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CADERNO ESPECIAL

Mudança cultural
E PERCEPÇÃO DE RISCOS

de desastres
Diane Guzi e Sarah Cartagena*
DE SANTA CATARINA

Quando uma situação de desastre age


sobre uma sociedade, é difícil afirmar
que ela continuará a ser como antes, sem
modificar hábitos, atitudes e valores, ora
não evidenciados ou esquecidos.

Em curto espaço de tempo, a sociedade


se depara com um novo cenário, uma
nova realidade social e ambiental. Mas
será preciso aguardar uma situação de
desastre para salientar a necessidade de
mudanças? Como alterar a lógica sobre
riscos e desastres, que hoje enfatiza a
cultura do desastre em detrimento da
cultura de riscos de desastres?1

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Estudos sobre cultura demonstram forma geral, demonstram característi- O que se percebe hoje é uma sociedade orien-
que a sociedade pode ser vista como cas semelhantes em alguns aspectos, tada a esperar que o desastre aconteça, e então se

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fruto de uma natureza histórica, uma mas disparidades em outros, podendo, mobilizar para os momentos de resposta e recons-
ordem em movimento, em que o equi- ainda assim, integrar uma única cul- trução. Ao passo que, segundo os especialistas,
líbrio é sempre instável em face da sua tura, como é o caso de uma nação ou investimentos em prevenção e preparação podem
constituição na ordem organizacional uma família. E mesmo embora os inte- reduzir significativamente os custos e impactos de
e inserção numa ordem maior, a ordem grantes de um grupo sejam renovados um acontecimento adverso.
mundial (Silva e Nogueira, 2001). ao longo do tempo, as características Os estudos sobre cultura ajudam também a re-
A cultura de uma sociedade, mesmo culturais predominantes permanecem. conhecer formas de mobilização social a partir de
assumindo características enraizadas ao Pode-se dizer que essa surpre- lideranças. Em sua maior parte, as definições sobre
longo do tempo e transmitidas de geração endente organização da sociedade é cultura convergem no aspecto da importância de
para geração, estará em constante evolu- sustentada, fundamentalmente, por líderes para a formação dos aspectos chaves, tanto
ção devido ao relacionamento entre os in- valores que direcionam o comporta- para grandes como pequenos grupos.
divíduos na organização que compõem, mento humano e pelo surgimento de Diante de ações adversas, como em comunida-
na sociedade e no contexto mundial. líderes aceitos pelo grupo como repre- des vulneráveis a desastres, a presença de líderes é
Em seu cerne antropológico, cul- sentativos da ordem ou objetivo maior. fundamental, pois são responsáveis por planejar,
tura é definida como o resultado de Assim, se a cultura se caracteriza organizar e controlar situações que poderiam dis-
um processo contínuo e dinâmico de pela relação entre os indivíduos, o sociar o coletivo frente às eventualidades, lutando
construção e reconstrução da realidade meio em que se inserem, as cons- por interesses comuns.
por meio da interação social, da qual truções históricas por que passam, Além disso, na figura das lideranças reside
surgem esforços para a satisfação das suas necessidades e satisfações, suas também uma das principais ferramentas para a
necessidades básicas do ser humano: formas de organização em grupos mobilização social em momentos de prevenção e
necessidades biológicas (do organis- e seus líderes, em uma constante e preparação, uma vez que são elas o vínculo que
mo), sociais (relativas às interações dinâmica evolução, esta é, para a ges- garante aceitação e representação de todo o grupo.
interpessoais) e socioinstitucionais, ou tão de desastres, o ponto central para Quando falamos na mudança cultural que se
seja, aquelas referentes à sobrevivência a mudança de valores que se deseja deseja promover no contexto da sociedade do risco,
e bem-estar dos grupos (Kluckhon, promover na sociedade. Compreen- estamos falando também em percepção de risco, em
1951; Rokeach, 1973; Schwartz & Bil- der, por exemplo, quais as motivações valores atribuídos a ameaças, vulnerabilidades, ris-
sky, 1987, 1990 apud Tamayo, 2000). que levam um indivíduo a ocupar, cos e aos benefícios deles extraídos. Para Henriques
Essa satisfação, porém, deve acon- reconhecidamente, uma área de risco, (2002), esse processo de mudança de comportamen-
tecer por meio de formas aceitáveis a e assim atribuir diferentes valores às to e de mobilização social pode ser representado
todo o grupo. Os grupos são formados vulnerabilidades a que está sujeito e aos em uma escala de critérios de vinculação, na qual
por indivíduos ou subgrupos que, de benefícios que pensa tirar delas. o que se busca é a corresponsabilidade.

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Corresponsabilidade é o sentimento Valores inscritos proporcionam a que habitação, trabalho, saúde e la-

ESCALA DE VÍNCULOS (ADAPTAÇÃO DO MODELO DE HENRIQUES, 2002)

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de pertencimento e responsabilidade coesão dos indivíduos formadores de zer sejam valores inegociáveis frente
dentro de um grupo, quando o indi- uma cultura, são princípios tão pro- ao risco de desastres e aos pilares da
localização espacial
víduo entende sua participação como fundos, importantes e consolidados construção de cidades mais seguras.
uma parte essencial no todo (Henri- que passam a fazer parte do cotidiano, Para a Opas (Organização Pana-
ques, 2002). Para a percepção de risco, de forma inconsciente e imperceptível, mericana de Saúde), a cultura é um
informação
seria o entendimento de ser sujeito e, desta mesma forma, são aceitos dos cinco fatores que influenciam a
diante do risco, ser afetado e fabricante e repetidos por novos membros in- percepção de riscos. Segundo o órgão,
do risco, o que requer um processo edu- voluntariamente. São valores dessa “muitos estudos já demonstraram que
julgamento
cativo e fundamentalmente dialógico2, grandeza que a cultura de riscos de a população, composta por diversos
primeiro de modificação de valores em desastres pretende fortalecer, alterando atores sociais, percebe o risco de modo
uma cultura já solidificada para poste- a percepção de risco dos indivíduos diferente. Especialistas acreditam
ação rior construção de uma nova cultura. e qualificando sua capacidade de que essa percepção esteja submetida
Kroeber e Kluckhohn (1952), antro- relacionar-se com o risco, de maneira aos contextos culturais em que se
pólogos norte-americanos, montaram
coesão mais de 160 definições diferentes para
cultura e, por fim, definiram-na como
“(...) padrões implícitos e explícitos do
continuidade
comportamento humano adquiridos e
transmitidos por símbolos, constituin-
do atividades distintivas de grupos hu-
corresponsabilidade manos, incluindo sua externalização
em artefatos; o núcleo essencial da
cultura consiste em ideias (histori-
participação
institucional camente derivadas e selecionadas) e,
especialmente, os valores inscritos; os


sistemas de cultura podem, de um lado,
ser considerados como produtos da
ação, e por outro lado, como elementos
condicionantes de ação futura.”

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AMAZÔNIA

encontram as pessoas para interpretar significados coletivos aceitos operacio- Ela provém do ambiente social menos importante e necessário,
os fatos. Se a população crê que pode nalmente para um determinado grupo no qual o indivíduo se insere e criar espaços que possibilitem a
tomar certas medidas para se precaver em um determinado momento. Esse não das características genéticas renúncia aos atuais valores, para
de um risco, é mais provável que ela o sistema de formas, termos, categorias e dos seres humanos. Em suas a aprendizagem de novos.

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aceite; entretanto, se esses riscos não imagens interpreta as próprias situações palavras, “o núcleo essencial da Assim, ao se garantir um pro-
forem familiares ou não estiverem de das pessoas para si mesmas. De fato, cultura consiste em ideias tradi- cesso de mobilização social, em
acordo com os valores dessa comuni- o que diferencia os homens quando cionais e especialmente em seus que mobilizar significa “convocar
dade, as pessoas indubitavelmente se comparados com outros animais é sua valores unidos... Cada um de vontades para um propósito de-
sentirão mais ameaçadas.” capacidade de inventar e comunicar nós transporta consigo padrões terminado, para uma mudança na
Ainda na busca para entender o seus próprios comportamentos”. de pensamento, de sentimentos realidade” (Toro & Werneck, 1996;
conceito de cultura, surgem, em 1979, O pesquisador holandês Geert e de ação potencial, que são o apud Henriques, 2002) está se evi-
os trabalhos do sociólogo e antropólogo Hofstede realizou estudos em mais resultado de uma aprendizagem tando que a mudança cultural seja
britânico Andrew Pettigrew, que define de 70 países e afirma que a cultura contínua, iniciada na infância, imposta, de forma dolorosa e pouco
cultura como um “sistema público e de não é herdada, mas sim adquirida. período do desenvolvimento onde democrática, pelos desastres.
somos mais susceptíveis à apren- Quando uma comunidade assu-
dizagem e à assimilação. Quando me riscos ao se instalar em lugares
certos padrões de pensamento, vulneráveis, encostas, morros, nas
sentimentos e comportamentos proximidades de produtos perigosos,
se instalam na mente de cada um, entre outros, a relação risco versus
torna-se necessário desaprender, benefício provavelmente não será
antes de aprender algo diferente, questionada, se isso não fizer parte
e desaprender é mais difícil que do conjunto de valores predomi-
aprender pela primeira vez.” nantes. Exemplificando: habitar
Segundo Pettigrew (1979) e Ho- uma encosta por não ter condições
fstede (1991), um indivíduo cons- financeiras para estar em um lugar
truirá seus valores de acordo com mais apropriado é mais importante
sua vivência e aceitação histórica, que a segurança da família? Di-
e/ou a partir das suas necessidades ficilmente um pai seria contrário
edificadas em um determinado à segurança, mas, então, por que
contexto de tempo e espaço. famílias habitam locais como esses?
Portanto, para a construção da Provavelmente, a sede em suprir
cultura de riscos de desastres, de- uma das necessidades básicas do ser
vemos investir, de um lado, como humano, a habitação, não tenha sido
construção histórica, no aprimo- ponderada suficientemente, deixan-
ramento dos processos educativos do o benefício (o de ter a moradia) se
desde a infância para conseguir- sobrepor ao risco (deslizamento de
mos uma mudança cultural ao terra com perdas humanas e mate-
longo do tempo. E de outro, mais riais), isso, pelo fato de sua cultura
difícil segundo Hofstede, mas não não possuir esse valor.

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Edgar Schein, psicólogo e pesquisador “ser dialógico é não invadir, é não


norte-americano, diz entender-se como manipular, é não sloganizar. Ser
cultura “o conjunto de pressupostos bási- dialógico é emprenhar-se na trans-
cos que um determinado grupo inventou, formação constante da realidade.
descobriu ou desenvolveu ao aprender a li- Esta é a razão pela qual, sendo o
dar com os problemas de adaptação externa diálogo o conteúdo da forma de ser

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e de integração interna, e que funcionou própria à existência humana, está
bem o bastante para serem considerados excluído de toda relação na qual
válidos e ensinados aos novos membros alguns homens sejam transformados
como a forma correta de perceber, pensar em ‘seres para outro’ por homens que
e sentir em relação a esses problemas.” são falsos ‘seres para si’. É que o diá-
Sabemos, então, que a cultura não logo não pode travar-se numa relação
está escrita e declarada, e também não antagônica” (FREIRE, 1992).
é ensinada formalmente; ela representa
normas e regras informais que orientam REFERÊNCIAS
FREIRE, P., Extensão ou Comunicação? Rio de
o comportamento dos indivíduos em um Janeiro: Paz e Terra, 2002.
grupo, no dia a dia e que forma uma HENRIQUES, M.(org). Comunicação e Estratégias de
Mobilização Social. Belo Horizonte: Gênesis, 2002.
coesão geral da sociedade. HOFSTEDE, G., Culture and organizations: software
of the mind. New York: McGraw-Hill, 1991.
Entretanto, uma cultura pode KROEBER, A. L., KLUCKHOHN, C.. Culture: A Critical
Review of Concepts and Definitions. Vintage Books.
ser modificada e alinhada de acordo Place of Publication: New York. Publication Year:
1952. Page Number: iii.
com as necessidades do grupo ou por PANAFTOSA-OPAS/OMS. Guia de comunicação
decisões de seus líderes, podendo ser social e comunicação de risco em saúde animal. Rio
de Janeiro: 2007.
planejada, organizada, direcionada e PETTIGREW, A., On Studying Organizational Cultures.
V.24, Cornell University, 1979.
controlada em busca de um objetivo, SCHEIN, E., Organizational culture and leadership. 3.
ed. San Francisco: Jossey Bass A Wiley Imprint, 2004.
e é neste contexto que devemos pen- SILVA, C. L. M., NOGUEIRA, E. E. S., Identidade
sar e construir a cultura de riscos de Organizacional: um Caso de Manutenção,
outro de Mudança. Revista de Administração
desastres para o fortalecimento social. Contemporânea. Edição especial. 2001.
TAMAYO, A., MENDES, A.M., PAZ, M.G.T.,
Por cultura de desastres entende-se Inventário dos Valores Organizacionais. Estudos de
Psicologia 5 (2). 2000.
um contexto social pautado em ações
SOBRE AS AUTORAS
principalmente de resposta e recons- Diane Guzi é mestranda em Engenharia Civil pela
trução, tendo por base comportamentos UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)
e atua como pesquisadora do Ceped/UFSC
de inércia, aceitação e conformismo. (Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre
Desastres). Contato: diabeguzi@yahoo.com.br
Por outro lado, a cultura de riscos de
Sarah Marcela Chinchilla Cartagena, graduada
desastres pretende enfatizar os processos em Relações Públicas pela Unesp (Universidade
Estadual Paulista), é coordenadora da área de
de prevenção e preparação, trabalhando a Comunicação e Informação do Ceped/UFSC. Atuou
percepção de riscos como foco chave na na indústria de petróleo e gás, como consultora em
responsabilidade social e comunicação de risco.
construção de comunidades mais seguras.2 Contato: sarah@ceped.ufsc.br

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