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Paisagens urbanas, paisagens humanas

O texto se propõe a expor casos de saúde mental que acometem pessoas em


situação de rua. Para isso, começa demarcando historicamente a loucura em situação de
rua em nossa sociedade.
A loucura, presente em nosso trato social desde a Antiguidade, vai se colocando
de formas diferentes ao longo da história. Os ditos loucos eram aqueles que
apresentavam “desvios” evidentes, representando um empecilho para o convívio geral.
Mas, até o sistema capitalista se estruturar de fato, a produtividade dessas pessoas não
era colocada em xeque, não sendo uma determinação para a definição de quem seria
louco ou não.
O tratamento dado à loucura errante pela família e pela comunidade não se altera
com o passar do tempo, já que não se apresenta questionamentos acerca do que leva as
pessoas a saírem de casa ao adoecerem mentalmente. A psicose, nesse contexto, seria
uma tentativa de organização através da fuga, um modo desviante de se colocar no
mundo em situações extremas.
A partir disso, o texto coloca como o sistema de saúde mental se organiza na
cidade de Belo Horizonte, a partir da organização das UBS e do Centro de Saúde Carlos
Chagas, que volta seu atendimento à população de rua em 2002 após a implementação
do Projeto de Política de Saúde da Família. Após um processo de coleta de dados, se
constatou que 33% das pessoas em situação de rua com transtornos mentais aderiram
aos tratamentos disponibilizados. Esse trabalho gerou efeitos significativos na inclusão
social dessas pessoas, apesar de ser uma população de difícil aderência aos serviços.
Dois casos são expostos após a introdução do artigo: o primeiro de uma senhora
de 74 anos, negra, que vive num casebre embaixo de um viaduto e se diz “enviada de
Deus” e um senhor de 60 anos, negro, que se instalou em um terreno baldio de um
bairro de classe média da cidade. Em ambos os casos, podemos observar o quanto o
trabalho em suas respectivas moradas estrutura os seus psiquismos. Mas esse trabalho
não se coloca como um trabalho valorizado pela estrutura capitalista em que nos
localizamos, é um trabalho que cria, que ressignifica a existência e o território desses
sujeitos, definindo um novo sentido para a eficácia do trabalho. A errância, assim, se
torna parte da constituição dessas pessoas.
Se torna, então, necessário e fundamental para profissionais de saúde mental
conhecer e se aproximar do trabalho com pessoas em situação de rua, ampliando seu
leque de conhecimentos e aprimorando sempre o seu trabalho.
A criança e o adolescente: experiências da atenção básica

O texto se introduz com um recorte histórico de como a saúde mental da criança


e do adolescente foi implementada na atenção básica na cidade de Belo Horizonte e
expõe como o sistema se compõe hoje: através de Centros de Saúde com equipes de
saúde mental que atendem casos graves de psicose, Equipes Complementares de
atenção à saúde da criança e do adolescente, CERSAMi (equivalente ao CAPSi) e o
projeto Arte da Saúde. Apesar de todos esses serviços, a porta de entrada para eles é a
atenção básica, como preconiza o SUS (não lembro a legislação certinha)
As crianças e adolescentes são encaminhadas de escolas, Conselhos Tutelares,
Juizado da Infância e da Adolescência e também por demanda espontânea. Os casos são
acolhidos pelas equipes de PSF e, caso necessário, encaminhados para a Saúde Mental.
Assim, o texto apresenta alguns casos. O primeiro se refere a uma garota que
não falava no ambiente da escola. O caso foi encaminhado para o projeto Arte da Saúde,
onde pode evoluir consideravelmente.
O segundo caso diz respeito a um bebê de 1 ano e 8 meses de idade, que “parou
de abrir o olho”, de acordo com relatos da mãe. Ela relata que a criança apresentou esse
sintoma após tentativas de desmame. Através da escuta de angústias da mãe, o caso
também se solucionou. Assim, pode-se ver como o atendimento a crianças muito novas
se dá e como ele também pode ser eficaz.
O terceiro e último caso é de um garoto que apresenta sintomas próximos ao
autismo, mas mantém um contato pobre com as pessoas. Os sintomas aparecem depois
de uma ida ao dentista. O garoto se apresenta agressivo, teimoso e fala de forma
regredida. Está em atendimento até hoje.
Resposta à crise: a experiência de Belo Horizonte

O texto se inicia conceituando crise no contexto de saúde mental: define um


espectro amplo de fenômenos, graves, relacionado a diversas outras comorbidades,
como doenças crônicas e/ou uso de drogas. São a via de entrada para o serviço
psiquiátrico, justificando internações.
Assim, a resposta à crise se torna um desafio para os serviços abertos, já que nos
sistemas manicomiais ela tem função prática. Dessa forma, o sistema de saúde de Belo
Horizonte estrutura um sistema de atendimento à crise, baseado em três formatos de
operação: uma proposta de serviços 24h funcionando no modelo de leitos-crise, onde o
paciente é acolhido até a atenuação da crise; outra de hospitalidade noturna e a última
de funcionamento 24h de plantão psiquiátrico. O projeto apresentou baixa efetividade e
não afetou o número de internações nos hospitais psiquiátricos. Houve dificuldades no
deslocamento entre os CERSAMS, uso excessivo de medicação e tendência a um
tratamento cronificado.
Dessa forma, se institui o Projeto Hospitalidade, levando o SAMU a assumir
todas as emergências psiquiátricas, implementando o serviço de Hospitalidade Noturna
em todos os CERSAMS e criando o Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP). O SUP é
um serviço de atendimento a urgências noturno, que funciona com 6 leitos, salas de
consultório, sala de oficina, refeitório e equipe composta de psiquiatra, enfermeira,
auxiliares de enfermagem, auxiliar administrativo, motorista do SAMU e pessoal de
apoio. Tem uma Unidade Móvel de Suporte Avançado à disposição. Se focaliza nos
casos graves e possui uma rede integrada de comunicação com todos os CERSAMS. De
modo geral, os CERSAMS são habilitados para gerirem as crises, mas o SUP está
disponível para gerir as crises mais graves.
Portanto, percebe-se a necessidade de se integrar um serviço de atenção à crise
ao sistema de saúde, dando uma resposta satisfatória à questão da crise em sistemas
abertos e também ampliando e consolidando a própria Reforma Psiquiátrica.
Centros de convivência: novos contornos na cidade
Os Centros de Convivência integram a rede substitutiva de Saúde Mental,
proporcionando espaços de ocupação da cidade por seus usuários. Surge a partir da
proposta de um grupo de trabalhadores, que sugere uma prática descentralizada e
territorializada, consonante com os princípios do SUS.
Nos centros de convivência, os usuários são acolhidos numa primeira entrevista,
em que podem escolher suas oficinas, que servem como espaço de troca e convívio,
assim como de criação, tendo a arte e os processos artísticos como principais eixos
orientadores. Não há a pretensão de se formar novos artistas, mas de fazer com que suas
subjetividades sejam melhor expressadas.
Os centros de convivência mostram o quanto a loucura é parte constitutiva da
cidade e também não é assunto puramente médico, servindo como dispositivo
estratégico para a mudança da cultura manicomial de exclusão do usuário de saúde
mental.
Residências terapêuticas: o percurso de Belo Horizonte

Os serviços residenciais terapêuticos integram a rede de saúde mental e servem


como dispositivo de integração do usuário da rede na cidade e no trato social,
exercitando sua liberdade e sua imposição no território.
Em Belo Horizonte, o serviço surge em 2001, sendo gradativamente
implementado conforme os hospitais psiquiátricos fecham. Dessa maneira, nem todos os
usuários tinham processos longos de internação e também não foram preparados para
serem alocados em dispositivos como esse, já que eram os pacientes restantes dessas
instituições. Sendo a desospitalização precipitada, alguns resquícios de práticas
manicomiais acabam restando ao lidar com esses usuários e também ocorre um rechaço
da rede de saúde para com o serviço.
A partir de 2003, com a implementação de uma política de saúde mental
efetivamente antimanicomial, há uma ruptura nos serviços. A rede responde as questões
dos usuários de forma mais efetiva e os usuários se empoderam, estando mais
fortalecidos, confiantes e, dessa forma, mais dispostos a ocupar os novos espaços que
lhes aparecem.
Na cidade, apenas um SRT é referenciado a algum CERSAM, devido à
complexidade dos casos que nele estão. Os outros são referenciados a Centros de Saúde
e Centros de Convivência, tendo referências aos PSFs de suas regiões.
Os SRTs servem como grandes repúblicas, onde os usuários, compartilhando
suas vivências, ocupam a cidade e experenciam sua liberdade.
A supervisão na rede pública de saúde mental

O processo de supervisão se faz necessário em toda profissão onde um suposto-


saber se faz presente (psicologia e psiquiatria, por exemplo). Visa um controle
profissional, a fim de evitar posturas e práticas antiéticas e a discussão do caso clínico
em si, a fim de elucidar diagnósticos, desenvolver projetos terapêuticos e verificar
recursos terapêuticos, farmacológicos e sócio geográficos que são pertinentes para o
tratamento.
Na cidade de Belo Horizonte, um caso clínico específico demandou a presença
do supervisor. Essa demanda ocorreu a fim de evitar a ocorrência de algo pior no caso.
Em psicanálise, é a chamada passagem ao ato, que revela um não funcionamento
adequado do simbólico. Outra ocorrência é o acting out, onde o paciente demanda a
escuta efetiva do terapeuta. Dessa forma, o paciente “atua”, a fim de chamar a atenção
do terapeuta para o que efetivamente quer dizer.
Além das questões clínicas, se observam outros fatores que influenciam
diretamente no tratamento em saúde mental: o conceito de cidadania, que se torna uma
dimensão terapêutica; a questão da medicação, que é uma fonte de polêmica em
serviços abertos; a visita domiciliar, que dá outra nuance para o acompanhamento
terapêutico e um fator que só existe na rede de saúde pública que é a criatividade ao
tratar os casos, que evidencia a dedicação dos profissionais às demandas apresentadas.
Dessa forma, se torna fundamental que se utilize de perspectivas teóricas que
considerem e valorizem as subjetividades em todas as dimensões e relações.
O planejamento como subsídio para a organização dos serviços substitutivos de saúde
mental em Belo Horizonte

O planejamento de estratégias no serviço de saúde mental se faz fundamental


para se pensar ações intersetoriais, visando articular a dinâmica dos serviços em torno
de suas missões e metas e também fomentar o exercício da construção coletiva de
objetivos. Assim, com essa prática, fica mais fácil e viável repensar as metas que estão
sendo alcançadas, quais estratégias e ações são mais eficazes, acompanhando as
mudanças que o serviço proporciona e pode proporcionar.
A demanda por planejamento surge em um dos CERSAMS de BH, onde eram
vistos grandes problemas de funcionamento: a dificuldade de compreensão de um novo
modelo assistencial; questões relacionadas a Recursos Humanos, principalmente em
relação a qualificação e desenvolvimento do modelo proposto; falta de compreensão de
papéis, atribuições, arranjos, rotinas operacionais e fluxos do trabalho em equipe;
dificuldade de viabilização de propostas previstas no novo modelo e questões
estruturais, inicialmente trazidas como percepção de limitação de recursos e de
profissionais.
Assim, o planejamento passa a ser o motor para a criação de um plano diretor do
CERSAM, tornando claro para a equipe a dimensão político-instrumental do
planejamento estratégico, evidenciando a necessidade de uma participação constante na
sua participação e execução. Os projetos terapêuticos, então, marcam a necessária
desassociação entre clínica e planejamento, atenção e gestão.
Apesar de ser um processo desafiador, a abertura dos serviços de saúde mental
se mostra extremamente eficaz em casos de desospitalização, redução de reinternações,
ampliação de acesso, ainda que os profissionais ainda sofram com problemas de âmbito
estrutural e de processos de trabalho, resultando em sobrecarga nos trabalhadores.
No planejamento intersetorial, a participação de outros setores é destacada. É
preciso, então, implicar todos os agentes na discussão e na construção dos casos.
A saúde mental na atenção ao louco infrator

A loucura é considerada um perigo para a sociedade moderna, justificando o


exílio dessas pessoas em manicômios judiciários. Em Minas Gerais, essa instituição já
se encontrava lotada na década de 90, tendo casos sendo encaminhados aos hospitais
psiquiátricos e gerando resistência por parte dos trabalhadores.
Surge, então, a necessidade de acolhimento dessa população pelos serviços
abertos. Assim, se cria o PAI-PJ, que envolve um serviço de atenção intersetorial,
abrangendo uma política da clínica, que se origina do acompanhamento caso a caso e de
uma política pública, envolvendo outros setores. Ainda, uma terceira rede realiza a
conexão e a execução dessa política.
A partir de espaços criados na cidade de Belo Horizonte para a discussão e
disparo de debates, se percebeu que a periculosidade da loucura é um conceito criado
para favorecer o projeto de segregação concebido na modernidade, tendo a razão como
princípio dominante. Dessa forma, se ressalta a necessidade de uma prática
antimanicomial no âmbito da atenção ao louco infrator.
Mas isso não significa que o infrator não é responsabilizado por sua infração. O
sujeito é o único capaz de ressignificar suas ações e produzir um novo laço social. A
solução de segregação age no sentido oposto, fazendo com que o sujeito não se encontre
com seu laço social, potencializando o gozo do pior.
A partir da data de implementação do programa, o modelo substitutivo à
privação da liberdade tem sido uma orientação e tem apresentado resultados
extremamente satisfatórios, diminuindo a reincidência criminal e cessando a maioria
dos casos com a Justiça.
Acompanhamento terapêutico: redescobrindo a vida

A mudança de paradigma no tratamento em saúde mental cria a necessidade de


implementação do acompanhamento terapêutico, se tornando uma ferramenta na
desospitalização e na criação de laços do usuário do serviço de saúde mental com a
cidade. O papel do acompanhante terapêutico é conseguir dialogar com a cidade e com
o medo do paciente de ocupá-la, fazendo um processo de reintegração familiar e social.
Essa modalidade assegura os direitos de cidadania do usuário e ameniza os efeitos da
exclusão social, da segregação e da clausura.
Fórum Mineiro de Saúde Mental: a alegria e a coragem de fazer política

O Fórum Mineiro de Saúde Mental é construído por usuários, trabalhadores e


familiares. Se organiza como um movimento social, contemporâneo à política de saúde
mental de Belo Horizonte e de outras cidades e funciona como laboratório de práticas,
intervenções, estratégias e projetos que dão corpo à luta antimanicomial.
É um trabalho de militância, que tem papel diferente da cidadania. A militância
implica em aceitar a filiação em uma causa e produzir modos de vida decorrentes da
ação coletiva. A causa a ser perseguida no Fórum Mineiro de Saúde Mental é a extinção
dos manicômios, buscando uma nova relação entre sociedade e loucura que não passe
pela exclusão dos ditos loucos.
A causa perpassa momentos de tensão em sua trajetória. O primeiro surge na
implementação da Política de Saúde Mental, onde a gestão não julga necessário nomear
psiquiatras para a atuação nos serviços abertos. Num segundo momento, a partir de
dissidências, a política se torna burocrática, se afastando de seus objetivos originais e
não estando em consonância com as necessidades da população. Por fim, duas situações
recentes evidenciam tensões com a gestão municipal: a implementação do serviço de
hospitalidade noturna e a reinvindicação de ajuste salarial, já que a categoria médica era
muito mais valorizada que as outras categorias no SUS.
O texto ainda remonta o impacto que o poder exercido pelas práticas
manicomiais e medicalizantes exerceu sobre os participantes do Fórum, fazendo com
que o coletivo se desenvolvesse e pressionasse os agentes públicos na implementação de
práticas antimanicomiais.
Múltiplas dobras: população de rua e políticas públicas

A chamada população de rua é a que utiliza o espaço da rua como moradia fixa
ou temporária. A precarização do trabalho, o alcoolismo e o uso de drogas, a dificuldade
em arcar com os gastos de uma moradia fixa, o aumento da violência nas periferias e a
loucura são os principais fatores pra que essa população exista.
A política de assistência à população de rua em Belo Horizonte se compõe com
os seguintes serviços: o Serviço de Abordagem, que conta com uma lógica de redução
de danos, pensando alternativas para essa população; o Centro de Referência à
População de Rua, que é um espaço de referência para o morador de rua fazer sua
higiene, guardar pertences, lavar sua roupa, endereço para correspondências e a
possibilidade de participação em oficinas para que se pensem alternativas para sua
condição; repúblicas para moradia temporária, sendo a república Reviver masculina e a
Maria Maria feminina, além do Albergue Noturno Municipal e do Abrigo São Paulo,
que oferecem pernoite, café da manhã, higienização e atendimento e acompanhamento
social, no caso do primeiro e o Serviço de Atenção Sócio Familiar, que realiza
acompanhamento social das famílias com trajetória de rua inseridas no programa Bolsa
Moradia da URBEL.
Após a abordagem no Albergue, no Centro de Referência ou no Serviço de
Abordagem, as pessoas são encaminhadas para os serviços que atendam suas demandas.
São encaminhados para os albergues ou para o Bolsa Moradia, quando se verifica
demandas relacionadas a habitação e para a eficácia do trabalho é necessária a
participação direta dos usuários, o que demanda tempo. Nessa tentativa de resolução dos
problemas, diversos contratempos apareceram e a falta de diálogo entre os setores foi o
principal problema evidenciado.
Os usuários enfrentam estigmas mesmo nos atendimentos. Há a ideia de que, por
serem “casos sociais”, não há a necessidade de acompanhamento pelo SUS,
desconsiderando que a vulnerabilidade em que vivem é um dos fatores do agravamento
de casos de saúde. Em relação à saúde mental, a territorialização dos casos é o maior
problema, já que implica em devolver o usuário para a rua após a crise. A humanização
do SUS, assim, passa na ideia de que nenhum morador de rua será discriminado ao
precisar de seus serviços, garantindo o princípio da universalidade.

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