhe nega a condição
de pessoa. Ele é visto tanto para o governo, quanto para a sociedade, apenas como um ser
perigoso que fatalmente causará danos em qualquer local que esteja, e com isso é justificada a
privação de certos direitos fundamentais supostamente inalienáveis. Essa qualificação
“coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com
racionalizações” (ZAFFARONI, 2011).
A privação do caráter de pessoa, e da abstenção aos direitos que os ditos inimigos sofrem,
é a primeira e mais clara incompatibilidade com os princípios básicos do Estado de Direito que
se apresenta:
Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de
pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é,
quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e
simplesmente como um ente perigoso (ZAFFARONI, 2011).
A tática preponderante para justificação de todas essas relações de exclusão será o medo.
Se a população tem medo, ela apoiará qualquer discurso e medida que acabe com o perigo, seja o
assassinato em massa - visto claramente nas “pacificações” em favelas brasileiras - seja a perda
da privacidade, tudo em nome do reiterado discurso de segurança.
O mais denso, entretanto, virá depois disso: a tendência de despersonalização de toda a
sociedade. A precisão e cautela dos atos cotidianos torna-se extremamente necessária para evitar
confrontos com os interesses políticos governamentais. Uma sociedade que vive em torno da
necessidade de segurança como primordial e a leva até suas últimas consequências - como
segregar, enjaular e indiretamente matar pessoas no cárcere ou legitimamente por ações de
“pacificação” policial - de certa forma, autoriza e clama o aumento do controle punitivo do
Estado, assim como a diminuição da sua própria liberdade em função de uma preservação de sua
segurança.
A política, nacional ou internacional, constitui-se no constante movimento de definição
entre amigo e inimigo. Tal movimento será a justificativa para a aplicação de futuras retaliações.
O movimento de escolha do inimigo nacional mostra-se ao excluir a parcela frágil da sua própria
sociedade, e em caráter internacional, quando coloca como inimigo a nação que contraria seus
interesses.
A partir do momento que alguém é tratado como perigoso têm-se argumentos que
legitimem a retirada de direitos, segregação destes e a aplicação de qualquer medida necessária
para conter o mal que esse ser pode causar, em nome de um bem posto como superior: a
segurança social.
Conclusão
Referências bibliográficas
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