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26/02/2019 A escravidão venceu no Brasil.

Nunca foi abolida | Entrevista | PÚBLICO

ENTREVISTA

A escravidão
venceu no
Brasil. Nunca foi
abolida
Eduardo Viveiros de Castro, um dos maiores
pensadores do Brasil, acredita que "a ditadura
brasileira não acabou". Não quer uma revolução,
quer uma guerrilha.
Alexandra Lucas Coelho no Rio de Janeiro 16 de Março de 2014, 0:00

https://www.publico.pt/2014/03/16/mundo/entrevista/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151?fbclid=IwAR1aWdUy7OrDJwo6s… 1/39
26/02/2019 A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida | Entrevista | PÚBLICO

Fome, secas, epidemias, matanças: a Terra


aproxima-se do apocalipse. Talvez daqui a
50 anos nem faça sentido falar em Brasil,
como Estado-nação. Entretanto, há que
resistir ao avanço do capitalismo. As redes
sociais são uma nova hipótese de
insurreição. Presente, passado e futuro,
segundo um dos maiores pensadores
brasileiros

Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais


reconhecido e discutido antropólogo do Brasil.
Acha que “a ditadura brasileira não acabou”,
evoluiu para uma “democracia consentida”. Vê
nas redes sociais, onde tem milhares de
seguidores, a hipótese de uma nova espécie de
guerrilha, ou resistência. Não perdoa a Lula da
Silva ter optado pela via capitalista e acha que
Dilma Rousseff tem uma relação “quase
patológica” com a Amazônia e os índios. Não
votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.

Professor do Museu Nacional, no Rio de


Janeiro, autor de uma obra influente
(destaque para A Inconstância da Alma
Selvagem ou Araweté — O Povo do
Ipixuna, este último editado em Portugal
pela Assírio & Alvim), Viveiros de Castro é
o criador do perspectivismo ameríndio,
segundo a qual a humanidade é um ponto
de vista: a onça vê-se como humana e vê o
homem como animal; o porco vê-se como
humano e vê a onça como animal. Humano
é sempre quem olha.

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Nesta longa entrevista, feita há um mês no


seu apartamento da Baía de Botafogo —
antes ainda da greve dos garis (homens e
mulheres do lixo), um exemplo de revolta
bem sucedida — Viveiros foi da Copa do
Mundo ao fim do mundo. Acredita que
estamos à beira do apocalipse.

Vê sinais de uma revolta nas ruas


brasileiras? Aquilo que aconteceu em
2013 foi um levantamento mas não uma
revolta generalizada. Acha que isso pode
acontecer antes da Copa, ou durante?

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é autor de uma obra influente, que inclui "A
Inconstância da Alma Selvagem" e "Araweté — O Povo do Ipixuna" DÉBORAH DANOWSKI

É muito difícil separar o que você imagina que


vai acontecer daquilo que você deseja que vá
acontecer.

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Vamos separar. O que desejaria que


acontecesse?

Revolta popular durante a Copa.

E isso significa o quê, exactamente?

Manifestação. Não estou imaginando a queda da


Bastilha nem a explosão de nada, mas gostaria
que a população carioca o deixasse muito claro.
Embora a Copa vá acontecer em várias cidades,
creio que o Rio se tornou o epicentro do
problema da Copa, em parte porque o jogo final
será no Maracanã.

Mesmo nas manifestações, o Rio foi a


cidade mais forte.

São Paulo também teve manifestações


muito importantes, mais conectadas com o
Movimento Passe Livre [MPL, estudantes
que em Junho de 2013 iniciaram os
protestos contra o aumento dos
transportes]. Voltando ao que eu desejaria:
que a população carioca manifestasse a sua
insatisfação em relação à forma como a
cidade está sendo transformada numa
espécie de empresa, numa vitrine turística,
colonizada pelo grande capital, com a
construção de grandes hotéis, oferecendo
oportunidades às grandes empreiteiras, um
balcão de negócios, sob a desculpa de que a
Copa iria trazer dinheiro, visibilidade, para
o Brasil.

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Eu desejaria que a população carioca manifestasse a sua


insatisfação em relação à forma como a cidade está sendo
transformada numa espécie de empresa, numa vitrine
turística, colonizada pelo grande capital

O problema é que vai trazer má


visibilidade. Vai ser uma péssima
propaganda para o Brasil. Primeiro,
porque, se estou bem entendendo, vários
compromissos contratuais com a FIFA não
estão sendo honrados, atrasos muito
grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de
que os brasileiros estão achando uma
maravilha que a Copa se realize no Brasil
pode ser desmentida de maneira
escandalosa se os turistas, tão cobiçados,
chegarem aqui e baterem de frente com
povo nas ruas, brigando com a polícia, uma
polícia despreparada, brutal, violenta,
assassina. Tenho a impressão de que não
vai fazer muito bem à imagem do Brasil.

Outra coisa importante é que a Copa foi


vendida à opinião pública como algo que ia
ser praticamente financiado pela iniciativa
privada, que o dinheiro do povo, do
contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está
se vendo é o contrário, o governo brasileiro
investindo maciçamente, gastando
dinheiro para essas reformas de estádios,
dinheiro dos impostos. Então, nós estamos
pagando para que a FIFA lucre. Porque
quem lucra com as copas é a FIFA.

Desejaria que essa revolta impedisse


mesmo a Copa?

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Impedir a Copa é impossível, não adianta nem


desejar. Não sei também se seria bom, poderia
produzir alguma complicação diplomática, ou
uma repressão muito violenta dentro do país.
Existe uma campanha: Não Vai Ter Copa. O
nome completo é: Sem Respeito aos Direitos
Não Vai Ter Copa. No sentido desiderativo: não
deveria haver, desejamos que não haja.

O que se está dizendo é que os direitos de


várias camadas da população estão sendo
brutalmente desrespeitados, com remoções
forçadas de comunidades, desapropriando
sem indemnização, modificando aspectos
fundamentais da paisagem carioca sem
nenhuma consulta. Isso tudo está irritando
a população.

Mas não é só isso: a insatisfação com a


Copa foi catalisada por várias outras que
vieram surgindo nos últimos anos, que
envolvem categorias sociais diversas, e não
estão sendo organizadas nem controladas
pelos partidos. Essas manifestações têm de
tudo, uma quantidade imensa de pautas
[reivindicações]. Tem gente que quer só
fazer bagunça, tem gente de direita,
infiltrados da polícia, neonazistas,
anarquistas. Um conjunto complexo de
fenómenos com uma combinação de
causas. Uma coisa importante é que são
transversais: tem gente pobre e de classe
média misturada na rua. É a primeira vez
que isso acontece. O que talvez tenha em
comum é que são todos jovens. Da classe
média alta à [favela da] Rocinha.

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Mas agora não são muito expressivas em


termos de números. E não são as favelas
que estão em massa na rua.

Tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a


primeira vez que isso acontece. O que talvez tenha em
comum é que são todos jovens. Da classe média-alta à
[favela da] Rocinha

As famosas massas ainda não desceram, e


provavelmente não vão descer durante a
Copa. Nem sei se vão descer em alguma
momento, se existe isso no Brasil. Mas
acho que vai haver uma quantidade de
pequenas manifestações. Por exemplo, a
Aldeia Maracanã [pequena comunidade de
índios pressionada a sair, por causa das
obras do estádio] produziu uma confusão
muito grande, se você pensar no tamanho
da população envolvida. Os moradores
daquela casa eram 14 pessoas e não
obstante mobilizaram destacamentos do
Bope [tropa de elite], bombas, etc. Quem
está, em grande parte, criando a
movimentação popular é o estado, com a
sua reacção desproporcional. O Movimento
Passe Livre ganhou aquela explosão em
São Paulo por causa da brutalidade da
reacção policial. O Brasil nunca teve esse
tipo de confronto entre a polícia e jovens
manifestantes. A polícia não sabe como
reagir, não tem um método, então reage de
maneira brutal. Os próprios manifestantes
não têm experiência de organização. O que

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estão chamando de black bloc não é a


mesma coisa que black bloc na Dinamarca,
na Alemanha ou nos Estados Unidos.

Mais volátil.

Ideologicamente pouco consistente. Sabemos


que o black bloc europeu é essencialmente uma
táctica de protecção contra a polícia. Noutros
países, como os Estados Unidos, tem uma certa
táctica de agressão a símbolos do capitalismo.
Aqui no Rio está uma coisa meio misturada,
ainda não se consolidou uma identidade, um
perfil táctico claro para o que se chama de black
bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até
que, no caso do Brasil, o facto de que sejam
black coloca uma pequena ponta de racismo
nessa indignação. Não duvido de que no
imaginário da classe média por trás da máscara
negra esteja também um rosto negro. Pobres,
bandidos, etc.

Mas isso está acontecendo ao mesmo


tempo que a polícia continua invadindo as
favelas, matando 10, 12, 15 jovens por
semana. Até recentemente esse
comportamento clássico do estado diante
da população muito pobre, isto é, mandar a
polícia entrar e arrebentar, era algo que a
classe média tomava como... [sinal de
longínquo].

Porque se passava lá nos morros.

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Quando a violência começou a atingir a


classe média — ainda que uma bala de
borracha não seja uma bala de fuzil, porque
o que eles usam na favela é bala de verdade
e o que eles usam na rua é bala de
borracha, ainda assim você pode matar
com bala de borracha, pode cegar, etc —, à
medida que a polícia começou a atacar
tanto a rua quanto o morro houve um
aumento da percepção da classe média em
relação à violência da polícia nas favelas, o
que é novidade. A imprensa fez uma
imensa campanha para santificar a polícia
com a coisa das UPP [Unidade de Polícia
Pacificadora, programa para acabar com o
poder armado paralelo nas favelas,
instalando a polícia lá dentro], mas todo o
mundo está percebendo que essas UPP são
no mínimo ambíguas. Basta ver o caso do
[ajudante de pedreiro] Amarildo, que foi
sequestrado, torturado e morto pela polícia
[em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu
da imprensa.

Vinte e cinco policiais foram indiciados.

No Brasil, há um racismo político muito forte, não só


ideológico como o americano. O Brasil é um país
escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é
escravocrata

Quero ver o que vai acontecer. Quem deu


visibilidade à morte do Amarildo não foi a
grande imprensa. Foram as redes sociais, os
movimentos sociais. Essa morte é absolutamente
banal, acontece toda a semana nas favelas, mas

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calhou de acontecer na altura das manifestações,


então foi capturada pelos manifestantes, o que
produziu uma solidariedade entre o morro e a
rua que foi inédita.

Num país como este, em que a


desigualdade, a violência, continuam,
porque é que as massas não saem?

Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a


pergunta que a esquerda faz desde que existe no
Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um
país muito diferente de todos os outros da
América Latina, por exemplo da Argentina.
Basta comparar a história para ver a diferença
em termos de participação política, mobilização
popular. Tenho impressão de que isso se deve
em larga medida à herança da escravidão no
Brasil. O Brasil é um país muito mais racista do
que os Estados Unidos. Claro que é um racismo
diferente. O racismo americano é protestante.
Mas no Brasil há um racismo político muito
forte, não só ideológico como o americano,
interpessoal. O Brasil é um país escravocrata,
continua sendo. O imaginário profundo é
escravocrata. Você vê o caso do menino [mulato]
amarrado no poste [no bairro do Flamengo, por
uma milícia de classe média que o suspeitava
assaltante] e que respondeu de uma maneira
absolutamente trágica quando foi pego: mas
meu senhor, eu não estava fazendo nada. Só essa
expressão, “meu senhor”... O trágico foi essa
expressão. Continuamos num mundo de
senhores. Porque o outro era branco.

Como um DNA, algo que não acabou.

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Não acabou, pois é. É o mito de que no


Brasil todas as coisas se resolvem sem
violência. Sem violência, entenda-se, sem
revolta popular. Com muita violência mas
sem revolta. A violência é a da polícia, do
estado, do exército, mas não é a violência
no sentido clássico, francês, revolucionário.

E toda a vez que acontecem coisas como


essas manifestações de Junho, por
exemplo, há aquela sensação: dessa vez o
morro vai descer. O morro não desceu. Em
parte porque já não é mais o morro, boa
parte do morro é de classe média.
Evidentemente, houve um crescimento
económico. As favelas da minha infância,
nos anos 50, eram completamente
diferente, como essas vilas da Amazônia,
feitas de lona preta. Hoje são casas de
alvenaria, feitas de tijolos. Ainda assim a
miséria continua. Quero dizer apenas que a
distância entre a classe média e o morro
diminuiu do ponto de vista económico.

Ao fazer ascender esses milhões da


miséria, o PT neutralizou a revolução?

A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa


democracia consentida pelos militares

Em parte pode ser isso. Houve uma espécie


de opção política forçada do PT, segundo a
qual a única maneira de melhorar a renda
dos pobres é não mexer na renda dos ricos.
Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de
outro lugar. E de onde é que eles estão

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tirando? Do chão, literalmente. Destruindo


o meio ambiente para poder vender soja,
carne, para a China. Não está havendo
redistribuição de renda, o que está havendo
é aumento da renda produzida pela queima
dos móveis da casa para aquecer a
população, digamos. Está um pouquinho
mais quente, não estamos morrendo de
frio, mas estamos destruindo o Brasil
central, devastando a Amazônia. Tudo foi
feito para não botar a mão no bolso dos
ricos. E não provocar os militares.

A ditadura brasileira não acabou. Nós


vivemos numa democracia consentida
pelos militares. Compare com a Argentina:
porque é que no Brasil não houve
julgamento dos militares envolvidos na
tortura? Porque os militares não deixam.
Vamos ver o que vai acontecer agora, no
dia 1 de Abril.

Com o aniversário do golpe militar.

Já existe uma campanha aí, subterrânea,


para que no dia 31 de Março apaguem-se as
luzes, toquem-se buzinas, para comemorar
o 50º aniversário do golpe. Ou seja, existe
uma campanha da direita para mostrar que
a população ainda apoia a direita. Não sei
que sucesso vai ter, mas não duvido que
haja uma manifestação, oculta, pessoas que
vão apagar as luzes das suas casas ou piscar
as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.

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Mas nenhuma possibilidade de viragem à


direita.

Não creio.

O actual regime não é uma


democracia?

O Brasil é uma democracia formal, claro,


mas consentida pelo status quo. A abertura
foi permitida pelos militares. A Lei da
Amnistia foi imposta tal qual pelo governo
militar. Eles não foram destronados,
presos, criminalizados. Simplesmente
foram amnistiados. E boa parte do projecto
de desenvolvimento nacional gestado
durante a ditadura militar está sendo
aplicado com a maior eficiência.

Pela esquerda.

Pela chamada esquerda, pela coalisão que


está no poder, na qual a esquerda é uma
parte mínima, porque tem os grandes
proprietários de terra, os grandes
empresários.

Está cumprindo um ideário que vem


da ditadura?

O Brasil se imagina como potência geopolítica que


necessariamente vai oprimir. Agora, é a vez de sermos
opressores, deixarmos de ser os oprimidos

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O PT é um partido operário do século XIX.


Eles têm um modelo que é indústria,
crescimento, como se o Brasil fosse os
Estados Unidos do século XXI. Com
grande consumo de energia. Uma
concepção antiga, fora de sintonia com o
mundo actual. Agora está começando a
mudar um pouco, mas a falta de
sensibilidade do governo para o facto de
que o Brasil é um país que está localizado
no planeta Terra, e não no céu, é muito
grande. Eles não percebem. Acham que o
Brasil é um mundo em si mesmo.

Ou seja, que não vai ser afectado pelo


aquecimento global, etc.

É, que todas essas coisas são com os


outros. Um pouco como acontece nos
Estados Unidos, em países muito grandes.

A única visão global que o Brasil tem é de


se tornar uma potência geopolítica. O
Brasil, hoje, é um actor maior, de primeira
linha, em Moçambique, em Angola, nos
países latino-americanos. Está disputando
com a China pedaços de Moçambique. A
Odebrecht está construindo hidroeléctricas
[barragens] em Angola e assim por diante.
O Brasil se imagina como potência que vai
oprimir. Agora é a vez de sermos
opressores, deixarmos de ser os oprimidos.
Agora os brasileiros da vez vão ser os
haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que
trabalham nas “sweatshops” de São Paulo,
nas terras em que plantamos soja e etc. O

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PT nunca foi um partido de esquerda. É um


partido que procurava transformar a classe
operária numa classe operária americana.

E nunca o Brasil foi um país tão


capitalista.

Minha mulher me contou que,


conversando com um desconhecido,
operador da bolsa de valores, isto em 2007,
2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser
tão bom para nós jamais teria votado
contra o Lula.

Onde está a esquerda? Qual é a sua


opção de voto? Ou a opção deixou de
ser votar?

Tanto a esquerda como a direita são


posições políticas que você encontra dentro
da classe média. A classe dominante é de
direita de maneira genética, a grande
burguesia, o grande capital. E os pobres, a
classe trabalhadora... se eu fosse fazer um
juízo de valor um pouco irresponsável diria
que 60 a 70 por cento do Brasil estaria
muito feliz com um governo autoritário,
que desse dinheiro para comprar geladeira,
televisão, carro, etc. Uma população que
tem uma profunda desconfiança em
relação a esses jovens quebradores de
coisas na rua, que seria a favor da pena de
morte, que é violentamente homofóbica.

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Iapii-hi, índia Araweté, prepara doce de milho (fotografia de 1982) EDUARDO VIVEIROS DE CA

Depois do garoto do Flamengo ter


sido amarrado por aquela milícia,
ouvi trabalhadores negros pobres

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dizerem: tem mais é que botar


bandido na cadeia, fizeram foi pouco
com ele.

Ou seja, é um país conservador,


reaccionário, em que os pobres colaboram
com a sua opressão. Não todos, mas existe
isso. A escravidão venceu no Brasil, ela
nunca foi abolida. Sou muito pessimista em
relação ao Brasil, digo francamente. Em
relação ao passado e ao futuro. Em relação
ao passado no sentido de que é um país que
jamais se libertou do ethos, do imaginário
profundo da escravidão, em que o sonho de
todo o escravo é ser senhor de escravos, o
sonho de todo o oprimido é ser o opressor.
Daí essa reacção: tem mais é que botar
esses caras na cadeia. Em vez de se
solidarizar. E podia ser o filho dele
facilmente. E às vezes é o filho dele.

Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O


Brasil nunca declarou a sua
independência.” Em certo sentido é
verdade, porque quem declarou a
independência do Brasil foi Portugal, um
rei português. Eu diria: e tão pouco aboliu
a escravidão. Porque quem aboliu a
escravidão foi a própria classe
escravocrata. Não foi nenhuma revolta
popular, nenhuma guerra civil.

E em relação ao futuro sou pessimista


porque... talvez ainda tenha um pouco de
esperança, mas acho que o Brasil já perdeu
a oportunidade de inventar uma nova

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forma de civilização. Um país que teria


todas as condições para isso: ecológicas,
geográficas.

Uma espécie de terceira via do


mundo?

É, outra civilização. Porque civilização não


é necessariamente transformar um país
tropical numa cópia de segunda classe dos
Estados Unidos ou da Europa, ou seja, de
um país do hemisfério norte que tem
características geográficas e culturais
completamente diferentes.

Lembremos que houve um projecto


explícito no Brasil, e que deu certo, que
está dando certo, por isso é que sou
pessimista, que é o projecto iniciado com
Pedro II, em parte inspirado pelo célebre
teórico racista Gobineau, que era uma
grande admiração de D. Pedro: o Brasil só
teria saída mediante o braqueamento da
população, porque a escravidão tinha
trazido uma tara, uma raça inferior.

Havia que lavar o sangue.

É uma ideia antiga, que já vem dos


cristãos-novos que vieram de Portugal, que
tinham de limpar o sangue. A gente sabe
que quase toda a população portuguesa que
se instalou no Brasil é de cristãos-novos,
Diria que 70 por cento desses brancos
orgulhosos de serem brasileiros são judeus,
marranos, convertidos a ferro e fogo pela

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Inquisição. Então, havia essa ideia de que o


Brasil era um país racialmente inferior
porque era composto de negros, índios,
portugueses com essa origem um pouco
duvidosa. E já Portugal em si não é...

A Holanda.

Exacto. Não é a coisa mais branca que


podemos encontrar na Europa. A
Península Ibérica é um pouco africana, foi
dominada 800 anos pelos árabes. Então o
Brasil só ia melhorar com branqueamento.
Isso foi uma política de estado que durou
décadas e trouxe para o Brasil milhões de
imigrantes alemães, italianos, mais tarde
japoneses. Com o propósito explícito de
branquear, não só geneticamente, mas
culturalmente e economicamente. E eles
foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio
Grande. Mas, esse que é o ponto curioso, a
partir do governo militar para cá essa
população branca invadiu o Brasil, a
Amazônia. A colonização da Amazônia a
partir da década de 70 foi feita pelos
gaúchos, muitos deles pobres, que foram
expulsos, alemães pobres, italianos pobres,
cujas pequenas propriedades fundiárias
foram absorvidas pelos grandes
proprietários, também gaúchos, também
brancos, e que foram estimulados pelo
governo, com subsídios, promessas
mirabolantes, a irem para a Amazônia.
Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da
Amazônia com nomes como Porto dos
Gaúchos, Querência, que é um lugar onde
se guarda o gado, típico do Rio Grande do
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Sul. Os gaúchos [de origem


europeia] chegaram numa região
temperada, subtropical [sul do Brasil] em
que você podia mais ou menos copiar um
tipo de estrutura agrícola, de produção
alimentar do país de origem. Só que na
Amazônia isso é uma abominação. É um
preconceito muito difundido essa ideia de
que pessoal do Norte não sabe trabalhar, é
preguiçoso. Você ouve muito isto no
Paraná, no Rio Grande do Sul. Quem sabe
trabalhar é o colono alemão, italiano.

O Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir


como um novo modelo de civilização propriamente
tropical, com uma nova relação entre as raças, que fosse
efectivamente multinacional

Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura


country aí é uma mistura de cultura
europeia com cultura americana, de grande
carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus
americanos, botas. Existe um projecto de
transformar o Brasil num país
culturalmente do hemisfério norte, seja
Estados Unidos, seja essa Europa mais
reaccionária. Porque estamos falando de
colonos alemães que vieram do
campesinato reaccionário, bávaro,
pomerano, e dos camponeses italianos, que
eram entusiastas do nazismo e do fascismo
na II Guerra. Continuam sendo. O que tem
de grupo de extrema-direita no sul do
Brasil é muito. O foco da direita fascista,
nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul.

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26/02/2019 A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida | Entrevista | PÚBLICO

Então o Brasil é um país dividido entre um


sul branco e o resto não branco, português,
negro no litoral, índio no interior.

O censo da população dá por uma unha


uma maioria não-branca.

O agronegócio é na verdade o modelo


gaúcho, desenvolvido no pampa, nos
campos do Rio Grande. Plantação extensa
de monocultura, de soja, de arroz, de cana.
Então o Brasil está perdendo a
oportunidade de se constituir como um
novo modelo de civilização propriamente
tropical, com uma nova relação entre as
raças, que fosse efectivamente
multinacional. Um país que se constituiu
em cima do genocídio indígena, da
escravidão, da monocultura. Que continua
fazendo o que fez desde que foi criado,
exportando produtos agrícolas. Que
continua a alimentar os países
industrializados. Primeiro a Europa, depois
os Estados Unidos, agora a China.
Continua sendo o celeiro do capitalismo.

E o matadouro.

O segundo maior rebanho bovino do


mundo, depois da Austrália. Um país que
se está destruindo a si mesmo para se
transformar numa caricatura dos países
que lhe servem de modelo cultural. Em vez
de, ao contrário, saber utilizar a sua
situação geográfica altamente privilegiada,

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a sua situação demográfica, uma população


imensa, para construir um novo estilo de
civilização.

O senhor está descrevendo a derrota


do “Manifesto Antropófago” de
Oswald de Andrade [visão de um
Brasil que se torna forte por comer,
absorver o outro]

O mundo está entrando, num sentido físico,


termodinâmico, num outro regime ambiental que vai
produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu
entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime
hidrológico, tudo

É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é


definitiva. O meu pessimismo nem passa
tanto pelo facto de que o Brasil não tem
jeito, porque acho que ainda poderia haver
uma revolução antropofágica no Brasil.
Mas hoje isso é uma questão que já não
teria mais sentido colocar pelo simples
facto de que estamos numa situação
planetária em que a catástrofe já se iniciou.
O mundo está entrando, num sentido
físico, termodinâmico, num outro regime
ambiental que vai produzir catástrofes
humanas jamais vistas, no meu entender:
fome, epidemias, secas, mudança de
regime hidrológico, tudo. Nessas
circunstâncias, é possível que cheguemos a
um momento em que noções como Brasil,
Estados Unidos, países, comecem a perder

https://www.publico.pt/2014/03/16/mundo/entrevista/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151?fbclid=IwAR1aWdUy7OrDJwo6… 22/39
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a sua nitidez. Pode ser que daqui a 50 anos


a palavra Brasil não tenha mais nenhum
sentido. Que tenhamos que falar em Terra.

É um pré-apocalipse?

Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa


belga, diz que a palavra crise não é
adequada porque supõe que você pode
superá-la, quando o que estamos vivendo é
uma situação que não tem um voltar atrás.
Vamos ter que conviver com ela para
sempre. Um novo regime do mundo, de
climas, de águas, não haverá mais peixes,
os estoques estão acabando no mundo, a
quantidade de refugiados que vão invadir a
Europa vai ser brutal nas próximas
décadas. Se a temperatura subir quatro
graus, que é o que todos os climatologistas
estão imaginando, isso vai produzir uma
mudança total no que é viver na Terra. E a
quantidade de africanos que vai invadir a
Europa vai ser um pouco maior do que
aqueles pobres que morrem afogados ali
em Lampedusa. E como os países ricos vão
reagir? É uma questão interessante. Vai ser
com armas atómicas? Vão bombardear
quem? O meu pessimismo passa mais por
aí.

No Brasil as crises são estritamente


políticas. Faz reforma política? Vai ter
revolta da população? Será que há Copa?
Tudo isso é verdade, fundamental, mas a
gente não pode perder de vista o cenário
mais amplo.

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Não vê ninguém no Brasil, politicamente,


que tenha uma visão ampla? O senhor
votou na Marina Silva [nas últimas
presidenciais].

Votei na Marina em 2010, com certeza.


Não tenho certeza nenhuma de que votaria
nela em 2014, talvez não.

Eduardo Campos [candidato


pernambucano que fez uma aliança
com Marina]?

De forma nenhuma. A Dilma, nem sob


pelotão de fuzilamento voto nela. Esses
idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez
eu não vote. Talvez vote nulo.

Qual é a missão, o papel, a hipótese para


alguém como o senhor? Virar uma
espécie de guerrilheiro nas redes sociais?

É. Eu diria que a revolução antropofágica


do Oswald de Andrade só é possível sob o
modo da guerrilha. Estamos falando de
uma coisa que foi pensada em 1928...

Mas que foi revivendo, anos 60, agora.

O Oswald, um homem da classe


dominante, pensava no Brasil como uma
coisa sobre a qual você podia pôr e dispôr.
Nesse sentido, ele pertence à geração dos
teóricos do Brasil, que eram todos da elite
dominante paulistana ou pernambucana:
Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior,
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Eduardo Prado. Os modernistas eram uma


teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser
organizado, governado.

Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse


país só tenham chance de ganhar uma certa emancipação
cultural, política, metafísica, no contexto do declínio
geral do planeta

Talvez os muitos povos brasileiros que


compõem esse país só tenham chance de
ganhar uma certa emancipação cultural,
política, metafísica, no contexto do declínio
geral do planeta. Nessas condições é
possível que haja esperança para os negros,
os índios, os quilombolas [descendentes de
escravos], os gays, os pobres desse planeta
favela. Não esqueçamos que o mundo tem
três bilhões e meio de habitantes vivendo
em cidade, metade da população mundial.
Desses, no mínimo um bilhão vive em
favelas. Ou seja, um sétimo da população
mundial vive em favelas. O Brasil deve ter
uma proporção maior que a Alemanha,
Estados Unidos. Diria que deve andar na
casa dos 30 milhões. [A população de] um
bom país europeu.

Seria uma guerrilha nas redes


sociais? Admite o uso de violência ou
uma guerrilha virtual apenas?

Nem uma coisa nem outra. A existência da


Internet mudou as condições da guerra, em
geral, sim. O maior acto de guerra recente,
no bom sentido, de que me consigo
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lembrar foi o Edward Snowden. Não mais


os Estados Unidos espionando a Rússia,
nem a Rússia espionando os Estados
Unidos, mas o vazamento de informações
secretas dos estados. Isso é muito
significativo. Um jornalista morando aqui
no Rio de Janeiro, que trabalha para um
jornal inglês, que recebeu informações de
um analista americano, que estava
escondido em Hong Kong: isso só é
possível com Internet. As redes sociais
mudaram completamente as condições de
resistência ao capitalismo.

Uma nova forma de guerrilha?

Que não é nececessariamente violenta,


embora exista o problema do hacker, do
bombardeio de sistema electrónico. Mas o
que penso não é bem por aí. Quando penso
em guerrilha, é no sentido de combates
locais, ponto a ponto. Não estou falando de
quebrar a porta do banco ou bater na
polícia. Falo em combates em que você seja
capaz de conectar combates locais através
do mundo inteiro.

Existem formas novas de resistência e


aliança entre as minorias étnicas, culturais,
económicas do planeta que passam pela
conectividade universal da rede, que é
frágil, ao contrário do que se imagina, com
pontos fracos, nós, gargalos, em que os
Estados Unidos têm um poder muito
grande. Mas eu diria que é muito difícil
controlá-la até porque essa rede é
indispensável para o capitalismo. Difícil o
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capitalismo danificá-la demais, senão vai


perder seu principal instrumento hoje.
Ainda que haja várias tentativas, no Brasil
inclusive, de vigilância.

Vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a


vantagem de que as guerras em geral terminam na
constituição de um novo poder totalitário, um novo
terror

É possível que a gente passe para um


estado de vigilância à la George Orwell.
Tudo isso é possível. Mas acho também que
a situação actual permite o
desenvolvimento de uma guerrilha de
informação, muito mais que de acção física,
porque a informação hoje é uma
mercadoria fundamental, estamos na
economia do conhecimento, então a guerra
é uma guerra também pela informação. É
por aí que tenho alguma esperança, muito
mais que numa saída nas ruas, com
ancinhos, forcados, machetes.

Parar de imaginar uma luta de classes e


imaginar uma guerrilha de classes. Classe
definida, agora, não só de maneira
classicamente económica mas no contexto
da nova economia, que mudou a
composição de classes. Vários intelectuais
hoje pertencem à classe dominada,
operária. Então, vejo mais uma guerrilha
do que uma guerra, com a vantagem de que
as guerras em geral terminam na
constituição de um novo poder totalitário,
um novo terror. O “Manifesto
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Antropófago” pode acabar se realizando


mais por esse lado. O sonho clássico da
revolução, como transformação de um
estado A em estado B é um sonho pouco
interessante.

Não há desfecho.

Não há desfecho. Prefiro falar em


insurreição do que em revolução, hoje. Um
estado de insurreição permanente como
resistência. A palavra talvez seja mais
resistência, insurreição, do que revolução e
guerra. Guerrilha é sempre de resistência.
O modelo da resistência francesa [na
ocupação alemã], criar redes subterrâneas
de comunicação. Estamos nessa posição,
somos um planeta invadido por
alienígenas, digamos, que é o grande
capital, a TV Globo, o agronegócio, a
hegemonia norte-americana sobre os
sistemas de entretenimento; como é que
você cria uma rede de resistência a esses
“alemães”?

Sou um activista das redes, de facto. Mas


não convoco para manifestações, não
pertenço a nenhuma organização, estou um
pouco velho para sair na rua.

Está com 62 anos.

É, mas para sair na rua como black bloc


[sorriso]... Posso ir atrás do black bloc, na
frente não dá.

https://www.publico.pt/2014/03/16/mundo/entrevista/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151?fbclid=IwAR1aWdUy7OrDJwo6… 28/39
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Começou tarde a ser um


activista/guerrilheiro. Porquê?

É uma questão interessante. A minha


relação com o activismo na ditadura não foi
receio físico. Não que eu não tivesse medo
de enfrentar a repressão. Vi vários amigos
presos, torturados, todo o mundo tinha
medo. Mas não foi por isso que não entrei
na luta contra a ditadura. Foi porque não
acreditava nela, em tomar o poder para
instituir uma nova ordem não muito
diferente. Eu achava que era uma briga
entre duas fracções da classe média alta
para saber quem ia mandar no país. E eu
não tinha a menor simpatia pela ideia de
mandar no país. Tinha uma desconfiança,
que infelizmente se confirmou, quando a
gente vê que uma das pessoas que fez a luta
armada está mandando no país. E ela está
fazendo coisas muito parecidas com o que
os militares queriam fazer, pelo menos na
Amazônia. O projecto da Dilma na
Amazônia é idêntico ao do Médici [terceiro
presidente da ditadura, no período 1969-
74].

O senhor se configura como um


anarquista?

Talvez...

Fora do estado.

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Digamos que sim. Mas não sou um


anarquista daqueles que acham que a
sociedade actual pode prescindir do estado.
Acho isso um sonho um pouco infantil.

Acha que não pode prescindir do


estado mas que é importante
cultivar...

Uma oposição, sim. A ideia de uma


abolição do estado nas presentes condições
é fantasia. Existem algumas contradições
que não podemos evitar. Por exemplo, o
maior inimigo dos índios brasileiros, num
certo plano, é o estado, que representa uma
sociedade que os invadiu, exterminou,
escravizou, expropriou de suas terras. Ao
mesmo tempo, o estado brasileiro é a única
protecção que os índios têm contra a
sociedade brasileira. Se não fosse o estado,
os fazendeiros já teriam aniquilado todos
os índios. Mas é uma quimioterapia, como
se o Brasil fosse o câncer e o estado fosse
aquele remédio. Faz um mal horrível mas
você tem de tomar, é o único jeito de ter
esperança de se curar. Portanto, não posso
ir contra o estado.

A ideia de uma abolição do estado nas presentes


condições é fantasia. Existem algumas contradições que
não podemos evitar

Tenho simpatia pela tese do [antropólogo


francês Pierre] Clastres, “A Sociedade
Contra o Estado”, um tipo de sociedade
como ele entendia que era o caso de várias
https://www.publico.pt/2014/03/16/mundo/entrevista/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151?fbclid=IwAR1aWdUy7OrDJwo6… 30/39
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sociedades indígenas, mas não imagino que


isso possa ser transferido para as nossas
dimensões demográficas. Isto dito, não sei
por quanto tempo vamos ter essas
dimensões no planeta, estados-nação com
milhões de habitantes. Precisamos guardar
os anti-corpos contra o estado porque
podemos precisar deles no futuro.

Defende que toda a lógica do que o


Brasil poderia ser, oferecer, passaria
por se tornar mais índio. Não os
índios tornarem-se brasileiros mas o
Brasil tornar-se índio, o que
significaria uma outra forma de vida,
não para produzir, não para
consumir. Que significa isso na
guerrilha das cidades e das redes?
Como os índios podem estar
presentes aí? O que podem dar à tal
insurreição contínua?

Vou juntar isso com o final da pergunta


anterior. Fui-me tornando mais activo nas
redes porque apareceram, antes não
existiam, e em função da minha enorme
decepção com o final da ditadura, o facto
de que continuamos reféns do grande
capital, dos grandes clãs, dos capitães
hereditários que continuam mandando no
Brasil, José Sarney, Fernando Collor,
Renan Calheiros. Essa aliança entre o mais
arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do
capitalismo, que são esses agronegociantes
de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul,

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todos eles combinados para manter a


tranquilidade política: não deixemos as
massas virem atrapalhar.

Então, a minha decepção com a trajectória


depois da ditadura; a minha decepção
maior ainda com a trajectória do PT, a
partir da eleição do Lula, na qual ele
escreveu uma carta aos brasileiros dizendo
que não ia tocar no bolso dos ricos; a
minha decepção ainda maior com a
performance do governo Dilma em relação
ao meio ambiente, à Amazônia, aos índios,
a total incapacidade política da presidente
para ter o mínimo de diálogo, por mais
fictício que seja com as populações
indígenas, ao contrário, ela demonstra um
desprezo, um ódio mesmo, que me parece
quase patológico; tudo isso me levou ao
activismo.

A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande


potência mundial. Eu acho que devia continuar sendo
sambista

Todo o mundo tem uma imagem do Brasil


como país preguiçoso, relaxado, laid back,
onde tudo é mais devagar. E existe uma
grande ambiguidade nossa em relação a
essa imagem. Por um lado achamos
interessante a imagem de um país easy
going, por outro lado temos uma grande
vergonha disso, nos queremos transformar
num país performante, que vai para a
frente, produtivo. A gente quer ao mesmo
tempo ser sambista e grande potência

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mundial. Eu acho que devia continuar


sendo sambista. Que a gente devia saber
explorar as virtudes do não-produtivismo.
A ética protestante, que nos deu o espírito
do capitalismo, para falar como Weber,
nunca esteve inscrita no DNA do Brasil,
graças a vocês portugueses, que também
não a tinham [risos]. Tiveram durante
século e meio, mas depois... Então, por um
milagre histórico fomos preservados dessa
maldição que é a ética produtivista do
capitalismo. Fomos capturados pelo
capitalismo porque nos invadiu, domou. O
capitalismo foi possível porque a Europa
invadiu a América. Se não fosse a America,
a Europa não teria deixado de ser o que era
na Idade Média, um fundo de quintal. Na
Idade Média, as sociedades desenvolvidas
eram o Islã, a India e a China. Os europeus
eram um bando de bárbaros, sujos, mal
vestidos, católicos. Mas por acaso os
portugueses e os espanhóis deram de cara
com o novo mundo e o capitalismo tornou-
se possível. Porque foi o ouro do Novo
Mundo, milhares de toneladas, e tudo o
que saiu da América, novas plantas, novos
recursos alimentares, que permitiu a
expansão do capitalismo e depois a
revolução industrial. Se não tivesse havido
invasão da América, destruição da América
não teria havido Europa moderna. Hoje, no
mundo, as principais plantas que servem
de alimentação mundial são de origem
ameríndia: o milho, que se planta em toda
a parte, a batata, que permitu a revolução
industrial inglesa, a mandioca, da qual toda
a África do Oeste hoje vive. Só que a
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América já era, não tem mais Novo Mundo


para descobrir, a terra fechou, arredondou,
além de que o pólo dinâmico do
capitalismo foi para a China.

Voltando aos índios.

O Brasil tem muito poucos índios


comparado com os países andinos ou
mezo-americanos. Estão na casa de um
milhão, num país de 200 milhões. Mas têm
um poder simbólico muito grande, até
porque têm uma base muito grande, 12 por
cento do território brasileiro. Está tudo
invadido [por obras ou fazendeiros] mas
oficialmente é terra indígena. Além de que
têm um poder de sedução no imaginário
ocidental. A Amazônia tem um poder
simbólico imenso. Embora, ao contrário do
que os brasileiros pensam, não seja só
brasileira, a maior parte da Amazônia está
no Brasil. E é um objecto transcendente,
uma espécie de última chance, último lugar
da terra. O que dá ao Brasil um poder
simbólico que ele não sabe usar, ao
contrário, a Amazônia tem servido para
atacar o Brasil por não saber cuidar da
Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe
mesmo. E não está sabendo se valer da
Amazônia como um trunfo mundial. Nem
como um lugar onde poderia se
desenvolver uma civilização menos
estúpida, do ponto de vista tecnológico e
social. Os índios aí servem como exemplo.
Estão na Amazônia há pelo menos 15 mil
anos. Boa parte da floresta amazónica foi
criada pela actividade indígena. Boa parte
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do solo foi criado com cinza de fogueira,


detritos humanos. A Amazônia é essa
floresta luxuriante em parte por causa da
acção humana, dos índios.

A Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não


saber cuidar da Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe
mesm

Perante isto, o modelo sulino, gaúcho,


europeu, de ocupação da Amazônia, é um
plano liso que você possa encher de
fertilizante, para poder plantar plantas
transgénicas, resistentes a herbicidas, para
produzir soja para vender para China, para
em seguida pegar esse dinheiro e dar Bolsa
Família. Não seria mais simples fazer com
que essas pessoas não precisassem de
Bolsa Família dando para elas terra para
plantar, fazendo a célebre reforma agrária
que jamais foi feita no Brasil?

Estamos exportando terra, solo e água na


forma de carne, de soja. Um quilo de carne
precisa de 15 mil litros de água para ser
produzido, um quilo de soja, 7500 litros.
Essa água toda, que poderia estar sendo
usada para plantar comida para nós, está
sendo usada para produzir soja para
alimentar gado europeu, ou em tofu e miso
na China.

O Brasil destruiu mais de metade da sua


cobertura vegetal, a Mata Atlântica, que era
igual à Amazônia do ponto de vista
ambiental, para plantar cana e café durante
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a colonização. E ficámos mais ricos? Agora


estão devastando a Amazônia para
produzir soja e gado. Estamos ficando mais
ricos? Os pobres estão melhores porque
está caindo mais migalha da mesa dos
ricos, não porque vieram sentar na mesa.

Meninos a pescar no rio Xingu (1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

Isso também afectou os índios, não?


Em São Gabriel da Cachoeira, o
município mais indígena do Brasil
[estado do Amazonas], um dos
grandes problemas é o alcoolismo.
Impressionante ver o estado em que
muitos índios vivem em São Gabriel.
É um resultado desse erro de tentar
converter o índio em brasileiro nesse
modelo que está a descrever?

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O alcoolismo é uma praga da população


indígena das três Américas. Tem a ver com
várias coisas. Uma delas é genética,
mesmo. Os índios têm, por razões de
evolução, muito menos resistência ao
metabolismo do açúcar no organismo. Por
isso que eles têm essa tendência à
obesidade e à diabetes. Segundo, os índios
sempre tiveram álcool, na América do
Norte menos, mas todos os índios da
Amazônia preparavam bebidas
fermentadas, etc. É a mesma coisa com o
tabaco, só que ao contrário. O tabaco é
indígena. Os índios fumavam, mas não
tinham câncer, ou a taxa devia ser muito
pequena, assim como o alcoolismo existe
entre nós mas é muito menos violento.
Porquê? Os índios, para fazerem o tabaco
deles e a bebida deles, tinham que produzir
à mão. Tabaco tinham de plantar, de
enrolar, de fazer um charuto, levava cinco
dias para fumar, eram objectos custosos. A
cerveja que faziam levava semanas. Aí,
chega de repente a cachaça, seis meses de
trabalho indígena concentrado numa
garrafa que custa dois reais. A mesma coisa
com a gente: quando você pega num maço
de cigarro que tem concentrado seis meses
de trabalho indígena, você fuma um atrás
do outro. Você morre de câncer aqui e os
índios morrem de cirrose lá.

O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles


nunca tiveram: o infinito mercantil. Os objectos não
acabam nunca

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O capitalismo apresenta aos índios uma


coisa que eles nunca tiveram: o infinito
mercantil. Os objectos não acabam nunca.
Você tem uma quantidade infinita de
cachaça. É como se chegassem aqui
marcianos que nos dessem soro da vida
eterna. Os índios não entendem e
consomem, consomem, consomem. Eles
produziam pouco para ter tempo livre. O
que acontece agora é que continuam
produzindo pouco mas os produtos chegam
em quantidade infinita. E eles não têm
estrutura social, política, institucional. Vai
levar séculos para que desenvolvam
resistências. Todo o ser humano gosta de
se drogar, alterar a consciência, desde o
café até ao LSD, então nos índios o álcool
entrou destruindo tudo. É certamente a
coisa mais destrutiva em todos os índios
das Américas.

Não há sociedades perfeitas. É preciso


distinguir entre modelo e exemplo. Os
índios são um exemplo, não um modelo.
Jamais poderemos viver como os índios,
por todas as razões. Não só porque não
podemos como não é desejável. Ninguém
está querendo parar de usar computador
ou usar antibiótico, ou coisa parecida. Mas
eles podem ser um exemplo na relação
entre trabalho e lazer. Basicamente
trabalham três horas por dia. O tempo de
trabalho médio dos povos primitivos é de
três, quatro horas no máximo. Só precisam
para caçar, comer, plantar mandioca. Nós
precisamos de oito, 12, 16. O que eles fazem
o resto do tempo? Inventam histórias,
https://www.publico.pt/2014/03/16/mundo/entrevista/a-escravidao-venceu-no-brasil-nunca-foi-abolida-1628151?fbclid=IwAR1aWdUy7OrDJwo6… 38/39
26/02/2019 A escravidão venceu no Brasil. Nunca foi abolida | Entrevista | PÚBLICO

dançam. O que é melhor ou pior? Sempre


achei estranho esse modelo americano,
trabalha 12 horas por dia, 11 meses e meio
por ano, para tirar 15 dias de férias. A
quem isso beneficia?

A única vantagem indiscutível que a


civilização moderna produziu em relação
às civilizações indígenas foram os avanços
na medicina. Se você fosse viver o resto da
vida no mato o que levaria? Penicilina. Foi
de facto um avanço. Mesmo assim nossos
avanços sempre avançam demais. Hoje
preferimos manter uma pessoa de 90 anos
sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem
de viver, a família vai à falência. Ou seja,
não sabemos mais morrer. Todo o mundo
antes do século XX sabia morrer.

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