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SINÉIA RANGEL

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança
com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte


dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.

Copyright © 2017 Sinéia Rangel


Todos os direitos reservados.
FERA & AMBER © SINÉIA RANGEL

Produção Editorial
Revisão: Cris Castro
Diagramação: Sinéia Rangel
Capa: Sinéia Rangel
Análise Crítica: Carol Miranda e Cinthia Gutierrez
Imagen: Shutterstock (Denis Kichatof)

2º Edição, 2020 — Brasil


Todos os direitos reservados
NOTA DA AUTORA
A Duologia Contando Estrelas constituí-se por duas novelas, “Fera
& Amber” e “Liam & Hope”, ambas as histórias tem como tema central o
processo de MATERNIDADE/PATERNIDADE REAL, portanto NÃO
IDEALIZADO, apresentando CONTEÚDO SENSÍVEL (pré-eclâmpsia,
depressão pós-parto e uma breve discussão acerca do aborto relacionado
as circunstâncias vividas pelas personagens), os quais podem vir a
desencadear gatilhos emocionais. Caso você, leitora, não se sinta
confortável com algum dos temas, não leia esse livro.

A SEXUALIDADE NA GESTAÇÃO é abordada de modo natural,


como um processo saudável e importante na vida do casal, e se você não
curte cenas eróticas com gestante, aviso que ao longo da trama, elas se
fazem presentes.
SINOPSE
Há quinze anos Fera e Amber vivem uma relação exclusiva, ainda
que continuem a dizer que são amigos. Quando descobrem que serão
pais, não há espaço para outro sentimento se não amor, mas de repente,
os sorrisos são substituídos por lágrimas, a ansiedade por apreensão, e
aquele que seria o momento mais importante das suas vidas é sufocado
pela dor.

“Não posso dizer que não entendo ou discordo da escolha de


Amber, porque há uma parte muito grande do meu coração implorando
para que faça qualquer coisa para salvar o meu filho, para que ele possa
ter a chance de viver e crescer. Mas há o outro lado, não consigo imaginar
um mundo sem ela, e colocar sua vida em jogo não é algo que estou
disposto a fazer.”
Sumário

Prólogo
PARTE I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
PARTE II
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Epílogo
Prólogo

Estava atrasado. Estava sempre atrasado, enrolado com alguma


garota, onde fosse: biblioteca, corredores ou no apartamento que divido
com Gustavo. Enquanto ele é o exemplo de organização e
comprometimento com os estudos, sou o caos generalizado. Em vésperas
de avaliações e entrega de relatórios, viro a madrugada acordado, com a
cara enfiada nos livros; o restante dos dias, mal consigo me encontrar
sem consultar a planilha de aulas.
Ergo o pulso, verificando o horário. Tenho vinte minutos para
chegar na biblioteca e encontrar os livros que preciso. Deveria ter vindo
uma hora atrás, tinha tudo planejado, exceto o amasso no banheiro da
cafeteria. Foi um amasso e tanto. Qual era mesmo o nome dela? Não
lembro. Acho que não perguntei. O celular vibra, enfio a mão no bolso da
calça, sem parar de andar, porque não posso perder mais tempo.
— Fera, você não tinha que pegar alguns livros na biblioteca?
— Diga que você está na Widener.
— Você é um maldito filho da mãe sortudo — diz, gargalhando. —
Envia os títulos por mensagem e corre, porque só tenho um empréstimo
em aberto.
— Nerd.
— Não tenho a sorte de estudar por dez segundos e conseguir nota
máxima.
— Ah, tá. Enquanto você vai passar a madrugada comendo uma
gostosa, estarei comendo a porra desses livros e ouvindo seus urros.
— Por falar em gostosa, minha dupla é seu número.
— Mas?
— Nada.
— Você tem passado dias com essa garota, está dizendo que ela é
gostosa, mas não vai pegar e está jogando a bomba no meu colo? Tem
algum porém, Gustavo, te conheço.
— Gosto dela, é uma garota legal, por isso acho melhor manter a
amizade.
— Claro. Júlia é a única que tem sexo e amizade. — Sorrio. — Isso
porque você, obviamente, não é apaixonado por ela.
— Não sou apaixonado por ela — ele resmunga. — Júlia é
diferente, e é o melhor sexo da minha vida.
— Quero ver qual será sua reação quando ela decidir diversificar.
— Ela não vai sair por aí fazendo sexo com qualquer um, Fera —
diz em tom de irritação. — Manda a lista.
— Segura a gostosa aí, quero conhecer. — Desligo.
Cheguei à biblioteca faltando cinco minutos para fechar. Estava
ligando para Guga quando o vi, junto ao balcão para retirada dos livros.
Na frente dele, segurando uma pilha de livros, havia uma garota baixinha,
cabelos castanhos, usando coturnos, jeans e um moletom.
Guardei o celular, coloquei as mãos nos bolsos do moletom e me
aproximei, examinando entre as mesas e corredores dentro do meu
campo de visão; além do rapaz que estava sendo atendido pela
bibliotecária e acabava de sair, não havia mais ninguém.
É ela? O meu número? Sorrio em pensamentos. A garota tem
metade da minha altura, uma bunda legal, pequena, mas empinadinha,
isso é tudo o que há para ser visto; o moletom está engolindo-a, o que é o
mesmo que usar uma camiseta com um aviso: “mantenha distância, não
estou interessada em sexo”. Gustavo está me zoando, filho da mãe.
— Encontrou todos? — pergunto ao Guga, correndo os dedos
pelas lombadas dos livros.
— Não exatamente. — Ele pisca e olha para a garota.
Ela acabara de dispor os livros sobre o balcão e estava falando
com a bibliotecária. Meus olhos descem para sua bunda, não fui justo
quando a descrevi como legal, ela é maravilhosa, tão redonda e firme.
Mas o que estou fazendo? Ergo os olhos e acerto um tapa na cabeça do
Guga.
— Quê? — Ele sorri da minha desgraça.
— Você está rindo porque não é você quem vai levar bomba. Só
está faltando o livro de...
— Desculpe — diz a garota. Viro novamente e ela está sorrindo,
olhando-me de lado. — Estou com o último volume disponível —
completa, levantando o livro que pode decidir o meu futuro.
Um oito no meu escore e adeus Harvard Medical School, nem
mesmo o meu currículo de ouro, que inclui missões na África, trabalho
voluntário na Cruz Vermelha, asilos, grupos de câncer e em situações de
desastres, poderá me ajudar. De repente, meu cérebro está listando
possibilidades de carreiras que posso ingressar quando terminar o
Harvard College com a merda de um oito manchando meu histórico
acadêmico.
— Podemos negociar? — Franzo o cenho pensando se devo usar o
meu olhar de apelo. — Prometo que amanhã ele é todo seu.
— Amber, esse é o Fera — diz Guga.
— Fera? — Ela coloca o livro no topo da pilha de livros sobre o
balcão. — Você tem que me mostrar como é possível estudar na véspera
e obter nota máxima — comenta, estendendo a mão para me
cumprimentar.
Seguro sua mão, seu toque é frio e a pele macia. Um arrepio incide
na minha nuca e engulo em seco, olhando-a fixamente. As maçãs do seu
rosto e o nariz têm pintinhas suaves, do tipo que podem ser facilmente
escondidas com maquiagem, mas ela não está escondendo-as. Seu olhar
me observa, curioso, e os lábios se curvam em um sorriso delicado.
—Então? — Ela sorri mais abertamente.
— Fera — digo. Sei que ela sabe, Guga acabou de nos apresentar,
mas não consigo pensar em mais nada para dizer.
— Sua vez, Fera. — Ela puxa a mão e aponta para o balcão.
— O que foi isso? — Guga murmura.
— Me dá logo os livros e cala a boca — resmungo baixo para ela
não nos ouvir.
— Faça melhor que isso, por favor — ele provoca, prendendo o
riso.
Dou as costas ao Guga, ignorando seu último comentário e
deposito os livros no balcão. Amber está ao lado. A observo pelo canto do
olho, ela guarda alguns dos livros na bolsa, depois de fechá-la, coloca no
ombro e pega o restante enquanto se vira e conversa com Guga.
— Sua senha, por favor — a bibliotecária pede. — Aqui está o
recibo. Boa noite.
— Obrigado, boa noite. — Pego os livros, segurando-os com
ambos os braços, numa espécie de abraço vertical.
— Você vai mesmo ler tudo isso hoje? — Amber arqueia a
sobrancelha.
— Vocês podem conversar lá fora? Preciso fechar a biblioteca,
todos os outros já foram. — A bibliotecária força um sorriso.
— Oh, sim. Desculpe — diz Amber. — Boa noite.
Nós saímos, conversando, e continuamos andando. Não sei eles,
mas não estava prestando atenção para onde estávamos indo, apenas
queria continuar ouvindo-a.
— Garotos, boa noite. — Amber interrompe a caminhada. — Nos
vemos amanhã? — pergunta, oferecendo-me o livro.
— Você mora nos dormitórios?
Pego o livro. Primeiro, porque preciso fazer a leitura para amanhã,
segundo, porque é um motivo para reencontrá-la.
— Divido uma casa do segundo ano com outras quatro garotas —
explica. — Acho que já ouvi seu nome por lá. — Ela morde o lábio e
estreita os olhos. — Boa sorte, Fera — diz com um sorriso atrevido. — Até
mais, Guga.
— Boa noite, Amber. — A voz do Guga soa distante, olho para trás
e vejo que ele está alguns metros à frente. — Peça logo o número dela,
Fera.
— Cala essa boca, Gustavo! — digo, alto demais.
Amber sorri e seus olhos assumem um ar de curiosidade outra vez.
— Você pode mandar o livro pelo Guga — diz, afastando-se. —
Ou... — Ela para e vira-se de novo na minha direção.
Os olhos vacilam, fitam o chão, volta-se para trás, na direção que
ela vai seguir, e então me examinam com cautela. Ela está indecisa.
— Posso te acompanhar até o dormitório?
— Você precisa estudar. E não estou com paciência para lidar com
as garotas, se nos virem juntos... — ela pausa. — Você fez sexo com
algumas delas e isso é uma merda, porque... não sei, só não quero fazer
parte disso.
— É realmente uma merda. Onde você estava escondida, enquanto
fazia sexo com a colega de quarto errada?
— Na biblioteca. — Ela sorri, as maçãs do rosto enrubescendo. —
Só uma correção, são as colegas de quarto, no plural e múltiplo de três.
— Porra! Você pode mudar de colegas de quarto?
— Você pode parar de fazer sexo com todas?
— Uou! — Finjo uma expressão de dor e ela gargalha alto. —
Amber, quer sair comigo?
— Que tal assim, nós vamos sair, mas só vamos fazer sexo, se
você não transar com outras garotas por três meses.
— Isso é uma aposta?
Ela pensa por alguns segundos.
— Sim — responde olhando nos meus olhos.
— Qual minha punição, caso perca?
— Faço sexo com o Guga e você vai ouvir tudo do seu quarto. —
Ela arqueia a sobrancelha, me desafiando.
— Por você, viro celibatário.
— Você pode pegar meu número com o Guga — diz alto o bastante
para ele nos ouvir.
— Finalmente! — Guga exclama. — Agora vamos que está frio,
porra.
— Te ligo amanhã.
— Não. — Ela me dá as costas e segue caminhando.
— Amber?
Ela olha para trás, sorrindo.
— Me encontre na biblioteca, depois do almoço — pede. Não, ela
ordena, mas não me importo. Estarei na biblioteca e não vou me atrasar.
— Fera, vamos! — Guga grita.
— Onde está o carro? — pergunto, apressando o passo para
alcançá-lo.
— Logo ali na frente. Sabia que ela era seu número — comenta
entre risos. — Pode me agradecer por apresentá-la.
— Fizemos uma aposta, vou ficar três meses sem sexo.
— Por que você concordaria com isso?
— Porque ela só vai sair comigo assim.
— E se você fizer sexo?
— Ela faz sexo com você.
— Quê?! Ficou maluco, porra?
— Eu não vou perder.
— João Guilherme, seu filho da mãe, juro que vou te socar se você
perder essa aposta, porque serei obrigado a rejeitá-la por sua causa e vou
perder a amizade dela. Que aposta filha da puta, é essa?
— Não importa, Guga. Vou vencer, como você mesmo disse, ela é
meu número.
"Não há desespero tão absoluto como aquele que vem com os
primeiros momentos de nossa primeira grande tristeza.
Quando ainda não sabemos o que é ter sofrido e ter se curado.
Ter se desesperado e recuperado a esperança."
One Tree Hill
Quinze anos depois...

Meu plantão havia acabado horas atrás, estava de saída quando


Amber me ligou. Nós trabalhamos no mesmo hospital, sou neurocirurgião
e ela pediatra, mantemos um envolvimento íntimo desde a universidade,
exclusivos, mas nada de rótulos. A verdade é que moramos juntos há
mais de cinco anos, embora cada um tenha seu apartamento e nossas
roupas fiquem espalhadas entre ambos. Estamos onde o outro está e sou
feliz assim, porque ela me faz feliz.
Atendi a ligação me desculpando pelo atraso e avisando que
estava chegando ao estacionamento. Na maior parte das vezes tentamos
conciliar os nossos horários, e na nossa profissão estamos mais do que
habituados às intercorrências, como hoje. Amber ainda estava na ala
pediátrica com uma paciente de seis anos com fratura aberta no crânio,
com afundamento, vítima de um acidente automobilístico. Não esperei que
ela prosseguisse com as informações, disse que estava correndo para a
emergência pediátrica.
Seis horas depois estava deixando o centro cirúrgico. Amber
esperava do lado de fora. Ela deveria ter ido embora, no entanto é sempre
assim, ela fica aflita a cada possibilidade de óbito de uma criança,
independente do seu plantão ter ou não terminado, só vai embora depois
de dar a notícia aos pais, seja para vibrar com eles ou para lamentar sua
perda. Nós temos nosso código, quando a cirurgia é bem-sucedida, sorrio
para ela, do contrário, balanço a cabeça. Tiro a máscara e olho para ela
sorrindo, posso ver o suspiro de alívio. Amber vem ao meu encontro e
joga os braços nos meus ombros, me abraçando.
A mãe da garotinha morreu no acidente, o pai que chegou ao
hospital minutos depois que ela deu entrada, estava transtornado. Quando
o reencontramos após a cirurgia, sua primeira pergunta foi se a filha
estava viva e a confirmação foi seguida por um riso encharcado de
lágrimas, que não desapareceu mesmo quando ponderei sobre a
gravidade do caso, explicando que teríamos que esperar para ver como
ela responderá ao tratamento.
— Acho que perdemos a reserva do jantar — comento, enquanto
caminhamos pelo estacionamento, abraçados.
— Por que ainda fazemos reservas? Teve alguma vez que
conseguimos ir?
— Não que me lembre. Quer tentar encontrar um restaurante vinte
e quatro horas ou nos viramos com o que tiver na geladeira? — Destravo
o alarme do carro.
— O que tiver na geladeira está ótimo.
— Então é melhor irmos para o meu apartamento.
— Você está insinuando que não tenho nada na geladeira? — Ela
remove a mão das minhas costas e para me encarando com as
sobrancelhas arqueadas, tentando parecer brava. Não sei como ela pensa
que consegue me intimidar. Amber tem um metro e meio, ela é uma
miniatura, enquanto tenho quase um metro e noventa.
— Eu ainda não tive tempo de reabastecer sua geladeira e você só
compra iogurtes e enlatados, portanto não é uma insinuação, é a
realidade.
— Nos vemos no meu apartamento. — Ela destrava o alarme do
carro. — Temos planos para amanhã?
— Ficar na cama. — Meneio a cabeça. — Sem roupas.
— Perfeito! — Ela sorri e entra no carro.
Sentado, com as mãos no volante, a observo jogar os sapatos de
salto alto no banco de trás e virar-se para pegar o mocassim. Espero por
ela, é um hábito, sempre dirijo atrás dela, alguma parte irracional do meu
cérebro acredita que estar de olho nela garante sua proteção.
Em vinte minutos, estávamos no estacionamento do prédio. Antes
que ela pudesse descer do carro, estava abrindo a porta e puxando-a
para meus braços.
— Bolsa — diz, sorrindo. — Preciso da bolsa, Fera.
— Acho que não — murmuro, beijando seu pescoço.
— Sim, preciso. — Ela se desvencilha do meu abraço, gira o corpo
e me beija. — Dois segundos.
— Nem um segundo a mais. — Mordo seu lábio.
Amber umedece os lábios, sorri e se inclina para o carro, curvando-
se para alcançar a bolsa.
— Podemos ir — afirma, me entregando a bolsa. — Leva para mim.
— Você está transportando órgãos? — provoco, exagerando no
peso da bolsa.
— Tenta de novo. — Ela entra na brincadeira.
— Você sequestrou um bebê?
— Quente, muito quente — diz, enquanto entramos no elevador.
— Vou dizer que você me obrigou a te ajudar.
— Você parecia bastante animado em me ajudar. — Sorri
maliciosa.
— Amber? — Estreito os olhos, analisando-a. O elevador abre no
nosso andar. Ela faz uma expressão inocente e sai, tentando parecer
desinteressada. — Bebê?! — pergunto, adiantando o passo para alcançá-
la. — Nós vamos ter um bebê?
— Vamos? — Vira-se para mim, os olhos fitando os meus. — Um
palpite, a resposta está nas suas mãos.
Olho para a bolsa, abro o zíper e remexo, procurando pela minha
resposta, talvez um envelope ou um teste de farmácia. Sinto a excitação
provocada pela feniletilamina, seguida pela agitação da noradrenalina, e a
minha frequência cardíaca entra em frenesi quando encontro um envelope
com o timbre do hospital entre as suas necessaires.
Seguro o envelope em uma das mãos e uma das alças da bolsa
pende do meu braço, envergando rumo ao chão. Amber pega a bolsa e
pendura na maçaneta da porta. Ainda estou olhando o envelope. Ela
coloca as mãos sobre as minhas e nossos olhos se encontram, ela é
como brisa, suave e serena, transformando meus dias em calmaria. Olho
novamente para o envelope. Sinto as lágrimas se acumulando, respiro
alto e pesadamente.
Rasgo o lacre e puxo o papel, então vejo um cartão grudado na
parte interna, com a frase: “Oi, papai! Mantenha a calma, pois estou
chegando”. Desdobro o papel e leio, Beta-HCG positivo.
— Nós vamos ter um bebê! — exclamo, abraçando-a, de modo a
levantá-la do chão. Amber cruza os braços no meu pescoço e sorri,
enquanto choro e desfiro beijos sem fim nos seus lábios. — Um bebê, o
nosso bebê.
— Nossa pequena ferinha.
— Somos pais. — A coloco no chão. — Dez minutos atrás éramos
apenas nós e agora somos pais. — Coloco as mãos sobre seu abdômen.
— Nosso bebê está faminto, papai — ela comenta, afagando minha
barba.
— Você não pode ficar tantas horas sem se alimentar. — Enfio a
mão no bolso da calça para pegar a chave.
— Eu sei, mas na correria do hospital acabo esquecendo. — Ela
retira a bolsa da maçaneta. — Por que sua chave está sempre mais
acessível?
— Porque não carrego uma bolsa cheia de bolsas. — Destranco a
porta. — Vamos começar a caça aos legumes, vou até cruzar os dedos.
— Agora que tenho que comer por ele também, fiz o sacrifício de
escolher algumas frutas e legumes quando fui ao mercado. — Ela alisa a
barriga.
Fecho a porta e a pego no colo.
— Eu te amo — digo, levando-a para a cozinha. — Acho que está
na hora de assumirmos que somos mais do que amigos com benefícios.
— Todos sabem.
— Eu sei. — A coloco sentada na mesa. — Vamos apenas parar de
negar e morar juntos de uma vez.
— Oficialmente? — Ela trava as pernas no meu quadril.
— Oficialmente.
— O seu apartamento tem duas suítes, uma pode ficar para o
bebê.
— O nosso apartamento — corrijo. — Podemos redecorar.
— Gosto dele do jeito que é.
— Amanhã fazemos a sua mudança?
— E o nosso plano de ficar na cama?
— Podemos adiar a mudança em um dia. — Sorrio.
— Perfeito.
— Vou preparar o nosso lanche da madrugada.
Depois de um beijo, caminho até a geladeira. Abro e olho para trás,
a vejo sorrir, satisfeita ao ver minha expressão incrédula diante das
prateleiras cheias de frutas e legumes, além dos habituais iogurtes.
— Sou uma boa mãe, tudo de bom e saudável para o nosso bebê.
— Você é uma mãe incrível.
Quando chegamos em casa após um plantão de 48 horas, tudo em
que conseguimos pensar é comer e dormir. Assim, depois de uma refeição
rápida, tomamos banho juntos e desabamos na cama, sexo não é nem de
longe uma possibilidade.
Poderíamos ir cada um para o seu apartamento, no entanto, nunca
foi assim, porque mesmo que tenhamos passado os últimos quinze anos
repetindo que somos amigos a cada vez que comentam sobre o nosso
relacionamento, nunca fomos apenas amigos.
Às vezes, quando penso em nós, sinto que somos um casal de
velhos, não porque sejamos velhos, mas porque nós estamos juntos há
muito tempo e temos manias de casais, hábitos que foram se
consolidando ao longo dos anos. Uma dessas manias é que sempre
dormimos de conchinha quando estamos cansados demais para fazer
sexo.
Odeio dormir de conchinha porque o cabelo dela fica espalhado no
meu rosto e meu nariz fica pinicando, contudo, adoro sentir seu corpo
moldado ao meu, adormecer com o nariz cafungando sua nuca e
impregnado pelo seu cheiro. Por isso, quando ela deita e rola para o meu
lado, encaixando a bunda na minha pélvis, meu corpo obedece ao seu
pedido de aconchego, envolvo seu abdômen e afundo o rosto entre seus
cabelos, até que meu nariz resvale sobre a pele suave da sua nuca.
Ontem à noite, não estava apenas cansado, saber que vou ser pai,
que um pequeno ser que é parte de nós dois e do nosso amor está a
caminho, me deixou eufórico e custei para adormecer. Meu cérebro e
corpo estavam em guerra, um queria desligar pelas próximas dez ou doze
horas, o outro tinha mil ideias para o quarto do bebê e uma lista de
possíveis nomes.
Com os olhos fechados e o rosto enterrado no seu pescoço, aos
poucos o som dos seus batimentos foi se impondo sobre meus
pensamentos e imaginei como será quando ao invés de um, irei
adormecer ao som de dois corações. Foi a primeira vez que sonhei com o
nosso bebê. Não saberia dizer se era um menino ou uma menina, mas era
nosso, meu e de Amber. O filho que desejamos juntos, que tantas vezes
foi o assunto das nossas conversas de madrugada e motivo de pequenas
discussões quanto ao que ele deveria herdar das nossas personalidades.
No final da noite, tudo terminava em sorrisos e sonhos.
É real, nosso bebê deixou de ser sonho e eu não podia estar mais
feliz. Acordei sorrindo, olhei o relógio na mesinha, eram duas da tarde.
Levantei, fui ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes e, em seguida,
fui procurar por Amber.
A encontrei no sofá, com o notebook no colo, e um pote de
manteiga de amendoim entre as pernas. Ela ainda estava vestida com
umas das minhas camisas, seu pijama favorito, de calcinha e meias.
— Você está descumprindo o nosso plano do dia — digo, pegando
o notebook e colocando sobre a mesa de centro.
— Não queria te acordar, mas estava difícil manter minhas mãos
longe de você. — Ela puxa o cordão da minha calça de pijama.
— Manteiga de amendoim? — Estreito os olhos, pego o pote e a
colher que ela está segurando entre os lábios e coloco no chão. — Assim
vou te colocar de castigo — sussurro, subindo no sofá e debruçando-me
sobre seu corpo. — O que você estava falando sobre deixar as mãos
longe de mim? — provoco quando ela enfia as mãos dentro do pijama e
aperta minha bunda.
— Agora que você acordou — ela morde meu lábio e abaixa o
pijama, liberando meu pau —, minhas mãos vão ficar exatamente aqui —
completa em sussurros, voltando a apertar minha bunda e empurrando-
me entre suas pernas.
— Divirta-se. — Puxo sua calcinha de lado.
— Com prazer.
Amber pressiona nossas pélvis e meu pau a penetra, rápida e
profundamente. Ela geme e finca as unhas no meu quadril. Não demorou
para que a envolvesse pela cintura e a trouxesse para mim. Sentado
sobre os joelhos, as calças enroladas nas minhas panturrilhas, e com ela
no meu colo, cavalgando-me, minhas mãos apalpam seus seios por baixo
da camisa. Ela tem seios pequenos e em torno da aréola tem pequenas
pintinhas, quando está excitada elas ficam levemente rosadas.
Seguro a barra da camisa e puxo, erguendo-a e jogando-a sobre o
encosto do sofá. Ela continua quicando no meu colo e as unhas retomam
os arranhões nos meus ombros, assim que a camisa passa por sua
cabeça. Inclino o rosto para seus seios e deslizo a língua sobre seu
mamilo, mantendo os olhos abertos para apreciar o rubor de excitação
das suas pintinhas. Sinto os primeiros sinais do seu orgasmo, o prenúncio
do tremor nas suas pernas e o aperto firme das suas mãos.
Abraço seu corpo e a faço deitar, tomando seus seios no calor dos
meus lábios e estocando forte. Amber passa as pernas pelo meu quadril e
puxa meus cabelos, gemendo deliciosamente. Com o rosto preso aos
seus seios, ergo um braço e guio a minha mão para seus lábios,
contornando-os. Ela suga meu dedo, chupando-o morosamente, em
oposição à urgência com que seus pés me impelem a penetrá-la.
Mordo ambos os mamilos e percorro com a ponta da língua seu
busto, seguindo pelo pescoço, até repousar sobre seus lábios, que me
recebem famintos, ansiosos por tragar os murmúrios do nosso gozo. Seus
dedos percorrem minhas costas, deslizando sobre a camada de suor.
Minhas mãos estão emaranhadas nos seus cabelos, segurando seu rosto
com delicadeza, enquanto nossas línguas se divertem com chupões
lascivos.
Ela arqueia a coluna, as pernas espasmam, sinto meu pau
escavando seu interior, lambuzado pela sua umidade, e as contrações da
sua boceta apertando-o, conduzindo-me ao êxtase. Do beijo devastador
de minutos atrás só restaram arquejos e o toque quente dos nossos
lábios. Ainda segurando seu rosto e com os corpos conectados, sugo seu
lábio inferior e ela retribui com um selinho, alisando meus cabelos.
— Posso ficar aqui para sempre.
— Não pode, não. — Ela sorri. — Mas se pudesse, eu iria gostar.
— Vamos comer e depois vamos para a cama, ficar pelados. Bem
assim.
— Ótima ideia. — Ela dá um tapa na minha bunda. — Embora,
tenha que confessar que tenho tesão por seus pijamas.
— Vou ter que discordar — comento, levantando-me. — Você tem
tesão é pelo monstro que há embaixo do pijama. — Pisco e ergo o pijama.
— Não nego, mas adoro o fato dele ficar se insinuando debaixo das
suas calças. — Ela senta e puxa o cordão do meu pijama, amarrando-o.
— Minha barraca favorita — completa, umedecendo os lábios.
Estávamos na cama por algumas horas. Deitados, assistindo TV,
conversando, fazendo sexo ou apenas abraçados, o importante sempre
foi estarmos juntos, nos amando, e é o que fazemos na maior parte do
tempo em que estamos de folga. Amber está deitada de costas, uma das
mãos brinca com o meu cabelo, massageando o couro cabeludo. Estou
deitado de lado, apoiado sobre o cotovelo, com o rosto na altura do seu
abdômen, e desenho círculos no seu ventre. Olhando com atenção
observo um pequeno aumento das suas mamas, nenhuma outra alteração
anatômica visível.
O resultado do exame sugere que estamos entrando na oitava
semana, o que significa que o embrião evoluiu, logo sua cintura vai
alargar-se e a barriga vai começar a crescer, porque o útero estará se
expandindo para acomodar o nosso bebê que agora é um feto, entre 14 e
20 milímetros e cerca de uma grama. Tão pequenino, ainda não pode
sentir o deslizar suave dos meus dedos sobre o abdômen da sua mãe,
mas continuo acariciando-o de qualquer jeito, porque é o meu jeito de
dizer “seja bem-vindo”.
— Você acha que será um menino ou uma menina? — pergunto,
olhando meus dedos moverem-se devagar.
— O que você acha?
— Menino — digo. — Não, uma menina — corrijo em seguida.
Amber sorri. Ergo os olhos, as pintinhas nas maçãs do seu rosto ganham
cor, iluminando o sorriso. — Ah. Não sei. Gêmeos?
— Sou muito pequena para carregar duas ferinhas. — Ela libera
meus cabelos e escorrega a mão para meu rosto, afagando minha barba.
— Nosso primeiro ultrassom será na sexta-feira, estou ansiosa para saber
se está tudo bem com ele — comenta, repousando a mão esquerda no
abdômen. — Ou com eles.
— Um, dois ou três, estou contando os minutos para ouvir seu
coração.
— Três não, Fera.
Sorrio, beijo seu abdômen e me ajeito no travesseiro, ao seu lado.
— Será que ele terá suas pintinhas? — Aperto seu nariz.
— Ou as suas covinhas? — Ela deita de lado e repousa a mão no
meu bíceps. — Acho que não quero saber o sexo antes do nascimento.
— Como vamos escolher o nome?
— Quando vermos o rostinho dele.
— Amber. — Prendo uma mecha dos seus cabelos entre os dedos.
— Sabia que chegaríamos aqui desde a primeira vez que te vi.
— Não dava muito por você — diz, sorrindo. — Mas o cara que
conheci naquela noite na biblioteca era tão diferente de tudo o que tinha
escutado a seu respeito.
— Guardei o melhor para você — digo, olhando nos seus olhos.
Aproximo nossos lábios, encostando-os levemente. Amber prende
meu lábio inferior entre os dentes e rola o corpo sobre o meu. Em um
movimento reflexo, a abraço guiando minhas mãos para sua lombar. Por
alguns minutos não nos movemos, o sopro doce da sua respiração
recobre meus lábios, os seios marcam o ritmo do seu coração e os olhos,
os mais curiosos que conheci, sondam o que há de mais íntimo no meu
ser.
— Quer saber por que propus aquele desafio?
— Sempre achei que foi uma tentativa de me afastar.
— Errado. — Ela me dá um selinho. — Você não se interessaria
por mim sem o desafio e queria conhecer o cara por trás do loiro, alto,
sexy e com lindos olhos castanhos atrás daqueles óculos. Eu iria
acrescentar mais itens a essa lista no dia seguinte e mais alguns nos
meses seguintes.
— Tatuado, inteligente. — Finjo pensar.
— Doutor modéstia. — Ela gargalha.
— Só aceitei o desafio porque faria qualquer coisa para sair com
você — confesso. — Meu Deus, agi feito um garoto babão na biblioteca,
fiquei parado diante da garota baixinha, com pintinhas tímidas nas
bochechas e olhos castanhos cheios de curiosidade, sem conseguir
pensar em nada para dizer.
— Foi fofo. — Ela arrasta os lábios em minha barba, deslizando o
nariz nos contornos do meu rosto. — E divertido.
— Quanto mais te olhava e te ouvia falar, mais queria desvendar os
mistérios por trás desses olhos. — Subo uma mão por sua coluna,
acariciando-a.
— Você conseguiu?
— Sim. E não. — Ela ergue a cabeça e me analisa, com olhos
estreitos, sobrancelha arqueada e um meio sorriso. — Há sempre mais
para ser descoberto, por isso eles nunca param, estão sempre ansiosos
por um novo dia, assim como você. Seus olhos são um reflexo da sua
personalidade, se não fosse sua curiosidade, não teria nenhuma chance
com você.
— Eu te amo, Fera. — Ela me beija. — Amo que você seja o pai do
meu bebê, que você tenha feito cara de bobo quando o Guga nos
apresentou, amo o neurocirurgião brilhante que você é, amo cada uma
das suas tatuagens. — Ela morde o lábio. — Amo como você fica com
uma expressão séria e de bom moço quando coloca os óculos,
principalmente quando está sem camisa, exibindo o contraste com as
tattoos, e mais ainda quando está assim... — Ela umedece os lábios e
fecha as pernas, aprisionando e friccionando meu pau. — Nu — sussurra.
Sinto seus mamilos intumescidos e sua umidade, espalhando-se entre as
coxas. — Ah! — murmura, lambendo meus lábios. — Amo o Monstro e o
piercing na sua glande, ele realmente me deixa louca — geme. Amber
suspende o quadril e posiciona meu comprimento na sua entrada. — Mas
o que amo acima de tudo é você — diz, enquanto seu corpo me acomoda
no seu interior.
— Não mais do que amo você — sussurro, prendendo seus
cabelos entre os dedos e puxando-a para meus lábios.
Decidimos que podíamos aproveitar o restante da noite arrumando
parte da mudança, porque assim quando acordássemos era só levar tudo
para os carros e ir para o meu — digo, nosso — apartamento. Tomamos
banho, vesti uma calça de pijama, sem nada por baixo, como sempre, e
fui preparar o jantar, depois de alguns amassos entre as prateleiras e
cabides do closet, deixando-a organizando as malas com nossas roupas.
Na cozinha, sozinho com meus pensamentos, não posso afastar
uma ideia que há anos me acompanha. Selado entre as camadas de
couro da minha carteira, escondido embaixo da nossa fotografia, o anel
que comprei anos atrás, que deveria ter colocado no seu dedo quando
completamos dez anos juntos, mas que por alguma razão continua em
segredo.
Ecos de um pedido de namoro recusado me dizem o porquê
escondi o anel quando deveria ter entregue a ela. A pedi em namoro três
meses após conhecê-la, estávamos saindo durante aqueles meses,
apenas como amigos, e quando cumpri o desafio, a convidei para um
encontro. Nos beijamos pela primeira vez e fiz o pedido, mas ela disse
que não podíamos namorar, pois estragaria a relação que tínhamos
construído, era melhor sermos amigos com benefícios, assim não nos
magoaríamos. Aceitei e, desde então, só estive com ela.
Quinze anos juntos e continuamos amigos com benefícios.
Falamos sobre filhos, fazemos planos a longo prazo, mas nunca voltei a
pedi-la em namoro ou mencionei que, um dia, quero me casar com ela,
porque não quero que ela pense que estar com ela não é o bastante.
Sou um covarde.
Fiz o jantar, montei a mesa para uma noite romântica improvisada,
peguei o anel na carteira, tirando-o do seu esconderijo pela primeira vez
desde que o comprei, e no final ele acabou no cesto de roupa suja,
enrolado no guardanapo em que derramei vinho de propósito, para
impedir que ela o descobrisse. Como se não fosse o bastante, quando
Amber perguntou o que estávamos comemorando, disse que era um
jantar de despedida do seu apartamento. Poderia ser mais covarde? A
resposta é sim.
O dia estava amanhecendo quando encerramos a preparação para
a mudança, o restante das coisas teremos que trazer caixas para embalar
e os móveis iremos deixar no apartamento. Eu deveria ter pego o anel no
cesto de roupas, contudo esqueci. Amber está com as funções fisiológicas
em um ritmo diferente, em virtude da gestação, o que não tinha percebido
antes. Quando acordei, ela estava sentada na poltrona ao lado da cama,
com as pernas dobradas e tinha uma expressão pensativa.
— Acordou faz tempo?
— Levantei para ir fazer xixi, aí percebi que estava com fome,
quando terminei de comer estava sem sono, então fui colocar a roupa na
máquina, porque podíamos levar os uniformes limpos e encontrei isso. —
Ela levanta a mão direita.
Não preciso olhar, sei o que ela encontrou, mas meus olhos voltam-
se imediatamente para seu dedo anelar. Finalmente sei como o anel
ficaria no seu dedo. Afasto os lençóis, sento na beirada da cama de
costas para ela, pego os óculos na mesinha de cabeceira, visto-os e
levanto, passando a mão pelos cabelos. Não tenho uma boa desculpa
para o anel.
— Você por acaso sabe como este anel foi parar na nossa roupa
suja? — Seu tom é sério.
— Não — minto. Ando pelo quarto, evitando seu olhar.
— Fera?
— O anel é meu, deve ter caído por acidente no cesto.
— Você pode me olhar e repetir o que acabou de dizer?
— Não — digo, virando-me para olhá-la. — Porque é mentira e não
minto para você, nunca menti e não vou começar agora.
— Que bom — murmura, contornando o anel. — Quando você me
comprou este anel?
— No nosso aniversário de dez anos.
— Uau! — Ela engole em seco e abaixa os olhos para a joia.
— Ia propor ontem à noite — confesso.
— É lindo, Fera.
Caminho até a cama e sento, ao lado da poltrona onde ela está.
— Amber. — Abaixo os olhos e respiro profundamente. — Estamos
juntos há muito tempo — digo, erguendo a cabeça e fitando seu olhar, um
tanto assustado. — Quando penso onde quero estar daqui a dez, vinte ou
trinta anos, não vejo um lugar, nem mesmo um país. — Dou de ombros.
— Onde você estiver, é lá que quero estar. — Aperto os lábios, levanto da
cama e agacho em frente à poltrona, segurando suas mãos. — Não quero
mudar nada na nossa relação.
— Não? — Ela se inclina e beija minha testa.
— Não. Vivemos como se fôssemos casados. — Ela franze o
cenho. — Não negue. Amigos com benefícios não ficam exclusivos por
quinze anos, não moram juntos, mesmo que extraoficialmente e,
certamente, não planejam ter filhos.
— A verdade?
— Por favor.
Amber aponta para a cama. Levanto, segurando sua mão, ela
descruza as pernas, desce da poltrona e subimos na cama. Espero que
ela arrume os travesseiros na cabeceira, tomando o tempo que precisa, e
quando termina, recosto nos travesseiros e ela senta no meu colo,
colocando os braços no meu pescoço.
— Você não vai gostar — diz, mordendo o lábio.
— Vou te ouvir.
— Nós dois somos médicos e sabemos que pessoas morrem o
tempo todo, independente de quantos anos ou planos tenham feito. — Ela
coloca o dedo sobre meus lábios quando vou interrompê-la. — Se
acontecer, você vai estar perdendo uma amiga com quem dividia a cama,
isso não impede o sofrimento, mas é mais fácil, porque não temos um
vínculo social que nos mantém unidos até a morte. Você não precisa se
preocupar com trâmites legais e funerários, não é sua responsabilidade,
e... não sei, mas quero muito acreditar que essa ausência de obrigação
social é uma espécie de amortizador do sofrimento.
— Amber, desculpa, você não pode estar falando sério. Se eu
morrer, vai ser menos sofrido por que não somos casados? Por que não
será você a ter que ir fazer minha certidão de óbito? Nós dividimos uma
vida juntos, se algo acontecesse com você não haveria como sentir dor
maior, porque o vínculo que nos une não é uma obrigação social, é amor.
Não importa se socialmente somos amigos com benefícios, o que é uma
mentira, porque aqui dentro — pego sua mão e coloco sobre meu coração
— somos marido e mulher, quer você queira, quer não. — Seguro seu
rosto, movendo o polegar sobre suas pintinhas. — Vamos ter um filho,
Amber. Infelizmente, crianças também morrem. Quantos pacientes com
menos de seis anos você perdeu? Quantos nós perdemos? E se
acontecer algo com o nosso filho? Como vamos amortizar essa dor?
Amber tenta conter as lágrimas, inspirando alto e profundamente,
mas o choro vem e não há nada que ela possa fazer para impedir. Ela
afunda o rosto no meu peito, puxando-me com força pelo pescoço e seu
corpo treme dentro do meu abraço. Encolhida no meu colo, em posição
fetal, meu corpo se debruça sobre o seu, oferecendo contenção para sua
dor.
— Nada vai acontecer com o nosso bebê, comigo ou com você.
Não podemos deixar de viver pensando no que pode dar errado, Amber.
Ela crava as unhas nos meus ombros e move o tronco, alongando-
se e levantando a cabeça. As mãos esgueiram-se pelos meus cabelos e
seguram o meu rosto a centímetros do seu, os olhos avermelhados, que
ainda jorram rios de lágrimas, prendem-se aos meus.
— Você está certo, se algo acontecesse com você ou nosso bebê,
nada iria diminuir a minha dor.
Ela me beija. Deslizo a língua entre seus lábios molhados, levo
uma mão à sua nuca, exigindo que nos beijemos com voracidade. Amber
ofega e me interrompe.
— Vocês são minha família — sussurra, voltando a me beijar.
Não foi assim que imaginei o momento ideal em que a pediria em
casamento, todavia estava feito, o anel estava no seu dedo e não iria
perder a oportunidade.
— Amber Watson, você aceita ser minha mulher na alegria e na
tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe? — pergunto,
enxugando as marcas que as lágrimas deixaram nas maçãs do seu rosto.
— Sim — ela murmura, olhando-me olhos. — João Guilherme
Allencar, prometo te amar e respeitar, todos os dias da minha vida.
— Significa que vou finalmente te ver vestida de noiva? — Sorrio,
beijando-a com carinho.
— Se você não se incomodar com uma barriga de grávida —
comenta, dando de ombros.
— Não mesmo. — Coloco a palma da mão sobre seu abdômen. —
As fotos do casamento serão as primeiras fotos do nosso álbum de
família. Eu, você e o nosso bebê, juntinhos.
Tomamos café da manhã na cama, depois um banho e descemos
algumas das malas para o estacionamento, organizando-as nos carros.
Com a primeira parte da mudança carregada, decidimos ir em apenas um
dos carros, para abrir espaço no apartamento, antes de entulharmos tudo.
No percurso liguei para o Guga, perguntando se estava em casa,
como a resposta foi positiva, avisei que ligaria quando estivesse
chegando, para ele me esperar na garagem, pois precisava de ajuda com
algumas coisas.
Guga e Júlia são meus primos, não consanguíneos, estão casados
há pouco mais de um ano. Eles formam um belo casal e não tenho
dúvidas que terão filhos lindos, se decidirem tê-los. Ambos são altos,
embora Júlia pareça pequena perto do Gustavo. Ele é o mais alto da
família, tem um metro e noventa e dois de altura. Ela tem olhos violetas e
um sorriso encantador, emoldurados pelos longos cabelos castanhos, no
mesmo tom dos cabelos do Gustavo.
Quando entramos na garagem, Júlia e Gustavo estavam abraçados
na saída do elevador e olhavam-nos com sorrisos dissimulados. Olhei de
relance para Amber e vi que ela estava mordendo o lábio.
— Júlia sabe sobre o bebê?
— Não, queria que você fosse o primeiro a saber.
— Ela está com aquela expressão de “eu sabia”.
— Contei sobre o anel. Estava surtando e você não acordava,
precisava falar com alguém.
— Então não dá para fingir que fiz o pedido mais romântico do
mundo.
Amber descansa a mão no meu joelho, movendo os dedos sem
pressa. Ela não diz nada até que tenha estacionado.
— Fera? — meu nome soa baixinho. Abaixo as mãos do volante e
envolvo a sua, virando-me para olhá-la. — Eu teria dito não e nós
teríamos brigado. Ter encontrado o anel me deu tempo de pensar e tentar
entender o porquê de você tê-lo comprado e não ter me contado.
— Medo de te perder. — Aproximo sua mão dos meus lábios e
deposito um beijo. — Se sentir que estou te pressionando com essa
história de casamento, a gente volta atrás e continuamos como sempre
foi.
— Escolho você, João Guilherme, é por isso que esse anel vai
continuar onde está. Vamos, antes que Júlia ache que estamos brigando e
mande o Guga vir te socar.
— Ele pode tentar — digo, entre risos, inclinando-me para beijá-la.
Quando Amber desce do carro, fico parado com a mão na trava da
porta, olhando-a. Usando jeans, uma camiseta de listras, mocassim e os
cabelos presos em um rabo de cavalo, Amber parece uma colegial. Toda
pequenina, moleca e dona de um corpo discreto, parece uma criança ao
lado dos pacientes.
Júlia corre para abraçá-la e imagino a festa que fará quando
contarmos sobre o bebê. Desço do carro e faço a volta para abrir o porta-
malas. Guga se aproxima e para ao meu lado, com os braços cruzados,
analisando o conteúdo no porta-malas e estreitando os olhos para as
nossas mulheres.
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo?
— Vamos morar juntos. — Dou de ombros, pegando umas das
malas.
— Só vocês não sabem que moram juntos — debocha, me
ajudando com as malas.
— Eles vão casar, Gu! — Júlia acena, balançando a mão de Amber.
— Aê!!! — Guga me abraça. — João Guilherme Allencar tomou
vergonha na cara.
— Eu não aguentava mais aquele papo furado de somos amigos e
blá blá blá — comenta Júlia.
— Vocês parem com isso! — diz Amber.
— Fera, pensei que teria que te bater. — Júlia empurra Guga e me
abraça. — O que você estava pensando quando jogou o anel fora?
— Como é? — Guga pergunta.
— Não joguei fora, iria pegá-lo de volta e esperar pelo momento
certo.
— Quinze anos, Fera! — Guga exclama, abraçado com Amber.
— Gustavo, fique na sua, você levou quantos anos para assumir
que é apaixonado pela Júlia?
— Gu, depois dessa é melhor ficar quieto, amor. — Júlia sorri,
estendendo a mão para o marido. Ele dá um beijo na bochecha de Amber,
desfaz o abraço e puxa Júlia, envolvendo-a pela cintura. — Vamos subir
com essas malas, porque tenho certeza que tem outras nos esperando.
— Muitas, além dos livros e sapatos que não foram embalados
ainda — digo.
— Ok, pessoal, quero comemorar esse casório, portanto enquanto
ajudo Amber a desfazer as malas, vocês tratem de se encarregar do
restante da mudança. — Júlia dispara.
Eu e Guga ajudamos a levar as malas para o apartamento e
voltamos ao prédio de Amber para buscar seu carro e as malas prontas.
Entre as voltas com a mudança, elas conseguiram desfazer metade das
malas e nos mandaram levá-las para colocar o que ainda não tinha sido
embalado. Por volta das catorze horas, tínhamos conseguido fazer toda a
mudança e estávamos sentados no chão do apartamento, separando
livros, sapatos e objetos de decoração.
— Querem pedir um delivery ou vou buscar algo para comermos no
restaurante da esquina? — pergunta Guga.
— Vocês decidem — responde Júlia.
— O italiano? — Amber me olha cheia de expectativa e deita o
rosto no meu ombro. — Só de pensar em um talharim parisiense, minha
boca enche de água.
— O italiano. — concordo, abraçando-a.
— Não se mexam. — Júlia levanta em um salto.
— O que... — eu e Guga começamos a perguntar, mas ela pede
silêncio e o faz levantar.
— Olha bem para eles — Júlia murmura para Guga, olhando-nos
com atenção. — Fera concordou com o italiano, sem nenhuma objeção.
— Verdade. — Guga estreita os olhos. — Vamos comer
carboidratos, com muito queijo e molhos gordurosos e você não tem nada
a comentar?
— Estamos cansados, com fome e...
— Amber está grávida! — Júlia e Guga exclamam em uníssono.
Eu e Amber nos entreolhamos. Meu braço está circundando-a, seu
corpo pequeno acomodado no meu abraço e a minha mão estendendo-se
sobre o abdômen, o polegar fazendo pequenos círculos. Amber entrelaça
as nossas mãos e repousa na sua barriga.
Amber não tem familiares vivos, a mãe faleceu quando era bebê e
o pai quando ela tinha quinze anos. Não sei detalhes sobre a morte da
sua mãe, quanto ao pai, ele tinha um aneurisma e como sabia das
chances de morrer, deixou um documento de emancipação que entraria
em vigor com sua morte, o que garantiu que ela não ficasse sob a tutela
do estado.
Quando a conheci, eu estava com dezenove anos e Amber tinha
completado dezesseis. Ela é uma pequena notável, pulou dois anos no
colegial e, definitivamente, é a pessoa mais inteligente que conheço. Os
meus pais a conheceram alguns meses depois, quando a levei para casa
em um feriado prologado, e logo perceberam que havia mais do que a
amizade que admitíamos. Foi a primeira vez que Amber reuniu-se com a
minha família e, a partir desse dia, ela sempre esteve presente.
Ela sabe que pode contar com meus pais, independente do que há
entre nós. Minha irmã a aprovou no instante que soube que Amber é fã de
filmes de terror. Segundo Maria, se tenho companhia para as noites terror,
vou ficar bem. Meus irmãos, Théo e Thomás, têm a mesma idade de
Amber, o que foi um problema de início, porque Théo ficava dando em
cima dela para me irritar e tentar arrancar uma confissão, o que
conseguiu, depois do Thomás me impedir de socá-lo.
Lógico que uma confissão em segredo não era o bastante e o meu
relacionamento indefinido com Amber é motivo de zoação entre os meus
irmãos até hoje. Tanto Maria quanto “Os Terríveis”, não perdem uma única
oportunidade de fazer piada sobre a minha falta de atitude e usam os
mais inesperados momentos para suas brincadeiras, como por exemplo,
quando Maria nos convidou para sermos padrinhos do seu casamento, ou
quando Théo revelou que seria pai.
Por isso, estava ansioso para contar a todos sobre o nosso bebê e
o casamento, mas decidimos esperar pelo ultrassom. Até lá, Guga e Júlia
seriam os únicos com quem dividiríamos a informação, porque
simplesmente não conseguíamos esconder nada deles e eles seriam os
padrinhos do nosso filho, convite que levou Júlia às lágrimas.
Na sexta-feira, saí do plantão correndo para encontrar com Amber
no consultório da Dra. Phelps, na ala clínica. Era a primeira vez em anos
que nenhum de nós estava atrasado. Ela estava em pé, próximo à porta,
ainda vestida com uniforme e jaleco, assim como eu. Deslizei a mão pelas
suas costas, acariciando-a discretamente e senti seu corpo acomodando-
se aos contornos do meu braço.
Não fazia ideia da emoção que seria ver o nosso filho através do
ultrassom e chorei ouvindo o coraçãozinho dele. Segurando a mão de
Amber, ouvi com atenção todas as informações e recomendações que
Dra. Phelps nos passou e saímos da sala com o primeiro vídeo do nosso
bebê.
A caminho de casa, tive uma ideia, dirigi até o café favorito de
Amber, tomamos um café da manhã reforçado e depois fomos a uma loja
especializada em bebês.
— Fera, temos sete meses antes do bebê nascer, não podemos
adiar um pouquinho as compras? Estou caindo de sono.
— Só preciso de alguns minutos, está bem? — Afago seu rosto. —
Por que você não senta um pouco?
— Porque é uma loja de bebês. — Ela bate no meu ombro. —
Quero comprar tudo. Olha para essas roupinhas — diz, parando próximo a
uma arara.
— Volto daqui a pouco, quero te fazer uma surpresa. — Beijo seus
cabelos.
— Não demore ou você terá que me levar embora arrastada e a
culpa será sua. — Amber sorri, segurando um body infantil, estampado
com a frase: “Pare. Propriedade de um papai ciumento e babão”.
— Gostei desse. — Pego um body, com uma faixa preta
estampada e um aviso: “Cuidado. Jiu-Jitsu. Tira o olho da mamãe”. —
Vamos levar. — Pisco, me afastando. — Amber? — chamo, alguns metros
à frente. Ela ergue os olhos e sorri, lendo a mensagem no body que estou
exibindo. “Liberada para namorar. DEPOIS DOS 30”. — Se for uma
menina, teremos que comprar um desses.
— Deixe-me adivinhar. Se for menino, iremos comprar um
“Meninas, estou solteiro”? — Ela arqueia a sobrancelha. Gargalho alto. —
Rápido papai, hora da soneca.
— Tente não comprar a loja — provoco, apontando para o
amontoado de roupinhas que ela está segurando.
Longe dos olhos de Amber, pedi a uma vendedora que me
ajudasse com o que precisava. Levei algum tempo para conseguir
escolher, porque eram muitas opções, mas quando vi o modelo em tom de
madeira com acolchoado bege, soube que seria aquele o seu favorito.
Deixei o endereço para que entregassem no período da tarde, desse
modo conseguiria surpreendê-la.
De volta ao piso térreo da loja, encontro Amber cheia de sacolas e
segurando um urso em pelúcia. Disfarço a vontade de sorrir, porque tenho
que fingir que estou frustrado por não ter encontrado o que procurava.
— Descobri que tenho compulsão por coisinhas de bebês. — Ela
dá de ombros. — Você ainda não comprou nada? — Estreita os olhos.
— Eles não têm o que queria. — Estendo as mãos para pegar parte
das sacolas. — Vamos?
— Por favor, comprei sapatinhos até os seis meses de idade.
Passo o braço em torno das suas costas, puxando-a para mim.
— Eu te amo — sussurro, antes de beijar sua têmpora.
No carro mesmo, Amber foi tirando as compras das sacolas e a
cada sinal que parávamos, ela me mostrava algo. Quando chegamos em
casa, deixamos as sacolas jogadas no sofá, tomamos um banho e nos
aconchegamos na cama, abraçados de conchinha, assistindo ao vídeo
com as imagens e o som do coração do nosso bebê.
Acordei com a vibração do celular. Tinha colocado um alarme para
receber a entrega e fazer algumas mudanças na suíte que será o quarto
do bebê. Beijei a nuca de Amber e levantei. Troquei o pijama e fechei a
porta do quarto ao sair, para não a despertar com o barulho. Fiz um
lanche, preparei algo para quando ela acordasse e comecei os trabalhos
pela remoção da cama e poltronas do quarto. Não tinha pensado onde
guardá-los, por isso carreguei todos para o quarto de hóspedes, deixando-
o intransitável. Por sorte, a suíte do bebê é conjugada com closet, se
tivesse que desmontar um guarda-roupas, não conseguiria deixar tudo
pronto antes de Amber acordar.
Quando os entregadores chegaram, o quarto estava desocupado,
pedi que eles montassem os móveis na sala de estar, deixando o barulho
o mais distante possível de Amber, e depois de tudo montando, nós
transportamos para o quarto. Eles foram embora e fiquei arrumando tudo.
Perdi longos minutos tentando forrar o berço, tinha mais laços do que
espaço para atá-los, por fim reconheci minha falta de competência para a
função e sentei no chão do quarto, procurando alguma instrução nas
embalagens.
Estava distraído, analisando as imagens ilustrativas, buscando um
padrão que permitisse identificar como aquele monte de tecidos e laços
de fita deveriam ficar no berço, quando ouvi o som da sua risada baixinha.
Levanto os olhos e lá está ela, recostada na porta, com um sorriso imenso
e lágrimas banhando as pintinhas nas maçãs do rosto.
— Uma ajudinha aqui? — Curvo os lábios em um meio sorriso.
Amber se aproxima e estende a mão, puxando-me do chão.
Quando levanto, ela me abraça, fica na ponta dos pés e me beija.
— Obrigada.
— Não consegui terminar. — Olho para o berço, com os lençóis e
almofadas jogadas em cima.
— Vem, vou te ensinar. — Amber entrelaça nossas mãos e me
conduz até o berço. — Primeiro, só precisamos dessas peças. — Ela
separa um lençol de elástico, outro lençol e um coberto acolchoado. —
Coloque o restante na cama.
Obedeço. Com o colchão forrado, Amber pede as almofadas com
laços e me ensina a prendê-las no berço, por fim colocamos os rolinhos e
umas almofadas soltas.
— Cheirinho bom — comenta, apertando uma almofada.
— Pedi para a vendedora mandar para lavanderia antes de trazer.
— Amei cada detalhe — diz, arrumando a última almofada dentro
do berço.
— Ainda não terminamos. — Busco o mobile que deixei na
poltrona. — Falta o céu de estrelinhas para o nosso bebê brincar. — Giro
o mobile, fazendo as nuvens e estrelas se moverem.
Faltava muito para o quarto estar pronto, todavia por hoje havíamos
terminado. Amber deu corda no mobile, em seguida recostou-se no meu
peito, a abracei, repousando as mãos sobre o seu abdômen, ela tocou
numa estrela e ficamos observando-a girar por entre os seus dedos. Ainda
não sabia o porquê, mas naquele momento senti um aperto no peito.
Apertei os braços em torno do seu corpo, sentindo meu coração acelerar,
tinha consciência da guerra que se travava no meu organismo, embora
não entendesse o motivo.
— Fiz uma jardineira de frango e legumes — digo, beijando seu
pescoço.
— Nosso bebê não aguenta ouvir falar em comida. Definitivamente,
é mais seu filho do que meu, nunca imaginei que iria salivar ao ouvir a
palavra legumes.
De posse do primeiro vídeo do nosso filho, convidamos meus pais
e irmãos para uma visita, não contamos o motivo, dissemos apenas que
tínhamos uma notícia importante para dar-lhes. No final de semana
seguinte, a tropa desembarcou em Boston: meus pais, Tom, Maria,
acompanhada do Nicolai e Ben, e Théo, que trouxe Logan.
— Seguimos o plano? — pergunto, abraçando Amber.
— Sim. — Ela sorri.
— Seguinte pessoal, antes do jantar queremos mostrar algo para
vocês — digo, ligando a TV e selecionando o vídeo.
— Se vocês casaram sem me convidar, vou ficar muito magoada —
diz Maria.
— Se eles casaram, precisamos comemorar! — Théo comenta.
— Vocês podem esperar?
— Anda logo, Fera — pede Tom.
— Vai, Fera, até eu estou nervosa — diz Amber, os olhos brilhando.
— Ok, lá vamos nós — digo e dou play.
As batidas do coração do nosso bebê são acompanhadas por
gritos e palmas. Minha mãe chora, meu pai me abraça e meus irmãos
começam com as brincadeiras de sempre.
— Parabéns, filho! — diz meu pai.
— O que foi? — Ben pergunta, deixando de lado a brincadeira.
— Quê? — Logan faz eco ao primo.
— O titio e eu vamos ter um bebezinho. — Amber explica.
— Quinze anos depois e o Fera alcança a linha de chegada —
Maria debocha.
— Antes tarde do que nunca. — Nicolai dá seguimento à
provocação de sua mulher.
— Olha o coraçãozinho batendo forte, que coisa mais linda —
comenta minha mãe, abraçando Amber.
— Parabéns, irmão! — Tom me abraça, dando tapinhas no meu
ombro. — Na prorrogação, mas marcou.
— Fera descobriu que tem bolas! — Théo envolve Amber nos
braços. — Se você tivesse me escolhido, teria sido mais rápido — ele
provoca.
— Vou ignorar as piadinhas — digo.
— Amo vocês e esse bebê lindo que vai encher nossas vidas de
alegrias — diz minha mãe.
— Amber, te amo, obrigada por ter paciência com o lerdo do meu
irmão. — Maria afaga a barriga de Amber.
— É menino ou menina? — pergunta Ben.
— Se for uma menina, Logan vai cuidar dela, não é filho? — diz
Théo, entre risos, colocando Logan nos ombros.
— Nós decidimos que vamos manter o mistério — revelo.
— Não façam isso comigo. Como irei escolher os presentes? —
Maria faz drama.
— Maria ainda não é dessa vez que você poderá comprar todas as
tiaras e laços de fita que ver pela frente, segura a onda. — Nicolai provoca
minha irmã.
— Só um aviso, se for uma menina, linda como Amber, você está
ferrado, Fera — comenta Théo.
— Amber, você sabe que é parte da família há muito tempo, te
amamos muito e não podíamos estar mais felizes. — Meu pai a abraça.
— Tem mais novidade, nós vamos casar.
— Quando? Como vai ser? — pergunta Maria, eufórica.
— Cerimônia íntima — explica Amber.
— Não pensamos nos detalhes ainda, o bebê está monopolizando
a porra toda.
O jantar em familiar se estendeu por toda a madrugada, na manhã
seguinte, todos foram embora. Depois de nos despedirmos, voltamos para
a cama e ficamos curtindo a nossa gravidez. Amber perpassa os dedos
entre meus cabelos, seus olhos iluminados por um sorriso largo. Levo
uma mão ao seu rosto, segurando-o, ao mesmo tempo que afago a
bochecha, deslizando o polegar nas pintinhas.
— Eu amo sua família.
— Eles também te amam.
Por um tempo ficamos ali, trocando carinhos e sorrisos bobos.
Perdido no seu olhar, meus pensamentos fluem tranquilos, embalados
pela sensação de paz e conforto que encontro nos seus braços. É sempre
assim, estar com ela é como velejar em um mar de águas calmas, sem
revoadas, não há ressacas ou tempestades, ao lado dela o tempo é firme.
Posso fechar os olhos, sem medo, quando os abrir sei o que encontrarei,
um céu límpido, de um azul anil esplendoroso, ou um infinito de estrelas.
Sou incapaz de dizer como Amber se parece quando está irritada,
porque nós nunca brigamos. Vozes elevadas, acusações e portas batendo
são eventos inexistentes na nossa relação, o mais próximo que estivemos
de uma discussão foi quando fiz uma festa de aniversário surpresa, no
ano que nos conhecemos. Todavia, não posso dizer que ela tenha ficado
brava, foi como se o céu tivesse desabado, inundando-a de tristeza.
Não precisei de mais do que meio segundo para notar que ela não
curtia festas surpresas, — mais tarde descobri que o problema é seu
aniversário — coloquei todos para fora do apartamento e a encontrei no
meu quarto, sentada em um canto, no escuro, abraçada às pernas. Seu
rosto estava rígido e o olhar sombrio. Abaixei-me ao seu lado e pedi
desculpas.
Ela não respondeu e quando tentei tocá-la, me empurrou, fazendo-
me cair de bunda no chão. Pensei que tinha estragado tudo, que aquele
seria o fim da nossa amizade, queria muito voltar atrás e desfazer a droga
da festa, porque não conseguia pensar numa maneira de me desculpar.
Fiquei sentado onde caí, olhando-a em silêncio, ficamos assim por muito e
muito tempo, até que ela suspirou profundamente e notei um brilho no
canto dos seus olhos, ela estava começando a chorar.
“Faz alguma coisa” — pedi, sentindo um nó na garganta. — “Por
favor, Amber, grita comigo, me soca”. — Me agarrei aos seus joelhos. —
“Não aguento saber que te fiz chorar”.
“Me abraça, Fera” — disse, com a voz embargada pelo choro, e
jogou-se nos meus braços.
“Te abraço pra sempre” — sussurrei, beijando seus cabelos.
Décima oitava semana de gestação, o bebê está com 15
centímetros e 120 gramas, seu sistema circulatório e urinário estão em
pleno funcionamento, e os papais babões estão montando uma coletânea
de vídeos com seu desenvolvimento.
A barriga de Amber está redondinha e as mamas visivelmente
maiores, não posso chegar perto dela que fico vesgo, com os olhos
presos ao seu busto. Ela tem tido algumas dores quando fica muito tempo
em pé ou faz movimentos bruscos, o que não é tão fácil de evitar na
nossa profissão. É uma resposta do organismo às mudanças no seu
corpo, afinal os ligamentos do útero e da pelve estão se estirando, na
medida que o bebê está crescendo.
Os enjoos estavam nos enlouquecendo, porque meu cheiro estava
deixando-a enjoada. Bastava um toque para fazê-la correr para o banheiro
e colocar para fora tudo o que havia comido, o que vinha se arrastando
pelo último mês e me levado a dormir no quarto de hóspedes. Não
tínhamos muita opção, era isso ou nada ficaria no seu estômago.
Era uma tortura estar com ela e ter que manter distância, Júlia e
Gustavo ficavam nos perturbando, dizendo que o bebê tinha herdado meu
ciúme. Como nenhum de nós estava dando conta, decidimos alternar
alguns dos nossos plantões, assim evitávamos seus enjoos e
conseguíamos terminar de organizar os preparativos para a chegada do
bebê.
Hoje era um dos meus plantões. Saí de casa cedo, Amber ainda
dormia, fiquei alguns minutos observando-a, tentado a beijá-la, mas se me
aproximasse ela podia acordar e ir em disparada ao banheiro. Aconteceu
uma vez e não deu tempo de ela levantar, foi um completo desastre. O
problema desse esquema de plantões alternados é que fico em estado de
alerta máximo, mesmo sabendo que Júlia ou Gustavo estão na porta ao
lado, porque fizemos um acordo sigiloso, em hipótese nenhuma Amber
ficará sem socorro por perto. Sou médico, pai de primeira viagem, minha
mãe teve uma gestação complicada, logo estou sendo obsessivamente
cuidadoso.
Quando saí de uma cirurgia e vi uma ligação perdida de Amber, a
tensão alojou-se. Era apenas uma ligação, não dezenas, não tinha
motivos para ficar nervoso, entretanto, nós trocamos mensagens o tempo
todo, mas nada de ligações e esse pormenor fez diferença para meu
cérebro. Liguei três vezes e ela não atendeu, ligar para a casa do Guga
não me ocorreu, então avisei ao Dr. Turner que ele ficaria responsável
pela coordenação do serviço de neurologia e corri para casa.
— Amber? — chamo, ao entrar no apartamento. Ela não está na
sala, encontro o celular na cozinha. — Amber? — sem resposta.
Olho no nosso quarto, banheiro e a encontro no quarto do bebê,
sentada na poltrona de amamentação e dormindo. Sorrio aliviado. Ela
está vestida com uma calça moletom e top, as mãos envolvem a barriga.
Estou tão feliz de encontrá-la bem, que esqueço os enjoos e me
aproximo. Levanto seus pés do puff, sento, colocando-os no colo e
massageio. Amber entreabre os olhos e sorri, alisando a barriga.
— O bebê mexeu — murmura, sonolenta.
— Quando? — pergunto, eufórico.
— Acho que ele gosta de brócolis, é mesmo seu filho. — Ela desce
os pés das minhas pernas. — Estava lendo, aí tive um desejo nojento por
brócolis. — Faz uma careta. Sorrio e coloco as mãos no seu ventre. — Fui
preparar ao vapor, como você me ensinou, e quando dei a primeira
garfada, ele chutou. Interpretei que ele estava feliz em obter o maldito
brócolis.
— Claro que ele gosta de brócolis. — Beijo sua barriga.
— Fera? — Ela inclina a cabeça, aproximando-se mais, inspira
perto do meu pescoço e abre um sorriso. — Que saudades que estava do
seu cheiro.
— Você não está enjoada?
— Não. — Ela une nossos lábios. Pausa por instantes, inspirando
mais forte e desliza os lábios pelo meu pescoço, beijando-me com
urgência. — Você cheira a sândalo — sussurra. — Aconchegante.
Quente. Viril. — Ela recita as palavras, pausadamente, provocando-me,
arrastando os lábios sobre minha pele.
— Você está falando do meu cheiro ou do meu pau? — provoco,
apoiando minhas mãos por baixo das suas coxas.
— Ambos. — Mordisca minha orelha. — Você vai voltar para o
hospital?
— Não, tive uma emergência. — Puxo seu corpo para junto do
meu.
— O quê? — Olha-me preocupada.
— Sua ligação.
— Não era, mas agora é uma emergência. — Amber crava as
unhas nas minhas costas, segurando-se com afinco. — Estou muito,
muito, muito necessitada dos seus serviços.
— Mesmo? — Levanto, chuto o puff para o lado e saio rumo ao
nosso quarto, apalpando forte suas coxas e vendo-a morder os lábios.
Deito Amber na cama e me afasto, arrancando minhas roupas,
enquanto ela detém os olhos em mim e resvala a mão por baixo da calça,
abrindo as pernas. Pelo movimento sei onde seus dedos estão brincando.
Quando termino de chutar os sapatos e a boxer, ela desliza a língua nos
lábios e os olhos devoram meu pau. Ajoelho na cama, seguro a bainha do
seu moletom e puxo por suas pernas, fazendo o mesmo com a calcinha.
Ela remove o top e abre mais as pernas, convidando-me a entrar.
Debruço-me sobre seu corpo, afundando o rosto entre os seios, beijando-
os, ao mesmo tempo em que me encaixo na sua boceta. Sinto a glande
submergir entre os pequenos lábios, ao invés de penetrá-la, brinco na sua
fenda, provocando-a com o atrito do piercing.
Sorrio contra sua pele, afastando-me pouco a pouco, seguro seus
punhos com uma das mãos e prendo acima da cabeça. Amber aproveita a
proximidade dos nossos rostos e abocanha meu lábio inferior, prendendo-
o entre os dentes. Chupo seu lábio superior, deixo que minha língua atice
sua imaginação, enrijecendo-a e enfiando na sua boca, em movimentos
ritmados. Ela cede à minha provocação e sela os lábios em torno da
minha língua, chupando-a.
Com a mão livre aperto seu mamilo, ela tenta engolir os gemidos,
mas termina interrompendo o chupão e sorrio satisfeito, mexendo o
quadril lentamente, enquanto ela geme e se contorce, ansiando para
sentir a temperatura fria do piercing na sua umidade.
— Você quer... Ahh — geme. — FERAHH!
— O que foi, amor? — pergunto, numa falsa inocência, beijando
seu pescoço e diminuindo a fricção.
— Estou grávida, não posso passar vontade.
Sorrio em resposta ao seu argumento.
— O que você gosta mais, Amber? — Afundo alguns centímetros
dentro dela. — Da expectativa ou da ação? — Deslizo para fora.
— Tudo. — Ela suspira. — Como amo isso — Geme, sentindo-me
afundar mais um pouco. Mais gemidos, quando volto a deslizar para fora.
— Enterra seu pau em mim — ela pede e obedeço, só paro quando sinto
minhas bolas chocaram-se na parte interna das suas coxas. — De novo
— diz, entre gemidos. Deslizo para fora, totalmente. — Fera — resmunga.
— Estou aqui, amor — sussurro nos seus lábios, penetrando-a.
Pelos próximos minutos, somos embalados pelo som de gemidos,
tapas, puxões de cabelo e arpejos, revestidos por suor e encobertos pelo
cheiro de sexo, nada mais.
Quinze anos atrás estava esperando por ela na biblioteca, na
nossa mesa. Aquela que vínhamos rabiscando, como presidiários
contando o fim da sentença.
Tudo começou quando fiz um risco na mesa no nosso primeiro
encontro na biblioteca, um dia depois de tê-la conhecido. Ela me
repreendeu pelo ato de vandalismo, mas no dia seguinte, quando nos
encontramos no mesmo local, ela fez um rabisco ao lado do meu, olhou-
me com um meio sorriso nos lábios e abaixou-os em seguida, tagarelando
sobre qualquer coisa que não recordo, porque estava soltando fogos
internos.
A cada encontro, um rabisco.
Um meu, outro dela.
Todos os dias, por oitenta e nove dias.
Quando nossos encontros completaram noventa dias, cheguei à
biblioteca antes do horário combinado e esperei por ela, com um modelo
anatômico do cérebro sobre a mesa e uma interrogação, onde deveria
estar o nonagésimo rabisco.
“Você chegou cedo” — disse, dando-me um beijo no rosto. —
“Quem é o nosso amigo?” — perguntou, pegando o modelo anatômico.
“Você deveria nomeá-lo, ele é seu”.
“Não brinca!” — disse eufórica, colocando o modelo novamente na
mesa. — “Este é um modelo de 15 peças, tamanho real, com área
citoarquitetônica demarcada”.
“Sim, e é todo seu”.
“Não posso aceitar, Fera”.
“Desculpe, não aceito devolução”.
“Meu aniversário está longe e a gente só se conhece há três
meses. Você sabe quanto custa...”
“Comprei para você, por favor, aceite”.
“Você é maluco”. — Ela sorriu e no instante seguinte seus braços
estavam nos meus ombros. — “Obrigada. Te conhecer foi a melhor coisa
que me aconteceu no último ano” — sussurrou, depois de beijar outra vez
meu rosto. Seu tom era triste e emocionado, o que ela logo disfarçou. —
“Qual o plano para hoje?” — perguntou, afastando-se rápido. — “Sei que
te devo uma noite de sexo, mas podemos deixar para ou...”
“Não quero sexo” — disse, interrompendo-a.
“Eu... pensei que por isso estávamos saindo... esquece, não sou
seu tipo. Foi idiotice”.
“Garota inteligente, divertida, linda e gostosa? Sim, você é o meu
tipo”. — Acariciei seu rosto. — “Não quero fazer sexo, porque não foi por
esse motivo que concordei com o desafio. Você não vai se livrar de mim
fácil assim”.
“Qual é, Fera?” — Ela revirou os olhos. — “Não sei se você notou,
mas não tenho muitos amigos, não estou em condição de dispensar
nenhum”.
“Abra o cérebro”.
“Literalmente?” — Ela arqueou a sobrancelha.
“Vá em frente, Srta. Watson”.
Amber desmontou o cérebro e encontrou um papel colado no
sistema límbico, o centro das emoções. Ela o ergueu, virando-o para mim,
como se estivesse em dúvida do que estava escrito.
“Um encontro de verdade. Vou te buscar, jantamos, depois vamos
ao cinema, assistimos uma comédia romântica e te deixo na porta do seu
quarto, com um beijo de despedida”.
“Fera, e se for estranho? Você tem sido meu melhor amigo desde
que cheguei em Harvard, não quero te perder”.
“Não será estranho, prometo”.
“Podemos substituir a comédia romântica por terror?”
“O que você quiser”.
“Nos vemos às sete”. — Ela pegou o cérebro e saiu.
Agora, estou novamente esperando por ela. Desta vez nenhuma
interrogação me acompanha, a substituímos há muito tempo por
reticências, porque nossa relação não tem um prazo de validade, é para a
vida toda.
— Pensei que você estava blefando quando disse que casaria com
ela. — Guga comenta, dando um tapinha no meu ombro.
— Quinze anos e três meses depois, aqui estamos nós. — Sorrio,
sem afastar os olhos do pequeno corredor, decorado com pétalas brancas
e velas.
— Ninguém pode dizer que você não é persistente. — Ele brinca.
— Podia demorar mil vidas, ainda me casaria com ela.
A maldita angústia que vem me fustigando, comprime meu peito e
dá um nó na minha garganta quando a melodia de “Eu sei que vou te
amar” preenche os últimos minutos da minha espera. A surpresa por ela
ter escolhido uma música brasileira, um presente para minha família, e os
versos da letra me emocionam.
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente eu sei que vou te amar
E cada verso meu será pra te dizer
Que eu sei que vou te amar por toda a minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida
Quando Amber surge sob o arco de flores brancas, de braços
dados com meu pai e carregando o nosso bebê no ventre, lágrimas
despontam nos meus olhos. Ela está usando um vestido simples e os
cabelos trançados sobre o ombro. Seus lábios estão curvados em um
sorriso, os olhos iluminados pelo brilho das suas lágrimas e, ao invés do
buquê, sua mão repousa sobre a enorme barriga de vinte e oito semanas.
Meu pai une nossas mãos diante do altar e a recebo, beijando-a na
testa, em seguida abaixando-me e beijando seu ventre. Ela leva a mão ao
meu rosto quando volto a levantar e afaga minha barba.
— Por toda a minha vida — sussurra.
Se falasse algo, não conseguiria interromper as lágrimas, por isso
segurei ambas suas mãos e levei aos lábios, depositando um beijo.
Nosso casamento foi uma cerimônia pequena, para familiares e
amigos próximos. Depois do “pode beijar a noiva” a peguei no colo e
fomos embora, fugindo da festa e dos cumprimentos, afinal não é sempre
que temos uma semana de folga, e logo teremos um bebê, o que significa
que pode ser nossa única oportunidade de aproveitarmos uma viagem a
dois por um longo tempo.
— Você pode parar de fazer mistério e dizer para onde vamos? —
Amber pergunta, quando deixo o carro no estacionamento do aeroporto.
— Ainda acho que deveria conferir minha mala, você pode ter esquecido
algo.
— Logo você vai descobrir o nosso destino.
— Fera? — Ela estreita os olhos.
— Confia em mim, amor — digo, estendendo a venda e os fones de
ouvido.
Depois de despachar as malas, peguei Amber no colo e segui para
o portão de embarque. Ela não parava de rir e criar histórias sobre o que
as pessoas estavam imaginando que havia acontecido. De acordo com
suas teorias, o mais provável é que estivessem pensando que a raptei no
dia do seu casamento.
Ela adormeceu assim que o avião decolou, tirei a venda e deitei
sua cabeça no meu ombro. Enquanto Amber dormia, nosso bebê estava
bem desperto, não parava de dar chutes. Imagino quando ele começar a
engatinhar e correr por toda a casa, gritando mamãe e papai. Pensando
bem, terei problemas para conciliar paternidade e medicina, não vou
querer deixá-lo por nem um minuto, com medo de perder o primeiro
balbucio, os primeiros passos e cada pequena primeira vez.
Pousamos em Cancún antes do amanhecer. Coloquei a venda de
volta, antes de despertá-la, e seguimos para o hotel. Entrei no quarto,
carregando-a no colo. O mensageiro deixou nossas malas aos pés da
cama e pedi que abrisse a porta da varanda. Quando ficamos a sós,
caminhei até a varanda e, assistindo aos primeiros raios de sol nos
saudarem, pedi que ela tirasse a venda.
Nos minutos seguintes, nem o nascer do sol, nem o azul vibrante
do mar ou as nuvens espassas e brancas como algodão, salpicando o céu
azul anil, eram tão lindos quanto a expressão de encantamento no rosto
de Amber. Enquanto ela olhava toda a exuberância da natureza, meus
olhos acompanhavam a linha fina e úmida deixada pelas suas lágrimas.
— O paraíso na terra — sussurra.
— Um pedacinho dele.
— Obrigada, Fera — diz, alisando minha barba. — É o último lugar
da minha lista.
— Você disse que era o mais especial, mas tem anos que você
vem adiando essa viagem, achei que estava na hora de intervir.
— Te amo por saber o que preciso, mesmo quando não sei. — Ela
me beija com suavidade e separa nossos lábios, por uma breve fração de
tempo. — Foi onde meus pais se casaram.
Seus lábios pressionam os meus, com uma ânsia pulsante. Sinto o
aperto das suas mãos no meu pescoço e seu desespero em camuflar os
sentimentos. Amber não fala sobre os pais com frequência, e sempre que
os menciona, posso sentir o quanto sente a falta deles. O seu aniversário
é quando ela fica mais sensível e também é quando ela faz o impossível
para fingir que está tudo bem. Ela inventa mil atividades para ocupar o
tempo, mas seu humor fica péssimo e tudo a deixa chateada. Aprendi com
o passar dos anos que o melhor a fazer é fingir que não lembro e inventar
que estou cansado demais para fazer qualquer coisa, então ficamos
deitados em silêncio e esperamos o dia terminar.
Nunca perguntei o porquê de ela odiar tanto o aniversário, mas
tenho minhas suspeitas. Embora não fale sobre eles, ela escreve sobre
eles em um diário antigo. Nunca li, mas sei que é onde mora parte do seu
coração, sei que é sobre eles porque, às vezes, ela fala em voz alta
quando está escrevendo.
Com delicadeza diminuo a intensidade do beijo, sem exigir que ela
revele sua dor e sem permitir que ela esconda seu sofrimento. Caminho
para a cama, colocando-a deitada e deslizo as mãos pelo seu rosto,
expulsando qualquer vestígio das suas lágrimas, toco a ponta dos nossos
narizes e a beijo.
— Eu te amo. Por toda a minha vida — digo, passando o braço em
volta do seu abdômen. — Para todo o sempre — completo, sentindo o
bebê chutar forte. — Alguém mais está querendo dizer que te ama.
— Também amo vocês. — Ela passa a mão pelos meus cabelos. —
Você se incomoda se começar nossa lua de mel com uma história não
muito feliz? — pergunta, engolindo o choro.
Os olhos reluzem as lágrimas que ela não sabe se deixa ou não
rolar.
— Estou esperando por essa história há muito tempo.
— Eu sei. — Ela vira de lado, espalmando uma mão no meu peito.
— Obrigada por ter sido paciente comigo, por fingir que era por sua causa
que ficávamos trancados no quarto no meu aniversário e, principalmente,
por entender que não é um dia feliz na minha vida.
— Eu te amo o bastante para ficar triste com você no seu
aniversário.
— É por isso que te amo. — Ela sorri, mas as lágrimas despencam.
Um córrego silencioso recobre as pintinhas e deságua nos seus lábios. —
Todos os lugares da minha lista dos sonhos são locais onde minha mãe
gostaria de ter ido, esse é o único lugar de toda a lista onde ela esteve. —
Amber suspira e fecha os olhos, ficando em silêncio. Espero. — Meus pais
se conheceram no colegial, iriam para universidades distantes e
terminaram, mas minha mãe descobriu que estava grávida. Quando meu
pai soube, fez as malas e abandonou a universidade dos seus sonhos,
disse que poderia ser feliz fazendo qualquer outra coisa, desde que
estivesse com sua família. Minha mãe não sabia se ficava feliz ou triste,
temia que ele se arrependesse, mas o amava e concordou com o
casamento e todas as mudanças que viriam com ele. — Ela respira
pesadamente e comprime os lábios numa linha reta. Afago seu rosto com
o polegar, aguardando que ela tenha forças para continuar. — Minha mãe
tinha uma lista dos sonhos, a minha lista, lugares que ela queria conhecer.
Meu pai a trouxe para casar aqui, como prova de que o casamento não
impediria que seus sonhos se realizassem.
— Eu me daria bem com seu pai — comento, roubando-lhe um
breve sorriso.
— Sim — concorda e me dá um selinho. — Minha mãe morreu
quando nasci, por isso odeio meu aniversário. Meu pai me deu a lista dos
sonhos quando completei quinze anos, dias antes de morrer, e me fez
prometer que nunca abandonaria meus sonhos. Eu não sabia na época,
mas um aneurisma havia rompido cerca de três meses antes, ele sabia
que seria o último aniversário que passaríamos juntos e me fez prometer
que se quisesse me esconder do mundo naquela data, deveria ser no
paraíso na terra.
Envolvo seu corpo com um braço, massageando suas costas.
Amber afunda o rosto na curva do meu pescoço e chora, me deixando
conhecer o tamanho da sua dor, pela primeira vez.
— Ele disse que deveria vir para cá em todos os meus aniversários,
até que estivesse pronta para vivê-lo sem odiar o mundo.
— Prometo que vou te trazer para Cancún todo ano, mesmo que
tenha que te dopar e amarrar.
— Não posso odiar o mundo estando aqui, é impossível.
— Suspeito que seu pai sabia disso.
Mar e amor resumem a nossa lua de mel. Nós fizemos muitas
viagens juntos, só da lista dos sonhos foram dez países, conhecemos
lugares exóticos, românticos e históricos, mas Cancún foi especial. A
beleza de suas praias, o som tranquilo das águas, o extenso poente
desaparecendo, preguiçosamente, na linha do horizonte, tudo no seu
lugar. Minha mulher nos meus braços, nosso filho no seu ventre, brisa e
calmaria à nossa volta, exatamente como ela me faz sentir: no paraíso na
terra.
Queria fazer as malas e ir morar dentro daquele instante, longe de
Boston, da rotina agitada do hospital, e principalmente, longe daquela
angústia que ameaçava iniciar uma tortura no meu coração. O mensageiro
havia levado as nossas malas para o lobby do hotel. Segurando a mão de
Amber, olhei uma última vez a vista do nosso quarto e fechei a porta,
desejando não ter que partir.
Menos de quarenta e oito horas depois de pousar em Boston,
estávamos de volta aos corredores do hospital. Não tinha conseguido
encontrar com ela durante todo o dia, quando passei para vê-la, ela
estava em atendimento, portanto ignorei a angústia crescente, me
obriguei a pensar racionalmente e entrei no centro cirúrgico.
Era uma cirurgia complexa e demorada o suficiente para deter
minha atenção. Quando não havia mais riscos para o paciente, senti uma
dor aguda, um lembrete que a angústia estava à minha espera. Pedi que
o residente terminasse o procedimento e me limitei a observar sua
conduta. Tudo terminado, apertei seu ombro, parabenizando pelo
excelente trabalho e saí, despindo o avental e as luvas.
Na antessala, abro a torneira e enfio as mãos embaixo da corrente
de água, esfregando-as demasiadamente, desejando que a aquela
sensação estranha escoasse pelo ralo, desinflando meu peito. Outra vez a
dor aguda lateja e fecho os olhos, me segurando na borda da pia. Respiro
devagar. Meu pensamento voa para Amber e o bebê.
— Não tem nada de errado comigo — murmuro. —Você não faria
isso, ela já perdeu tanto — digo baixinho, com os olhos voltados para o
teto, como se só assim, Deus pudesse me ouvir. — Não posso deixá-la
também — continuo, no mesmo tom de prece. — Por favor, não agora.
Vou ser pai, quero ver nosso bebê crescer.
— Fera?
Viro rápido ao ouvir a voz do Gustavo. A dor aumenta, sinto como
se o meu coração estivesse sendo rasgado em pedaços e levo a mão ao
peito, mas nesse momento sei que aconteceu alguma coisa com eles:
minha família.
— Onde ela está?
— Você pode me ouvir antes de sair correndo? — Guga coloca
uma mão em meu ombro.
— Amber? — pergunto, porque não vai adiantar nada sair correndo
sem saber para onde ir.
— Ela está bem.
— O...
— O bebê também — completa, fazendo uma pequena pressão no
meu ombro. Ele está pronto para me conter. Fecho as mãos em punhos,
vou socá-lo, se for preciso. — Escuta primeiro.
— Fala, Gustavo! — esbravejo.
— Amber passou mal, ela estava atendendo quando sentiu a visão
escurecer e uma forte dor de cabeça, então desceu para a emergência e
foi detectado um pico de hipertensão. Ela foi medicada e a levei para
casa.
— Você a deixou só? — Aperto as mãos.
— Claro que não, Fera. Ju está em casa e ficou com ela.
— Por que vocês não vieram me chamar e por que ela não ficou
em observação?
— Porque você estava numa cirurgia e ela não quis ficar, disse que
tem uma consulta amanhã com a obstetra e preferia ficar de repouso em
casa.
— Eu tenho que ir vê-la.
— Ela pediu para você ligar antes de sair por aí feito um louco.
— Você me contaria se eles não estivessem bem?
— O que você acha, palerma? — Ele esmurra meu bíceps. — Eles
estão bem. Ligue, ouça a voz dela e volte ao seu trabalho, em algumas
horas seu plantão acaba e você corre para encontrá-los.
— Você é um hipócrita, Guga — afirmo, puxando o celular do bolso
do uniforme. — Ficou dias plantado na UTI quando Ju esteve internada e
agora age como se fosse o Dr. Maturidade.
— Nunca disse que não era. — Ele sorri. — E são situações
distintas, Júlia estava em coma, Amber e o bebê estão bem.
— Obrigado por levá-la para casa.
— Sou o padrinho desse bebê, é minha obrigação cuidar deles. —
Ele afaga meu ombro. — Preciso ir, tenho uma cirurgia daqui a pouco.
Retribuo o gesto e levo o celular ao ouvido, torcendo para Amber
atender ou nada vai me segurar nesse hospital.
— Não me diga que o Guga teve que te socar — diz, em tom de
brincadeira.
— Eu morrendo de preocupação e você fazendo piada.
— Estamos deitados, de pernas para cima, e assistindo séries na
companhia da dinda mais babona do mundo.
— Tem certeza que não preciso ir?
— Alguém nessa família precisa trabalhar.
— Quando você acordar, estarei aí.
— Com um pote de sorvete de mirtilo. Se não for assim, pode ficar
por aí.
— Sim, senhora. — Sorrio e desligo.
Mais alguns pacientes, uma cirurgia de emergência e cheguei ao
fim do plantão. A caminho de casa, passo em três supermercados até
encontrar o sorvete. Estou no caixa, efetuando o pagamento, quando
recebo a ligação do Gustavo.
— Indo para casa.
— Preciso que você volte para o hospital.
— Porra, Guga, quero ver a minha mulher — protesto, digitando a
senha do cartão. — Que tipo de emergência? Holland deve estar
começando o plantão.
— Fera, preciso de você aqui — insiste.
O tom pesaroso me atinge.
— Por quê? — murmuro, sentindo a angústia fincar as garras no
meu corpo.
— Onde você está?
Não iria esperar pela frase seguinte, não queria ouvi-lo dizer: “vou
aí te buscar”.
— Voltando para o hospital — digo, pegando a sacola com o
sorvete e caminhando para o carro.
O caos instaura-se no meu cérebro, os pensamentos se atropelam
e uma sensação de mal-estar se espalha. Dirijo no automático, apertando
o volante entre os dedos e me ocupando de manter a respiração sob
controle. Da entrada do estacionamento avisto Guga, encostado no carro
de Júlia, que está estacionado na vaga de Amber.
Pisco algumas vezes, sentindo meus olhos arderem e uma lágrima
percorrer minha face. Olho a sacola com o sorvete jogada no assoalho, no
carona está o casaco que Amber tinha esquecido. Estico a mão, puxo o
casaco e saio. Guga continua cabisbaixo, os braços apoiados sobre o
capô do carro.
— Por quê? — pergunto, engasgado pelo nó atravessado na minha
garganta. Ele ergue os olhos e volta a abaixá-los, vindo ao meu encontro.
Se ele não consegue me encarar, o que quer que tenha acontecido, é
grave. — Guga? — minha voz soa trêmula.
Seu olhar encontra o meu, reconheço o sentimento de impotência e
medo. Ele agarra meu ombro, abraçando-me e o choro rasga minha alma.
— Amber teve uma convulsão, por isso eles estão em observação.
Queria sacudi-lo e dizer que era impossível, as pessoas não têm
crises convulsivas do nada, entretanto, lembrei do mal-estar que ela teve
no dia anterior, visão turva, forte dor de cabeça, sintomas que antecedem
uma convulsão.
Por que não percebi antes? Sou médico, porra! Como não vi?
Estávamos sendo tão cuidadosos com o pré-natal, ela não
apresentou sinais de pré-eclâmpsia, não houve nenhuma alteração na
pressão arterial. Até ontem. Não fiz perguntas, continuei abraçado ao
Guga, chorando no seu ombro, enquanto meu cérebro estúpido projetava
prognósticos.
Queria fazer ele parar, porque aquilo estava me matando, as
possíveis condutas são opostas e controversas. Se por um lado a
interrupção da gestação, através de uma cesariana, vai assegurar que
não haja complicações na saúde de Amber, por outro lado, o bebê não
atingiu a maturidade pulmonar e pode não sobreviver.
Em contrapartida, a conduta expectante vai dar ao bebê mais
tempo para se devolver, o estado clínico de ambos será monitorado
diariamente, Amber fará uso de drogas anti-hipertensivas e sulfato de
magnésio para controle da convulsão. No entanto, embora os
medicamentos previnam complicações cerebrovasculares e
cardiovasculares, não altera o curso natural da doença, o que é o mesmo
que dizer que pode haver um piora clínica a qualquer momento e posso
perder a minha mulher e o meu filho.
Não consegui evitar o pensamento de que se tivéssemos
descoberto há quatro semanas, seríamos aconselhados a interromper a
gestação por indução do parto, porque a correlação entre o prognóstico
fetal e os riscos maternos seria contundente, e não estaria me sentindo
horrível só por pensar nessa possibilidade. De repente, sinto a dor no
peito mais forte do que jamais sentir. Empurro Guga, livrando-me do
abraço, e cambaleio em direção ao carro, recostando na porta, com uma
mão pressionando o peito.
— Fera? — Guga se aproxima. — Você fez a merda do check-up?
— Ele coloca minha mão no seu ombro e espalma a mão no meu peito.
— Não — confesso, respirando devagar. — Se não souber, não
preciso contar para Amber.
— João Guilherme, olha pra mim — ele exige. Ergo o rosto,
contrariado. — Você pode ter a porra de um aneurisma na aorta torácica!
É grave, você pode morrer se não fizer nada. Quer que faça um desenho
ou ficou claro?
— Não quero fazê-la sofrer.
— Faça os exames. Se for confirmado, você vai conversar com ela
sabendo o que terá que fazer. Pelo que você me falou é uma alteração
pequena, talvez precise de uma cirurgia, talvez só precise acompanhar a
evolução.
— O pai dela morreu por causa de um aneurisma, Guga.
— Mais um motivo para você investigar. Outra coisa, não vou
manter essa merda em segredo.
— Não estou com cabeça para pensar nisso agora.
— Você tem até o final da semana para marcar o check-up.
Concordo com prazo que ele me deu e seguimos para o hospital.
Amber teve uma crise convulsiva tônico-clônica generalizada,
estava internada na terapia intensiva, com monitorização cardíaca e
oxigenoterapia. Antes de entrar para vê-la, encontrei uma Júlia devastada,
sentindo-se responsável por não ter ficado de vigília. Ela estava dormindo
com Amber e acordou durante a convulsão, sentindo os solavancos. Ligou
para o Guga aos prantos, ele ativou os socorristas e a instruiu a fazer os
primeiros socorros.
Apesar de não ter vindo na ambulância, a pedido do Guga, Júlia
saiu de casa no rastro, estava descalça, vestindo um pijama e embrulhada
em um jaleco, que o Guga deve ter lhe dado. Escorada no corredor em
frente à Unidade de Terapia Intensiva, com o rosto inchado e os olhos
avermelhados, Júlia ergueu os olhos ao som da voz do Guga, mas os
abaixou assim que me viu. Se tivesse entrado direto, sem deixar o choro
diminuir a minha revolta, teria gritado com ela, ou no mínimo a ignorado.
Ela não tem culpa. Não importa se estava dormindo ou acordada, não
poderia ter evitado uma crise convulsiva. Paro na sua frente, ela levanta
os olhos úmidos, os lábios tremem, antecipando o choro. Estendo ambos
os braços e a puxo para meu peito, alisando seus cabelos.
— Sou a pior madrinha do mundo, desculpa.
— Não fica assim, Jujuba.
— Se você ou Guga estivessem com ela, saberiam o que fazer.
— Você fez o que tinha que ser feito.
— Desculpa.
— Amber vai ficar brava se souber que você está se sentindo
responsável.
— Eu deveria ter ficado de olho nela.
— Ju, você estava ali com uma amiga, ninguém esperava que você
ficasse de prontidão. Deus, nenhum de nós imaginava que isso pudesse
ter acontecido, nem Amber, senão ela teria ficado em observação médica.
— Vá vê-la e diz que estou aqui. — Ela afrouxa o abraço.
Concordo, me afastando.
Guga puxa Júlia para junto dele e sussurra: — leito oito.
Converso com o médico intensivista antes de entrar no leito, ele me
disse que ela ficaria quarenta e oito horas em observação, depois desse
período irá para o quarto ou centro cirúrgico, a depender da conduta que
iremos adotar, mas a obstetra virá conversar conosco e avaliar o quadro
gestacional.
Ser médico nessas horas é terrível, as emoções se chocam com a
objetividade com que os planos terapêuticos se esboçam na minha mente
e não importa o quanto esteja ciente de cada aspecto clínico, ao entrar no
leito e vê-la conectada aos tubos e aparelhos, sinto meu coração falhar.
— Sinto muito — diz baixinho.
— Vamos ficar bem. Nós três. — Levo a mão à sua barriga.
Ao lado dela esqueci que em breve estaríamos diante de uma
decisão importante, teria sido bom conversarmos sobre as nossas
possibilidades. Quando Dra. Phelps veio examinar o bebê, primeiro
auscultou seu coração, depois aferiu a pressão arterial de Amber, e
somente depois de analisar os resultados e conversar com o intensivista,
retornou para discutirmos a conduta a ser seguida.
O que Dra. Phelps não sabia, é que a minha mulher tinha decidido
por todos nós. O que ela também não sabia é o estado de confusão que
estou imerso, ou o quanto ouvir o coração do meu filho abalou meu
mundo. Não posso dizer que não entendo ou discordo da escolha de
Amber, porque há uma parte muito grande do meu coração implorando
para que faça qualquer coisa para salvar o meu filho, para que ele possa
ter a chance de viver e crescer. Mas há o outro lado, não consigo imaginar
um mundo sem ela, e colocar sua vida em jogo não é algo que estou
disposto a fazer.
Os argumentos da Dra. Phelps não me atingem, as palavras soam
distantes, desprovidas de emoção, o que me faz pensar que ela não tem
ideia do impacto que essa decisão tem nas nossas vidas, ela está nos
pedindo para não lutar pelo nosso filho. Amber protesta, argumenta,
defende a vida do nosso filho com unhas e dentes, ela que é tão doce e
serena, briga como uma ferina. Paralisado pelo embate no meu coração,
assisto petrificado, enquanto minha mulher barganha sua vida pela do
nosso filho.
— Amber, você está com um quadro de eclâmpsia, a conduta
expectante não é uma opção. Vamos iniciar a maturação pulmonar fetal e
nos preparar para a cesariana.
— Ninguém vai tocar no meu bebê. — Ela envolve a barriga com
ambas as mãos.
— Sua condição é grave, pode evoluir para uma Síndrome de Hellp
e aí teremos que interromper a gestação de qualquer jeito. Por que não
fazer agora? Você fica livre de complicações e o bebê terá uma chance de
sobreviver. Você tem histórico familiar de eclâmpsia, desenvolveu um
quadro de pré-eclâmpsia assintomático. Se tivéssemos tido algum
indicador poderíamos ter controlado o quadro, mas diante da gravidade
abrupta, essa é nossa melhor chance.
— Meu filho só vai nascer antes da hora se estiver em sofrimento
fetal, fora isso, vou garantir que ele possa tomar o que precise de mim, até
que esteja pronto para vir ao mundo.
— João Guilherme, acho que vocês devem conversar. Não posso
obrigá-la a fazer a cesariana, você conhece os riscos e as estatísticas.
— Nós vamos manter a gestação, até quando der — digo,
colocando minha mão junto às de Amber, bem a tempo de sentir nosso
bebê se movendo.
Dra. Phelps resmungou algo antes de sair, mas não estava
prestando atenção, porque minha mulher está com o olhar voltado para
mim, e há uma emoção diferente nele, algo como devoção. É isso, ela me
olha devotada, como se apoiar sua decisão fosse mais do que ela
esperava do meu amor.
— Obrigada — sussurra, após um longo silêncio.
— Promete que você vai lutar pela sua vida como está lutando por
ele? — Beijo sua têmpora. — Porque preciso de você, nós dois
precisamos muito que você fique ao nosso lado.
— Eu sempre vou estar com vocês, Fera.
— Não foi isso o que quis dizer.
Ela segura minha mão e a beija.
— Meu pai inventou uma brincadeira quando eu era criança. Tinha
que escrever um desejo em um pedacinho de papel, depois fazíamos uma
estrela em origami e colocávamos embaixo do meu travesseiro para
minha mãe. Quando acordava, a primeira coisa que fazia era olhar
embaixo do travesseiro e depois saía correndo pela casa, gritando que a
mamãe veio nos visitar.
— Onde você achava que ela estava?
— Ele me disse que ela era uma linda estrela e guardava todas as
minhas estrelinhas no coração.
— O que acontecia de verdade com as estrelas?
— Ele as guardava em um pote, encontrei quando ele morreu.
Claro que já sabia que não era minha mãe quem pegava as estrelas, mas
aquilo tinha se tornado um ritual nosso e nunca tinha deixado de fazer.
Todas as vezes que queria muito algo, deixava uma estrelinha para minha
mãe. O meu último desejo foi entrar em Harvard.
— Eles teriam ficado orgulhosos de você.
— É estranho não ter alguém para você correr e contar que
conseguiu. Quando recebi a carta de Harvard fiquei muito triste, porque
não tinha meu pai para comemorar comigo. Sentei no chão, despejei o
pote com as estrelas e contei uma por uma. Foi aí que decidi que as
estrelas não seriam mais pedidos, a partir daquele dia contaria sobre a
minha vida, tudo o que acontecesse de bom, e quisesse contar para eles,
deixaria registrado numa estrela. Prometi que escreveria no verso dos
desejos, assim eles podiam saber que para cada desejo que fiz, havia um
agradecimento de volta.
— Falta muito?
— Uma única estrela. Quero que você traga o pote, ele está dentro
da minha caixa de fotografias antigas.
— É seu último agradecimento, acho que você deveria esperar
para contar do nascimento do nosso bebê.
— Vou quebrar a promessa. Tenho um pedido especial. Quero viver
o suficiente para ver o rostinho do nosso bebê.
Tenho vontade de gritar e me negar a trazer o pote de estrelas.
Abro a boca para esbravejar e a dor fala em meu nome, um choro
corrosivo rompe meus lábios e as lágrimas vertem abrasivas, deixando um
rastro de destruição no meu coração. Amber leva a mão ao meu rosto, o
polegar incide sobre minha barba, afagando-a gentilmente, anestesiando
minha dor com seu amor.
— Fera? — Ela sorri e alisa todo meu rosto. — Você foi meu
primeiro agradecimento aos meus pais. — Ela aperta os lábios. — Tinha
pensado que sair da minha cidade, da casa onde cresci, seria um
renascimento, mas Harvard era muito diferente do que havia sonhado, me
sentia deslocada. Só quando conheci o Guga me senti confortável em
estar ali, ele foi gentil comigo, tinha um jeito nerd e pensei: “somos meio
parecidos”. Tirando o lado cafajeste, claro. — Ela faz uma careta.
Aliso seu rosto.
— Essa história é para me deixar com ciúmes do Guga?
— Não, porque foi só quando te conheci que soube que estava no
lugar certo. Aquele loirinho alto, todo tatuado, com ar de nerd atrapalhado,
um sorriso meio bobo e olhar espontâneo, deu um chute na dor que havia
se apossado do meu coração.
— Você também ocupou meu coração, sua baixinha nerd de olhos
curiosos.
Fui em casa buscar as estrelas que ela queria e tomar um banho,
foi somente quando tirei a camisa que notei seu casaco pendurado no
meu ombro. Lembro de ter pego sobre o estofado antes de sair do carro e
só. Tantas coisas ocuparam minha mente desde que deixei o plantão esta
manhã que poderia estar andando por aí sem roupas e não teria notado,
usar um casaco como cachecol era o mínimo. Segurei o casaco e o
aproximei do nariz, inspirando o seu perfume. Ela cheira a aconchego.
Tomo uma ducha quente, visto uma boxer e vasculho o closet,
buscando sua caixa de fotografias. Teria economizado tempo se tivesse
levado em conta a lógica, claro que Amber não teria guardado a caixa na
parte de cima dos armários, ela não alcança e sei que ela gosta de rever
as fotos dos pais com frequência. Depois de revirar metade do closet
percebi que estava procurando no lugar errado e achei a caixa no piso de
um dos armários, logo abaixo dos seus diários e agendas.
Dentro da caixa, encontro um envelope antigo, com seu nome
escrito à mão. Além das fotografias, tem uma pulseira da maternidade
com seu nome e o pote de estrelas, cheio de estrelinhas em origami,
feitas em papel colorido. Acima das estrelas, está uma pequena tira de
papel amarelo, esperando pelo último pedido. Não gosto de pensar que é
a sua última estrela, há um sentido de finitude que me faz rever e
repensar todos os acontecimentos do dia.
Estou com um possível aneurisma na aorta torácica, Amber está
com eclâmpsia e o bebê pode morrer antes de nascer. Não posso
continuar ignorando a angústia que vem se alastrando no meu coração.
Fecho a caixa, guardo de volta e sigo para a cama, segurando o pote de
estrelas. Pego o notebook na mesinha e subo na cama. Deposito o pote
de estrelas ao meu lado e procuro pelos ensaios clínicos e pesquisas mais
recentes sobre condutas em caso de eclâmpsia em gestantes com menos
de 32 semanas. Não é surpresa que as palavras que mais aparecem nos
artigos são: complicações graves, morte materna e risco fetal.
Nosso grande impasse é estar no intervalo gestacional onde não
há consenso quanto à conduta ideal, desde que as condições maternas
estejam estáveis e a vitalidade fetal não esteja afetada. Não há dados que
assegurem a conduta mais benéfica para a mãe, no entanto a conduta
ativa pode provocar danos à saúde do bebê, como hemorragia
intraventricular e síndrome de angústia respiratória neonatal.
Fecho o notebook e empurro para o lado. Estamos fazendo a coisa
certa. Seria egoísmo exigir que ela concorde com o parto imediato,
apenas na esperança que ela fique bem, quando sabemos que esperar é
o melhor para o bebê.
Não posso continuar enrolando, irei marcar os meus exames,
porque o nosso filho precisa dos pais, não podemos deixá-lo órfão. Amber
nunca vai me perdoar se descobrir que estou sendo negligente com algo
sério. Pego o celular e faço uma chamada de videoconferência para meus
pais. Eles estão juntos. Meu pai atende e gira o celular para minha mãe,
ela está cozinhando e acena, pedindo para esperar um minuto.
— Fera, o que houve? — pergunta meu pai.
— Oi, pai — digo, e é quando percebo que estou chorando. — Oi,
mãe. — Forço um sorriso, vendo-a sentar ao lado do dele.
— O que aconteceu para te deixar assim? — Minha mãe me olha
preocupada.
— Vocês ficarão chateados se eu deixar a guarda do bebê para
Guga e Juju? É que eles são os padrinhos e pensei que...
— Do que você está falando, menino? — Minha mãe se exalta.
— Fera, que conversa é essa?
— Não é nada, estou falando no caso de algo acontecer comigo e
Amber.
— Para com isso, João Guilherme — minha mãe exige.
— Por que você acha que algo aconteceria com vocês? — Meu pai
estende o braço e envolve minha mãe. — Fala, Fera, qual o problema?
— Amber está hospitalizada, ela teve uma convulsão e não sei o
que pode acontecer. Ela não quer antecipar o parto, eu também não,
mas... — Suspiro e passo a mão no cabelo, puxando-o com força. — Ela
pode morrer.
— Oh, meu Deus. — Minha mãe leva as mãos aos lábios.
— Você precisa acreditar que vai ficar tudo bem, sei o quanto é
difícil, mas você não pode fazer nada — argumenta meu pai.
— Se fizer o parto agora o que acontece? Seus irmãos nasceram
com vinte e nove semanas e ficou tudo bem.
— Os Terríveis estavam em sofrimento fetal, mãe, eles nasciam ou
morriam. O bebê está bem e Amber... — pauso, escutando meus próprios
pensamentos, que agora me dizem que é possível o bebê não sofrer dano
algum. — Ela está estável, está respondendo bem à medicação, não
apresentou edema pulmonar ou deslocamento prematuro da placenta. Ela
pode segurar a gestação. E mesmo se fizer o parto hoje, não podemos
saber se ela vai ficar bem.
— Entendi — minha mãe diz baixinho. — Você quer que a gente vá
ficar com vocês?
— Não, prefiro que vocês venham quando o bebê nascer.
— Tudo bem.
— Fera, de onde veio essa história da guarda. Que merda está
passando pela sua cabeça?
— Nada, pai. — Esfrego a mão nos olhos. — Tenho que fazer um
exame e dependendo do resultado, uma cirurgia ou um tratamento
endovascular.
— Um o quê?! — Minha mãe arregala os olhos e meu pai afaga
seu braço, acalmando-a. — João Guilherme, se você não me explicar
direitinho o que isso significa, estarei aí amanhã mesmo e vou te arrastar
para um hospital.
— Há 70% de chance de ter um aneurisma na aorta torácica. É
uma alteração pequena que um colega observou quando fiz um ultrassom
do coração e tenho que fazer outros exames para confirmar o diagnóstico.
— Por que você ainda não fez? — inqueri meu pai.
— Por que você fez um ultrassom do coração?
— Estava adiando porque não queria mentir para Amber e também
não queria contar que tenho um aneurisma. Fiz o ultrassom porque estava
sentindo uma palpitações estranhas e dor no peito.
— Faça esses exames logo, avise se pudermos ajudar — diz meu
pai. — Dê um beijo na minha nora e diga que estamos com vocês, para o
que der e vier.
— Vou encher seu celular de mensagem, perguntando desse
exame. Conte para Amber.
— Vou contar, só vou esperar ter certeza, ok? Beijo, amo vocês.
— Cuide das suas garotas.
— João Pedro! — minha mãe dá um tapa no meu pai.
— É uma menina? — pergunto, com os olhos voltando a lacrimejar.
— Maria convenceu Guga a obter essa informação. Finja que não
falei nada.
— Tudo bem, pai. — Sorrio e sinto o gosto das lágrimas no meus
lábios. — Tenho que voltar para o hospital, beijo — digo e desligo.
Eu serei pai de uma menina.
As lágrimas inundam meu sorriso, meu coração está transbordando
de amor. Imagino Amber de mãos dadas com a nossa filha e ela correndo
para os meus braços.
Amber escreveu o pedido e depositou a estrela no pote, sacudindo-
o e observando as estrelinhas se misturarem. Pedidos e agradecimentos
ao alcance das mãos. Ela teve alta da terapia intensiva e foi transferida
para um apartamento, onde ficaríamos até o término da gestação, porque
ela e o bebê precisam ficar em observação. Coloquei o pote de estrelas e
um porta-retratos, com uma foto nossa em Cancún, na cômoda ao lado da
cama do hospital.
O aneurisma foi confirmado, mas como é muito pequeno e meus
resultados de colesterol e pressão arterial estão normais, vou fazer
acompanhamento clínico e exames periódicos para observar se haverá
alguma mudança. Caso venha a aumentar, faremos uma intervenção
precoce e colocarei a endoprótese para evitar que ele se rompa, assim
não será necessário a cirurgia de peito aberto; para alegria da minha mãe.
Para não causar estresse em Amber, decidi que esperaria sairmos
daquela turbulência para conversarmos.
Chegamos às 34 semanas e foi como tirar um enorme peso das
costas, porque se houver uma intercorrência, a cesariana de emergência
está dentro do cronograma. O bebê, que eu continuava me referindo
como o bebê, para não estragar o mistério, estava muito bem, crescendo
e ganhando peso. Com o sistema respiratório e nervoso em pleno
desenvolvimento, ele começou a fase dos soluços e nos deliciamos em
sentir seus pulinhos. É um movimento cadenciado tão relaxante que, às
vezes, fico horas com as mãos na barriga de Amber, fazendo carinhos e
conversando com ele.
Júlia e Guga vêm nos ver todos os dias e se encarregaram de
terminar de arrumar o quarto do bebê, lavar as roupinhas, comprar as
lembrancinhas e arrumar a sacola para a maternidade. Meus pais e
irmãos ligam todos os dias, o restante da família pelo menos uma vez na
semana, estão todos ansiosos para conhecer a nossa garotinha.
Maria inventou mil tramoias para arrancar um nome de Amber, fez
uma lista com possíveis nomes de meninos e meninas, depois fez uma
enquete no grupo da família para ver qual o nome era mais votado, por
último inventou uma aposta falsa, para ver quem acertava se era menino
ou menina, tudo tentando comover Amber e fazê-la falar quais nomes
tinha em mente, mas minha mulher estava decidida a só escolher o nome
quando tivesse o bebê nos braços.
— Não consigo mais esconder isso de você — confesso, fazendo
as estrelas de origami para decorar o scrapbook que ela está montando,
com fotos do casamento, da lua de mel, imagens da ultrassom do bebê e
trechos dos seus livros favoritos. Ela está na cama e estou sentado numa
cadeira ao lado. — Todos sabem se é menino ou menina, inclusive eu,
porque meu pai me contou sem querer.
— Não me conte! — Ela abandona o scrapbook no colo e tampa os
ouvidos.
— Não vou contar — digo, entre risos, puxando suas mãos. — Mas
estou curioso, você realmente não pensou em nenhum nome?
— Não, então se quando você me perguntar, eu responder algo
muito estranho, lembre-se que estou sobre o efeito das dores e ignore.
— Com prazer, de jeito nenhum vou dar um nome bizarro para
nosso filho. — Aliso sua barriga. — Eu preciso te contar outra coisa.
— Tem a ver com as dores que você vem sentindo? — Ela estica a
mão e desliza no meu peito.
— Você sabe?
— Claro, Fera. — Ela move a mão para meu rosto e afaga minha
barba. — Vi você, disfarçadamente, massagear o peito tantas vezes nos
últimos meses que perdi a conta.
— Desculpa por não ter contado antes, na verdade tinha decidido
esperar o bebê nascer, mas sinto que estou mentindo para você.
— Tudo bem, não foram meses fáceis.
— Você não precisa se preocupar comigo, fiz todos os exames e
estou bem. Comecei a sentir as dores porque o estresse tem relação
direta com o... — Engasgo. — Esse problema que tenho, mas está tudo
sob controle.
— O que você tem, Fera? — Desvio os olhos. Amber segura minha
mão. — Olha pra mim e me diz o que você tem, por favor.
— Tenho um aneurisma na aorta torácica. — As lágrimas embaçam
seus olhos e ela aperta minha mão. — É pequeno, muito pequeno.
Planejei tudo com o Emment, se aumentar um centímetro que seja, vou
colocar a endoprótese.
— Um aneurisma? — murmura, os olhos voltam-se para a barriga.
— Por quê? Por que com a gente? — pergunta entre lágrimas. — Eu
deveria ter ficado sozinha com a minha dor, deixado você encontrar outra
garota, uma que não fosse um ímã de perdas.
— Você sabe que está errada. — Levanto, deixando a estrela em
cima do scrapbook. — Eu precisava te encontrar. — Enxugo suas
lágrimas. — Nós somos perfeitos juntos, sou vendaval, você é brisa. Eu
baguncei a sua vida, você trouxe estabilidade à minha. — Coloco a mão
na sua barriga, entrelaçando nossos dedos. — Ele é o nosso arco-íris.
— Guarda o scrapbook, a gente termina depois — pede, fungando.
— Deixa os papéis, porque vamos fazer nosso pote de estrelas —
acrescenta.
Fecho o scrapbook, coloco na cômoda, pego as tiras de papel que
estávamos usando, jogo todas em cima da cama e pego duas canetas.
— O que terá no nosso pote de estrelas?
— Nossos melhores e piores momentos.
— Não temos piores momentos.
— Temos sim, pelo menos um por ano é certo. — Ela arqueia a
sobrancelha. — O dia do meu aniversário.
— Espera. — Penso um pouco. — Estou de acordo, seu
aniversário está nos piores momentos, todos os anos tudo o que queria
era que acabasse logo para você voltar a ser você.
— Vamos fazer ano por ano, relembrando tudo o que vivemos.
Depois fazemos as estrelas e guardamos.
— E nos próximos anos iremos acrescentar estrelas, espero que só
tenhamos melhores momentos.
— Aniversário. — Ela revira os olhos.
— Seu aniversário é daqui a algumas semanas e tenho uma
proposta. Quando terminarmos o pote de estrelas, vamos contar quantas
estrelas temos dos melhores e piores momentos, se os melhores
momentos ganharem, você vai prometer que vamos esquecer essa
história de odiar seu aniversário e vamos comemorar por estarmos juntos
e felizes ao longo desses quinze anos. Então no próximo ano viajaremos
para Cancún, assim como nos próximos. Vamos deixar o bebê com os
padrinhos, porque é para isso que eles servem, e vamos comemorar seu
aniversário a dois, com direito a muitas brincadeiras sexuais.
— Não é justo, você sabe que vai ganhar.
— Sei. — Mordo o lábio, me aproximando do seu rosto. — Topa?
— Sim. — Ela agarra minha nuca, puxando-me para seus lábios e
beijamos-nos.
Amber teve um pequeno sangramento com 37 semanas, mas não
foi nada alarmante. Fizemos o ultrassom e o bebê está ótimo, podendo
nascer a qualquer momento.
Desde então, não tenho deixado o hospital. Júlia e Guga que têm
se encarregado de me trazer roupas. Quem não tem gostado desse
arranjo é a minha coluna, ela anda reclamando da estadia, porque antes
eu aproveitava quando ia em casa tomar banho e dormia um pouco, agora
estou me espremendo em um sofá de dois lugares, onde mal cabe meu
tronco, que dirá as pernas. Embora continue assumindo os plantões,
articulo meus intervalos para conseguir vê-la e, claro, relembrar Júlia e a
equipe de enfermagem que devem me chamar se ela entrar em trabalho
de parto.
Mais uma semana completa e a ansiedade só aumentando. A
trigésima nona semana começou com cólicas, contrações espaçadas e a
barriga enrijecida. Amber não reclamou das dores, sua expressão de
felicidade era tamanha que ela sorria diante dos primeiros sintomas do
trabalho de parto, enquanto massageava o ventre.
Tentei não sair de perto dela, mas assim que Júlia chegou, fui
chutado para meu plantão. Os argumentos eram válidos, não me restou
base para refutação. Concordei, com a condição de ser avisado assim que
a bolsa rompesse. Conscientemente, sabia que poderia demorar horas ou
alguns dias, as contrações estavam irregulares e ainda não saiu o tampão
mucoso. Todavia, a paternidade governava cada partícula do meu corpo.
Minha garotinha estava chegando, em breve ela deixaria o aconchego do
corpo da mãe e viria ao mundo, para os nossos braços.
Nas primeiras doze horas do plantão, enviei dezenas de
mensagens para Amber, e mais algumas para Júlia, me certificando de
que estava tudo bem. Parei, porque quando passei para desejar boa noite
e dar um beijo nas minhas garotas, Amber confiscou meu celular,
alegando que minha hipervigilância — palavra dela — estava deixando-a
nervosa. Devo dizer que discordo do termo que ela empregou, estou
sendo atencioso. Protestei, sabendo que era perda de tempo, afinal é ela
quem manda.
Durante a madrugada, estava em alerta pelos corredores do
hospital, teria que ouvir se chamassem por mim na ala da maternidade.
Por volta das duas da madrugada fui ao quarto, Amber estava dormindo,
Guga sentado no sofá, lendo, e Júlia também dormindo, deitada com a
cabeça apoiada no colo do marido.
Depois do episódio da convulsão, Júlia não dormia se não tivesse
alguém para vigiar o sono de Amber, por isso Guga ajustou seus plantões
para ficar com elas nas noites em que eu estivesse trabalhando.
Atualizado sobre o andamento do trabalho de parto e satisfeito em vê-la
dormindo tranquilamente, voltei para minhas atividades.
A noite virou dia, dei um pulo rápido no quarto para desejar bom dia
e avisar que estava entrando para uma cirurgia e corri para o centro
cirúrgico. Saí da cirurgia para minha sala e, assim que sentei, a mão foi
imediatamente para o telefone. Controlei o impulso. Tinha alguns
pacientes para visitar, duas altas para registrar e depois poderia ir ver se
as contrações tinham aumentado. Soltei o telefone e abri o prontuário
eletrônico, preenchi as informações necessárias e as salvei. Estava
clicando em fechar, quando meus olhos voltaram-se para a sequência de
números no canto superior direito.
Tinha estado por tantos dias no hospital que minha noção de tempo
estava precária, além disso minha vida vinha sendo contabilizada em
semanas desde que descobri que seria pai. Datas e meses tinham se
transformado apenas em números no prontuário, mas aquela não era uma
sequência de números qualquer.
Dez de junho, é o aniversário da Amber. A data que ela mais odeia.
Não tinha certeza se ela estaria lembrada, além do que, tenho um palpite
que dentro de algumas horas ela terá um motivo mais do que especial
para comemorar esta data, mas por enquanto, é um dia de tristeza e
tenho que estar ao lado dela. Encerro o prontuário. Empurro a cadeira
para trás, afastando-a da mesa e levanto, caminhando a passos largos
para a saída. Estou esticando a mão para agarrar a maçaneta quando a
porta abre e a srta. Mia, secretária da diretoria, para estatelada, tomando
a passagem e me medindo dos pés à cabeça.
Tecnicamente, ela também é minha secretária, porque sou o diretor
da equipe de neurologia e minha sala fica na ala da administração e
direção do hospital, mas quase nunca fico na sala, então não interfiro na
contratação do pessoal, embora seja constrangedor o jeito como ela me
come com os olhos sempre que nos encontramos. O que não passa
despercebido por ninguém e rende muitas piadas durante a visita
multidisciplinar, por parte dos meus caros colegas.
Espero que ela abra a boca para falar o porquê entrou afoita na
minha sala, mas acho que as piadas têm um fundo de verdade, a srta. Mia
viaja para a dimensão dos pornôs clichês quando fica na minha frente,
porque enquanto ela fica de boca aberta, percorrendo meu corpo, sinto
como se estivesse nu. É desconcertante. Coço a garganta, alto e forte, de
modo a fazê-la sair do transe.
— É-é — ela gagueja. — Pediram para o doutor ir para o centro
cirúrgico, sua esposa está em trabalho de parto.
Minha garotinha está nascendo, é só isso que meu cérebro registra.
Dou um solavanco na coitada da secretária, porém me sinto mais culpado
por contribuir para os seus delírios eróticos do que pelo empurrão de fato,
foi de leve, apenas para tirá-la da minha frente.
Corro, literalmente corro, para o apartamento onde Amber está
internada. Chegando lá, sou informado que ela está no centro cirúrgico,
informação que deixei passar quando ouvi “sua mulher está em trabalho
de parto”.O elevador mais próximo está ocupado, portanto desço pelas
escadas, saltando de três em três. Ouço os grunhidos de Amber da
entrada do centro cirúrgico.
Estou com tanta pressa, que visto o maldito avental pelo avesso.
Olha que se for fazer os cálculos, é possível já ter vestido mais aventais
do que cuecas. Tiro irritado, jogo no lixo e pego outro, tomando o cuidado
de verificar se está do lado correto.
Na sala onde Amber está, uma enfermeira me cumprimenta e
entreabre a porta para que eu entre. Parado, em frente à porta, vejo
minha mulher deitada na maca, segurando nas barras de metal, cercada
por enfermeiras e médicos. Ao seu lado direito, Júlia olha assustada, a
mão pairando no ar, indecisa entre tocar ou não em Amber. Pela
expressão no rosto da minha mulher, é mais seguro manter distância, se
não quiser perder um braço.
Não havia pensado muito no parto em si, apesar de um pouco
assustador — ou muito, se for honesto — a experiência tinha seu lado
cômico. Tomo meu lugar ao lado direito da maca e libero Júlia daquela
missão, não quero fazê-la desistir da maternidade. Deslizo minha mão
para a alça de metal, envolvendo a mão de Amber. Ela solta o metal e
crava as unhas na minha pele, apertando com força, muita força. Seu
rosto vira-se na minha direção, as pintinhas umedecidas por gotas de
suor, apesar dos doze graus do centro cirúrgico.
— Filho da puta! — exclama, esmagando minha mão. — Vou
arrancar seu pau fora, Fera — completa, provocando risos entre todos.
— Se lembro bem, você estava gostando durante o processo, amor
— provoco, acariciando sua cabeça com a mão livre.
— Oito centímetros de dilatação. Você está indo bem, Amber — diz
a dra. Phelps.
— Você está dizendo isso porque não é ... — A frase é cortada por
um urro. Amber comprime os lábios e fecha os dedos em volta da minha
mão, o que é impossível em condições normais, logo meus metacarpos e
falanges reclamam. — Quero a anestesia agora! — exige, depois de cerca
de um minuto de contração intensa. Sei disso, porque é minha mão que
está servindo de para-raios. — Agora! — pede, e antes que seus olhos
desviem dos meus, vem outra contração.
Amber joga a cabeça para trás e dessa vez sinto seus arranhões se
estendendo até meu pulso.
— Amor, você não queria tomar a peridural — digo tranquilamente,
quando ela respira, ao final da contração.
— Mudei de ideia!
— Só faltam dois centímetros, Amber — a dra. Phelps pontua.
— Foda-se! — O grito é seguido por outra contração.
— Intervalo de dois em dois minutos — dra. Phelps comenta com a
equipe, ignorando os berros da minha mulher. — Um minuto e meio de
contração — completa, no instante que Amber volta a respirar.
— Quero a porra desta anestesia.
— Nove centímetros — alguém informa.
— Dr. Riley, anestesia — dra. Phelps pede.
— Não! — Amber grita.
— Amor, você quer ou não a anestesia? — pergunto, abaixando
para ficar mais próximo dela.
— Não — sussurra, afrouxando o aperto na minha mão. — Quero!
— exclama meio segundo depois, quando tem início outra contração.
Suas unhas fincam-se no meu braço, buscando apoio.
— Dez centímetros, esqueça a anestesia — dra. Phelps avisa. —
Amber, vamos lá, faça força para baixo.
— Amor, inspire pelo nariz e expire pela boca. — Movo o polegar
na sua testa. — Tente relaxar.
— Se você continuar com essa calma, vou arrancar seus olhos. —
Amber ameaça, pouco antes de voltar a se contorcer de dor.
— Isso, Amber, está coroando. Pode relaxar, deixa ele vir.
— Tá doendo, porra!
— Eu sei, amor. — Removo sua mão do meu braço. — Vou olhar...
— Não! — Ela me interrompe, agarrando-se ao meu braço. — Se
você olhar entre as minhas pernas... — E a contração está de volta.
— Comigo — digo, inspirando e expirando lentamente.
— Não vou conseguir. — Suspira alto.
O suspiro se estende e ouço o choro da nossa garotinha abafando
todos os ruídos ao redor. Amber recosta a cabeça na maca e lágrimas
florescem. Envolvo sua mão entre as minhas e a beijo, repetidamente,
sentindo as lágrimas cortarem minha barba.
— É uma menina — dra. Phelps anuncia.
A bebê é acomodada no busto de Amber, enrolada por um lençol,
por causa do frio. Mãos enluvadas se movem por baixo do tecido,
limpando-a e garantindo que seja mantida coberta, enquanto Amber a
abraça e aninha nos braços.
Agachado, ao lado da maca, observo através de lágrimas
incessantes as minhas garotas. Apoio um braço na maca e estendo a mão
sobre elas, recobrindo seu braço e as costas da nossa filha. Sentindo a
ausência do calor e aconchego em que esteve nos últimos nove meses e
incomodada com os puxões nos braços e pernas para limpá-la, a bebê
chora. Puxo o lençol para ajustar ao seu corpinho e voltamos a abraçá-la,
assistindo-a abrir uma das mãozinhas, enquanto Amber beija seus
cabelos.
— Papai, vem cortar o cordão — a dra. Phelps convida.
Beijo os lábios de Amber, os cabelos da minha menina e pego a
tesoura que a enfermeira me oferece. Dra. Phelps segura o cordão e faço
o corte. Ajudo a enfermeira a colocar a primeira fralda da minha filha,
depois ela coloca um gorro e a roupinha, e ajuda Amber a abrir a camisola
hospitalar para deitar a bebê no seu peito e ensiná-la a amamentar.
A bebê só para de chorar quando a deixamos curtir o aconchego
dos braços da mãe. Amber a posiciona junto ao seio e a bebê abre a
boquinha minúscula, como se soubesse que vai ser alimentada. Ela é
branquinha, tem os cabelos castanhos bem clarinhos e não consigo dizer
a cor dos olhos, porque eles estão apertadinhos. Ela os abriu levemente e
piscou em seguida, todas as vezes.
Amber ajusta a mama à boquinha da bebê e ela move os lábios
sobre o mamilo, prendendo e soltando várias vezes antes de conseguir
sugar. Com um braço por trás dos ombros de Amber, assisto nossa filha
tentando mamar. Demora um pouquinho, mas ela consegue. A boquinha
fisga o mamilo da mãe e ela move os lábios rosados, em formato de
coração, fazendo um barulhinho de sucção e abre a mãozinha,
esparramando-a no seio da mãe. Sorrimos, ouvindo-a mamar com
vontade, as bochechas fofas, evidenciando um furinho no centro.
— Esfomeada como o papai, filha? — Amber ergue o rosto. — Eu
te amo — sussurra, olhando-me nos olhos.
— Pensei que você fosse arrancar... — Faço uma pausa
estratégica e meneio a cabeça.
— Eu ia. — Ela sorri. — Até ver o quão linda é a nossa filha.
— Você tinha alguma dúvida? Olha bem pra mim, não tinha como
ela não ser a bebê mais linda de todo o mundo.
— O papai é um bobo — diz Amber, em tom de cochicho, para a
bebê. — Mas numa coisa ele tem razão, você é a bebê mais linda de todo
o mundo, Hope. — Ela dá um beijo na cabecinha da nossa filha e os olhos
voltam-se para os meus.
— Nossa pequena Hope — sussurro, alisando seu rosto.
Voltamos para o quarto pouco mais de uma hora depois. Amber
estava cansada e tirava um cochilo. Hope estava conosco, sendo mimada
pelo Guga e pela Júlia. Eu estava me divertindo demais vendo os dois
brigando para ficar com minha filha no colo, me espremi no sofá e fiquei
observando uma garotinha recém-nascida manipular dois adultos.
Hope cochilava, alternando entre os braços dos padrinhos, e toda
vez que a colocavam no berço, ela choramingava e ambos corriam para
pegá-la. Se deixasse por conta daqueles dois, berço seria um acessório
inútil na vida da minha filha. Decidi intervir, antes que eles transformassem
a minha doce Hope numa ferinha, que exigiria passar as madrugadas
sendo embalada nos braços.
— Vem com o papai, filha — digo, estendendo os braços para
pegá-la.
— Não, Fera, me deixa segurar só mais um pouquinho — Júlia
protesta.
— Ela não vai dormir no berço nunca desse jeito.
— Ela estava chorando — Guga justifica.
— Vamos ver. — Pego Hope e embalo por alguns minutos.
Logo ela adormece e quero continuar segurando-a, sentindo a
respiração e o coraçãozinho batendo próximo ao meu.
— Ela dormiu, Fera — Júlia comenta, franzindo o cenho.
— Só quero me certificar que ela está dormindo mesmo.
— Fera, ela está dormindo — Guga diz, sorrindo. — Assume que
você também quer ficar com ela no colo.
— Quero, mas não vou, porque ela precisa aprender a dormir no
berço — digo, deitando-a no berço, ao lado da cama de Amber.
Basta abaixar os braços e Hope choraminga. Ouço os risos
abafados de Júlia e Guga. A verdade é que meu coração ficou apertado
por deixá-la no berço, mas não começarei a educação da minha filha
deixando-a fazer o que bem quer. Puxo o cobertor, deixando-a bem
confortável e me afasto. Ela continua choramingando por um breve
instante, mas logo se aquieta. Estico o pescoço para checar se está
dormindo. Hope está ressonando, as mãozinhas unidas, próximo ao rosto.
— Aprendam com o papai aqui. — Dou um sorriso exibido.
— Você deixou minha afilhada chorando — resmunga Guga.
— Ela não estava chorando, estava choramingando.
— Mesmo assim. — Júlia cruza os braços. — É maldade, Fera.
— Parem de drama, ela ficou quieta em menos de um minuto.
— Deixa ela ficar maior, vai fugir para nossa casa. — Guga dá uma
piscadinha e envolve Júlia pela cintura. — Vou embora, já que não posso
ficar mimando a Hope. Preciso dormir, pois pego o plantão hoje à noite.
— Você quer que eu fique para dormir com Amber?
— Não, Ju. Tirei uma licença para ajudar com a bebê nos primeiros
meses.
— Passo aqui mais tarde.
— Valeu, Guga. Se puder, dá uma conferida no quarto de hóspedes
lá em casa, meus pais devem chegar de madrugada.
— Fica tranquilo, vou deixar a chave embaixo da orquídea no
corredor, já avisei à sua mãe.
— Obrigada, Ju.
Amber desperta minutos depois. Ela pede que pegue ambos os
potes de estrelas, escreve um agradecimento aos pais e joga a estrela no
pote dos desejos, e numa outra tira de papel escrevemos juntos sobre um
dos melhores momentos da nossa vida: a chegada da pequena Hope.
A tarde voou e Hope dormiu mais do que chorou. Quando
começam os muxoxos, basta a colocar nos braços da mãe, ela se ouriça
toda, buscando pelo seio, e é só dar a primeira sugada para se acalmar.
Não quero elogiar antes da hora, no entanto, são quase nove da noite e
minha filha dorme feito um anjinho. Se ela dormir a madrugada toda, vou
ficar mal-acostumado.
Estou começando a adormecer, quando ouço Amber me chamar.
Há algo de errado com sua voz, levanto em um pulo e me aproximo da
cama, tomando sua mão entre as minhas. A camisola está com uma
mancha de sangue na região das pernas. Não preciso que ela me diga
para saber que está com taquipneia. Com uma mão massageando a
garganta, Amber tenta respirar, forçando mais o ritmo respiratório. As
batidas do seu coração soam altas e trepidantes. Aperto a campainha,
acionando a enfermagem e seguro seu rosto entre as mãos.
— Amor, se acalma. Quanto mais agitada, mas falta de ar você vai
sentir.
— Hope?
— Ela está dormindo. — Beijo sua testa e volto a pressionar a
campainha. — O que mais você está sentindo?
— Não. Consigo. Pensar. — Sua fala é entrecortada por tentativas
frustradas de puxar ar para os pulmões.
— Boa noite, o que...
Interrompo a enfermeira, não tenho tempo a perder.
— Ela não consegue respirar, acho que está com uma hemorragia.
— Deixe-me aferir a pressão arterial. — A enfermeira se aproxima.
— Posso fazer isso, vá chamar o plantonista — orderno, puxando o
medidor de pressão arterial das suas mãos.
Seguro o braço de Amber e coloco o instrumento, o resultado não é
animador: 170/120 mmHg. Lembro que guardei o estetoscópio no bolso
do jaleco quando entrei para o parto.
— Amor, estou aqui, só vou buscar algo no armário.
Em três passadas estou no armário, mais três e estou de volta à
cama, jogando o jaleco no chão e enfiando as olivas auriculares nos
ouvidos e o diafragma no seu tórax, auscultando pulmões e coração. A
plantonista entra no quarto nesse momento, viro-me para ela e a
enfermeira.
— Estertores crepitantes até o ápice, pressão 17/12.
— João Guilherme, assumo a partir daqui. — A plantonista me
afasta e coloca seu próprio estetoscópio no tórax da minha mulher.
— Está ficando... — Amber murmura. Ignoro a distância que a
plantonista impôs e me posiciono ao lado da cama, segurando a mão de
Amber. — Escuro.
— Amber, fica comigo — peço, apertando sua mão.
— Frequência cardíaca subindo muito — a plantonista diz à
enfermeira. — Avise à UTI que estamos descendo.
— Hope — sussurra e sua cabeça pende para frente.
Ela desmaiou. Levanto seu rosto, tentando trazê-la de volta.
— Ela está rígida, o ritmo respiratório está parando. — A
plantonista abre a pálpebra e acende a lanterna. — Sem reação à luz, ela
está convulsionando.
— Merda, Amber — resmungo, segurando sua cabeça de lado,
para que não sufoque com saliva ou vômito.
Não vi quando a enfermeira voltou, só percebo que ela está
presente, porque se debruça sobre a cama para puxar as alças laterais,
impedindo que Amber possa cair. A musculatura do seu tronco entra em
espasmos, a cabeça retrai, os braços flexionam e as pernas permanecem
estendidas, então os músculos contraem e relaxam, em alternância,
fazendo seu corpo tremular. A convulsão dura cerca de um minuto, no
entanto quando os espasmos param, continua inconsciente.
— Doutora, a equipe da UTI está pronta para recebê-la — comenta
a enfermeira. — Saturação de 85% — completa, verificando o oxímetro.
— Taquicardia sinusal persistente — pontua a plantonista — Vamos
colocá-la no suporte respiratório sob pressão positiva com oxigênio puro e
fluxo inspiratório de 10 litros/min, em seguida a levamos para UTI.
A mão de Amber repousa na minha.
Desfiro beijos, sentindo a suavidade da sua pele e o toque frio, uma
característica do seu organismo, sua temperatura corporal está sempre
levemente mais baixa, com exceção de quando estou dentro dela, aí seu
corpo é uma chama tórrida.
Recordo a primeira vez que segurei sua mão e o arrepio que senti
na nuca, despertando emoções que até então eram desconhecidas.
Permaneço agachado, ao lado dela, alisando as costas da sua mão com
movimentos circulares. Meu coração implorando para ela voltar.
Não deve ter passado mais do que cinco minutos desde o início da
convulsão. Para mim, parece uma eternidade. Sinto a impotência
alongando-se por minhas vértebras. Eu tenho tanto controle sobre o que
aconteceria nas nossas vidas, na sua vida, como qualquer um. De nada
vale todos os títulos e diplomas que endossam meu currículo impecável.
Sou um homem prestes a se pôr de joelhos e rogar pela vida da minha
mulher, a mãe da minha filha, a garota que me conquistou com seu ar de
deboche e olhos que me faziam promessas de dias melhores.
As palavras haviam se convertido em lágrimas, apenas choro em
silêncio, beijando e acariciando-a. Uma nuvem cinza turva minha visão.
Ouço vozes, passos apressados, alguém me arrastando, me pedindo para
soltá-la. Eles irião levá-la para a terapia intensiva, precisam conter a
hemorragia. Parte de mim sabe, mas não quero deixá-la sozinha. Resisto,
mantendo sua mão segura. Não importa que me puxem, meus braços se
estendem na sua direção.
Um choro baixo dilui o cinza que havia se espalhado pelo quarto.
Meus olhos convergem para o berço, ao lado do sofá. Volto os olhos para
Amber, ela está com uma máscara de oxigênio. Um enfermeiro tem os
braços em volta dos meus.
— Pode me soltar, só quero beijá-la. — Minha voz é entremeada
por lágrimas.
— Tudo bem — diz a plantonista.
Hope chora mais alto e seu choro corta meu coração.
— Amor, volta logo. — Beijo sua têmpora. — Vou cuidar da nossa
filha, você vai ficar orgulhosa.
Mais um beijo nos seus cabelos e deixo que a levem, enquanto
caminho para o berço e pego nossa filha no colo. Não consigo fazer Hope
parar de chorar. A embalo nos meus braços, andando de um lado ao outro
do quarto e ela esperneia, os braços e pernas se agitam, e seu rostinho
fica avermelhado. Sento, levanto, sento de novo, aproximo o corpinho do
meu rosto, beijando os cabelos e o choro continua.
Faço o possível para deitar no sofá e aninhá-la junto ao meu peito,
na esperança que o calor do meu corpo e o ritmo do meu coração possam
acalmá-la, como acontece quando ela se aninha entre os seios da mãe.
No entanto, ela se agita mais quando não encontra o seio para
amamentá-la e finalmente entendo que ela está com fome e não vai parar
de chorar até que seja alimentada.
Levanto, com cuidado para não deixá-la mais nervosa, porque
estou realmente assustado como uma garotinha tão pequena pode ficar
tão irritada. Puxo outro cueiro do berço e enfio entre meus braços,
protegendo-a. Tento colocar outro gorro, porque o que ela estava usando
caiu durante as nossas andanças no quarto. Porém, depois de algumas
tentativas infrutíferas, porque ela não fica quieta, deixo o gorro para lá,
cubro a cabecinha com parte do cueiro e sigo para fora do quarto.
Antes que chegue à entrada da neonatal, a equipe da unidade nos
vê, pelo janelão de vidro. Os berros de Hope devem estar sendo ouvidos
da entrada do hospital. Faça um gesto, indicando a porta e uma
enfermeira vai ao meu encontro.
— Você não pode ficar andando com ela por aqui, vai acordar os
outros bebês. — A enfermeira me recrimina.
— Preciso de uma mamadeira.
— Ela não está conseguindo pegar o seio?
— Amber teve uma intercorrência, não tem condições de
amamentar, ela está na UTI — explico.
— Sinto muito.
— Só preciso que você me dê algo para alimentá-la.
— Ela não tem prescrição para fórmula láctea. Um minuto — diz e
entra na neonatal.
— Aguenta um pouquinho, Hope — sussurro.
Estou me sentindo duplamente impotente, porque é desesperador
ver minha filha chorando copiosamente e não poder fazer nada. Os lábios
de coraçãozinho estão escancarados e a língua trêmula. Ela está muito
vermelha e estou angustiado de ver minha garotinha sofrendo.
— Fera? — Guga coloca a mão no meu ombro.
Viro e deixo que as lágrimas caiam.
— Sou um péssimo, pai.
— A plantonista me contou o que houve. — Ele estende o braço
para pegar Hope. — Você está dando seu melhor — diz, aninhando minha
filha. — Sei que não está sendo fácil. Hope também sabe, não é, lindinha?
— Acho que ela vai concordar que meu melhor é uma merda. —
Passo a mão nos cabelos, puxando-os. — O que vou fazer, Guga?
— Liguei para Ju, ela está vindo para cá. — Guga beija os cabelos
de Hope. — Você precisa se dar um tempo, Fera.
— Aguenta aí, vou falar com a médica da neo.
— Pode ir. Vou voltar com ela para o quarto.
Entro na neonatal, não estou com paciência para colocar toda a
parafernália, por isso fico próximo à porta e peço para uma enfermeira
chamá-la.
— Dr. Allencar. — A enfermeira com quem falei antes se aproxima.
— A doutora fez a prescrição, liguei para a farmácia e fiz o pedido, só
estamos aguardando eles virem trazer.
— Posso ter uma cópia da prescrição?
— Claro, amanhã quando a doutora for vê-la, antes de assinar a
alta, vai deixar uma cópia da prescrição com o doutor, com as proporções
e quantidade de vezes que ela deve ser alimentada.
— Ótimo.
Estava quase descendo até a farmácia quando um dos
farmacêuticos chegou com a fórmula. Enquanto a enfermeira foi preparar
a mamadeira, fiquei tirando algumas dúvidas em relação aos nutrientes e
às principais diferenças entre a fórmula e aleitamento materno. Ele me
explicou que tem a opção do leite humano pasteurizado, que é encontrado
em bancos de doação ou comercializado por grandes empresas. Pouco
depois a enfermeira volta com uma micro mamadeira e me entrega,
passando as instruções de como dar de mamar.
— Tem certeza que isso é o suficiente?
— Sim, talvez ela nem tome tudo. Lá pela madrugada, ela terá que
tomar outra mamada, irei levar.
— Obrigado.
As mães e os bebês estão querendo dormir, mas minha filha não
quer contribuir com o bom sono alheio, seu choro é ininterrupto e
estridente. Minha vontade é correr para o quarto quando saio da neonatal
e seus gritos, que estavam abafados pela acústica, tilintam nos meus
tímpanos. O que ninguém precisa é de mais barulho, logo limito a corrida
a passos largos e apressados. Entro no quarto e encontro Guga em pé,
movendo o corpo devagar. Um suspiro de alívio soa alto quando ele avista
a mamadeira na minha mão.
— Espero que isso seja o bastante — comenta, caminhando para o
sofá.
— Somos dois.
Sento no sofá. Guga coloca Hope entre meus braços e levo o bico
da mamadeira à sua boca, tentando fazê-la sugar. Ela agita as mãos e
vira o rosto.
— Acho que você tem que virar a mamadeira para cair um pouco
na boca dela — Guga sugere.
— Ela vai engasgar.
— Só um pouco, porque isso não está funcionando — diz, quando
Hope afasta de novo a mamadeira.
— Segura aqui. — Estendo a mamadeira. — Vou deitá-la no meu
peito.
— É melhor você deitar também.
Guga levanta, pega Hope e espera que eu deite, me entrega a
mamadeira e então a coloca no meu peito. Passo um braço em volta do
seu corpinho, ajustando sua cabeça e, com a outra mão, seguro a
mamadeira próximo ao seu rosto.
Ela funga, abre as mãozinhas e os lábios se fecham, pondo fim ao
choro. Ainda não terminamos. Hope choraminga, buscando pelo seio da
mãe e sigo a dica do Guga, inclino a mamadeira, encostando de leve nos
seus lábios e o líquido escorre, umedecendo-os. Minha garotinha não
perde tempo, entreabre a boca e encosto o bico da mamadeira, ela fecha
os lábios e inicia a sucção.
— Ela pegou! — Guga exclama.
— Fica quieto — resmungo.
— Olha como é linda — comenta, com olhos os vidrados na Hope.
— Olha como ela está sugando forte, está ouvindo o barulho?
— Sim. Ela me deu uma canseira.
— Como ela pode chorar tanto?
— E tão alto.
Sorrimos e depois ficamos quietos, esperando que Hope sacie a
fome. Ela faz algumas pausas e volta a mamar, até que resta apenas um
pouquinho da fórmula láctea. Ela se espreguiça, esticando as mãos e
pernas, emite um bocejo de satisfação e fecha os olhos, adormecendo no
meu peito.
— Vai colocá-la no berço?
— Agora não, quero curtir essa paz por alguns minutos —
argumento, o que faz Guga sorrir.
— Tenho que ir para o plantão, Juju deve estar chegando. Vou dar
um pulo na UTI e te mando uma mensagem.
— Obrigado — digo, alisando os cabelos de Hope. — Mais tarde,
quando Juju chegar, vou ficar um pouco com Amber.
— Ela vai ficar bem. — Ele acaricia o braço de Hope. — Tenta
dormir um pouco, enquanto essa pequena deixa.
Logo Júlia chega. Ainda estava no sofá com Hope, porque tinha
uma pontinha de medo que ela acordasse, chorando loucamente, no
momento que a deitasse no berço. Hope só saiu dos meus braços para ir
para o colo de Júlia, que se acomodou no sofá, com o minha garotinha
dormindo, como se há pouco não tivesse colocado o hospital abaixo.
Avisei à Júlia que estaria com o celular e ela podia me ligar se Hope
despertasse.
Embora todos soubessem que não era uma visita médica, ninguém
da equipe intensivista se interpôs à minha visita noturna. Primeiro, me
informei sobre a condição clínica de Amber. Eles tinham contido a
hemorragia, mas a convulsão tinha evoluído para um coma, o que eu já
estava ciente. Ela estava sob efeito de anticonvulsivantes e anti-
hipertensivos, em doses maiores do que as que vinha tomando durante a
gestação, e os medicamentos também haviam sido alterados.
O padrão respiratório estava oscilando entre hipo e hiperventilação,
com períodos de apnéia, e estava contida porque tinha apresentado
movimentos espontâneos, na forma de abalos tônico-clônicos. Não era a
melhor das sensações vê-la amarrada à maca, mas entendia que era o
melhor, se ela caísse podia sofrer danos graves. Paro ao lado dela,
afagando seu rosto e beijo seus cabelos. Ela parece tranquila e isso deixa
meu coração em paz.
— Só faz algumas horas que você está aqui e estamos com muita
saudade, mas tudo bem se você precisar de mais um tempo para se
recuperar, amor. Hope está bem, ela acordou chorando, queria mamar e
estava sentindo sua falta. Fiquei nervoso, com medo de não saber cuidar
dela sem você... nós conseguimos nos entender. Deitei com ela no meu
tórax e ela pegou a mamadeira. — Sorrio. — Mamou com vontade, uma
verdadeira Ferinha. Depois pegou no sono, toda fofa, se espreguiçando e
bocejando. — Pauso, porque se continuar, irei chorar.
Passo os próximos minutos fazendo cafuné e sentindo as lágrimas
caírem. Engulo o choro, porque de jeito nenhum ela vai me ouvir
chorando. Não vou fazê-la sofrer, só vou contar coisas boas enquanto
espero que ela volte para retomarmos a nossa vida.
— Nossa filha nasceu no dia seu aniversário, nunca mais essa será
uma data de tristeza. Você tinha prometido e agora é oficial, porque Hope
é o nosso melhor.
“Eu reconheço que nem todo dia será ensolarado. Mas quando
você se encontrar perdido no meio da escuridão e do desespero, lembre-
se: é somente na escuridão da noite que podemos ver as estrelas.”
One Tree Hill
Três anos depois...

“Vocês conhecem a história da Bela Adormecida, o que vocês não


sabem é que ela é a minha mamãe, e só por isso ela não pode vir aqui
contar como é trabalhar no hospital, ajudando um monte de crianças,
como a gente.
Meu papai também trabalha no hospital e meu dindo também, eles
usam uma roupa azul com aquele vestido branco por cima e o est-
estetoscópio, aquele negocinho que o médico coloca no ouvido e a outra
pontinha no nosso coração para ouvir os batimentos.
Minha dinda é escrevedora. Não!
(Risos).
Escritora, ela escreve monte de histórias, como a da Bela
Adormecida. Não foi ela quem escreveu essa, só tô dizendo pra vocês
entender, tá bom?
Vou apresentar a mamãe para vocês, porque ela não pode ir aí e
assim vocês podem conhecer ela. A mamãe não trabalha mais no
hospital, porque quando eu era pequeninha, bem pequeninha, uma bruxa
muito má disse que ela tinha que dar eu pra ela, a mamãe ama muito eu e
o papai, então ela me escondeu dentro da barriga e quando a bruxa
descobriu, arrancou eu da barriga da mamãe e fez ela dormir por muitos
anos.
O papai me salvou e matou a bruxa má, mas ele não conseguiu
acordar a mamãe, porque se a gente acordar ela antes dos montes de
anos que a bruxa fez ela dormir, a mamãe morre e eu e o papai ficamos
sem a mamãe pra sempre. Ela tá acordando, mas a gente não pode
apressar ela, tem que esperar aos pouquinhos.
(Lágrimas. Hope esfrega os olhos).
Eu amo a mamãe, conto historinhas pra ela e, às vezes, deito do
ladinho dela e conto as estrelinhas que eu e o papai colamos no teto. É
segredo, o papai briga quando subo na cama dela, ele diz que não pode,
porque a gente não quer assustar a mamãe, mas sei que a mamãe gosta,
porque fico fazendo carinho nela.
Eu não gosto de chorar perto da mamãe, por isso vou parar de
falar, tá? Vou mostrar o quarto da mamãe e vocês vão conhecer ela, e
quando ela acordar, vou contar que contei pra vocês o nosso segredo.
(Hope levanta, pega a câmera e vira para o quarto. Ela começa
mostrando os equipamentos, depois sobe na cama e mostra a mãe
deitada, com o respirador e os fios conectados).
Agora vocês conhecem a minha mamãe.
Ah, o nome dela não é Aurora, como na historinha. É Amber.”
Fui chamado à escola de Hope, porque aparentemente ela causou
um alvoroço, com um vídeo que fez para apresentar a mãe aos
coleguinhas. Se a professora está esperando que vá brigar com a minha
filha, de três anos, depois de assistir esse vídeo, ela deve ter algum
problema. Uno as mãos em concha sobre a boca, inspiro e expiro,
controlando a respiração, enquanto lágrimas e mais lágrimas embaçam
meus óculos e traçam sua trajetória no meu rosto, se perdendo em meio à
barba.
— Você pode imaginar a repercussão desse vídeo entre crianças
de três e quatro anos.
— Desculpe, mas não posso. — Aliso a barba e repouso uma mão
sobre a coxa. — O que posso imaginar, ou melhor, o que sei, é como a
minha filha chegou em casa chorando, correu para o quarto e se jogou na
cama da mãe, agarrando-se a ela e afundando o rosto no seu tórax,
porque o vídeo que ela fez com todo carinho, foi desligado quando ela
disse que apresentaria a mãe aos colegas e ela foi levada para a
coordenação. — Engasgo. Inspiro profundamente, de modo a impedir que
o choro me vença. — Por quê? Aquela é a mãe dela. Essa mulher, no
vídeo que acabamos de assistir, é a minha mulher, a mãe da minha filha, e
não quero que ela se envergonhe disso, assim como não quero que ela
seja repreendida por querer compartilhar com os colegas a sua história,
por desejar que eles saibam quem é sua mãe.
— O senhor precisa pensar no impacto que iria causar nas
crianças. Hope pode estar acostumada a ver a mãe numa cama, ligada a
inúmeros equipamentos, mas para as outras crianças isso seria chocante.
— Você acha que é fácil para ela ver a mãe assim? Acha que ela
não sofre? Que nós não sofremos? Pelo amor de Deus, minha filha estava
chorando no vídeo, abrindo seu coração e você ignorou todos os
sentimentos dela.
— Sinto muito, eu não podia...
— Não me interessa.
— Conversei com a coordenação e decidimos que seria melhor se
Hope pudesse trazer fotos da mãe, fotos de antes...
— A resposta é não. Ela não pode, porque é essa mulher no vídeo
que ela conhece como mãe.
— Não podemos exibir esse vídeo, as crianças vão ficar
assustadas. Na verdade, não sei de onde ela tirou a ideia do vídeo,
porque a proposta é que os pais venham à escola.
— Não se preocupe, Hope não voltará para esta escola.
— Em momento algum tive a intenção de causar este mal-estar.
— Não é um mal-estar, estou chateado pela forma como os
sentimentos da minha filha foram ignorados e não vou permitir que essa
situação se repita. Entendo que o vídeo poderia assustar as outras
crianças, mas acredito que a situação poderia ter sido manejada de outra
forma. — Levanto, me aproximo da mesa e pego o DVD. Antes de sair,
viro para a professora. — Eles são crianças, não veem o mundo através
de uma lente cheia de preconceitos como os adultos. Se você tivesse
interrompido o vídeo e explicado que a mãe da Hope está doente e por
isso tem fios e aparelhos conectados ao seu corpo, você poderia retomar
o vídeo e as crianças a conheceriam a partir dos olhos da Hope.
— Ela não precisa deixar a escola.
— Havia conversado com a coordenação e no próximo ano Hope
iria para outra escola, estou apenas antecipando essa mudança.
— Se houver algo que possa fazer para o senhor mudar de ideia.
— Não, se você prestou atenção na minha filha deve ter notado
que ela tem uma inteligência fora do comum.
— Sim, ela é muito inteligente.
— Errado, ela é excepcional. — Sorrio, olhando o DVD. — Como a
mãe.
Saí da reunião com a professora para à coordenação, pedi a
transferência de Hope e fui para casa, encontrar com minha garotinha.
Uma das enfermeiras que ficam na nossa casa tinha me antecipado
que o choro compulsivo de Hope e sua recusa em contar o motivo tinham
a ver com um vídeo que ela havia gravado. O episódio do vídeo
aconteceu ontem. Guga havia ido buscá-la na escola, como ela só
chorava e se recusava a contar o que aconteceu, ele me ligou e fui para
casa. Quando cheguei a encontrei chorando entre os braços da mãe.
Fiquei sem reação, parado aos pés da cama, olhando as minhas
garotas abraçadas. Amber está em coma há três anos, há dois anos a
trouxe para casa, montei um quarto com todos os recursos necessários
para mantê-la confortável, queria que nossa filha tivesse contato com a
mãe, o que não seria possível no hospital.
Três enfermeiras alternam os turnos para cuidar da minha mulher,
um fisioterapeuta vem todos os dias exercitá-la, para evitar o atrofiamento
dos músculos. Há pouco mais de oito meses, Amber vem apresentando
sinais de melhora, ela começou a abrir os olhos em alguns momentos,
depois tive um vislumbre daquele olhar curioso, quando ela passou a nos
seguir com o olhar.
A primeira vez que Hope a viu de olhos abertos foi uma festa, ela
sentou ao lado da mãe, ficou alisando seus cabelos e tagarelando sobre
assuntos aleatórios. Os avanços são lentos, mas gradativos, da abertura
espontânea dos olhos, Amber passou a se comunicar piscando-os. No
entanto, ela não ficava consciente todo o tempo, às vezes ela não
conseguia entender o que falávamos e seus olhos ficavam vazios, como
se estivesse perdida.
Alguns meses atrás, ela voltou à consciência, no início ficou
confusa e Hope a assustava, acho que ela não esperava acordar e ver
que a sua bebê era uma garotinha sapeca correndo para lá e para cá. Eu
sentava ao lado da cama, com Hope no colo e juntos explicávamos que
ela era a nossa filha.
O passo seguinte foi a recuperação do movimento dos dedos, ela
os mexia sutilmente, enrolando os dedos nos lençóis ou segurando
nossos dedos. Não preciso dizer que Hope ficou eufórica com esse
progresso da mãe, porque até então, apenas ela que podia acariciar a
mãe, quando esta conseguiu segurar seu dedo, foi como se tivesse
ganhado um grande abraço. Amber ainda não conseguia erguer os
braços, mas era capaz de apontar o dedo e fizemos uma placa com o
alfabeto, para facilitar a comunicação.
Dois meses depois, exatamente quando a nossa Hope mais precisa
da mãe, Amber conseguiu envolvê-la nos seus braços. Embora não tenha
firmeza, é indiscutível a força por trás deste abraço.
O período em que estive em coma é uma lacuna que nunca será
preenchida na minha vida. Quando acordei e vi aquela garotinha
sorridente, me chamando de mamãe, foi assustador. Minha filha era um
bebê, como ela poderia ser aquela garotinha?
O segundo choque foi perceber que não conseguia me mover, falar
ou qualquer outra coisa. Estava presa dentro da minha cabeça e uma
sensação de claustrofobia ameaçava me aniquilar. Então veio o Fera, e
com aquele jeito calmo e tranquilo, que só ele consegue manter mesmo
em momentos de crise, sentou ao meu lado e contou-me o que havia
acontecido.
Dia após dia, ele e Hope sentavam-se na poltrona ao lado da
minha cama e contavam histórias, falavam sobre o trabalho e a escola,
me inseriam nas suas vidas, e eu pensava no quanto era injusto não ter
morrido. A vida deles teria sido tão diferente sem mim. Fera poderia ter
conhecido alguém, ele poderia ter dado uma vida normal para a nossa
filha e seriam felizes sem meu fantasma pairando sobre suas cabeças.
Às vezes, Hope deita na cama e fica me fazendo carinho. Posso
sentir a tristeza que ela traz no coração, e não posso fazer nada, nem
mesmo abraçá-la. Outras vezes, quando pensa que estou dormindo, Fera
senta em silêncio e fica segurando minha mão. Ouço seu choro, sinto sua
dor e queria poder arrancá-la do seu peito.
A princípio estava tão frustrada que pedia todos os dias para
morrer, achava que seria a única forma de nos libertar daquela tormenta,
mas Fera e Hope se esforçavam tanto para me ouvir, que quando percebi
estava juntando cada centelha de força para responder às suas
expectativas.
Era um esforço sobre-humano controlar o movimento da mão e
conseguir apontar o dedo para o cartaz com o alfabeto que eles haviam
feito, no entanto, seus sorrisos eram a minha recompensa.
Por eles, eu lutaria.
Por eles, seria capaz de mover montanhas.
E quando vi minha garotinha desolada, chorando como nunca a
tinha visto fazer antes, me obriguei a arrastar meus braços e envolvê-la,
porque ela precisava de mim.
Minha vida tinha mudado completamente nos últimos anos, deixei
os plantões para cuidar da minha filha recém-nascida. Sempre pude
contar com o apoio do Guga e da Júlia, meus pais também ficaram alguns
meses conosco, mas era minha responsabilidade educar Hope, e um
trabalho com horários imprevisíveis não parecia o certo.
Eu e Amber tínhamos planejado alternar os nossos plantões para
que pudéssemos oferecer uma rotina organizada para Hope, com Amber
em coma, precisava rever as minhas prioridades. Mantive o cargo de
diretor da equipe de neurologia do hospital, o que só comprometia meio
turno dos meus dias, de segunda à sexta, e me dediquei ao consultório,
onde podia coordenar meus horários, de modo a estar presente na vida
de Hope e Amber.
Havia pedido à secretária para remarcar meus pacientes e tirei o
dia de folga, porque nunca havia visto Hope sofrendo tanto. Quando ela
me entregou a agenda com o pedido da professora para acompanhá-la
até a escola, imaginei que algo verdadeiramente grave tivesse acontecido.
Ela passou o restante do dia no quarto da mãe, quase não comeu e
ela é boa de garfo. Sempre peço para ela não subir na cama, porque o
peso sacoleja o colchão e tenho medo que sem querer ela acabe
machucando a mãe, mas ontem, depois de vê-las abraçadas, percebi que
ambas precisavam daquele aconchego.
Hope amanheceu ainda chorosa e não quis ir à escola. Como não
sabia o que tinha ocorrido, não fiz caso. Guga estava de folga, iria sair
com Júlia para comprar algumas coisas para o bebê, eles estão
esperando o primeiro filho, e Hope se animou em acompanhá-los.
De volta para casa, mandei uma mensagem para Guga, com um
resumo do ocorrido na escola. Ele repassou a mensagem para Júlia e
ambos me escreveram revoltados, dizendo que podia procurar logo outra
escola. Sorri e respondi que não se preocupassem com isso, porque havia
resolvido. Eles falaram que almoçariam e em seguida viriam para casa,
então almocei e fui ficar com Amber. O fisioterapeuta estava terminando a
sessão e disse que em algumas semanas é provável que ela consiga
sentar sozinha e levantar objetos leves com a mão.
— Você está indo muito bem, amor — sussurro, sentando-me ao
seu lado, após o fisioterapeuta sair. — Pode ir almoçar, Marissa — digo à
enfermeira.
Aliso o rosto de Amber e entrelaço nossas mãos. Ela faz um
movimento sutil, pressionando minha mão com a ponta dos dedos.
— Você deve ter visto Hope com uma filmadora aqui e não deve ter
entendido nada — comento, olhando-a nos olhos. Amber pisca uma vez,
confirmando. — Ela fez um vídeo para te apresentar aos colegas, se você
quiser podemos assistir juntos. Ela é extraordinária, amor. Não digo isso
porque ela é uma pequena nerdzinha, porque isso você sabe. Ela é uma
garotinha incrível, amorosa, cuidadosa e lida com nossa realidade melhor
do que muito adulto.
Uma lágrima floresce e faz seu trajeto até a máscara de oxigênio,
deixando um rastro de umidade sobre as pintinhas.
— Quer assistir comigo?
Amber assente, com um piscar de olhos. Altero o ângulo da cama,
para que ela possa ver a TV, coloco o DVD no notebook e conecto. Sento
ao lado dela, na pontinha da cama, e seguro sua mão, junto ao meu peito.
Ao final do vídeo, estamos ambos chorando. Enxugo suas lágrimas,
beijo sua têmpora e suspiro alto, tirando os óculos e esfregando os olhos.
Sinto seu toque na minha barba e abro os olhos, virando-me para olhá-la.
Amber conseguiu erguer o braço e repousa a mão no meu rosto, os
dedos acariciando-me. É um toque frágil, como um deslize acidental,
entretanto, ela está dando tudo de si nesse gesto e ele é tudo o que
preciso.
— Eu te amo tanto — murmuro, afastando alguns fios de cabelos
que ficaram grudados no seu rosto. — Lembra quando você me contou
que se sentia deslocada em Harvard? Tenho medo que seja sempre assim
para Hope. Não acho que fazê-la ter aulas particulares seja o melhor, é
algo que podemos pensar no futuro, como complemento ao seu
aprendizado, mas não agora. Não quero privá-la do convívio com outras
crianças, mesmo que, às vezes... — Sorrio — Na maioria das vezes, ela
esteja passos à frente.
Um piscar de olhos e um leve afago.
Deposito um beijo na sua testa.
— Eu a tirei da escola, porque o vídeo não foi bem visto pela
professora e você viu como Hope ficou. Ela pisca uma vez, assentindo. —
Faltam dois meses para o ano acabar, pensei em deixá-la livre esse
tempo e no próximo ano a colocamos naquela escola que conversamos.
As turmas são menores e os professores conseguem desenvolver uma
abordagem mais diretiva para cada criança.
Outro piscar de olhos.
— Mamãe, mamãe! — Hope grita do corredor e invade o quarto,
montada numa bicicleta. — Ops! — diz ao me ver.
Ela desce da bicicleta e se aproxima, ficando em pé, ao lado da
cama.
— Sobe aí.
Ela abre um sorriso, puxa a escada de três degraus e escala a
cama, se enfiando junto as costelas de Amber, que lentamente move o
braço e a envolve.
— Oi, mamãe — diz e dá um beijo na mão de Amber. — O dindo
me deu uma bicicleta nova, tem buzininha — comenta, depois me olha de
soslaio. — Você foi na escola, papai?
— Sim.
— Você também está bravo? Eu só queria que todos conhecessem
a mamãe, desculpa.
— Não estou chateado, Hope.
— Não? — Ela arregala os olhos azuis, iguais aos da avó.
— Não. Eu e a mamãe assistimos ao vídeo e estamos orgulhosos
de você.
Ela esfrega a mão nos olhos e afasta os longos cabelos castanhos,
jogando-os para o lado.
— Decidimos que você vai para outra escola, mas só no ano que
vem, portanto, comporte-se. Principalmente quando estiver sozinha com a
Juju.
— Prometo, papai. Sempre ajudo a dinda e sou boazinha, faço um
montão de desenho para o quarto do Jack.
Aos oito meses, Hope começou a andar. Ela disse a primeira
palavra aos sete meses. Queria dizer que foi papai ou mamãe, mas
perdemos feio para brócolis, dindo e estrelas. Sim, a ordem foi
exatamente essa, o que encheu o ego do Guga.
Aos catorze meses, fiquei assustado quando ela apontou para as
letras do alfabeto no tapete do quarto e as nomeou. Imaginei que ela tinha
memorizado a ordem nos ouvindo falar, desmontei o tapete acolchoado,
embaralhei as letras e fui mostrando para ela, que acertou todas.
Com quinze meses, Hope fez seu primeiro desenho, e não estou
falando de palitinhos, ela fez um desenho de uma história que tinha lido
para ela. Com dezoito meses, estava sentado com ela no colo, lendo para
Amber, quando Hope leu pela primeira vez. Aos dois anos ela já lia frases
completas de livros que nunca tinha visto, sabia contar até cem e escrever
seu nome, meu, de Amber e dos padrinhos.
Lembro que estava no hospital e Júlia me ligou em meio a risos e
lágrimas, contando que estava com Hope no quarto de Amber, quando ela
deitou no chão e começou a contar as estrelas coladas no teto. As
primeiras contas de matemática tiveram início aos dois anos e meio. Ao
três anos ela conseguia ler livros infantis inteiros e era capaz de resolver
quebra-cabeças de até cem peças.
Aos três anos e quatro meses, Hope é um dos membros mais
jovens na Associação Internacional de Superdotados Mensa, depois de
obter 148 pontos em um teste de inteligência desenhado para crianças
entre 2 e 7 anos; estima-se que o resultado de Einstein seja o equivalente
a 160 pontos.
Em outras palavras, minha filha é uma pequena gênia.
Diferente do que pode parecer, ser pai de uma criança superdotada
não é moleza. É difícil para Hope se relacionar com crianças da idade
dela, o mais comum é que as crianças não consigam acompanhar seu
raciocínio e a deixem de lado, ou ela mesmo se isole, porque não sente
uma conexão com as outras crianças.
Hope é a luz da minha vida e faço o impossível para que ela tenha
uma infância normal, com brincadeiras, joelhos ralados e pique-esconde,
mas a verdade é que as circunstâncias não são favoráveis. Ela não é uma
criança comum, é muito perceptiva e cresceu vendo a mãe em cima de
uma cama, com sondas conectadas ao corpo.
Mesmo quando tento tirá-la um pouco desse ambiente, parte de
quem ela é está aqui, e seu coração sabe disso. Ela pode viajar com os
padrinhos ou com meus pais, se divertir e curtir ao máximo o tempo com
toda a família, mas, invariavelmente, ela vai me ligar todas as noites, para
perguntar como a mamãe está e mandar um beijo.
— Tenho uma estrelinha pra fazer — diz Hope, ainda deitada ao
lado da mãe. — Não, duas! A gente pode fazer agora, papai?
— Depende, o que você vai escrever na estrelinha?
— Vou contar ao vovô e a vovó que o dindo me deu uma bicicleta
com buzininha e agora, quando eu for passear, vou fazer um montão de
barulho e eles podem dar uma espiadinha lá do céu, para me ver.
Não consigo não sorrir. Pego a mão que Amber deixou recostada
ao meu rosto e levo aos lábios, beijando-a.
— E a outra?
— Acho que são três estrelinhas. Na dois vou contar que a mamãe
me abraçou e na três que você me deixou subir na cama, agora não
preciso mais fazer escondido, aí eles não precisam mais guardar esse
segredo.
— Tudo bem, vou buscar o papel para as estrelinhas — concordo,
levantando. — Mas, quanto a essa história de subir na cama, você precisa
ter muito cuidado para não esmagar a mamãe.
— Você tá me chamando de elefante, papai? — Ela cruza os
braços e faz uma expressão de brava. — Só quem pode esmagar a
mamãe é você, Fera. Olha o meu tamanho.
— Você está me chamando de rinoceronte, dona Hope? — Estreito
os olhos e seguro a vontade de rir.
— Hum... — Ela finge pensar. — Você é o pé grande — diz, entre
risos. — Não é, mamãe? — pergunta, virando para olhar a resposta da
mãe.
Amber pisca, concordando, e Hope gargalha alto.
— Só por isso, não vou contar historinha, para nenhuma das duas.
— Vai contar sim, só durmo com historinha.
— Quem é o pé grande?
— É o dindo — diz e coloca as mãos sobre a boca, escondendo o
riso.
— Vou contar ao Guga que você o chamou de pé grande.
— Ué, se vocês têm o pé grande.,, — Ela sacode os ombros.
— Sua hamsterzinha.
— Papai, decida, não posso ser um hamster e esmagar a mamãe.
Falando em bichinhos, você pensou sobre o meu cachorrinho?
— Não. — Gesticulo com o dedo. — Talvez, quem sabe, um dia,
mas hoje a resposta é não.
— Vou morar com o dindo, ele deixa eu ter um cachorrinho.
— Esqueça a chantagem, não vai funcionar. Que tal um peixe?
— Papai, como vou brincar com um peixe?
— Não sei, você que é o gênio da casa. — Pisco para as minhas
garotas e vou atrás do papel para fazermos as estrelinhas.
Hope escreve e desenha várias estrelas no papel, depois me dá
para fazer o origami. Estrelas prontas, ela desce da cama e sobe na
poltrona. A pego no colo, coloco sobre os meus ombros e subo na
poltrona, para que ela possa alcançar o teto do quarto e colar as estrelas.
— Aqui tá bom, mamãe? — pergunta, inclinando a cabeça, à
espera do consentimento da mãe. — Aqui mesmo, papai.
Mais três estrelas no nosso céu de agradecimentos.
Volto a sentar ao lado de Amber, enquanto Hope procura um filme
para assistirmos. Ela vai exibindo as capas para a mãe e perguntando
qual prefere. Duas piscadas para não, uma para sim.
Filme escolhido, ela coloca no notebook, pega o controle e sobe na
cama, se aninhando no meu colo, como sempre fazemos. Amber estende
o braço e envolve a mão de Hope. Ajusto o áudio, jogo o controle na
poltrona e uno as nossas mãos.
— Abo.
Um murmúrio abafado distrai minha atenção do filme.
— Papai, a mamãe falou! — Hope exclama, apertando a mão de
Amber.
— Eu ouvi, filha. — Olho para Amber e a vejo mover os lábios sob
a máscara de oxigênio.
— Abo.
— O que é abo? — pergunta Hope, confusa.
— Amo — digo, aproximando meus lábios do rosto da minha
mulher. — Nós também te amamos.
Amber fecha os olhos e volta a abri-los pouco depois, uma lágrima
correndo apressada pela sua face.
— Te amo, mamãe. — Hope se debruça e beija a testa da mãe.
Nunca pensei que um dia fosse odiar rotinas hospitalares, todavia,
ter minha vida reduzida a um ciclo de procedimentos médicos
intermináveis mudou minha perspectiva. Meus dias são exaustivos e,
mesmo que todos digam que estou indo bem, uma sensação de fracasso
me persegue.
Estava ansiosa para tirar a sonda gástrica e vesical, mas quando
aconteceu, foi decepcionante, para dizer o mínimo. Não conseguia
segurar um copo ou talher, portando era alimentada na boca pelas
enfermeiras ou pelo Fera. Sentia-me envergonhada por ser cuidada por
ele como se fosse uma criança. Não importava o quanto me esforçasse,
parecia impossível ser autossuficiente e sentia que estava sendo um peso
para ele, novamente pensava em como seria mais simples ter morrido,
deixando-o livre para reconstruir sua vida.
Diariamente, dedico horas à fisioterapia, e com muito esforço
consegui recuperar o tônus muscular dos membros superiores, em
seguida tornei-me capaz de sustentar o tronco e sentar-me. Os avanços
nos membros inferiores foram incipientes. Embora consiga movimentar os
pés e flexionar as pernas, não tenho forças para levantar. A recuperação
não era total, mas o suficiente para pedir ao Fera para dispensar duas das
enfermeiras e livrar-me do quarto hospitalar.
Voltar para o nosso quarto foi reconfortante e, ao mesmo tempo,
excruciante. Na primeira noite, senti vontade de ir ao banheiro e tentei
mover-me para a cadeira de rodas, nunca tinha feito sem ajuda, e não
consegui, assim como não controlei a bexiga e urinei na cama. Fera
acordou com o meu choro, ajudou a limpar-me, colocou-me do seu lado
da cama e terminou a noite dormindo numa poltrona. Mal conseguia olhá-
lo na manhã seguinte. Deveria ficar agradecida por ele não ter feito
nenhum comentário a respeito, no entanto, a naturalidade com que agiu,
me afetou profundamente, porque me fez ver que durante o tempo que
estive em coma, ele foi meu cuidador. Conhecendo-o, como o conheço,
não deveria ter ficado surpresa.
Fera é atencioso demais para me deixar sob os cuidados de
terceiros. As enfermeiras estavam ali para suprir sua falta, quando ele não
podia estar. Entretanto, o lugar ao lado do meu leito era dele, era ele
quem me dava banho, limpava as sondas e me trocava. Não queria lidar
com essa realidade, não queria pensar no meu marido limpando minhas
fezes ou minha menstruação, não podia suportar.
Na primeira semana que seguiu ao fatídico incidente do xixi na
cama, logo após o jantar eu fugia para o quarto. Entretanto, vê-lo
brincando com Hope é o ponto alto do meu dia, por isso abandonei a ideia
de refugiar-me e todos os dias vamos juntos para a cama. Fera me beija e
me recolho do meu lado da cama, aproveitando o tempo que ainda tenho
com ele.
Minha mente não para, me pergunto se tem outro alguém na sua
vida, como deve ser triste não poder assumi-la por minha causa, porque
sei que ele não faria nada para me magoar. Todas as noites digo para
mim mesma que só preciso de mais um dia com ele. Todas as noites
penso onde ele gostaria de estar. E todas as noites adio a nossa
despedida.
— O que você está fazendo? — pergunta Júlia, erguendo a tela do
notebook, a qual havia abaixado intencionalmente, assim que ela entrou.
— Vocês vão mudar daqui? Por quê? A cadeira de rodas não é...
— Não vamos — a interrompo. — Eu vou.
— Amber, o que você está pensando em fazer?
— O que é preciso.
— Você não pode estar falando sério. — Ela fecha o notebook e
senta no braço do sofá. — Preciso de um motivo.
— Fera.
— Ele vai ficar arrasado.
Meus olhos lacrimejam.
— Você não quer deixá-lo, Amber. Por que está pensando nessa
bobagem?
— Por ele. — Fecho os olhos.
— Ele vive por você e pela Hope.
— Exato. — Abro os olhos, deixando uma lágrima rolar.
— Ele te ama, Amber. — Ela coloca a mão em meu joelho.
— Ele teve alguém?
— Estamos mesmo falando do Fera? Você já o viu olhar para outra
mulher?
— Tudo mudou. — Abaixo os olhos e fito minhas pernas.
— Vou dar na sua cara, Amber! Olha pra mim, tenho uma cicatriz
tomando metade do meu rosto, não tenho uma perna e nunca me senti
tão feliz.
— Esse tempo — pauso, porque não consigo formar frases longas.
— Em coma — outra pausa. — Mudou as coisas.
— Ele fez o que pode, ele te incluiu em cada decisão, tanto quanto
era possível. Nunca conheci alguém tão devotado, e sei, porque
acompanhei de perto o quanto ele abdicou de si mesmo para estar com
você, para dar àquela garotinha a família que vocês planejaram juntos.
— Eu sei — murmuro.
— Amber, entendo que você está vivendo um momento difícil,
entendo de verdade, porque também tive que lidar com perdas, mas
diferente de você, eu precisava estar sozinha. Guga e eu tínhamos
seguido caminhos opostos, você e Fera estão juntos, vocês estiveram
juntos por metade de suas vidas. Ele nunca te deixaria.
— Preciso fazê-lo.
— Por quê?
— Ele não faria.
— Você precisa se escutar, porque isso é um completo absurdo.
Fera te ama, é por isso que ele está com você.
— Por toda. Minha vida — digo entre pausas, relembrando nossos
votos, a promessa que fizemos um ao outro.
— Converse com ele, deixe que ele conheça seus medos.
— Não é fácil.
— Sabe o que mais chama atenção no relacionamento de vocês?
— Dou de ombros, esperando que ela prossiga. — Vocês conhecem um
ao outro como ninguém e nunca deixaram um problema se impor entre
vocês, porque nunca tiveram segredos. — Ela segura minha mão. —
Vocês são meu casal favorito no mundo.
— Não somos mais... — Puxo minha mão e levo ao rosto,
afastando as lágrimas. — Aquele casal. — Inspiro devagar. — Há um
abismo — pauso. — Entre nós.
— Você está afastando-o.
— Porque o amo.
— Acho que Fera pode decidir o que é melhor para ele.
— Você não entende. — Coloco as mãos em concha sobre a boca
e o nariz, inspirando e expirando. Júlia espera. Abaixo as mãos e olho
para ela. — Ele é incapaz... — suspiro, tomando fôlego — de me deixar —
aponto para minhas pernas — assim.
— Por favor, me prometa que vai conversar com ele.
— Prometo.
Precisava estar pronta para deixá-lo ir e só de pensar em vê-lo
longe, sentia meu coração partindo-se.
Amber progrediu muito nos últimos meses, está fazendo
acompanhamento com a fonoaudióloga e consegue articular frases
simples, além das memórias e atividade cognitiva estarem intactas.
A recuperação dela é inexplicável em termos médicos, as imagens
e resultados dos seus exames neurológicos estão sendo estudados pela
Academia Americana de Neurologia. Assim como o caso de Amber, dados
de outros pacientes que saíram do coma após anos, são discutidos e
analisados, numa tentativa vã de compreender o milagre da vida.
Enquanto neurocirurgião, olho as neuroimagens da atividade
cerebral do tempo em que Amber esteve em coma e não sei como
explicar sua reabilitação. Enquanto seu marido e pai da sua filha, só tenho
a agradecer por haver mais mistérios do que aquilo que conseguimos
desvendar.
Ela ficou dois anos e dois meses em coma profundo e levou oito
meses, desde o seu despertar, para ser capaz de recobrar parte da sua
independência. Amber estava se acostumando à cadeira de rodas e, às
vezes, sentia muita dor nos membros, mas conseguia se virar bem
sozinha.
Todas as noites Amber lê uma das estrelinhas, e assim ela vai se
atualizando dos nossos melhores momentos nos últimos três anos. Sei
que ela tem muito para processar e tenho tentado deixá-la ter um pouco
de espaço, mas o seu olhar tem me feito pensar que tem algo de errado.
Vejo como ela se relaciona com Júlia e Gustavo, com Hope, e até com o
fisioterapeuta, fonoaudióloga e enfermeira. Ela é espontânea e decidida, a
garota extrovertida e curiosa que me conquistou. Comigo ela tem estado
introspectiva e diria que um tanto pesarosa.
Fui desabafar com Guga e ele acha que estou com ciúmes, não
descarto que tenha um pouco de ciúmes envolvido, afinal estou
esperando para beijá-la e estar com ela nos meus braços há três anos. No
entanto não é somente ciúmes, ela está distante, emocionalmente
distante. Há um mês e alguns dias, ela voltou para o nosso quarto. Espero
desde o primeiro dia para dormir de conchinha, sentindo seus cabelos
espalhados no meu rosto e o corpo colado ao meu, para senti-la se
acomodar nos meus braços, entretanto, ela tem se esforçado para
construir uma muralha entre nós.
Quando deito, me ofereço para massagear suas pernas, as vezes
ela aceita, outras não. Todas as vezes tento um beijo, que nunca passa de
um selinho, porque ela me afasta e diz “boa noite”, então ficamos em
silêncio. Olhos nos olhos, numa disputa silenciosa para ver quem será o
primeiro a dizer algo que não faço ideia do que seja, o que sei é que é
assim que me sinto, como se ela estivesse esperando por algo.
Enquanto não descubro o que Amber espera que eu faça, ou diga,
me entretenho planejando uma viagem especial. É nosso primeiro Natal
juntos e quero torná-lo inesquecível. No primeiro Natal de Hope, Amber
ainda estava no hospital e não iria levar nossa filha de seis meses para
uma UTI. Nos anos seguintes, Hope viajava com os padrinhos para
celebrar com a família, enquanto eu ficava com Amber.
Estou ciente que irei ouvir protestos da família, estavam contando
que este ano estaríamos todos juntos, contudo, quero estar a sós com
minha mulher e filha. Um momento nosso, como a nossa viagem para
Cancún, só que dessa vez uma viagem com programas mais família.
— Não estou acreditando que você está raptando Minha
Espoletinha — Guga reclama, enquanto pintamos o quarto do bebê.
— Minha filha, está lembrado? O seu está no forno.
— Temos toda uma programação especial, com biscoitos para o
Papai Noel e espionagem de madrugada.
— Guarde as ideias para a Páscoa.
— Você é tão antinatalino.
— Você sabe que essa palavra não existe, né? Tem certeza que foi
esse o verde que Juju pediu? — pergunto, analisando o tom da parede. —
Pra mim, parece meio azul.
— Ela disse que queria verde turquesa, foi o que comprei, mas pra
mim também é azul.
— Vamos apenas torcer para que ela saiba que verde turquesa é
um tipo de azul.
— Se ela me fizer pintar esse quarto de novo, vou despachá-la
para a casa dos pais até o bebê nascer.
— Mais fácil ela te esquartejar e usar seu sangue no quarto do
bebê. Eu tinha gostado do verde água, embora também não parecesse
verde.
— Minha mulher é maluca e está com mania de verdes que não
parecem verde. Estou pensando, se eu der o presente que comprei para
Hope antes dessa viagem, você não vai conseguir tirá-la de casa.
— O que diabos você comprou agora, Gustavo? — Coloco o rolo
no chão, em cima do jornal, porque Júlia está me dando medo
ultimamente. — Daqui a pouco terei que comprar um apartamento no
andar de baixo para fazer uma extensão do quarto dela.
— Você ainda não superou o quebra-cabeças do sistema solar,
Fera?
— Se você está se referindo ao quebra-cabeças 3D que ocupou
mais da metade da sala de estar da minha casa, então a resposta é não
— afirmo, fazendo Guga gargalhar.
— Porra, vai negar que o brinquedo é foda?
— Brinquedo? — Reviro os olhos. — Pode deixar que vou arrumar
uns brinquedos assim para o meu afilhado. Você vai entender como é
divertido brincar de cama de gato enquanto tenta se mover dentro de
casa.
— Vamos comer alguma coisa. — Ele larga o rolo no jornal. —
Hope só gosta dessas coisas porque ela é um gênio, vai ser meio difícil ter
outro gênio na família.
— Não se preocupe, vou dedicar minha vida a arrumar brinquedos
que vão te enlouquecer. — O acompanho para fora do quarto. — Fala
logo que raios você comprou de presente de Natal.
— Um telescópio e um quebra-cabeça da capela sistina — diz,
virando-se para me olhar. — Não é em 3D — emenda.
— Aposto que não tem menos de 15000 peças.
— Isso é verdade — concorda, soltando uma gargalhada. —
18000.
— Se a Juju não te matar até o final da gestação, me aguarde. —
Esfrego as mãos. — Jack vai derrubar essa casa com minha ajuda.
Auckland, Nova Zelândia.
Aqui estamos.
Se tivesse contado para alguém qual era o nosso destino, com
certeza teria recebido duras críticas, afinal Auckland não é uma cidade
onde o Natal é comemorado com tanto furor, todavia, a ideia dessa
viagem é estarmos juntos, apresentando Hope ao tipo de viagem que nós
gostamos de fazer, não apenas para conhecer lugares legais, mas
principalmente para absorver um pouco da cultura local. Além disso, Hope
ama elefantes, e o zoológico de Auckland tem um programa especial
voltado para os elefantes.
Estamos hospedados em quartos conjugados. Hope dorme no
próprio quarto desde bebê e dorme muito bem, a noite inteira. Pensei que
um conjugado nos daria um pouco de privacidade, e com o clima certo e a
vista perfeita, Amber abaixaria as defesas e aceitaria meu amor.
Gostaria de pensar positivo, mas talvez a minha mulher não me
ame mais. Não sei do que estou falando. Estou frustrado e com um puta
tesão, o que pode estar afetando minhas sinapses. Honestamente, estou
com raiva e me sentindo um idiota, porque desde que ela entrou na minha
vida não houve mais ninguém.
Não deixei de amá-la nem por um único segundo, não deixei de
acreditar que ela sairia do coma e voltaria para mim nem por um instante,
a amei todos os dias dos últimos dezoito anos e continuo amando, mesmo
quando ela rejeita o meu beijo e se esquiva do meu toque. Eu apenas não
posso evitar ficar com raiva, porque estou mendigando seu amor e nem
assim ela me estende a mão.
Primeira noite e Amber acabou dormindo com Hope. Pode não ter
sido intencional, estou ciente, a viagem foi cansativa, quase um dia em
trânsito, contudo, também estava exausto e isso não me impediu de
desejar estar na cama ao lado dela.
Ignorei o mau-humor e me esforcei para termos um dia agradável,
visitamos algumas feiras ao ar livre, dois museus e o Sky Tower,
conhecemos alguns cafés e restaurantes, onde fizemos paradas ao longo
do dia. De volta ao quarto do hotel, assistimos um filme, na nossa cama,
com Hope, deitada entre nós. Quando o filme terminou, Hope estava
dormindo. Dei um beijo nos seus cabelos, levantei, beijei a testa de Amber
e disse que iria para o outro quarto. Ela não reclamou, concordou com um
balançar de cabeça e me retirei irritado.
Assim como na segunda noite, na terceira e quarta, dormi no quarto
que deveria ser de Hope. Demorei para dormir, pensando no que iria
fazer, porque aquilo não estava funcionando, não podia continuar com
Amber se ela não quisesse, e se tivesse que chutar a sorte, diria que o
amor que ela tinha por mim se transformou em algo fraternal. O problema
é que não tenho esse tipo de sentimento por ela e continuar nessa história
está começando a me fazer mal. Eu a amo e a desejo demais para
conseguir conviver com seu distanciamento.
Finalmente, iríamos visitar o zoológico e Hope me acordou dando
pulos e gritos. Ajudei Amber a passar para a cadeira de banho e fui dar
banho em Hope, quando terminamos, voltei para levar Amber para o
quarto. Ela tinha separado as roupas que iria vestir e ficou sentada na
cama, vestindo-as, enquanto fui ajudar Hope. Ambas prontas, foi a minha
vez.
Estamos tomando café, antes de dar início ao passeio, quando uma
pergunta me pega desprevenido.
— Por que vocês estão zangados? — pergunta Hope, estreitando
os olhos.
— Não estamos zangados — respondemos em uníssono.
— Por que o papai está dormindo na minha cama?
— Porque você dorme toda noite na nossa cama, então vou para a
sua, para todo mundo ficar confortável — minto.
— Eu não sou boba, sabia? — Ela cruza os braços.
— Hope, é verdade — Amber intervém.
— Então tá. — Ela abaixa os olhos para o prato e nos ignora.
— Hope? Está tudo bem, prometo.
— Papai, por que você está mentindo? — pergunta, com a voz
chorosa, e esfrega a mão nos olhos, escondendo as lágrimas.
— Hope, o papai não está mentindo. — Amber alisa o rosto dela.
— Tá sim, eu sei. — Faz bico. — Você não mente pra mim, papai, a
gente fez juradinho, não pode mentir.
— Filha, não estou mentindo. — Levanto e agacho na sua frente.
— Olha para o papai — peço. Ela vira e passa as mãos no rosto,
enxugando as lágrimas. — O papai e a mamãe estão um pouco
cansados, nada que você precise se preocupar.
— A gente não precisa ir ver os elefantes, a gente pode ficar e
descansar.
— Depois do zoológico a gente descansa — digo e dou um beijinho
de esquimó. — Cadê meu sorriso favorito?
— Fugiu.
— Traz ele de volta.
— Não consigo agora.
— Tudo bem. — Aperto sua mão. — Eu te amo.
— E a mamãe?
— A mamãe também. — Olho para Amber.
Uma viagem em família.
Um Natal a três, como nunca tivemos.
Em outras circunstâncias, estaria radiante, contudo, tudo o que
vinha na minha mente quando pensava nesta viagem era o quanto de
trabalho daria ao Fera e o quanto de decepção isso provocaria.
Um mês passou desde que voltamos a dividir a cama, meu esforço
na fisioterapia foi recompensado e a tragédia da nossa primeira noite não
se repetiu. Sou capaz de mover-me da cadeira de rodas para a cama e o
sofá, consigo vestir-me e comer sozinha, embora sejam processos
demorados, mas ainda dependo de ajuda para mudar da cadeira de rodas
para a cadeira de banho e vaso sanitário, o que implica em momentos
constrangedores.
Ver a animação de Hope e do Fera, me fez acreditar que mesmo
que chegássemos ao fim do nosso casamento, aquela viagem seria uma
lembrança calorosa para meus dias sem ele. No entanto, nós parecíamos
um trem fora dos trilhos e a viagem tinha tudo para ser o muro onde nos
chocaríamos.
Logo na primeira noite percebi que seriam dias longos. Fui colocar
Hope para dormir enquanto Fera tomava banho, ela adormeceu rápido e
fiquei alisando seus cabelos. Estava evitando ver o meu marido sem
roupas, vê-lo de boxer ou calça de pijama era o suficiente para me
torturar, imaginando se o piercing continuava adornando sua glande, e
desejando que ele ainda me quisesse do mesmo jeito de antes. Não
houve uma noite desde que passei a dormir ao lado dele, que não tenha
acordado de madrugada, ansiando pelo seu toque, e todas as vezes ele
estava deitado de costas.
Ouvi quando Fera saiu do banheiro, iria esperar alguns minutos
para ir deitar com ele, mas então escutei o barulho da TV. Ele estava
escolhendo um filme e em nenhum momento foi me chamar. Abracei a
nossa filha e fechei os olhos, espantando as lágrimas que ameaçavam
cair, e adormeci. Na segunda noite, Hope estava conosco na nossa cama,
assistindo filme. Ela dormia quando o filme teve fim e pensei que Fera
fosse levá-la para o conjugado, no entanto, ele beijou seus cabelos,
beijou-me na testa e disse que dormiria no outro quarto. Apenas assenti,
não exigiria que ele passasse as noites comigo, se ele não queria.
O mesmo se repetiu nos dias seguintes e, de repente, a nossa
situação estava tão insustentável, que uma garotinha de três anos sentiu
a necessidade de intervir. Tudo bem que Hope não é uma garotinha
comum, mas daí a perceber que seus pais estão em crise, é um longo
caminho, o que só podia significar que não havia mais saída, tínhamos
nos chocado com o muro e precisávamos lidar com o que tivesse restado
do nosso casamento.
Por todos os anos juntos, por tudo o que ele fez por mim e por todo
o amor que tenho por ele, preciso ter coragem de colocar em palavras o
que venho confabulando há um mês. Mesmo que seja difícil, mesmo que
vá partir meu coração, preciso permitir que ele encontre sua felicidade.
A visita ao zoológico serviu para devolver o sorriso ao rosto da
nossa filha e enquanto a observo fazer carinho em um elefante, meu riso
vem fácil. Não importa se seguiremos caminhos paralelos, Hope será
sempre o nosso melhor.
— Ela não é linda? — pergunta Hope.
— Muito linda.
Sinto dedos entrelaçando-se aos meus. Desvio os olhos de Hope e
vejo Fera beijar minha mão, posicionando-se ao lado da cadeira de rodas.
Ele sorri e volta-se para Hope.
— Como você sabe que é menina?
Volto a olhar a nossa filha. Ela está fascinada com o elefante, os
olhos brilham e a mão pequena não para de acariciar o animal, que
parece estar gostando muito.
— Ela não tem os dentes saindo aqui do ladinho da tromba.
— Só por isso?
— Sim, papai. Os meninos têm os dentes, as meninas não. Você
sabe que a gente fala macho e fêmea, né?
Gargalho com o comentário.
— Ah, é?
— Sim, sim. Ela tem dez anos, tava dizendo na placa ali embaixo.
Sabia que ela já pode ter bebês?
— Não, de jeito nenhum. Ela está muito nova para pensar em
bebês — ele argumenta, fazendo-me rir.
— Você sabe que ela está falando do elefante? — murmuro.
— Não é não, papai. Com nove anos ela já pode ter bebês e ela
fica com um barrigão por mais de seiscentos dias, é um tempão.
— Ainda acho que ela é muito nova para bebês.
— Ela pode viver até quantos anos?
— Oitenta, igual a gente. Se ela tiver solta por aí, até sessenta,
mamãe.
— Imagina carregar esse orelhão por oitenta anos.
— A orelha dela não é tão grande, papai. — Hope leva à mão até a
orelha do elefante e a alisa. — Os elefantes africanos têm um orelhão
bem maior.
— Ela é o que? — questiono.
— Um elefante asiático, eles são menores.
— Ela parece enorme pra mim — ele provoca.
— Ela é um elefante, papai — diz, sorrindo.
A visita ao zoológico se estendeu por todo o dia, se dependesse de
Hope, dormiríamos lá mesmo, junto com os elefantes. Ela também adorou
a visita aos pandas amarelos e às tartarugas de galápagos, porque pôde
alimentá-los e fazer carinho. Tivemos que prometer levá-la outro dia, mais
cedo, para poder fazer um passeio com a chita. No hotel, pedimos o jantar
no quarto e depois colocamos um filme. Menos de dez minutos depois,
Hope nos beijou e desceu da cama.
— Vai onde? — pergunto.
— Dormir.
— Sem historinha e sem filme? — Fera pergunta.
— Eu penso numa historinha. — Hope passa a mão nos cabelos,
jogando-os para trás. Ela nos dá as costas e segue andando para o
conjugado. — Boa noite, amo vocês — diz, sob o batente da porta.
— Boa noite, amamos você — dizemos em coro.
— Descansem — pede e fecha a porta.
Não soubemos como reagir. Olho para a porta que divide os
quartos, a porta que dorme aberta todas as noites e que Hope fechou,
reforçando o pedido implícito na última palavra que nos dirigiu: façam algo
antes que não haja volta.
— Acho que recebemos um ultimato — comenta Fera.
— A gente precisa se esforçar mais se quisermos enganá-la.
— Parece que somos os únicos enganados.
O telefone do quarto toca. Estreito os olhos. Estendo o braço e
pego o telefone.
— Alô.
— Sou eu, mamãe.
— É Hope — murmuro. — Precisando de uma historinha?
— Não, só para avisar que tranquei as portas do quarto e tô com as
chaves. Não se preocupem, quando acordar, deixo vocês sair. Boa noite.
— Desliga.
— Ela nos trancou aqui — comento, estarrecida.
— O quê?
— Ela nos trancou.
Fera levanta e verifica as portas.
— Deveria ter uma escola para pais de superdotados, não consigo
prever o alcance da inteligência dela.
— Precisamos conversar.
Que tipos de pais precisam que a filha de três anos e meio diga
quando algo está errado entre eles?
Aparentemente, o pai que prefere adiar uma conversa por medo de
levar um pé na bunda e a mãe que adia o pé na bunda para não ferir o
sentimento do homem que um dia abalou seu mundo, e de repente
tornou-se um amigo querido.
Nosso único assunto têm sido Hope.
Será que nossa filha é tudo o que temos em comum?
Quando nos tornamos um casal que simplesmente coexiste?
Nós nunca brigamos, mas também nunca deixamos nenhum
problema de lado, a cada vez que discordávamos ou tínhamos opiniões
distintas, sentávamos e conversávamos, no final encontrávamos uma
solução.
O pior é não saber qual é o problema. Crio histórias e explicações
para o seu distanciamento, mas é tudo suposição. Descobri que tenho
uma mente bem fértil e que meu cérebro é um filho da puta escroto,
porque até imaginar que ela se apaixonou pelo fisioterapeuta e que vai me
deixar para fugir com ele já pensei. Se pelo menos Amber me desse um
motivo. Se ela me der uma chance para reconquistá-la, sou capaz de
contar todas as estrelas do céu e replicá-las em pequenas estrelas de
origami, como prova do meu amor.
Não acredito que haverá um dia que não irei desejar estar com ela,
é uma convicção carregada de certeza, do tipo que só os loucos têm,
diriam meus colegas psiquiatras. Foda-se! Se você ainda não sabe,
aprenda, a gente não deixa o amor da nossa vida cair fora assim, a gente
luta, até o último suspiro, para fazê-lo desejar ficar.
Ela ajeita os travesseiros na cabeceira e recosta neles.
— Eu sei — digo, voltando para a cama. Sento junto aos
travesseiros e posiciono-me de lado, semideitado, com os olhos entregues
aos seus gestos. — Estava tentando adiar ao máximo.
— Eu também — murmura, movendo-se na cama, para ficarmos na
mesma posição. — Isso é difícil. — Ela fecha os olhos.
Tomo seu pulso na minha mão. Amber ainda está recobrando sua
habilidade de comunicação, quanto mais longas as frases, mais tempo ela
precisa para construir as sentenças. Todavia, não tenho certeza se é
sobre essa dificuldade que ela está se referindo.
Ela sorri e os olhos examinam minha expressão. O silêncio
perdura. Movo o polegar no seu pulso, contornando suas veias, sentindo
sua pulsação aumentar à medida que envolvo mais do seu pulso e
sutilmente diminuo a distância entre nós. Ela ergue a mão esquerda e
desliza os dedos no meu cabelo.
— Eu te amo, Fera. — Vejo quando uma lágrima desponta e
escorrega pela lateral do seu rosto. Não a impeço, continuo acariciando
seu pulso. — Obrigada por ficar ao meu lado. — Ela levanta meus óculos.
— Você não gosta mais dos meus óculos? — A pergunta que
queria fazer não era essa, queria perguntar quando ela deixou de me
querer como homem, mas ainda não consigo fazê-la. — Se for isso, faço o
sacrifício de usar lentes em casa também.
— Amo te ver de óculos. — Ela sorri. — Mas também amo seus
olhos, e quero vê-los despidos. Já faz um tempo, né?
Há mais nessa pergunta do que aparenta. Nunca gostei de usar
lentes de contato, mas sou muito atrapalhado e sempre acabava
esquecendo os óculos em algum lugar, então me conformei que o melhor
era usar lentes no dia a dia. No conforto de casa, os óculos são meu
refúgio e faço absolutamente tudo com eles, nunca lembro de tirar antes
do banho e quase nunca antes de dormir, mas quando fazemos sexo, ela
sempre tira meus óculos.
— Muito tempo.
— Você ainda tem o piercing?
— O que há de errado com a gente, Amber? Estamos dormindo na
mesma cama há mais de um mês e você ainda não me viu nu. O piercing
continua aqui, coloquei para você, não tiraria sem que soubesse.
— Há tanta coisa contida nessa pergunta, Fera.
— Nas suas também. — Coloco sua palma sobre o meu peito.
— Não é fácil fazer o que você fez por mim. — Ela vira para colocar
os óculos sobre a mesinha. Quando volta à sua posição, afaga minha
barba com a mão livre e pressiona a palma no meu tórax. — Você
assumiu meus cuidados íntimos. — Ruboriza.
— Eu faria tudo de novo, sem pensar duas vezes.
— Eu sei. — Ela fecha os olhos, tentando impedir que outra lágrima
percorra seu rosto. — É por isso que estou te liberando do nosso
compromisso. — Aperta os lábios.
Estou confuso. Passo o braço em volta do seu corpo e a trago para
mais perto. Amber aproxima os lábios dos meus e me dá um selinho. Não
reajo, porque meu cérebro está em suspenso, esperando pelo momento
que ela vai perguntar se podemos ser amigos.
— Se apaixone — diz, olhando-me nos olhos.
— Amber, o que...
— Mais do que qualquer pessoa, você merece ser feliz.
— Estou feliz. — As palavras saem apressadas e percebo que não
estou sendo totalmente honesto. — Quer dizer, não estou exatamente
feliz com... nós, porque você tem sido distante e fria. — Removo sua mão
do meu rosto e uno nossas palmas, seus olhos convergem para nossas
mãos. — Não sei o que você quer de mim, Amber. Quando tento te beijar,
você me rejeita e tenho começado a pensar se devo insistir ou... —
Engulo em seco. Meus olhos pousam sobre as nossas mãos. — Deixar
que você vá — completo no instante que nossos olhos se encontram. —
Vejo um pesar constante sobre seus olhos quando estamos sozinhos. O
que você espera que eu diga todas as noites quando nos deitamos?
— Que vai me deixar — sussurra.
— Por que você quer que diga que vou te deixar? — pergunto
irritado. — Me deixa esclarecer uma coisa, estou apaixonado. — Deslizo
os dedos entre os seus, fechando nossas mãos. Ela cerra os olhos. —
Continuo apaixonado por você.
Ela abre os olhos, o tom castanho mesclado com a vermelhidão
provocada pelas lágrimas.
— Fera...
— Estou puto da vida com você — digo ríspido. Ela arregala os
olhos e morde o lábio. Solto sua mão e levanto. — Porra, eu te amo,
Amber! Se fiquei ao seu lado, se cuidei de você, foi por amor. Não tinha
nenhuma garantia que você um dia fosse sair do coma, podia ter te
deixado no hospital ou colocado numa casa de repouso, seguido com a
merda da minha vida, saído com outras mulheres, quem sabe até ter dado
outra mãe para nossa filha — argumento, andando pelo quarto, porque
estou irritado demais para ficar parado. Ela está encolhida junto aos
travesseiros, com a cabeça baixa e os olhos evitando os meus. — Mas
não fiz nada disso, porque independente do que acontecesse, não podia
ignorar os meus sentimentos. — Volto para a cama, sento de costas para
ela e me jogo para trás, fitando o teto. — Estive com você todos os dias.
Fiz o melhor que pude para ser um bom pai e marido. Todas as decisões
que precisei tomar, pensei no que você diria, no que você iria querer para
nós. — Inspiro profundamente. — Nunca quis outra mulher. Nunca me
toquei nos últimos três anos, porque achava errado ter prazer, enquanto
você estava sofrendo.
Ouço seu choro baixinho.
Choro também.
As lágrimas tocam meus lábios e escorrem pelo meu queixo,
caindo em cascatas pelo meu pescoço.
O tempo passa e ela não faz nenhum movimento, tampouco eu.
Se não estivéssemos trancados, teria deixado o quarto minutos
atrás.
Levanto e sigo para a varanda, porque estou sufocando com seu
silêncio. Empurro as portas e deixo que elas batam. Não vou olhar para
trás, não vou continuar mendigando atenção. Sento no chão, deixo uma
perna estirada e flexiono a outra, apoiando o braço. Bato a parte posterior
da cabeça na parede, em movimentos repetitivos.
Com o olhar perdido no céu e sentindo o frio congelando meu tórax,
busco compreender a lógica absurda que Amber está empregando. É
inútil, minha insanidade não vai tão longe.
Como ela pode pensar que iria deixá-la?
É ela quem está agindo como se não me quisesse por perto.
A porta entreabre. Ela empurra a cadeira de rodas pela varanda,
faz uma manobra para ficar de frente para mim.
— Fera, está frio, volta para o quarto.
— Estou bem, Amber — digo, sem olhá-la.
— Vai começar a mentir agora?
— Qual a novidade? Você não acha que sou um grande mentiroso?
— Bato a cabeça na parede com mais força.
— Para, Fera. Claro que não.
— Não?! — Abaixo os olhos e a encaro. — Se não sou um
mentiroso, como você chegou à conclusão que quero te deixar? Foi por
todas as vezes que disse que te amo? Ou minhas tentativas de dar uns
amassos na minha mulher? Não, já sei! Foi essa viagem? Você pensou
que te trouxe para uma viagem em família, porque queria sair e trepar
com a primeira que passasse. Claro, é por isso que reservei quartos
conjugados, assim enquanto você dormia com nossa filha no quarto ao
lado, eu fodia algumas desconhecidas. Sou muito estúpido, não tinha
percebido o que estava fazendo. Eu não deveria estar aqui, não é?
Deveria sair para catar uma...
— Cala a boca, João Guilherme!
Seus olhos estão vidrados nos meus, as narinas infladas, os lábios
em linha reta, os seios subindo e descendo, apressados.
— Olha só. — Sorrio com deboche. — Parece que ela está viva.
Finalmente, hein? — Bato palmas.
— Idiota! — Ela acerta um tapa no meu rosto.
Levo a mão ao rosto.
Amber sai arrastando a cadeira.
Levanto, ainda sentindo o rosto ardendo. Seguro a porta que ela
soltou com tudo, depois de passar, e a sigo de volta para o quarto.
— Você ficou maluca? — Ela me ignora. Posiciona a cadeira de
rodas próximo a cama, sobe nesta e se enfia debaixo dos lençóis. Amber
deita, virando-se para o lado. — Estou falando com você! — Puxo os
lençóis.
— Vá à merda, Fera!
— Você me deu um tapa!
— Desculpa — diz entre lágrimas.
Ah, porra. Assim ela me fode.
— Não precisa chorar. — Sento ao seu lado. — Tudo bem.
— Não acho que você está mentindo quando diz que me ama, sei
que você me ama, Fera. — Funga. — Não quero que você deixe de me
amar. Você acha que seremos como antes, mas... Sei quais são as suas
preferências e...
— Nem continue. — Coloco um dedo sobre seus lábios. — Só
tenho uma preferência. — Salto por cima dela e deito, puxando-a para
mim. — Que seja com você — digo, avançando minha mão por suas
pernas. — Diz o que você quer primeiro, Amber. — Resvalo minha língua
entre os seus lábios. Ela geme e as minhas bolas pulsam. Vou gozar em
cinco segundos. Mordisco seu lábio e ela se esfrega na minha mão,
deixando-me sentir o quanto está molhada. — Ser fodida pela minha
língua ou pelo meu pau?
Chuto minha calça fora ao mesmo tempo que meus lábios cobrem
seus seios com beijos e lambidas. Os seus gemidos estão me levando ao
limite. Eu tenho seu seio na boca e chupo-o incansavelmente, dando
breves mordidas nos mamilos, o que a faz se contorcer. Com uma das
mãos apalpo o seio livre, empurrando abaixo sua camisola, enquanto com
a outra mão massageio o clitóris.
Sinto ela molhada e quente, escorrendo pelos meus dedos e por
suas próprias coxas. Eu quero lambê-la, tanto quanto quero continuar
chupando seus seios e enterrar-me no seu interior. Isto está sendo
malditamente insano. Quanto mais forte abocanho seus seios, mais duro
fico. Amber trava as unhas nas minhas omoplatas e escava minha pele.
Estou salivando para tê-la na minha boca.
Arrepios sobem e descem minha coluna. Deslizo dois dedos no seu
interior e sinto o calor e o aperto que meu pau está ansiando para tomar
para si. Preciso estar dentro dela. Minhas mãos agarram a camisola e
rasgam-na de cima a baixo, exibindo-a para mim. Amber tira os braços
das alças do que um dia foi uma camisola e empurra minha cabeça para o
seu centro. Finalmente ela decide o que quer primeiro.
Paro diante da sua boceta, ela está muito úmida. Sua calcinha está
repuxada para o lado. Quero amplo acesso, por isso prendo a calcinha
entre os dentes e arrasto por suas pernas, jogando-a no chão. Ela não
para de gemer e abre mais as pernas, oferecendo-se para ser chupada.
Debruço-me sobre o seu corpo e tomo seus lábios em um beijo
intenso, gemendo na sua boca. Meu pau está entre suas coxas, o piercing
pincelando sua entrada.
— Fera, por favor.
— Eu não vou aguentar muito, amor — aviso, sugando seu lábio.
— Possivelmente, vou vir quando sentir seu gosto.
— Quero que você venha na minha boca. — Ela aperta minha
bunda.
Não preciso de outro convite. Giro meu corpo, apoiando os joelhos
ao lado da sua cabeça e mergulho minha língua entre suas pernas.
Primeiro mordendo o interior das suas coxas, depois lambendo-a,
chupando-a e somente depois preenchendo-a com meus dedos. Minha
língua saboreia seu clitóris e se diverte, sugando os grandes lábios, e
intercalando mais lambidas e chupões.
Amber não coloca meu pau na boca de imediato, ela o lambe
vagarosamente, percorrendo cada centímetro, e em seguida gira a ponta
da língua na glande, circundando o piercing e encaixando-a na abertura
da uretra, forçando a língua na cabeça do meu pau. Mal posso suportar
esta tortura, gemo contra sua pele macia, mordendo-a e fodendo-a com
minha língua.
Quando ela me leva em sua boca, engolindo meu pau e
atravessando-o por sua garganta, sou obrigado a morder a parte interna
da sua coxa para conter um urro. Ela pressiona a pélvis contra meu rosto,
exigindo que retome as carícias e o faço de bom grado, beijando seu feixe
de nervos, sugando-o e deslizando minha língua entre os grandes e
pequenos lábios.
Ela está pingando, seu suco escorrendo na minha cara,
lambuzando minha barba e fazendo-me o homem mais feliz da porra do
universo. Ao primeiro tremor do seu corpo, intensifico as chupadas, ela
está vindo e não quero perder uma gota. Os sons provocados pelo
movimento que ela faz com meu pau na boca e seus gemidos abafados
estão tomando tudo de mim, e ela quer mais. Os dedos apertam meus
glúteos, empurrando-me contra sua cabeça, dando-me o aval para fodê-la
também na boca.
Inicio um ritmo suave, oposto as suas chupadas violentas e ela
engole mais do meu pau, colando seus lábios na minha virilha, ao mesmo
tempo que sua mão envolve meus testículos. Amber arqueia as costas
parcialmente e o meu rosto se perde entre suas pernas, lambendo-a do
clitóris ao ânus. Nossos corpos estremecem e três coisas acontecem,
simultaneamente.
Um, suas mãos deslizam dos meus testículos ao períneo.
Dois, seu gozo deflagra em meus lábios.
Três, meu gozo preenche sua garganta.
Ondas de prazer fazem meu corpo vibrar. Levando-a comigo,
desabo na cama, agarrado aos seus quadris, bebendo tudo o que ela tem
a me oferecer. Ela passa a língua nos meus testículos e beija a glande,
prendendo o piercing entre os lábios.
— Dez minutos de intervalo e voltamos ao jogo. — Dou um tapa na
sua bunda. — Se anima de ir para banheira?
— Isso é fodidamente tentador, mas não sei se vai funcionar.
Sento, cruzando as pernas, e estreito os olhos.
— Primeiro, estava falando de irmos relaxar. Segundo, estou ciente
das suas limitações. Terceiro, aposto que conseguimos transar na
banheira.
— O que estamos apostando? — Ela arqueia a sobrancelha.
— Um piercing íntimo. — Umedeço os lábios. — Em você.
— Você ainda não desistiu dessa ideia? — pergunta, sentando-se.
— Nem vou. — A puxo para meu colo.
— Desafio aceito, Fera — diz, beijando-me.
— Amo que você nunca fuja de um desafio, mesmo sabendo que
vai perder.
— Já pensou que posso perder de propósito?
Três anos depois...

Mãe e Pai, estou realmente animada com essa história de lecionar,


nunca tinha pensado nisso, mas acho que Fera tem razão, levo jeito para
ser professora.
Os alunos foram receptivos e pude ver nos seus olhos aquele brilho
ansioso para desvendar o mundo. Vou gostar de compartilhar minha
paixão pela medicina com eles, quem sabe posso contribuir para torná-los
profissionais que além do domínio da técnica, tenham um olhar humano
para com seus pacientes.
A verdade é que estou feliz por me sentir ativa novamente, não
nasci para ser esposa e mãe em tempo integral, estava começando a ficar
obsessiva e eles logo iriam querer me ver a quilômetros de distância.
Será que foi por isso que Fera sugeriu que me inscrevesse para
lecionar em Harvard?
Ah, esse meu marido!
Obrigada por terem dado um empurrãozinho para as nossas vidas
se encontrarem, porque não sei o que faria sem ele. Tenho uma vaga
ideia de como seria minha vida se não tivesse topado com meu nerd
tatuado e prefiro do jeitinho que ela é, com a nossa Hope e ao lado do
homem mais perseverante, leal e companheiro que o mundo já conheceu.
Por falar na Hope, essa última semana foi atribulada por causa do
início das aulas, estava fazendo os planejamentos e tentando não surtar
de ansiedade, acabei esquecendo de escrever, ela fez um teste de
nivelamento e seus resultados foram compatíveis ao Junior High School.
Imagina que loucura, ela entraria na universidade aos dez anos.
Os professores conversaram conosco, queriam saber se poderiam
adiantá-la. Nós pedimos um tempo para pensar, afinal não é algo simples.
Temos uma filha com uma inteligência extraordinária, e estamos
conscientes disso, por outro lado, Hope é uma criança.
Nós pensamos e repensamos, conversamos com a psicóloga dela
e decidimos que não iremos fazê-la avançar nos estudos, porque
emocionalmente ela é uma menina de seis anos e deve vivenciar cada
fase do desenvolvimento sem pressa. Ser criança também é importante e
vai contribuir na formação da sua personalidade.
Nós percebemos que aos poucos ela está conseguindo se
relacionar melhor com outras crianças. Acho que Jack tem uma
importância imensa nesse processo, conviver com o primo tem permitido
que ela perceba que coisas que para ela são divertidas, podem ser
cansativas para seus amigos, assim como compreender que na
brincadeira é o imaginário que conta, não precisa haver um sentido lógico
envolvido.
Há algum tempo, a convivência dela com os primos era difícil,
principalmente com Logan, que é apenas dois anos mais velho, eles
sentavam para brincar e dois minutos depois estavam brigando.
Felizmente, não temos mais tantas brigas. Quando a família se reúne,
Hope mostra sua incrível capacidade de adaptação ao universo do outro.
Podemos vê-la brincando com Jack, jogando videogame com Logan —
incluindo aqueles jogos onde você sai roubando carros e matando
pessoas, o que antes rendia intermináveis brigas, porque ela batia o pé
que aquilo era errado e não tinha jeito, não adiantava explicar que era só
um jogo e que Logan sabia que na vida real não podia fazer aquilo — ou
conversando com Ben, sobre sistemas de computador e sei lá mais o quê.
Por hoje é só. Fera está me esperando para irmos jantar, é nosso
aniversário de casamento. Seis anos. Bodas de perfume, ou açúcar.
Como as pessoas são criativas, hein? Tem bodas que não acabam mais.
Meu marido, como um autêntico romântico, faz questão de me presentear
com uma aliança com o símbolo das bodas. Quero só ver como ele
arrumou uma aliança de açúcar.
Beijos, amo vocês, continuem olhando por mim e pela minha
família.
Amber Watson Allencar

Guardo o diário, escolho os sapatos e olho-me no espelho. Havia


colocado uma maquiagem leve, apenas o batom se destacava. Sorrio
comigo mesma, satisfeita com a imagem que vejo.
Três anos após sair do coma, ainda faço acompanhamento psico e
fisioterápico. Embora minha mobilidade das pernas tenha ficado limitada a
movimentos de flexões, reconquistei minha autonomia e autoestima, o que
foi fundamental para reconstruir o vínculo com meu marido e filha.
Pego minha bolsa sobre a cômoda, deposito no colo e conduzo a
cadeira de rodas rumo à sala de estar. Fera está sentado no sofá, com
Hope deitada no seu colo, gargalhando. Quando alcanço o corredor, ele
ergue os olhos e sorri com malícia, dando uma piscadela.
— Mamãe, posso ir com vocês? — pergunta Hope, saltando do
sofá.
— Hoje, a noite é de adultos.
— Quando é a noite das crianças? — Ela cruza os braços.
— Sem noite das crianças. — Fera puxa a orelha dela. — Vai dar
um beijo na mamãe antes de ir para casa do dindo.
— Eu tentei — diz, soltando um suspiro de frustração e correndo na
minha direção. — Boa noite, mamãe. — Beija-me no rosto. —
Comportem-se, viu?! — diz, arqueando as sobrancelhas.
— Comporte-se a senhorita — diz Fera.
— Boa noite e nada de ficar acordada até tarde.
— Eu sei, mamãe. — Ela pisca, pega um livro na mesa de centro,
dá um beijo no pai e corre para a casa dos padrinhos. — Juízo!!! — grita
do corredor.
— Juízo para você também! — responde Fera. — Você está
maravilhosa. — diz, ajoelhando na minha frente. Ele segura minha mão e
desliza um anel de pirulito no meu dedo. — Por toda minha vida — diz e
beija minha mão.
— Por todo o sempre — digo, afagando seu rosto. — Mesmo que a
aliança só dure até a sobremesa — completo, fazendo-o rir.
— Fera, seu filho da mãe!
Guga para na porta da cozinha, usando uma calça moletom, os
cabelos desgrenhados e descalço.
— Teve um bom dia de folga?
— Você vai agora, pegar Hope e Jack e levá-los para um passeio
pelas próximas horas.
— Por quê? Eles estão se divertindo tanto — diz Amber, sorrindo, e
parando a cadeira de rodas junto à mesa. — Fera, depois você reclama
que não te deixo cozinhar em paz. — Ela desliza a mão no meu abdômen.
— Parem com isso — Guga resmunga. — Eu preciso dormir e você
decidiu montar um autorama na minha sala, porra!
— Um presente para o meu afilhado. Ele adorou. — Dou de
ombros.
— Você venceu, a porra desse brinquedo está me enlouquecendo,
agora faz eles pararem, por favor. É a minha folga e não consegui cinco
minutos de sono porque tem um carro roncando na minha sala.
— Amor, você ouviu, ele disse que eu ganhei.
— Não pode voltar atrás, Guga. — Amber sorri.
— Eu faço até uma camiseta dizendo que você é o melhor nesse
lance de brinquedos para enlouquecer os pais, apenas some com aquele
autorama.
Guga é louco por Hope, posso dizer que ela arrebatou seu coração
nos três primeiros segundos em que ele a viu. Desde a gestação, ele tinha
vestido a camisa de padrinho, mas quando Hope nasceu, ser padrinho
tornou-o um segundo pai para minha filha. Não precisava perguntar se
podia contar com ele, Guga estava lá, ao meu lado, em todos os
momentos.
O seu amor pela minha filha não é demonstrado apenas em gestos,
ele não mede esforços para agradá-la e quando descobrimos sua
inteligência excepcional, Guga se dedicou a encontrar brinquedos que
pudessem deixá-la extasiada. Brinquedos realmente formidáveis, mas que
quase sempre ocupam muito espaço e me deixam louco porque provocam
uma bagunça.
O nascimento de Jack foi a oportunidade perfeita para uma
revanche. Guga não achava que eu fosse capaz de competir com ele,
porque precisava escolher brinquedos que meu afilhado entendesse e
pudesse realmente se divertir, assim como me divertiria atormentando seu
pai. Nos últimos dois anos, nossos presentes para as crianças se
transformaram numa competição de como infernizar mais o outro.
Confesso que a maioria das batalhas eram vencidas por ele, mas
continuava na busca do brinquedo que me faria vencer a guerra.
— Só tem um problema, ainda tenho quatro anos de brinquedos
para ficarmos quites.
— Porra, Fera!
— Você é um molenga, Gustavo — debocho. — Chega lá e diz que
a brincadeira acabou.
— Não consigo, por mais que esteja me matando, não consigo
pedir que eles parem. Toda vez que tento, vejo os sorrisos nos rostos
deles e desisto.
— Ahhh, que fofo — comenta Amber.
— Ainda vou levar bronca de Júlia por causa da bagunça na sala.
— Guga, você é tão inocente. Você acha que iria arriscar minha
pele para te infernizar? Júlia liberou o autorama.
— Filha da mãe!.
Eu e Amber gargalhamos.
— Só você mesmo para aguentar esse barulho o dia todo.
— Estávamos nos segurando para não ir acabar com a farra antes
que você viesse reclamar — diz Amber.
— Vocês estão esperando eu implorar?
— Isso seria interessante. — Amber arqueia a sobrancelha.
— Pode começar.
— Porra, é sério? — ele resmunga.
— Não, Guga! Deixa comigo, vou enquadrar aqueles dois.
— Senta aí — digo, enquanto Amber vai buscar Hope e Jack. —
Para demonstrar que tenho bom coração, você pode jantar com a gente e
ficamos com Jack essa noite para você dormir.
— Amanhã você busca os dois na escola, porque estarei
hibernando.
— Me superei com o autorama, fala sério.
— Jogada de mestre — concorda e ambos sorrimos.
Em cinco minuto, ouvimos a gargalhada das crianças na sala de
estar. Hope vem correndo para cozinha. Abaixo para abraçá-la.
— Como foi seu dia? — pergunta, beijando meu rosto.
— Bem e o seu? — Beijo sua têmpora.
— Muito legal, o dindo nos buscou na escola, aí almoçamos e
ficamos brincando no autorama. Sou mais rápida que Jack, mas não conta
pra ele.
— Segredo. — Pisco.
— Amanhã vou com a mamãe levar as toalhas da Elis para bordar,
então a gente deixa o museu para outro dia?
— Claro.
— Vou ajudar a dar banho no Jack — diz e sai correndo, do mesmo
jeito que entrou. Sempre correndo.
— Estou fodido. — Guga coça a cabeça. — Júlia chega sábado e
tinha esquecido de repintar o quarto, tenho que terminar antes de ela
voltar.
— Acho que você não vai hibernar amanhã. — Dou risada. —
Tenho a tarde livre, posso te ajudar.
— Faça-me um favor, da próxima vez que me ouvir falando em ter
outro filho, lembre-me que a minha mulher fica completamente pirada e
instável quando está grávida. Se eu não ouvir, corte meu pau fora.
Gargalho alto.
Após o jantar, Guga voltou para casa. Eu e Amber nos sentamos no
chão da sala e ficamos brincando com as crianças. Eles pulam, gritam,
dançam, e dão muita risada. Enquanto correm para lá e para cá, noto o
olhar distraído de Amber, indiciando que sua mente está viajando.
— Onde você está? — A cutuco.
— Você queria outro filho? — pergunta baixinho.
— Nunca me ocorreu esse pensamento — digo a verdade. Ela fica
em silêncio. — Amber, não...
— Não precisa dizer nada. — Ela me dá um selinho. — Você os
coloca para dormir? — pergunta, puxando a cadeira de rodas.
— Claro — digo, segurando-a e impedindo que ela sente-se na
cadeira. — Espera por mim? — peço, dando-lhe um beijo.
— Vou tentar — diz, fingindo um bocejo.
Sei que ela quer um tempo sozinha, por isso fico brincando com as
crianças mais um pouco, depois os levo pra cama e conto uma história até
eles dormirem. Quando entro no quarto, ouço Amber fugando. Dispo a
calça de moletom, visto um pijama e deito, abraçando-a por trás.
— Sei que está acordada. — Beijo seu ombro, afundando meu
rosto na curva do seu pescoço. — Não arriscaria te perder, não depois de
tudo o que aconteceu.
— Também não teria coragem, Fera — diz, virando-se. — Eu me
odiaria se fizesse você, Hope e outra criança reviverem aquele inferno.
— O que importa é que permanecemos juntos. — A beijo. —
Adoção?
— Hope é o bastante para transbordar meu coração de amor. —
Pontua, removendo meus óculos. — É que, às vezes, sinto falta do que
não tive, como mãe.
— Isso não te faz menos mãe, você sempre foi o colo para onde
ela corria quando precisava se sentir protegida contra o mundo.
— Obrigada por ter me feito presente na vida dela, se não fosse por
você, eu seria uma estranha para a nossa filha.
— Não é todo mundo que tem a sorte de ter uma mãe capaz de
brigar com o mundo por você. Ela precisava saber que a mãe é uma
mulher de garra.
Epílogo

— Mamãe, acorda. — Hope me sacode. — Vamos, mamãe, é


nosso dia, a gente tem um montão de coisas pra fazer.
— O quê?
— Acorda, mamãe!
— Onde está o seu pai?
— Papai mandou você se vestir e ficar bem linda, porque nós
vamos passear de barco.
— Barco?
— Sim!!!
Hope não para de pular enquanto não saio da cama para a cadeira
de rodas. Entro no banheiro e ela no meu closet, em busca de roupas que
combinem com barcos, de acordo com sua lógica. Quando terminei o
banho, encontrei um amontoado de roupas de listras azul marinho, branco
e vermelho sobre a cama.
— Você tem que escolher uma dessas, para combinar com o nosso
passeio e comigo — diz, girando e exibindo o vestido azul marinho com
listras brancas.
Concordo e escolho um vestido de alcinhas, rodado e nas mesmas
cores do que ela está usando. Estou penteando os cabelos quando Hope
entra novamente, correndo e segurando dois chapéus.
— Olha o que o papai trouxe! — diz, colocando um chapéu na
minha cabeça. — Estou linda? — pergunta, vestindo o outro chapéu.
— Sempre linda!
— Vamos? — pergunta Fera, entrando no quarto, vestido com uma
roupa de marinheiro, com direito a quepe e tudo.
— Espero que você saiba onde está se metendo — comento,
umedecendo os lábios.
Fera aproxima-se, apoia as mãos no encosto da cadeira de rodas e
abaixa, beijando meu pescoço.
— Sei bem onde quero me meter — sussurra.
— Minha calcinha deu perda total — digo baixinho.
— Se comporte, estamos indo para um passeio em família — diz
sorrindo, virando-se e pegando Hope no colo. — Soube que tem uma
aniversariante ansiosa para ver as baleias.
— Eu!!!! — exclama Hope.
— Não é melhor irem só vocês? Barco não parece um lugar com
muita acessibilidade.
— É para isso que você tem marido, para te carregar no colo onde
a cadeira de rodas não pode ir. — Ele brinca.
— Ah, é? Acho que quero visitar as pirâmides do Egito.
— Seu pedido é uma ordem. — Ele pisca. — Próximo ano, estarei
vestido de faraó. Agora vamos, temos muitas atividades programadas.
Tínhamos um barco inteiro para nós três. Fera posicionou minha
cadeira de rodas na cabine e com Hope pendurada no leme, navegamos
mar adentro, procurando pelas baleias. Assim que avistamos algumas
saltando ao longe, Hope largou o leme e correu para proa, gritando em
comemoração.
Ficamos um tempo parados próximo ao local onde haviam muitas
baleias. Fera levou-me no colo para a proa e nos sentamos no piso do
barco, assistindo Hope vibrar a cada baleia que via.
Estava anoitecendo quando Fera voltou para a direção, deixando-
me deitada com Hope na proa, contando as estrelas. Pensei que
estávamos indo para casa, mas em alguns minutos, ele voltou segurando
dois bolos pequenos, na palma das mãos e cantando “parabéns para
você”. Hope levanta, pulando, e acompanha o pai, batendo palmas. Apoio
as mãos no piso e me sento.
— Parabéns para as minhas garotas — diz, aproximando os bolos
para apagarmos as velinhas.
— Faz um pedido, mamãe. Vamos juntas.
— Três, dois, um — contamos em coro.
Sopramos as velas, Hope se agarra ao meu pescoço, dando-me
um beijo demorado na bochecha, depois pega o seu bolo e senta.
— Mamãe, você pode dividir o seu com o papai?
— Quero um pedaço de cada.
— Ah, não, papai, é todo meu — diz, dando uma mordida no bolo.
— Que menina gulosa! — perturbo.
— Puxei ao papai — diz, fazendo-nos rir.
Depois de comermos os bolos, voltamos a deitar e Hope tagarela
sobre estrelas e planetas até adormecer. Fera leva-a para cama, numa
cabine na parte inferior do barco e volta com um edredom. Ele forra o piso
de madeira, senta e puxa-me para seu colo.
— Soube que você vai realizar meus desejos, capitão. — Mordo os
lábios, desabotoando sua camisa.
— Feliz aniversário, meu amor — sussurra, beijando-me.
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