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Adão Cromossomo-Y e Eva Mitocondrial

No seu esforço por desvendar a história biológica do homem moderno, a Ciência


contemporânea obteve nos últimos anos diversos resultados que merecem uma atenção
especial.

Durante mais de cem anos, e até duas décadas atrás, os fósseis foram os indiscutíveis
protagonistas das pesquisas que tentam reconstruir o passado evolutivo da humanidade.
Mas esse quadro mudou drasticamente graças ao extraordinário desenvolvimento da
Biologia Molecular e da Genética, sobretudo desde que se conseguiu o mapeamento do
DNA das células, a partir dos anos oitenta. Agora são os genes – atuais ou antigos – que
reivindicam esse protagonismo, pois parece que é neles que se encontra a chave do nosso
passado.

A filogenia molecular – o estudo da evolução biológica de uma espécie – encontrou uma


vasta coleção de marcadores genéticos que estão abrindo perspectivas novas e muito
promissoras. Os cientistas estão procurando a explicação sobre a origem e a posterior
dispersão das linhagens moleculares, tentando “ler” a informação “escrita” no DNA
mitocondrial das mulheres e no cromossomo Y dos homens, e também analisando as
migrações humanas ocorridas desde as origens. Com esse pano de fundo, realizou-se em
abril de 2001, no Museu da Ciência de Barcelona, um Simpósio que reuniu alguns dos
mais importantes pesquisadores nesse campo.

NOSSA HISTÓRIA EVOLUTIVA, PRESENTE NOS GENES

No seu esforço por desvendar a história biológica do homem moderno, a ciência


contemporânea obteve nos últimos anos diversos resultados que merecem uma atenção
especial. Um desses resultados provém do exame dos genes contidos nas mitocôndrias
* (no DNA mitocondrial, ou DNAmt) e que só se transmitem por via materna. A taxa de
alteração por mutações no DNAmt é muito maior do que no DNA do núcleo das células,
já que as mutações não se perdem nas recombinações das cópias dos genes que são
transmitidos à descendência. Isso faz com que a seqüência de nucleotídeos do DNAmt,
aliada à transmissão uniparental, proporcione uma informação muito valiosa para medir
a divergência genética das populações humanas em função do tempo.

(*) A mitocôndria é o organismo celular responsável principalmente pela geração de


energia para a célula.

A reconstrução da nossa história biológica a partir da análise dos genes das populações
atuais baseia-se no fato de que pessoas diferentes têm versões diferentes do mesmo gene.
Selecionando vários genes de pessoas oriundas de diferentes regiões geográficas, pode-
se calcular o tempo transcorrido desde a sua diferenciação e, a partir desse resultado,
reconstruir a genealogia da humanidade.
Se o Homem atual apareceu na África, como parecem indicar os dados disponíveis, então
é de se esperar que as populações africanas apresentem uma heterogeneidade genética
maior do que as de outras partes do mundo. Efetivamente, foi esse o resultado do estudo
publicado em 1986 por Cann, Stoneking e Wilson, da Universidade de Berkley,
Califórnia: um estudo que é considerado um dos grandes marcos da história da biologia
evolutiva moderna.

Outra evidência provém dos estudos multidisciplinares dirigidos nos últimos anos por L.
Cavalli Sforza, da Universidade de Stanford. Grande parte do seu trabalho esteve voltado
para a correlação que existe entre a distribuição dos genes e a das línguas, nos ramos das
diferentes árvores filogenéticas das principais etnias humanas: sem dúvida alguma, uma
correlação surpreendente.

ÁFRICA: O BERÇO DA HUMANIDADE

A hipótese conhecida como “Eva mitocondrial” deu muito o que falar na comunidade
científica, no fim dos anos oitenta, logo após a publicação do estudo feito por Wilson e
sua equipe. Essa hipótese propunha que toda a humanidade descende de um tipo de
mulher que viveu na África há 190.00 ou 200.000 anos atrás. Essa mulher seria logo
chamada de “Eva Negra”. O estudo na verdade referia-se a uma população (portadora de
um tipo de mitocôndria), e não a um indivíduo concreto, como às vezes a literatura
científica parece sugerir.

Os resultados desse trabalho suscitaram uma forte polêmica desde que foram publicados
pela revista Nature, em 1º de janeiro de 1987 (1). Baseando-se na análise do DNA de 147
pessoas oriundas de diferentes regiões geográficas, os pesquisadores procuraram um
modo de “ir puxando a linha genética”, por assim dizer, até chegar à primeira mulher, isto
é: até à população feminina de Homo sapiens que teria legado suas mitocôndrias a todos
os seres humanos atuais. No estudo prestou-se uma atenção especial às diferenças
genéticas observadas entre os diferentes grupos humanos estudados. De fato, as amostras
de DNAmt do grupo africano mostraram mais diferenças entre si do que as do grupo que
reunia o resto das populações analisadas. Isso logo de início foi interpretado como uma
clara evidência de que a população africana era a mais antiga de todas.

Wilson e seus colaboradores calcularam também o tempo transcorrido desde o suposto


momento em que as diversas linhas de DNAmt começaram a separar-se. Os resultados
converteram-se logo numa notícia-bomba: o homem moderno racialmente indiferenciado
– foram as palavras utilizadas – apareceu há aproximadamente 200.000 anos, e somente
na África. O certo é que desde então essa pesquisa vem sendo considerada como um dos
mais sólidos fundamentos do modelo de dispersão africana (ou modelo “Arca de Noé”),
segundo o qual todos os seres humanos atuais remontam-se a um tronco materno comum,
de origem africana, no qual convergem todas as linhas de DNAmt.

Cálculos posteriores aos de Wilson indicaram que essa população de mulheres viveu na
África há 150.000 anos. Essa nova datação parece estar mais de acordo com aquela que
se atribui – a partir de registros fósseis – aos mais antigos restos do Homo sapiens. De
fato, os fósseis humanos com características próximas ao homem atual encontrados no
leste da África e na África do Sul, cuja idade estimada é de aproximadamente 120.000
anos, costumam ser citados como mais uma evidência a favor da monogênese africana.
AS MIL FILHAS DE EVA

É bem sabido que quase todos os pesquisadores das nossas origens adotam posturas
decididamente neodarwinistas, isto é, poligenistas. Segundo a hipótese poligenista, a
humanidade atual seria descendente de uma população mais ou menos numerosa de
indivíduos, e não de um casal inicial, como afirmam os defensores do monogenismo.
Francisco Ayala, pesquisador da Universidade da Califórnia em Irvine, diz que “as
mulheres das quais supostamente descendemos eram em número não inferior a mil e nem
superior a cinco mil” (2). De qualquer forma, esse tipo de estimativas nada mais são do
que suposições baseadas em cálculos estatísticos e em simulações em computadores, que
talvez nada tenham a ver com o que realmente aconteceu. Tanto é assim, que muitos
renomados poligenistas, entre os quais o próprio Ayala, admitem a possibilidade de um
cenário diferente: “Teoricamente é possível que uma espécie descenda de uma só fêmea
gestante” (La Vanguardia, 7-V-2001). O fato é que a Biologia atual considera possível a
história de Adão e Eva (“o mito”, como se costuma dizer nos círculos poligenistas), isto
é, a do casal que funda uma espécie. Isso na verdade já foi demonstrado em outras
espécies. É o caso, por exemplo, das 600 variedades genéticas de moscas drosófilas
atualmente existentes no Havaí, todas elas descendentes de uma única fêmea fecundada.

Os autores dos primeiros estudos sobre o DNAmt não interpretaram os seus resultados
como provas científicas a favor do monogenismo: nem sequer sugeriram isso. Portanto,
são no mínimo gratuitas certas afirmações, como as que apareceram em alguns jornais
que cobriram o Simpósio de Barcelona. “Não é certo – dizia o título de uma das matérias
– que toda a humanidade descenda de uma Eva negra que viveu na África há 150.000
anos” (La Vanguardia, 7-V-2001). Além de outros reparos, convém lembrar que hoje,
graças à Genética, sabemos que a pigmentação da pele é um evento recente em nossa
História evolutiva; sendo assim, é completamente irrelevante se a “Eva” da qual falam os
cientistas era negra ou de outra cor. Por outro lado, tampouco se pode afirmar, a partir
dos dados atualmente disponíveis, que a humanidade teve a sua mais remota origem numa
única mulher.

Uma coisa é certa: apesar das várias explicações que já foram dadas no intuito de
desvendar os possíveis mecanismos de especiação, os cientistas ainda continuam
procurando respostas para essa questão, que continua sendo o problema central da
biologia da evolução. Como nasce uma nova espécie? A pergunta torna-se ainda mais
complicada quando se refere à nossa própria História evolutiva: Como nasce a espécie
humana?

Do ponto de vista científico, não se pode negar a priori – e nem tampouco afirmar – que
toda a humanidade descenda de um único casal, e que posteriormente (há 150.000 ou
200.000 anos atrás) já houvesse em solo africano vários milhares de descendentes (“Evas
mitocondriais”) desse primeiro casal.

Em 1995, uma equipe de cientistas japoneses, dirigida por Satoshi Horai, tentou
estabelecer a idade da Eva mitocondrial com maior precisão. Seus resultados, baseados
também em numerosas análises do DNAmt, sugerem que essa mulher (ou população de
mulheres) viveu na África há 143.000 anos. Estudos posteriores, realizados por essa
mesma equipe, partiram da diversidade genética observada em trinta populações humanas
de todo o mundo (incluindo a africana e a européia, entre outras) e revelaram uma boa
concordância entre a diversidade genética e a distribuição geográfica de tais populações.
Observou-se que, de fato, a maior diversidade genética (superior a 2) ocorre nas
populações africanas, e a menor (em torno de 1) ocorre nas européias. Assim, a população
africana teria começado a diferenciar-se antes do que as outras (europeias, asiáticas, etc).
Isso é um reforço adicional para a teoria que defende a origem africana da nossa espécie,
e sua posterior dispersão a partir desse continente para o resto do planeta.

ANDANDO SOBRE UMA FINA CAMADA DE GELO

A datação dos eventos evolutivos que os cientistas procuram fazer partindo do material
genético é, sem dúvida, um dos objetivos mais complicados desse tipo de trabalhos. Em
1987, Wilson e sua equipe calcularam para a Eva mitocondrial uma idade entre 190.000
e 200.000 anos. Oito anos depois, Horai lhe atribui uma idade de 143.000 anos. Outros,
como Francisco Ayala, falam atualmente de uma “população ancestral” que teria vivido
na África entre 100.000 e 200.000 anos atrás. Por sua vez, Luca Cavalli Sforza, da
Universidade de Stanford, estima a idade dessa mesma população entre 100.000 e
170.000 anos. Não há dúvida de que andamos sobre um terreno escorregadio, onde até
agora não houve consenso entre os cientistas.

As diferenças de calibragem temporal acerca das nossas origens semeiam dúvidas (como
era de se esperar) quanto à validade dos métodos empregados pelos cientistas, e ao mesmo
tempo evidenciam as limitações à que estão submetidos em seu trabalho. Antes de mais
nada, o método do carbono 14 – que hoje em dia é o mais aplicado em fósseis – passa a
ser pouco confiável quando se vai além dos 35.000 ou 40.000 anos de idade. Sendo assim,
os “detetives” que investigam os rastros do nosso passado são obrigados a empregar
outros métodos de datação, menos precisos que os radiométricos. Tenha-se em conta,
além disso, que os geneticistas que usam o método das mutações do DNAmt aceitam
como margem de erro um desvio-padrão de 20. Desse modo, a datação de Horai para a
Eva mitocondrial (143.000 anos) estaria na verdade dentro de um intervalo entre 115.000
anos e 170.000 anos, aproximadamente. Nesse campo, como observou Ayala, o nível de
incerteza nas estimativas de data é muito alto.

Alguns cientistas opinam que a confiabilidade das calibragens de tempo baseadas nos
“relógios moleculares” deve ser, no mínimo, bastante matizada. Os cálculos estatísticos
que alguns geneticistas fazem baseiam-se, de fato, em suposições que não passam de
simples conjecturas. Pode não ser correta, por exemplo, a suposição de que a taxa ou o
ritmo das mutações é constante ao longo do tempo, uma vez que já se sabe que em muitos
casos não é.

As simulações por computador e os cálculos estatísticos trazem, além disso, outra


dificuldade: não levam em conta que algumas mutações podem não ter ocorrido em todas
as diferentes populações; sua ocorrência no entanto deve ser suposta, com toda a margem
de incerteza que isso implica. Francisco Ayala referia-se a isso ao afirmar: “o que fazemos
em biologia molecular é fictício, mas é o melhor que podemos fazer para tentar responder
a perguntas que nós mesmos formulamos”. São portanto bastante razoáveis os apelos à
cautela feitos por muitos cientistas, os quais dizem ser necessário ter “uma mente aberta
aos novos avanços da paleontologia, pois sem essa âncora (a que os fósseis proporcionam)
poderíamos estar como quem navega num mar sem fundo, ou anda sobre uma fina camada
de gelo” (3).
ADÃO CROMOSSOMO-Y

Assim como é evidente o valor dos genes mitocondriais para esse tipo de trabalhos – pois
eles transitem-se intactos das mães para as filhas –, outro tanto deve também ser dito
daqueles que se transmitem (também intactos) dos pais para os filhos do sexo masculino.
Esses genes encontram-se na seção não-recombinante do cromossomo sexual masculino:
o cromossomo Y. De fato, as pesquisas sobre esse cromossomo feitas em 1986 (4) já
apontavam na mesma direção que a dos trabalhos de Wilson e sua equipe (sobre o
DNAmt), realizados por volta dessa mesma data.

Mais recentemente, uma equipe internacional de cientistas, dirigida por Peter Underhill,
da Universidade da Stanford, procurou chegar ao nosso antepassado em linha paterna
através desse cromossomo, isto é, ao chamado “Adão cromossomo-Y”, que seria o
homólogo – pelo menos teoricamente, em termos genéticos – da Eva mitocondrial (5).

Com dados procedentes de mais de mil homens, oriundos de 22 áreas geográficas


diferentes, essa equipe traçou uma árvore genealógica da humanidade, chegando à
conclusão de que o nosso antepassado comum – o homem (ou população de homens)
cujos genes do cromossomo Y foram transmitidos a todos os homens do mundo – também
viveu na África. Isso não fez senão confirmar o que todos já esperavam. O que realmente
surpreendeu nesse estudo foi que – segundo esses cientistas – o tal antecessor viveu há
apenas 59.000 anos atrás, ou seja: 84.000 anos depois da Eva mitocondrial.

À primeira vista, esse novo dado parece por em apuros os partidários de uma origem
monogenista. Assim o expressava uma nota distribuída pela revista Nature
Genomics pouco antes da publicação do artigo, que dizia em tom irônico: “Adão e Eva
talvez não se tenham encontrado”.

Um dos perigos quando se utilizam nomes tomados da Bíblia – Adão e Eva, Noé, etc. –
em trabalhos científicos é o de misturar conclusões científicas com dados que não são –
e nem têm por que ser – científicos: pretender comparar dados científicos com dados de
outro tipo é simplesmente improcedente. É claro que ao ler informações sobre a Eva
mitocondrial ou sobre o Adão cromossomo-Y não podemos deixar de pensar, ainda que
de passagem, nos personagens bíblicos; mas daí em diante dever-se-ia sempre esclarecer,
a fim de evitar equívocos, que em termos de Genética esses nomes geralmente referem-
se a populações ou aos genes a elas atribuídos, e não aos personagens mencionados nos
primeiros capítulos do Gênese. São nomes usados apenas para designar os troncos
comuns nos quais, segundo os dados científicos, parecem convergir as linhagens humanas
feminina e masculina, respectivamente. Convém deixar claro que não se está querendo,
nem de longe, determinar a idade, ou a história, ou qualquer outra característica daqueles
que são considerados por muitos – e por razões não exatamente científicas – como os
primeiros pais da humanidade. Como já foi apontado, o resultado de Underhill pode ser
mal interpretado, levando a uma contradição que não é somente aparente: é também
enganosa.

O fato de haver ou não uma explicação biológica para o monogenismo não é uma questão
especialmente relevante. O que é certo é que hoje em dia trabalha-se com diversas
hipóteses, todas elas biologicamente viáveis. Uma delas, baseada em estudos recentes,
fala de uma reestruturação cromossômica – devida fundamentalmente à passagem de
informações do cromossomo X para o cromossomo Y – como sendo um possível
mecanismo da especiação humana (6). Segundo os geneticistas que a estudam, trata-se de
uma reestruturação forte e drástica (um “salto”, e não uma acumulação gradual das
mutações numa população), que tornaria possível o monogenismo a partir de um só
homem. A Ciência talvez venha a oferecer novos dados nessa linha de pesquisas; mas por
enquanto continua prevalecendo entre os cientistas o preconceito neodarwinista, que
sustenta a hipótese populacionista como único modelo válido para a especiação.

AMPLAS MARGENS PARA A INTERPRETAÇÃO

A datação feita pela equipe de Underhill foi bem acolhida por parte daqueles que
interpretam o relato do Gênese como uma mistura de mitos e lendas dos povos orientais
primitivos. Mas os próprios autores do estudo mostram-se muito mais cautelosos em suas
apreciações do que aqueles que costumam comentar os seus resultados. Peter Oefner, um
dos membros da equipe de Stanford, deu essa explicação: “Há 59.000 anos um único
cromossomo Y começou a predominar (…) Todos os outros cromossomos Y, que vinham
desde o tempo de Eva, 84.000 anos antes, acabaram por perder-se. A razão para isso
poderia ser a seleção sexual, ou seja, as mulheres preferiam sistematicamente um tipo de
homens portador do novo cromossomo Y. Ou talvez esses homens tivessem algum tipo
de vantagem competitiva na caça ou na luta”. Os autores do trabalho evitam
cuidadosamente mencionar os personagens bíblicos, limitando-se a expor o trabalho que
desenvolveram ao longo de treze anos, e cujos resultados, afinal de contas, permitem
inferir que a espécie humana surgiu na África oriental há aproximadamente 143.000 anos,
e que um novo tipo masculino predominou 84.000 anos depois.

Os estudos baseados na análise do DNA deixam em aberto uma ampla margem de


possibilidades, principalmente quanto ao aspecto temporal. Isso já foi comentado em
relação ao DNAmt. Quanto aos marcadores do cromossomo Y, apesar de a idade estimada
para o “Adão cromossomo-Y” ser de 59.000 anos – em média –, há no entanto margem
para admitir uma idade de quase 90.000 anos, bem mais próxima, portanto, da que foi
estimada para a Eva mitocondrial.

Afinal, os dados genéticos parecem confirmar que a origem dos seres humanos atuais teve
lugar há aproximadamente 100.000 anos na África, mais concretamente no Leste desse
continente. Outras pesquisas inclusive indicaram que as populações atuais ligadas às
linhagens humanas mais antigas são os bosquímanos Kung e os pigmeus de Biaka. De
qualquer forma, não parece haver razões científicas para por em dúvida o relato bíblico
que narra a criação, por parte de Deus, do primeiro homem e da primeira mulher, e nem
tampouco a história da sua descendência. Os que insistem em fazê-lo perdem de vista que
a Bíblia não pretende fornecer noções científicas. O que ela sim nos dá – e de modo
surpreendente – é o sentido e o significado daquilo que sabemos por meio das ciências
empíricas. Por esse prisma, acaba sendo reveladora – e ao mesmo tempo sugestiva – a
leitura das primeiras páginas do Gênese, que narram uma história que concorda
extraordinariamente bem com os resultados das pesquisas da biologia molecular e da
genética.

UNIDADE GENÉTICA E LINGÜÍSTICA

Entre os argumentos favoráveis ao modelo de dispersão africana, cabe destacar a


correlação observada entre a distribuição dos genes e a das línguas na árvore filogenética
das etnias humanas. Nesse sentido, é obrigatório mencionar o estudo realizado em 1988
por Cavalli Sforza, a quem devemos a primeira síntese entre as bases teóricas da atual
Genética de Populações, e também a primeira tentativa de elaborar uma História da
diferenciação entre os grupos étnicos humanos (7).

Pesquisas posteriores deste e de outros cientistas mostram a confluência de todas as atuais


etnias em uma única população africana, que viveu há mais de 100.000 anos atrás. Tal
conclusão coincide em linhas gerais com os resultados obtidos em 1995 pela Dra. Johanna
Nicols, da Universidade de Berkeley, Califórnia. Segundo ela, existe uma clara
superposição dos parentescos linguístico e genético entre as diferentes populações
humanas atuais.

Segundo esses cientistas, as 5.000 línguas que hoje existem no mundo têm sua origem
mais remota numa protolíngua que existiu há aproximadamente 100.000 anos no leste da
África, ou talvez no Oriente Médio. Na verdade, Cavalli Sforza vai ainda mais longe em
suas conclusões: segundo ele, a chave do êxito da expansão do homem atual está na
linguagem, e não tanto no desenvolvimento das tecnologias, como desde há muito tempo
se afirma insistentemente.

A ideia proposta por Cavalli Sforza, de que a Arte é posterior à linguagem, e de que
“somos o que somos porque falamos”, é de fato uma das suas teses mais inusitadas. Ele
sugere que para compreender o homem atual é mais importante o estudo da linguagem
do que o dos artefatos líticos (8). A proposta parece injustificada, porque de fato não
conhecemos nada ou quase nada a respeito dessa suposta língua ancestral, já que as
análises linguísticas só permitem que retrocedamos uns poucos milhares de anos. Em todo
caso, a correlação observada entre a distribuição dos genes e a das línguas atuais poderia
denotar, entre outras coisas, que todos os Homo sapiens – e somente eles – chegaram a
ter o domínio da linguagem.

UM PROJETO COM AUTORIA

Numa outra ordem de coisas, hoje – mais do que nunca – pode-se afirmar que as pesquisas
realizadas nos últimos anos indicam – e de modo cada vez mais contundente – que a
suposta oposição entre Evolução e ação divina carece de fundamento. Nesse sentido, é
surpreendente ver como alguns dos mais importantes biólogos moleculares declaram sem
o menor constrangimento que são defensores entusiastas do diálogo entre a Ciência e a
Religião, e que reconheçam abertamente que a Evolução e a ação divina são compatíveis.
Um deles, Francisco Ayala, referindo-se à criação a partir do nada, afirma que “é uma
noção que, pela sua própria natureza, sempre permanecerá fora do âmbito científico”;
como também admite que “outras noções que estão fora do âmbito científico são a
existência de Deus e dos espíritos, e qualquer atividade ou processo definido como
estritamente imaterial” (9).

Em seus escritos mais recentes, Ayala recolhe também algumas idéias estritamente
teológicas: “a existência e a criação divinas são compatíveis com a evolução e com outros
processos naturais. A solução reside em aceitar a idéia de que Deus age através de causas
intermediárias. (…) A evolução também pode ser considerada como um processo natural
através do qual Deus traz à existência as espécies viventes, conforme os seu plano” (10).
São idéias no mínimo surpreendentes quando ditas por alguém que é um dos mais
notáveis representantes do neodarwinismo, e além disso um convicto defensor do
poligenismo.
É também muito significativo ver como essas idéias recordam estas outras de João Paulo
II: “do ponto de vista da doutrina da Fé, não se vê dificuldade em explicar a origem do
homem, quanto ao corpo, mediante a hipótese do Evolucionismo. Contudo, é preciso
acrescentar que tal hipótese propõe somente uma probabilidade, e não uma certeza
científica. Por sua vez, a doutrina da Fé afirma de modo invariável que a alma espiritual
do homem é criada diretamente por Deus. Ou seja: é possível, segundo a hipótese
mencionada, que o corpo do homem, seguindo a ordem impressa pelo Criador nas
energias da vida, tenha sido preparado gradualmente nas formas dos seres viventes
antecedentes. Mas a alma humana, da qual em última instância depende a humanidade do
homem, não pode ter emergido da matéria” (11).

Mesmo assim, a aparição dos nossos ancestrais no cenário da Evolução continua ainda
envolta em mistério. De fato, as pesquisas genéticas parecem estar prestes a esclarecer
algumas das grandes incógnitas acerca das nossas origens. Mas isso não significa que os
cientistas tenham a última palavra a esse respeito. A Ciência pode ser uma grande ajuda
para saber o que aconteceu, mas é somente através do raciocínio filosófico e teológico
que poderão ser respondidas aquelas outras perguntas, que sempre ultrapassam os
métodos da Ciência experimental, como por exemplo: Por que aconteceu? Quem planejou
e executou tudo isso? Por que o fez?

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