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Apontamentos e comentários sobre o artigo:

“As metáforas da naturalidade e da artificialidade nas práticas da voz em


performance” / BISCARO

O presente texto vai se debruçar especificamente sobre o binômio


naturalidade/artificialidade. BISCARO busca traçar um histórico sobre o dilema da
voz enquanto seus usos partindo de vários pontos de vistas diferentes, assim como
questões relativas a escrita e a documentação das metáforas associadas a esta
“voz”. Segunda a autora: “A voz, enquanto sonoridade, dissolve-se no ar poucos
segundos depois de proferida, sobrando apenas aquilo que se fala ou escreve
sobre ela.”

Durante boa parte da história da preparação vocal se voltou para a dicção


dos textos ou a potência da voz, houveram elementos que passaram a ser mais
enfatizados durante o século XX, onde se buscou uma voz que não fosse apenas
emissora de textos ou notas, mas uma voz que fosse também uma substância ativa
e presente na teatralidade.

O treinamento da voz em performance, durante todo o século XX na


Europa, foi marcado por um desejo de libertar a voz da instância do texto
dramático: a voz do ator/atriz não seria mais somente o veículo para a
compreensão plena de um texto, mas sim substância em si, fonte de
teatralidade. (BISCARO,2016)

Quando a autora se depara com o conflito entre as posturas mais


conservadoras e revolucionárias do elemento vocal, ela menciona que não teve
uma formação baseada em elementos brasileiros ou dos povos primordiais
ameríndios e se questiona a cerca deste dilema que julga não ser de fato seu.
Segundo Biscaro: “Lutar por uma voz “orgânica” e “livre” dos moldes do passado
seria assumir uma revolta que não é necessariamente minha? Seria uma constante
atualização de mitologias consolidadas no além-mar?”

BISCARO também menciona a questão do registro da fala ou oratória num


equivalente a partitura musical, o que não ocorreu possibilitando a interpretação de
falas e entonações do passado que se perderam no tempo sem nenhum registro e
o quanto esta questão limitou a interpretação teatral na busca destas primeiras falas
e discursos.

As vocalidades de diversos teatros do século XX não obedeceram a uma


sistematização escrita de sua sonoridade, como no campo musical[...]A
reconstituição dessas vozes está vetada, pois desde o início não se
prestaram a aceitar a mediação de um intérprete, como no caso dos
registros escritos das sonoridades musicais: “a escritura constitui uma
ordem particular da realidade; exige a intervenção de intérpretes (no duplo
sentido da palavra) autorizados” (ZUMTHOR apud BISCARO, 1993,
p.110)

Segundo a autora do artigo “A tensão entre escritura e voz encerra também


a questão do registro. Assim como escrever sobre o treinamento do ator ou da atriz
encerra o problema de transformar em palavra conhecimentos que acontecem no
corpo.” Hoje com a facilidade de gravação em smartfones tudo ficou mais fácil, mas
antes nada relativo ao movimento e a fala teve como ser registrado com um mínimo
de fidedignidade.

Creio que quando BISCARO se atem as metáforas e adjetivos relativos a


voz, demonstra que tudo está muito mais ligado a possíveis processos perceptivos
ligados a maneira como se chegam ao aspecto performático em si, seja vocal ou
corporal.

Muitas vezes em discussões acerca das práticas e das estéticas do corpo-


voz em performance aparecem adjetivos como verdade, eficácia,
organicidade, naturalidade, verossimilhança, artificialidade, etc. Estas
palavras, muito mais do que adjetivar o corpo-voz, se referem aos
objetivos, finalidades e abordagens de práticas específicas e de modos de
ver e ouvir os resultados dessas práticas. (BISCARO,2016)

BISCARO faz uma serie de considerações a respeito do canto lírico e dos


artifícios, que falseiam o discurso musical a partir do uso de elementos que
destaque, a virtuosidade do interprete e não da própria música (texto). Associa este
domínio ao poder que os cantores famosos até hoje detém sobre os seus fãs.

A ideia de artifício é recorrente na vocalidade musical. Um exemplo seria


a estética do bel canto, em seu auge entre os séculos XVII e XIX na música
ocidental europeia. A infinidade de ornamentos, apoggiaturas, trillos e
melismas das árias de ópera serviam ao propósito de mostrar a potência
vocal e os dotes técnicos do cantor. A voz, propositalmente afastada de
qualquer referência cotidiana, era uma demonstração de poder.
(BISCARO,2016)
A autora apresenta algumas visões em relação a naturalidade e
artificialidade no teatro e na música, demonstrando que não existe uma suposta
verdade na voz, que está verdade estaria atrelada a própria necessidade da obra
e do processo performático envolvido, variando por exemplo se fosse um teatro de
bonecos ou um texto mais clássico voltado ao teatro “sério”.

No teatro, o conceito de naturalidade vocal geralmente está atrelado aos


modos de enunciação do texto. Cada época e cada contexto possuem
parâmetros para designar uma ideia de naturalidade; geralmente a
naturalidade e artificialidade da voz está associada a uma característica
positiva, ligada a uma ideia de “verdade” e a artificialidade a um defeito na
enunciação, associada à falsidade. (BISCARO,2016)

BISCARO conclui seu artigo levantando questionamentos acerca do que


seria adequado ou não em termos vocais e se isto realmente e plausível no sentido
de que toda voz pode ser “útil” e ter seu espaço em diferentes contextos sem
necessariamente ser melhor ou pior que outras,

A ideia de um corpo-voz natural passa por diversas acepções: voz


cotidiana, voz liberta, voz inteligível, voz “verdadeira”. Mas a voz tensa,
artificial, falsa e ininteligível também constrói estética, refere-se à técnica
e tem seu espaço nas poéticas da cena; o que comumente se pensa, em
uma perspectiva de “construção” da vocalidade do artista, é que primeiro
ele educará a sua voz para que ela seja livre, sana ou perceptiva e depois
vai se aventurar nessas sonoridades “falsas” ou “tensas” –partindo desse
corpo apto e apoiado por um conhecimento técnico.

O texto foi bastante esclarecedor e questionador, abriu possibilidades de


pensamento e reflexão. Agora fica a pergunta: educamos a voz sem tolher sua
naturalidade ou estimulamos sua artificialidade quando a preparamos e
modificamos?

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