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23/03/2021 Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal | JOTA Info

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PENAL EM FOCO

Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal


Algumas re exões sobre os tipos penais relevantes numa situação de epidemia e pontos legislativos
controversos

LUCAS MONTENEGRO
EDUARDO VIANA

23/03/2020 07:41

Crédito: Luiz Silveira/Agência CNJ

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Introdução
Embora não seja fácil apontar algo positivo em crises, elas servem ao menos para
sabermos o quanto estamos preparados. Isso vale, é claro, para a crise que já se
vivencia com a expansão do coronavírus no Brasil, que, se não contida a tempo, será
um desa o para nosso sistema de saúde.

Mas o coronavírus vem também contaminar as bases já tão inseguras do Direito Penal
brasileiro. Sintomas disso já começam a aparecer nas redes sociais – onde se acredita
ser possível, com poucos caracteres disponíveis, discutir seriamente assuntos
cientí cos delicados: opiniões de toda sorte sobre condutas supostamente criminosas
de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção.

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As notícias dos últimos dias já nos fornecem exemplos do problema: no Distrito


Federal, o marido de uma paciente infectada se nega a fazer exames e permanecer em
isolamento; o Presidente da República, contrariando orientação do Ministério da Saúde
e com suspeita de contaminação ainda não descartada, estimula atos públicos, vai a
manifestação, cumprimenta pessoas e manuseia aparelhos celulares; um empresário,
após ser diagnosticado com a Covid-19, viaja para uma cidade turística, participa de
festas com amigos e contrata funcionários para trabalhar em sua luxuosa residência
de verão.

O que tem nosso Direito Penal a dizer sobre essas condutas? Perigo de contágio de
moléstia grave (art. 131 CP)? Crime de epidemia (art. 267 CP)? Infração de medida
sanitária preventiva (art. 268 CP) [1]? Crime de lesão corporal (art. 129 CP)? Crime de
homicídio (art. 121 CP)? A tomar pelas opiniões publicadas, basta encontrar um desses
tipos penais, e o problema estará resolvido, quem sabe antes mesmo do diagnóstico
adequado.

A situação, no entanto, é muito mais complexa, e nem sempre há uma resposta tão
clara e rápida quanto as redes sugerem. Este artigo, com pretensões modestas, tem
como nalidade ensaiar algumas re exões sobre os tipos penais que podem ter de fato
alguma relevância numa situação de epidemia e, simultaneamente, apontar para
pontos controversos e de ciências da atual legislação.

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Nosso objetivo, portanto, não é dar um tratamento aprofundado a todos os problemas,


senão somente apresentar diretrizes mais seguras para possíveis discussões em torno
da relevância jurídico-penal daqueles comportamentos praticados durante o período da
pandemia.

Para desenvolver esses objetivos, começamos deixando claro quais delitos não se
aplicam à situação de epidemia (abaixo 1); depois trataremos daqueles tipos penais
que podem ter alguma relevância na discussão (abaixo 2 e 3); por m, apresentaremos
as conclusões deste breve diagnóstico (abaixo 4).

1. Tipos que não se aplicam ou têm pouca relevância no


atual cenário do Covid-19
1.1 Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 CP)

Quanto a pelo menos dois tipos penais, pode-se a rmar que eles têm pouca ou
nenhuma relevância em casos envolvendo a epidemia de coronavírus. O primeiro deles
é o art. 131 CP: “Praticar, com o m de transmitir a outrem moléstia grave de que está
contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e
multa.”

Como esse é um delito de mera conduta (ou ação), a ocorrência do contágio é


irrelevante para sua incidência. E duas razões concorrem para que esse crime tenha
pouca relevância no atual cenário.

Em primeiro lugar, o tipo pressupõe uma moléstia grave. Não é fácil saber o que isso
signi ca exatamente, tampouco há na jurisprudência uma de nição clara ou um rol de
enfermidades referido diretamente ao art. 131 CP.

A doutrina se restringe muitas vezes a oferecer exemplos: tuberculose, cólera, febre


amarela, sarampo, meningite. Exemplo não é de nição, razão pela qual há uma clara
necessidade de maior precisão doutrinária e jurisprudencial.

No espaço que nos é concedido não seria possível tratar do problema a fundo, mas
deixamos, a título de sugestão, alguns critérios para balizar a interpretação: a
inexistência de cura, a possibilidade de sequelas ou o alto risco de morte são fortes
candidatos.

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Quanto a Covid-19, ainda é difícil fazer uma subsunção segura, a nal pouco se sabe
sobre o vírus. As reações variam bastante de caso a caso, a depender do histórico e
faixa etária do paciente.

Os estudos atualmente existentes, a maioria baseados nos casos laboratorialmente


con rmados na China, não permitem conclusões sobre o que seria o desenvolvimento
típico da doença.[2] Na ausência de informações seguras, consideramos que a dúvida
pode favorecer o réu.

Mesmo se superadas as di culdades de determinação da elementar “moléstia grave” e


a atual ausência de informações sobre o vírus, há uma segunda razão para que esse
tipo penal não tenha relevância.

A cláusula “com o m de”, que nesse caso indica um delito de intenção, expressa a
necessidade de que o tipo seja realizado com a nalidade especial. Não basta que o
sujeito saiba da infecção e queira realizar um ato capaz de contagiar outra pessoa.

Transmitir a doença tem de ser a razão pela qual ele realiza a conduta, o seu propósito.
Concretamente: alguém que sabe estar infectado e aperta a mão de um conhecido
para cumprimentá-lo não tem a intenção de transferir a enfermidade, embora aceite
que o aperto de mão possa levar ao contágio[3]. Mesmo que ele tenha certeza do
contágio, se agiu com outra intenção, não haverá crime. Claramente, casos dessa
natureza serão muitos excepcionais, para não mencionar as di culdades de prova que
esse tipo especí co de dolo implica.

1.2 Epidemia (art. 267 CP)

O segundo tipo penal, esse ainda mais improvável e irrelevante, é previsto no art. 267
CP. O artigo pune o crime de epidemia: “Causar epidemia, mediante a propagação de
germes patogênicos: Pena – reclusão, de dez a quinze anos.” Trata-se de um crime de
resultado, isto é, a epidemia, cujo surgimento pode ser imputado ao agente.

Epidemia é a disseminação rápida de uma doença entre um grande número de


indivíduos de uma população humana em determinado território. Para a realização
desse tipo penal, tem de haver, além do resultado epidemia, um vínculo entre a conduta
do sujeito e a existência da epidemia que, em dogmática penal, é explicitado pelos
conceitos de causalidade e imputação objetiva.

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De forma simpli cada, o sujeito tem que, em razão de uma conduta especí ca, poder
ser responsabilizado pelo desenvolvimento da própria epidemia. Seria o caso, por
exemplo, de alguém que contamina com uma bactéria infecciosa uma fonte de água
potável que abastece toda uma região.

A difusa disseminação da Covid-19 já é uma realidade em algumas regiões do país


(São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo), de modo que se pode falar na já existência
de uma epidemia.

Ou seja, haveria o resultado típico, mas esse resultado não pode ser imputado a um
autor especí co. A atribuição da epidemia a alguém que, por exemplo, estando
infectado, cumprimenta várias pessoas em uma manifestação não satisfaria a
exigência de causalidade, isto é, a existência de uma epidemia não dependeria
exclusivamente dessas ações e existiria em uma situação hipotética, mesmo que essa
conduta não houvesse ocorrido.

Trocando em miúdos: a epidemia atualmente existente, ou ao menos a que se anuncia


em algumas regiões do país, não pode ser atribuída a uma pessoa, mas é o resultado
de uma transmissão difusa e, alguns casos, já sustentada, ou seja, sem que se possa
sequer reconstruir a cadeia de transmissão.

Com isso, chegamos a uma conclusão intermediária: apenas em situações


extremamente inusitadas, se satisfeitos os critérios apontados acima, os artigos 131 e
267 CP teriam alguma importância no contexto de crimes relacionados a Covid-19.

Cumpre-nos examinar, agora, os tipos penais que não podem ser imediatamente
descartados, esses são os tipos de infração de medida sanitária preventiva (art. 268
CP), um tipo de perigo abstrato, e perigo para a vida ou a saúde de outrem (art. 132 CP),
de perigo concreto.

2. Tipos penais de perigo


2.1 Infração de medida sanitária preventiva (art. 268)

2.1.1 O diagnóstico

Esse é um tipo penal que de fato pode ter alguma relevância. Há, no entanto, muitos
pontos a esclarecer. O tipo básico do art. 268 CP conta com a seguinte redação:

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“Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação


de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.”

Trata-se de um crime de perigo abstrato. Isso quer dizer que a sua ocorrência
independe de que haja contágio ou até mesmo qualquer risco para saúde de outras
pessoas. É su ciente que as determinações em questão sejam infringidas.

O problema aqui, obviamente, consiste em saber o que são tais determinações do


poder público. A situação é de uma norma penal que, por si só, não identi ca a conduta
proibida, mas atribui essa tarefa a outras normas. É o que se denomina norma penal
em branco.

Esse tipo de técnica legislativa gera conhecidamente fricções com o princípio da


legalidade, que impõe, dentre outras coisas, que as normas penais sejam
su cientemente determinadas. No caso das normas penais em branco, para que o
cidadão saiba exatamente qual conduta é proibida, não é su ciente consultar o  Código
Penal, mas é preciso recorrer a outras leis, decretos, resoluções etc.

Na jurisprudência alemã, a constitucionalidade deste tipo de norma penal que, como o


art. 268 CP, não faz menção explícita a outra lei, está condicionada ao seu próprio grau
de determinação.[4]

Tomando esse critério por base, é difícil a rmar que o art. 268 CP satisfaz as
exigências constitucionais. A nal, fala-se apenas em “determinação do poder público,
destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, sem que se saiba
ao que “determinação” se refere.

A cláusula “destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” é


também excessivamente ampla: ela se aplicaria para quaisquer determinações sobre
doenças contagiosas, independentemente da gravidade e velocidade de propagação?

Aplica-se também para determinações sobre resfriados ou gripes? Diante desse quadro
de indeterminação, uma possível saída seria subordinar a aplicação do art. 268 CP à
existência de uma lei federal, já a que o princípio da legalidade (art. 5º CF, XXXIX; art. 1º
CP) exige que a condutas criminosas devem ser de nidas por lei.

Não há, no entanto, como há em outros países, uma lei destinada à prevenção e
enfrentamento contra doenças infecciosas, com previsão clara das condutas exigidas
pelos cidadãos, as medidas que o poder público está autorizado a tomar e a previsão
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de sanções em casos de descumprimento.[5] A ameaça de uma onda de infecção do


coronavírus veio, no entanto, denunciar esse vazio legislativo.

2.1.2 Problema resolvido?

Diante da crise que se avizinhava, foi aprovada às pressas a Lei n. 13.979, de 6 de


fevereiro de 2020, que trata especi camente da emergência do coronavírus. Assim, se
poderia dizer que, pelo menos quanto a infecções por coronavírus, há uma lei federal
para dar suporte legal ao art. 268 CP.

Dentre outras coisas, a lei autoriza a determinação de medidas como isolamento,


quarentena e realização compulsória de exames médicos (art. 3º), bem como alguns
deveres de comunicação (arts. 5º e 6º). Mas a lei não resolve tudo.

Ela foi adicionalmente regulamentada pela Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, do


Ministério da Saúde. Segundo a Portaria, por exemplo, a aplicação da medida de
isolamento depende de prescrição médica ou recomendação do agente de vigilância
epidemiológica (art. 3º, § 1º); a decretação de quarenta exige ato administrativo formal
e devidamente motivado (art. 4º, § 1º).

A cereja do bolo, entretanto, vem com a Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março


de 2020, que determina, em seus arts. 3º e 4º, que o descumprimento das medidas de
isolamento e quarentena, bem como a resistência a se submeter a exames médicos,
testes laboratoriais e tratamentos médicos especí cos, acarreta punição com base nos
arts. 268 e 330 CP.

Com essa cascata de normas, o cidadão ca sabendo a conduta passível de punição:


ele é obrigado a car em casa em isolamento, porque a prescrição médica (norma i) se
baseia na Portaria nº 356 (norma ii), que regula a medida de isolamento de nida na Lei
nº 13.979 (norma iii), que, segundo a Portaria Interministerial nº 5 (norma iv), seria uma
determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença
contagiosa e, portanto, satisfaz o tipo penal do art. 268 CP (norma v).

Considerando a premissa liberal de que o cidadão tem de saber quais condutas são
puníveis pelo Estado, é fácil ver por que esse tipo de construção legislativa é
problemática.

Mas se a situação é ruim com essas normas, muito pior sem elas. Deixando a questão
da constitucionalidade do artigo de lado, o melhor que se pode fazer, para garantir um
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mínimo de segurança jurídica, como defendido acima, é vincular a aplicação do art. 268
CP estritamente às determinações previstas na Lei nº 13.979, seguindo a forma
estipulada nas portarias.

Concretamente: a medida de isolamento só existe juridicamente se for determinada


por médico ou agente de vigilância epidemiológica e observar as demais exigências
previstas no art. 3º da Portaria nº 356.

Além disso, a pessoa tem de ter sido comunicada previamente sobre a


compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º).
Exclusivamente nesse caso, a infração à determinação de permanecer em isolamento
será um crime.

O mesmo vale para a quarentena: sua validade depende de ato administrativo formal e
devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do
Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada
nível de gestão, publicada no Diário O cial e amplamente divulgada pelos meios de
comunicação (art. 4º, § 1º).

Um outro ponto importante é considerar o que signi ca cada medida. O isolamento,


segundo a de nição legal (Lei nº 13.979, art. 2º, § 1º), somente é aplicável a pessoas
doentes ou contaminadas, e não pode ser determinada para pessoas com suspeita de
contaminação.

A quarentena, por outro lado, pode ser aplicada a pessoas com suspeita de
contaminação, mas exige ato administrativo de autoridade pública, e não pode ser
determinada por ato médico, como exposto acima[6]. Há na mídia muita confusão entre
as duas medidas.

Somente se satisfeitos esses requisitos, pode-se falar em infração de medida sanitária


preventiva nos termos do art. 268 CP. Não satisfeitos os requisitos para determinação
das medidas, não há que se falar mesmo em punição por tentativa, pois o sujeito
suporia estar cometendo um delito que não existe (delito putativo).

Em suma, a tomar pelas portarias emitidas pelo governo federal, as condutas cobertas
pelo art. 268 CP são as seguintes: descumprimento de determinações de isolamento e
quarentena, bem como a resistência a se submeter a exames médicos, testes
laboratoriais e tratamentos médicos especí cos.

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Em todos esses casos, é fundamental que se respeitem as exigências formais para


decretação de tais medidas. Para compreender o que se deduz da cascata de normas
mencionada acima, sugerimos o seguinte quadro sinóptico:

Conduta
penalmente
Medida sanitária Requisitos
relevante (art.
268 CP)

– Prescrição médica ou por recomendação


do agente de vigilância epidemiológica,
com prazo máximo de 14 dias prorrogáveis
Isolamento: por igual período (Portaria nº 356 art. 3º, § Infringir o
separação de 1º) isolamento
pessoas domiciliar ou
contaminadas – Comunicação prévia à pessoa afetada hospitalar
sobre a compulsoriedade da medida
(Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º)

Quarentena: restrição
Desrespeitar a
de atividades ou
Ato administrativo formal e devidamente restrição de
separação de
motivado, publicada no Diário O cial e atividades
pessoas suspeitas
amplamente divulgada pelos meios de determinadas
de contaminação
comunicação. (Portaria nº 356 art. 4º, § 1º) em ato
das pessoas que não
administrativo
estejam doentes

– Indicação mediante ato médico ou por


pro ssional de saúde (Portaria nº 356, 6º)
Realização
Resistir à
compulsória de
– Comunicação prévia à pessoa afetada realização de
exames médicos,
sobre a compulsoriedade da medida exames, testes
testes laboratoriais e
(Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º) e tratamentos
tratamentos médicos
indicados.
especí cos
 

A Lei nº 13.979 prevê, além disso, deveres de comunicação por parte de cidadãos e
órgãos públicos. Em tese, essas determinações não estariam excluídas do âmbito do

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art. 268 CP. A Portaria Interministerial nº 5 não menciona esses casos, mas não é
razoável supor que uma portaria possa determinar se uma conduta é ou não criminosa,
quando esses deveres de comunicação são estabelecidos claramente por lei.

2.1.3 Uma observação nal: o concurso de normas

Por m, um comentário sobre o art. 330 CP, o crime de desobediência. Em boa parte
dos casos de infração de medida sanitária preventiva (art. 268), o tipo penal do art. 330
CP também será realizado caso a ordem advenha de funcionário público.
Inversamente, no contexto de crimes envolvendo a epidemia, todos os casos de
desobediência implicam necessariamente a infração prevista pelo art. 268 CP.

Entre os dois tipos existe o que se denomina concurso aparente de normas (na
modalidade de consunção), pois o conteúdo de ilícito do art. 330 CP é consumido pelo
do art. 268 CP. O agente só será punido, portanto, pelo crime de infração do art. 268 CP.
A menção ao 330 CP na Portaria Interministerial nº 5 é desnecessária.

2.2 Perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 CP)

Um tipo de perigo que merece ser verdadeiramente levado a sério é aquele previsto no
art. 132, CP, cuja redação é a seguinte: “Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a
perigo direto e iminente: Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não
constitui crime mais grave”.

Se dedicarmos um olhar super cial, e consideramos os casos que estamos analisando,


não há, a rigor, obstáculo à subsunção. Isso porque o tipo penal admite que o perigo,
que é individual[7], tenha a saúde (e não somente a vida)[8] como objeto de referência –
embora seja possível cogitar uma redução teleológica do tipo.

No que aqui nos interessa da perspectiva do tipo objetivo, basta que o agente exponha
a vítima a uma situação de perigo direto e iminente à saúde. Vamos submeter essa
intuição à inspeção dogmática para veri car se, realmente, os casos apresentados
(acima 1) podem ser subsumidos ao art. 132 CP.

O perigo, conforme redação do dispositivo, deve ser direto e iminente. No espaço que
dispomos não conseguiríamos desenvolver melhor argumento para tentar explicar
essas elementares.

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Cremos, entretanto, que a ideia que subjaz ao tipo objetivo pode ser acessada por meio
do conceito de perigo concreto. Segundo de nição largamente admitida, o perigo
concreto é um estado em que a lesão ao bem jurídico é de tal forma imediata e
provável que sua ocorrência dependerá somente do acaso[9]; a valoração dessa
casualidade é feita segundo um exame de prognose póstuma objetiva (julgamento ex
ante), isto é, o terceiro julgador deve veri car se o comportamento tinha uma real
possibilidade de causar perigo de lesão ao bem jurídico no momento de sua
execução[10].

O perigo também deve ser abrangido pelo dolo, direto ou eventual, do autor – talvez
seja bastante óbvio, mas às vezes o óbvio precisa ser dito. Isso signi ca que a
imputação subjetiva será aperfeiçoada tanto na hipótese do comportamento realizado
com o propósito de criar o perigo como na hipótese em que, apesar de prever a
probabilidade do dano, não se abstém de realizar o comportamento[11].

Considerando o que foi dito até aqui, e tentando racionalizar o tipo à luz do grupo de
casos que apresentamos, sugerimos o seguinte: primeiro, o tipo depende da prova de
que o autor está contaminado: se não há Covid-19, então não se pode cogitar dessa
imputação; e isso porque se não há perigo de resultado, então – ainda que exista uma
colocação em perigo – não será possível imputar o tipo[12] (i).

Segundo, é preciso haver prova de que o indivíduo tinha consciência de que ele se
encontra contaminado (ii).

Terceiro, se nas circunstâncias concretas o autor pudesse esperar (ou con ar


racionalmente) que o risco não se realizaria, então não será possível imputar esse tipo
penal (iii)[13].

Quarto, o agente consciente da contaminação que expõe uma pessoa a perigo realiza o
art. 132 CP, isso não afasta, de acordo com o caso concreto, o possível concurso com
o 268 CP, desde que observadas as diretrizes de aplicação desse dispositivo (acima
2.1.2).

Cumpre ressaltar, adicionalmente, o seguinte: imagine-se que o indivíduo – que sabe


estar contaminado ou tem fundada suspeita da contaminação – cumprimenta a um
amigo.

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Como vimos, é possível cogitar a realização do tipo de perigo do art. 132 CP. Na
hipótese em que o amigo é de fato contaminado, o tipo penal do art. 132 CP também
restaria formalmente realizado.

No entanto, como há um resultado danoso à saúde, o delito de lesão corporal não pode
ser ignorado. Havendo de fato uma lesão corporal no sentido do art. 129 CP, o sujeito
seria punido apenas por este delito, já que o art. 132 CP é subsidiário ao art. 129 CP
(concurso de leis).

Dito isso, chegamos ao último delito que merece consideração, mas que é
aparentemente ignorado pelas manifestações que até o momento temos
conhecimento: o crime de lesão corporal.

3. Lesão corporal
O último tipo penal que merece consideração é o de lesão corporal. É possível que a
consideração desse tipo penal tenha causado alguma estranheza em nosso leitor. E
isso porque quando se fala em lesão corporal intuitivamente associamos o
comportamento à lesão corpórea.

Entretanto, não podemos esquecer que o núcleo o tipo, a ofensa, tanto pode ser à
integridade corporal como à saúde. E é exatamente nessa segunda elementar que o
atual quadro de pandemia adquire signi cado.

Essa primeira consideração pode ter provocado re exões do gênero: bem, se o tipo
penal alcança lesão à saúde, então, por que não se pune pela lesão corporal o colega
de faculdade que, severamente gripado, insiste em assistir as aulas e transmite o vírus
para o restante da sala?

A resposta, aqui, é quase intuitiva, razão pela qual nos cabe dar somente um
fundamento para essa intuição. O direito penal somente se ocupa daqueles riscos
socialmente intoleráveis.[14]

Comportamentos socialmente adequados fundamentam a permissão dos riscos[15]


que a sociedade já tolera e o fundamento dessa aceitação, em regra, ou decorre de um
juízo de ponderação que se faz, isto é, o risco será socialmente tolerável quando as
vantagens com a realização do comportamento superam as desvantagens da sua não
realização[16] ou decorre de um risco inerente ao curso da vida.
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No último caso estamos diante, na elaboração de Wolter, de insigni cantes riscos reais
(unbeachtlich geringen realen Risikos)[17]. Voltando para o caso do nosso estudante
gripado: nesse caso, é evidente que existe um risco de transmissão do vírus, mas esse
risco é inerente ao curso da vida, razão pela qual, mesmo numa eventual transmissão
do vírus – o que, naturalmente, representa uma ofensa à saúde[18] – o estudante não
terá realizado objetivamente o art. 129 CP.

Convertendo a resposta em uma fórmula: a imputação do tipo objetivo deve ser


negada porque o estudante gripado não ultrapassa o limite dos riscos permitidos e, por
isso mesmo, não cria um perigo juridicamente relevante.

Visto que um comportamento que implica transmissão da Covid-19 não tem


suportabilidade social (soziale Tragbarkeit[19]), di cilmente alguém sustentaria que esse
é um caso que expressa um risco permitido.

A própria Lei 13.979/20 corrobora esse ponto ao estabelecer, como dever de todo
cidadão, a comunicação imediata às autoridades sanitárias em caso de possíveis
contatos com os agentes infecciosos ou de circulação em áreas consideradas
contaminadas (art. 5º).

Esse pequeno cenário sobre a lesão corporal nos permite concluir, com alguma
facilidade, o seguinte: o indivíduo que sabe estar contaminado pela Covid-19, e
transmite o vírus a um terceiro, realiza objetivamente o art. 129 CP, que pode ser
quali cado pelo perigo de vida (art. 129, § 1o, II CP) ou pelo resultado morte (art. 129, §
3o CP).

Do ponto de vista subjetivo, essa imputação pode ser dolosa ou culposa. Doutro lado, a
realização desse tipo não afasta o concurso de crime com o 268 CP, desde que
observadas as diretrizes de aplicação desse dispositivo (acima 2.1.2).

Somos obrigados, entretanto, a registar um problema adicional para a atribuição desse


tipo penal: estamos diante de um quadro de pandemia que, por de nição, é
caracterizado pela sua fácil, difusa e incontrolável transmissibilidade.

Como a imputação dos crimes de resultado, que é o caso da lesão corporal, requer a
demonstração da relação de causalidade (art. 13 CP), a di culdade de reconstruir a
cadeia causal coloca sérios, e possivelmente insuperáveis, problemas para a
imputação do tipo e para o processamento do caso em juízo.

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23/03/2021 Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal | JOTA Info

4. Resultados
Retomando, em resumo, as considerações feitas neste artigo, apresentamos nosso
diagnóstico jurídico-penal da situação:

1. É muito improvável que os delitos dos artigos 131 e 267 CP adquiram relevância
no contexto de pandemia de Covid-19;
2. O tipo de infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP) pode de fato ter um
papel relevante na situação em curso. Há, no entanto, dúvidas quanto à
constitucionalidade da norma. Em todo caso, uma aplicação do art. 268 CP teria
de, no mínimo, atentar estritamente os preceitos da Lei 13.979 e das portarias
referidas ao surto de coronavírus.
3. O tipo de perigo para vida ou para a saúde de outrem (art. 132 CP) poderá adquirir
relevância, nos casos em que alguém, consciente da contaminação, exponha outro
a perigo concreto.
4. Na hipótese de dano efetivo, também assumirá relevância o delito de lesão
corporal (art. 129 CP) e suas formas quali cadas, como o resultado morte.

Agradecimentos

Agradecemos ao nosso professor, Luís Greco, bem assim colegas Orlandino Gleizer,
Gustavo Quandt e Heloisa Estellita pela leitura, comentários e sugestões feitas à versão
original.

[1] Segundo notícia divulgada pelo Estadão no dia 16 de março de 2020, o art. 268 subsidiará o

pedido de impeachment do deputado federal Alexandre Frota contra o presidente da república. Cf.
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pedido-de-impeachment-de-frota-contra-bolsonaro-
vai-alegar-crimes-contra-saude-publica,70003235731.

[2] Nesse sentido, o informe do Robert-Koch-Institut. Acessível em:

https://www.rki.de/DE/Content/InfAZ/N/Neuartiges_Coronavirus/Steckbrief.html

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[3] Caso esse conhecido também saiba da contaminação, também deve ser considerado a

impossibilidade de imputação objetiva da conduta em razão do comportamento autorresponsável


da vítima.

[4] BVerfGE 22, 1, 18.

[5] A Alemanha, por exemplo, tem uma lei de proteção a infecções (Gesetz zur Verhütung und

Bekämpfung von Infektionskrankheiten beim Menschen).

[6] Isolamento e quarentena podem ser determinados também a objetos, como de bagagens, meios

de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas. A infração às respectivas


determinações em relação a esses objetos também con guraria crime nos termos do art. 268 CP.

[7] O perigo comum poderá con gurar crime contra a incolumidade pública (Título VII); naquilo que
se aplica ao nosso problema, o crime de epidemia (acima 1.2).

[8] Não discutiremos, porque não é o objetivo do artigo, as questões referentes à legitimidade e

melhor redação para o dispositivo. Limitamos a informar que o seu espelho foi o anteprojeto de
Código Penal Suíço de 1908. A versão nal desse código, entretanto, optou por uma redação
restritiva, limitando a criminalização à exposição a perigo iminente de morte.

[9] Cf. Roxin/Greco, AT5 §10, Rn. 124; Wessels/Beulke/Satzger, AT I48, nm. 43; Otto, § 4, Rn. 11; NK5 –

Kargl, StGB, Vor §§ 306, Rn. 19 e ss; NK5–Zieschang, § 315, nm. 30 e ss.

[10] Fischer66, § 315c, nm. 15a; Roxin/Greco, AT5 §11, nm. 147; Zimmermann JR 2018, 25.

[11] Cf. Hungria, p. 418

[12] Sobre os problemas de comprovação e con guração do resultado de perigo concreto, cf.
Roxin/Greco, AT5 §11, nm. 148 e ss.

[13] Cf. BGH NJW 95, 3131; Renzikowski JR 1997, 115.

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[14] Decidimos discutir esse problema no âmbito da lesão corporal, porque, na doutrina penal, ele é

normalmente discutido nos delitos de resultado, no âmbito da imputação objetiva. No entanto, o


problema da adequação social do risco poder ser um parâmetro de intepretação geral para a
tipicidade, de modo que também seria aplicado a delitos de mera atividade, cf. Roxin/Greco, AT5
§10, nm. 33 ss. Assim, a mesma discussão vale para o delito perigo para a vida ou saúde de outrem
apresentado anteriormente (art. 132 CP).

[15] Não é desconhecido o fato de que alguns autores fazem uma clara distinção entre “risco

permitido” e “ação socialmente adequada”. Aqui, essa distinção não tem necessidade de ser
realizada. Sobre isso, cf. Roxin/Greco, AT5 § 10, nm. 33 e ss.

[16] Cf. Roxin/Greco, AT5 §11, nm. 55.

[17] Wolter, Objektive Zurechnung und modernes Strafrechtssystem, in:

Gimbernat/Schünemann/Wolter, Internationale Dogmatik der objektiven Zurechnung und der


Unterlassungsdelikte, 1995, p. 3 e ss.

[18] Ofensa à saúde é a causação ou o incremento – signi cante – de uma condição patológica na
vítima. Entende-se como tal aquela que desvia o estado normal das funções físicas ou psíquicas da
vítima. Cf. BGHSt 36, 1, 6; Fischer66, § 223, nm. 8 e 13 e ss;

[19] Roxin/Greco, AT5 § 10, nm. 39.

LUCAS MONTENEGRO – assistente cientí co na cátedra de direito penal, loso a e teoria do direito da
Universidade Martinho Lutero, de Halle e Wittenberg (titular da cátedra: Joachim Renzikowski); doutorando na
Universidade Humboldt, de Berlim (orientador: Luís Greco); LL.M. na Universidade Georg August, de Göttingen
(orientador: Dietmar von der Pfordten); graduação pela Universidade Federal do Ceará.
EDUARDO VIANA – Professor de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e da Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC). Doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) com estágio doutoral realizado na Universität Augsburg, Alemanha (2014-2017) e Universitat
Pompeu et Fabra, Barcelona - Espanha (2013-2014).

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