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ARTIGO

JARDIM DE FLORES: UMA EXPERIÊNCIA COM


GRUPOS DE FAMÍLIAS NO CONTEXTO DA
SOCIOEDUCAÇÃO

FLOWERS IN THE GARDEN: A FAMILY GROUP INTERVENTION ON A SOCIAL


EDUCATIONAL CONTEXT

RESUMO: Este artigo visa apresentar e refletir ABSTRACT: This article aims to present and BIANCA BATALHA DE
sobre uma intervenção realizada com grupos mul- reflect on a multifamily group intervention held ALMEIDA
tifamiliares no contexto da execução de medidas on the context of correctional measures without
Psicóloga da Casa Monte
socioeducativas em meio aberto do CREAS–Ca- freedom restraint at CREAS–Cariacica (ES). Nar-
Belo de Semiliberdade –
riacica (ES) utilizando conceitos e metodologias da rative Therapy and Collective Narrative Practices Serra/ES, atuou no CREAS-
Terapia Narrativa e das Práticas Narrativas Coleti- theory and methodologies were used during an Cariacica (ES), terapeuta de
vas. Foram 11 encontros mensais, que contaram 11-days’ program, held monthly with a group of família pelo CRESCENT-FDV.
com a participação voluntária de adolescentes que voluntary adolescents involved in correctional
cumpriam as medidas socioeducativas e seus fa- social educational measures and their parents. ADRIANA MÜLLER
miliares. Durante esse período o grupo tornou-se During this time the group became a safe place
Psicóloga, terapeuta de
um espaço de apoio mútuo, de externalização dos for supporting each other, externalizing the pro-
família, mestre em psicologia
problemas, de ampliação de narrativas pessoais, blems, enlargement of narratives, musicality, do desenvolvimento e
de musicalidade, de reautoria, de fortalecimento reauthoring conversations, strengthening family docente do CRESCENT-ES.
de vínculos familiares, de superação e de regradu- bonds, overcoming difficulties, and “regradua-
ação. Os resultados alcançados demonstram que tion”. The results showed that Narrative Therapy
a Terapia Narrativa e suas formas de aplicação and its applications can contribute with families
contribuem no trabalho em grupos neste contexto. in this context.

PALAVRAS-CHAVE: medidas socioeducativas, KEYWORDS: social educational measures, narra-


terapia narrativa, práticas narrativas coletivas. tive therapy, collective narrative practices.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta e discute uma experiência de grupos de famílias acompa-


nhadas no Serviço de Medida Socioeducativa do CREAS (Centro de Referência
Especializado de Assistência Social) do município de Cariacica/ES. O CREAS é
uma unidade pública que oferece serviços especializados e continuados para fa-
mílias e indivíduos que sofreram violação de direitos, compondo assim o Sistema
de Garantia de Direitos caracterizado na Resolução 113/2006 do Conselho Na-
cional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Os atendimentos
são feitos por uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, assistentes
sociais, pedagogos, assessores jurídicos e educadores sociais. As famílias acom-
panhadas pelo serviço de medida socioeducativa do CREAS–Cariacica são enca-
minhadas pela Vara da Infância e Juventude deste município por ter um membro Recebido em: 15/05/2014
adolescente sentenciado ao cumprimento de Liberdade Assistida e/ou Prestação Aprovado em: 27/06/2014
de Serviço à Comunidade, devido ao das mesmas relações. Portanto, abrir
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cometimento de ato infracional, con- um espaço de participação dos paren-
forme estabelecido pelo Estatuto da tes tem como objetivo conhecer quais
Criança e do Adolescente (ECA). significados são gerados dentro da
O ECA (Brasil, 2002) foi promulga- dinâmica familiar e propiciar ao ado-
do em 1990 e busca a proteção integral, lescente um novo contexto no qual ele
promovendo garantias processuais e a possa construir outras estratégias para
defesa do adolescente, considerado o enfrentamento das adversidades. As-
tanto como sujeito de direitos e deve- sim, os grupos familiares são vantajo-
res quanto como pessoa em uma fase sos pelo fato de abrirem a oportunida-
específica de desenvolvimento. Por de de os membros da família falarem
isso, quando um adolescente pratica entre si, o que cria uma noção de apoio
um ato contra a ordem social e esse e reforço para uma série de iniciativas
configura-se como crime ou contra- e decisões que são necessárias ao pros-
venção penal, ele é responsabilizado seguimento das ações que envolvem a
por uma legislação específica – o ECA família composta pelo adolescente em
– que, no artigo 112 prevê a adoção de conflito com a lei (Costa, 2010; Dias,
medidas socioeducativas pela autori- Arpini, & Simon, 2011). Além dis-
dade competente. Apesar de tais me- so, Denborough (2008) ressalta que a
didas socioeducativas terem um cará- promoção de um espaço de discurso
ter compulsório e sancionatório, elas coletivo, a apreciação da diversida-
não podem ser consideradas como de e a particularidade da experiência
penas ou castigos, mas sim como uma individual, como intenções, desejos,
ação do Estado que objetiva promo- esperanças e metas de vida, tendem
ver a ressocialização do adolescente a capacitar as pessoas a encontrarem
mediante a adoção de procedimentos alívio aos efeitos das dificuldades em
pedagógicos. Tais ações buscam cola- suas vidas e a modificar as condições
borar para o desenvolvimento do po- sociais que contribuíram para o pro-
tencial do adolescente, contribuir para blema enfrentado.
o aumento da competência individu- Baseamos o desenvolvimento do
al, promover a autonomia e auxiliar grupo de famílias aqui apresentado
na elaboração de projetos de vida que nas premissas da Terapia Narrativa,
estejam desvinculados da prática dos criada por Michael White e David
atos infracionais e visem à inclusão Epston. Esta se inscreve no marco do
social plena (Aquino, 2012; Araújo, pós-modernismo, que questiona o co-
2012). nhecimento do especialista como sen-
É importante ressaltar o papel da do algo objetivo, superior, universal e
família dentro de todo esse processo. verdadeiro, reconhecendo que o co-
De acordo com a visão teórica aqui nhecimento é sempre local, construí-
apresentada, a família é uma organiza- do na linguagem e nas relações. A pes-
ção dinâmica, composta de elementos soa é vista como autora de sua própria
interdependentes que possuem víncu- história e existência, competente para
los afetivo-sociais entre si e que cons- a ação, para o agenciamento de esco-
troem sua realidade por meio da lin- lhas a partir de um posicionamento
guagem. Sendo os sistemas humanos autorreflexivo, moral e ético, podendo
geradores de linguagem e significado, criar e expandir suas possibilidades
podemos considerar que tanto os pro- existenciais. Dessa forma o encontro
blemas quanto as suas soluções advêm terapêutico é uma troca entre iguais e

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a pessoa é considerada a especialista desconstruir algumas conclusões ne- Jardim de flores
em sua própria vida. O papel do tera- gativas a que chegaram sobre sua iden- Bianca Batalha de Almeida 75
Adriana Müller
peuta é estar atento à “dupla narrativa”: tidade, passam a acessar opções mais
ouvir tanto o que é dito sobre os efei- efetivas de resolução das dificuldades
tos dos problemas na vida das pessoas e conseguem construir versões prefe-
quanto às histórias de enfrentamento e ridas sobre si mesmas e sobre sua vida
superação desses problemas, o que en- (Epston, 1998; White, 2007; Madigan,
volve relatos de valores, competências, 2011; Müller, 2013).
dignidade e conhecimentos diversos. Outra forma pela qual o terapeuta
Além disso, a Terapia Narrativa consi- narrativo auxilia as pessoas na cons-
dera que a realidade é uma construção trução de versões preferidas de suas
social e o diálogo é um cruzamento de histórias é a Conversa de Reautoria.
perspectivas, uma prática social trans- O terapeuta narrativo sai do pressu-
formadora para todos os envolvidos. posto de que o problema não ocupa
As práticas de conversação e os pro- integralmente a vida de uma pessoa,
cessos de questionamento são vistos por isso, convida as pessoas a contar
como recurso para gerar reflexão e sobre suas vidas incluindo eventos e
mudança, além de expandir possibi- experiências que, apesar de serem fa-
lidades, o que pode exercer um efeito tos importantes e significativos, foram
libertador para as pessoas (Grandes- deixados de lado na versão saturada de
so, 2008; Denborough, 2008; Müller, problemas da história dominante. São
2012). os momentos extraordinários e únicos
Uma das formas de condução da que trazem vida à história da pessoa,
Terapia Narrativa são as Conversas de que resgatam aspectos fundamentais
Externalização que possibilitam à pes- da sua identidade, evidenciam aquilo
soa perceber que ela e o problema não que ela valoriza e ampliam as versões
são a mesma coisa. É comum que as possíveis da mesma história – versões
versões das histórias de vida das pes- alternativas cada vez mais significati-
soas que enfrentam dificuldades sejam vas que proporcionam à pessoa uma
saturadas de problemas e que a influ- base para elaborar novas formas de
ência desses problemas seja tão inten- lidar com os problemas (White, 2007;
sa a ponto de gerar um efeito negati- Madigan, 2011; Müller, 2013).
vo sobre suas identidades. Isso ocorre Ao longo do processo de reautoria,
porque o problema mantém as pessoas muitas lembranças preciosas são res-
constantemente afastadas daquilo que gatadas, incluindo vivências com pes-
as fortalece: seus valores, suas cren- soas significativas – todas aquelas que
ças, suas competências, sua noção de de alguma forma contribuíram para a
autoria da própria vida. Cabe ao tera- construção da identidade e da histó-
peuta narrativo criar um contexto que ria da pessoa. O terapeuta narrativo,
separe a pessoa do problema, dando baseado no que Michael White deno-
ênfase à capacidade de superação da minou de “re-member” um trocadilho
própria pessoa. Isso acontece em um que invoca tanto a ideia de lembrar
processo pelo qual a pessoa dá nome (remember) quanto de voltar a ser
ao problema, analisa as formas pelas membro (re-member), está sempre
quais ele interfere na sua vida e define atento a essas figuras importantes que
se aceita ou não essas interferências. serviram de exemplo, ensinaram coi-
Quando as pessoas se percebem se- sas, participaram de eventos relevantes
paradas do problema, elas começam a e deram demonstrações claras de afeto

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e proteção. Algumas vezes essas pesso- em competências, valores e memórias
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as significativas já faleceram, mas isso preciosas. Quando aplicadas em gru-
não diminui o efeito da sua presença pos, esses documentos são elabora-
na vida da pessoa. Aliás, esse processo dos utilizando uma voz coletiva, ten-
de relembrar costuma funcionar como do como meta poder contribuir com
uma forma de “dizer olá novamente” a vida de outras pessoas que passam
(White, 1988): trazer de volta a lem- por situações semelhantes. Ajudar um
brança de pessoas queridas e encon- grupo a elaborar um documento cole-
trar formas de homenageá-las. tivo significa possibilitar que eles fa-
Além da presença do terapeuta, Mi- lem, não simplesmente para nós, mas,
chael White considerava interessante sim, que eles falem com outras pessoas
que algumas pessoas fossem convida- por meio de nós (Denborough, 2008).
das em determinados momentos do Além disso, outra forma de consoli-
processo terapêutico. São as chamadas dar a história preferida é por meio das
testemunhas externas (White, 2007; cerimônias de definição. Elas funcio-
Madigan, 2011; Müller, 2013). Essas nam como um ritual no qual a nova
pessoas têm a função de ouvir o relato versão da história de vida e da iden-
da história e, posteriormente, mencio- tidade da pessoa é reconhecida por
nar como aquela narrativa lhes tocou e todos os presentes, funcionando como
teve ressonância com sua própria his- um estímulo para que a pessoa deixe
tória de vida. As testemunhas externas de ter conclusões “estreitas” sobre sua
não têm a finalidade de apresentar identidade e passe a ter uma rica des-
conceitos morais, nem dar sermões ou crição de si mesma. De certa forma, as
conselhos, mas de conversar sobre a cerimônias de definição “regraduam”
história que foi narrada mencionando a vida das pessoas: elas saem do pata-
imagens, memórias, sentimentos de mar de vítimas e se colocam no de au-
sua própria vida que foram acessados toras da própria história (White, 2007;
e reflexões que surgiram em decorrên- Madigan, 2011).
cia do relato da pessoa. Quando uma As Práticas Narrativas Coletivas en-
pessoa percebe que a sua história de volvem formas de aplicação da Terapia
vida tem um efeito potencializador na Narrativa em contextos coletivos mais
vida de outras pessoas, ela fortalece a amplos, visando ajudar indivíduos,
versão preferida de sua identidade e grupos e comunidades que enfrentam
de sua história. Nisso reside a beleza dificuldades a criarem estratégias de
da presença da testemunha externa: enfrentamento mais eficazes porque
na força que ela confere à pessoa e sua baseadas em conhecimentos locais.
história alternativa. Para isso, nos encontros as pessoas
Esse processo de compartilhar ex- são convidadas a valorizar formas co-
periências é extremamente significati- letivas de discurso, considerando que
vo e, uma das formas de ser colocado cada pessoa não é o problema, mas um
em prática é por meio das documen- porta-voz de um problema social. Isso
tações coletivas: cartas terapêuticas, permite que a pessoa se junte a ten-
vídeos, certificados, músicas, entre tativas coletivas e locais de lidar com
outros (Epston, 1989; Denborough, os problemas sociais (Denborough,
2008; Madigan, 2011; Müller, 2012, 2008).
2013). A função desses documentos é Várias são as metodologias das Prá-
registrar o processo de construção de ticas Narrativas Coletivas, cada uma
uma nova versão da história, baseada baseada em um tipo de metáfora que

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estimula ricas descrições das histó- enfrentamento, de esperança e susten- Jardim de flores
rias preferidas (Denborough, 2008; to, de transformação e resgate. Algu- Bianca Batalha de Almeida 77
Adriana Müller
Müller, 2012,2013). A que foi aplicada mas músicas fazem parte da trilha so-
no grupo multifamiliar aqui apresen- nora da vida das pessoas e, em alguns
tado foi a Árvore da Vida, desenvol- casos, da própria comunidade, marcan-
vida por Ncazelo Ncube (2006) com do uma época ou uma situação especí-
a ajuda de David Denborough. Nela, fica. Denborough (2008) ressalta a im-
as pessoas são convidadas a desenhar portância do uso da música no trabalho
uma árvore e escrever, em cada parte de enfrentamento de situações difíceis
da árvore, aspectos específicos de sua e Müller (2013) destaca que a música é
história de vida: memórias precio- uma linguagem que pode ser entendida
sas, valores, qualidades, habilidades, em diferentes culturas e, por isso, co-
sonhos, pessoas significativas, entre necta as pessoas. O uso da música pode
outros. Em seguida, as pessoas apre- acontecer tanto por meio da criação de
sentam suas produções individuais e, uma música própria pelo grupo, quan-
ao juntarem todas as árvores, formam to pelo cantar coletivo de uma música
uma floresta. A partir desse momento, que é de conhecimento de todos.
o grupo pode visualizar a conexão en- O teatro é outra forma de expres-
tre as histórias individuais e coletivas são cultural que pode ser utilizada nos
– e buscar a “unidade na diversidade” encontros de grupos como forma de
(Freire, 2008). Passam a considerar os construir e reforçar as histórias prefe-
problemas que podem desafiar o equi- ridas individuais e coletivas. O grupo
líbrio da floresta e a forma pela qual define um tema e, a partir desse tema,
cada animal que lá habita enfrenta tal uma conversa de externalização co-
desafio. Aos poucos a metáfora vai letiva é elaborada sob o formato de
se aproximando da realidade da vida uma peça teatral. Tanto a elaboração
e eles podem refletir sobre as formas do texto quanto a encenação é realiza-
pelas quais eles próprios enfrentam da pelos participantes, considerados,
as dificuldades, relacionando todas as como já foi mencionado anteriormen-
habilidades e forças presentes nas “ár- te, como especialistas em suas próprias
vores” com as histórias de superação histórias.
que eles narram. Todas essas formas de integração do
Além das metodologias, outras grupo têm como objetivo homenage-
formas de aplicação das Práticas Nar- ar os participantes e fortalecer as his-
rativas Coletivas envolvem a cultura tórias preferidas que eles estão cons-
popular, como é o caso da confrater- truindo para si e para a comunidade
nização, da música e do teatro. As con- onde vivem. São exemplos de como as
fraternizações são muito comuns no Práticas Narrativas Coletivas podem
Brasil, em especial os lanches coletivos ampliar, enriquecer e conectar as his-
no final de encontros, as comemora- tórias de vidas das pessoas de forma
ções de aniversários de membros do significativa.
grupo e o “amigo X” nos encerramen-
tos das atividades. Elas fazem parte de
um contexto cultural de descontração, CONVITE À PARTICIPAÇÃO
engajamento e solidariedade.
As músicas também fazem parte Após ser sentenciado a cumprir a me-
da cultura popular e podem ser uti- dida socioeducativa em meio aberto
lizadas como mensagens de força e pela Justiça da Infância e Juventude, os

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adolescentes junto com seus responsá- familiares. Ao comentarem sobre suas
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veis legais são encaminhados ao CRE- expectativas referentes à participação
AS–Cariacica para que a equipe psicos- no grupo, os membros expuseram que
social realize o acompanhamento da esperavam que o grupo fosse de cunho
execução desta. O atendimento inicial de orientação sobre as atitudes ade-
é o momento para explicar à família so- quadas que deveriam exercer diante
bre as condicionalidades da medida so- dos problemas vivenciados, em espe-
cioeducativa imputada e, também, para cial no que tange os filhos. Tal atitude
eles assinarem os termos de responsabi- pode ser entendida como reflexo de
lidade. No termo específico do familiar uma cultura que valoriza mais o saber
há a condição de que ele participe das do especialista do que o conhecimento
atividades ofertadas pelo serviço, quan- local e as narrativas individuais. Assim
do convocado. Porém, até então, não sendo, o trabalho com os grupos teve
existia nenhuma atividade concreta como meta valorizar as histórias indi-
sistemática voltada ao trabalho com as viduais e considerar as pessoas como
famílias no contexto da socioeducação especialistas em suas vidas.
em meio aberto no CREAS–Cariacica. Durante o primeiro encontro dos
Isso mudou quando a psicóloga do grupos cada participante fez uma
programa, umas das autoras desse arti- apresentação breve de si e de suas his-
go, percebeu a importância de incluir as tórias, sendo que, em geral, as histórias
famílias nos projetos educativos e abriu eram saturadas de problemas. Após
um espaço para trabalhar com grupos este momento inicial, eles passaram a
multifamiliares. A partir desse momen- se apresentar de uma forma bem es-
to, quando a família chegava ao aten- pecífica: cada um mencionava uma
dimento inicial, os responsáveis eram habilidade, competência ou valor que
convidados a participar dos grupos, po- começasse com a primeira letra de seu
dendo optar pela data e horário que me- nome. O objetivo dessa dinâmica era
lhor se adequassem à sua rotina. Caso promover o resgate dos recursos inter-
a família demonstrasse interesse, pró- nos e potencializá-los. Como a reação
ximo ao dia agendado, a equipe técnica inicial dos participantes a essa propos-
realizava contato telefônico com vistas a ta foi de dizerem que era difícil e eles
relembrá-la e confirmar a presença. não conseguiam realizá-la, foi preciso
Os quatro primeiros grupos inicia- que a psicóloga que orientava o grupo
ram no mês de agosto de 2012 no pe- iniciasse o processo, o que diminuiu
ríodo noturno e, no mês de fevereiro a tensão e contribuiu para que ela se
de 2013, um grupo no sábado. Todos inserisse como uma participante do
os grupos tiveram frequência mensal grupo – postura essa totalmente coe-
e neles participaram os pais e/ou res- rente com a proposta da Terapia Nar-
ponsáveis, os socioeducandos e outros rativa que percebe o terapeuta como
membros das famílias, em um total de facilitador de um processo e os parti-
40 pessoas, das quais 18 participaram cipantes como especialistas. Após esse
de forma assídua. momento de apresentação e integra-
ção, os membros em conjunto deram
nome ao grupo. Assim, surgiram os
PREPARANDO O TERRENO grupos “Esperança”, “Arte e Vida”, “Paz
e Amor”, “Amizade” e “Libertação”.
Nos primeiros encontros, era per- Uma sugestão que obteve adesão em
ceptível a postura tensa e receosa dos todos os grupos formados e colaborou

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para a promoção de descontração e for- a possibilidade de serem autoras de Jardim de flores
talecimento de vínculos foi o lanche co- suas histórias. Bianca Batalha de Almeida 79
Adriana Müller
letivo realizado ao final dos encontros. Diante desse cenário, teve início a
Para esse lanche, cada pessoa trazia Conversa de Externalização na tenta-
algo, de acordo com sua possibilidade. tiva de que os participantes pudessem
Todos os grupos desenvolvidos fo- ver os problemas sob outra perspec-
ram exitosos em promover um espaço tiva. Assim sendo, nos dois primeiros
de reflexão seguro no qual cada pes- encontros criou-se um contexto que
soa pode fortalecer a sua identidade e favoreceu aos participantes nomear
ter mais autonomia em sua vida, além seus problemas, o que facilita sua ex-
de resgatar competências pessoais e ternalização, e agir no intuito de serem
coletivas. A seguir será apresentado o eles – e não os problemas – os autores
desenvolvimento do Grupo Amizade, de versões preferidas de sua história de
tanto por ter sido o de maior duração vida.
quanto por ter vivências mais intensas. No terceiro encontro as pessoas
que participavam do encontro refleti-
ram sobre o que tinham aprendido até
SEMEANDO E VENDO FLORESCER então e escolheram uma música que
representasse esse aprendizado cole-
O Grupo Amizade teve início no dia tivo: a música “O que é, o que é” do
27 de agosto de 2012 e finalizou no compositor Gonzaguinha. O refrão foi
dia 10 de junho de 2013, totalizando entoado em uníssono: “Viver e não ter
11 encontros. Começou com quatro a vergonha de ser feliz, cantar a beleza
participantes, sendo três do sexo fe- de ser um eterno aprendiz, eu sei que a
minino e um do sexo masculino. Para vida devia ser bem melhor e será, mas
preservar o sigilo das informações, os isso não impede que eu repita, é boni-
nomes dos participantes são fictícios, ta, é bonita e é bonita”.
considerando que os nomes dos fa- No quarto encontro, com o con-
miliares iniciam com a letra “F” e dos sentimento de todos os membros, um
adolescentes, com a letra “A”. Assim novo participante passou a frequentar
sendo, os primeiros participantes do o grupo: Filomena, filha de Fabíola,
grupo foram: Fábio, Flora, Fátima e que se interessou pelo grupo ao ouvir
Fabíola. os relatos de sua mãe. Sempre assídua,
Logo no primeiro encontro os par- veio a todos os encontros e trazia sua
ticipantes começaram a falar sobre os máquina fotográfica para registrar os
problemas diretamente relacionados momentos que ela considerava mais
aos filhos e o resultado disso em suas importantes. A vinda da Filomena deu
vidas: os familiares relataram sua des- início às conversas de reautoria, pois,
motivação após tantas tentativas frus- como ela solicitou participar do gru-
tradas de lidar com as dificuldades e se po devido aos comentários que ouvia
mostraram bastante enfraquecidos e de sua mãe, sua presença, inicialmen-
sem esperança diante da aparente au- te, foi no sentido de uma testemunha
sência de recursos pessoais e coletivos. externa que chegou ao grupo eviden-
Era nítida a falta de planos para o futu- ciando o reflexo daqueles encontros do
ro e o pouco investimento em relação grupo nas outras pessoas que estavam
a si mesmos. Isso demonstra o quanto fora do processo. Com isso, Filomena
o problema estava presente na vida das foi a primeira a dar voz à história pre-
pessoas, impedindo que elas tivessem ferida que o grupo estava construindo.

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No quinto encontro, a conversa de praia e tomado muito banho de mar.
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re-autoria continuou. Ficou cada vez Além disso, acrescentou que visitou o
mais claro para o grupo como o pro- filho na Clínica e que o encontro foi
cesso de integração entre eles estava satisfatório. A ressonância do grupo
fortalecido, como eles estavam aces- foi intensa: todos destacaram em suas
sando suas habilidades e competências narrativas o fato do Fábio ter feito algo
e conseguindo lidar com os problemas diferente durante o intervalo entre os
em suas vidas. Diante desse progresso, encontros e o quanto isso os deixou
e considerando que os filhos adoles- surpresos e alegres.
centes estavam cumprindo a medi- Ainda neste encontro os participan-
da socioeducativa com regularidade, tes foram divididos em dois subgru-
abriu-se a possibilidade de que os fi- pos para elaborar, cada um, uma peça
lhos viessem participar do grupo junto de teatro: um subgrupo representaria
com seus familiares. uma família que vive envolvida pelos
Desta forma, no sexto encontro, ou- problemas e outro, uma família que
tras testemunhas externas passaram a conseguiu separar-se dos problemas e
fazer parte do grupo: os filhos adoles- superá-los. Todos participaram ativa-
centes – Alan (filho de Fabíola e irmão mente desse teatro e relataram como
de Filomena), Aguinaldo (filho de tal vivência permitiu que manifes-
Fátima) e André (filho de Flora). Tal tassem o comportamento que costu-
iniciativa da facilitadora tinha como mam ter e percebessem quais atitudes
meta trabalhar o fortalecimento dos colaboram para o fortalecimento do
vínculos familiares e contribuir para problema. Assim, coletivamente refle-
a ampliação das histórias preferidas. tiram sobre habilidades e competên-
Cabe registrar que o filho do Fábio cias que possuem para a mudança dos
não pode comparecer ao grupo, pois comportamentos. Ao final do encon-
estava internado em uma clínica de tro, Filomena pediu que cantassem a
reabilitação. música do grupo: “O que é, O que é?”.
O sétimo e oitavo encontros foi o Esta foi a última vez que Fábio com-
momento de aplicar a metodologia pareceu, pois ele faleceu duas semanas
“Árvore da Vida”, tanto por ser uma ati- depois.
vidade lúdica que possibilita a integra- No décimo encontro, o grupo sou-
ção entre os membros jovens e adultos, be do falecimento do Fábio. Foi um
quanto por permitir a continuação do momento de pesar, porém, também,
processo de fortalecimento da nar- de o grupo perceber a maneira pela
rativa das pessoas, já que possibilita qual eles se incentivavam mutuamen-
combinar os relatos das experiências te e como isso se refletiu na forma de
passadas, das vivências do presente e o Fábio construir histórias de identi-
dos objetivos e sonhos para o futuro. dade fortalecidas. Todos os membros
Todos puderam reconhecer suas com- relembraram momentos de alegria e
petências, lembrar pessoas significati- do impacto positivo do grupo na vida
vas e planejar projetos de vida. dele. Com os participantes mobiliza-
Durante o nono encontro, os par- dos em rever o papel de cada um no
ticipantes relataram o que mudou em grupo, surgiu a ideia de gravar um ví-
sua vida ao longo dos encontros. Foi deo no qual eles cantassem a música
o último encontro em que o Fábio tema do grupo e pudessem dar o seu
participou e, nele, relatou sua alegria depoimento sobre o significado do
por ter viajado com um colega até a grupo em suas vidas. Depois de um

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período de silêncio, Fabíola disse que É muito importante para nós termos Jardim de flores
aceitaria a ideia, pois avaliou que o Fá- frequentado o grupo para mostrarmos Bianca Batalha de Almeida 81
Adriana Müller
bio gostaria que o grupo seguisse em para os nossos filhos o quanto eles são
frente e não paralisasse devido à sua importantes para nós. Participar do
morte. Todos concordaram. grupo aumentou a nossa autoestima,
Um profissional do CREAS–Caria- estamos mais felizes, mais alegres, ape-
cica tocou violão durante a gravação sar de ajudarmos os nossos filhos tam-
do vídeo que alternou música e de- bém ajudamos a nós mesmos.
poimentos, alguns dos quais estão a Foi ruim o começo dos atos infracio-
seguir: nais, mas depois foi uma coisa boa es-
Fátima: “Eu me sinto muito mais tarmos reunidos, foi um mel, passamos
preparada para lidar com os proble- a ser exemplo, nos ajudou a melhorar
mas da vida, aprendi muitas coisas o nosso comportamento, amadurecer.
(...) vi as pessoas desabrocharem (...) Para as pessoas que estão pensando em
eu quero agradecer porque esse grupo seguir essa carreira fracassada, podem
não foi uma obrigação pra (sic) nós e ver nosso exemplo, por termos mudado,
sim um prazer.” elas podem ver que também podem mu-
Fabíola: “Me ensinou mais a cuidar dar. Você pode pensar nas pessoas que
dos meus filhos.” gostam de você para sair desta vida. Olhe
Alan: “É uma oportunidade de fazer para suas companhias, tente fazer ami-
amigos, agora do bem.” zades com pessoas boas que realmente
André: “Eu quero agradecer por- queiram fazer coisas boas na vida.
que, por causa do auxílio deste grupo, A família também precisa saber
eu consertei minha vida.” que estar presente é muito importante
E, em uma evidente demonstração para ajudar na mudança dos filhos. O
de “dizer olá novamente”, Filomena que mais vale na recuperação do ado-
disse: “Isto que estamos fazendo aqui lescente é o apoio da família e a força
é uma homenagem ao senhor Fábio.” de vontade dos adolescentes. Lá dentro
Antes do encontro seguinte, a viúva funciona como uma reflexão para al-
de Fábio, Francine, foi convidada para guns, porque têm alguns que não que-
vir ao último encontro do “Grupo rem. Têm meninos que os pais já são do
Amizade”, como forma de homenage- crime, que não têm exemplo da família.
ar o marido. Ela aceitou prontamente e A família tem que ser muito presente,
veio na data agendada. tem que estar na escola, para que os fi-
No décimo primeiro encontro, to- lhos saibam que estamos perto. Não bri-
dos fizeram uma retrospectiva dos gue com o professor para não dar esse
momentos importantes do grupo e exemplo para seu filho. É importante
cada participante narrou a relevância também acompanhar os filhos em ati-
dos encontros para sua vida. Depois vidades de esporte e lazer.
eles redigiram um documento coleti- Precisamos elevar os pensamentos a
vo sob a forma de carta, com vistas a coisas boas, ter força de vontade, acredi-
expressar os desafios enfrentados, as tar na ajuda dos bons profissionais e ter
formas pelas quais lidaram com a si- confiança e amor. Aconselhe seu filho,
tuação e o que eles têm a dizer para que é só querer que consegue. Sai fora
outras pessoas que estão vivenciando das drogas, pois é um dinheiro fácil e sem
as mesmas circunstâncias. As narrati- valor. Para você que está desesperado
vas foram surgindo espontaneamente procure um acompanhamento psicológi-
e resultaram na carta a seguir: co, pois tira a pessoa do fundo do poço.

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Quando os relatos terminaram, a COLHEITA
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carta foi lida para o grupo que ouviu
atentamente às suas palavras. Ao final, Esta experiência foi produtiva em vá-
os participantes aplaudiram emocio- rios aspectos para todas as pessoas
nados e começaram a cantar a música que estiveram envolvidas no processo.
“O que é, o que é”. Isso foi possível porque os encontros
Sendo este o último encontro do gru- se constituíram em espaços seguros
po, foi realizada uma cerimônia de en- onde as pessoas puderam construir
cerramento que contou com a presença versões preferidas de suas identida-
de uma testemunha externa significati- des e de suas histórias. Entre os vários
va: a coordenadora do CREAS–Cariaci- aspectos produtivos desses encontros,
ca que entregou para cada participante destacam-se a vivência dos grupos
um certificado elaborado pela equipe e como:
assinado pelo secretário de Assistência 1 – espaço de apoio: as pessoas cria-
Social e vice-prefeito do município. ram um espaço no qual se sentiram se-
Para que a nova versão de uma his- guras e integradas para narrarem suas
tória seja fortalecida é fundamental histórias de vida e experiências sem
que haja um público que assista às julgamentos, preconceitos ou coerção.
novas significações. Todos os parti- Neste espaço, elas puderam refletir de
cipantes começaram a frequentar o maneira significativa e compartilhar
grupo sentindo-se reféns do problema sentimentos semelhantes entre si o
e sem outra perspectiva de vida a não que gerou uma rede social de apoio,
ser aquela relacionada a um rótulo pe- aprendizagem e respeito mútuo.
jorativo. Porém, nesse encerramento, 2 – espaço de externalização dos
eles receberam um documento que problemas: A partir da conversa de ex-
oficializava a participação deles nos ternalização, os participantes puderam
encontros e a capacidade de cada um perceber-se separados do problema e,
ser autor de uma história preferida de ao romper com os limites impostos
vida. A entrega dos certificados foi fo- pelo problema, começaram a sentir-
tografada e era nítida a satisfação dos -se fortalecidos. Eles começaram a
participantes. Francine se emocionou investir em histórias alternativas que
e disse que iria plastificar o certificado, demonstravam suas competências, ao
tido por ela como símbolo da alegria mesmo tempo em que o incentivo mú-
que Fábio sentia ao frequentar o gru- tuo valorizou o potencial individual e
po. Aguinaldo, após receber o certi- grupal.
ficado, colocou-o próximo ao peito e Cabe aqui destacar as histórias de
verbalizou que aquele era seu crachá: Fábio e Fabíola. Durante os dois pri-
que a partir daquele momento ele era meiros encontros, Fábio mantinha
um jovem a ser respeitado e um exem- uma postura de vítima, com uma visão
plo a ser seguido. pessimista da vida e ausência de pro-
Ao final do encontro, foi realizado jetos futuros. Além disto, demonstrava
um “amigo X” entre os membros do desânimo em investir afetivamente no
grupo e, como sempre, o tão gostoso filho, deixando claro o seu sofrimento
lanche compartilhado. Filomena trou- em relação a ele, visto que apresentava
xe um bolo para comemorar o seu ani- comportamento agressivo e forte en-
versário e declarou que, antes de com- volvimento com a criminalidade. Na
parecer aos encontros, nunca havia época, seu filho estava, inclusive, inter-
tido o desejo de festejá-lo. nado em uma clínica para tratamento

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de dependência química. No último só havia encontrado espinhos, porém Jardim de flores
encontro em que esteve presente, Fá- sentia que aquele grupo era como um Bianca Batalha de Almeida 83
Adriana Müller
bio relatou com satisfação que tinha jardim de flores, e escreveu no papel:
ido com um amigo à praia e que fez “Este grupo que encontrei aqui é um
uma visita ao seu filho na clínica. Uma jardim de flores. Nunca vou esquecer.”
mudança significativa de postura fren- O título desse artigo é uma homena-
te à vida. gem ao Fábio.
Fabíola também chegou ao grupo 4 – espaço de musicalidade: A mú-
sentindo-se fragilizada e incapaz de sica é um fator integrador e uma lin-
lidar com as situações da vida. Era guagem facilmente compreendida
nítida a falta de cuidado pessoal e pelas pessoas em diferentes contextos
ela mencionava sua dificuldade em e meios sociais. A música escolhida
despender tempo para cuidar de si. pelo grupo – “O que é, o que é” – teve
Durante o segundo encontro, Fabíola o efeito catalizador de uma narração
contou que o grupo era o único lugar coletiva. Por meio da música, o grupo
diferente que ela frequentava visto que pôde expor o que considera relevan-
só se deslocava de casa para o traba- te na vida e se fortalecer na proposta
lho, investindo o seu tempo em cuidar de enfrentamento dos traumas e in-
dos filhos e das tarefas domésticas. justiças. A música orientou cada um
No terceiro encontro, mencionou que no grupo no sentido de externalizar
contava para todos da família e do tra- o problema, percebendo-o como um
balho como os encontros estavam sen- impedimento que limita, e identificar
do bons para ela. Tanto foi assim que, os recursos internos que possibilitam
no quarto encontro, sua filha Filome- minimizar os efeitos do problema e
na passou a participar dos encontros tornar-se autor de sua própria história.
também. A conexão das pessoas com a cultura
Ambas as histórias demonstram popular, manifesta pela música, forta-
como que, no decorrer dos encontros, leceu cada um no grupo e deu sentido
eles resgataram suas vidas das mãos do à sua caminhada.
problema, começaram a reconhecer e 5 – espaço de importância das tes-
potencializar as suas competências e, temunhas externas no processo de
com isso, passaram a fortalecer suas reautoria: o papel das testemunhas
histórias alternativas. externas foi muito significativo nesse
3 – espaço de ampliação das narra- grupo. Inicialmente, cada participan-
tivas pessoais: em todos os encontros te era uma testemunha externa do
os participantes puderam fortalecer a processo de reautoria dos demais. A
versão preferida de suas histórias de escuta atenta, o interesse pela história
vida. Em especial, durante a metodo- que era contada, as ressonâncias com-
logia da “Árvore da Vida”, quando os partilhadas, tudo isso contribuiu para
participantes reconheceram seus valo- a transformação de todos os membros.
res, ampliaram a percepção de suas ha- Isso, por exemplo, pode ser constata-
bilidades e competências, e puderam do com o fortalecimento das histórias
planejar projetos de vida tais como preferidas de identidade de Fabíola:
abrir um restaurante, ter sua própria ela pode refletir sobre suas posturas
família ou ter seu próprio estúdio. e, gradativamente, modificá-las. Tor-
Durante a execução da atividade, Fá- nou-se agente de transformação já que
bio espontaneamente verbalizou que os ganhos conquistados não ficaram
até aquele momento em sua vida ele retidos em seu interior, mas ela passou

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a compartilhar seus aprendizados no autonomia e a percepção de si como
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trabalho e em casa, culminando na pessoa de valor e, com isso, que eles se
vinda de sua filha para o grupo. tornassem autores de uma versão pre-
A entrada da Filomena no grupo ferida de suas vidas. Aguinaldo verba-
demonstrou como as pessoas que es- lizou isso quando recebeu o seu crachá
tavam fora do processo percebiam os e disse que a partir daquele momento
benefícios dos encontros e evidenciou ele seria um exemplo a ser seguido. O
para os participantes o valor das his- mesmo pode ser visto com André, que
tórias alternativas que eles estavam conseguiu um emprego com compro-
construindo. Além disso, a partir do vação em carteira, e com Alan, que
momento em que Filomena passou a aceitou corrigir uma falha em sua ar-
participar dos encontros, ela começou cada dentária, o que contribuiu para o
a sentir os reflexos desse fortalecimen- fortalecimento da sua história prefe-
to grupal em sua vida: ela passou a cui- rida e lhe devolveu o desejo de sorrir
dar do seu corpo, fez uma reeducação para a vida.
alimentar e conseguiu perder 10 kg 7 – espaço de superação: todos os
durante os encontros. membros do grupo tiveram a opor-
Finalmente, a presença da coorde- tunidade de descobrir formas de
nadora do CREAS–Cariacica na ceri- acessar habilidades e competências
mônia de encerramento para a entrega e, com isso, criar estratégias mais
dos certificados assinados pelo secre- adequadas de enfrentamento dos
tário de Assistência Social e vice-pre- problemas. Além disso, o grupo tam-
feito do município mostrou que pes- bém viveu a experiência de superar
soas que não fazem parte do círculo o falecimento de um membro que-
social próximo dos participantes tam- rido. No intuito de ajudar o grupo
bém reconhecem como importante nesse processo, foi preciso ajudá-los
o processo de fortalecimento de suas a “dizer olá novamente”. A metáfora
identidades. Por estas testemunhas proposta pelo próprio Fábio auxiliou
externas serem autoridades, sua pre- nesse momento: ele dizia que quando
sença conferiu um aspecto oficial ao chegou ao grupo ele era como uma
processo: os participantes se sentiram flor murcha e que, a cada novo en-
reconhecidos como pessoas e como contro, o relacionamento com o gru-
cidadãos capazes de serem autores de po foi permitindo que ele voltasse a
suas próprias histórias de vida. ser uma flor cheia de vida. Os par-
6 – espaço de fortalecimento de ticipantes do grupo reconheceram e
vínculos familiares: a participação dos puderam falar sobre a importância
adolescentes no grupo trouxe outra de cada um deles na vida do Fábio e
dinâmica para os encontros, possibili- sobre a superação dele ao longo dos
tando a reflexão sobre os padrões fa- encontros. Foi um momento no qual
miliares, o reconhecimento de papéis o grupo pôde refletir e avaliar sobre a
dentro da estrutura familiar e a mobi- relevância do individual e do coletivo
lização dos recursos de cada membro na vida de cada pessoa – e de como
da família para o enfrentamento dos essa relação pode ser construtiva.
problemas. Além disso, a presença dos Apesar da nítida tristeza do grupo, os
adolescentes em um espaço junto com participantes não se deixaram limitar
membros significativos da família per- pela situação inesperada e fizeram
mitiu que aspectos de suas identidades a gravação do vídeo como forma de
pudessem ser fortalecidos, tais como homenagear o Fábio.

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8 – espaço de “regraduação”: os par- culpados para o de agentes de trans- Jardim de flores
ticipantes chegaram ao grupo trazen- formação, podendo compartilhar o Bianca Batalha de Almeida 85
Adriana Müller
do o rótulo de “famílias em conflito conhecimento construído nos encon-
com a lei”. No decorrer dos encontros, tros com outras pessoas que passam
os participantes se fortaleceram, indi- por situações parecidas.
vidual e coletivamente, o que lhes pos- Os reflexos positivos do grupo supe-
sibilitou identificar que eram maiores raram as expectativas. Primeiramente,
do que este rótulo, visto que possuem porque se tratava de um projeto inova-
habilidades e competências para trans- dor no contexto do CREAS–Cariacica.
formar o trauma em aprendizado e em Além disso, a literatura da área pouco
contribuição para pessoas que passam menciona a efetivação de grupos de fa-
pelas mesmas dificuldades. Neste con- mílias no contexto de execução de me-
texto, a cerimônia de encerramento didas socioeducativas em meio aberto.
possibilitou a “regraduação” da vida Finalmente, o fato de que os grupos
dos participantes: aqueles que outrora aconteceram depois do horário de tra-
chegaram rotulados e enfraquecidos balho das pessoas o que poderia tan-
se fortaleceram para o enfrentamen- to facilitar quanto dificultar a adesão,
to das dificuldades sociais e foram caso as pessoas alegassem cansaço ou
reconhecidos por isso. Aprenderam obrigações domésticas. Porém, apesar
a acessar suas identidades cheias de de todos estes aspectos, a maioria das
competência e estão preparados para pessoas convidadas compareceu e a
contribuir para a vida de outros. Fo- frequência foi assídua.
ram “regraduados”: deixaram de ser É importante destacar que as famílias
vítimas da situação e se tornaram compareciam ao grupo de forma volun-
agentes de transformação. tária e frequentemente afirmavam que
vinham ao grupo por prazer. Isso con-
duz à reflexão de que é possível ir além
COMPARTILHAR OS FRUTOS do caráter coercitivo e obrigatório neste
contexto de execução das medidas so-
Este artigo apresenta e discute uma cioeducativas por meio da formação de
aplicação da Terapia Narrativa e das um espaço que potencialize o papel da
Práticas Narrativas Coletivas em gru- família como corresponsável no pro-
pos de famílias no contexto de execu- cesso e parceira no trabalho com o ado-
ção de medidas socioeducativas em lescente. Para tanto, é necessário que a
meio aberto do CREAS–Cariacica. Os prática esteja fundamentada em prin-
resultados alcançados demonstram cípios teóricos e éticos que considerem
que esta teoria e suas formas de apli- a relação entre o profissional e os par-
cação contribuem no trabalho em gru- ticipantes segundo outro paradigma: o
pos neste contexto. que questiona a superioridade do espe-
No espaço do grupo foi possível a cialista e reconhece e respeita o conhe-
formação de um ambiente descontra- cimento local e as narrativas pessoais.
ído e seguro para que as pessoas pu- No caso do trabalho aqui apresentado,
dessem expor suas histórias, trocar os desafios estiveram relacionados a
experiências e construir histórias al- cuidados com o risco de imposição do
ternativas mais adequadas, tornando- pensamento dominante e do poder do
-se protagonistas de suas próprias conhecimento, bem como os esforços
vidas. Os participantes dos grupos pu- no sentido de diminuir a distância entre
deram sair do papel de vítimas ou de o discurso teórico e a prática.

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Em termos gerais, podemos iden- <http://www.ambito-juridico.com.
86 NPS 49 | Agosto 2014
tificar que a realização dos grupos br/site/?n_link=revista_artigos_
possibilitou a construção de versões leitura&artigo_id=11414>
preferidas da história de vida dos Araújo, T. A. A. (2012). A finalidade
participantes por meio da promoção da medida socioeducativa de inter-
de fatores protetivos como o fortale- nação. Âmbito Jurídico [online], 15
cimento dos vínculos familiares e so- (106), nov. 2012. Recuperado em 17
ciais, o desenvolvimento da autono- jan. 2014 de <http://www.ambitoju-
mia e a construção de projetos de vida. ridico.com.br/site/?n_link=revista_
Além disso, permitiu que a família se artigos_leitura&artigo_
tornasse mais resiliente, aprendendo id=12040&revista_caderno=12>.
formas mais adequadas de lidar com Brasil (2002). Estatuto da criança e do
o impacto negativo da história de fra- adolescente: Lei federal nº 8069, de
casso, em especial trabalhando para 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro:
potencializar as competências indivi- Imprensa Oficial.
duais e coletivas para a produção de Costa, J. S. (2011). Terapia de família
novos e melhores sentidos. e seus significados: narrativas sobre
Dessa forma, utilizar a Terapia Nar- as experiências dos clientes. Tese de
rativa e as Práticas Narrativas Coleti- Doutorado em Psicologia — Centro
vas em grupos de famílias no contexto de Ciências da Vida, Pontifícia Uni-
da socioeducação é algo viável, tendo versidade Católica de Campinas,
resultados relevantes para todos os Campinas.
participantes no processo. Esperamos Denborough, D. (2008). Práticas narra-
que, ao compartilhar essa experiên- tivas coletivas: trabalhando com in-
cia, outros profissionais que atuam divíduos, grupos e comunidades que
nesse contexto sintam-se convidados vivenciaram traumas. (A. Müller,
a desenvolver novas metodologias de Trad.). Adelaide, Australia: Dulwich
trabalho que impliquem criatividade Centre Publications.
e ousadia para executar as medidas Dias, A. C. G., Arpini, D. M., & Simon,
socioeducativas de acordo com o que B.R. (2011). Um olhar sobre a
estabelece o Estatuto da Criança e do família de jovens que cumprem
Adolescente. Para isso é importan- medidas socioeducativas.  Psicolo-
te que prevaleça o conforto de poder gia Social [online], 23 (3), p. 526-
inventar para além das receitas pré- 535. Recuperado em 23 março
-definidas e a liberdade de construir, 2013 de <http://dx.doi.org/10.1590/
desconstruir e reconstruir formatos S0102-71822011000300010>.
culturalmente responsáveis e respeito- Epston, D. (1998). “Catching up” with
sos que iluminem os recursos e com- David Epston: a collection of narra-
petências de todos os envolvidos. tive practice-based papers published
between 1991 & 1996. Adelaide, Aus-
tralia: Dulwich Centre Publications.
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lescente: o ato infracional e as novamente”: a presença de Michael
medidas socioeducativas. Âmbito White entre nós terapeutas fami-
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time da vida: um bate-bola constru- White, M. (1988). Decir de nuevo: hola!
tivo. Nova Perspectiva Sistêmica, Rio La incorporación de la relación per-
de Janeiro, 42, 42-56. dida em la resolución de la aflicción.
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dando crianças na superação da sepa- familiar sistemica – Michael White.
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