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AS CIÊNCIAS NO ENSINO FUNDAMENTAL

PERSPECTIVAS ATUAIS

Elizabeth Fernandes de Macedo


(UERJ)

Resumo

O texto pretende analisar a situação atual do ensino de ciências no Brasil, tendo por base três estudos
realizados pela pesquisadora. Considera três ocorrências para traçar o mapa da situação deste ensino: as
diretrizes curriculares nacionais, a visão de professores e alunos dos cursos de licenciatura em ciências da
Uerj e a visão de professores de uma escola de ensino fundamental sobre o ensino de ciências.

Abstract

This paper analyses science studies in Brazil, based on three different researches conducted by the author.
It takes on account three situations in order to understand the actual stage of science education: the national
curriculum and assessment, the teachers' and students' view about teachers' courses, and theachers' opinion
about science courses on elementary level.

Analisar o ensino de ciências no Brasil no momento atual é praticamente impossível, tendo em vista a
multiplicidade de suas ocorrências e complexidade das situações que envolve. Realizar essa empreitada
significa, portanto, reduzir o escopo da análise possível. Parece-nos que o interesse fundamental quando se
questiona como está o ensino de ciências no Brasil hoje centra-se no que efetivamente ocorre nas salas de
aula. Mas quantas alternativas curriculares estão sendo cotidianamente construídas e reconstruídas em nossas
escolas? Que relações essas alternativas têm com as propostas educacionais e sociais mais amplas? Como
elas são viabilizadas no dia-a-dia e que estratégias surgem ao serem postas em prática?

Essas são apenas algumas das múltiplas perguntas que poderíamos fazer e que estariam nos auxiliando na
construção de um quadro acerca do ensino de ciências no Brasil. Todas elas envolvem recortes na
complexidade da realidade. Efetivamente, ao longo dos anos, fomos criando formas de acesso à realidade
complexa, formas de construir conhecimento sobre o mundo. No último século, as formas cunhadas pelas
ciências naturais foram eleitas como as mais adequadas, independentemente do objeto estudado. E as
ciências naturais eram fundamentalmente analíticas, decupavam suas complexidades em estruturas menores
que podiam ser compreendidas e buscavam, porteriormente, reconstruir a totalidade pelo somatório das
partes conhecidas. Essa seria, sem dúvida, uma possível metodologia de trabalho para este texto, a despeito
da inevitável dificuldade de, em espaço e tempo tão reduzidos, darmos conta da compreensão de todos os
subsistemas a analisar. Talvez há alguns anos atrás, assim procedêssemos sem desconfortos teóricos. Hoje,
no entanto, parece-nos que as próprias ciências naturais vem nos apontando para a precariedade da
compreensão que essa abordagem nos permite. Como a física moderna tem fartamente demonstrado, a
complexidade não é accessível pela análise das partes isoladas.

Optamos, então, por buscar entender o ensino de ciências no Brasil, não da forma analítica como
dissecamos um animal, mas numa perspectiva fractal. Trabalharemos a partir de ocorrências. Como nos
factrais, cada ocorrência é entendida como uma visão completa, e ao mesmo tempo parcial, do ensino de
ciências. Pode ser percebida em sua unicidade ou na composição de uma trama maior. Por sua vez, a trama
completa contém cada ocorrência, mas apresenta um sentido próprio. Optamos por tratar três ocorrências: (1)
as diretrizes curriculares, propostas que pretendem definir o trabalho a ser realizado em cada sala de aula do
país; (2) uma escola e uma sala de aula na visão de professores de ciências do ensino fundamental; e (3) o
processo de formação dos futuros professores na percepção daqules que participam deste processo de
formação.

Ocorrência 1: Diretrizes Curriculares

As proposições formais acerca do que deveria ser ensinado nas escolas são, sem dúvida, uma das
ocorrências que nos auxiliam na compreensão do quadro do ensino de ciências no nível fundamental. É
preciso, no entanto, que tenhamos claro que tais proposições não funcionam como um condicionante
absoluto do cotidiano curricular. Na realidade, ao nos referirmos a currículo, estamos lidando com uma
variada gama de dimensões— legal e institucional; escrito e vivido; explícito e oculto— presentes nas
tensões do dia-a-dia curricular.

A primeira tensão que precisamos ter em mente se estabelece entre o currículo formal ou escrito, que se
configura nas políticas institucionais e legais, e o currículo em uso ou em ação, vivido no diário das salas de
aula e dos demais espaços escolares. Freqüentemente, análises sobre currículos têm reduzido esta tensão a
consideração de apenas um de seus polos. Ou consideram currículo como aquilo formalmente estabelecido,
desvalorizando o que é praticado nas salas de aula, ou valorizam apenas o que é vivido nas salas de aula,
tomando as propostas curriculares como algo fadado a ser esquecido pelos professores em seu trabalho
diário.

É claro que não nos interessa saber o que se pretende que seja o ensino de ciências em nossas escolas de
ensino fundamental, mas a forma como ele efetivamente vem se dando no cotidiano dessas escolas. No
entanto, acreditamos que esse entendimento não se pode fazer pela rejeição da dimensão formal do currículo
que precisa ser analisada como um balizamento posto à ação de professores. É com essa preocupação que
elegemos as diretrizes curriculares formais como a primeira ocorrência com a qual vamos lidar na tentativa
de discutir o ensino de ciências no nível fundamental.

Mas o que é o currículo escrito? Creio que podemos, hoje, dizer que dispomos, no Brasil de um conjunto
de normas, legislações, planos ou propostas curriculares. Obviamente, esses materiais não são peças
ilusórias, são produtos das mentes de legisladores e dirigentes de ensino, subsidiados por colegas professores
e pesquisadores da área de ciências. São, pois, a materialização, num determinado nível, tanto de políticas
públicas para a educação nacional, quanto de propostas da comunidade científica, ou de parte dela, para a
forma como deveriam ser tratadas as ciências nas escolas de ensino fundamental. Tomamos, assim, o
currículo escrito, não como retrato do que se passa nas escolas, mas como a materialização de um consenso
que, embora estabelecido em condição de desigualdade entre os atores que dele participam, passa a
constranger de alguma forma aquilo que pode ser pensado e feito.

Hoje, no Brasil, lidamos, no nível institucional, com dois instrumentos normatizadores obrigatórios: a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/95) e as Diretrizes Curriculares para a Educação
Fundamental, definidas pelo Conselho Nacional de Educação (Resolução CEB Nº 2/98, CNE, 1998). Essas
peças, embora obrigatórias, visam apenas definir as finalidades gerais do ensino fundamental.

Paralelamente a essas diretrizes obrigatórias, no entanto, temos alguns outros balizamentos não
obrigatórios, mas igualmente constrangedores do cotidiano curricular do ensino de ciências: os guias
curriculares e os livros didáticos. Guias curriculares são documentos que buscam definir, em maior ou menor
grau de especificidade, o que deve ser tratado nas escolas. Já há algum tempo, vimos contando com a
presença de guias curriculares estaduais ou municipais que, ora definem apenas diretrizes curriculares gerais,
ora explicitam objetivos, conteúdos, procedimentos didático-metodológicos e de avaliação. Os debates sobre
se devem ou não existir diretrizes nacionais e acerca do que tais diretrizes, na hipótese de existirem,
deveriam definir têm estado sempre presentes no cenário da educação nacional. Quanto aos livros didáticos,
eles têm sido vistos como os grandes currículos formais a que estão submetidos professores e alunos do
ensino fundamental. Inúmeros estudos demonstraram a influência desses instrumentos na forma de trabalhar
as ciências no cotidiano de nossas escolas. Se, no que respeita as diretrizes curriculares, esse controle é
mediado pela atuação do estado, em relação aos livros didáticos, temos ficado a mercê, quase que
exclusivamente, de interesses comerciais das editoras.

Desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Educação e dos Desportos (MEC)
tem buscado definir, via aparatos normativos, o trabalho pedagógico que deve ser realizado em todo o
território nacional. A primeira tentativa recebeu o nome de Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tendo
surgido num quadro que contava, desde 1990, com exames nacionais realizados pelo Sistema de Avaliação
da Educação Básica (SAEB) e, a partir de 1996, com a avaliação de livros didáticos a serem comprados pelo
Ministério para as escolas (PNLD). Embora considerado pelo Conselho Nacional de Educação, como guia
curricular não obrigatório e não passível de subsidiar processos de avaliação nacional, o esforço do MEC na
divulgação desse guia e os mecanismos de distribuição de verbas para estados e municípios têm
transformado os PCN em referência na maioria das escolas do país, parte das quais sequer têm conhecimento
de que se trata de documento não obrigatório. Para facilitar a utilização do material, considerado por alguns
como de difícil operacionalização pelo corpo de professores dispersos pelo país, o MEC criou, em 1999, um
projeto denominado Parâmetros em Ação que visa, fundamentalmente, a formação dos profissionais da
educação para a utilização dos PCN. Esse projeto se desenvolve em parceria com as Secretarias de Educação
que desejarem aplicar as diretrizes curriculares emanadas pelos PCN.

Temos, pois, configurada, através desses documentos e dessas ações, uma política em relação ao ensino
fundamental. Acreditamos que essa política cria formas de proceder em nossas escolas e precisa ser
analisada. Inúmeros estudos têm buscado fazê-lo em seus aspectos mais globais, mostrando implicações
delas advindas para a educação e para o país. Nossa aproximação da temática se fará de forma mais
específica, buscando analisar os documentos curriculares referentes à área de ciências. Importa-nos entender
que escolhas vêm sendo realizadas no âmbito da seleção e da organização de conhecimentos nessa área e que
implicações tais escolhas podem vir a ter na construção dos sujeitos no espaço da escola.

Os PCN para o ensino fundamental na área de ciências naturais são constituídos de dois volumes, cada um
dedicado a um período da escolarização obrigatória. O primeiro volume destina-se aos dois primeiros ciclos
do ensino fundamental (4 anos) e o segundo aos outros dois, ou seja, as séries de 5ª a 8ª. Ambos os
documentos seguem os mesmos princípios gerais e se organizam de forma semelhante, o que nos permite
uma discussão conjunta.

A definição de princípios de organização curricular na área de ciências sempre enfrentou dificuldades. Por
um lado, a concepção hegemômica da ciência positivista transformou a seleção e a organização de
conhecimentos escolares em ciências em algo inquestionável. A naturalização dos critérios de seleção e
organização trazia embutida a concepção de que a organização curricular envolvia fundamentalmente um
processo de simplificação dos conhecimentos científicos para que pudessem ser trabalhados nas escolas.Ou
seja, a lógica das próprias ciências seria a responsável pelos critérios de seleção e organização. Por outro
lado, a constituição de uma disciplina escolar denominada ciências, congregando as diferentes ciências
naturais, sempre impôs a área a necessidade de constituição de uma abordagem multidisciplinar. Dessa
forma, a necessidade de se pensar critérios de seleção e/ou de organização do conhecimento científico que
garantissem a integração dos campos disciplinares produziu propostas curriculares diversas. As três
metáforas de integração mais fortes no Brasil foram a integração via curiosidade prática sobre a natureza,
presente já no discurso das lições de coisas; a integração pelo método científico, muito freqüente na década
de 70 e a integração por meio da prática social concreta,na década de 80. Obviamente, as experiências em
ensino de ciências têm, inúmeras vezes, mesclado esses discursos.

Os PCN optam pelo não questionamento acerca da necessidade de uma abordagem integrada das ciências,
postura que tem caracterizado esta área desde seus primórdios. Se disciplinas como história e geografia
percorreram um longo caminho no sentido de se configurarem como disciplinas escolares específicas,
biologia, física e química parece sempre terem lidado bem com a idéia da integração. Ao mesmo tempo, é
também verdade que tal integração veio se processando com uma primazia da biologia em detrimento das
demais ciências. Esse é o caso também dos PCN. O documento pretende organizar o ensino de ciências a
partir de eixos temáticos: Ser Humano e Saúde, desenvolvido nos quatro ciclos do ensino fundamental; Vida
e Ambiente, que nos dois primeiros ciclos é denominado Ambiente; Tecnologia e Sociedade, tratado como
Recursos Tecnológicos de 1ª a 4ª séries; e Terra e Universo, exclusivo para os dois últimos ciclos.

A seleção dos eixos pretende permitir a "compreensão dos fenômenos naturais articulados entre si e com a
tecnologia" (PCN, 1998, p.36), ou seja, pensa numa articulação que transcende as próprias áreas de
composição do ensino de ciências e aponta para a integração da ciência com a vida social. A preocupação
com essa integração entre ciência e sociedade, que se materializa em alguns eixos, é assumida como critério
de seleção dos conteúdos:

Os conteúdos devem favorecer a construção, pelos estudantes, de uma visão de mundo como um
todo formado por elementos interrelacionados, entre os quais o ser humano, agente de
transformação. Devem promover as relações entre diferentes fenômenos naturais e objetos da
tecnologia, entre si e reciprocamente, possibilitando a percepção de um mundo em
transformação e sua explicação científica permanentemente reelaborada; os conteúdos devem
ser relevantes do ponto de vista social, cultural e científico, permitindo ao estudante
compreender, em seu cotidiano, as relações entre o ser humano e a natureza mediadas pela
tecnologia, superando interpretações ingênuas sobre a realidade a sua volta (...) (PCN, 1998,
p.35)

Os critérios de seleção de conteúdos transcritos acima correspondem aos dois primeiros dos três arrolados
pelo documento e deixam clara a opção do material pela metáfora de integração prevalente a partir da década
de 80, originária nos estudos dos autores associados à pedagogia histórico-crítica. A compreensão da ciência
como artefato social e historicamente construído e a exigência de relevância social e cultural para os
conteúdos selecionados explicitam um dos conceitos de ciência presente no documento.

Se os critérios de relevância social e se as relações entre vida cidadã e ciência são ressaltadas como
princípios de seleção e de integração das ciências, não são, no entanto, os únicos presentes. O terceiro
critério de seleção nos aponta que

os conteúdos devem se constituir em fatos, conceitos, procedimentos, atitudes e valores a serem


promovidos de forma compatível com as possibilidades e necessidades de aprendizagem do
estudante, de maneira que ele possa operar com tais conteúdos e avançar efetivamente nos seus
conhecimentos (PCN, 1998, p.35)

Esse último critério introduz a preocupação com a aprendizagem efetiva dos conceitos científicos pelos
alunos. Tal preocupação já havia sido salientada na introdução do documento, quando os PCN defendem a
aprendizagem significativa dos conceitos (Ausubel et al, 1980) científicos e apontam para o modelo didático
de mudança conceitual. Nessas perspectivas, os conceitos científicos apreendidos pelos alunos precisam ser
significativos, o que envolve que eles sejam assimilados pelo esquema conceitual já construido pelo aluno. A
aprendizagem significativa, proposta por Ausubel e outros (1980), propõe a organização dos conceitos
científicos selecionados para serem ensinados do mais para o menos inclusivo de modo a garantir sua
assimilação. Ao optar por acoplar à aprendizagem significativa o modelo de mudança conceitual, o
documento associa os conceitos selecionados a concepções prévias dos alunos, pertencentes a modelos
conceituais já existentes na história da ciência, e entende que é preciso criar formas para que os alunos
verifiquem que seu modelo não dá conta de explicar uma série de situações científicas. Frequentemente,
nossa observação física do mundo segue o modelo aristolético e é preciso levar o aluno a verificar que esse
modelo, onde se ancoram boa parte dos seus conceitos físicos, não pode explicar um conjunto de fenômenos.
Com isso, objetiva-se levar o aluno a superar o modelo com o qual construia suas explicações.

Observamos que essas duas referências do documento se associam de forma bastante explícita à lógica
interna da ciência como critério para a seleção e oganização dos conteúdos tratados. Nessa perspectiva, a
articulação entre física, química e biologia é bastante difícil na medida em que se trata de disciplinas com
quadros conceituais próprios pouco relacionados entre si. A despeito da natureza sobre a qual falam essas
disciplinas ser a mesma, os conceitos que utilizam para a compreensão desta mesma natureza são diversos e
se organizam internamente em cada área de maneira própria. Assim, o documento parece, em suas intenções,
mesclar uma abordagem interdisciplinar, garantida pela relevância sócio-histórica do conhecimento
científico, a garantia dos espaços disciplinares de cada uma das ciências naturais. Essa dualidade com a qual
vem se defrontando o ensino de ciências ao longo de sua existência se materializa nos conteúdos
selecionados dentro de cada eixo temático.

Tomemos como exemplo os PCN referentes ao terceiro e quarto cciclo do ensino fundamental, ou seja, de
5ª a 8ª série. O documento se encontra dividido nos quatro eixos temáticos, sobre os quais há uma pequena
introdução abordando as possibilidades de tratamento do tema no ciclo. Os conteúdos centrais são listados
logo após essa introdução. Observando tal listagem podemos perceber qual o fator organizador da seleção e
da organização dos conteúdos. Os comportamentos valorizados envolvem: observação de fenômenos,
organização das informações coletadas, interpretação de informações, comparações de dados coletados,
estabelecimento de classificações e relações. No quarto ciclo, aparece ainda a compreensão de sistemas
complexos, como o corpo humano; a recuperação e a degradação do meio ambiente; as relações sociais e o
uso das tecnologias.

Os critérios avaliação nos permitem acompanhar mais detalhadamente aquilo que se espera que seja
trabalhado na sala de aula. Esses critérios são na realidade objetivos comportamentais, específicos, nos quais
ficam claros os comportamentos valorizados e o nível de profundidade com que devem ser abordados os
conteúdos. Dos oito objetivos apresentados para o terceiro ciclo, quatro deles solicitam a descrição de
fenômenos pelos alunos; dois tratam do reconhecimento de fontes de energia e transformações da matéria;
um propõe que o aluno aplique os conhecimentos adquiridos na elaboração de uma dieta balanceada; e o
outro a participação em debates coletivos. No quarto ciclo, o foco está na comparação e na interpretação de
fenômenos.

A referência ao método científico é visível na listagem de comportamentos. Embora a seleção e


organização dos conteúdos se proponha a seguir uma outra lógica com o establecimento de áreas temáticas
que integrem à ciência ao mundo cotidiano do aluno, a lógica subjacente é a de que fazer ciência significa
seguir as etapas do método indutivo. Se essa opção apresenta problemas para o estudo da biologia, é
certamente inapropriada para a física e, principalmente, para a química. Tal problemática não chega a afetar
os PCN, na medida em que o predomínio absoluto é da abordagem biológica da ciência. Outro aspecto
relevante de ser destacado é a quase impossibilidade de trabalhar com o modelo de mudança conceitual
associado ao método científico como princípio indutivo.

Os eixos temáticos, que pretendem constituir-se em áreas de integração das diferentes ciências naturais,
fixam-se, na realidade, na biologia. Apenas no eixo Terra e Universo são trabalhados conteúdos de
astronomia e poucos conceitos físicos como gravidade. A física volta a ser tratada no eixo tecnologia e
sociedade, com os conceitos de energia e máquinas; e a química restringe-se, no mesmo eixo, a processos de
separação de misturas e a procedimentos de conservação de alimentos. Certamente, essa abordagem tópica
dos conceitos da física e da química não permite aos alunos a construção de uma compreensão dos seus
sistemas conceituais. Tal procedimento poderia ser justificável, na medida em que não se está advogando a
manutenção da abordagem disciplinar, no entanto, o mesmo não ocorre em relação à biologia.

Ainda que o método científico predomine como princípio organizativo, a compreensão da ciência como
historicamente construída e a atenção para a relevância social e cultural dos conteúdos também se fazem
presentes em alguns objetivos/ conteúdos. Especialmente no eixo Tecnologia e Sociedade, surgem conteúdos
como direito do consumidor, educação ambiental e relação entre tecnologia e necessidades sociais. Tais
conteúdos apontam para uma interdisciplinaridade entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais,
limitada, no entanto, pelo fato de o material ser destinado e elaborado pelo campo das ciência naturais.

Por essa rápida análise dos PCN, podemos verificar o quanto as diferentes metáforas de integração
disciplinar das ciências naturais constituem um magma do qual se nutrem as propostas curriculares. A
mesma combinação entre integração via realidade sócio-cultural, aprendizagem significativa e mudança
conceitual estabelece os critérios de avaliação dos livros didáticos realizado pelo MEC. Também o SAEB
vem assumindo cada dia mais fortemente essa mesma orientação.

Percebemos, portanto, em relação às diretrizes curriculares, que não se trata de projetos isolados, mas da
definição de uma política de educação que transcende ao próprio ensino de ciências. Uma política cujo
aspecto mais visível é o da centralização das definições curriculares. Uma política que se caracteriza pela
proposição de um modelo de educação uniforme. Uma política em que a diversidade é tratada de uma
perspectiva individual, como algo existente que precisa ser respeitado, mas que será superado no horizonte
de sujeitos que passarão a dominar padrões de comportamentos únicos e previamente estabelecidos. Uma
política, enfim, de desvalorização daquilo que já é efetivamente vivido nas salas de aula.

Ocorrência 2: A Sala de Aula na Fala de Professores

Se os documentos escritos pretendem definir o que será o ensino de ciências em todas as escolas
fundamentais espalhadas pelo país, a complexidade do cotidiano da escola certamente nos mostra a
impossibilidade de uma tal pretensão. Diariamente, nas relações que se estabelecem entre professores, alunos
e comunidade inúmeras estratégias são construídas e reconstruídas e de formas diversas. Obviamente, não
podemos retratar essa complexidade. O que podemos e pretendemos captar são apenas indícios, indícios de
práticas que não mais se repetirão, mas que constituem as teias sobre as quais outras práticas serão vividas.

As falas que trazemos aqui são de professores de uma escola pública do município do Rio de Janeiro, que
atende, em sua maioria, alunos de classe média. A seleção de alunos se dá na classe de alfabetização por
sorteio e na 5ª série por concurso. Centraremos nossa análise no segundo segmento do ensino fundamental,
na medida em que neste segmento as ciências se constituem em disciplina específica. A escola conta com
laboratórios e professores de ciências formados em biologia, de 5ª a 7ª série; e em biologia, física e química,
para a 8ª série. As entrevistas utilizadas foram realizadas pela equipe da pesquisa "Currículo de Ciências: um
estudo sócio-histórico"[1], desenvolvida por pesquisadores da UFRJ e da UERJ.

Pelo depoimento dos professores de ciências, a disciplina tem um caráter eminentemente biológico. A
listagem dos conteúdos trabalhados clarifica que não se trata de uma ciência integrada: na quinta série, se dá
o ar, a água e o solo, onde se vê a parte biológica, a parte física e a parte química; na sexta série se estuda
os seres vivos e a ecologia; na sétima, o corpo humano; e na oitava, uma iniciação à química, à física e à
biologia[2]. A ausência de integração é, não apenas visível, como claramente assumida no cotidiano da
escola, onde a 8ª série conta com aulas das três ciências e funciona mais como uma introdução ao ensino
médio do que como fase final do ensino fundamental.

As decisões sobre os conteúdos curriculares trabalhados no ensino de ciências são tomadas, segundo os
professores, pelo conjunto da equipe. Quais os critérios dessas decisões? Não se sabe. Sabe-se que, há alguns
anos, a ecologia foi introduzida no programa por sugestão de um professor, no momento em que essa
temática passou a ser valorizada na área de biologia. Sabe-se que, muitas alterações foram feitas porque o
nível dos alunos foi caindo e precisou-se adequar o programa à nova realidade. Sabe-se que, em algum
momento, houve ensino profissionalizante em patologia clínica, que foi abandonado quando a legislação
deixou de exigi-lo. Sabe-se que algumas mudanças devem estar a caminho em função das novas leis. São
fragmentos do dia-a-dia curricular que não informam claramente quais os critérios de seleção e de
organização dos conteúdos de ciências. Há uma espécie de naturalização da ciência. A ciência escolar
trabalha aquilo que deve ser trabalhado, o programa do ensino fundamental.

Esse programa formalmente inexistente, mas presente nas memórias de professores, pais e alunos, vive, no
entanto, uma série de tensões em sua dimensão vivida, no dia-a-dia da sala de aula.

A primeira dessas tensões, que povoa fortemente a fala dos professores, se estabelece entre uma ciência
que sacia a curiosidade do aluno, uma ciência experimental, que dá conta dos fenômenos naturais; e uma
outra, repleta de classificações, necessária a uma escola de qualidade, que prepare convenientemente os
alunos para o vestibular: nosso ensino de ciências está defasado da realidade do aluno. O aluno não vive
aquilo. Agora pega um copo, faz uma experiência. Eles ficam impressionados. Eles olham, pedem para
repetir, é uma mágica (...) Ciência é uma coisa muito rica, de chegar e extasiar. Acho terrível você chegar e
vamos classificar as aves em não sei quantas ordens. Mas vivemos esse clima de tem que apertar, porque
depois tem o ensino médio e o vestibular.

Embora o horizonte do vestibular e a idéia de que uma boa escola tem que ter muito conteúdo esteja todo
o tempo presente na fala de professores, as atividades práticas são citadas e valorizadas. Essa valorização, no
entanto, nem sempre corresponde ao seu desenvolvimento na sala de aula. As condições de trabalho—
muitos alunos, crescimento da escola, ausência de material, inexistência de um auxiliar para a preparação das
aulas— inviabilizam a parte prática: a parte prática é importante, se bem que eu acho que falta mais, apesar
de nós termos laboratório (...) Quando eu dava a 5ª série, eu fazia muita aula prática. Na 6ª série já é mais
difícil, não tem como controlar a turma grande; o que é dominante no trabalho pedagógico da escola é a
prática, o que é difícil ser mantido com o crescimento da escola.

As atividades práticas são ainda realizadas em visitas, com a saída dos alunos das dependências da escola
e em salas ambiente, em que os alunos podem manipular seres vivos, bonecos, materiais instrucionais
preparados para o ensino de ciências. Fundamentalmente, a atividade prática parece ser muito mais
ilustrativa dos conteúdos trabalhados no programa do que direcionada para a formação do "pequeno
cientista" como o esperado por abordagens que, nas décadas de 70 e 80, priorizavam o método científico:
Ciência, tendo um chão, tendo umas plantas, qualquer coisa você aproveita.

Com a experimentação assumindo um caráter ilustrativo capaz de garantir o interesse dos alunos pelas
ciências, os conteúdos trabalhados na disciplina vinculam-se fortemente aos fatos e às explicações científicas
para os fenômenos naturais, assim como ao domínio de um linguajar científico e das formas de estruturação
do conhecimento. Em realidade, as ciências são encaradas como primeiro contato do aluno com um corpo de
saberes a ser posteriormente desenvolvido.

As tensões que observamos nas falas dos professores apontam para conclusões já presentes em autores que
vem estudando a história das disciplinas escolares. Goodson (1993, 1994) afirma que as diferentes
disciplinas, como garantia de status no currículo escolar, tendem a passar de uma abordagem mais utilitária
para outra mais acadêmica. Vimos que, na escola focalizada, o currículo de ciências tem mesclado elementos
de justificação via capacidade de compreensão da realidade próxima do aluno— com a valorização de
atividades práticas, visitas, trabalho com materiais cotidanos— com a busca da qualidade via associação com
as disciplinas acadêmicas de referência. Especialmente em relação ao último ano da escolarização básica,
fica patente a necessidade de associação entre a ciência escolar e as áreas de referência da física, da química
e da biologia, como garantia de status acadêmico.

Essa parece ser uma realidade que, embora tenhamos acompanhado apenas na instituição que utilizamos
como exemplo, se faz presente em muitas de nossas escolas. Uma realidade que, a despeito de propalar a
valorização de uma escola inserida na vida social, confere status às disciplinas menos diretamente
relacionadas à prática de vida dos sujeitos, as disciplinas conceitualmente mais elaboradas. Obviamente, essa
tensão não se dá por acaso. Ela faz parte de um poderoso processo de diferenciação social que viabiliza a
natureza seletiva da escola.

Ocorrência 3: A Formação de Professores

Um dos pricipais elementos de manutenção da valorização dos conhecimentos formais na escolarização


pode ser encontrado na formação de professores. É nesse sentido que acerditamos que a formação de
professores de ciências é um aspecto que precisa ser explorado.

Do ponto de vista legal, a formação de professores para as séries iniciais do ensino fundamental se faz em
cursos normais de nível médio, que preparam professores para lecionar o conjunto dos conteúdos, sem
distinção disciplinar. Desde 1999, o ensino normal é gerido pela Resolução nº 2/99 da Câmara de Educação
Básica do Ensino Fundamental do CNE. Essa resolução ressalta a necessidade de que os professores
formados sejam capazes de investigar problemas cotidianos, propondo soluções criativas fundamentadas
teoricamente e contextualizadas socialmente, viabilizando práticas educativas condizentes com o exercício
da cidadania plena. Sabemos, no entanto, que a formação em ciências naturais oferecidas por esses cursos é,
freqüentemente reduzida e insuficiente para que os professores possam olhar o cotidiano na perspectiva da
ciência.

Quanto à formação de professores para a segunda fase do ensino fundamental, é exigido o nível superior
em cursos de licenciaturas. No caso das ciências, a integração proposta em seu ensino não tem configurado
uma área de formação de professores em nível superior. Na década de 70, algumas experiências de
licenciatura em ciências foram realizadas em cursos de curta duração que objetivavam, em sua maioria,
suprir a deficiência de profissionais nas escolas. Atualmente, algumas instituições oferecem licenciaturas em
ciências, frequentemente associadas ao curso de biologia. Dessa forma, os profissionais que atuam nas
ciências são, em geral, formados em física, química ou biologia, com nítido predomínio destes últimos, que
foram, inclusive, durante os últimos anos de credenciamento via MEC, os únicos habilitados a trabalhar com
a disciplina. Até o momento, do ponto de vista legal, as diretrizes curriculares dos cursos de licenciatura
estão embutidas nas diretrizes das áreas que os ministram, apresentando portanto uma enorme variedade.

Pensar, no entanto, os professores de ciências apenas como aqueles formalmente habilitados é assumir
uma perspectiva essencialmente elitista, que alija um conjunto de profissionais leigos que, detentores de
menor capital cultural, tende a ter, no entanto, maior identidade com os alunos das camadas populares. Se é
verdade que, nos grandes centros urbanos, conta-se com professores preparados em nível superior em salas
de aula das séries iniciais do ensino fundamental, há ainda regiões do país em que a predominância é de
professores leigos, sem formação para o magistério e, em alguns casos, inclusive, sem terem concluído o
ensino fundamental. Alguns programas, como o Proformação, vêm sendo estruturados para a qualificação
desses profissionais, mas deixam, sem dúvida, muitas lacunas na formação do professor em ciências naturais.
Nas últimas séries do ensino fundamental, o quadro não é menos preocupante, com professores leigos ou
atuando em áreas para as quais não estão habilitados. A situação das ciências nesse quadro é uma das mais
graves, na medida em que se constitui em uma área para a qual o número de cursos superiores estabelecido
no país é bastante reduzido em face, fundamentalmente, dos custos de montagem e manutenção de
laboratórios.

A despeito da multiplicidade de formações iniciais recebidas pelos professores atualmente lecionando


ciências e da ainda mais diferenciada formação que foram tendo ao longo de seu exercício profissional,
cremos ser importante abordar um fragmento dessa formação. Novamente, ressaltamos que, embora esse
fragmento traga em si a complexidade da realidade, trata-se de uma ocorrência qualquer, como tantas outras.
Em 1998, uma equipe de pesquisadores da Puc-Rio, UFRJ e UERJ trabalhou com o processo de socialização
profissional de professores[3], estudando o papel das instituições formadoras, tanto em nível médio quanto
universitário. Em ambos os casos, foram entrevistados alunos e professores de cursos de formação de
professores, especificamente em duas instituições reconhecidas no cenário do Rio de Janeiro. Utilizaremos
neste texto, as falas de alunos e professores do curso normal e das licenciaturas em ciências naturais no
sentido de buscar entender como vem se realizando a formação de professores para as ciências.

Antes de mais nada, cumpre indagar quem são os sujeitos que chegam aos cursos de formação de
professores, sejam eles de nível médio ou de nível superior e quais as suas motivações. Em sua maioria, os
entrevistados com os quais trabalhamos se encaminharam para o magistério, não com a finalidade de ter nela
a sua principal ocupação, mas como forma de complementação da renda familiar ou como ocupação
provisória enquanto terminam a sua escolarização. Trata-se de um público de classe média baixa que vê na
profissão de professor uma possibilidade de ascensão profissional, ainda que os salários não sejam
competitivos.

A avaliação dos futuros professores sobre a sua profissionalização traz a tona alguns problemas que há
anos têm sido apontados na literatura como entraves da formação de professores. A fragmentação da
formação é um dos pontos mais problemáticos desses cursos e se dá em diferentes níveis.

Nas Escolas Normais a formação dos professores das séries iniciais do ensino fundamental é realizada em
uma única instituição, toda ela voltada prioritariamente para esta atividade. Para os alunos, essa realidade os
insere em uma atmosfera voltada para o "ser professor", na medida em que o conjunto das atividades parece
ter esse objetivo por finalidade. A organização curricular, por exemplo, estrutura-se em função da formação
de professores, com as disciplinas básicas de nível médio sendo trabalhadas tendo por horizonte essa
formação. No entanto, na vida diária da escola nem sempre essa opção fica clara, na medida em que os
professores das escolas normais são admitidos por concurso público geral, sem a especificação de que
atuarão em escolas de formação de professores. Em algumas instituições, o trabalho pedagógico
desenvolvido tende a minimizar as dificuldades advindas desse não direcionamento, em outras a situação se
reflete no currículo da escola.

Em relação às ciências, os alunos de curso normal têm uma carga reduzida de trabalho nas três áreas
presentes no nível médio— biologia e, especialmente, química e física— acrescida de atividades que visam a
sua formação como professor de ciências. Em geral, as atividades práticas, tanto no laboratório como na
realidade social que cerca o aluno, são praticamente inexistentes, em função da falta de condições materiais
para o desenvolvimento de atividades práticas de qualquer natureza.

Com esse quadro, a formação dos professores das séries iniciais em ciências costuma ser encarada como
deficiente. Os próprios alunos declararam não se sentirem preparados para entrar em uma sala de aula e
trabalhar os conceitos do campo das ciências. Também os professores acreditam que a formação que
conferem aos normalistas é insuficiente para que atuem como professores de ciências. A opinião dos
professores e alunos dos cursos normais corrobora, em 1998, estudo realizado por Caniato (1989) dez anos
antes, em que o autor observou que os conceitos científicos de professores das séries iniciais apresentavam
muitos erros e fundamentavam-se fortemente no senso comum. Esse problema é bastante grave para o ensino
de ciências, na medida em que alguns dos conceitos mal formados por professores e transmitidos aos alunos
na fase inicial da aprendizagem acabam servindo de referência para aprendizagens futuras.

No âmbito das licenciaturas, a formação de professores costuma ser dividida entre as faculdades ou
institutos de origem do aluno— no caso biologia, química e física— e as faculdades de educação,
responsáveis pela formação pedagógica dos licenciandos. Nos primeiros, os alunos de licenciatura diluem-se
no conjunto de alunos de outras habilitações profissionais; na segunda, encontram os demais licenciandos da
Universidade em atividades que tendem a ser pulverizadas, o que é encarado pelos alunos como uma barreira
para a construção de sua identidade profissional.

A percepção de professores e alunos sobre o curso de licenciatura nas diferentes ciências naturais aponta
para três problemáticas principais: (a) a falta de articulação das atividades desenvolvidas; (b) a deficiência
das atividades práticas; e (c) a pouca integração entre as atividades desenvolvidas na Universidade e a
realidade das escolas de ensino fundamental em que os licenciandos atuarão.
Quanto à articulação entre as atividades desenvolvidas nos cursos de licenciaturas, os depoimentos
apontam para dois níveis de problemas. Num plano mais geral, a desarticulação entre disciplinas de conteúdo
e a parte pedagógica do curso é um dos aspectos mais salientado. As atividades básicas das licenciaturas
tendem a ser desenvolvidas nos institutos de química, física e biologia, muitas vezes em associação com
outros cursos oferecidos pela unidade. A percepção dos alunos é de que, embora tais atividades sejam de boa
qualidade, quase nunca são direcionadas para a Licenciatura. Essa desarticulação é histórica nas
Universidades e tem sido agravada pela baixa valorização social da profissão de professor, que faz com que o
aluno de licenciatura seja subvalorizado em relação àqueles que se dedicarão às áreas puras ou às suas
vertentes tecnológicas.

A desarticulação, no entanto, não se restringe aos dois blocos em que se estruturam os cursos, encontra-se
presente também em cada um deles. O conjunto de estudantes entrevistados, a análise das ementas e a fala
dos professores deixam claro que cada subárea é tratada de maneira isolada, numa pulverização que
prejudica a formação profissional, não só dos licenciandos, mas também dos bacharéis e tecnólogos.
Problemas de fluxo de disciplinas, pouca clareza de prerequisitos, sobreposição de conteúdos e ausência de
articulação entre as áreas foram fortemente ressaltados pelos entrevistados.

Se a falta de articulação das atividades desenvolvidas compromete a formação dos diferentes profissionais,
para o esnino de ciências a situação é ainda mais complicada. Em nenhum dos cursos, a idéia de uma ciência
integrada é discutida e a formação de professores é pensada para cada uma das ciências específicas—
química, física e biologia. Delas, apenas a biologia parece ter por horizonte a formação do licenciando para o
ensino fundamental, ainda assim como professor de biologia ou de uma ciência biologizada.

Quanto às atividades práticas, a totalidade de professores e alunos entrevistados restringem a análise a


atividades de laboratório, marcando uma compreensão corroborada pelos programas das disciplinas.
Atividades como excursões, visitas a museus ou parques, atividades com jornais e revistas são quase
inexistentes e, em nenhuma situação, são classificadas como práticas. Na medida em que as atividades
práticas são restritas ao laboratório, as condições materiais são frequentemente apontadas, tanto por alunos
como por professores, como um grande entrave a boa formação dos licenciandos. A despeito de a
Universidade estar equipada com bons laboratórios, a aquisição de equipamentos e material de consumo
sempre representa um elemento dificultador para o desenvolvimento das atividades práticas. Em geral, essas
atividades, no nível em que existem, não estão preocupadas com a formação do professor de ciências, mas
com a pesquisa e a demonstração nas áreas de formação dos licenciandos.

Tanto a identidade entre prática e laboratório como a ausência de uma preocupação com atividades
práticas voltadas para a formação do professor de ciências comprometem seriamente a formação do
professor para atuar de 5ª a 8ª série. Em sua maioria, as escolas de ensino fundamental não estão equipadas
com laboratórios e dificilmente terão condições para a aquisição de material para consumo em aulas práticas.
A prática em ciências tende a ser, portanto, inviabilizada nas escolas, na medida em que os professores não
sejam sensibilizados para o alargamento do conceito de prática, envolvendo, não apenas o uso do laboratório,
mas a proposição de atividades didático-pedagógicas diferenciadas.

O ponto crucial dos cursos de formação de professores parece ser a relação daquilo que é apreendido
durante a formação do professor e a realidade das escolas em que vão atuar. A fala de professores a alunos
explicita que a problemática da articulação entre teoria e prática na formação do educador, que tem estado
em pauta na literatura educacional desde a década de 20, permanece sendo o ponto angular da formação.
Ainda que algumas universidades e escolas normais disponham de escolas de aplicação para a integração da
atividade docente dos alunos ao seu processo de formação, a situação parece longe de estar equacionada. Os
próprios currículos formais dos cursos expressam essa dificuldade de articulação com a existências de três
blocos: os conteúdos básicos, trabalhados preferencialmente na parte inicial do curso; as matérias
pedagógicas de fundamentos da educação e de aplicação desses fundamentos ao estudo do processo didático-
pedagógico; e, ao final do curso, um módulo que prevê a aplicação de todos os conhecimentos até então
adquiridos à situação de sala de aula, composto fundamentalmente da prática de ensino. Segundo a fala de
professores e alunos, a integração entre escola de formação e campo de trabalho é deixada quase que
exclusivamente para este último bloco.

A totalidade dos alunos entrevistados preocupa-se grandemente por não estar preparada para enfrentar
uma situação de trabalho, não por não dominar conteúdos, mas por não saber como trabalhar esses conteúdos
em sala de aula. A fala de um dos licenciandos entrevistados expressa o pensamento presente em quase todas
as entrevistas: damos apenas 4 aulas, quer dizer não é nada (...) é preciso mais aulas e estágios em outros
colégios, o estágio deveria ter uma carga horária maior para que pudéssemos aprender mais, pois só mesmo
trabalhando é que a gente aprende a dar aula. Só teoria não adianta, pois quando você chega em frente da
turma a realidade é muito diferente daquilo que é trabalhado nos textos. Mesmo alunos que participaram de
atividades extra-curriculares de iniciação à docência sentem-se assustados em relação àquilo que vão ter que
enfrentar em sua rotina diária de trabalho: já pensou ter pegar um pessoal de classe média e outro de classe
baixa. Não tenho a menor idéia de como atuar, de como preparar as minhas aulas, de como selecionar a
matéria que vou trabalhar. Era fundamental que pudessemos lidar com várias realidade, que a universidade
se associasse às redes de ensino em que vamos trabalhar

Em relação ao ensino de ciências, a preocupação dos licenciandos é ainda maior, na medida em que, nem
teoricamente, discutiram os conteúdos que devem ser trabalhados no ensino fundamental. A opinião de um
dos entrevistados define a preocupação do conjunto de formandos: não tenho a menor idéia do que devo
trabalhar de 5ª a 8ª série. Não sei qual a matéria, não discutimos isso na faculdade. Assisti umas aulas na
prática de ensino, mas não sei nem qual é o programa. Outro entrevistado assim se expressa sobre sua
formação:fiz prática de ensino I e II e participei de um projeto de ensino de ciências com uma nova
metodologia que pretende passar, de forma eficaz e significativa os conceitos básicos. Nós demos aula,
atuamos junto aos alunos. Discutimos teoricamente os conceitos. Foi uma experiência bastante interessante,
mas não me sinto preparado para atuar numa escola qualquer, tendo que preparar eu mesmo o que vai ser
dado. A integração das ciências naturais em uma única disciplina parece exercer pouca influência sobre o
curso de formação de professores que trabalha tendo em vista os profissionais da biologia, da física ou da
química.

O quadro que tecemos a partir das falas de professores e alunos dos cursos de formação de professores em
nível médio e superior deixa-nos uma certa preocupação em relação a forma como vem sendo preparados
nossos professores. Embora a formação incial que se complemente nas situações de trabalho, no aprendizado
diário, importante fonte de profissionalização do professor, precisamos pensar esta formação como a
preparação de um profissional qualificado para lidar com a disciplina ciências no ensino fundamental.

Historicamente, as proposições curriculares que tem por objetivo a formação profissional têm sido
estabelecidas a partir das competências profissionais esperadas, assumindo freqüentemente um caráter
excessivamente instrumental, ao nosso ver inadequado à formação de um professor. Em sentido diferenciado
advogamos o posicionamento de Perrenoud (1993) que, embora considerando fundamental a definição de
competências profissionais norteadoras do currículo de formação de professores, defende que elas sejam
flexíveis, polivalentes e abertas, podendo, desta forma, articular análise e ação, razão e valores, finalidades e
constrangimentos da situação. Tais competências seriam, em síntese, capazes de articular teorias e práticas,
em um processo de organização de estratégias orientadas, não apenas por objetivos, mas por uma ética
alimentada por uma cultura comum a todos os professores.

A ampliação do conceito de competência de Perrenoud supera a dimensão técnica em direção a uma


perspectiva política. Tal ampliação salienta a complexidade do processo de ensino e nos reapresenta a
problemática da formação de professores: como formar um profissional para atuar em uma atividade
complexa, marcada por conflitos, pela singularidade, pela imprevisibilidade, pela ambiguidade, pela
incerteza presentes na sala de aula?

Parece-nos óbvio que não é possível formar professores exclusivamente pela assimlação de conhecimentos
produzidos fora do contexto escolar. Como nos instiga Perez Gomes (1998), o conhecimento do professor
precisa ser investigativo e reflexivo, tendo em sua base a experiência prática. Ou seja, a atuação profissional
do professor se faz em um dado contexto, o que o coloca frente a necessidade de reconstruir constantemente
os seus conhecimentos: não há repertórios de procedimentos ou conhecimentos prontos a serem consumidos.
Obviamente, trata-se de buscar a formação de sujeitos autônomos, capazes de participar de um processo de
contraste reflexivo das próprias interpretações geradas na cultura escolar, na escola e na sociedade.

Uma Agenda Educacional

A abordagem por que optamos ao longo deste texto nos impede de estabelecer conclusões acerca do
ensino de ciências na escola fundamental. Há, no entanto, indícios que se repetem em cada uma das
ocorrências que analisamos e que, cremos, devem constituir a agenda de discussões sobre a qual pautamos
nossa ação de professores que refletem sobre sua atuação diária.

Certamente, os indícios que reconhecemos nessas ocorrências são iguais e diferentes daqueles que outros
colegas colecionam ao longo de suas atividades como educadores voltados para o ensino de ciências. Um dos
indícios que nos parece importante retomar, diz respeito a valorização de uma abordagem interdisciplinar das
ciências. Efetivamente, parece-nos que os professores de ciências sonham com a possibilidade de entender os
fenômenos naturais a partir de uma ciência integrada. Sonham e criam alternativas, procuram princípios que
possam nortear essa integração, mesclam esses princípios e vão construindo, como se faz possível, uma
ciência integrada.

Quantos outros eventos poderíamos destacar? A desvalorização social da profissão de professor. A


formação universitária centrada em profissionais da biologia, da física e da química. As condições materias
de escolas e Universidades. A quase inexistência de pesquisas voltadas para o ensino. As políticas
educacionais que desconsideram o saber docente e buscam redirecionar a ação de professores e o cotidiano
das escolas.

Se observamos esses eventos, percebemos que não são unidades isoladas. Compõem uma forma de ver o
mundo. Estabelecem uma agenda de ação. Criam a necessidade de uma política educacional que coloque no
centro de suas preocupações a escola. Uma política que defina suas metas de ação tendo por base a realidade
vivida em cada escola, num processo de valorização dos saberes de professores e alunos na construção de
propostas de trabalho. Uma política que se constitua em processo de formação continuada de professores, na
medida em que esses professores sejam chamados a pensar sobre sua atividade profissional. Uma política
que, enfim, possa ser efetivamente chamada de educacional.

Referências

AUSUBEL, D.P.; NOVAK, J.D. & HANESIAN, H. Psicologia Educacional. Rio de Janeiro: Interamericana,
1980.

Caniato, R. Com ciência na educação. São Paulo: Papirus, 1989.

Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Brasília: Autor, 1996.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução nº 2. Brasília: Autor, 1998. (disponível em


www.mwc.gov.br)

Goodson, I. School Subjects and the Curriculum Change. Londres: Falmer Press, 1993.

Goodson, I. Studying curriculum: cases and methods. New York: Teachers College Columbia University,
1994.

INEP. Sistema de Avaliação da Educação Básica. (disponível em www.inep.gov.br/saeb/ default.htm)

Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais (volume 4).
Brasília: MEC/SEF, 1997.

Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais (5ª a 8ª


série). Brasília: MEC/SEF, 1998.

Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros em ação (5ª a 8ª série) Volume 1. Brasília: MEC/SEF,
1999.

Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros em ação (1ª a 4ª séries) Brasília: MEC/SEF, 1999.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Programa Nacional do Livro Didático: Ciências-


critérios de avaliação. (disponível em www.mec.gov.br/sef/fundamental/ ciências.shtm), 1999.

PÉREZ GÓMEZ, A. I. La cultura escolar en la sociedad neoliberal. Madrid: Morata, 1998.


PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação – perspectivas sociológicas.
Lisboa: Dom Quixote, 1993.

[1] Pesquisa realizada por Antonio Flavio Moreira (coord.), Alice Casimiro Lopes, Elizabeth Fernandes de
Macedo e Maria de Lourdes Tura (UFRJ/UERJ).
[2] Depoimento de professor de ciências da instituição pesquisada. Todos os depoimentos serão identificados
pela grafia em itálico.
[3] Pesquisa intitulada “Socialização Profissinal de Professores: As Instituições Formadoras”, realizada por
Menga Lüdke (coord.), Antonio Flavio Moreira (coord.), Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Fernandes de
Macedo.

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