Você está na página 1de 9

CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO

Bacharelado em Artes Visuais: Pintura, Gravura e Escultura

FABIO ESTEVES DE ROSA

PROJETO: “EU”
Peça-desenhada (“Activity”)

Memorial descritivo referente à disciplina Perfor-


mance ministrada pela Prof.ª Dr.ª Ana Carolina Lopes
Melchert, apresentado como requisito parcial para
avaliação do 1º bimestre

São Paulo, 2020


2

1 DESCRIÇÃO

Fig. 1
Enunciado performativo de “Eu”
2020
grafite sobre papel
24x20 cm
3

2 INTRODUÇÃO

O presente projeto de peça desenhada (Activity) “Eu” pretende desenvolver sobre a natureza
do ato a ser realizado, além de apresentar recursos teóricos que explicitam o processo de idea-
lização e que preludiam sobre o objeto performático em si, diante de suas possibilidades preli-
minares. O enunciado performativo (Fig. 1), que inaugura este, se inscreve como potência já
posta, e deve ser entendido como componente do programa aqui declarado.

Contudo, o intento da peça se constrói ao longo da realização deste, fazendo-se aparecer em


conformidade e em conjunto. Ademais, considera-se o Enunciado como objeto independente,
este com recursos próprios que possibilitam, já, sua existência enquanto obra sozinha. De outra
forma, o motivo em questão não se faz desatrelado, circunscrevendo-se a partir do primeiro.

Finalmente, a Peça objetiva a realização desse enunciado de dada maneira e será justificada
adiante para que suas características não percam em significado – por estarem não explicita-
mente contextualizadas ou mesmo por estarem suspensas demais mediante o programa que é,
ainda, inédito. “Eu” discute instâncias, acima de tudo, alheias também ao enunciado antes exi-
bido.

Pretendo, assim, colocar-me como corpo performático, curiosamente, numa busca de mim
mesmo. Se fará sugerir, em uma dialética com grau de sarcasmo, o eu performático como cons-
ciente de uma individualidade, de uma personalidade, do eu, de maneira mais concisa do que
seria possível em um cotidiano comum.

Uma vez que o cotidiano em questão (meu), profuso de uma necessidade, ou vontade – quer
seja pressionado por forças da cultura e sociedade contemporâneas – é dirigido para um inces-
sante registro, mostra, de si, se torna clara a intenção premeditada da documentação em dese-
nho. Esta autocrítica que seria instaurada do começo ao fim da Peça retorna ao conclave inicial:
eu me proponho ao eu performático para uma busca de mim mesmo.

Não poderia, pois, ser outro registro que não fosse o desenho e não poderia o desenho retratar,
verdadeiramente, o que não fosse a sombra. Por meio de uma provocação, “Eu” partiria de uma
proposta autocolocada e retornaria com uma vasta documentação de suas sombras, em vários
horários do dia.

A ação, assim, transcorreria em uma constante reflexão, não só sobre a descoberta de si, como
também do próprio ato como tal, da impossibilidade aparente. Impregnada nesse registro, nesse
“mostrar tudo isso” em forma de sombras, suscitariam a ação performática para quem isso é
4

mostrado. As sombras, “despersonificantes”, refletem sobre a possibilidade de independência


do desenho como suporte de uma ação performática, em um momento no qual o registro desta
linguagem se torna uma das poucas possibilidades seguras para exposição.
5

3 JUSTIFICATIVA

Partindo de um enunciado, entende-se, uma proposta, a obra inicia como uma possibilidade,
seja, também ao “leitor”. Se estenderia a um local de suspensão entre o material residual da
ação – que, além do próprio enunciado, seria composto por documentações das sombras ao
longo dos sete dias – e o outro, para quem isto é mostrado.

Além de um registro, “Eu” pretende-se viver diante do público. Felipe Bittencourt (São Paulo,
1987) é artista visual e performer, sobre isso dedica uma pesquisa, dentro da linguagem, em
torno das relações entre registro e performance ou registro como performance ou, ainda, per-
formance como registro. Ludmila Castanheira (2018. p. 72) melhor apresenta esta linha de pen-
samento do artista:

“Felipe Bittencourt iniciou, em 2010, uma série de “desenhos de performance”, com


a clara intenção de não concretizá-los em ações performativas. Naquele momento,
interessava-lhe pensar quais as possibilidades de efetivar performances em contextos
em que não necessariamente houvesse a presença de um corpo. Para tal, criou a rotina
de fazer desenhos acrescidos de textos simples e postá-los diariamente até às 10 horas
da manhã em um blog criado exclusivamente para o trabalho.”

Em entrevista com a Professora Dr.ª Ana Carolina Lopes Melchert do Centro Universitário
Belas Artes de São Paulo sobre a Performance no isolamento social, Bittencourt (2020) indica
o questionamento “Por que eu preciso de plateia? Por que eu preciso de audiência? Por que eu
preciso de likes e seguidores?” (transcrição livre). E é diante deste questionamento que se insere
a discussão: caso uma obra de arte tenha que estar em um local expositivo, entende-se em ex-
posição, isto deve-se a algo. Melhor dizendo, o fato de uma obra estar exposta – aqui não aden-
trando em uma discussão sobre métodos expositivos ou de diferenciação entre coisa (objeto
comum) e objeto (artístico) – não é alheio a obra, é característico dela, é necessário. A respeito,
André Desvallées e François Mairesse (2011. p. 68) apontam:

“Um "objeto de museu" é uma coisa musealizada, sendo "coisa" definida como qual-
quer tipo de realidade em geral. A expressão "objeto de museu" quase poderia passar
por pleonasmo, na medida em que o museu é não apenas um local destinado a abrigar
objetos, mas também um local cuja função principal é a de transformar as coisas em
objetos.”

O objetivo de apresentar uma coisa como obra de arte é, portanto, de “ativá-la”, de fazê-la obra.
A exposição tem o papel de diferenciar, segundo Desvallées e Mairesse (2011. p. 68), a coisa
que “tornou-se uma parte concreta da vida” do objeto que é “aquilo de que se está ‘diante’ e do
6

qual é possível se diferenciar”. Seria preciso apresentar, portanto, não a ação proposta no enun-
ciado, mas o resultado dela, e é este que promoverá a performance. Performance esta que deverá
ser executada, ou não, pelo outro a quem se destina o “mostrar tudo isso”.

E como poderia o “mostrar de verdade” não ser somente pela sombra? Curiosamente, signo de
uma descaracterização de mim, a sombra dá luz ao trabalho, que apareceria furtivamente entre
os resíduos claros de uma ação oculta no imaginário do outro, receptor. Somente a sombra,
silhueta irrepreensível do corpo, deste modo, poderia ser documento verdadeiro e registro de
um intervalo da vida. Somente o corpo resta de contato entre o ‘eu performativo’ e o ‘eu coti-
diano’. Somente a silhueta é confiável a ponto de se poder captar como retrato de um corpo, no
(novo) cotidiano. Melhor seria compreender por meio do trabalho da artista Ana Mendieta (18
de novembro de 1948, Havana, Cuba – 8 de setembro de 1985, Nova York, Estados Unidos)
que muito percorre sobre a silhueta do corpo e foto-performance, nas palavras de Mendieta
(1981. p. única): “Eu tenho criado um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino (baseado
em minha própria silhueta). [...]Eu me torno extensão da natureza e a natureza se torna uma
extensão do meu corpo.”.

Sobre a relação da performance, objeto e do “eu”, que o autor Eduardo Augusto Alves de Al-
meida (2016. p. 667) define uma “terceira fase” do trabalho de Lygia Clark (Belo Horizonte,
23 de outubro de 1920 – Rio de Janeiro, 25 de abril de 1988). É por meio de “Estruturação do
Self” e pelas palavras de Almeida (2016. p. 676) com contribuição de Lula Wanderley, que se
tornam claras essas relações:

“Para assim contribuírem com a organização do si mesmo, do aspecto fisio-psíquico,


da unidade do self. Diz-se que a proposição terapêutica com os Objetos Relacionais
tem papel estruturante para o self porque a psicose muitas vezes é vivenciada como
fraturas, fendas, buracos ou vazios no corpo. O objeto toca esse vazio e acaba incor-
porado no imaginário do corpo. “Essa incorporação é sentida como um religamento
com o mundo, uma nova experiência cósmica, construindo uma membrana que pre-
serva a individualidade e a ampliação do contato afetivo com a realidade”, explica
Lula Wanderley, artista e psiquiatra que trabalha com a Estruturação do Self no Es-
paço Aberto ao Tempo, instituição do complexo hospitalar Pedro II.”

Por meio desse emaranhado de estranhamentos, que estão a provocar a linguagem performática,
que se encontra a obra de Vito Acconti (Bronx, Nova Iorque, 24 de janeiro de 1940 – Manhat-
tan, Nova Iorque, 27 de abril de 2017). Dele surge o ímpeto deste projeto em dar continuidade
à discussão sobre a efemeridade do ato e sobre o ato performático em si. E por meio, também,
de um discurso metalinguístico com grau de satirismo, assim como o projeto que aqui se
7

apresenta. Annette Kuhn e Kirsten Emiko McAllister (2006. p.174. tradução livre) sobre o mo-
vimento Body Art colocam:

“[...]questionou-se a capacidade do meio artístico - seja seu vídeo, escultura ou foto-


grafia - para resolver uma prática efêmera em uma forma fixa. Na verdade, essas ima-
gens "documentais" eram frequentemente o principal meio pelo qual a performance
de uma Body Art estaria disponível, justamente para enfatizar que a efemeridade de
um ato sempre se encontra em seus restos - em seu traço, imagem, relíquia ou sinal.”

E, a respeito disso, não é exagero entender como algumas das obras de Acconti poderiam, na-
quele momento “resolver” muito bem esta questão. O poeta e performer produzira obras, cujo
registro eram elas próprias, estava colocando em xeque, naquele momento, o fato de que a
performance somente poderia ser acessada em um momento posterior e descaracterizada com
documentação. Annette Kuhn e Kirsten Emiko McAllister (2006. p.176. tradução livre) mais à
frente contam:

“Ao invés de entender um 'trabalho' como 'performance', tais estratégias (da “Arte
Literalista” de Acconti) diferenciam-se em meio à performance e sua documentação,
em meio à imagem, texto e ação, provocando assim que a consciência do leitor sobre
texto se torne fundamento de uma atividade performática que permanece embutida na
leitura.”

E, mais ainda, Kuhn e McAllister (2006. p. 177. tradução livre) comentam sobre as Activities
de Acconti:

“Tais processos (da obra "Following Piece", 1969) imediatamente levantam questões
sobre como apresentar práticas performativas ou 'embutidas'. Para "Following Piece",
Acconti divulgou sua 'Activity" por meio de documentação fotográfica, um diário vi-
sual e textual exibido e publicado em uma variedade de trechos e formas que, por si
mesmas, pareciam evitar qualquer interesse estético óbvio.”

Assim, pretende-se vir a contribuir com essa pesquisa na linguagem performática, que poderia
ao longo do processo de realização e criação, compreender-se melhor e fazer-se conceber ma-
terialmente. Reitero, portanto, dois momentos: o primeiro de realização do enunciado perfor-
mativo (Fig.1) dessa dada maneira e um segundo pelo qual o público teria contato com os resí-
duos dessa produção performática esquecida, fazendo com que pudessem dar lugar a um se-
gundo ato. Neste segundo momento, do público em contato com as representações destas som-
bras, em meio ao contexto do enunciado performativo, poderiam fazer-se performar tomando
consciência cada um de suas sombras, suas silhuetas, e sobre suas próprias maneiras, sobre suas
próprias regras.
8

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Penso em realizar esta ação, saindo completamente de minha rotina corriqueira, meu cotidiano,
sem que tenha contato com quaisquer meios digitais, estes que massificam a vida, que mergu-
lham o individuo em seu cotidiano. Este é um adendo que faço ao projeto, para fins de anotação.

Outra observação é que pretendo carregar comigo, durante os sete dias, um bloco de desenho
grande (provavelmente de papel Canson A2 ou maior) e giz de cera grande, provavelmente de
fabricação própria, produzido com cera de abelha e tinta a óleo preta com pigmento. Será este
que servirá de suporte para os desenhos de minhas sombras, os quais pretendo realizar vários
ao longo do dia, enfatizando o passar do tempo.

Uma outra consideração é a forma de exposição que pretendo para o projeto. Penso que seria
concernente expor essa “peça desenhada” presencialmente, dispondo os vários desenhos nas
paredes do espaço expositivo ou mesmo penduradas. Será importante, apenas, enfatizar o tra-
balho de iluminação do espaço de forma gerar sombras a partir do corpo dos visitantes.

Por fim, chamo a atenção para o fato de que seria possível, nessa exposição, dar lugar a uma
performance desenvolvida em meio à pandemia e isolamento social. De forma que, em um
futuro hipotético, o público estaria diante de uma performance viva que traspassou os limites
do isolamento social por meio do recurso e reflexão sobre seu registro colocado como obra.
9

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Eduardo Augusto Alves de. Estruturação do self de Lygia Clark: uma terapia
poética na ditadura militar brasileira. São Paulo. Universidade de São Paulo (USP). 2016.
Disponível em <http://www.cbha.art.br/coloquios/2016/anais/pdfs/4_edurado%20de%20al-
meida.pdf> Acesso em 22 de setembro de 2020.

BITTENCOURT, Felipe; MELCHERT, Ana Carolina Lopes. Live: Conversa com o perfor-
mer Felipe Bittencourt sobre performance, documentação e isolamento. Instagram: @ca-
rolmelchert. Disponível em: <https://www.instagram.com/carolmelchert/>. Acesso em: 13 de
abril de 2020.

CASTANHEIRA, Ludmila Almeida. Sangue Menstrual (6). In. Performance arte: Modos de
existência. Curitiba: Appris, 2018. p. 64-78.

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Objeto [de museu] ou musealia. In: Concei-
tos-chave da museologia. São Paulo: Armand Colin; Comitê Internacional para Museologia do
ICOM; Comité Nacional Português do ICOM. 2014. Pag. 68-72.

KUHN, Annette; MCALLISTER, Kirsten Emiko. Displaced Events: Photographic Memory


and Performance Art. In. Locating Memory: Photographic Acts. Nova York. Berghahn Bo-
oks, 2006. p. 173-200. Disponível em <https://books.google.com.br/books?hl=pt-
BR&lr=&id=kRbFYwKUN6sC&oi=fnd&pg=PA1&dq=Locating+Memory:+Photogra-
phic+Acts&ots=s6KYszbrDt&sig=i7Q9xXh6RrrnxUTepQp2QBuMisg#v=onepage&q=Loca-
ting%20Memory%3A%20Photographic%20Acts&f=false> Acesso em 22 de setembro de
2020.

SILVA, Isabella; BONILHA, Caroline. Provocações de Ana Mendieta: O Corpo e a Natu-


reza Como Objetos de Arte. Revista Seminário de História da Arte (UFPel) Vol. 1 Nº 7. Pe-
lotas – RS. 2018.

Você também pode gostar