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Édouard René de Laboulaye Lefèvre

ABDALLAH
OU

O TREVO DE QUATRO FOLHAS

tradução
João Pereira Barreto
E Oliveira.F.T.
RECONHECIMENTO DAS EDITORAS.
As Editoras manifestam seu reconhecimento à cortesia
De Messrs. Harper & Irmãos, que amavelmente permitiram que elas usassem neste pequeno
volume a
Tradução com direitos autorais da tradução de “Abdallah,”
Que faz parte da coleção publicada
Por aquela firma sob o título de o “Livro da Fada de Laboulaye.”
AOS ASSINANTES

Cumprindo suas promessas com a exatidão que há acreditado a Biblioteca Econômica de


Andaluzia no tempo que leva de existência, publica no tomo deste mês, outro dos livros que ofereceu
no prospecto do presente ano, e que seguramente não haverá sido o que com menor impaciência
haverão aguardado os subscritores. O nome de Eduardo Laboulaye e a acolhida que hão obtido todas
as obras deste profundo ao par que engenhoso pensador dadas à luz pela Biblioteca, são seguras
garantias de que o livro era esperado com veemente desejo e será acolhido com grande
complacência.
Nem vamos fazer um juízo antecipado da obra, nem há mister Eduardo Laboulaye, a quem os
leitores desta Biblioteca considerarão já como um antigo amigo, de apresentação ante eles. Fazemos
preceder o livro destas curtas linhas, somente para congratularmos pela realização das ofertas feitas,
e para que as Histórias Orientais apareçam precedidas de uma indispensável advertência, Não há que
considerar este livro como obra meramente amena que entretém a imaginação com o interesse das
ações que desenvolve, e deleita o espírito com o sabor da assimilação literária que soube dar-lhe
Laboulaye. É muito mais que isso; é um livro que se deve ler com suma absorção e meditação, como
tudo o que é muito profundo. Sob uma exterioridade muçulmana e com o aspecto da literatura
oriental, encerra preceitos e ensinamentos essencialmente cristãos. Sob o aspecto da novela e do
conto, compreende um pensamento de grande transcendência social. Pela mesma razão de que o
talento artístico do autor iguala à profundidade de seu saber e à nobre direção de suas intenções;
porque o mérito literário e puramente plástico do livro é bastante para deleitar e contentar aos que o
leem, por isto mesmo é necessário chamar a atenção até a superioridade da obra e seu pensamento
filosófico, para que o deslumbramento que produz a beleza superficial, não chegue até o extremo de
impedir que a intenção se dirija à aprofundar as grandes belezas filosóficas e morais e o ensinamento
cristão que sob ela existe.
PREFÁCIO

Os autores são como os pais: o filho que mais querem não é por ser o mais formoso nem o
mais afortunado. Está aqui um livro que veio modestamente ao mundo da publicidade sem colocar o
ruído que seus irmãos menores Paris na América e O Príncipe-Cão: e não obstante, é o que prefiro à
todos. O concebi em dias mais felizes, quando a vida me ainda me sorria. Levei um ano inteiro em
minha cabeça, e em meio a minhas ocupações, foi o único objeto de meu amor e de meus
pensamentos. Para que nada faltasse à verdade de minha relação, rodeei-me livros árabes e persas, li
duas vezes o Corão, e procurei viver com a imaginação no deserto. Me parece que alguma vez o
consegui, e que em meu quadro brilha a intervalos um raio de sol do Oriente. É esta minha ilusão? O
ignoro: tenho, sem embargo, uma satisfação: desagradei aos viajantes vivem sob a tenda,
encontrando leitores até entre os mesmos muçulmanos.
Fui tachado de refazer a moral do Corão fazendo de meu herói cristão e não moro, porém já
recusei esta crítica. Não se encontrará em meu livro um preceito que não tenha sido extraído do
Corão ou da tradição, não emprestei ao meu Abdallah uma ideia, nem um sentimento que não
encontrara antes em algum autor muçulmano. Se esquecem muitos que Maomé se inspirou na Bíblia,
e se esquecem, sobretudo, que o homem encontra em seu coração a lei que dispõe o bem e condena o
mal. Sem dúvida pertence ao cristianismo a confirmação mais formosa desta lei: porém é preciso
recordar que o Evangelho aperfeiçoa a natureza humana sem truncá-la. Sejamos melhores que os
muçulmanos porque é dever nosso, porém não lhe disputemos sua bondade nem sua caridade.
Se se quer saber o que são os sentimentos mais comuns entre esses orientais que tão
apressadamente julgamos, leia-se a história de Aziz e Aziza, que anexei a este volume. Se só houvesse
tido presente meu amor próprio de autor, haveria evitado as comparações, toda imitação empalidece
perto de uma obra original, porém pensei principalmente no público. Sem deixar de distrair-lhes, quis
mostrar-lhe uma vez mais que todos os homens se assemelham e que o gênero humano é uma
família.
Seja a que quer nossa religião, se ama, se sofre, e é cada um pérfido ou generoso, bom ou mau.
Qualquer que seja a Igreja em que se haja nascido, a consciência detesta o egoísmo e admira o
sacrifício. Separados pelo pensamento, todos estamos unidos pelo coração.
Se resulta esta lição de meu livro, bem pode dizer-se que equivale a um tratado de moral. Em
boa hora os delicados desdenham as obras de imaginação, por minha parte creio que ocupam o
primeiro lugar na arte e na vida. Em questão de sentimento vivam as ficções; são o caminho mais
curto dos que conduzem à verdade.
PRÓLOGO

"Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, que nos deu o junco para escrever, e
ensina ao homem, a cada momento, o que o homem ignora.” (1) Este não é o romance de Abu-
Zayd, (2) nem a história da vida de Ez-Zahir, (3) nem qualquer dessas nobres novelas que se
declamam e se cantam nos cafés do Cairo, em dias de festa; é, sim, a narração singela que Ben-
Ahmed, o cameleiro, nos fez no deserto, uma tarde em que acampamos juntos num poço da
Bênção.
A noite corria, as estrelas se afastavam no céu, tudo dormia – o vento, a terra, os homens;
só Deus contemplava a criação. Fatigados pelo calor e as canseiras do dia, esta narrativa foi para
nós como uma água cristalina que traz consigo a frescura e a vida; possa ela servir igualmente de
alívio a outros viajores na terra, e levar-lhes à alma a paz, o sonho e o esquecimento.

(1) – Corão XCVI, 3


(2) – Refere-se a Abu-Zayd al-Hilali, um líder árabe do século XI e herói da tribo Amirid de Banu Hilal, cujo
romance único e intitulado “Vida de Au-Zayd”, é fundamentado sobre acontecimentos ocorridos em meados do
século III da Hégira. Abu Zayd, por ordem do califa fatimida Ismaili, migrou com sua tribo para a Tunísia, via Egito,
para punir os Zirids por adotarem o sunismo. Suas façanhas foram narradas no épico “Taghribat Bani Hilal”.
(3) – Trata-se de um conto romântico intitulado a “Vida de Ez-Zahir” ou o “Segredo de Ez-Zahir. Dividido
em seis volumes e cujo autor e sua idade são igualmente desconhecidos. Neste conto é narrada a história do famoso
Sultão Ez-Zahir Baybars (1223-1277), que subiu ao trono do Egito O 668º ano da fé muçulmana. Ez-Zahir foi um
dos comandantes das forças egípcias que infligiram a derrota, na sétima cruzada, ao rei francês Luís IX.

CAPÍTULO I – A ALEGRIA DA CASA

Em Djeddah (1) a opulenta, à margem do mar Vermelho, vivia um mercador egípcio de


nome Hadji Mansour. Era, dizia-se, um antigo escravo do grande Ali Bey al-Kabir, (2) que nas
guerras do Egito servira alternativamente, e algumas vezes ao mesmo tempo, a França e os
turcos, os mamelucos e Mehemet Ali. Durante a luta, cada partido contava com ele para suprir-se
de viveres, armas e camelos; mas, depois da batalha, o mercador alegava sempre se ter
sacrificado pelo vencedor.
É verdade que então ninguém era mais zeloso e sabia, como ele, obter a baixo preço os
despojos dos vencidos. Nesse honesto negócio, mas não sem alguns desgostos, o cativante
Mansour ganhara grandes riquezas.
Invejosos denunciaram-no como espião, fanáticos bateram-no como traidor, e por duas
vezes o teriam enforcado, se não fora a caridade de um Paxá (3) que se contentara com um
milhão de piastras para reconhecer-lhe a evidente inocência. Mansour era de alma demasiado
altiva para aterrorizar-se com essas vicissitudes políticas; e, se, concluída a paz, se retirara para
Djeddah, fora porque, daí em diante, um comércio regular era para ele o único meio de aumentar
a fortuna.
Nesse novo gênero de vida, o egípcio nem fora menos prudente nem menos feliz que no
anterior; e era voz geral ser sua casa forrada de ouro e diamantes. Os árabes pouco o estimavam,
por ser ele estrangeiro, e passar como sendo o mais impiedoso dos credores; mas em Djeddah
não se ousa desprezar publicamente um homem que mede a prata em alqueires. Por isso, quando
Mansour chegava ao bazar todos corriam, disputando a honra de lhe pegar no estribo, e beijar-lhe
a mão. O mercador recebia essas homenagens com a modéstia de um homem consciente dos
direitos da riqueza; trinta anos de avareza e manha tinham-lhe posto aos pés toda a gente
honesta.
Uma coisa somente lhe faltava, turvando-lhe a felicidade; Mansour não tinha filhos.
Quando passava diante do balcão de algum de seus pobres colegas, e o via arrodeado de filhos –
esperança e orgulho da casa, o mercador suspirava de mágoa e inveja; e depois, retirado ao fundo
de seu armazém, quedava, cofiando a barba grisalha, esquecido do cachimbo (4) e dos versículos
do Alcorão. O egípcio pensava com angústia, no silêncio do coração, que a velhice se
aproximava, e ninguém de sua carne e de seu sangue lhe sucederia nos negócios. Seu único
herdeiro era o Paxá, e a este, se acaso o aborrecesse esperar, ninguém impediria esmagar um
estrangeiro sem família, baixando a mão sobre seus tesouros penosamente acumulados.
Esse pensamento e esses temores envenenavam a vida do egípcio; e, por isso, ao saber de
uma de suas mulheres, uma abissínia, que em breve seria pai, mal se pode avaliar-lhe a alegria. O
pobre homem quase perde a cabeça. Duas vezes mais avaro e mais ávido depois que ajuntava
para o filho, Mansour fechava-se para contar e pesar seu ouro, para arejar seus ricos estofos, para
desenterrar seus diamantes, suas pérolas, seus rubis, e para falar a essas coisas inanimadas,
anunciando-lhes a vinda do novo dono que as conservaria e amaria como ele próprio. Ia acaso à
cidade, desejara que só lhe falassem do filho, porque esse era um filho que Deus devia a seu fiel
servidor, e nada o admirava tanto quanto ver que os habitantes de Djeddah não se absorviam
neste único pensamento: Deus, em sua justiça, abençoara enfim a casa do hábil e afortunado
Mansour.
O egípcio não foi iludido em sua expectativa, e para que nada lhe faltasse à felicidade,
nasceu-lhe um filho à hora mais favorável do mês mais propício. Quando, ao oitavo dia, lhe foi
permitido ver essa criança por tão longo tempo desejada, Mansour tremia, aproximando-se do
berço de palmeira guarnecido de algodão em que, sob um lenço de seda bordado a ouro,
repousava seu herdeiro. Levantado mansamente esse véu, apareceu-lhe um menino vigoroso mas
quase tão negro quanto a abissínia, o qual, com as pequeninas mãos arrancava já o forro de seu
berço. À vista dele, o mercador ficou mudo de admiração, e grandes lágrimas caíram-lhe dos
olhos; depois, dominando-se, tomou aos braços o recém-nascido, e aproximando-o dos lábios:
“Deus é muito grande”, murmurou-lhe ao ouvido, e eu atesto que “só Deus é Deus, e Maomé o
seu profeta.” Tranquilizado por esta prece, o egípcio mirou o filho amorosamente, dizendo:
“Presente de Deus, tu não tens mais que oito dias, e, entretanto dir-se-ia, ao ver-te a força e a
graça, que tens um ano! Teu rosto é brilhante como a lua-cheia! Como lhe chamaste?
– Se Deus me afligira, dando-me uma filha, respondeu a etíope, fora a mim que competira
dar-lhe um nome; mas, visto que eu tive a glória de dar à luz um homem, é a meu senhor que
pertence essa honra. Tende cuidado somente em não lhe por um nome pretencioso, que, por isso,
possa espertar a inveja dos maus olhos.”
Mansour refletia; de seus pensamentos veio tirá-lo uma gritaria feita na rua. Um dervixe (5)
persa tocava diante de si um asno carregado de provisões, e um bando de crianças perseguia-o,
injuriando-o e batendo-o. Como homem que não teme nem procura o martírio, o herético
apressava o passo, insultando seus perseguidores.
“Maldito sejas tu, Omar! (6) gritava ele, dando no asno, e malditos sejam todos que contigo
se pareçam.”
“Eis, diz Mansour, uma nova prova da felicidade que me acompanha. Esta criança chamar-
se-á Omar; um tal nome desviará meu filho de todo malefício.”
Quando o egípcio repunha o filho no berço, entrou a câmara uma beduína trazendo, ela
também, uma criança ao colo. Era uma mulher alta, com o rosto descoberto, como é de uso no
deserto, e, apesar de pobremente vestida, pela marcha lenta e digna, parecia uma sultana.
“Halima, disse-lhe Mansour, eu te sou grato por teres vindo. Não esqueci que Yussuf, teu
marido, morreu a meu serviço, defendendo minha última caravana; chegou o momento de
provar-te que não sou um ingrato. Sabes o que espero de ti. Senão me é possível fazer de meu
filho um xarife (7) nem lhe dar o turbante verde, posso ao menos fazê-lo educar como um filho
de xarife, na tenda, e em meio dos nobres Bani-amers. Admitido em tua família, nutrido com teu
filho, meu caro Omar aprenderá uma linguagem mais pura que a minha, e achará entre os teus
amigos que mais tarde protegê-lo-ão. De meu lado saberei reconhecer e recompensar tua
dedicação. Que a amizade de nossos filhos comece desde hoje; que desde hoje eles durmam no
mesmo berço. Amanhã tu os levarás para que eles cresçam juntos na tribo. Omar será teu filho,
como Abdallah será meu filho: possa a boa fortuna lhes sorrir, a ambos.
– Que Deus seja o refúgio deles contra Satã, o maldito, respondeu a mulher, inclinando-se.
Nós somos de Deus, e para ele voltamos.”
Mansour fitou-a, sorrindo. Era um espirito forte que não acreditava em Deus, conquanto
lhe tivesse sempre o nome nos lábios.
Vivera muito tempo, e conhecera demasiado os homens para crer que Deus se preocupasse
com as coisas deste mundo; em compensação acreditava muito no Diabo, e o temia. A única má
ação de que Mansour se acusava na vida, era, por ocasião de uma peregrinação à Meca, ter
atirado sete pedras ao grande diabo de Jamarāt; o egípcio receava a toda hora o rancor desse
demônio por ele lapidado.
Sem dúvida o ensoberbecia o fato de ter ganho o belo título – Hadji (8) que o tornava
respeitável aos olhos de seus clientes, e era com a maior devoção que falava da Caaba (9), este
rubi do paraíso por nosso pai Abrahão colocado no santo lugar de Meca, mas no fundo deplorava
sua imprudência, e não muito tranquilo quanto às consequências funestas que ela poderia ter,
cederia de bom grado o título de Hadji pelo perdão do diabo de Jamarāt. (10)

(1) – Djeddah, Gedda ou Jeddah, é a segunda maior cidade da Arábia Saudita e um importante centro
comercial, localizado nas margens do Mar Vermelho. Em 647, o califa Uthman a transformou, a então pequena vila
de pescadores, na porta para os peregrinos que seguiam em direção à Meca.
(2) – Ali Bey al-Kabir, foi um líder mameluco do Egito de 1768 a 1769, 1772 ou 1773. Era, originalmente,
um soldado mameluco que em 1768, rebelou-se contra o governo otomano, tornando o Estado do Egito do Império
Osman independente por um curto período de tempo. Ali Bey foi depois exilado, vindo a morrer fora dos muros do
Cairo.
(3) – Paxá é a denominação e o título de honra mais alto do Império Otomano. O título surgiu no Séc. XIII
para designar os irmãos e os filhos do sultão e, depois, passou a ser concedido a militares, governadores (dignitários)
de província e vizires, designando aos governadores de províncias do Império Otomano e correspondia ao título de
“Excelência” usado no Ocidente. O título era equivalente ao título britânico de Lorde, e também foi um dos títulos
mais altos na pré-república do Egito
(4) – O narguilé, também conhecido como cachimbo d’água, shisha, pipa, hookah e tubo, é vendido como
peça de decoração e usado por jovens e adultos em festas e eventos sociais.
(5) – Um dervixe, do persa “Darvīsh” e do turco “Derviş”, é um praticante do islamismo sufista que segue o
caminho ascético da “Tariqah“, conhecidos por sua extrema pobreza e austeridade, o que os torna similares aos
monges das ordens mendicantes cristãs, como também dos sadhus hindus, budistas e jainistas. Os dervixes mais
conhecidos são os da ordem Mevlevi, célebres pelas cerimônia de adoração em que rodopiam num ato devocional
denominado “dhikr”.
(6) – Aqui há um trocadilho intraduzível; Homar ou Omar em árabe significa “asno”;
(7) – Xarife, xerife, as-Shariff, horfa ou ašrāf, que dizer “nobre” ou “respeitável”. Era um título cedido um
descendente de Maomé por sua filha Fátima através de um dos seus dois netos, Hassan e Hussein. Era uma forma de
divisão e governo comum no mundo árabe, mais que uma zona geográfica definida com exatidão. O destino do
xerifes teve desfechos diferentes: o rei Abdullah I da Jordânia, por exemplo, que era o xarife de Meca, perdeu esse
título quando com a criação da Arábia Saudita, seu título fora extinto. Alguns xarifados evoluíram para emirados e
posteriormente nações, como o Emirados Árabes Unidos.
Sendo que Emir era um título leigo atribuído a lideranças militares, governadores ou grandes autoridades. A
palavra vem do árabe amir, que significa “comandante” ou “príncipe”. O título é usado hoje por líderes de países
como Qatar e Bahrein. Os Emirados Árabes Unidos, apesar do nome, são governados por xeques.
(8) – Hadji, ou santo, é o nome dado para àqueles que fizeram a peregrinação até Meca.
(9) – É a “Casa Santa”, ou o principal templo de Meca.
(10) – Jamarāt ou Jimar é um ritual de Hadij que consiste em apedrejar três paredes (anteriormente pilares,
chamados de jamarāt), que representam o diabo (shaytan em árabe). - Como parte deste do Hadij, atiram-se seixos
(pequenas pedras, também chamadas de Rami ou Ramee) nas três estruturas de jamarāt na cidade de Mina à leste de
Meca. - Os peregrinos recolhem os seixos em Muzadlifah e na mesma cidade de Mina a leste de Meca. O
“apedrejamento do jamarāt” é parte da peregrinação anual do Hadij islâmico à Cidade sagrada de Meca, na Arábia
Saudita. - Esta série ritualística realizada pelo Hadij, é uma reconstituição simbólica do hadij de Abraão, onde
apedrejou três pilares que representam a tentação de desobedecer a Deus e preservar Ismael. O processo de fundição
ou apedrejamento de sete seixos para estes pilares é chamado como Rami ou Ramee. - Apedrejar o Jamarāt é um dos
rituais obrigatórios do Hadij e é prescrito para todos os que pretendem fazer esta grande peregrinação. Este ritual é
mencionado claramente na Sunnah e sua autenticidade é acordada pelos estudiosos. - O significado histórico do
ritual Jamarāt vem do Profeta Ibraheem (Abraão) quando o diabo (shaytan em árabe) apareceu a ele três vezes. Em
cada uma das aparições, Angel Jibraeel (Gabriel) disse Profeta Ibraheem (Abraão) para pelt o diabo. Assim, a base
do significado do ritual.

CAPÍTULO II – O HORÓSCOPO

À noite, no momento em que a lua surgia, e enquanto as duas crianças dormiam nos braços
uma da outra, o prudente Mansour entrou à câmara, seguido por um dervixe esfarrapado e de
barba esquálida, muito parecido com o herético apupado pela manhã. Era um desses mendigos
desvergonhados que procuram nos astros o destino dos outros, sem jamais encontrar neles a
própria fortuna, um desses míseros repelidos e malditos por todos, mas sempre procurados, que
durarão tanto quanto a malícia de Satã, e a avareza, a credulidade dos homens.
Não foi de boa vontade que Halima saiu do quarto para deixar aproximar-se das crianças
aquela figura suspeita; Mansour, porém, o ordenara, e era preciso obedecer-lhe.
Mal saíra a beduína, o egípcio levou o dervixe para perto do berço, e lhe pediu que tirasse
o horóscopo do filho.
Depois de mirar a criança atentamente, o astrólogo galgou o teto da casa, e observou muito
tempo os astros; em seguida, traçou com um carvão um grande quadrado dividido em outros, e,
figurando em cada um planeta, terminou dizendo que o céu não era hostil. Se Marte e Vênus
eram indiferentes, Mercúrio, ao contrário, apresentava melhor aspecto.
Era tudo quanto podia declarar pelos dois sequins (2) que lhe dera Mansour.
O mercador reconduziu o mago à câmara, e mostrando-lhe duas onças de Espanha, lhe
disse:
"Não haveria meio de sabermos alguma coisa mais? Os astros revelaram já todos os seus
mistérios?
– A arte é infinita, respondeu o dervixe, tomando-lhe o ouro das mãos; posso dizer-te ainda
o signo que influirá no destino do teu filho.”
Tirando, então, do cinto uma tábua cabalística e uma pena de bronze, o astrólogo escreveu
o nome da criança e de sua progenitora, grafando cada letra numa linha distinta; fez depois o
cálculo do valor numérico das letras, e fitando em Mansour os olhos brilhantes: “Feliz pai, disse-
lhe, teu filho nasceu sob o signo da Balança! Que ele viva, e se pode esperar tudo de sua fortuna.
– Como?! Que ele viva? bradou Mansour. Que leste nessa tábua maldita? Há acaso um
perigo a ameaçar meu filho?
– Sim; um perigo que não posso definir: seu melhor amigo será seu maior inimigo.
– Ah! que é que ia eu fazer? O filho da beduína, por mim colocado nesse berço, será por
má ventura um dia o assassino do meu filho? Se eu pudesse acreditar em tal desgraça,
estrangulá-lo-ia já.
– Toma cuidado em não fazê-lo, replicou o mago: se a vida de teu filho está ligada à dessa
outra criança, que farias tu, assassinando-a. senão matar ambas do mesmo golpe? Nada nos diz
que este beduíno, destinado a viver na tenda, seja um dia o melhor amigo do mais rico mercador
de Djeddah. Ademais, há acaso um refúgio contra o destino? O que está escrito, está escrito.
– Sem dúvida, concordou Mansour, mas Deus (cujo nome seja exalçado) disse no livro por
excelência: “Não vos lanceis por vossas próprias mãos na desgraça.” (3)
– O dia da morte, continuou gravemente o dervixe, é um dos cinco mistérios cuja chave
Deus se reservou. (4) Recorda-te da história do homem que estava perto de Salomão, no dia em
que Azrael (5) fora visitar o rei. Amedrontado pelos olhares que o estranho lhe lançava aquele
homem perguntou a Salomão quem era o terrível desconhecido, e quando soube ser ele o anjo da
morte: “Parece, disse ao rei, que ele me quer levar; ordena ao vento que me transporte à Índia;” e
o vento o transportou. Azrael disse então a Salomão:
“Estava surpreso por ver aqui aquele homem: recebera ordem de lhe recolher a alma na
índia, e viera encontrá-lo na Palestina!”
“Da morte para fugir
Não há asas bastante leves;
Ao grande como ao pequeno,
Alcança seu braço forte.
O mais sábio é o que vive
Como Deus dispõe e quer,
E nem altivo nem medroso
A contemplá-la se atreve.”

Dito isto, o astrólogo se inclinou para despedir-se de Mansour; este o reteve.


"Tens ainda alguma outra coisa a perguntar-me? disse o dervixe, fitando o egípcio com
atenção.
– Sim, replica o mercador, mas não ouso falar. Todavia, pois que pareces amigo, e se trata
do interesse de meu filho, desculparás as fraquezas de um pai. Um sábio como tu, que lê nos
astros, deve ter levado além a curiosidade. Dizem haver homens que à força de ciência
descobriram o grande nome de Deus, esse nome somente revelado aos profetas e ao apóstolo
(que ele seja bendito!), esse nome que basta para ressuscitar os mortos e matar os vivos, esse
nome que abala o mundo, que força as potências do inferno e o próprio Éblis (6) a obedecerem
como escravos. Conheces por ventura um desses espíritos superiores, e julgas que ele se recusará
a penhorar um homem que tem a reputação de não ser ingrato?
– Tu és a própria prudência, respondeu a meia voz o astrólogo, aproximando-se de
Mansour; pode-se ter confiança em ti. As palavras, porém, voam com o vento, e as mais belas
promessas são como os sonhos desfeitos à luz da aurora.”
Como única resposta, o egípcio enfiou o braço direito na longa manga do dervixe, e
colocou um de seus dedos na mão do astrólogo.
“Uma bolsa, (7) disse este desdenhosamente, é o preço do um camelo. Quem seria bastante
insensato para, com risco de vida, perturbar Satã por tão pouco?”
O egípcio estendeu um segundo dedo, e fitou o dervixe, cuja atitude era a mais indiferente;
depois de um momento de silêncio, o mercador suspirou e estendeu o terceiro dedo.
“Três bolsas, disse o astrólogo, são o preço de um escravo e de um infiel. À alma de um
muçulmano não se paga por uma tal ninharia. Separemo-nos, Mansour, e esqueçamos as palavras
indiscretas que pronunciaste.
– Não me abandones! brada o mercador; cinco bolsas são uma grande soma. É tudo quanto
posso oferecer-te, e, se for preciso, ajuntarei à oferta minha alma; o perigo comum assegura-te
minha discrição.
– Dá-me, pois, as cinco bolsas, respondeu o mágico; minha amizade por ti fará o resto.
Confesso-te minha fraqueza: não posso ver-te, Mansour, sem me sentir arrastado para ti; possa
esta inclinação não me custar demasiado caro!”
Mansour trouxe o dinheiro; o dervixe pesou-o muitas vezes na mão, e o meteu no cinto
com a tranquilidade de uma grande alma; depois, pegando da lâmpada, fez três vezes a volta do
berço a murmurar palavras estranhas, passou e repassou a luz sobre a fronte de Omar, e se
prostrou várias vezes nos quatro ângulos do quarto, sempre seguido por Mansour, que tremia de
medo e ansiedade.
Após todas estas cerimonias, que pareceram bem longas ao mercador, o magico colocou a
lâmpada sobre um banco, ao longo da parede, e sacando ao seu inesgotável cinto uma pequena
lata, tirou dela um pó negro e o lançou ao pavio inflamado. Imediatamente uma fumaça espessa,
que dir-se-ia sair da parede, encheu todo o aposento; em meio dessa fumarada Mansour julgou
entrever a figura infernal e os olhos flamejantes de um Afrita (8). O dervixe pegou-lhe do braço, e
com ele se prostrou, a fronte oculta nas mãos.
“Fala, disse o persa, com a voz arquejante, e, sob pena de morte, não levantes a cabeça; tu
podes fazer três súplicas: Éblis veio, Éblis as exalçará.
– Eu queria, murmurou Mansour, eu queria que meu filho fosse rico toda vida.
– Seja! respondeu uma voz estranha, que parecia vir do fundo da sala, conquanto Mansour
tivesse julgado ver a aparição diante dele.
– Eu queria também, continuou o egípcio, que meu filho gozasse sempre boa saúde,
porque, sem saúde, para que serve a fortuna?
– Seja! respondeu a voz.
Fez-se um momento de silêncio; Mansour hesitava quanto à terceira suplica.
“Desejar-lhe-ei inteligência? pensava ele... Não; Omar é meu filho, e será sagaz como eu.”
A predição do dervixe veio de repente à sua memória.
“Ameaçado pelo melhor de seus amigos, refletiu o mercador, só haverá para ele um meio
de salvação: será não amar ninguém, e não pensar senão em si mesmo. Ademais, com o
inquietar-se pelos outros, a vida se consome, pois no mundo só há ingratos... Eu queria, disse
enfim Mansour, que meu filho fosse um perfeito egoísta.
– “Seja!” respondeu a voz com um brado horrível.
Esse grito fez um tão grande medo ao egípcio que ele ficou imobilizado até que o dervixe o
puxou por uma aba da veste, e lhe ordenou que se levantasse.
No mesmo instante saiu da lâmpada um jato de chama. Dir-se-ia que toda a câmara pegara
fogo Mansour, aterrorizado da própria temeridade, precipitou-se à porta para assegurar-se de que
vivia ainda e nada mudara em sua casa.
Enquanto o dervixe, como homem que o hábito endureceu contra o medo, revestia o manto
e calçava as sandálias, uma mulher correu ao berço das crianças. Era Halima, que se deixara ficar
perto da câmara durante o sortilégio; a brusca saída de Mansour a assustara duplamente. Seus
olhares eram inquietos e seu primeiro cuidado foi molhar um dos dedos e passá-lo na fronte dos
meninos, pronunciando uma fórmula que frustra os malefícios. A serenidade do dervixe
tranquilizou-a, porém, e ela lamentou ter suspeitado de magia esse piedoso personagem que tinha
no aspecto toda a calma de santidade. Aproximando-se dele com respeito, Halima beijou-lhe a
fimbria do manto.
Santo homem, disse-lhe ela, meu filho é órfão, eu sou uma pobre mulher, não posso, pois,
oferecer-te mais que meu reconhecimento; mas...
– Bem! bem! Já sei o que me vais pedir. Que teu filho seja rico, não é que tu queres? Para
isso não precisas de meu auxilio.
Faze de teu filho um mercador, e que ele roube como o velho Mansour; faze dele um
Bashi-bazouk (9) e que ele despoje seus irmãos; um dervixe, e que ele lisonjeie e minta: todos os
vícios conduzem à fortuna, quando aos demais se junta o mais repelente deles, a avareza. Dei-te
o segredo da vida. Adeus...
– Não é isso o que eu desejo, insistiu a beduína admirada; tu fazes mal, escarnecendo-me
dessa forma. Meu filho será um homem de bem como foi seu pai; o que eu desejo é que ele seja
feliz neste mundo.
– Virtuoso e feliz! disse rindo de uma maneira estranha o dervixe, e é a mim que te diriges?
Pobre mulher, é o trevo de quatro folhas o que tu queres: desde Adão até hoje ninguém tornou a
vê-lo. Que teu filho o procure; quando ele o encontrar, fica certa de que nada lhe faltará.
– Que é o trevo de quatro folhas? perguntou a beduína, inquieta; mas o dervixe tinha já
desaparecido para não mais voltar. Homem ou demônio, ninguém tornou a vê-lo. Halima,
comovida, inclinou-se sobre o berço, e fitou seu filho que parecia sorrir-lhe, dormindo. “Repousa
em paz, disse-lhe ela, e conta com meu amor. Não sei que seja o talismã de que falou o dervixe;
mas, filho de minha alma, encontrá-lo-emos juntos, e alguma coisa me diz que tu o acharás. Satã
é astuto e o homem é fraco; Deus, porém, dirige o coração de seus fiéis e faz o que quer.”
(2) – Sequin cujo nome é derivado do árabe sikka, é uma moeda de ouro, inicialmente chamada de ducado,
pesando 3,5 gramas de 0,986 de ouro, cunhada em Veneza a partir do Séc. XIII. Em 1478, o Império
Otomano introduziu uma unidade semelhante.
(3) – Corão II, f.91;
(4) – Corão, XXXI, 34;
(5) – Azrael, também conhecido como Ezrael, Izrafil, Abu-Jahia e Abou-Jaria, o anjo da morte no islamismo;
demônio hebreu cuja categoria é de Arcanjo. Foi o lugar-tenente de Lúcifer durante a rebelião. Tem quatro caras:
uma adiante, outra acima da cabeça, outra detrás, e a última debaixo dos pés, possui quatro asas e seu corpo possui
inúmeros olhos.
(6) – Éblis um dos nomes de Satã entre os árabes;
(7) – Uma bolsa é mais ou menos Ł5 2s. qd.;
(8) – Um gênio infernal.
(9) – Os Bashi-bazouk, eram mercenários, também chamados delibas, cujo significado é “cabeça louca”, ou
aquele que se “guia livremente “, “sem líder” ou “desordenado”). Eram soldados irregulares do exército otomano.
Eram de várias etnias: turco, circassiano, árabe, albanês, bósnio, etc. Eram conhecidos particularmente por sua falta
de disciplina. Lutavam, principalmente, por expectativas de pilhagem e geralmente não recebiam salários regulares e
viviam do saque.
CAPÍTULO III – A EDUCAÇÃO

Escolhendo a beduína para confiar-lhe Omar, Mansour dera uma nova prova de sua
prudência habitual. Desde o primeiro dia, Halima teve pela criança uma ternura maternal, e
cuidou mais dela, que de seu próprio filho. Era-lhe necessário sair da tenda, o filho querido que
Halima levava ao dorso ou ás ancas era sempre o mercadorzinho, como os Bani-amers
chamaram Omar. E, entretanto, que diferença entre os dois irmãos! Alto, esbelto, ágil, nervoso,
Abdallah, com seus olhos límpidos e sua tez doirada, faria o orgulho de todos os pais, enquanto
que o filho de Mansour, com sua pele escura, seu pescoço curto e seu grande ventre não passava
de um egípcio desgarrado no deserto. Que importava isso, porém, à beduína. Não os nutrira ela a
ambos com seu leite? Quem sabe mesmo se Halima, como uma verdadeira mãe, não alimentaria
uma secreta preferência pelo filho que tinha mais necessidade de seu amor?
Crescendo, Abdallah mostrou logo toda a nobreza de sua raça. Perto do pequeno egípcio,
dir-se-ia que o infantil beduíno se sentia já senhor da tenda, e experimentava o orgulho de
exercer os direitos da hospitalidade. Embora tivesse ele somente seis meses mais que Omar,
fizera-se seu guarda e protetor, e seu maior prazer era diverti-lo, servi-lo o defendê-lo.
Em todos os brinquedos e festas, ele lhe proporcionava o primeiro lugar; e se acaso
sobrevinha uma questão, era sempre o beduíno, e só ele, que se batia, destro, forte e denodado
como um filho do deserto.
Omar apagava-se voluntariamente perante o irmão, como se já tivesse compreendido todo
o partido que se pode tirar do uma amizade que não calcula. Indolente como um filho das
cidades, quase não saia da tenda. O beduíno corria entro as éguas, lutava com os poldros e
tronava aos camelos sem lhes fazer dobrar os joelhos; o egípcio, as per nas cruzadas sobre uma
estoira, passava uma grande parte do dia a dormir, nutrindo um imenso desdém pelas façanhas
ruidosas que faziam a alegria de Abdallah. Achava-se aquele com outras crianças, era para
brincar de mercador; o filho de Mansour tinha uma habilidade singular para trocar uma tâmara
por um limão, um limão por uma laranja, uma laranja por um pedaço de coral ou por outra coisa
qualquer. Aos dez anos, Omar adivinhara já que a maior utilidade de um rosário consistia em
servir ele para contar. Não era, porém, o egípcio uma alma ingrata; Omar amava o irmão a seu
modo: acolhia-o com mil caricias quando ele voltava à tenda, trazendo bananas, romãs,
damascos e outras frutas que lhe davam as mulheres da vizinhança, encantadas por sua graça e
vivacidade. À força dos agrados, Omar obtinha sempre o que desejava, mas a satisfação que lhe
dava a consciência da sua habilidade, despojando, não era superior à felicidade que
experimentava Abdallah em se deixar por ele despojar. Cada um traz seu destino e o carrega
como pesada cadeia: o carneiro nutrido por uma leoa há de ser sempre um carneiro, e de um filho
de mercador ninguém fará jamais um beduíno.
Aos dez anos, graças aos cuidados de Halima, a educação de Abdallah estava completa: ele
sabia tudo que deve saber um Bani-amer.
O filho de Yussuf recitava a genealogia de sua família e de sua tribo; conhecia a
descendência, o nome, o sobrenome, o pelo e a marca de todos os cavalos; lia nos astros a hora
da noite, e pela sombra conhecia as horas do dia. Ninguém melhor do que ele fazia ajoelharem os
camelos ou lhes cantava com voz mais suave as canções melancólicas que abreviam as viagens,
fazendo-os estugar o passo apesar de fatigados. Nessa idade, Abdallah sabia já manejar um fuzil,
e esgrimia ao sabre e à lança como se houvera feito dez caravanas. Halima chorava de alegria,
contemplando-lhe a coragem infantil, e se sentia orgulhosa por ter dado à luz um homem,
desvanecendo-se por ver que seu filho seria um dia a honra de seu povo e o amor de sua tribo. A
viúva era uma verdadeira muçulmana, e como tal sabia que só em Deus há sabedoria, força e
consolação. Aos sete anos ensinava as crianças a fazerem as abluções e as cinco preces. Pela
madrugada, logo que um débil clarão iluminava o oriente, ao meio dia, quando o sol declinava, à
tarde, quando as sombras se alongavam, ao crepúsculo, quando o sol desaparecia no horizonte, e
à noite, enfim, quando a treva descia, Omar e Abdallah estendiam na terra o tapete da prece, e
voltados para Meca, repetiam as palavras santas que contém toda religião: “Atesto que só Deus é
Deus, e Maomé o seu profeta.”
Terminada a prece, Halima se comprazia em recordar aos filhos os preceitos de Aisha,
preceitos de que ela fizera a regra de sua conduta.
Filhos de minha alma, lhes dizia ela, escutai o que Aisha, a esposa bem-amada do Profeta,
a virgem incomparável, a mãe dos crentes, respondia ao muçulmano que lhe pedia conselho.
Retende essas máximas sagradas que são a herança mesma do apóstolo, e a pérola da verdade:
“Reconhecei que só há um Deus, sede fiel à vossa religião, contende vossa língua, reprimi
vossa cólera, privai-vos de fazer o mal, frequentai os bons, desculpai as faltas do vosso próximo,
aliviai os pobres por vossas esmolas, e esperai a eternidade como recompensa.”
Assim se educavam as duas crianças, arrodeados por um mesmo amor, tão terno e tão igual
que nunca os dois irmãos suspeitaram que não eram do mesmo sangue. Um dia, porém, entrou a
tenda um velho armado de uma prancha de madeira pintada de branco, sobre a qual se tinham
traçado elegantes caracteres a tinta negra. Era o sheik. (1) Este ancião gozava uma grande fama
na tribo; dizia-se que ele estudara no Cairo na esplêndida mesquita de Al Azhar, (2) fonte de luz
que faz a alegria dos crentes e o desespero dos infiéis. Era tão sábio, o sheik, que podia ler o
Alcorão, e reproduzir com um junco os noventa nomes de Deus, e o Fát-hát. (2)
Com grande admiração do beduíno, o velho, depois de falar em voz baixa com Halima, que
lhe deu uma bolsa, não lhe prestou a menor atenção, e se ocupou somente com o filho de
Mansour, ao qual acariciou paternalmente, fazendo-o assentar a seu lado. Depois de ensinar a
este como se balança a cabeça e o corpo para auxiliar a memória, deu-lhe a prancha e o fez
repetir, cantando, o alfabeto inteiro.
Omar tomou um gosto tão ardente à lição que aprendeu logo o valor numérico das letras; e
o professor, deixando-o, beijou-o e lhe prometeu que, se ele continuasse com a mesma aplicação,
seria um dia mais instruído que o mestre.
E, dito isto, saiu, sem olhar sequer para Abdallah.
Este, ao fim dessa primeira lição, em que lhe teria sido agradável participar, ficara um
pouco triste. Pouparam-no a uma segunda prova: na manhã seguinte mandaram-no ao campo a
guardar os rebanhos de Halima. Acompanhou-o um tio, velho pastor, zarolho e coxo, mas
homem bem avisado. Hafiz, assim se ele chamava, era um bravo soldado, um piedoso
muçulmano que muito vira e sofrera. Companheiro e cunhado de Yussuf, ferido perto dele, era o
último arrimo de uma família quase destruída. Solteiro e sem filhos, amava o sobrinho como um
pai ama o filho.
Fora ele quem se opusera a que Abdallah aprendesse com o sheik “Queres, dizia ele ao
sobrinho, queres saber mais que o Profeta? Que é que virás a saber ler? O Alcorão? É sobre um
trapo vil ou em teu coração que é preciso guardar a palavra sagrada? Queres ler livros
estrangeiros? Para que? Para os espíritos intemeratos que procuraram além a verdade, é que foi
escrito: “Àqueles que procuram protetores fora de Deus, imitam a aranha que constrói uma teia;
há refúgio mais frágil que o da aranha? Se eles o soubessem! (4) “Todas as pessoas cujo espirito
repousa nos livros, são como asnos carregados de uma riqueza alheia, que serve somente para os
oprimir. O homem não nasceu para entesourar os pensamentos estranhos, mas, para agir. Marcha
para a frente, meu filho, com uma alma reta e com o temor de Deus. Na idade da força, o Senhor
dar-te-á a sabedoria e a ciência como as deu ao filho de Jacó. É assim que ele recompensa os
justos; Deus mesmo o disse.” (5)
Essas palavras inflamavam o coração de Abdallah. Todos os dias, enquanto o calor retinha
os homens nas tendas, Hafiz, recitava para o filho de Yussuf alguns versículos do livro santo, e o
fazia repeti-los por sua vez. Foi assim que lhe ensinou o Alcorão inteiro, começando, depois do
Fát-hát, pelos curtos capítulos dos Homens, da Alvorada e da Unidade de Deus, e terminando
pelos longos e belos ensinos contidos nos capítulos das Mulheres, da Família de Imran, e da
Vaca. A criança era semelhante as areias do deserto, que bebe todas as gotas da chuva sem perder
uma só; Abdallah não se cansava de cantar essa prosa cadenciada, tão superior à poesia quanto à
palavra de Deus é superior a linguagem dos homens.
Dia e noite ele repetia esses preceitos, em que a eloquência e a sabedoria se seguem e se
tocam como as pérolas de um colar; e tão bem os aprendeu que todo bom muçulmano, quando
queria dar uma festa aos companheiros, o convidava a ele e a seu tio para recitarem o Alcorão
inteiro ou alguma de suas trinta seções. Assentados em terra, ao redor do mestre e do discípulo,
os Bani-amers se inebriavam com a palavra divina. “Deus é grande, bradavam eles; Gabriel não
era mais belo do que este jovem quando depôs no coração do Profeta a revelação suprema.”
Não era somente o texto do Alcorão que Hafiz ensinava a seu sobrinho; ele lhe repetia
também as palavras do apóstolo conservadas por seus amigos. Ele lhe ensinava os quatro grandes
deveres que Deus impôs a todos que se querem salvar: as cinco preces diárias, a esmola do
quadragésimo, o jejum de Ramadã, a peregrinação à Meca; ele lhe fazia odiar os sete grandes
pecados, estes pecados que engendram setecentos outros, e que matam as almas: a idolatria –
crime que Deus, segundo uma palavra formal, não perdoa nunca; o assassínio, a falsa acusação
de adultério levantada contra uma mulher honesta, a injustiça feita aos órfãos, a usura, a fuga
numa expedição contra os infiéis, a desobediência aos pais. “Ó meu filho, dizia o tio a Abdallah,
terminando cada lição, tu, que, por decreto de Deus, foste posto entre aqueles que receberam as
Escrituras, repete todos os dias esta divina promessa que faz toda nossa força e toda nossa
esperança neste mundo: “Aquele que obedecer a Deus e ao apóstolo, irá com aqueles com quem
Deus foi misericordioso – com os profetas, com os homens sinceros, com os mártires com os
justos.”
Que excelente companhia! Tal é a bondade de Deus, que nada ignora.” (6)
Muitas vezes, para não fatigar o sobrinho, Hafiz, variava o ensino, contando-lhe a história
de algum dos inumeráveis profetas a quem Deus confiava o depósito da verdade, enquanto não
vinha Maomé.
Era a Adão, nosso primeiro pai, a quem Deus, em sua bondade, ensinava o nome de todos
os seres. À ordem do Senhor, os anjos, esses filhos do fogo, adoravam o homem tirado do limo
da terra; um só se recusava a fazê-lo, era o ingrato Éblis, que se perdeu em seu orgulho. Por
desgraça, Adão e Eva, tentados pelo inimigo, provavam o fruto proibido. Para puni-los por sua
desobediência Deus os expulsara do Paraiso. Adão fora arrojado à Ilha de Serendib, (7) onde se
vê ainda a marca do seu pé; Eva tombara em Djeddah para aí viver duzentos anos em solidão,
mais o Senhor se apiedara enfim dos dois esposos, e Gabriel os reunira em Arafat, perto do lugar
prodigioso onde Abrahão e Ismael deviam fundar a santa Caaba.
Era, novamente, a história de Deus mostrando a Abrahão o reino da terra e dos céus, afim
de que este seguisse a verdade da ciência certa. Educado no culto de seus pais, o filho de Azer
adorava os astros. Quando a noite o envolveu em suas sombras, ele viu uma estrela, e bradou
“Eis meu Senhor. “A estrela desapareceu, e ele disse então: – “Eu não amo aqueles que
desaparecem.” A lua surgiu, Abrahão disse: – “Eis meu Senhor.” Quando, porém, a lua se
escondeu, ele bradou: – “Se meu Senhor não me tivesse dirigido, eu ter-me-ia desgraçado. “Ele
viu o sol levantar-se, e disse: – Este é meu Senhor, este é maior que os outros. “Quando, porém,
o sol tombou: – Ó meu povo, eu sou inocente da idolatria que professais! (8) “O filho de Azer
compreendera que os astros semeados no céu revelam uma mão suprema, como os rastros
deixados na areia atestam a passagem do viajor.
Como verdadeiro muçulmano, Abrahão, uma vez chegado à verdade, quebrou todos os
ídolos de seu povo, exceto o de Baal, em cujo rolo deixou a acha da destruição. Quando os
caldeus, furiosos, lhe perguntaram quem tinha despedaçado seus deuses: “Foi Baal, respondeu
Abrahão; interpelai-o a verdes se ele vos responde.”
– Um ídolo não fala bradavam os caldeus; e diziam um ao outro:
– “Tu és ímpio.”
Quem pode, porém, esclarecer aqueles que têm olhos para não ver?
A mesma verdade é uma luz que os cega. Furioso por ter sido vencido por uma criança,
Nimrod, rei dos caldeus, fez lançar Abrahão numa fogueira. Inútil crueldade! é o Eterno, quem dá
a vida e a morte.
À ordem de Deus, o fogo só consumia os infiéis. Para Abrahão a pira transformava-se em
risonha vargem, o fogo que a arrodeava ora como um bosque cheio de sombra e frescura. É
assim que o Senhor exalta o justo e abate o orgulhoso.
Quem poderia esgotar as santas histórias que o livro sagrado e a tradição nos conservam?!
Elas são mais numerosas e belas que as estrelas de um céu de estio. Hafiz marrava-as tais
quais as ouvira de seus maiores Abdallah as repetia com o mesmo ardor e a mesma fé.
Era Davi, o rei ferreiro, a quem Deus ensinou a arte de fabricar cotas de malhas para
proteger os verdadeiros crentes: era Salomão a quem Deus dera poder sobre os ventos, os
pássaros e os gênios. Makeda Balqis, a rainha de Shebah, (9) sentada em seu trono de ouro o
prata, encrustado de pedrarias, recebe uma carta de Salomão levada por um pássaro, e lhe beija o
selo que faz tremer Satã, convertendo-se ao Islamismo à voz do mais sábio dos reis.
E os companheiros da caverna, que, esperando o reino da verdade, dormem trezentos e
nove anos, tendo a seus pés o fiel cão Al Rakim! (10)
E a camela sagrada que deu à luz uma rocha, quando Saleh (11) quis confundir a
incredulidade dos Tamudistas!
Quando jamais se cansou Deus de fazer prodígios para socorrer seus fiéis?
Entre todas essas histórias maravilhosas que hão de ser sempre narradas, havia uma que
Halima não cessava de pedir a seu filho que repetisse: era a de Jó, este excelente servo, que em
meio de suas penas queria voltar a Deus. Em vão a esposa dele, cansada de o ver sofrer,
consentia em adorar Éblis, esperando reaver a passada felicidade: Jó recusava o socorro dessa
mão maldita. Se ele erguia no monturo o corpo roído por vermes, para dirigir ao Senhor esta
prece comovente que arrancava a Deus seu perdão: ''Em verdade o mal me atormenta, mas tu és
o mais misericordioso de todos quantos mostram misericórdia.” (12) Formosas palavras que só
una verdadeiro crente pudera pronunciar!
Hafiz era um piedoso, porém, ao mesmo tempo, era também um beduíno orgulhoso de sua
raça, um soldado que amava a pólvora e os combates.
“Pensa, meu filho, dizia ele muitas vezes a Abdallah, pensa nos privilégios conquistados
para nosso povo pelo Profeta, e os quais devemos defender até à morte. Para nos tornar a vida
fácil, Deus nos deu os jardins, as fontes vivas, os rebanhos inumeráveis, o dourah (13) e a
palmeira; para nos tornar a vida gloriosa elo nos deu um sangue nobre, um país que nunca foi
conquistado, uma liberdade que nenhum senhor jamais profanou. Nós somos os reis do deserto.
Nossos turbantes são nossos diademas; nossas tendas são nossos palácios; nossos sabres
são nossas trincheiras, e a mesma palavra de Deus é nossa lei. Teu pai morreu combatendo; foi
um mártir. Entre teus avós, para um acaso morto na tenda, houve três que tombaram no deserto, a
lança em punho. Eles te mostram o caminho; eles compreenderam o texto divino:
“Aqueles que sacrificam a vida neste mundo pela vida futura combatem na estrada de
Deus. Aquele que se bate pela religião, sucumba ou saia vencedor, terá uma grande recompensa.
O gozo da vida presente é passageiro; a vida futura é o verdadeiro bem para aqueles que temem a
Deus.” (14)
Já vistes o corcel de guerra, quando ao estridor do clarim escarva a terra e dilata as narinas
fumegantes? Tal como ele, Abdallah se comovia quando Hafiz lhe falava de batalhas: seu
coração palpitava, seus olhos se ensombravam, o sangue subia-lhe à face, e: “Ó meu Deus,
bradava ele, faze que seja em breve minha vez; dá que eu possa esmagar o infiel, e tornar-me
digno de meu povo!” Como era belo esse filho do deserto! Era vê-lo, envolto em sua túnica azul,
unida ao corpo por uma trança de couro que lhe cingia dez vezes o tronco.
Compridos cabelos escuros cobriam-lhe a fronte e caiam-lhe em cachos sobre o pescoço.
Sob o capuz, retido por uma coroa de resina negra, seus olhos brilhavam com um fulgor mais
suave que o desses planetas azules que brilham no céu. Empunhando a lança, toda rodeada por
um fio de prata, e cintilante como uma espada, ele marchava lentamente com a graça de um
infante e a gravidade de um homem, só falando a ponto, e nunca jamais rindo-se. Quando
voltava do campo, trazendo os cordeiros recém-nascidos nas pregas de sua tânica, e enquanto
que as ovelhas o seguiam balindo, a esfregarem a cabeça em sua mão, os pastores, seus
companheiros, paravam para vê-lo passar, e dir-se-ia, contemplando-o, ser ele José adorado pelas
onze estrelas. À tarde, no poço comum, quando com uma força acima da dos de sua idade ele
levantava a pesada pedra, e abeberava os rebanhos, as mulheres, esquecendo-se de encher os
cântaros, diziam: É belo como era o pai”; e os homens acrescentavam: “e será bravo como ele.”
(1) – Xeque ou Sheik, vem do árabe shaykh, que significa “ancião”, pode ser usado por qualquer pessoa com alguma
autoridade religiosa. Líderes de ordem, diretores de universidade, chefes de tribo e ulemás podem ser considerados xeques. O
respeito e a autoridade religiosa do cargo são grandes fatores de status em países muçulmanos.
(2) – A Mesquita de “el-Azhar”, conhecida como a “mesquita do mais resplandecente”. É uma mesquita egípcia no Cairo
islâmico. O califa Al-Mu'izz li-Din Allah, do califado fatimida encomendou sua construção, em 970, para a recentemente
estabelecida capital. Seu nome é geralmente pensado para aludir a Fátima, filha do profeta Maomé, uma figura venerada no Islã,
que recebeu o título Az-Zahrā, “a brilhante ou a resplandecente”. Foi a primeira mesquita estabelecida no Cairo, uma cidade que
desde então ganhou o apelido de “A Cidade dos Mil Minaretes”. A mesquita foi orientada por 35 estudiosos em 989 e hoje ela é a
segunda mais antiga universidade em atividade no mundo, após a de Al Karaouine em Umayyad Fes. A Universidade de Al-
Azhar, integrada dentro da mesquita, tem sido considerada como a principal instituição para o estudo da teologia sunita e da
sharia, ou lei islâmica, no mundo islâmico. A universidade.
(3) – O primeiro capítulo do Alcorão, e a oração habitual no muçulmanismo
(4) – Corão, XXIX, 40;
(5) – Corão, XII, 22;
(6) – Corão, IV, 71, 72;
(7) – A ilha de Serendib fica situada exatamente sobre a linha equinocial. Por isso, lá as noites têm sempre a mesma
duração dos dias, ou seja, doze horas. O Sri Lanka era conhecido dos gregos e dos romanos, que o chamavam de Taprobana
Depois da conquista do Oriente Médio pelos árabes, mercadores frequentemente visitavam a ilha, e existia uma comunidade
árabe no Sri Lanka desde o século X. Os árabes conheciam a ilha como Serendib.
(8) – Corão, VI, 74, 78;
(9) – A rainha de Sabá foi, na Torá, no Antigo e no Novo Testamento, no Alcorão, na história da Etiópia e do Iémen, uma
célebre soberana do antigo Reino de Sabá, à época, o reino mais poderoso da Arábia. A localização deste reino pode ter incluído
os atuais territórios da Etiópia e do Iémen. Conhecida entre os povos etíopes como “Makeda”, recebeu diferentes nomes ao longo
dos tempos. Para Salomão, rei de Israel ela era a “rainha de Sabá”. Na tradição islâmica ela era Balqis ou Bilqis. Flavius
Josephus, historiador romano de origem judaica, a chamou de “Nicaula”. Acredita-se que tenha vivido no século X a.C. Ela pode
ter sido uma descendente ancestral dos hamitas ou dos semitas. - Os primeiros pais da Igreja, Orígenes e Jerônimo escreveram
que ela foi uma rainha preta africana, também foi citada pelo escritor judeu Flavius Josephus. Giovanni Boccaccio, em sua obra
“De mulieribus claris”, como Josephus, chama a rainha de Sabá de “Nicaula” e afirma que, além da Etiópia e do Egito, ela era
também rainha da Arábia, e que tinha um palácio luxuoso numa “ilha muito grande” chamada Meroé, localizada em algum lugar
próximo do rio Nilo.
(10) - Na tradição islâmica, Al Rakim era o cão que guardava os lendários Sete dormentes e que permaneceu com eles
durante seu longo sono. No entanto, Al Rakim tem sido alternadamente identificado como o nome da localização da caverna dos
Sete Dormentes, ou o nome de uma “placa de latão”, localizada na caverna, nomeando os dormentes.
(11) – Saleh é considerado um profeta da antiga Arábia, mencionado no Corão. Segundo a tradição islâmica, Salé nasceu
nove gerações após Noé e o dilúvio. Viveu em uma região entre a Palestina e o Hijaz (Arábia Saudita) provavelmente na antiga
cidade de Petra, na atual Jordânia. Ele profetizou à tribo de Thamud. As pessoas desta tribo viviam em casas talhadas na rocha e
esculpiam estátuas em pedra que idolatravam. Salé tentou alertar essas pessoas para que retornassem a Deus, mas não o
escutaram, indo contra suas palavras. Então ordenou Deus que Salé desistisse dessas pessoas e as deixasse; após isso um forte
terremoto matou os incrédulos. Esta personagem é semelhante a Chela (Shelakh), da Bíblia hebraica, embora existam diferentes
versões na Torá e na Septuaginta em torno da geração a qual ele pertencia.
A pregação e a profecia de Saleh estão ligadas à famosa história islâmica da She-Camel, que foi o dom dado por Deus ao
povo de Thamud quando desejavam um milagre para confirmar a verdade da mensagem que Saleh pregava.
(12) – Corão, XXI, 85;
(13) – O sorgo, é o principal cereal entre os índios do leste e os árabes.
(14) – Corão, IV, 76, 79.

CAPÍTULO IV – UMA PROVA DE GRATIDÃO

Desde o dia em que Halima conduzira à tenda o herdeiro do rico Mansour, o tempo correra.
Omar tinha quinze anos, e não conhecia ainda o segredo de seu nascimento. Mais de uma vez as
rudes pilhérias de seus companheiros lhe fizeram sentir não ser ele um Bani-amer, e que seu
sangue não era puro como o de Abdallah; mas, conquanto se chamasse Omar o mercadorzinho,
ninguém na tribo sabia de quem era filho o egípcio. Este julgava ser órfão, acolhido pela
bondade de Halima, e destinado a viver no deserto.
Uma tarde em que os dois irmãos voltavam dos campos, ficaram surpreendidos vendo à
porta da tenda camelos ricamente arreados, e à frente destes uma mula coberta por uma bela
manta, segura à mão de um escravo vestido de branco.
– “De onde veio esta mula? perguntou Omar, e quem a trouxe?
– É a mula de teu pai, respondeu o escravo, que tinha pelos traços reconhecido facilmente
o filho de Mansour; nós vimos de Djeddah a buscar-te.
– Quem é meu pai? perguntou o egípcio, comovidíssimo.
Teu pai, replicou o negro, é o opulento Mansour, o sindico dos mercadores de Djeddah, o
sultão (1) dos filhos do Egito. Não entra o ancoradouro, e não sai dos três portos da cidade um só
fardo, grande ou pequeno, que primeiro não lhe seja oferecido, e do qual ele não disponha como
queira. Em Yambo, em Suez, no Cairo teu pai tom numerosos escravos que gerem seus
escritórios; tão grande é sua fortuna que seus servos não no consultam em negócios inferiores a
cem mil piastras.
– Ó meu pai, onde estás? bradou o moço, precipitando-se na tenda, graças a Deus, que me
deu um pai tão digno de meu amor, e, dizendo-o se lançou aos braços de Mansour: com um ardor
que desvaneceu e velho mercador, e fez suspirar Halima.
Na manhã seguinte puseram-se a caminho de Djeddah, com grande mágoa para a beduína,
que não podia separar-se da criança que só ela amara durante tantos anos. “Adeus, meu filho, e
mais caro que meu filho”, dizia-lhe ela, cobrindo-o de lágrimas e carícias. Omar era menos
sensível: deixava sua mãe com a alegria e um cativo que recobra ao mesmo tempo a liberdade e a
fortuna. Abdallah acompanhou o irmão até a cidade; Mansour o exigira. Mostrar ao beduíno
quanto a consideração que se liga ao dinheiro em uma cidade como Djeddah eleva um mercador
acima dos pastores do deserto, fazer-lhe sentir que Halima e ele deveriam dar-se por felizes com
o terem amado e servido Omar durante quinze anos, era para Mansour a melhor forma de
demonstrar-lhe sua gratidão. Só além tumba o rico conhece sua insensatez e vaidade.
Chegado à Djeddah, Omar fez explodir sua alegria: parecia um exilado ao pisar de novo a
terra querida. Tudo o encantava—as ruas estreitas com os casarões de pedra, o porto onde se
descarregavam barricas de açúcar, sacos de café, fardos de algodão. A turba mosqueada que se
dirigia para o bazar – turcos, sírios, gregos, árabes, persas, indianos, negros de todas as nuances
judeus, peregrinos, dervixes, mendigos, ricos mercadores, montando mulas carapazoadas,
asneiros, conduzindo mulheres envolvidas em grandes mantos negros, e semelhantes a fantasmas
de que se vissem somente os olhos, cameleiros, gritando em meio à turba para abrir caminho,
albaneses de ar audaciosos e provocante, orgulhosos de suas armas damasquinas e de suas fusta
flutuantes, fumadores pacíficos, sentados, cruzadas as pernas, à porta dos cafés, escravos levados
ao mercado: tudo isto para Omar era o paraíso mais belo que já tinha sonhado.
Em uma tal estancia que é que não se poderia comprar e vender?! Em caminho ele
aprendera já com o pai o preço de todas as coisas, e soubera a razão de quanto se pagavam a
integridade do cadi, os escrúpulos dos sheiks, e até a virtude do Paxá.
Ao fundo de uma viela estreita e sombria ficava a habitação de Mansour.
Era um edifício sem importância; da rua se descobria somente uma câmara obscura:
algumas esteiras de junco postas ao longo das paredes caiadas eram seu único ornamento. No
primeiro andar, porém, cuidadosamente fechado, mas provido de janelas rotuladas que
desafiavam o sol e a curiosidade, havia grandes salas guarnecidas de tapetes turcos e de divãs de
veludo bordados a prata.
Não tinham ainda se assentado os viajantes, puseram-lhes em frente um gueridom
cinzelado, coberto de bandejas de geleias de frutas. Enquanto um escravo derramava água de
rosas nas mãos negridas de Abdallah, e lhe dava as enxugar um guardanapo de franjas de ouro,
um outro queimava incenso em frente ao velho Mansour, que à mão impelia a fumaça cheirosa
para a barba e para as vestes. Depois serviu-se o café em pequenas taças da China, colocadas em
salvas de ouro batido; após o café ofereceram-se sorvetes esquisitos, preparados com suco de
violetas ou com sumo de romã extraído através da casca. Enfim três moleques, vestidos de
escarlata e cobertos de pulseiras e colares, acenderam longos cachimbos de jasmim e os
distribuíram pelos convivas. Isto feito, os três amigos assentaram-se na terra, pensativos e
silenciosos.
Fumaram calados muito tempo. Mansour gozava a alegria que seu filho experimentava e a
admiração que supunha dever sentir Abdallah. A atitude de beduíno não mudara; em meio de
todo aquele luxo, ele se mantinha tão grave e tranquilo quanto em meio de seus rebanhos. Que
são as galas do mundo para aquele que espera as recompensas duráveis que Deus reserva aos
crentes?
"Bem, meu filho, disse, enfim, Mansour, dirigindo-se a Abdallah, estás satisfeito com a
viagem?
– Pai, respondeu o moço, agradeço-te a hospitalidade. Teu coração é ainda mais opulento
que teu tesouro.
– Bem, bem! replica o mercador; o que eu te peço é tua opinião sobre Djeddah; apraz-te
ficar conosco?
– Não. Esta cidade é infecta: seu ar é empestado, sua água é corrompida. Que são esses
dervixes vagabundos que expõem a todos os olhos sua imprudência e sua avidez? E esses
soldados, dos quais não se | pode castigar a insolência a golpes, de sabre? E esses escravos que
vivem para tirar-nos o uso das mãos e para espreitar e servir-nos as paixões? Viva o deserto!
Mais valor suas ventanias terríveis que o ambiente quente e pesado desta prisão. Na tenda os
homens são homens: lança em punho cada um faz justiça por si. Repele-se o cão que mendiga
por ser covarde, e se abate o orgulhoso que não sabe respeitar aqueles que lhe são superiores.
Tuas palavras são de ouro, meu filho, diz Mansour, penteando com a mão a longa barba;
um Wahabita (2) não seria mais severo. Eu pensava como tu, quando era criança e recitava as
lições de minha nutriz. Fica conosco algum tempo: faze-te mercador, e verás como a fortuna dá
ao último dos homens a autoridade, a mocidade, a virtude; os poderosos do dia, as mulheres e os
mesmos santos ajoelham-se diante desse metal que desprezas. Mudarás de opinião e gostarás até
do mau cheiro das cidades. É belo viver como a cotovia – livre no espaço; mas, cedo ou tarde, se
é apanhado como ela. O duro (3) é o rei do mundo, e chega um dia em que o mais bravo como o
mais hábil se põe a serviço do mais rico.
Eu sei, respondeu altivamente Abdallah, que a cupidez dos filhos de Adão é insaciável; só a
terra do túmulo lhes enche o ventre, mas no deserto uma onça de honra ainda vale mais que um
quintal de ouro. Auxiliado por Deus, viverei como viveram meus avós. Quem não deseja há de
sempre ser livre. Adeus, pois, Mansour; adeus, meu irmão; hoje nossos caminhos se separam:
possa aquele que tomas conduzir-te ao fim que todo o crente deseja.
– Obrigado, meu irmão, bradou ainda.” e, tomando o filho de Mansour pela cintura, beijou-
o ternamente, sem reter nem ocultar as lágrimas.
Omar recebeu tranquilamente essas provas de amizade, e quando Abdallah, cabisbaixo e de
ar abatido, deixou a casa, voltando-se mais de uma vez: – “Porque, e para que! me deixaste em
casa desse beduíno tanto tempo? Se tu tivesses morrido, e eu me tivesse apresentado a reclamar
tua sucessão, os antigos da cidade teriam dito: “Em toda nossa vida não conhecemos filho nem
filha de Mansour.” e então quem seria teu herdeiro senão o Paxá? Leva-me logo ao bazar,
apresenta-me a todos os mercadores teus amigos, e, sobretudo, associa-me em tua fortuna,
abrindo-me um armazém. Sinto um desejo infinito de lidar com ouro; calculei já na tenda, e sei
como é preciso tratar os homens para ganhar muito, arriscando pouco não te envergonharás de
teu filho.
– Meu filho, bradou Mansour, levantando para o céu as mãos trêmulas, é a sabedoria que
fala por tua boca; mas é tarde para sairmos, e tu não tens ainda a roupa que te convém. Amanhã
iremos ao bazar; amanhã toda Djeddah conhecerá minha felicidade e minha gloria.”
Toda a noite Omar sonhou com ouro e prata; toda a noite Mansour se revolveu no leito sem
poder conciliar o sono, e a ver-se renascido em um filho mais hábil, mais astuto, mais áspero e
mais avaro que ela.
"Ah! dizia em seu entusiasmo, sou o mais feliz dos pais! O dervixe não me iludiu: se Omar
escapar ao perigo que o ameaça, quem pode saber até onde irá a riqueza de minha casa?!”
Insensato! ele esquecia que se o ouro é uma benção para quem o dá, é um veneno para
quem o guarda. Aquele que abriga a avareza no coração abriga nele o inimigo dos homens, e
desgraça a quem escolhe Satã para companheiro!

(1) A palavra sultão vem do árabe sultan, ou “potência”, e é usada por qualquer um que detenha o poder. Os
sultões governavam pequenos reinos que surgiram a partir do século XI, quando o califado começou a se fragmentar.
Desde então, é usado pelos soberanos de todo o mundo islâmico. Hoje em dia, o título é utilizado pelos governantes
de países como Omã e Brunei.
De relativa semelhança e poder estão também os Xás, os Marajás e Rajás. Falando do primeiro, o Xá, cuja
palavra vem do persa xah, e que significa “rei”, e desde o século VI a.C. designa líderes políticos da Pérsia, o atual
Irã. Os governantes continuaram a ser chamados de xá mesmo depois de a região ser invadida pelos árabes no século
VII e o título persistiu, com interrupções, até 1979, quando a revolução iraniana instituiu o governo do aiatolá.
Já os Marajá e os Rajás, deu-se que, quando, no século XII, os muçulmanos invadiram o norte da Índia,
encontraram lá pequenos Estados, chefiados por rajás (do sânscrito rajan, “rei”), reunidos em reinos sob o comando
de marajás (“grandes reis”). Em algumas ocasiões, esses regentes foram depostos e o governo entregue a
muçulmanos, que assumiram os títulos de rajá e marajá. Outros reinos foram mantidos com a condição de que os
nativos pagassem tributos.
(2) – Os Wahabitas também chamados de salafistas ou muwahhid, são seguidores da seita islâmica do
islamismo sunita, geralmente descrito como “ortodoxo”, “ultraconservador”, “extremista”, “austero”,
“fundamentalista” e “puritano”. Seu principal objetivo é restaurar o “culto monoteísta puro”. Sua maior
concentração está na Arábia Saudita. Eles promovem a separação entre homens e mulheres, onde a lei
sharia wahabita e os costumes tribais se somam para produzir uma sociedade ultraconservadora.
(3) – O duro era o nome da moeda espanhola de cinco pesetas, assim como o valor de dita moeda. Cada duro
equivalia a 5 pesetas, entretanto a moeda não existia como tal, mas era somente uma relação com a moeda real, a
peseta. - Ocorreu, a posteriori, a cunhação irregular do chamado “duro sevilhano”, feita à margem da lei e do Banco
da Espanha. Eram moedas falsas. Os duros sevilhanos alcançaram tal fama que chegaram inclusive a ser sinônimo
de falsificação. A única cunhagem da moeda “duro” com valor facial teve lugar em Gerona em 1808, durante a
Guerra da Independência.

CAPÍTULO V – O NOVO SALOMÃO

No dia seguinte, ao amanhecer, Mansour levou o filho ao banho, e o fez vestir-se como
convinha à sua nova posição. Uma túnica de seda, listrada em cores vivas, ajustada ao corpo por
um cinto de caxemira, um largo cafetã do estofo mais delicado e mais fino, um barrete branco
bordado, envolvido num turbante de musselina: tal foi o traje elegante preparado pelo mais hábil
alfaiate de Djeddah.
Com essas vestes, as feições do egípcio pareciam mais feras, e sua tez mais negra que de
costume; o alfaiate pensou diversamente, e, não se cansando de louvar a boa graça de Omar,
deplorava as senhoras da cidade que lhe vissem com indiferença o rosto, a seu ver mais belo que
a lua em seu décimo quarto dia.
Quando nada mais restou do beduíno da véspera no jovem egípcio, foi servido o almoço;
depois, ouvidas algumas recomendações do velho Mansour, Omar, montando uma mula, e
colocando-se modestamente após seu pai, tomou com este o caminho do bazar.
O egípcio levou o filho a uma 1oja estreita, como todas as outras dos mercados, mas cheia
de objetos preciosos. Xales da Índia, cetins e brocado (1) da China, tapetes de Bassorah, (2)
iatagãs (3) em bainhas de prata cinzeladas, cachimbos guarnecidos se âmbar e ornadas de rubis,
colares de sequins e pérolas: tudo que seduz as mulheres e arruína os homens se achava nesse
armazém de perdição. Em frente à loja havia um estrado de pedra; Mansour se assentou num
coxim o acendeu o cachimbo; Omar pegou do rosário, e, sem olhar para a multidão, se pôs a
dizer suas preces. Esse jovem tinha a prudência de um velho.
Quando perceberam o síndico, os mercadores se levantaram e vieram recitar-lhe o Fát-hát,
e dar-lhe o bom dia. Cada qual atentava com surpresa no recém vindo, e perguntava em voz
baixa ao vizinho quem era aquele estranho... Seria um parente do egípcio? Seria um escravo
ricamente vestido para atrair a freguesia?
Mansour chamou o sheik em alta voz e, mostrando-lhe Omar:
– “Apresento-te meu filho, meu sócio e meu sucessor.”
– Teu filho! – disse o sheik. – Quem jamais ouviu dizer que o rico Mansour tivesse um
herdeiro?
– Eu quis iludir o mau olhado, replicou o velho; e para isso fiz educar meu filho em
segredo e longe de mim. Desejava fazê-lo conhecer somente quando ele pudesse ter a barba em
mão; mas, vou fazendo-me velho, a impaciência tomou-me, e hoje, com vossa permissão,
estabeleço-o no bazar para que ele aprenda convosco a arte de comprar e vender.
– Mansour é sempre sábio, responderam os mercadores – e cada um mais pressurosamente
felicitou o feliz pai de um tal filho. – Que o senhor, diziam eles, conserve a haste e o amo!”
Em meio desses votos que deleitavam o orgulho do egípcio, o sheik tomou a palavra:
“Entre nós outros, isso ele, quando nos nasce um filho ainda o que é pobre convida seus irmãos a
regozijar-se cem ele; acaso esqueceste-nos?
– Honrai-me esta tarde com vossa visita, respondeu o velho, vós sereis bem recebidos.”
Uma hora depois, um mensageiro, sobraçando um grande bouquet, fazia a volta do bazar,
oferecia uma flor a cada mercador, e lhe dizia: “Recita o Fát-hát pelo Profeta, e quando o
mercador acabava sua prece: Esta tarde, acrescentava ele, vai à casa de Mansour, a tomar aí uma
taça de café.”
– Mansour é o senhor dos homens generosos, respondia o convidado; com o auxílio de
Deus, à tarde iremos visitar o síndico.
À hora marcada, o egípcio e seu filho receberam os mercadores no pequeno jardim, onde
os esperava um festim esplêndido. Cordeiros recheados de amêndoas e pistaches, arroz ao
açafrão, molhos a creme apimentada, geleias de rosas, pastelarias de toda espécie, nada fora
poupado para honrar hóspedes de tanta consideração.
Pela primeira vez, Mansour quis que os pobres participassem em sua alegria, e mandou
dar-lhes à porta os restos do banquete e pequena moedas de prata; foi o bastante para encher a
rua de gritos e bênçãos, e para levar aos extremos de Djeddah os nomes do generoso Omar e do
rico Mansour.
Servido o café, e acesos os cachimbos o sheik tornou Omar pela mão, o disse aos
mercadores: “Eis o filho de nosso amigo; ele deseja entrar em nossa honrosa companhia. Eu peço
a cada um de vós que recite o Fát-hát pelo Profeta.”
Enquanto os negociantes diziam três vezes essa prece, o sheik atou um chale à cintura de
Omar, dando-lhe um nó depois de caria Fát-hát.
Terminada esta cerimônia o moço beijou a mão do sheik e dos mercadores, começando a
fazê-lo pela do mais velho. Seus olhos brilhavam de satisfação: era mercador em Djeddah, era
rico, o mundo se abria à sua frente.
O resto da tarde passou-se em conversações sobre negócios; Omar não dizia urna palavra;
ouvia os antigos, e estes não se cansavam de falar com um jovem que os encantava com tanta
atenção e respeito. Diziam-lhe que um bom vendedor deve pedir sempre quatro vezes o preço do
que lhe compram, e não perder jamais o sangue frio, que é o segredo do negócio. Comerciar é
pescar à isca: é preciso atrair o freguês, e depois dar-lhe linha até que enfim, fatigado, não saiba
mais defender-se. Brincar com um rosário, oferecer o café ou o cachimbo, falar de coisas
indiferentes, não fazer uma contração no rosto, e todavia inflamar o desejo na altura do
comprador, é uma arte difícil que se não aprende de uma vez. “Mas, acrescentavam, acariciando
Omar, tu estás em boa escola: não há armênio que ultrapasse nessa arte o sábio Mansour.”
– O comércio é somente isso? dizia consigo mesmo o moço; então, não tenho necessidade
desses senhores. Só pensar em si, mas pensar sempre, servir as paixões ou as fraquezas d’outrem
para subtrair a insensatos a riqueza que os desvaira, eu sei fazê-lo; naturalmente: não fiz outra;
outra coisa no deserto; meus mestres serão bem hábeis se antes de seis meses não lhes der eu
uma lição.
Alguns dias depois Mansour compareceu perante o cadi por um processo que o inquietava
pouco. Uma conversa em particular com o juiz lhe dava alguma confiança em seu direito. O
velho fizera-se acompanhar pelo filho, afim de o habituar desde logo a lidar com a justiça. O
tribunal se reunia no pátio de uma mesquita; o cadi, gordo e de boa aparência, não pensava em
coisa alguma, e tampouco falava; essa abstração e esse silêncio juntos ao seu grande turbante e
ao seu ar sempre admirado, davam-lhe uma grande reputação de gravidade e justiça. A audiência
era numerosa; os principais mercadores, sentados em tapetes, faziam um meio círculo em fronte
ao magistrado; Mansour tomou lugar a pouca distância do sheik. Entre estes se colocara Omar,
curiosíssimo de ver como se obedece à lei, e como, sendo necessário, se brinca com ela.
A primeira causa tratada foi a de um jovem baniano, (4) de tez alaranjada, de cinta larga e
andar efeminado.
Era um recém-chegado da índia, que se queixava de ter sido enganado por um rival de
Mansour.
– Em Délhi, no espólio de meu pai, dizia o moço, achei um pequeno cofre cheio de
diamantes, e parti, depois, para o Egito com a esperança de poder aí viver na opulência, mediante
a venda dessas joias. Obrigado pelo mau tempo a arribar em Djeddah, os gozos retiveram-me na
cidade, e em pouco tempo tive necessidade de dinheiro. Asseguraram-me que, se eu quisesse
desfazer-me dos diamantes, poderia vendê-los bem aqui. Fui ao bazar, pedi que me indicassem
um comprador de pedras preciosas. O mais rico, informaram-me, é Mansour, o mais sério é Ali,
o joalheiro. Preferi este, e ele, logo que soube o fim de minha visita, me acolheu como se eu fora
seu filho. Não querendo tratar do negócio no bazar, levou-me à sua casa, e, captando-me a
confiança por atenção de toda ordem, adiantou-me o dinheiro que lhe pedi. Ao fim de um jantar
em que não fui sóbrio, Ali fez vir o cofre, e, tendo examinado um a um os diamantes que ele
continha, disse-me com fingida piedade: “Meu filho, na Arábia e no Egito essas pedras pouco
valem; as rochas do deserto fornecem-nas aos milhares, eu tenho grandes cofres cheios delas.”
E, para provar o que me dizia, abriu um escrínio, tirou dele um diamante maior que
qualquer dos meus, e o deu de presente ao escravo que me acompanhava. Que vai ser de mim!
bradei eu... Não tenho outra fortuna, pensava ser rico, e eis-me pobre, sozinho e longe de minha
família e de meu país.
– “Meu filho, disse-me então o pérfido Ali, desde que te vi tomei-me de amizade por ti.
Um muçulmano não abandona seus amigos na adversidade. Deixa-me esse cofre, e por favor dar-
te-ei por ele um preço que ninguém dar-te-á. Escolhe o que quiseres em Djeddah, ouro, prata ou
coral; em duas horas comprometo-me a dar-te peso por peso o que tiveres escolhido em troca de
tuas pedras indianas.”
– Voltando à casa, refleti, pedi conselho e não demorei era certificar-me que Ali me
escarnecera. O que ele dera ao escravo era um cristal; os diamantes são mais raros em Djeddah
que na Índia, e valem dez vezes seu peso om ouro. Reclamei meu cofre; Ali recusa-se a restituir-
me-o. Venerável juiz, minha única esperança é tua justiça.
Toma a ti a causa de um estrangeiro, e possa o traidor que me arruinava beber água
fervente durante a eternidade.”
Chegando-lhe a vez de falar, Ali disse dirigindo-se ao cadi: “Ilustre servo de Deus, a única
verdade que há em tudo quanto acaba de dizer esse moço é que fizemos um negócio; estou
pronto a cumprir o que prometi. Que tem o presente que fiz ao escravo? Um homem sensato só
pode ver no que fiz um ato de amabilidade. Forcei, acaso, esse estrangeiro a entregar-me suas
joias? É culpa minha se a necessidade de dinheiro o fez aceitar minhas condições? Por que, pois,
me acusa ele de perfídia? Sou eu que falto à minha palavra? É ele que mantém a sua?
– Moço, disse o cadi, tens testemunhas que deponham, afirmando ter Ali te enganado no
preço de tua mercadoria? Se as não tens, deferirei o juramento ao acusado. Assim o exige a lei.”
Trouxe-se o Alcorão; Ali pôs a mão direita sobre o livro sagrado, disse por três vezes: “Em
nome de Deus o Grande, e pela palavra de Deus, contida neste livro, não enganei este
estrangeiro. Afirmo-o hoje, acrescentou, como o afirmarei no dia do juízo, quando Deus for o
cadi e os anjos as testemunhas.”
– Desgraçado! exclamou o baniano, tu és daqueles cujos passos levam ao abismo. Tu
perdes tua alma...
– Pode ser que sim, diz o sheik em voz baixa a Omar, mas Ali ganhou uma grande fortuna,
pois é um hábil velhaco.
– Sim; nada ele tem de tolo, ponderou Mansour: a parte foi bem enleada.
Omar sorriu, e enquanto Ali gozava o sucesso de sua fraude, aproximou-se do estrangeiro
desfeito em lagrimas, e lhe disso:
“Queres que eu te faça ganhar a causa?” !
– Sim, bradou o Indiano; confunde esse miserável, e pede-me em seguida o que quiseres.
Mas tu és ainda uma criança e nada podes.
– Peço-te somente que tenhas confiança em mim, respondeu o Egípcio; aceita a proposta
de Ali, e deixa-me escolher em teu lugar. Nada temas.
– Que posso eu ainda temer, tendo tudo perdido? murmurou o estrangeiro, e baixou a
cabeça como o homem que perdeu toda esperança.
Todavia, voltando à frente do cadi, e inclinando-se com respeito, disse: “Ó meu mostre e
senhor, teu escravo vem implorar-te um último favor: que a transação se faça, pois que a lei
assim o exige; permite, porém, que Omar escolha em meu lugar o que Ali deve pagar-me.”
Fez-se um grande silencio na assembleia quando Omar, depois de saudar o cadi, disse:
“Ali, sem dúvida trouxeste o cofre das joias; podes dizer-nos o peso que ele tem?”
– Ei-lo, responde o mercador; pesa vinte libras, e eu o repito: podes escolher o que
quiseres. Se a coisa escolhida existir em Djeddah, tu a terás dentro de duas horas, ou ficará sem
efeito o negócio. Sabe-se que minha palavra é sagrada, e que eu nunca faltei a ela.
– Bem; disse Omar. O que eu escolho são asas de formigas, metade machos e metade
fêmeas. Tens duas horas para entregares as vinte libras que prometeste.
—Isto é ridículo! bradou o joalheiro; isto é impossível! Ser-me-iam necessários dez
homens e seis meses de trabalho para satisfazer essa insensata exigência. É escarnecer a justiça,
trazer para aqui esse capricho de criança.
– Há formigas aladas em Djeddah? perguntou o cadi.
– Sem dúvida, responderam, rindo, os mercadores: São a praga do Egito; fervilham em
nossas casas; seria um grande serviço livrarem-nos delas.
– Então, replica o juiz, é preciso que Ali ou cumpra sua palavra ou restitua o cofre. Esse
moço foi louco, vendendo seus diamantes peso por peso, e tornou a ser louco agora, exigindo um
tal pagamento. Tanto melhor para Ali foi a primeira, quanto pior para ele foi essa segunda
loucura. A justiça não tem dois pesos e duas medidas. Todo o compromisso subsiste perante a lei:
ou Ali fornece vinte libras de asas de formigas ou restitui o cofre ao baniano.
– Foi sabiamente julgado, bradou o auditório, maravilhado por tanta equidade. O
estrangeiro, fora de si, abraçou Omar, chamando-lhe seu salvador e seu amo, e não ficou nisto:
tirou do cofre três diamantes da melhor água, do tamanho de ovos de rouxinol, e os deu a Omar.
Este beijou respeitosamente a mão do baniano, e voltou a sentar-se junto a seu pai, sem que os
olhares dos circunstantes lhe perturbassem a gravidade.
“Muito bem, meu filho, disse-lhe Mansour. Ali, porém, é um noviço, e se não tivesse
esquecido o cadi, teria ganho a causa. Agora a minha vez, e aproveita a lição que te vou dar”.
– Para aí, disse o mercador ao Indiano que levava os diamantes; nós temos uma conta a
liquidar. Peço ao ilustre cadi que retenha ainda por algum tempo esse cofre; talvez haja aqui
pessoas com direito maior a ele que esse moço e que o prudente Ali.
Houve uma surpresa geral na assembleia, e cada qual escutou mais atentamente o novo
pleiteante.
“Anteontem, disse, Mansour, uma dama velada veio à minha loja no bazar, e pediu para ver
colares; nada do que lhe mostrei a satisfez; mas, no momento de sair, descobrindo a um canto
uma caixa fechada, pediu-me que a abrisse. Essa caixa continha um adereço de topázios, do qual
não podia eu dispor, por estar vendido ao Paxá do Egito. Eu o disse à dama; ela, porém, insistiu
para que eu ao menos lhe mostrasse esse presente destinado à sultana. Desejo de mulher é coisa
difícil de ser iludido. Ha, diz-se, três obstinações invencíveis: a dos príncipes, a das crianças e a
das mulheres.
Tive a fraqueza de ceder; a desconhecida viu o adereço, experimentou-o, e me declarou
que o queria a todo custo. À minha recusa, ela saiu cumulando-me de ameaças e maldições. Uma
hora depois, esse moço entrou-me a loja, e me disse que a vida daquela dama e a sua estavam
ligadas ao adereço. Suplicou, beijou-me as mãos, chorou, e me declarou, por fim: “Pai, pede-me
tudo o quanto quiseres, mas essa joia, dá-m’a ou eu morro.” Sou fraco para com os moços; e,
apesar de conhecer bem quanto é perigoso contrariar o Paxá, meu senhor, dei, não obstante, a
este jovem o adereço, fazendo-o prometer que me daria em troca tudo que aprouvesse exigir
lhe.” Minha própria cabeça, se quiseres, porque me salvas a vida,” disse-me ele.
Tratamos sem testemunhas, acrescentou Mansour; mas, não é verdade que as coisas se
passaram assim? Perguntou ao baniano.
Sim, respondeu o moço; e desculpa-me de já satisfiz meu compromisso, pois tu sabes a
causa. Agora que, graças a teu filho, readquiri minha fortuna, pede-me o que quiseres.
– O que eu quero, disse Mansour, fazendo um sinal com a cabeça ao cadi, que fitava
fixamente o olhar na sombra de uma palmeira; o que eu quero é esse cofre com todos os seus
diamantes. Não é muito para um homem que, desobedecendo ao Paxá, arriscou a vida. Ilustre
Magistrado, V. Excia disse: – todo compromisso é valido perante a lei. Esse moço prometeu dar-
me o que eu quisesse, eu declaro: a única coisa que me agrada são esses diamantes.
O cadi levantou a cabeça, e fitou o auditório como a interrogar todos os semblantes;
depois, alisando a barba, recaiu em sua meditação.
“Ali foi batido, disse o Sheik sorrindo a Omar. Está, porém, por nascer ainda raposa mais
fina que o respeitável Mansour.”
– Estou perdido! clamou o baniano. Omar tu me salvaste somente para lançar-me depois de
mais alto ao abismo. Consegue que teu pai me poupe; dever-te-ei duas vezes a vida.
– Eis ai, meu filho, disso Mansour, tu és hábil, mas o que acabas de ver e ouvir ensinar-te-á
que teu pai é um pouco mais sabido que tu. O cadi vai proferir a sentença; tenta agora ditar-lh’a.
– Isso será um brinquedo de criança, respondeu Omar, levantando os ombros, e pois que o
desejas, meu pai, tua causa está perdida. Disse, levantou-se, tirou do cinto uma piastra, deu-a ao
baniano, e, indo com esta à frente do juiz:
– Ilustre cadi, alegou, este moço está pronto a satisfazer seu compromisso, e eis o que, para
isso, oferece ele a Mansour – uma piastra. (5) Em si, a moeda é de pouco valor, mas repara bem
que está marcada com a cifra do Sultão, nosso glorioso Senhor. (Que Deus esmague e confunda,
todos quantos desobedecerem a Sua Alteza!)
Esta cifra preciosa é o que nós te oferecemos, acrescentou ele, dirigindo-se a Mansour;
satisfaze-te com ela, estás pago; ousas dizer que não, fazes um insulto ao Imperador, cometes um
crime que arrasta à morte.
Com certeza não será nosso respeitável cadi quem se fará teu cúmplice, ele que foi sempre
será ainda o fiel servidor de todos os sultões.
Quando Omar acabou de falar, todos os olhares dirigiram-se ao cadi, que estava mais
impenetrável que nunca, a passar a mão pelos lábios, esperando que o velho fosse em seu
auxilio: Mansour estava comovido e embaraçado.
O silencio do cadi e do auditório metia-lhe medo; o mercador volveu para o filho os olhos
suplicantes...
“Meu pai, disse Omar, permite a este moço agradecer-te a lição de prudência que lhe
acabas de dar, amedrontando-o um pouco; ele compreende perfeitamente que foste tu que me
mandaste em seu auxilio, e que tudo isso não passa de uma farsa.
Todos o suspeitaram desde que viram o filho pleitear contra o pai. Quem jamais pôs em
dúvida a experiência e a generosidade de Mansour?
– Ninguém, interrompeu o cadi, que parecia um homem acordado em sobressalto, e eu
menos que ninguém; por isso te deixei falar, jovem Salomão. Quis honrar em ti a sabedoria de
teu pai, mas de outra vez evita falar no nome de Sua Alteza; não se brinca com a garra do leão. O
negócio está liquidado. Teu colar vale cem mil piastras, não é Mansour? São, pois, cem mil
piastras que esse jovem estouvado te deve dar, e ficaremos todos satisfeitos.
Apesar de sua modéstia, Omar não pode subtrair-se ao reconhecimento do leste Indiano o
aos encômios dos mercadores. O estrangeiro quis dar-lhe o cofre, e não foi possível impedir-lhe
pegar à brida da mula montada por Omar e acompanhar até a casa aquele que ele chamava o
mais generoso e o mais sábio dos homens. Por seu lado os colegas não cessavam do felicitar
Mansour, e ainda hoje se fala em Djeddah da audiência célebre em que se manifestou a sabedoria
daquele a quem o profundo cadi tão bem chamava novo Salomão.
Uma vez chegados à casa, Mansour desabafou: “Não te compreendo, meu filho, disse ele;
tenho em mão uma fortuna, e és tu que m’a extorques! É assim que entendes de negócios? É
assim que me respeitas?
– Paciência, meu pai, replicou friamente Omar. Hoje fiz minha prova de prudência e
probidade. Fiz uma reputação, uma fama que perdurará; produzi uma primeira impressão que
nunca mais se extinguirá. A boa nomeada é um valor insubstituível, um capital que vale mil
vezes mais que teus diamantes. Todo mundo desconfia do hábil Mansour; toda gente, porém
fiará, como o fez esse estrangeiro, da honestidade e da integridade de Omar. A isca está lançada;
venham os peixes!
Mansour ficou perplexo. Desejara um filho digno dele; começava a recear que Éblis tivesse
ido além de seu desejo. Sem dúvida ele admirava Omar; tanto cálculo em uma tão pouca idade
era para entusiasmar um homem que vivera a calcular. Mas, seria preciso dizê-lo, para sua
vergonha? essa experiência precoce lhe gelava o coração, e, para tudo confessar, esse sábio de
quinze anos o espantava.
(1) – Brocado é um tipo de tecido ricamente decorado, feitos em seda colorida, e com relevos bordados
geralmente a ouro ou prata.
(2) – Baçorá, Al-Bashat ou Bassora é uma das três maiores cidades do Iraque, entre o Kuwait e o Irã e é onde
se encontra o principal porto do país. Situa-se a 55 km do Golfo Pérsico e a 545 km da capital Bagdá. A cidade foi
fundada em 636 como um acampamento militar para os exército do Califa Omar. Após derrotar as forças sassânidas,
o comandante muçulmano acampou no local, originando um assentamento persa, destruído pelos árabes. A cidade
tornou-se um centro comercial florescente até a sua ocupação pelo Império Otomano, quando sua importância
declinou. – Segundo narram as lendas foi dali que Sinbad, o marujo, embarcou rumo à promessa de encontrar o
“Jardim do Éden”.
(3) – Iatagã ou atagã é um sabre curto, cuja lâmina descreve uma curva em dois sentidos diferentes. Utilizado
pelos muçulmanos para execuções ou em combate, o tamanho varia mas geralmente tem o comprimento total de 71
cm sendo o comprimento da baioneta de 69 cm e o comprimento da lâmina 57 cm.
(4) – “Bania” (Baniya, Vani e Vania), advém do sânscrito vaṇij ou baṇij, que significa “comerciante”, ou
comerciantes, banqueiros, agiotas, negociantes de grãos e especiarias. Este termo é usado em um sentido mais amplo
em Bengala em outras partes da Índia refere-se a uma casta específica. Num sentido mais amplo, o termo
“Comerciantes de banyan”, faz referência aos comerciantes indianos que são claramente distinguidos de outro, por
suas roupas, suas escolhas religiosas e culturais, e pela maneira em que conduzem o comércio.
(5) – Uma piastra equivale a mais ou menos dois pences ou uma peseta.

CAPÍTULO VI – A VIRTUDE RECOMPENSADA

Nada faltou à felicidade de Mansour; nos cinco anos que ainda viveu o mercador gozou
completamente os sucessos de seu filho. Viu todo seu comércio passar-lhe ás mãos; a riqueza de
sua casa tornou-se enorme, como sempre, a consideração pública cresceu em razão da riqueza.
Omar não poderia deixar de ser bem sucedido; tinha tudo por si: muito dinheiro, poucas paixões
e nenhuns escrúpulos.
Nunca nem outro como nele se reuniram os sentimentos que levam ao êxito os negócios: o
amor ao ouro e o desprezo pelos homens.
Mansour podia, pois, morrer em paz; vivera muito tempo, a moléstia poupara-lhe a velhice,
seus sonhos tinham-se realizado: deixaria após si um herdeiro que guardaria e aumentaria sua
fortuna penosamente acumulada. Todavia, assegura-se que ele morreu enfurecido, clamando que
ninguém o amava, maldizendo sua insensatez, e tremendo a vista de seus tesouros, como se o
ouro, aquecido já ao fogo do inferno lhe queimasse o peito e a fronte.
Foi perfeitamente resignado que Omar o viu morrer; os negócios tinham-no afastado do
leito de moribundo, os negócios consolaram-no; sua coragem era admirável: a vista de uma só
piastra estancava-lhe o pranto e afogava-lhe o desgosto.
Só, com uma tão bela herança, seus desejos não tiveram limites. Nada escapava às suas
combinações; dir-se-ia que ele, retirado em sua casa, como aranha ao fundo de sua teia, atraia por
fios invisíveis todas riquezas do mundo. Arroz e açúcares da Índia, gomas e cafés do Iêmen,
marfim, ouro em pó, escravas da Abissínia, trigos do Egito, tecidos da Síria, navios e caravanas,
tudo chegava à ordem de Omar. Ademais, nunca um outro homem acolhera a fortuna com tanta
modéstia. Tocado com pequeno turbante, vestindo velhos hábitos, ao vê-lo passar na rua, os
olhos baixos, a desfiar um rosário de contas de madeira, ninguém lhe daria o haver de mil
piastras. Em sua conversação nada traia o homem rico; familiar com os pequenos, simples mas
teimoso com os confrades, lisonjeiro com aqueles de quem esperava qualquer coisa, Omar era
respeitoso para com todos que o podiam prejudicar. A acreditar-lhe os protestos, enganava-se
muito quem o supunha dono de uma grande fortuna; todas aquelas mercadorias não lhe
pertenciam: eram consignações de correspondentes estrangeiros que depositavam confiança nele;
essa confiança, porém, custava-lhe caro; o mercador queixava-se sem cessar de ter perdido
dinheiro.
Se ele comprava os melhores escravos, os mais ricos perfumes, os mais esquisitos tabacos
e as telas mais raras e preciosas, fazia-o, dizia sempre, por conta de algum Paxá ou de algum
negociante estrangeiro. Dizia-se, entretanto, em voz baixa que tudo aquilo lhe pertencia (quem
pode reter a língua dos homens?), mas, ao certo, não se sabia nada. Omar não tinha um só amigo,
fazia todos os negócios no bazar, e em casa não recebia ninguém. Era ele pobre ou rico, discreto
ou egoísta, humilde ou hipócrita? Só o diabo o sabia.
Sua prudência não era inferior à nua modéstia. A começar no Paxá e ao terminar no guarda
da Alfândega, não havia em Djeddah um funcionário de alta ou baixa categoria, de quem Omar
não conhecesse o porta-cachimbo, o cavalariço ou o escravo favorito. Não lhe aprazia dar; em
sua boca estava sempre a santa máxima do Alcorão que ensina serem os pródigos irmãos de Satã;
ele, porém, sabia abrir a mão a propósito, e ninguém jamais se arrependera do ter prestado um
serviço a esse homem de bem.
Os Paxás passavam céleres em Djeddah: o Turco tem a mão pesada: os mais ricos muitas
vezes tinham que pagar resgate. Só o filho de Mansour escapava a essas extorsões que se não
reembolsavam mais nunca. Ao fim de oito dias, de uma forma ou de outra, ele era o amigo, dizia-
se mesmo o banqueiro do novo governador; a tempestade que o ameaçara estava sempre sobre
outras cabeças.
E assim se constituíra Omar num objeto de admiração e inveja para seus colegas.
Chegou, porém, o dia de sua estrela obscurecer-se. O governo revocara à Constantinopla
um Paxá que fizera em três meses uma fortuna de forma demasiado visível; seu sucessor tivera
ordem do ser honesto, para ser agradável aos europeus, dos quais por desgraça então se
precisava. Apesar de Turco, o novo Paxá sabia como uma alta autoridade de torna agradável. No
dia seguinte ao de sua chegada, disfarçou-se, e foi fazer provisões em casa do padeiro e do
magarefe de mais importância de Djeddah. O fiscal do mercado fora prevenido, e ficara na rua
com suas balanças e seus agentes. Diante do povo foi pesado o que o Paxá comprara: faltavam
duas onças em doze libras de pão e uma onça num grande quarto de carneiro. O crime era
flagrante; a justiça não se fez esperar. O Paxá cobriu de censuras e injurias os miseráveis que
enriqueciam com o suor do povo, e, em sua legítima cólera, não quis sequer ouvir-lhes a defesa.
Fê-los despir, amarrar e fustigar à sua vista; depois, à sua ordem, o padeiro foi pregado pela
orelha à porta da loja, e o magarefe, ligado a uma janela da grande mesquita, teve o nariz
traspassado por um fio de ferro em uma de cujas extremidades estava pendurada a onça de carne
roubada.
Não há ultraje que a multidão não infligisse a esses desgraçados, mas por toda a cidade
Deus foi glorificado, e só se chamava o Paxá o amigo do povo, o grande justiceiro, o novo
Harum-al-Raschid. (1) A narrativa desse feito virtuoso, depois de rejubilar o Sultão, foi até ao
ocidente para confundir e desesperar os infiéis.
Na tarde desse mesmo dia muitos mercadores fretaram um navio para o Egito, alegando
terem sabido de repente ser-lhes a presença necessária no Cairo. Omar, em vez de amedrontar-se,
sorriu em sua barba. “A virtude, pensava ele, é mercadoria sem curso no mercado; por isso
quando se precisa dela, é necessário pagá-la caro;” e, pensando-o, foi para o bazar. Em sua loja
encontrou por acaso o secretário do Paxá, fê-lo assentar perto de si, e, por descuido, deu-lhe a
fumar num certo cachimbo destinado ao Sultão.
“É sempre um erro fazer justiça ao povo, dizia Omar ao secretário; uma vez mal habituado,
torna-se exigente, e isto é a morte dos grandes negócios.” O secretário mirava seu belo
cachimbo, e achava que Omar era um homem sensato.
Ai! o Egípcio tinha toda a razão. Na feira seguinte houve agitação na cidade: o preço do
trigo subira dez piastras em ardeb (2), e malévolos disseram ser a culpa de Omar, que o havia
monopolizado. A multidão comovera-se; dois homens mais que os outros falavam com
veemência: eram o padeiro que ficara sem uma orelha, e o magarefe de nariz furado.
Os ladrões da véspera mudavam-se em heróis, e eram explorados como vítimas; quanto
mais gritavam tanto mais eram admirados por sua virtude.
Da palavra a ação popular há apenas um passo. Tentava-se já arrombar a casa do egípcio,
quando o chefe de polícia, rodeado por soldados, o veio buscar para levá-lo à presença do Paxá.
Omar recebeu o oficial com uma emoção fácil de compreender-se, e lhe beijou a mão tão
demoradamente como se lhe não fosse possível desprender dela seus lábios; o chefe de polícia
retirou-a, porém, tão depressa quanto pode, e a mergulhou no cinto como se o beijo de um
delinquente a tivesse maculado. Todavia nem houve injúrias nem maus tratos para o filho de
Mansour, e isso com grande pesar do povo que ama a justiça e gosta de ver esmagar-se um
acusado, sobretudo quando ele é rico; ao contrário, mais de uma vez o oficial induziu o preso a
contar com a equidade do governador.
"O que está escrito está escrito,” respondia Omar, desfiando seu rosário conta a conta.
As portas do palácio estavam abertas; a multidão precipitou-se no pátio onde o Paxá dava
audiência, grave, impassível, calmando com a mão as paixões agitadas.
Chamados os acusadores, que eram o padeiro e o magarefe, o governador ordenou-lhes que
falassem sem medo: Justiça a todos, disse ele em alta vez, é meu dever. Rico ou pobre, nenhum
ladrão achará piedade em mim.”
"Deus é grande, e o Paxá é justo”, clamou a multidão. Quatro mercadores, trêmulos de
pavor, beijaram o Alcorão, e juraram que Omar lhes tinha comprado todo o trigo vindo do Egito.
À morte! à morte!” gritava a multidão. O Paxá fez sinal de que ouviria o acusado; fez-se o
silêncio.
“Ó meu mestre e senhor, bradou Omar, prostrando-se, vosso escravo põe sua cabeça em
vossas mãos. Deus ama aqueles que perdoam; quanto mais humilde é o criminoso tanto mais
belo é não esmagá-lo. O próprio Salomão poupou a formiga. É verdade que comprei alguns
carregamentos de trigo em Djeddah, como pôde faze-lo qualquer honesto mercador; mas, exceto
meus inimigos, todo mundo sabe que esta compra foi feita a conta do sultão, nosso senhor. Este
trigo é destinado ás tropas colocadas por V. S. na estrada de Meca a protegerem os peregrinos;
foi pelo menos o que me disse o secretário de V. S., quando me adiantou o dinheiro, que um
pobre homem como eu não poderia de vez desembolsar.
Que meu senhor me perdoe não ter eu enviado já os cinco mil alqueires de trigo que me
encomendou; o chefe do palácio dirá a V. S. que só a força me impediu de fazê-lo.
– Que cinco mil alqueires de trigo? disse o Paxá com voz terrível.
– Perdão, senhor, replicou Omar, muito comovido; estou tão perturbado que me é difícil
bem recordar-me. Foram, creio, sete mil o quinhentos alqueires, acrescentou, fitando o rosto
enrugado do Paxá, se é que não foram dez mil.
– Foram quinze mil, disse o secretário, apresentando um papel ao Governador. Eis a ordem
dada a este homem, ordem escrita do meu punho, e que tem o selo de V. S.
– E os fundos necessários foram adiantados a este mercador? perguntou o Paxá com a voz
suavizada.
– Sim, Excelência, respondeu Omar, saudando de novo. O chefe de polícia aqui presente
transmitiu-me esta ordem, e o secretario de V. S. me adiantou ontem as
– Porque se fez então tanto barulho? bradou o Paxá, fitando olhares ferozes nos acusadores
consternados. É assim que se respeita o Sultão, meu senhor? Quer-se que os soldados que
protegem a santa peregrinação morram de fome no deserto? Prendei esses patifes, e que se
apliquem a cada trinta bastonadas. Justiça a todos; nenhuma piedade para os caluniadores.
Acusar um inocente é tirar-lhe mais que a vida.
– Bem julgado, gritou o auditório; o Paxá tem razão.
Proferida a sentença, o magarefe foi agarrado por soldados que não receavam fazer justiça
em causa própria. Passaram os pés do paciente por uma corda de nós corredios, ligada a uma
tranca de madeira, depois um dos Arnautas, ornado de um bastão, lhe bateu com toda a força a
sola dos pés. O magarefe era um bravo a seu modo; contou em alta voz um a um os golpes
recebidos, e, terminado o suplício, subiu sem lastimar-se, levado aos braços dos amigos,
lançando a Omar olhares furiosos.
O homem de uma orelha só era menos resoluto; cada vez que o tocavam ele clamava um –
Alá! que cortava os corações. A meio do castigo, Omar beijou a terra diante do Paxá, e lhe pediu
o perdão para o culpado. Graciosamente atendido, o mercador não ficou somente nisso, ele pôs
visivelmente um duro na mão do ferido, e declarou que lhe restavam ainda cento e cinquenta
alqueires de trigo, que daria de presente aos pobres. Omar voltou à casa coberto das bênçãos
daqueles mesmos que uma hora antes queriam despedaçá-lo. Louvores e ameaças o mercador
recebeu tudo com a mesma humildade ou a mesma indiferença. “Deus seja louvado! disse ele,
recolhendo-se, o Paxá fez a causa um pouco forte, mas agora é meu.”
Tranquilizado a este respeito, o filho de Mansour reencetou suas combinações. Graças a ele
Djeddah enriqueceria diariamente.
Uma manhã, acordando, os traficantes de escravos souberam com satisfação que o preço de
sua mercadoria dobrava; por desgraça, eles tinham vendido todos os escravos na véspera; a
ordens vindas do Egito, Omar comprara-os todos. No mês seguinte aconteceu o mesmo com o
arroz, depois com o tabaco, com a cera, com o café, com o açúcar e com outros gêneros.
Tudo subia de preço, mas eram sempre os comitentes de Omar os que aproveitavam com
estas altas súbitas. Djeddah tornou-se um mercado opulento, sua riqueza era tão grande que as
famílias pobres já a não podiam habitar, e só os hábeis aí faziam fortuna comprando as boas
graças do egípcio.
Este, assentado todos dias ao balcão, e mais que nunca agradável e dulçoroso para com
aqueles de quem precisava, passava as horas a contar nas contas do seu rosário os milhões de
piastras que acumulava. “Por mais desprezado que eu seja, pensava ele, sou o senhor dos
homens, e se me for preciso o auxílio do Sultão para o êxito de meus negócios, tenho bastante
ouro para comprar o Sultão e ainda o serralho.”
Mas não se é rico impunemente.
A fortuna não se esconde mais que o fumo. Apesar de toda sua humildade, Omar recebeu
um convite do grande xarife de Meca para ir a Taifa prestar-lhe um serviço que só ele, dizia-se,
poderia prestar ao descendente do Profeta.
O mercador foi menos sensível à honra que lhe era feita do que ao pavor que o assaltou
pela ignorância da natureza do serviço que lhe poderia ser pedido. “O rico, pensava ele, tem duas
espécies de inimigos: os pobres e os poderosos. Os primeiros são como as formigas: grão a grão
esvaziam a casa; os segundos são como os leões, estes reis dos ladrões: de um golpe só das
garras nos esfolam. Mas com paciência e manha é mais fácil desembaraçarmo-nos dos leões que
das formigas. Saibamos o que deseja o xarife; se ele quer me enganar, não serei seu ludibrio: se
ele pagar, trabalharei por seu ouro.”
Foi com este respeito pelo chefe dos crentes que Omar se pôs a caminho de Taifa. A vista
do deserto deu logo outro curso a suas ideias, as tendas, os bosques de palmeiras dispersos no
areal ai lembraram-lhe sua infância, e pela primeira vez a recordação do seu irmão Abdallah lhe
veio à memória. “Quem sabe pensou o mercador, se não tenho necessidade dele?”

(1) Harum-al-Raschid (Hārūn al-Rashīd, “Aarão, o Justo” ou “Aarão, o Bem-guiado”), foi o quinto califa
abássida, reinando entre 786 e 809. Ele foi o fundador da lendária biblioteca chamada de “Casa da Sabedoria. Como
fruto de seu reinado encontra-se o famoso livro “As Mil e uma Noites” que contém muitas histórias fantásticas sobre
a corte de Harun e sobre o próprio califa. Sob Hārūn al-Rashīd Bagdá floresceu e se tornou uma das mais
esplêndidas cidades do mundo. Muitos governantes pagavam tributo ao califa e estes fundos eram utilizados em
obras arquitetônicas, nas artes e para sustentar a vida na corte. - Em sua antologia de poemas, Abu al-Faraj al-
Isfahani a vida de luxo que se levava na corte do califa. Por causa dos contos das "Mil e uma Noites", Hārūn al-
Rashīd e se tornou uma figura lendária e teve a sua personalidade histórica obscurecida.
(2) Mais ou menos cinco alqueires. Aproximadamente cinco fanegas (medida para cereais equivalente a 100
kg).

CAPÍTULO VII – BARSIM

Enquanto o filho de Mansour se abandonava à cobiça, como se a morte não existisse,


Abdallah crescia em piedade, em sabedoria e em virtude, Adotara a profissão de seu pai, e fazia
caravanas entre Yambo, Medina e Meca. Ardente como o poldro que corre, soltando a crina ao
vento, prudente como uma barba grisalha, ganhara a confiança dos mercadores mais importantes.
Apesar de sua juventude era ele o recomendado aos peregrinos, quando no mês sagrado os
crentes acorriam de todas as partes do mundo para fazer sete vezes a volta ao redor da santa
Caaba, acampar no monte Arafat e sacrificar no vale da Mina. Estas viagens tinham seus perigos:
mais de uma vez o moço beduíno arriscara a vida para proteger aqueles que tomava à sua guarda;
mas tão bem se havia batido nesses lances que em todo o caminho começavam a temê-lo e a
respeitá-lo.
O velho Hafiz não deixava seu discípulo; por mais estropiado que estivesse, o antigo
soldado não era inútil. Por toda parte onde há homens acham-se corações resolutos e bravos
destemidos; nem sempre, porém, se acham um amigo fiel e um prudente conselheiro.
Essa vida feita de repouso e alarmas, de paz e perigos sorria ao filho de Yussuf. Viver como
bravo, e morrer como soldado sendo preciso, qual vivera seu pai, era a única ambição de
Abdallah. Seu pensamento não ia além disto; entretanto, havia uma nuvem nessa alma serena.
Halima falara do dervixe, e o filho do deserto pensava sempre nessa planta misteriosa – o trevo
de quatro folhas, que dava a felicidade e a virtude.
Hafiz, o primeiro a quem Abdallah confiou sua preocupação, viu tão somente nesse
cuidado uma sedução satânica.
“Para que te atormentares? repetia ele ao moço.
No Alcorão Deus nos diz e como devemos ser-lhe agradável, e Deus não tem duas
vontades: façamos o que ele ordena, e não nos inquietemos com o resto. Ele não tem
necessidade de nós outros para levar as coisas ao fim.”
Estas palavras, porém, não apaziguavam a curiosidade de Abdallah. Hafiz lhe tinha
contado tantas maravilhas de que este não duvidava!
Por que, pois, não existiria aquele talismã? Porque não poderia obtê-lo um crente?
“Nós outros, homens da tenda, pensava o Beduíno, não passávamos de uns ignorantes;
quem me impede interrogar os peregrinos?
Deus semeou a verdade em toda a terra; quem sabe se algum hadja do Oriente ou do
Ocidente não conheça o segredo do que eu procuro? Não foi ao acaso que o dervixe respondeu à
minha mãe; com o auxílio de Deus acharei o reto caminho.”
Um dia o Beduíno conduzia à Meca uma caravana de peregrinos vindos do Egito, a cuja
frente se achava um médico que falava muito, ria sem cessar e não duvidava de nada.
Era, dizia-se, um Europeu que abjurara o erro para entrar a serviço do Paxá; Abdallah
resolveu interrogá-lo.
Passando por um prado, colheu um trevo em flor, e, apresentando-se ao estrangeiro, lhe
perguntou: “Em teu país conheces esta planta?”
– Sem dúvida, respondeu o médico; é a que chamais barsim e nós trifolium. É o trevo de
Alexandria família das leguminosas, de cálice tubular e folhas divididas em três segmentos em
folíolos, algumas vezes em quatro e até em cinco, exceções que são, com nós dizemos, monstros.
– Em teu país não há pois trevos que tenham sempre quatro folhas?
– Não, meu jovem sábio; nem em meu país nem em parte alguma. Porque o perguntas?
Quando o estrangeiro recebeu a confidência de Abdallah se pôs a rir. “Criança, disse-lhe
então, o dervixe escarneceu da boa Halima. Ela lhe pedira o impossível, foi o impossível o que
ele lhe prometeu.”
– Por que Deus não criaria um trevo de quatro folhas, se acaso o quisesse? perguntou o
Beduíno a quem o sorriso desdenhoso do estrangeiro suscetibilizara.
– Porque, jovem? Porque em um dado momento a terra produziu todas as plantas, em
virtude de uma força germinativa que se exauriu. Desde o tempo de Salomão que não há nada de
novo sob o sol.
“E se Deus quiser fazer um milagre?” interrompeu Hafiz, que se tinha aproximado dos
viajantes. “Acaso Deus também se exauriu?” Aquele que no espaço de dois dias tirou do fumo os
sete céus e as sete terras, e os colocou à distância de quinhentas jornadas um do outro; aquele
que deu ordem à noite para envolver o dia, e semeou por toda a parte a vida, não poderá juntar
um fio de erva nova aos milhões de plantas por ele criadas para a nutrição e o gozo dos homens?
– Com certeza, respondeu o médico em tom zombeteiro, sou muito bom muçulmano para
admitir o contrário. Deus poderia até enviar-me um raio para acender meu cachimbo que acaba
de apagar-se; mas, Deus não no quer; ao contrário, ele quer que para, isso eu te peça um isqueiro;
e, dizendo-o, o estrangeiro se pôs a encher o cachimbo e a assobiar uma ária estranha.
– Malditos sejam os ímpios, bradou o coxo. Vem, meu filho, deixa esse incréu, cujo hálito
mata. Foi para punir nossos pecados que Deus deu aos Europeus a ciência que faz a forca deles,
mas foi também para castigar esses cães e mais depressa os lançar no abismo da perdição que
Deus o fez. Insensatos! para negar Deus servem-se dos sinais de sua onipotência e do perpétuo
milagre de sua bondade! Vai, infiel, acrescentou, levantando as mãos para o céu como se
quisesse chamar o raio à cabeça do renegado: vai, ingrato, que volta as costas ao Senhor! Deus
vê o fundo de tua alma, tu morrerá em desespero, e teu elemento eterno será a árvore do inferno
com seus frutos amargos e seus espinhos envenenados.” —
À retaguarda da caravana vinha um persa encanecido, tocado com um alto barrete de pele
de carneiro negro: era o mais pobre e o mais desdenhado por ser do um povo herético. O ancião
parecia não se incomodar nem com a idade, nem com a pobreza nem com a solidão. Não falava a
ninguém, comia pouco e fumava o dia inteiro. Empoleirado num magro camelo, passava todo o
tempo a repassar as noventa e nove contas de seu rosário, levantando para o céu a cabeça trêmula
a murmurar palavras misteriosas. A brandura e a piedade do pobre homem comoveram Abdallah.
Muito jovem ainda para odiar quem quer que fosse, foi junto ao herético que o filho de Yussuf
procurou um refúgio contra o blasfemo.
O rosto animado e os olhos brilhantes do jovem guia impressionaram bem o dervixe, e foi
com um sorriso amável que ele o provocou à confidência que adivinhara.
“Meu filho, disse-lhe, Deus te dê o espírito de Platão, a ciência de Aristóteles, a estrela de
Alexandre o e a felicidade de Cosroës!
– Meu pai, disse o moço, dizes bem, é de ciência que eu preciso; não da ciência de um
pagão, mas da ciência de um verdadeiro muçulmano a quem a fé abre o tesouro da verdade.
– Fala, pois, replicou o velho; talvez possa servir-te. A verdade é como a pérola: somente a
possui quem mergulhou ao fundo da vida, e ensanguentou as mãos nos escolhos do tempo. O que
procuras, talvez eu o tenha achado. Quem sabe se não poderei dar-te essa luz que desejas e que já
não serve aos meus olhos extintos?”
Seduzido por tanta bondade, Abdallah se abriu com o dervixe, que o escutou em silêncio.
Terminada a confidência, o velho, como única resposta tirou ao tapete em que vinha sentado um
floco de lã branca, e o lançou ao vento; depois agitando-se como um homem ébrio, e fitando
Abdallah de forma estranha, improvisou estes versos:

Nobre cipreste esbelto,


Flor de escura corola,
Jovem de olhos mas negros
Que noite triste e sozinha.
Vê esse velo branco
Que leve o ar arroja?
Assim passam os dias,
E passam e não tornam.

Menos logo de ornamentos


Despe a rosa;
A chuva, menos logo
A leve areia molha;
Que da vida passam
Prazeres e naufraga;
Passam como os sonhos
Passaram à aurora.

Tão só Deus é grande!


Se quiser que suas obras
Os anjos conservem
Perpétua em sua memória,
Refreia as paixões
Que são mortal peçonha,
E limpo às alturas
Seu espírito remonta.

O corpo é para a alma


Prisão humilde e tosca
De luz de amor em busca;
Ditoso o que a rompa;
Ditoso o que a Deus sobe
E em seu esplendor se entusiasma,
E pode queimar sua alma
De amor em luz ignota.

“Tuas palavras me escaldam, disse Abdallah, mas não me respondeste.


– Que?! meu filho, bradou o místico, não me compreendeste? O trevo de quatro folhas não
existe na terra, é necessário procurá-lo além. O trevo de quatro folhas é um emblema. É o
inefável, o infinito! Queres possui-lo? Dir-te-ei o que é preciso fazer para isto. Sufoca teus
sentidos, torna-te cego, mudo, surdo; deserta a cidade da existência, sê como um viajante no
reino do nada, abisma-te no êxtase, e quando nada mais fizer bater teu coração, quando tiveres
posto à fronte a gloriosa coroa da morte, então, meu filho, tu acharás o eterno amor e te
difundirás nele como uma gota de água caída na imensidade dos mares.
Ali é que está a vida. Quando nada existia, o amor existia; quando tudo desaparecer, o
amor perdurará. O amor é o primeiro e o último, Deus é o homem, o criador e a criatura, a
cumeada e o abismo: é tudo.
– Velho, disse o Beduíno, aterrorizado, a idade enfraqueceu-te a razão, e não sabes que
blasfemas. Só Deus existia antes do mundo, só ele perdurará quando, caindo, os céus arrasarem a
terra. Ele é que é o primeiro e o último, o visível e o oculto; ele é que é o poderoso e o sábio que
conhece e pode tudo.” (1)
O ancião não ouvia nada; dir-se-ia que estava a sonhar; seus lábios se agitavam, seus olhos
fixos não olhavam, uma visão arrastava para longe da terra essa vítima dos enganos de Satã.
Abdallah voltou tristemente para perto de Hafiz, e lhe narrou sua nova decepção.
“Meu filho, disse-lhe o coxo, foge desses insensatos que se embriagam com os próprios
sonhos, como outros se embriagam com o fumo do ópio ou do cânhamo. São auto idólatras.
Pobres loucos! é o olho que cria a luz, é o espirito do homem que cria a verdade?
Desgraçado de quem tira ao cérebro um mundo mais leve e mais vazio que a bolha do sabão!
Desgraçado de quem instala o homem no trono de Deus! Desde que se entra na cidade dos
sonhos, está-se perdido: Deus se apaga, a fé se evapora, a vontade se extingue, a alma sufoca; é o
reino das trevas e da morte.”

(1) – Corão, LVII, 1-4

CAPÍTULO VIII – O HEBREU

A mocidade é a qualidade do desejo e da esperança. Apesar de seu mau êxito, Abdallah não
deixava de interrogar os peregrinos que levava À Meca, contando sempre com um momento
feliz: não obstante, a Pérsia, a Síria, o Egito, a Turquia, a Índia emudeciam: ninguém desses
países ouvira falar do trevo de quatro folhas.
Hafiz condenava-lhe a curiosidade, julgando-a reprovável; Halima consolava o filho,
fazendo-o crer que ela também esperava ainda.
Um dia em que, retirado à tenda, Abdallah, mais triste que nunca, perguntava a si mesmo
se não fazia bem em deixar a tribo e ir longe procurar o talismã que lhe fugia, um hebreu entrou
o aduar a pedir hospitalidade. Era um velhinho; andrajoso, tão magro que a cintura parecia
dividi-lo em dois. Apoiado a um bastão, arrastava lentamente os pés envolvidos em trapos
ensanguentados, e de vez em quando levantava a cabeça, olhando em volta de si como a pedir
piedade. Fronte amarela e rugada, pálpebras escarlates, lábios finos a cobrirem mal, gengivas
desdentadas, barba intensa a cair-lhe sobre o peito, tudo em sua pessoa respirava o sofrimento e a
miséria. O estrangeiro lobrigou Abdallah, e estendendo para ele as mãos trêmulas, murmurou
com voz extinta:
“Ó senhor da tenda, um convidado de Deus"
Absorvido em seus pensamentos o filho de Yussuf nada ouvia. Já por três vezes o velho
renovara sua prece, quando por desgraça volveu a cabeça para uma tenda vizinha, onde uma
negra aleitava uma criança.
À vista do judeu, a mulher escondeu o recém-nascido a preserva-lo do mau olhado, e,
saindo, gritou ao peregrino: “Vai-te lapidado! Vens trazer-nos a desgraça? Deus te amaldiçoe
tantas vezes quantos são os fios de tua barba!”
Dizendo-o, a negra chamou os cães e os estumou contra o mísero. Este tentou fugir, mas
seus pés se embaraçaram na túnica, e ele caiu, dando gritos lamentosos, demasiado fraco para
repelir os inimigos que o despedaçavam.
Aos gritos do velho espertou Abdallah. Correr-lhe em socorro, castigar os cães, ameaçar a
escrava, foi para ele obra de um instante.
O moço levantou o mendigo, tomou-o aos braços e o levou à tenda. Momentos depois,
lavava lhe as mãos e os pés, e curava-lhe as feridas enquanto Halima lhe trazia tâmaras e leite.
“Meu filho, dizia o velho, chorando, deixa-me abençoar-te a benção do mais humilde dos
homens nunca é pequena aos olhos do Senhor. Que Deus te dê a sabedoria, a paciência e a paz;
que ele afaste de ti a inveja, a tristeza e o orgulho.”
A tarde, reunidos durante uma refeição frugal, Hafiz, Abdallah e o hebreu conversaram
muito tempo, conquanto o velho soldado não pudesse ocultar sua prevenção contra o filho do
Israel. Abdallah, ao contrário não, escutava o velhinho com interesse, porque ele falava do suas
viagens a toda parte. Conhecia a Arábia e a Pérsia, visitara os países da Europa e atravessara os
desertos da África, e vinha de Jerusalém pelo Sudão para voltar a Jerusalém pela Síria.
“E o que eu procurei, meu caro hospede, dizia ele, não foi a riqueza; mais de uma vez eu a
vi, esperando-me, à beira da estrada, e segui meu caminho. A pobreza, dizem nossos sábios,
assenta ao filho de Abrahão como o arnês rubro ao cavalo branco. O que eu busquei durante
cinquenta anos, através dos areais e dos mares, das fadigas e misérias foi a palavra de Deus, foi a
tradição sagrada. A palavra não escrita que o Senhor deu a Moisés no monte do Sinai, Moisés a
confiou a Josué, Josué a transmitiu aos setenta anciãos, estes aos profetas, os profetas à
Sinagoga; depois da ruína de Jerusalém, nossos mestres a recolheram no Talmud, (1) mas quanto
lhes falta ainda para a terem completa? Para punir as faltas do nossos pais, Deus espedaçou a
verdade, e arremessou-lhe os estilhaços aos quatro ventos.
Feliz quem pode reunir esses fragmentos; feliz quem pode desvelar um raio de esplendor
divino! A esse, os filhos do século podem desdenhar ou odiar; suas injúrias são para a alma dele
o que as tempestades são para a terra: devastando-a, elas a refrigeram e a fecundam.
– E vós, meu pai, acaso sois esse ente feliz? perguntou Abdallah, tão impressionado pelas
palavras do velho que esquecera estar falando a um infiel; descobriste esse tesouro, possuis toda
a verdade?
– Eu não sou mais do que um verme da terra, disse o hebreu; mas desde a infância
interroguei os mestres, e lhes pedi que me desvendassem os segredos da Lei; procurei na Cabala
riquezas que o mundo não ama, e quis conhecer a linguagem dos números, a qual dá a chave de
toda a verdade. Até onde cheguei Deus o sabe; e a ele pertence o louvor. Uma coisa é certa: o
anjo Razriel (2) iniciou Adão nos mistérios da criação; esta revelação perdeu-se? Quem ousaria
assegura-lo? Se há um homem que tenha erguido uma ponta do véu, esse nada mais tem a
esperar nem a temer da terra: teve seu dia, pode morrer.
– Meu pai, perguntou o moço Beduíno, vossa ciência fala de uma erva santa que dá ao
mesmo tempo a sabedoria e a felicidade?
– Sem dúvida, respondeu o velho sorrindo, há no Zohar (3) referências a ela e outras
maravilhas.
– E essa planta é o trevo de quatro folhas?
– Talvez, replicou o judeu, franzindo o sobrolho; como tiveste conhecimento desse nome?”
Quando o filho de Yussuf acabou de narrar ao estrangeiro o episódio que se passara entre
Halima e o dervixe em Djeddah, o velho mirou-o com ternura.
“Meu filho, disse-lhe então, para recompensar a hospitalidade o pobre muitas vezes vale
mais que o rico, pois é Deus que paga pelo pobre e pelo abandonado. O segredo que procuras, eu
o achei outrora nos confins da Pérsia; se Deus conduziu meus passos à tua tenda, foi com certeza
por me haver escolhido para desvendar-te a verdade. Escuta, pois, e grava no coração o que te
vou dizer.
Hafiz e o moço aproximaram-se; o velho em voz baixa e misteriosa lhes contou o seguinte:
“Quando o Senhor expulsou do paraíso Adão, nosso primeiro pai, lhe permitiu levar para a
terra a tamareira que o devia nutrir, e o camelo, que não pode viver sem o homem, por ter sido
formado da mesma argila que ele.
– Isso é verdade, disse o coxo. Os camelos morriam no dia seguinte ao do nascimento, se o
homem os não ensinasse a mamar, e lhes não sustivesse a cabeça; o camelo é feito para o homem
e este para ele.
– Quando a espada flamejante, continuou o velho, impeliu diante dela os primeiros
culpados, Adão lançou um olhar desesperado à mansão que lhe era preciso abandonar, e, para ter
consigo uma última lembrança daquele lugar delicioso, quebrou um ramo de mirto, e o levou. O
anjo deixou-o agir, pois se lembrava ter outrora adorado à ordem de Deus esse mortal que então
lhe fazia piedade.
– É verdade, disse Hafiz. Foi esse mesmo ramo de mirto que Shoaib (Jetro), (3a) muito
tempo depois, deu a Moisés (Musa), seu genro; era o bastão com que o Profeta guardava seus
rebanhos, e com o qual depois fez seus milagres no Egito.
– Eva também, prosseguiu o estrangeiro, contemplava chorando aquelas flores, aquelas
árvores que não deveria tornar a ver, mas a espada era impiedosa: diante da maldição, cumpria
repelir os malditos.
No momento de sair, Eva colheu, passando, uma das ervas do paraíso, e o anjo também
deixou-a fazer. Que erva era? Eva ignorava-o; colhera-a, passando, e fechara logo a mão. Levá-la
assim teria sido prudente; mas, a curiosidade ainda uma vez dominou-a. Antes de franquear o
limiar fatal, nossa mãe abriu a mão a ver que planta levava.
Era a erva mais brilhante do paraíso – o trevo de quatro folhas. Uma dessas folhas era
rubra como o cobre, uma outra, branca como a prata, a terceira, gemada como o ouro, e a última,
radiosa como o diamante.
Eva parava, contemplando seu tesouro, e o anjo, que o percebeu, vibrou-lhe um raio: a
mulher sobressaltou-se, sua mão tremeu, a folha diamantina caiu no paraíso, e as outras, levadas
pelo vento, dispersaram-se na terra.
Onde terão eles caído? É segredo de Deus.
– Que! bradou Abdallah, nunca mais foram vistas?
– Não, que eu saiba, respondeu o velho; e é possível que esta história seja tão somente uma
alegoria que oculte uma profunda verdade.
– Não, não, disse Abdallah, isso não é possível. Interrogue, meu pai, vossas recordações,
talvez elas possam dar-vos novos indícios. A todo custo preciso dessa planta; eu a quero, e, com
o auxílio de Deus, tê-la-ei.”
O velho ocultou a fronte nas mãos, e ficou muito tempo mergulhado em suas evocações;
Abdallah e Hafiz respiravam apenas, temendo perturbar-lhe o recolhimento.
"Foi inútil revolver a memória: nela nada há mais a respeito. Talvez meu livro contenha
mais ensinamentos: dizendo-o, tirou do cinto um manuscrito amarelado, coberto por uma pele
negra e sebenta, e o folheou lentamente, página a página, examinando cuidadosamente
quadrados geométricos, esferas concêntricas, alfabetos entremeados de cifras, começando uns
pelo aleph, e outros pelo thau. – Eis, disse ele, em certo ponto, quatro versos que se recitam no
Sudão, e que talvez nos interessem; sua significação, porém, me escapa:

“Cresce escondida aos humanos olhos


A erva do mistério;
E em vão é que a busques no mundo
Porque habita no céu.”

Paciência! paciência! ponderou o velho a Abdallah, que se agitava; as palavras tem mais de
um sentido: os ignorantes procuram a verdade à superfície, mas os sábios vão buscai-a ao fundo
do abismo, e a apreendem graças ao auxílio do mais poderoso dos instrumentos – a santa década
do Sefiroth. Tu ignoras o que disse um de nossos mestres, o Rabi Halaphta, filho de Dozza? Pois
ouve: (4)

Em vão procura o céu


Nesse azul pavilhão,
Com sua lua, suas estrelas,
E seu deslumbrante sol;
O céu mas luminoso
Pô-lo na alma Deus;
O Paraíso o leva
O justo em seu coração.

– Sim, continuou o hebreu, elevando a voz, entrevejo um clarão que me guia. Se Deus
permitiu que nos encontrássemos, foi sem dúvida porque ele quer satisfazer-te o desejo; guarda-
te, porém, de prevenir-lhe a vontade por uma vã e criminosa curiosidade. Segue sua lei, pratica
seus mandamentos, põe o céu em tua alma, e, talvez um dia em que menos o pensares, aches a
recompensa com que sonhas. Eis tudo quanto minha ciência pode dizer-te.
– Bem dito, velho, disse Hafiz, e pondo a mão ao ombro de Abdallah: – “Meu sobrinho,
acrescentou, Deus é senhor da hora; obedece e espera.”

(1) – Talmud significa estudo) é uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registro das discussões
rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico.
(2) – Raziel ou Galizur é um ophanin, um arcanjo mantedor dos conhecimentos recônditos. Associado à
sefirá chochmá é o responsável por transmitir os conhecimentos do que seria a Cabala. Esses foram passados a Adão
no que se chamou de sefer haRaziel (“livro de Raziel”) ou sefer haRaziel hamalach.
(3) – O Livro do Esplendor é uma obra cabalística.
(3ª) – Jetro, Yitro, Shoaib ("Sua Excelência"); um pastor queneu e sacerdote de Midiã. Reverenciado como
um profeta na religião drusa, e considerado um ancestral dos drusos. É considerado igualmente profeta pelo Islão
mencionado no Corão. Ele é tradicionalmente associado que o acreditam como descendente direto de Abraão, bem
como de Moisés, de quem era padrasto (ou sogro?). Segundo os muçulmanos ele foi designado por Deus para ser um
profeta para os que viviam no leste do monte Sinai, o povo de Madian e Ayka. A população destas terras eram
especialmente conhecidas por enganarem e serem desonestas. Jetro admoestá-los contra tais ações, mas eles não
escutavam. Posteriormente, ambas as terras foram destruídas pela ira de Deus (um terremoto).
Há um túmulo de Jetro na Jordânia, em uma área chamada "Wadi Shoaib". Outro local reconhecido como o
túmulo de Jetro está situado perto do "Chifres de Hattin" na Baixa Galileia. O local é sagrado para o povo Druso.
(4) – O rabino Halaphta filho de Dozza, e neto de Archimaz, nasceu na cidade de Ananiae, ele deixou uma
tradição oral e escrita das coisas sagradas; sobre Deus, sobre os Salmos, sobre o livro de Jó, sobre os sacrifícios dos
mortos, sobre os profetas, etc.

CAPÍTULO IX – AS FONTES DE ZUBAIDA

Abdallah dormiu tranquilamente. Mais de uma vez viu em sonho o trevo misterioso, e ao
amanhecer quis reter o amigo que lhe restituíra a esperança, mas o hebreu recusou
obstinadamente.
“Não, meu filho, lhe dissera este: basta uma noite passada à tenda.
O primeiro dia se é um hóspede, o segundo se é um fardo, o terceiro se é uma peste. Tu não
tens mais nada a perguntar-me; eu nada mais tenho a dizer-te; é, pois, tempo de nos separarmos.
Deixa-me somente agradecer-te ainda uma vez e rogar a Deus por ti. Se já não temos a mesma
keblah (1), somos, não obstante, igualmente filhos de Abrahão, e adoramos o mesmo Deus”.
O mais que pode conseguir o filho de Yussuf foi que o velho montasse em de seus camelos,
e se deixasse acompanhar por ele e por Hafiz à distância de uma jornada. O antigo soldado se
afeiçoara ao hebreu, e Abdallah esperava receber dele algum esclarecimento mais relativo ao
objeto que o preocupava; mas, a vista do deserto espertava no velho outras ideias, e o fazia
esquecer a conversa da véspera.
“Se não me engano, disse ele a Hafiz, vamos encontrar neste caminho os poços outrora
abertos por ordem da sultana Zubaida (2) em sua peregrinação à Meca.
– Sim, respondeu o coxo; foram a recordação deixada nestes lugares por Harun-al-
Raschid; a este Califa, (3) e à sua piedosa esposa devemos nossos mais belos jardins.
– Bendita lembrança, disse o hebreu, e que perdura ainda quando já se esqueceu o que os
homens chamam gloria, isto é, derramamento inútil de sangue, e gastos loucamente feitos.
– Falas como um filho de Israel, replicou Hafiz; um beduíno não pensa da mesma forma
que um filho de mercadores. Para ele a guerra é o que há de mais belo no mundo. Quem não viu
de perto a morte ignora se é homem. É belo ferir quando se está exposto aos ferimentos; e
glorioso abater um inimigo e vingar aqueles que se ama.
Não pensas assim, meu sobrinho?
Tens razão, meu tio; mais, a batalha não é um prazer puro. Lembra-me o dia em que,
cercado por um beduíno que me pusera a pistola à fronte, lhe embebi o sabre no peito: ele caiu,
minha alegria foi violenta, mas curta. Vendo aqueles olhos mortos, aquela boca cheia de sangue
espumante, pensei, a meu pesar, que aquele homem tinha uma mãe, a qual, por mais orgulho que
tivesse por ter dado à luz um bravo, ficaria só e acabrunhada, como ficaria minha mãe se me
matassem... E aquele homem era um muçulmano, isto é, um irmão!
Talvez tenhas razão, acrescentou, dirigindo-se ao hebreu. A guerra é bela, sem dúvida; mas,
combater o deserto, como o fazia o Califa, e forçar a solidão a recuar, derramando por toda a
parte a abundância e a vida, isto é grandioso! Felizes os que viveram ao tempo da boa Zubaida!
Por que não imitar aqueles que admiramos? Perguntou o velho a meia voz, como se
quisesse dirigir-se somente a Abdallah.
– Explica-te disse o jovem beduíno; ou não te compreendo.
– Nem eu, disse Hafiz.
– Vós não me compreendeis porque a mocidade tem os olhos ainda cerrados, e a velhice
cega pelo hábito.
Por que este bosque de acácias neste lugar, quando tudo em volta é estéril? Por que essas
ovelhas pascem ali uma erva quase verde, quando o areal já invadiu tudo? Por que essas aves que
correm entre os rebanhos espicaçam uma terra que ainda germina? Vedes isto todos os dias, e,
porque o vê-los, não lhe prestais atenção. Assim, são feitos os homens: admirariam o sol, se o sol
não lhes aparecesse todas as manhãs.
– Tens razão, disse pensativamente Abdallah; há água sob esta verdura, talvez uma das
fontes de Zubaida.
– Como sabê-lo? Perguntou o coxo.
– Eis aí, respondeu o hebreu, uma pergunta que não formularias se, como eu, tivesses
encanecido sobre o Talmude; escuta o que diz um de nossos mestres, e compreende que toda a
ciência se encerra em nossa lei.
“Com que pareciam as palavras da Lei antes de Salomão? – com o poço, cuja água fresca
ficava tão ao fundo que ninguém a podia beber.
Que fez um homem inteligente? – Juntou fio a fio, ligou corda a corda, e em seguida tirou
água e bebeu. Foi assim que Salomão passou de uma alegoria a outra, e, partindo de um assunto
para o outro, chegou a aprofundar o sentido das palavras da lei.” (4)
– Quem achasse essa fonte, disse o pastor, acharia um tesouro; fica conosco, estrangeiro,
procuraremos juntos; tu nos auxiliarás com tua ciência, e nós te daremos tua parte.
– Não, respondeu o velho. Quem desposa a ciência casa com a pobreza. Há cinquenta anos
vivo muito bem com o estudo, e não quero divorciar-me; a riqueza é uma amante imperiosa, e
exige todo o coração e toda a vida do homem. Deixemo-la aos moços.”
O sol baixava no horizonte; o hebreu desmontou o camelo, agradeceu seus dois
companheiros, abraçou-os com ternura, e, não lhes consentindo ir além, lhes disse: “Não vos
inquieteis comigo; nada há a temer quando se tem a pobreza por bagagem, a velhice por escolta e
Deus por guia.”
Dizendo-lhes ainda uma vez adeus, o hebreu se afundou resolutamente no deserto.
(1) A keblah (al-qībla) significa direção e define o ponto do horizonte para a direção da Caaba em Meca para
onde devem ser dirigidas as orações. Em cada mesquita existe um lugar que indica a direção da qibla
chamado mihrab. Os maometanos o voltam para Meca e os judeus em direção a Jerusalém.
(2) – Zobeida ou Zubaida era neta de Almançor (fundador de Bagdá
(3) – Califa. Quando Maomé faleceu, Abu Bakr, um de seus discípulos, tornou-se o khalifah, termo árabe
para “sucessor”. O termo passou a designar o líder político e religioso de todo o Estado árabe. Foi usado por 45
outros governantes até que, em 1258, uma invasão mongol pôs fim ao califato. O título continuou a existir de forma
simbólica. Os egípcios tiveram um califa até 1517, quando foram conquistados pelos otomanos, que sustentaram o
cargo até 1924. Em 1926, um congresso no Egito tentou nomear um novo califa, mas não conseguiu por falta de
consenso.
E, para auxiliar o Califa no desempenho de suas funções, foi criado o cargo de Vizir, cujo termo vem do
árabe “Wazir” e designa “aquele que ajuda a carregar um peso”. O cargo surgiu no século VIII e indicava o oficial
que fazia a ligação entre o califa e os seus súditos – função parecida com a de um primeiro-ministro. Nos séculos
seguintes, estendeu-se a membros de ministérios, oficiais e governadores. Para distinguir os tipos de vizir, a partir do
século XV os otomanos chamavam o representante do califa de grão-vizir. O título deixou de existir em 1922,
quando uma revolução no Império Otomano deu origem à república da Turquia.
(4) – Midrasch do “Cântico dos Cânticos,” fol. 1

CAPÍTULO X – A FOLHA DE COBRE

Ao beduíno não foi difícil comprar o canto de terra, onde o olhar percuciente do peregrino
hebreu descobrira uma fonte; alguns feddans (1) de areia quase estéril valem pouco no deserto.
Vinte duros outrora dados por Mansour a Halima, e por ela guardados cuidadosamente ao fundo
de um velho móvel, foram demais para satisfazer completamente os desejos de Abdallah. Hafiz,
sempre cauteloso fez saber que iria estabelecer naquele ponto um abrigo para seu rebanho, e,
imediatamente após a compra, o cercou com ramos de forma a ocultar as vistas da obra
misteriosa que ia empreender.
Por toda parte onde há mulheres e crianças, há curiosos e palradores: correu logo o boato
de que Hafiz e seu sobrinho passavam a noite a cavar um tesouro. Ao cair da tarde, quando os
rebanhos eram levantados a desalterar-se, os levianos, percebendo os dois parentes cobertos de
areia, não n’os poupavam. Que era aquilo? Perguntavam uns. Era um chacal que se ocultava no
covil? Era um dervixe que escavava uma célula? Era um velho que preparava sua sepultura? –
Não, respondiam outros. Eram mágicos que abriam uma passagem para o inferno.
– Paciência, diziam alguns, eles chegarão mais depressa talvez do que pensam. E
continuavam os risos e choviam os escárnios. Ainda não se inventou freio que governe o
ignorante e o invejoso.
Durante mais de um mês Abdallah e seu tio cavaram o solo com ardor extremo, mas não
adiantaram; a areia abatia, a noite destruía o trabalho do dia. Halima foi quem primeiro perdeu a
paciência, e acusou seu irmão de ter cedido à loucura de uma criança. Hafiz, aos poucos
desanimado, aceitou as censuras da irmã, e abandonou a empresa. “Deus, dizia ele, me puniu em
minha fraqueza. Foi um grande erro escutar aquele mísero impostor que zombou de nós outros.
Poder-se-ia esperar outra coisa dos eternos inimigos do Profeta e da verdade?”
Abdallah, apesar de ficar sozinho, não se deixou vencer pela má fortuna. “Deus me é
testemunha, repetia ele, que é para meu povo, e não somente para mim que trabalho. Se minha
obra malograr-se, que importa minha fadiga? Se ela tiver bom êxito, que importa o tempo? E
passou um outro mês a sustentar as paredes do poço. Terminado o trabalho, recomeçou a
escavação com dobrada coragem.
A meio de terceiro mês, Hafiz, impelido por Halima, quis tentar um supremo esforço
contra aquela obstinação do sobrinho, esperançado como um louco apesar de seus exemplos de
prudência e resignação. Pregar a Abdallah naquele momento não era coisa fácil: o poço tinha já
trinta côvados, e o obreiro estava no fundo. Hafiz estendeu-se à borda, e, inclinando a cabeça
sobre o abismo gritou:
“Jovem, mais teimoso que uma mula, tu juraste enterrar-te neste poço de maldição?
– Meu tio, respondeu Abdallah, já que estais aí, fazei-me o favor de puxar a corda e
esvaziar o cesto; assim andarei mais depressa.
– Desgraçado, replicou Hafiz em tom em que havia tanta cólera quanta piedade, esqueceste
as lições que te dei em tua infância, e tão pouco me respeitas e à tua mãe que te apraz afligir-nos?
Não te lembras das belas palavras do Alcorão: “Aqueles que se premunem contra a cobiça serão
os bem-aventurados;” acreditas que...
– Pai, meu pai, gritou de repente Abdallah, sinto a humidade da água que sobe... ei-la...
puxai depressa o cesto ou estarei perdido.”
Hafiz lançou-se à corda, e bom lhe foi ser vigoroso, porque, apesar de toda sua energia, o
sobrinho chegou à face da terra sem sentidos e quase afogado. A água em borbotões murmurava
no poço. Abdallah, voltando a si, escutava com transporte esse ruído que subia; Hafiz tinha
lágrimas nos olhos. De chofre o sussurro cessou; o coxo tocou fogo a um punhado de ervas
secas, e o clarão das chamas, a menos de dez pés do solo, refletiu-se numa espécie de espelho de
aço: era uma fonte corrente de água doce.
Abdallah e o tio prostraram-se, e ao levantar-se o último abraçou o sobrinho e lhe pediu
perdão.
Uma hora depois, apesar do calor do dia, os dois beduínos tinham instalado perto da fonte
uma grande roda em vertical, armada de um rosário de vasos de barro. Dois bois faziam-na girar;
a saqiya (2) gemente espalhava a água na erva amarelecida, e dava à terra o frescor da primavera.
À tarde, já ninguém foi ao antigo bebedouro; rebanhos e pastores paravam diante da fonte.
Os zombeteiros da véspera glorificavam Abdallah. “Nós o tínhamos previsto, diziam os velhos. –
Feliz a mãe de um tal filho! Repetiam as mulheres. —Feliz a esposa desse bravo o belo jovem!
Pensavam as moças. – E todos acrescentavam: Bendito seja o servo de Deus, e benditos os filhos
de seus filhos!”
Quando a tribo se reuniu, o filho de Yussuf encheu um cântaro dessa água tão fresca quanto
a do poço de Zemzem, (3) deu-a a beber em primeiro lugar a sua mãe, depois, aos outros, e foi o
último a beber. Ao esvaziar o cântaro, sorvendo o último gole, sentiu alguma coisa fria nos
lábios: era uma pequena lâmina de metal, que a fonte arrastara consigo. “Que é isto, meu tio?
perguntou ele a Hafiz; acaso o cobre se oculta assim no fundo da terra? – Ó meu filho! bradou o
velho, guarda isso, é o mais precioso dos tesouros: Deus te envia o prêmio de tua coragem e
trabalho. Não vês que é uma folha de trevo? A própria terra se entreabre para trazer-te do fundo
de suas entranhas essa erva do paraíso. Tudo é verdadeiro no que nos disse aquele honrado filho
de Israel. Esperança, meu filho, esperança! Louvor a Deus, o incomparável, o onipotente, o
único! Só Deus é grande!
(1) - Um feddan é uma unidade de área. É usado no Egito, no Sudão, na Síria e no Sultanato de Omã. Um
feddan é igual a 4200 metros quadrados (0,42 hectares), é um pouco menor que o nosso Acre. Um feddan é dividido
em 24 kirat (qīrāt) que é igual a 175 metros quadrados. Na Síria, o feddan varia de 2295 a 3443 metros quadrados. -
No árabe clássico feddan que dizer uma junta de bois, considerando a área que poderia ser cultivada por ela em um
determinado momento.
(2) – A Saqiya, sāqīya, sakieh ou roda persa era o nome que recebia a bomba d’àgua, com tração animal
(junta de bois, burros, etc). A saqiya era diferente do “noria” ou de qualquer outro tipo de roda-d’água. Ainda se a
usa na Índia, Egito e outras partes do Oriente Médio, e na Península Ibérica e nas Ilhas Baleares. Ela pode ter sido
inventada no Egito helenístico, na Pérsia ou na Índia e sua finalidade era, principalmente, para a irrigação, mas não
exclusivamente, já que, como demonstra Qusayr Amra, em uma oportunidade, ela fora usada para, pelo menos em
parte, para fornecer água para uma casa de banho real.
(3) - Poço sagrado que se encontra em Meca, dentro do perímetro do templo. Segundo a tradição é a fonte
que o anjo fez brotar no deserto para aplacar a sede de Agar e de Ismael.

CAPÍTULO XI – OS JARDINS DE IREM

Jardins de sombra eterna, irrigados por fontes vivas, ventilados pelos leques das pulseiras,
e onde frutos maduram ao alcance da mão, fazem o paraíso que o livro da verdade promete ao
homem de fé.
Abdallah antegozou esse paraíso na terra. Ao fim de alguns anos nada havia mais belo que
sua plantação – jardim cheio de frescura e paz, encanto do coração. Brancas clematites
enrolavam-se às acácias e oliveiras, sebes de murta cercavam com sua folhagem sempre verde
quadras onde cresciam o milho indiano, a cevada e o melão; uma água fresca correndo por vinte
sanjas banhava o pé das pequenas laranjeiras; as flores se abriam todo o ano, e nas estações
próprias davam em profusão a uva, a banana, o damasco e a romã. Nessa tranquila mansão, da
qual a tristeza não se aproximava, a rosa, o jasmim, a hortelã, o narciso e o absinto pareciam
sorrir, e o suave perfume que exalavam deleitava ainda quando os olhos se fartavam de os
contemplar. Que bosque passa despercebido ao olhar percuciente dos pássaros? De todos os
pontos do céu tinham acorrido esses amigos dos frutos e das flores, e dir-se-ia que eles
conheciam a mão que os nutria. Pela manhã, quando, Abdallah saia de casa para estende o tapete
da prece sobre a erva brilhante de orvalho, as aves o saudavam com gritos alegres; à vista dele, o
torcaz, oculto nas folhas largas da figueira, arrulhava com mais ternura, as abelhas posavam-lhe
na cabeça, as borboletas adejavam-lhe em volta; flores, pássaros, insetos, águas murmurosas,
tudo que parecia agradecer-lhe, tudo lhe elevava a alma para o céu, que lhe dera a abundância e a
paz.
Não fora para si somente que o filho de Halima desejara a riqueza, e essa, que Deus lhe
dera, ele a dividira com os seus, abrindo ao fundo do jardim um tanque profundo, no qual a água
caindo em borbotões conservava toda a frescura durante as canículas do estio. Os pássaros que
voavam nos arredores atraiam as caravanas. “Que água é esta? perguntavam os cameleiros. Há
muitos anos atravessamos o deserto, e nunca vimos esta cisterna. Ter-nos-íamos enganado de
direção? Enchêramos os odres para sete dias, e eis que à terceira jornada encontramos água!
Serão acaso os jardins de Iram (1) que temos a fortuna de ver? Deus perdoou por ventura esse
soberbo que queria construir um paraíso em pleno deserto?”
Halima respondia aos cameleiros: “Não, não são os jardins de Iram nem o palácio do
orgulho; o que vedes é a obra do trabalho e da prece; Deus abençoou meu filho Abdallah”. E o
poço foi chamado o Poço da Bênção.

(1) Conta-se que Shaddād, filho de Ad, que era filho de Shem (Sem) que era filho de Noé, rei da cidade
árabe perdida de “Iram dos Pilares”, conforme mencionado na Sura 89 do Corão, tendo ouvido falar do Paraíso e
seus encantos, empreendeu a construção de um palácio rodeado de jardins, cuja magnificência fosse superior às do
Paraiso propriamente. Uma voz terrível do céu destruiu esse monumento de orgulho, ou melhor, tornou-o invisível.
De acordo com o Alcorão, Iram dos Pilares era uma cidade de adoradores ocultos de ídolos de pedra, que
desafiavam as advertências do profeta Hud. Para puni-los, Deus enviou uma seca. Mas o povo não se arrependeria,
então eles foram destruídos por um vento furioso, do qual apenas Hud e alguns crentes surgiram.
Um certo Ibn Kelabah disse tê-lo visto durante o reinado do Califa Moyawiah. Os jardins de Iram são tão
célebres entre os árabes como a Torre de Babel entre os hebreus.
Conforme narrado no livro das Mil e Uma Noites, no trecho “Noites árabes”, é dito que os irmãos Shaddīd e
Shaddād reinaram, por sua vez, sobre as 1.000 tribos Adite, cada uma constituída por vários milhares de homens.
Dizem que Shaddad brutalmente subjugou toda a Arábia e o Iraque. Muitos escritores árabes falam de uma
expedição de Shaddād que causou a migração cananeia, sua colonização na Síria e a invasão do Egito.

CAPÍTULO XII – OS DOIS IRMÃOS

Três coisas encantam os olhos, diz um provérbio: a água viva, a verdade e a beleza. Halima
sentia bem o que faltava àquele jardim tão verde e tão bem irrigado. Muitas vezes ela repetia ao
filho que um homem não deve deixar extinguir-se o nome de seu pai; Abdallah não na escutava.
Casar-se, ele não pensava nisso, sua alma andava além. Contemplando a toda hora a pequenina
faixa de cobre, o beduíno perguntava a si mesmo por que façanha, por que virtude poderia ele
agradar a Deus, e obter a única coisa que desejava.
No coração do homem não há lugar para duas paixões simultâneas. Uma tarde em que o
velho Hafiz viera em socorro de sua irmã, e usava de toda a sua eloquência para decidir aquele
pedido selvagem a aceitar o freio, ouviram-se ao longe disparos de fuzil, anunciando uma
caravana. Abdallah levantou-se em silêncio para receber os estranhos, deixando Halima aflita, e
o pobre Hafiz desconsolado e confuso.
Voltando logo depois, Abdallah trazia em sua companhia um homem ainda moço, mas já
gordo e pesado.
O estrangeiro saudou os dois irmãos, fitando-os com atenção, depois, fixando os pequenos
olhos no beduíno: “Não é aqui, perguntou, a tribo dos Bani-amers, e não estou eu em casa de
Abdallah, o filho de Yussuf?
– É Abdallah que tem a honra de receber-lhe, respondeu o moço, e tudo quanto há aqui
pertence a v.s.
– Que! bradou o recém-vindo, dez anos do ausência a tal ponto me transformaram que eu
sou um estranho nesta casa? Abdallah esqueceu sou irmão? Minha mãe só tem agora um filho?”
Foi grande a satisfação do mútuo reconhecimento; Abdallah não cansava de abraçar Omar,
Halima dividia-se entre os filhos, Hafiz dizia piara si mesmo que o homem é um péssimo animal.
Suspeitar de ingratidão o filho de Mansour era um crime e esse crime, quantas vezes o velho
pastor não cometera?
Terminada a refeição, e acesos os cachimbos, Omar tomou a palavra apertando ternamente
a mão do beduíno
– “Como sou feliz em ver-te! e tanto mais feliz quanto venho prestar-te um serviço.
Fala, irmão, disso o filho, de Yussuf. Nada tendo a esperar ou a temer senão de Deus,
ignoro o serviço que tu podes prestar-me; muitas vezes, porém, o perigo nos ameaça sem o
sabermos, e então nada substitui o olhar de um amigo.
Não se trata do perigo, mas de fortuna, replicou o filho de Mansour. Eis o que me trouxe
aqui. Chego de Taifa, aonde o grão-xarife me chamara. “Omar, me disse ele, sei que tu és o
mercador mais rico e mais avisado de Djeddah; conhecem-te no deserto; não há uma tribo que
não respeite teu nome, e que à vista de teu selo não se prontifique a fornecer camelos para
transportarem tuas mercadoria, e bravos para as defenderem. Tenho-te em grande estima, e foi
para dar-te uma prova desta distinção que te chamei.”
Inclinei-me com respeito, esperando que o xarife manifestasse sua vontade. Ele cofiou por
muito tempo a barba antes de falar.
"O Paxá do Egito, me disse enfim S. A., como um homem que hesita, o Paxá do Egito, que
preza minha amizade como eu prezo a sua, envia-me uma escrava que deve ser o ornamento de
meu harém, e que, em respeito à mão que a escolheu, não posso receber senão como esposa.
É uma honra que me faz o Paxá, e que eu aceito com reconhecimento, conquanto em
minha idade avançada, tendo eu já uma mulher que amo, fosse talvez mais prudente não arriscar
a paz de minha casa. Essa escrava não está aqui, e é para conduzi-la que tenho necessidade
prudência e de tua habilidade. Ela, não pode desembarcar em Djeddah, onde manda o Turco, é
preciso pois, que ela salte em Yambo, que está em meus domínios. O caminho de Yambo a Taifa
é longo; há no deserto hordas errantes e tribos orgulhosas que, nem sempre, respeitam a minha
autoridade.
Fazer-lhes agora a guerra não me entra nos cálculos, e tampouco me convém expor-me a
receber delas um insulto. Eis-me, pois, necessário um homem sensato e hábil que vá por sua
conta a Yambo. É uma viagem que podes fazer facilmente, e que não surpreenderá a ninguém.
Nada é mais simples que um mercador se pôr à fruto de um carregamento importante, e quem
pensaria em atacar-te, a ti, simples negociante, num país onde contas com tantos recursos e
amigos?” Assim me falou o xarife. Quis recusar-me a esse perigoso favor; o senhor fitou-me um
olhar terrível. A cólera do príncipe é o rugido do leão: irritá-lo é pôr-se a perder. Resignei-me ao
que não podia evitar. “Chefe dos crentes, respondi, é verdade que Deus abençoou meus esforços,
e conto com alguns amigos no deserto. A ti cabe mandar; eu escuto e obedeço”
– Isso é bom, disso Abdallah: há perigos a afrontar, e glórias a obter.
– Foi por ser assim que vim ver-te. A quem cederia eu uma parte nessa nobre empresa
senão a ti, meu irmão, o bravo dos bravos, ao sagaz e prudente Hafiz, e aos vossos audazes
companheiros? Os beduínos da estrada nunca me viram, e só me conhecem de nome; bem
poderia acontecer que em vez de defenderem pilhassem minha caravana, como já têm feito
algumas vezes; quando, porém, tu e os teus estiverem com ela, certamente eles ponderarão na
empresa: é, pois, a ti que compete a direção desse negócio, e a ti que cabe recolher toda a honra
do seu êxito. Vês que te falo com absoluta franqueza: eu não sou mais que um mercador, tu
és um homem de conselho e de ação. No deserto se diz que sou rico, e há quem; deseja meu
dinheiro: isso é antes um embaraço que um auxílio; tu, ao contrário, és respeitado e temido; o
nome do filho de Yussuf é uma força: sua pessoa vale um exército. Sem ti nada posso; contigo
tenho certeza de ser bem sucedido nessa aventura em que jogo a cabeça. Erro, contando contigo?
– Não, disse Abdallah; nós somos os elos de uma só cadeia: desgraça a quem despedaçá-la!
Amanhã partiremos, e aconteça o que acontecer, ter-me-ás junto de ti: o irmão nasceu para o dia
aziago.”

CAPÍTULO XIII – A CARAVANA

À tarde desse mesmo dia tudo estava pronto para a partida; os odres cheios, as provisões
feitas, as cordas do feno contadas, os arreios examinados. Abdallah escolheu os melhores
camelos, os condutores mais conhecidos, e contratou doze moços, bravos companheiros a que
sorriam a fadiga e a guerra. Quem não se sentia orgulhoso de seguir o filho de Yussuf?
Seu olhar impunha respeito, sua palavra dominava o coração. O sabre sempre nu, a mão
sempre aberta, era o mais intrépido dos chefes e o mais terno dos amigos. Perto dele estava-se
tão tranquilo quanto o abutre na nuvem ou a morte em seu túmulo. Por seu lado Hafiz passou a
noite sem dormir. Limpar as espingardas, experimentar a pólvora, fundir balas, afiar os sabres e
os punhais, era trabalho que lhe dava prazer que ele não cedia a ninguém.
Logo que as estrelas entraram a empalidecer, a caravana se pôs em marcha; Abdallah à
frente, perto de Omar, Hafiz à retaguarda, vigiando tudo, com uma palavra a propósito para
censura ou encorajamento. Os camelos seguiam lentamente um após outro, e seus condutores
cantavam.
Em meio da tropa marchava arrogantemente um magnífico dromedário da raça de Omar,
de cabeça esguia. Coberto de ouro e seda e plumas brilhantes levava uma liteira armada em
brocado e veludo: era a equipagem da nova favorita.
Doze cavaleiros montavam excelentes murzelos; aos primeiros clarões do dia faiscavam os
arções de prata das velas, suas armas damasquinas, seus negros albornozes bordados a ouro.
Vinha em seguida a égua de Abdallah, conduzida à mão de um servo; nada mais belo que esse
animal: era a glória da tribo, o desespero e a inveja de todos os beduínos. Chamavam-lhe à
“Hamama”, porque ela era branca, mansa e veloz como essa rainha dos bosques.
Abdallah, vestido como simples cameleiro, e armado de ura longo bastão de ponta de ferro,
marchava a pé, ao lado de Omar, que montava tranquilamente sua mula. Estavam em país amigo,
nada havia a recear, os dois irmãos podiam conversar longamente sobre o passado. Quando o sol
bateu a prumo, quando um ar abrasado enervou os animais e os homens, o filho de Yussuf pôs-se
perto do primeiro guia, e com uma voz grave e lenta cantou um desses hinos do deserto que
suavizam os enfados do caminho.

Deus só é grande! um sopro de seu fôlego


É o Simoom que as areias varre:
A rouca tempestades o acento
De sua voz gigante.
Por isso as areias e as fontes,
Céu e raio e ar,
Repetem em seu canto aos crentes;
Só Deus é grande!

Deus só é grande! por isso a seu mandato


Veem-se as ondas até o céu elevar-se,
E que humilde depois sobre a areia
Límpidas se desfazem.
Por isso as areias e os homens
Os anjos e mares
Repetem prosternados no pó,
Só Deus é grande!
Oh influxo poderoso do nome Divino!

Ao som desses louvores, o mesmo bruto esquecia a fadiga e marchava a passo firme, os
cameleiros levantavam a cabeça, e cada qual se sentia refrigerado como a corrente de uma água
viva. É a força da alma que faz a energia do corpo, e para a alma só há força em Deus.
Assim passou-se o primeiro dia; na manhã seguinte tomaram-se algumas precauções. Hafiz
partiu como batedor, e a caravana continuou a viagem ao levantar da lua. Marchando em
silêncio, os viajantes acamparam mais cedo que na véspera, sem ter visto ninguém. Os dias
seguintes correram igualmente tranquilos, e ao fim da nona parada foram vistos os muros de
Yambo.

CAPÍTULO XIV – KAFUR

A caravana se deteve pouco tempo na cidade. O brigue (@Bergantim de guerra de uso


corrente no início do século XIX. -2 Navio de pequena tonelagem, cuja mastreação é
formada por gurupés e dois mastros de galera.) que trazia a escrava chegara na véspera, e
Omar tinha pressa por ver-se em paz, são e salvo em sua casa, em Djeddah. Após os camelos
descansarem, os viajantes retomaram o caminho do deserto.
Um batel chato, largado do navio, conduzira à terra as duas mulheres, envoltas em largos
mantos de tafetá negro, as quais, à exceção dos olhos tinham as faces cobertas por longos véus
de musselina branca que que lhes cobriam os pés. Omar recebeu às duas estrangeiras inclinando-
se com respeito, uma das quais era a sultana e as conduziu à liteira que as aguardava.
À voz de Abdallah, o dromedário dobrara os joelhos, uma das mulheres subira lentamente
o palanquim e se assentara, com graça, recolhendo as longas pregas de seu manto; com graça não
menor a outra aproximou-se; mas, de repente, despindo o manto e o véu, os enrolou à cabeça do
filho de Mansour como se o quisesse asfixiar; depois, pondo um pé ao pescoço do camelo saltou
à liteira como um gato, e, sem respeito sem respeito às conveniências, fez aos beduínos surpresos
um esgar de macaco, rindo à bandeiras despregadas.
"Kafur, tu deverias ser chicoteada “, dizia a sultana, que a custo continha o riso; mas Kafur
não acreditava nas ameaças de sua senhora. Com a cabeça à portinhola, e as mãos ás ancas, ela
esperava que Omar se desembaraçasse para mostrar-lhe a língua e zombar dele.
Quando o filho do Mansour pôde enfim safar a cabeça, da nuvem de seda que a envolvia, e
furioso fitou a criatura que o ultrajara, ficou muito admirado vendo que os beduínos e até o grave
Abdallah não podiam coibir-se de sorrir; todos levantavam os ombros, o lhe mostravam sua
inimiga.
Era uma criança, uma negrinha da bela feiura. Rosto redondo e largo, olhos pequenos, cuja
córnea mal se vis, nariz achatado, perdido nas faces, de grandes narinas, das quais pendia um
anel de prata que ia abaixo da boca, lábios enormes, dentes brancos como os de um cachorrinho,
o queixo tatuado a tinta azul, eis a graciosa figura de Kafur. Para agravar-lhe a fealdade tinham-
na carregado de joias como um ídolo. Ao alto da cabeça, a pequena tinha um tufo de penas de
papagaio. A lã espessa que lhe cobria a fronte fora dividida em pequenas tranças guarnecidas de
sequins; em suas orelhas, crivadas como peneiras, tinham posto argolas de toda forma e do todo
tamanho; um colar de esmalte azul a cinco voltas brilhava-lhe no peito; sete ou oito braceletes de
coral e filigrana subiam-lhe dos punhos aos cotovelos, enfim em cada artelho puseram-lhe um
enorme disco de prata. Assim se enfeitava Kafur, delicia de sua senhora, a formosa Leila.
Tudo é permitido aos loucos, são os favoritos de Deus: sua alma está no céu, enquanto o
corpo deles se arrasta na terra. À exceção de Omar, que lhe tinha rancor, toda a caravana tomara
amizade à pobre negrinha. Era demasiado visível não ter ela juízo; falava sem cessar, ria por
tudo, e não poupava ninguém; suas palavras não tinham senso.
Por sua vez, o filho de Mansour, curvado sobre a sela, marchava perto da liteira, arrodeado
de seus escravos, fumando lentamente tabaco da Pérsia em cachimbo de jasmim; em certo
momento, tendo um servo carregado demais o cachimbo, ele lhe deu uma bofetada. Kafur
considerou-o muito, e gritou: Senhora: esse velho que atufa os pés em largas chinelas, e se
afunda num coxim, é um persa. Toma cuidado, senhora, por um duro ele nos bateria, por um
sequin ele nos venderia.” Leila pôs-se a rir, e Omar encolerizado ameaçou a pequena... Tratar de
velho e de persa um homem que contava as piastras por milhões não era coisa de quem tivesse
juízo. Uma criatura sensata não ousaria fazê-lo.
Outra vez, foi com Abdallah, que passava revista à caravana. Todos admiravam a graça do
jovem cheio, revestido de seus hábitos de guerra. Seu albornoz branco flutuava em longas
pregas; em seu cinto brilhavam as coronhas de suas pistolas damasquinas, e o punho de prata, de
seu candiar; um barrete de seda vermelha e amarela ensombrava-lhe os olhos e carregava a
altivez de seu olhar. Como era belo! Todos os corações voavam para ele. A própria Hamama
sentia-se orgulhosa do ser montada por um tal cavaleiro. O pescoço coberto do contas e anéis de
ouro, Hamama levantava a cabeça de serpente, e fitava as orelhas de junco, lançando fogo pelas
narinas; ao vê-la partir, voltar, parar de repente e tornar a partir, dir-se-ia que o cavaleiro e o
animal tinham uma só vontade.
Quando o filho de Yussuf parou à liteira, um cameleiro não pode deixar de dizer;
Kafur, “Olha, criança! Entre os teus gordos egípcios, e em teu Magreb, (1) se vê tanta
nobreza?
Repara, senhora, disse a negrinha, debruçando-se sobre o pescoço do camelo, repara que
ricas vestes, que porte elegante, que mãos esguias, que olhos tímidos!
Belo pássaro, disse ela depois a Abdallah, tu não queres nos olhar? Ah! é uma mulher
disfarçada, é a virgem da tribo. Cameleiro, faze-a subir à liteira; seu lugar é aqui.
– Cala-te, pagã, disse Abdallah, impacientado. Para te calares será preciso pôr-te um anel à
boca de serpente?
– É uma mulher, disse Kafur, rindo mais ainda; um homem não se paga com injurias. Vem
para cá, pássaro formoso, as mulheres foram feitas para se amar. Tu és bela, eu também sou bela,
mas minha senhora é a mais bela do nós: olha!”
O olhar é mais rápido que o pensamento. Abdallah ergueu os olhos, puxou brincando, o
véu de sua senhora; Leila aterrorizada recuou a cabeça, o véu rompeu-se, a amante caiu. Leila
deu um grito, com uma mão ocultou o rosto, e com a outra bateu a negrinha, que se pôs a soluçar.
Tudo isso se passou num momento.
"Como é bela! pensou o filho de Mansour; essa mulher, preciso possuí-la.
Glória Àquele que a criou, criando-a tão perfeita!” murmurou o filho de Yussuf.
Quem dirá quanto um momento pode conter de pena ou prazer? Quem poderá saber até
onde aquela imagem, apenas entre vista, entrou o coração de Abdallah? A caravana seguia, o
beduíno ficara imóvel. Leila se ocultava no manto, e, todavia, aos olhos do filho de Halima havia
uma mulher que lhe sorria. Abdallah fechava e os olhos, e, não obstante, continuava a ver uma
fronte branca como o marfim, umas faces frescas como a tulipa, e uns cabelos mais negros que o
almíscar, caindo num pescoço de gazela, como cai um ramo de tamareira carregada de cachos
dourados. Dois lábios semelhantes a uma fita de escarlate se abriam para falar-lhe; dois olhos
grandes o fitavam, dois olhos fimbriados por duas orlas azuis, mais brilhantes que o suave fulgor
das violetas orvalhadas. Abdallah sentiu que o coração lhe fugia, e ocultando o rosto entre as
mãos se pôs a chorar.
A caravana continuava a avançar, e Hafiz, que fechava a retaguarda, em pouco se achou
perto do sobrinho. Admirado de seu silêncio e de sua imobilidade, aproximou-se dele, e lhe
disse, tocando-lhe no braço:
"Meu filho, temos novidade, não é exato?”
Abdallah estremeceu, e voltando a si, como um homem que sai de um sonho: “Sim, meu
tio,” respondeu com voz fraca.
"O inimigo está próximo, disse o coxo, cujos olhos fuzilaram; tu o viste? Glória a Deus, a
pólvora vai falar!
– Ninguém nos ameaça; o perigo tão é esse.
– Que há, pois, meu filho? replicou o velho com inquietação; estás doente, tens febre? Tu
sabes que eu sou médico.
– Não é nada disso, meu pai; no primeiro pouso eu vos direi tudo.
– Tu me metes medo, disse Hafiz; se nem é o perigo nem a febre o que te agitam, é com
certeza alguma paixão má que turba tua alma. Toma cuidado, meu filho; com o socorro de Deus
se abatem os temerários; como auxilio de Deus se extingue a febre; só há um inimigo contra o
qual não há defesa, esse inimigo é nosso coração.”

(1) – o Magreb compreende a região noroeste da África, incluindo Marrocos, Saara Ocidental, Argélia e
Tunísia. E também a Mauritânia e a Líbia, e que, na época do Império Romano, era conhecido como África menor.
Sua região se estende pois desde o Egito até o Iraque e a Península Arábica. Ainda hoje, muitos de seus habitantes,
são nómades, andando de terra em terra com as suas manadas ou rebanhos.

CAPÍTULO XV – HISTÓRIA DO SULTÃO DE KANDAHAR

Quando a caravana acampou, Abdallah chamou seu tio à parte; este se assentou num
tapete, e se pôs a fumar sem dizer uma palavra; o jovem chefe, envolto numa manta, deitou-se, e
ficou muito tempo imóvel; de repente, beijando a mão ao velho, lhe disse: “Meu tio, eu imploro a
proteção de Deus; o que Deus quer que aconteça acontece, não há força e poder fora dele. E com
voz comovida contou-lhe a visão que o tinha agitado.
"Ó meu filho, disse Hafiz suspirando, eis-te punido por não nos teres escutado. Feliz quem,
sem outro desejo além do de perpetuar o nome paterno, escolhe em sua tribo uma mulher
virtuosa e obediente; infeliz quem deixa prender sua alma nos laços de uma estranha. Nada que
preste pode vir do Egito. Desde o tempo de José todas as mulheres ali são debochadas e pérfidas,
dignas filhas de Zuleica! (1)
– Meu tio, não se trata de perfídia, o acaso, só ele, fez tudo.
– Não no creias, meu filho; não há acaso para essas caçadoras ardilosas, que lançam as
redes por toda parte.
– É, pois, certo que ela me ama! bradou o moço, levantando-se; não, meu tio, vós estais
enganado. Dentro em dois dias estaremos em Taifa, dentro em dois dias nos separaremos para
nunca mais nos vermos, e eu sinto que amá-la-ei para sempre!
– Sim, tu amá-la-ias, ela, porém, esquecer-te-á à primeira joia que lhe der seu novo senhor.
Teu coração é para ela um brinquedo, quando sem capricho terminar, essa mulher despedaçar-te-
á o coração. Lembra-te do que diz o Alcorão desse ser imperfeito que cresce entre enfeites e
adornos: (2) a razão das mulheres é a loucura, sua religião é o amor. Como as flores elas são as
delícias dos olhos, o encanto dos sentidos; mas, essas flores são venenosas: desgraça a quem se
aproxima delas, que terá em breve um sudário por vestimenta. Crê em minha experiência; eu vi
mais famílias destruídas pela mulher do que pela guerra, quanto mais generoso é o homem; tanto
mais as desgraças que dela provêm o ameaçam.
Não conheces a história do Sultão de Kandahar? (3) Era um verdadeiro crente, apesar de ter
vivido ao tempo da ignorância; (4) era um sábio conquanto fosse rei. Recolhera todas as máximas
da prudência humana para deixar aos filhos como herança digna dele. Os filósofos da índia lhe
tinham composto uma biblioteca que o acompanhava por toda parte; eram precisos dez camelos
para conduzir. “Reduzi toda essa ciência a primeiros princípios”, mandou ele; assim foi feito, e
ficou a carga de um camelo. Era muito; velhos brâmanes, escolhidos pelo príncipe reduziram
esse resumo duma longa experiência, primeiro a dez, depois a cinco, depois a só volume.
Esse livro foi oferecido ao Sultão num estojo de veludo e ouro. Tendo reinado muito
tampo, a vida poucos segredos tinha para ele. Pegando do livro, o rei pôs-se a riscar tudo quanto
o senso comum percebe à primeira vista. Qual é o perigo para meus filhos? pensou ele; a
avareza? não, que é o vício dos velhos; a ambição? também não que é a virtude dos príncipes.
– E riscou do livro tudo quanto se referia à avareza e à ambição. Quando, porém, o
príncipe, cogitava da mais viva das paixões, um adágio o impressionou tão profundamente por
sua verdade que, lançando ao fogo o livro, legou aos filhos essa única máxima, chamando-lhe-
chave do tesouro da vida:

TODA MULHER É PÉRFIDA,


E SOBRE TODAS PÉRFIDA
É AQUELA QUE TE AMA.

Queres, meu filho, ser mais avisado que esse pagão, mais esclarecido que Salomão, mais
prudente que o profeta? Não; acredita, a beleza das mulheres é como a bainha de nossos sabres –
um envoltório brilhante que oculta a morte. Não procures tua ruína; pensa em Deus, e guarda-te
para teus antigos e verdadeiros amigos; e, se é preciso dizer tudo, tem piedade de tua mãe e do
velho Hafiz.
– Tens razão, disse tristemente Abdallah, e tornou a deitar-se, puxando o albornoz para a
fronte. Pela primeira vez, porém, o filho de Yussuf não acreditava no que dizia seu tio; pela
primeira vez o trevo de quatro folhas fora por ele esquecido.

(1) O nome dado pelos árabes para esposa de Putifar.


(2) Corão, XLIII
(3) Kandahar (atual Afeganistão) foi uma das povoações mais antigas conhecidas. Alexandre, o Grande
estabeleceu a fundação do que passou a ser a cidade de Kandahar, e que, depois, tornou-se uma das cidades
culturalmente mais significativas e sede tradicional do poder dos pashtuns por mais de 200 anos. Fizeram parte da
história do Kandahar, entre outros, alguns notáveis: Nur Jahan - Imperatriz do Império Mughal; Mirwais Hotak,
fundador da dinastia Hotak; Abdul Aziz Hotak, governante da dinastia Hotak; Mahmud Hotak, governante da
dinastia Hotak e Shah da Pérsia; Ashraf Hotak, Shah da Pérsia; Hussain Hotak, governante da dinastia Hotak;
Payandah Khan, o primeiro chefe tribal da dinastia Barakzai; Mohammed Zahir Shah, o último rei do Afeganistão;
Ubaidullah Jan, rei do sul do Afeganistão.
Kandahar foi um grande centro de comércio para ovelhas, lã, o algodão, a seda, o feltro, os grãos de alimento,
frutas frescas e secas, e tabaco. A região produz frutas finas, especialmente romãs e uvas, e a cidade possui plantas
para conservas, secagem e embalagem de frutas e é uma importante fonte de maconha e haxixe. A região é tida
como o berço da cannabis indica (maconha).
(4) Ou seja antes de surgir o islamismo

CAPÍTULO XVI – O ATAQUE

A noite é remédio para a fadiga, veneno para a mágoa. Abdallah levantou mais doente que
na véspera. Ébrio de uma incurável loucura, já não era senhor de sua vontade nem de suas
energias; tomaram-no a fúria da febre e o abatimento do desespero. A seu pesar a liteira fatal o
atraía; corria para ela, mas ao aproximar-se voltava, perseguido, ainda quando fugia a toda brida,
por dois olhos terrivelmente encantadores. Se de longe percebia um cavaleiro perto do
palanquem, se o filho de Mansour se voltava para as mulheres, Abdallah galopava em sua
direção como se fosse ferir um inimigo; depois, de repente, parava, não ousando nem recuar nem
prosseguir. Toda a manhã passou fatigando Hamama, que, anelante, coberta de espuma, saltava
sob o acicate que a despedaçava, admirada de não mais compreender seu dono, e louca como ele.
O velho coxo lançava olhares terríveis à liteira; Leila se afundara a um canto, com o rosto
coberto pelo manto; somente se via Kafur, muda e triste como um pássaro molhado.
Tranquilo por esse lado, Hafiz procurou o sobrinho, e o viu correndo à toa no deserto. Tudo
lhe traía a alma doente. O velho aproximou-se dele.
“Coragem, meu filho; domina teu coração; um homem é homem para sofrer, um
muçulmano é muçulmano para resignar-se.
– Eu sufoco, eu fui vencido pelo mal que me devora. Tudo, meu tio, tudo é preferível ao
que sofro. Venha o perigo, venha o inimigo, eu quero bater-me, eu quero morrer!
– Desejos insensatos, palavras loucas, disse severamente o velho. Deus é o senhor da vida
e da morte. Toma cuidado que ele não te ouça! Para punir-nos bastar-lhe-ia dar-nos o que lhe
pede nossa loucura. – Que é isto? perguntou, apeando, o velho Hafiz; e, examinando com
cuidado a areia: são rastos de cavalos; não vejo entre eles rastros de camelos, o que quer dizer
que uma quadrilha armada passou por aqui. Os vestígios são frescos, o inimigo não está longe.
Vês como nos perde a paixão? Tu, nosso chefe, tu nada viste, tu nos conduzes à morte
Os dois beduínos escrutaram até longe o deserto, e nada viram. Atravessavam, então, uma
região assolada; a estrada contornava enormes blocos de granito avermelhado, que emergiam da
areia como ruínas desmoronadas. Grandes fendas esburacavam o solo, torrentes dessecadas,
valas profundas eram outros tantos túmulos que esperavam o viajante. Nem um pássaro no ar,
nem uma gazela ao longe, num ponto negro no horizonte; nem céu de aço, um silêncio de morte;
atacado aí, o homem nada tinha a esperar senão de Deus e do sabre.
O coxo correu à frente da caravana. Todos puseram-se a postos, todos calaram como em
uma marcha noturna, só se ouvia o ruído da areia que rangia aos pés dos camelos. Depois de uma
hora de marcha, uma hora que pareceu bem longa, os viajantes chegaram ao pé de uma colina
que era preciso contornar. Hafiz tomou a dianteira; deixando o cavalo a meio caminho, galgou as
alturas, e, apeando-se no cimo, resvalou rojando entre as rochas. Examinou muito tempo os
arredores, desceu sem fazer ruído, pôs o cavalo a galope, e veio juntar-se a Abdallah; estava tão
calmo na volta como quando partira.
“Há tendas brancas no campo, disse ele; não são beduínos; são arnautas de Djeddah. O
inimigo é numeroso e nos espera. Não importa, vender-lhe-emos a vida a preço que ele não
espera pagar. Avante, meu filho, cumpre teu dever.”
E, chamando seis dos mais bravos companheiros, o coxo escorvou o fuzil, e com eles
retomou o caminho das alturas.
Abdallah chegava à frente da coluna; uma fumaça branca partiu de um rochedo, a bala
sibilou, um camelo caiu, e fez-se inteira confusão na caravana: os camelos, recuados, chocavam-
se uns contra os outros, e caíam, os condutores ganhavam, fugindo, a retaguarda, os cavaleiros
corriam para a frente. Dir-se-ia uma floresta sacudida por uma tempestade.
A queixa dos camelos, os relinchos dos cavalos misturavam-se aos gritos dos homens; era
o fragor de uma nuvem que estronda. Nessa primeira desordem, um punhado de bandidos, que,
pelas camisolas vermelhas, pelos calções brancos e pelos cintos largos, se conheciam logo como
arnautas, lançou-se à liteira, e a carregou dando gritos do alegria. Em vão Abdallah e seus bravos
companheiros tentaram persegui-lo; atiradores ocultos nos rochedos os abatiam à passagem. Três
vezes o jovem chefe impeliu o cavalo contra seus invisíveis inimigos, três vezes lhe foi preciso
voltar sobre uma saraivada de balas, vendo cair a seu lado os companheiros.
Abdallah rugia de raiva; perto dele e, não menos animado, Omar despedaçava as vestes,
Omar, a quem a paixão fazia esquecer toda prudência, e que já não pensava senão no tesouro que
lhe roubavam.
“Avante, meu irmão! bradava ele, avante!” E juntos iam tentar um último esforço quando
ouviram tiros sucederem-se rapidamente. Os arnautas não tinham contado com Hafiz, que descia
à frente deles e os fuzilava sem piedade. Livre o caminho, os dois irmãos avançaram seguidos
pelo coxo.
“Devagar, meu filho, dizia este a Abdallah, poupa teu cavalo, temos tempo.
– Onde está Leila? meu tio; eles a raptaram, ela está perdida.
– Velho doido! disse Omar; acreditas acaso que esses bandidos nos esperem? Vinte duros a
quem abater o dromedário.”
Um dos beduínos apontou o fuzil, alvejando o animal, e, com risco de matar as duas
mulheres, fez fogo. O dromedário, ferido numa espádua, caiu, arrastando na queda seu fardo
precioso.
“Muito bem, moço, disse o coxo, com ar zombeteiro. Os arnautas agradecer-te-ão; tu os
livrastes do único obstáculo que os embaraça. Agora, a sultana está perdida.”
Hafiz tinha demasiada razão; os bandidos rodearam a liteira, e tiraram dela uma mulher
envolta num manto negro; Abdallah reconheceu Leila.
À ordem de um chefe magnificamente vestido, um homem pôs essa mulher à garupa, e
partiu a galope.
Nesse momento, o filho de Yussuf abateu sobre, o inimigo como uma águia que tendo uma
nuvem.
"Cão, filho de cão, gritou ele ao chefe, se tu és um homem, mostra-me teu rosto! É para
fugir tão depressa que montas um tão belo cavalo?” E deu-lhe um tiro de pistola.
“Espere, filho de um judeu! Gritou por sua vez o capitão, voltando-se; meu sabre tem sede
de teu sangue.
– Avante, filhos da pólvora! gritava Hafiz. Carregai, meus filhos; antes a morte que a
vergonha! Carregai; as balas não matam. O que é para ser, será, de acordo com o vontade do
Deus.”
Abdallah e o arnauta corriam um para o outro a toda velocidade de seus cavalos; o capitão
chegava, uma pistola numa mão, um sabre na outra; Abdallah já não tinha mais que um punhal, e
vinha curvado, a cabeça oculta no pescoço do animal. O inimigo atirou no filho de Yussuf e
errou. Os dois cavados chocaram-se, os estribos dos cavaleiros cruzaram-se, os dois homens
agarraram-se corpo a corpo; Abdallah, porém, tinha a força de um furioso e de um leão; pegou o
adversário pela cintura, sacudiu-o com uma mão terrível, e embebeu-lhe o punhal na garganta. O
sangue jorrou como o vinho de um odre furado, o arnauta estrebuchou; e pendeu; Abdallah
chamou-o a si, e o atirou ao solo como se quisera espedaçá-lo.
“Eis um que não tornará a beber,” disse Hafiz, saltando sobre o morto para despojá-lo.
A morte do capitão, o sabre dos beduínos que voavam sobre o inimigo como abelhas sobre
quem lhes tira o mel, os gritos dos cameleiros que acorriam com seus fuzis, decidiram logo da
batalha; a tropa dos arnautas desapareceu através do fumo e da poeira; os mais bravos iam à
retaguarda descarregando as armas a protegerem uma retirada que ninguém pensava em
inquietar. A vitória custara caro; havia mais de um ferido.
– “Muito bem, meu irmão! disse Omar cujos olhos flamejavam, ficamos aqui enquanto
aqueles bandidos levam nosso tesouro?
– Avante, amigos! gritou Abdallah; um esforço ainda, é preciso libertar a sultana.
– Ela está aqui, senhor, ela está aqui, disseram muitas vozes. Abdallah voltou-se
bruscamente, e viu diante deste Leila que saltava da liteira, Leila salpicada de sangue, coberta de
poeira, pálida, com os cabelos em desalinho, e nesta desordem mais formosa ainda.
– “Salva-me, dizia ela, estendendo-lhe os braços; eu só tenho esperança em ti.
– Quem foi então que os bandidos raptaram? perguntou Hafiz.
– Foi Kafur, disse Leila. A louca tomou-me o manto, e embuçou-me em seu albornoz.
– Bem... imaginado, disse, rindo, um beduíno aqueles filhos de cães tomaram um macaco
por uma mulher.
– Partamos depressa, meus amigos, gritava o filho de Mansour, que devorava Leila com o
olhar. Partamos, a jornada é nossa. Vamos madame, disse ele à sultana; não deploreis a escrava,
nós vos daremos uma outra. Por duzentos duros comprarei uma semelhante em Djeddah, e terei
muito prazer em vo-la oferecer.
"Partamos,” repetiam os cameleiros; “A coluna é numerosa, e voltará a nos atacar durante a
noite.”

Hafiz fitava Abdallah. – “O que?! disse o jovem movido pela piedade, querem deixar a
negrinha em poder daqueles miseráveis?
– O que está escrito está escrito, respondeu Omar, que tinha perdido a vontade de
combater.
“É prudente, meu irmão, arriscar sua vida e a destes valentes muçulmanos para correr em
socorro de uma pagã, que será substituída dentro de dois dias? É preciso partir; somos esperados
em Taifa. Queres abandonar-nos quando mais precisamos de ti?”
– “Abdallah,” disse a moça, erguendo para ele seus belos olhos, “não abandones a mim!”
O filho de Yussuf pôs a mão no coração, que desejava ceder. “Não, bradou ele, ninguém
dirá que um beduíno faltou à sua palavra. Se me tivessem confiado um saco de café, eu o não
abandonaria àqueles ladrões, quanto mais uma criatura de Deus. Há aqui homens? Quem vem
comigo?” Fez-se silêncio; um dos Bani-amers avançou.
– “Nós temos seis feridos, e a sultana está salva. Cumprimos nosso trato.”
– Vamos, meu filho, disse ironicamente o coxo, vejo bem que só nós temos sangue de
doidos nas veias. Partamos. Com o auxílio de Deus, salvaremos a pobre pequena.
– Adeus, irmão, disse Abdallah, abraçando Omar; toma cuidado com a estrangeira; se
dentro de dois dias não me vires reaparecer, dize ao xarife que cumpri meu dever, dize à minha
mãe que ela não deve chorar por mim.”
E sem voltar a cabeça, o filho de Yussuf tomou o caminho do deserto, acompanhado por
Hafiz que lhe desatou o albornoz o lhe lançou aos ombros uma manta de cameleiro. “Não é da
pele do leão que precisamos agora, disse-lhe o tio rindo, é, sim, da pele da raposa.”
Omar seguiu-os com os olhos, e quando os viu longe: “Se eles não retornassem mais,
pensou, seria um bom negócio. Eu me arranjaria melhor com o xarife do que com esse moço.
Não é coisa fácil seduzir ou enganar cabeças loucas que não raciocinam. Viva aqueles que
calculam!
Que veem que tudo pode sempre ser comprado e que por prudência, consegue que seja
entregue pela metade do justo preço.”
Marchando, Abdallah ouvia atrás dele os gritos dos cameleiros e os ruídos da caravana que
se punha em movimento. Tudo que ele amava deixara por uma criança desconhecida. Mais de
uma vez quisera olhar para trás, mas não o fizera por não afrontar seu tio, que, com os olhos
fixos nele, parecia ler-lhe no coração. Quando os últimos ruídos se extinguiram ao longe,
Abdallah parou sem o querer; a Hamama voltou-se, narinas ao vento, como para sentir ainda
seus amigos; Hafiz pôs a mão ao ombro do moço e lhe disse:
"Meu filho, teu caminho é à frente.”

CAPÍTULO XVII – A SULTANA

Depois de uma hora de marcha, os beduínos perceberam as tendas dos arnautas ocultas até
aí por um acidente do terreno. Em volta do acampamento havia alguns abrolhos que os cavalos
pastavam tranquilamente.
– “Paremos aqui, disse Hafiz, aproximando-se de um rochedo, cujo cimo se dourava aos
últimos raios do sol; temos ainda seis horas diante de nós.”
Os cavalos amarrados, o coxo se pôs a juntar ramos secos, fazendo com eles pequenos
fachos munidos de cartuxo e algodão. Terminado este trabalho, tirou de um saco um pedaço de
carne seca e um punhado de tâmaras, e, depois de ter comido, acendeu o cachimbo e fumou
tranquilamente.
– “Agora, meu sobrinho, disse ele ao filho de Yussuf, vou dormir. Os namorados não
precisam de repouso, mas os velhos não são como os namorados.
Tu me acordarás quando a grande Ursa surgir no horizonte.”
Um instante depois o velho soldado dormia, e Abdallah com a fronte nas mãos, pensava
naquela que salvara, e não devia tornar a ver.
Hafiz despertou um pouco antes da hora que marcara, e olhando com ternura seu jovem
companheiro: “Vamos, criança, tu pediste perigos para esquecer tua loucura, Deus te ouviu:
ânimo! Dois amigos que se estimem sairão incólumes até do fogo.”
Chegados perto do acampamento, os dois beduínos avançaram de rastros entre as rochas.
Rojando sob o ventre dos cavalos, foi-lhes fácil assegurarem-se de que o inimigo de nada
desconfiara.
Só havia sentinelas num ponto afastado; todos dormiam, os fogos estavam extintos, e uma
tenda somente estava iluminada. Os dois amigos aproximaram-se sem ruído, e deitaram-se na
areia, e como estivessem na sombra, podiam ver sem ser vistos.
– “Escutemos, disse Hafiz; talvez possamos saber onde está Kafur.”
Três homens, melhor vestidos que simples soldados, estavam sentados em tapetes, e
fumavam em grandes cachimbos ao redor de um tamborete (1) em que fora servido café.
Uma lâmpada, colocada em meio desse móvel, mal lhes iluminava os rostos.
Conversavam animadamente.
– “Má jornada! disse um dos oficiais; quem dissera ao capitão que ele morreria às mãos de
um cameleiro.
– Meu caro Hassan, respondeu o mais moço dos convivas, a desgraça de uns é a fortuna de
outros. Morto o capitão, a nós nos pertence o comando.
– Muito bem, meu caro Mahomed, replicou Hassan; mas, quem de nós três será o chefe?
– Eu vendo meu direito, disse o oficial que ainda não falara, e que dava as costas a
Abdallah.
Dizem que a mulher que raptamos é parenta do Paxá do Egito. Um barba-grisalha como eu
pouco se preocupa com uma mulher, mas o xarife deve ter outras ideias: para ele a prisioneira
vale bem cinco mil duros. Dai-me a sultana, e eu voltarei ao Epiro, a viver à minha vontade.
– Aceito, disse Hassan. Kara-Chitan, cedo-te minha parte na presa.
– Não concordo, declarou Mohamed; tenho vinte e cinco anos, e não vendo mulheres. A
ideia de esposar uma sultana me sorri, e não deixaria de ter prazer em ser primo do Paxá. Minha
parte no comando pela princesa; tenho tempo para ser capitão.
Poderemos entender-nos, disse o barba-grisalha: a um a espada, ao outro a mulher, e a mim
o dinheiro.
– Seja, disse Hassan; dou-te dois mil duros.
– E que me dará Mohamed?
– Mohamed, disse a rir o moço, promete tudo quanto quiseres. Quando na bolsa só temos
esperanças, não se regateia.
– Tu tens um jumento negro, eu o tomo.
– Velho avarento! bradou Mohamed, se tocas em meu jumento, despedaço-te a cabeça.
– Então não terás a sultana.
– Quem me impedirá?
– Um homem que não tem medo de ti. Kara-Chitan o disse, e foi ao fundo da tenda, até a
uma cortina que a dividia em duas. “A estrangeira está aqui, disse ele; vem buscá-la.
Mohamed puxou do punhal; Hassan lançou-se entre os rivais, opondo súplicas e conselhos
aos insultos e ameaças, sem poder conter os dois inimigos.
"São nossos, murmurou Hafiz ao ouvido de Abdallah. Vou atraí-los para fora da tenda,
entra, rapta a criança, parte com os cavalos, e espera-me nas rochas vermelhas até ao raiar da
aurora.”
Hafiz rastejou alguns instantes, depois, armado de seus fachos, distribuiu-os pelas tendas
mais afastadas, acendendo-os um a um.
À força de palavras e promessas, Hassan pacificara os dois oficiais; Kara-Chitan,
alegríssimo, punha à cinta um sabre magnífico, para o qual Mohamed olhava com saudade.
– Enfim, disse este, pois que comprei a Sultana, a entregues a mim.
– É justo, disse o barba grisalha, e chamou em alta voz a estrangeira. A cortina se abriu, e
apareceu uma mulher, envolta num manto do Egito. O jovem arnauta se aproximou dela, e com
voz terna lhe disse: “Senhora, a guerra tem seus direitos, já não pertenceis ao xarife: sois minha.
Comprei-vos com meu ouro, e vos teria comprado com meu sangue.”
– Foi caro, disse uma voz risonha, que fez estremecer Abdallah
– A beleza não tem preço, continuou Mohamed; que tesouro pagaria vossos encantos?
– Duas bolsas bastariam, respondeu a dama velada.
– Senhora, assim não pensa o xarife. O chefe dos crentes daria metade de suas riquezas
para estar em meu lugar, e ter perto dele a bela egípcia.
– Se a caravana continua a avançar, a bela egípcia estará amanhã em Taifa.
– Quem sois, então? perguntou Mohamed.
Como única resposta, o véu caiu, e apareceram a face negra e os dentes brancos de Kafur.
A negra fazia uma tão estranha figura, que o arnauta grisalho não se pôde conter sem rir, o
que levou ao cúmulo a fúria de seu jovem companheiro.
– Desgraça a quem zombou de mim! gritou Mahomed, fitando Kara-Chitan; cedo ou tarde
me hei de vingar. Quanto a ti, cadela, não irá adiante.”
E cego de raiva, apontou uma pistola, e atirou na criança.
A negra vacilou, dando um grito de dor, e de medo.
No mesmo instante se ouviu um tiro: Mohamed rodou sobre si mesmo e caía. Abdallah
estava na tenda, a pistola em punho.
– “Às armas!” bradaram os dois chefes, levando a mão à cinta.
Mais rápida que o raio, Kafur derribou com um pontapé o tamborete e a lâmpada; Abdallah
sentiu uma mão pequenina puxando-o ao fundo da tenda. Passar à câmara das mulheres, levantar
um canto da tenda, e sair, foram coisas facílimas para Kafur que parecia ver na escuridão. Uma
voz fora, Abdallah tomou a criança aos braços, e fugiu.
À voz dos chefes, pusera-se a pé toda a quadrilha; mas, chegados à tenda, já não
encontraram viva alma.
– “A cavalo! disse Hassan; morto ou vivo, o traidor não nos escapará.”
De repente um facho caiu nos abrolhos. Os cavalos, espantados, atiraram-se à planície, e se
ouviu o grito de fogo. O incêndio rebentava nos quatro ângulos do acampamento, e ao longe
fuzilavam-se as sentinelas.
– “Vamos, amigos, disse o capitão; é um ataque em regra. O inimigo está lá; avante!”
Hafiz colara o ouvido à terra, e, quando percebeu que avançavam contra ele: “Deus é
grande, murmurou; Abdallah está salvo.”
Escondido num bosque, o velho soldado deixou passarem por ele os arnautas, depois,
saltando ao lombo de um cavalo tresmalhado, lançou-se ao deserto, sem se inquietar com as
balas que silvavam à sua volta.

(1) Estas mesas, chamadas kursi, são uma espécie de bancos de quinze até dezoito polegadas de altura.

CAPÍTULO XVIII – A FOLHA DE PRATA

Abdallah correu com seu fardo até as rochas onde amarrou os cavalos. Ele acomodou
Kafur antes dele na sela, e afrouxou a rédea a Hamama, que voou acima do chão, seguida pelo
cavalo de Hafiz. Uma hora decorreu sem que o filho de Yussuf ousasse voltar a cabeça; tanto
mais tranquilizado quanto mais se afastava, diminuiu enfim o passo ao animal, tentando orientar-
se em meio à escuridão, para chegar ao rendez-vous que seu tio lhe dera.
Durante a carreira, Kafur ficara muda e imóvel, conchegada a Abdallah; quando, porém,
compreendeu que o perigo passara, perguntou-lhe em voz baixa: “Tu também estavas
prisioneiro?”
– Não, graças a Deus.
– Então, por que foste ainda atacar o inimigo?
– Por que? disse, rindo, Abdallah, para salvar-te, suponho.”
Esta declaração surpreendeu Kafur; depois de refletir algum tempo ela continuou:
– “Por que me querias salvar?
– Por que tu foras confiada à minha guarda.
– Conserva-me sempre a teu lado Abdallah, ninguém, me protegerá como tu.
– Não sou teu senhor, disse o jovem chefe; tu pertences a Leila.”
Kafur suspirou e não disse mais nada. Chegado às Rochas Vermelhas, Abdallah pegou da
criança para apeá-la, e esta dando um grito que sufocou imediatamente, disse depois em voz
baixa: “Não é nada, estou ferida;” e à claridade das estrelas lhe mostrou, o braço ensanguentado.
A bala escorregara pela espádua, despedaçando as carnes. Abdallah examinou a ferida, limpou-a
e pôs-lhe uma atadura.
Kafur observava-o com admiração.
– “Pois que eu não te pertenço, disse ela, porque tens comigo esses cuidados?
– Silêncio, pagã! tu não conheces as palavras do livro da verdade: “Adorai Deus e não
associeis ninguém. Sede bons para vossos pais, para vossos parentes, para os órfãos, para os
pobres, para o próximo que for de vosso sangue, para o próximo que vos for estranho, para
vossos companheiros, para o viajante, para o escravo que estiver em vosso poder; Deus não ama
o orgulho nem a avareza.” (1)
– Isto é belo, disso Kafur, foi um grande Deus que disse tais palavras. – Cala-te, e dorme,
disse Abdallah; amanhã será longa a viagem, e tu precisas repousar.”
Dizendo-o, Abdallah tomou a criança ao colo, envolveu-a em seu albornoz, e lhe apoiou a
cabeça ao braço direito. Kafur adormeceu logo; seu sono, porém, era agitado: a negrinha falava
sonhando, e Abdallah lhe sentia, batendo, o coração.
Pouco a pouco serenada, os membros distenderam-se, o mal se lhe ouvia o ressonar. O
soldado acalentava docemente essa filha que os azares da guerra lhe tinham dado por um dia, e,
fitando-a, pensava no que por ela sofrera sua mãe, e só nela pensava.
Abdallah assim ficou até ás últimas horas da noite, gozando uma tranquilidade
desconhecida.
Em derredor era completo o silêncio: na terra nem uma aragem, nem um ruído; no céu a
mancha somente desse exército luminoso que há tantos séculos obedece à voz do Eterno. Esse
repouso das coisas serenara a alma de Abdallah, e lhe fazia esquecer os perigos que tinham
passado, e as inquietações pelos que ainda o ameaçavam.
A madrugada se anunciava somente por uma claridade indecisa no horizonte; ao longe
ladrou um chacal. Esse grito soou três vezes, e três vezes Abdallah o repetiu, ouvindo-o
respondido. Em pouco um cavalo anelante parou diante do rochedo: Hafiz estava salvo.
"Bem, disse ele, rindo, a partida foi jogada; ei-los agora defumados como ratos. A
caminho! é preciso que não nos esperem em Taifa.”
Um clarão vermelho ensanguentava o levante; Abdallah estendeu o tapete das preces, e
com seu tio, voltado para Meca, agradeceu ao Todo-Poderoso que os livrara do perigo.
"Abdallah, disse Kafur, prostrando-se aos pés de seu salvador, tu és meu Deus, é a ti que eu
adoro.”
– Cala-te, maldita, bradou o filho de Yussuf. Há só um Deus, a que ninguém se associa: é o
Eterno, o Incomparável, o Único; é somente a Ele que se deve adorar e pedir.
– Que teu Deus seja então o meu, disse Kafur; já não quero mais um Deus que me deixava
matar.
– Teu Deus, disse Abdallah, é cego, surdo e mudo – algum pedaço de pau que apodrece nos
confins de Magreb.
– Não, meu Deus estava comigo e me traiu. Ei-lo, acrescentou ela, tirando dos cabelos um
tufo de penas: toma-o e quebra-o, eu o maldigo.
– Teu Deus é um punhado de penas? perguntou, rindo, o coxo.
– Sim, respondeu, a criança; foi o Deus que minha mãe me deu, quando me vendeu. É
belo, repara”. E arrancando as penas que ia quebrando, a injuriar, tirou enfim do tufo uma
pequena lâmina de prata, e a ofereceu ao filho de Yussuf.
"Meu tio, bradou ele num transporte de alegria, vê o que nos vem do Magreb. Deus nos
envia a folha do trevo. Meu tio, tu me salvaste. Glória e reconhecimento a Deus.”
E os dois amigos ébrios de satisfação, abraçaram a criança, que, não compreendendo a
razão de suas carícias, os olhava com os olhos úmidos de lágrimas, admirada e feliz por se ver
amada.

(1) Corão, IV, 40

CAPÍTULO XIX – O SEGREDO

Quando os dois beduínos perceberam a caravana, que se desenrolava ao longe como uma
serpente enorme, a tarde caia; os últimos raios do sol iluminavam a casaria branca de Taifa que
brilhava em meio dos jardins como madressilvas num bosque. Era a extrema do areal, o perigo
passara, a viagem terminava. À vista de Taifa, Abdallah tomou-se de amarga tristeza.
Inquieto, perturbado, fora de si, um só pensamento o ocupava – Leila estava perdida para
ele. Os outros beduínos deram gritos de satisfação ao verem os dois amigos; Omar abraçou o
irmão com ternura extrema; Abdallah ficou indiferente a todas as carícias, e só se comoveu
quando houve de apartar-se de Kafur. A pobre pequena lançara-se aos braços dele, e, para fazê-la
largar o beduíno, foi preciso que este, com voz severa, lhe ordenasse que fosse para perto da
Sultana. Kafur obedeceu chorando; Abdallah seguiu-a num longo olhar: tinha despedaçado o
último elo da cadeia que o prendia a Leila.
A negrinha aproximava-se da liteira; Omar chamou-a, e, mostrando-lhe dois objetos que
tinha em mão, lhe disse em tom meio brincalhão meio ameaçador: “Ouve, filha de Satã: sabes
que diferença há entre este bastão e este colar de cinco fios de pérolas?”
– A mesma que há entre ti e teu irmão, respondeu a negrinha. Um é belo como o arco-íris,
o outro só serve para ser queimado ao fogo do inferno.
– Tens o espírito de teu pai, replicou tranquilamente Omar; não ser-te-á pois difícil
escolher. Queres o colar?
– Sem dúvida, respondeu a criança, cujos olhos, brilhavam que é preciso fazer?
– Pouca coisa. Dentro em uma hora estarás no harém; todo mundo quererá ver-te, e nada
ser-te-á mais fácil que aproximar-te da esposa do Xarife, a sultana Fátima.
Encarrega-te de lhe repetires palavra a palavra o que te vou dizer. O colar será teu.
– Dá-m’o; escuto e obedecerei.
– Quando estiveres com Fátima, depois que a tiveres feito rir com tua cara de macaco e
com tuas gesticulações ridículas, dize-lhe em voz baixa: “Senhora, é mensagem de um amigo.”
Ela escutar-te-á; repete-lhe então estas palavras: “Lua de Maio, uma nova lua se aproxima. Se
não queres que ele perturbe a serenidade de tuas noites, retém o sol no signo dos Gêmeos.
Apressa-te, pede, exige. Toma por divisa: O amor é como a loucura, tudo lhe é perdoado”.
– Repete a última frase, disse Kafur. Bem, sei-a agora: “O amor é como a loucura, tudo lhe
é perdoado.” A sultana receberá tua mensagem. Uma só palavra: o que dizes não poderá fazer
qualquer mal a teu irmão?
– Nenhum respondeu o filho de Mansour, ocultando um sorriso. Em tudo isso não se trata
de Abdallah. Ele não corre perigo, e se corresse as próprias palavras que te disse seriam sua
salvação. Adeus; sê muda com toda a gente, e se me obedeceres conta com a generosidade de
Omar. “A amara está madura, continuou o mercador, falando consigo mesmo, quem a colherá?
Eis-me desembaraçado do belo Abdallah; a mim, agora, inflamar os ciúmes da Sultana e agravar
os enfados do Xarife. A partida tem seus perigos; mas, custe o que custar, é preciso que Leila saia
do harém; se sair, será minha.”
Chegando à liteira, Kafur ficou admirada de encontrar sua senhora pálida e desfigurada,
com a febre nos olhos.
“Que tens? dizia-lhe; choras quando tua felicidade vai começar. Terás quatro escravas a teu
serviço, terás vestes e veludo, mantilhas de caxemira, chinelas bordadas a ouro e pérolas, colares
de esmalte, diademas de diamantes, braceletes de rubis e safiras. Que mais pode querer uma
mulher? Partindo do Egito, estavas alegre por vires para aqui; porque mudaste?
– Tu não podes compreender-me, disse Leila em voz débil: és uma criança.
– Já não sou uma criança, minha senhora: tenho doze anos, sou uma mulher – podes fiar de
mim.
– Ah! minha pobre Kafur, bradou a egípcia, suspirando, se não queres perder o coração
fecha os olhos. Por que vi eu esse belo moço? Sem ele, entraria o harém com alegria, agora
passarei aí como uma morta entre vivos.
– Amas Abdallah? perguntou a criança, perturbada com a confidência.
– Se o amo! Crês que seja possível vê-lo sem o amar? Não há no paraíso figura mais
formosa; seu olhar é tão gracioso, sua voz tão suave! Seu mesmo nome é um perfume... Se o
amo!
Desperta, meu coração só bate por ele; adormecida, meu coração só bate por ele;
adormecida, meu coração vela e definha de amor. Prouvera a Deus que eu tivesse nascido na
tenda, e que esse beduíno fosse meu irmão! Voaria a ele, lançar-me-ia em seus braços, e ninguém
me desprezaria.
– Foge com ele, disse Kafur; eu vou dizer-lhe que venha buscar te.
– Estás doida? Sou escrava, tenho um senhor... Ademais acreditas que Abdallah falte
jamais à sua palavra? É ele quem me leva ao Xarife; queres fazer-lhe trair um juramento? Então
pode ao Xarife que te dê Abdallah por marido.
– Cala, tola. Uma tal súplica seria para todos nós uma sentença do morte.”
Kafur se pôs a refletir, e repetiu em voz baixa a mensagem de Omar; depois fixando Leila:
“Senhora, disse-lhe, se tu vieres a ser a esposa de Abdallah, se ele levar-te para a tenda,
conservar-me-ás sempre em tua companhia?
– Sempre, minha filha; eu te amo, não deixar-te-ei nunca.
– Toda minha vida serei tua escrava, serei escrava de Abdallah?
– Sem dúvida. Por que o perguntas?
– Jura-me que assim será, replicou Kafur em tom solene, e deixa-me agir. Não me
interrogues nem sacudas a cabeça com desdém. Que arriscas tu em jurá-lo? Queres me afastar ou
vender-me?
– Não, certamente. Se Deus permitir que eu venha a ser mulher daquele a quem amo como
à minha alma, tu ficarás sempre conosco; eu o juro em nome de Deus, o Clemente, o
Misericordioso, o Senhor dos mundos...
– Senhora, eu não passo de uma pobre ignorante; jura-me somente pelo Deus de Abdallah.”
Continuando esta conversa as duas amigas entraram o harém, onde as esperavam
numerosas companheiras, Kafur, sempre a rir, saltou do palanquim e correu para uma sala
profusamente iluminada, cheia de mesas cobertas de ricas baixelas e flores raras. Leila,
queixando-se das fadigas da viagem, retirou-se à câmara para chorar à vontade. Dor inútil,
remédio impotente para um mal que não se quer curar! “Aquele que se embriaga com vinho,
disse o sábio de Shiraz, (1) acorda em meio da noite: aquele, porém, que se embriaga de amor só
acorda no dia da ressurreição.”

(1) Shiraz antiga capital de Pérsia, foi uma antiga e encantada cidade de jardins. A cidade dos vaga-lumes, as
rosas e os vinhos, onde a poesia alegrava ou entristecia os banquetes, transitada por caravanas que levavam
carregamentos de lã, algodão, perfumes caros, ópio, borracha, ricas tapeçarias e peles. Cidade fabulosa que, no
transcurso dos anos, foi saqueada, devastada, destruída.

CAPÍTULO XX – A PACIÊNCIA DA RAPOSA

Abdallah queria partir imediatamente; Hafiz não o desejava menos. Parecia-lhe que,
voltando ao deserto, seu sobrinho deixaria atrás dele a inquietação e o desgosto. O Xarife,
porém, fizera saber que receberia na manhã seguinte os chefes da caravana: era uma honra de
que eles não podiam declinar.
Cedo reuniram-se no palácio: o pátio regurgitava de beduínos, vestindo túnicas azuis
realçadas por um manto escarlate atirado aos ombros. Todos queriam apertar a mão ao corajoso
Abdallah e ao prudente Hafiz. Omar conversava com este em voz baixa: pela primeira vez o
egípcio deplorava os perigos da viagem; pela primeira vez acusa o Xarife por ter exposto tantos
bravos a uma morte certa. Hafiz concordava, apoiando-o com um entusiasmo que encantava o
filho de Mansour.
Escravos negros introduziam os visitantes numa sala forrada por um rico tapete e
guarnecida de divãs de seda verde, bordada a ouro.
Nas paredes nuas havia, como único ornamento, um sabre turco, embutido de topázios e
rubis. Era um presente do Sultão.
Omar chamou para essa arma a atenção de Hafiz, o qual, murmurando contra o que lhe
parecia uma fraqueza, se inclinou, não obstante, respeitosamente ante o chefe dos crentes.
Recebidas as saudações de todos os presentes, o Xarife bateu palmas, e escravos serviram
imediatamente café e cachimbos. Os beduínos acomodaram-se no tapete, e fumaram em silêncio;
Abdallah estremeceu: na multidão de servos que esperavam as ordens do senhor, percebera Kafur
que levara a mão ao pescoço.
Seria a ele ou à outrem que a criança fazia sinal?
Fora impossível adivinhá-lo: ninguém levantava a cabeça e Omar menos que outrem.
O descendente do profeta parecia abismado em profundas reflexões. Era um velho de
nobre aparência: a barba branca, o nariz adunco, os olhos tranquilos davam-lhe um ar de
majestade. Um largo turbante, uma túnica da caxemira a mais fina, um cinto de púrpura e ouro,
onde brilhava um punhal coberto do pedrarias realçavam-lhe a dignidade. No fundo, o Xarife era
um sábio que só pensava em si mesmo. Intratável com quem lhe perturbava o repouso, era o
melhor dos homens quando o deixavam tranquilo em suas paixões e em seus hábitos. O poder
não o tinha pervertido: escutava voluntariamente a verdade que lhe não dizia respeito, e
suportava sem se lastimar as mentiras mais cruas de seus servos e bajuladores. Espírito delicado,
amante de contos, poeta requintado, sua única fraqueza, fraqueza própria de sua idade, era a
necessidade de ser amado. Graças ao conhecimento desse segredo, que surpreendera desde o
primeiro dia, a bela Fátima fizera de seu senhor o mais obediente dos escravos, e lhe impunha a
satisfação de todas suas fantasias, repetindo-lhe que os caprichos de uma mulher são a prova de
seu amor. Aos sessenta anos é mais cômodo crer que discutir; o Xarife cedia para evitar a
tempestade, dando-se por muito feliz quando era pago por uma carícia.
No dia da recepção, aliás, não havia nuvens no horizonte; o chefe dos crentes estava de
humor exce1ente: sorria passando os dedos na longa barba, e dava ideia de um homem
semiacordado que procurasse reter o sonho que lhe fugia.
Quando o segundo cachimbo foi fumado, o Xarife tomou a palavra, e em termos
escolhidos agradeceu aos beduínos e a Omar sua visita e seus serviços.
Em lugar de corresponder a essa benevolente, o filho de Mansour levantou-se como um
criminoso fulminado pelo terror, e, prostrando-se diante do descendente do Profeta, lhe beijou os
pés.
“Filho de Ali e de Hassan, disse ele com a voz entrecortada, eu sei o que merece o escravo
que foi bastante desgraçado para deixar violar o deposito de seu senhor. Conheço meu crime, e
espero resignado o castigo que tua justiça me reserva.
– Levanta-te, disse o Xarife com bondade. O que está escrito está escrito. Deus faz
alternarem-se os revezes e os bons sucessos entre os homens afim de conhecer os crentes e
escolher entre eles as testemunhas. (1) Quanto ao insulto que me fizeram aqueles miseráveis,
escolherei o dia e a hora da reparação. Paciência! Com paciência consegue-se tudo.
– Ai! exclama o filho de Mansour sempre de joelhos, o ataque não foi nada: Abdallah e
seus bravos beduínos repeliram os traidores; a escrava, porém, esteve alguns momentos nas mãos
do inimigo, e aquela gente sem honra lhe tiraram o véu, e sua beleza, que devia ser sagrada para
todos, foi profanada por indignos olhares.
– Basta! interrompeu o Xarife, para que esta narração inconveniente? o cuidado da minha
honra me pertence. Paciência.
– Paciência! bradou o coxo; era o que dizia a raposa que fazia de morta.
– Que dizia a raposa? perguntou o Xarife, fitando um olhar severo em Hafiz, que parecia
comovido por um sentimento bem diverso do medo.
– Era uma vez, disse o beduíno, uma raposa que se fazia velha. Renunciara à caça e as
aventuras, e entrava todas as noites um galinheiro próximo de seu covil, e ai engordava sem pena
e sem perigo. Uma ocasião distraiu-se, e quando quis sair, o sol se levantara de cada qual tratava
de seu trabalho. Regressar à toca era arriscado; para não afrontar um perigo visível, a raposa
imaginou estender-se ao longo da estrada, fingindo-se morta. “Paciência, dizia ela; na paciência
está a salvação.
O primeiro que passou perto do animal não lhe prestou atenção; o segundo virou-o com a
ponta do pé para assegurar-se de que ele estava realmente morto; o terceiro, que era um menino,
divertiu-se em arrancar-lhe os pelos da barba.
"Paciência, dizia a raposa; esta criança não sabe o que faz, não me quer insultar, e mais
vale pungir um desgosto que nos expormos à morte.”
Veio em seguida um caçador, a arma ao ombro. “As unhas deste animal, disse ele, são um
remédio soberano contra o panarício,” e tirou a faca...
"Paciência, dizia a raposa, mais vale viver com três que morrer com quatro patos;” e se
deixou mutilar serenamente.
Passou enfim uma mulher com uma criança às ancas. “Com os dentes deste animal, disse
ela, farei um colar que preservará meu filhinho do mau olhado...”
– Conheço esta fabula, interrompeu o Xarife: quando a mulher se aproximou, a raposa
mordeu-lhe o rosto.
– Minha história não diz isto, replicou gravemente o coxo; quando uma vez transigimos
com a alma, nunca mais paramos. A raposa deixou despojar os dentes, repetindo: Paciência,
paciência, e esperou que um último algoz lhe arrancasse o coração. Foi então, mas já muito tarde,
que ela percebeu que o mais certo dos perigos é a paciência.
– Entro a acreditá-lo, disse o Xarife, pois que um beduíno vem até ao meu palácio narrar
suas ineptas histórias. É preciso ser um pastor grosseiro para não compreender minha
indulgência e insultar minha bondade. Se a caravana foi assaltada em uma região segura, por
onde passam todos os mercadores, de quem é a culpa, senão daqueles que escolheram para chefe
uma criança que eu poupo por piedade? Doze Bani-amers, armados e resolutos, atravessarão
sempre o deserto, sem que ninguém ouse atacá-los; para os arnautas vos terem surpreendido, era
necessário prepararem uma emboscada em que caísseis por imprudência ou traição.
– Senhor, tu dizes a verdade, bradou o filho de Mansour, e reconheço minha culpa.
Escolhendo para chefe da caravana meu irmão e meu irmão, devera eu ter pensado, que em nossa
idade a paixão cega.
O acaso perdeu-nos.
Desde o início da viagem, a vista da sultana perturbou esse moço e lhe fez perder toda
prudência.
– Que ouço? disse o Xarife, cujos olhos flamejavam. É assim que sou obedecido? É assim
que sou respeitado? Desgraça a quem zombou de mim! Ver-se-á se perdoo o insulto! Tu,
mercador, serás punido por tua imprudência, e tu, moço, pagarás tua loucura.”
E chamando um negro que trazia à banda um largo sabre, o chefe dos crentes mostrou-lhe
Omar e Abdallah, e fez um gesto, cortando o ar com a mão. Era a sentença de morte.
Os beduínos fitaram-se, estremecendo, mas nenhum, nem mesmo Hafiz, ousou revoltar-se
contra o descendente do Profeta. Omar recebeu a sentença sem empalidecer; escrutou o rosto dos
circunstantes como a implorar socorro, e, levantando a mão, fez a Kafur um sinal que a pequena
pareceu não compreender. O filho de Mansour franziu os sobrolhos com cólera, e murmurou: –
Maldito seja o dervixe. Teria ele acaso dito a verdade?
Minha confiança nesse beduíno ir-me-ás atirar ao abismo? Teria eu, porventura, amado
mais do que pensava esse insensato?”
Abdallah fitou o executor, e sorriu com firmeza.
– “Pobre filho, disse Hafiz, abraçando-o; sou eu quem te assassina.
– Não, meu pai; Deus é quem dá a vida e a morte. Resigna-te e consola minha mãe, Não
me lastimes; para mim a morte vale mais que a vida.”
Depois, voltando-se para Omar, que continuava fitando a negrinha, estendeu-lhe a mão,
disse: – Meu irmão, perdoa-me, em nome daquela que cuidou de tua infância.”
E, saudando respeitosamente o chefe dos crentes, pôs-se de joelhos e estendeu a cabeça.
– “Para! bradou Kafur, caindo aos pés do Xarife. Fui eu quem cometeu o crime, fui eu
quem arrancou o véu à sultana. Mata me, mas poupa Abdallah.
– Retirem essa filha de cão, ordenou o Xarife, e castiguem-na até que ela se cale.
– Perdão! dizia a criança, levada por um negro; perdão! e, por um esforço desesperado,
livrou-se dos braços do escravo, deixando-lhe nas mãos um pedaço das vestes. Piedade!
murmurava ela, abraçando os joelhos do Xarife, que a repelia brutalmente. Piedade! senhor,
Abdallah é inocente, não é ele o criminoso. Depois, de repente, percebendo as feições contraídas
de Omar, e como iluminada por um raio, levantou-se, e estendendo o braço para o príncipe,
disse: – Não sejas cruel. Lembra-te que o amor é como a loucura: tudo lhe é perdoado.
Espera! ordenou o Xarife ao algoz. Eis, pensou para si mesmo, alguma coisa estranha: as
palavras! desta escrava são as mesmas que Fátima me repetia esta manhã, sem querer explicar-
m'as... Aproxima-te, criança, disse enfim a Kafur, com a voz serenada. De onde vêm estas
palavras, sabes?
– Sim, eu o sei, respondeu a negrinha; veem de uma boca que só pronuncia palavras de
consolação e piedade.
– Conheces o sentido delas?
– Sim, continuou Kafur, que falava tremendo. Essas palavras, Abdallah jamais as ouviu;
Omar, porém, conhece-lhes há muito tempo a significação; interroga-o, ele dir-te-á tudo.
Ó meu senhor, disse Omar, rojando aos pés do Xarife, e lhe falando a meia voz: a criança
tem razão. Conheço bem essas palavras; foram elas a causa do meu crime, e talvez o exculpem.
Quem pôde iludir um coração enciumado? Quando tu me fizeste vir a Taifa, adivinharam a
natureza da incumbência que me davas, e, eu não tinha ainda saído de teu palácio, já se me havia
arrancado uma promessa louca, a que dei fiel cumprimento. Comprometi a futura sultana como
me tinham ordenado fazer. Poderia eu resistir contra uma vontade que tu proteges? Feliz aquele
que pode inspirar uma paixão tão viva; a felicidade não no fará indulgente?”
Mentindo com imprudência, o filho de Mansour estudava a fisionomia do Xarife, que
readquiria a serenidade. Seguro disso, Omar deixou de fazer súplicas àquele velho que dispunha
da vida e da morte; certo de o iludir, se pôs a lisonjeá-lo, e pouco a pouco, por suas palavras
manhosas, aplainou as últimas vagas que bramiam ainda naquela alma encolerizada.
"Levanta-te, eu te perdoo, disse enfim o Xarife; perdoo também a esse orgulhoso beduíno
que me desafia até sob o sabre do algoz. Mostrei que não temo ninguém, e sei punir quem me
insulta. Basta; guarda o sangue de meus fiéis para melhor ocasião. Moço, continuou, fitando
Abdallah com um sorriso cheio de confiança, lembra-te que de ora em diante tua vida pertence-
me; conto contigo para vingar o ultraje que nos foi feito, e conto também com teus amigos.
Como única resposta, o filho de Yussuf beijou a mão do Xarife com profunda emoção, e
Hafiz deu largas à sua alegria e reconhecimento.
“Filha da noite, disse o chefe dos crentes a Kafur, vem cá; foi tudo que te disse Fátima?
– Não, respondeu audazmente a negrinha, assumindo uma aparência misteriosa; a sultana
disse-me também que, se tu lhe perdoasses a loucura do amor, precisava de uma prova de tua
ternura.
– Fala! Que é que posso recusar a uma pobre criatura que me ama até à insensatez?
– A Sultana receia que lhe repilas o pedido; para satisfazê-lo, é necessário, diz ela, um
amor tão grande quanto o seu.
– Fala, pois! replicou o Xarife, tu me fazes morrer de impaciência.
– Pois bem, disse Kafur, não lhe dês como rival essa estrangeira desdourada pelo olhar dos
arnautas e dos beduínos.
– É somente isto? perguntou, sorrindo, o chefe dos crentes. Elevar até a mim essa mulher e
depois do que aconteceu, nunca!
Ela continuará escrava, e acabará seus dias a um canto do harém.
– Não é isto o que deseja a Sultana; ela está enciumada e inquieta.
O que ela quer é que Leila saia do palácio para sempre. Que meu esposo, dizia ela, que o
bem amado de minha alma me dê uma última prova de amor. Ele pode entregar essa criatura
àqueles que a trouxeram: entre os beduínos será fácil achar-lhe um bom casamento, e eu serei a
única a amar o senhor de minha vida.
– Como são fracas as mulheres! bradou o descendente do Profeta. O Alcorão tem muita
razão em recomendar-nos a indulgência, a nós que temos a força e o juízo em partilha. É loucura
esse ciúme de Fátima, eu coraria de ceder-lhe; apraz-me, porém, mostrar-lhe que não são
impossíveis nem para meu poder e nem para meu amor. Vai procurar Leila, e dize à Sultana que
sua rival não voltará ao harém. Esta é a minha vontade, e quero que todos a respeitem.”
Voltando-se para os beduínos: “Meus amigos, disse-lhes em voz alta, faço-vos juízes de
minha conduta. Que devo fazer da egípcia que escoltastes? Em respeito a mim mesmo não posso
tomá-la como esposa; em respeito ao Paxá, m’a presenteou, não posso retê-la como escrava. Eis,
pois, o que proponho: se há entre vós alguém que queira desposar a estrangeira, dar-lhe-ei, com
um dote conveniente; senão, casá-la-ei com um rico mercador de Medina ou de Meca.
– Deus é grande! bradou o filho de Yussuf, segurando o braço de Hafiz. Não procuremos
mais o trevo de quatro folhas; ei-lo, é meu: achei a felicidade.
– Coragem, meu filho, disse o coxo; ela é necessária até para ser feliz. Não creio, disse ele,
fitando o Xarife, que seja preciso ir até à Meca para casar a estrangeira. Se o que se quer é
somente um marido, eis aqui um moço, que não é inferior a ninguém nem pelo nascimento, nem
pela fortuna, nem pela coragem.
– Senhor, disse Omar, saudando o Xarife com profundo respeito, eu não cometeria nunca a
temeridade de erguer os olhos para uma mulher confiada à minha guarda; mas, uma vez que as
coisas mudaram e se tu o permites, ouso pretender a mão de Leila.
É uma escrava do Paxá; desde sua infância habituou-se ás doçuras e ao luxo do harém;
vinda para aqui sonhou uma fortuna que lhe foge; e quem sabe se a vida na tenda não lhe
parecerá demasiado dura? A riqueza é uma necessidade para uma mulher que viveu sempre num
palácio. Rogo, pois, a Tua Senhoria que conceda a mão da estrangeira àquele dentre nós que lhe
der o maior dote; será uma última prova de benevolência que darás àquela que deve tudo à tua
generosidade.
– Esse pedido é justo, disse o Xarife; que se traga a egípcia; venham os pretendentes; eu
lhes ouço as propostas.
– Meu tio, murmurou o filho de Yussuf, estou perdido!
– Enfim, disse Omar, Leila é minha!”
Kafur contemplou os dois irmãos e correu ao harém.

(1) Corão, III, 134

CAPÍTULO XXI – O LEILÃO

Enquanto foram procurar a estrangeira, Hafiz se aproximou do filho de Mansour e lhe


disse:
– Jovem, escuta a um velho que lhe teve, desde você menino, sobre seus joelhos. Segundo
dizem, te crês mais rico que seu pai: as mulheres vão à procura de sua fortuna e não há no Egito
nem na Síria um mercador que não se tenha honrado aliando-se contigo. Abdallah, pelo
contrário, só pode amar à uma mulher, e entregou seu coração à estrangeira. Seja generoso; paga
hoje a dívida, de gratidão que tens, fazendo felizes a Abdallah e Halima.
– Meu irmão, respondeu Omar, não é mais que um egoísta: já tenho sofrido o bastante por
sua culpa. Sabe que me empenho em possuir essa egípcia: sabe que a obterei a todo custo: por
que se declara meu rival? E que irá obter por sua obstinação, fazendo-me perder inutilmente cem
mil piastras? Que renuncie à Leila e talvez assim eu esqueça que hoje ele pôs, pela segunda vez,
em perigo minha cabeça.
– Tens a fortuna de ser muçulmano, respondeu o Coxo: caso contrário, antes que findasse
esse dia, ensinaríamos a ti que duas onças de chumbo pesam mais que todo seu ouro; mas vendo
que ainda não conseguiste o que desejas, e se Deus nos ajudar, confundiremos sua abominável
dureza.
Omar deu de ombros e saiu ao encontro a Leila.
Esta acabava de entrar coberta com um véu, e ao filho de Yussuf pareceu, não obstante, que
daquele véu espesso saia um olhar de fogo cuja violência não podia resistir. Kafur seguia a sua
senhora, o que ela havia dito à sultana e que não poderia dizer a ninguém mais? Sem embargo,
ela usava em seu pescoço um colar de corais rosa, que seguramente não fora destruído pela
escrava. De quando em quando se aproximava a um balcão coberto com uma cortina que dava à
sala, e trocava palavras misteriosas com algumas figura invisíveis. Era o harém inteiro que se
interessava pela formosa Leila, e, acaso torciam pelo filho de Yussuf.
Abdallah foi o primeiro a tomar a palavra.
– Minha fortuna, disse, consiste na fonte que hei descoberto e no jardim que plantei: mais
as armas de meu pai e a égua que domei, se pode dizer que está feita a relação de meus bens.
Tudo isso é teu, Leila, se quiseres aceitar minha alma e minha vida.
– Tudo isso vale no máximo cem mil piastras, disse friamente Omar. Aqui mesmo, em
Taifa, tenho um jardim de laranjeiras, onde o xarife tem algumas vezes a bondade de passear e
tomar café: esse jardim vale mais de duzentas mil piastras; eu se o ofereço a Leila como garantia
de igual soma em joias.
– Joias, disse o Coxo; meu sobrinho as tem tão ricas como as tuas. Tenho aqui um pequeno
cofre que vale mais que todas suas promessas.
Com assombro de todos os circunstantes, Hafiz, ajudado por Kafur, abriu um cofrezinho de
madrepérola e conchas cheio de pendentes, braceletes e adereços. Abdallah não pôde conter uma
exclamação de surpresa; entre aquelas joias havia reconhecido o bracelete de rubis que levava
Leila no dia do ataque e o colar de corais rosa que luzia em Kafur poucos momentos antes. Quis
falar, mas um sinal de seu tio lhe deteve.
– Bonitos enfeites, embora usados, disse Omar franzindo o sobrecenho. Não quero
perguntar de onde vieram esses despojos de mulheres nem perder o tempo em lhes pôr valor:
minha generosidade dará mais que tudo isso: ofereço trezentas mil piastras.
– Oferecer não é dar, interrompeu o Coxo; aqui faz falta algo mais que palavras.
Por dar resposta, Omar tirou uma carteira de sua bagagem, e tomando vários papéis os
apresentou ao xarife.
– Senhor, disse-lhe, tenho aqui as ordens de pagamento que me deste faz alguns meses e
que estão cumpridas. Somam algo mais de um milhão de piastras. Reusará sua senhoria a seu
escravo a graça de lhe servir de fiador com estes exigentes beduínos?
– Farei o que desejas e serei seu fiador por cem mil piastras.
– Se não fizer falta mais que essa quantidade, exclamou um beduíno, não deixaremos
desamparado a um companheiro e daremos uma lição a esse mercador vaidoso. Aqui estão
nossos sabres; nós os resgataremos por cem mil piastras.
E desenganchando os iatagã arrojou o beduíno aos pés do xarife, lançando a Omar um
olhar depreciativo. Hafiz se adiantou para fazer o mesmo, dando exemplo à banda.
– Recolhe seu sabre, disse o chefe dos crentes ao beduíno, eu serei seu fiador e de seus
companheiros. Não queira Deus que lhes veja desarmados a meu redor: vós sois minha glória e
minha força. Omar, antes de aventurar-se a fazer novos oferecimentos, convém que o pense bem.
O arrependimento segue a paixão satisfeita; uma querida se encontra a todas horas: mas os
amigos que se perdem não se recuperam nunca.
– Chefe dos crentes, retorquiu Omar com orgulho, sob sua palavra me tenho venturoso
neste negócio, manda deter-me, senão irei ao último, só a ti temeria desgostar. Para acabar, pois,
com este irritante assunto, ofereço um milhão de piastras: não é um dote exagerado para a
mulher que te hás dignado honrar com sua proteção.
– é Tão rico que possa fazer semelhantes loucuras? disse o descendente do Profeta: ter-te-ei
na memória para quando chegue a ocasião.
– Manda, senhor, respondeu o mercador; minha fortuna e minha vida são tuas.
Houve um momento de profundo silêncio. Leila, que até então havia permanecido em pé,
caiu sobre um divã: Abdallah inclinou a cabeça, Hafiz e os beduínos dirigiam olhares
ameaçadores a Omar, que as afrontava com ar desdenhoso: Kafur começou a gesticular de uma
maneira estranha, olhando até o balcão, e desapareceu por último do salão.
Todos os olhos estavam fixos no xarife, que parecia agitado pela dúvida.
– Tenho dado minha palavra, disse ao fim com voz lenta e dirigindo-se aos beduínos; vós
sois testemunhas de que tudo se deu conforme à mais estrita legalidade. Esse mercador
companheiro vosso de caravana, oferece um milhão: lhe pertence a escrava, se algum de vós não
dá mais.
– Aonde poderia encontrar-se essa soma no deserto? Exclamou o Coxo: só as almas
vendidas à Satanás possuem esses tesouros do inferno: nós não temos mais que nossos sabres e
nossas espingardas. Oxalá chegue logo o dia em que se conheça o que valem!
– Esqueças as joias de Abdallah? Disse o mercador sorrindo.
– Ah, irmão meu! Exclamou o filho do Yussuf; que te fiz para que me trates assim? Eras tu
o que devia cravar-me o punhal nas entranhas?
– Queres isso? perguntou o xarife a dois escravos negros que depositavam aos pés de
Abdallah um pesado cofre de prata cinzelada.
– Senhor, respondeu um dos portadores, é o tesouro do filho de Yussuf.
E abrindo o cofre tirou a mãos cheias as mais formosas pedrarias do mundo.
À primeira vista se podia calcular que o cofre continha pedras preciosas ao valor de mais
de um milhão de piastras.
– É singular, pensava o xarife; essas arrancadas de diamantes e esses braceletes de topázios
como se assemelham aos adereços que eu dava a minha sultana! Quem te envia? perguntou ao
escravo.
– Senhor, respondeu o negro inclinando-se. “O amor é como a loucura; tudo se lhe
perdoa.”
Abdallah se cria joguete de um sonho: Omar empalidecia de raiva.
– Aqui se me tem algum laço, murmurava; porém não importa; poderei mais que todos. Se
é preciso ofereço dois milhões de piastras.
Novos escravos, pesadamente carregados de bandejas, lâmpadas de prata, jarros e taças
cinzeladas, vieram como os anteriores a depositar aquela riqueza aos pés de Abdallah. À primeira
olhada, reconheceu o xarife as peças de uma magnífica vasilha que era parte do ornamento do
harém. Se a havia presenteado o Sultão, e não sem sentimento se a havia oferecido à formosa
Fátima ao dia seguinte de haver tido uma questão com ela.
– Quem lhes deu a ordem para que trouxessem aqui esses tesouros?
– Senhor, responderam os escravos ao xarife. “O amor é como a loucura: tudo se lhe
perdoa.”
– Veremos: que espanquem a esses vadios para que aprendam que a mim não se me
responde com provérbios. Quem os há enviado?
– Senhor! disse um dos escravos tremendo; Kafur nos envia.
– Tragam-me aqui essa filha do diabo! disse o xarife: si a deixam é capaz de carregar com
o palácio inteiro.
Ainda não haviam saído os escravos, quando entraram outros conduzindo os vestidos mais
raros e as telas mais preciosas. À frente deles ia Kafur dirigindo-lhes com a seriedade de um
Íman (Imã) (1). O chefe dos crentes a chamou e agarrando-a por uma orelha, lhe disse:
– Vem cá maldita. Me explicarás este embrulho?
– “O amor é como a loucura, respondeu gravemente Kafur, tudo se lhe perdoa.”
– Te atreves à mesclar à sultana nesta desordem? disse o chefe dos crentes.
– A sultana está ali, repôs com calma a negrinha assinalando o balcão: a tudo ela viu, a
tudo ouviu, a tudo ela sabe, e, emendou baixando a voz, está furiosa.
– Furiosa! e por quê? exclamou o xarife inquieto.
– Sabe, continuou Kafur, que sentes haver-lhe criticado à Leila, e adivinha o jogo desse
mercador que labora em teu nome: só a paixão, diz, pode cegar-te até o ponto de humilhar à
esses valentes beduínos que são a sustentação de teu império. Posto que não me ama, há
acrescentar, não quero nada seu; tira de minha vista as joias e os vestidos com que me
engalanava para agradar-lhe: leva tudo a Abdallah e que lute por mim até o último momento, Se
o dono de minha alma volta a mim que necessidade tenho de riquezas? Se me abandona, não
quero conservar mais que a recordação de seu amor, O xarife voltou os olhos até o balcão, e
acreditou ver através da cortina umas mãos delicadas que faziam pedaços um lenço de renda. Um
rumor de soluços comprimidos lhe obrigou à baixar a cabeça. Naquele momento compreendeu
que a amizade dos Bani-amers lhe seria mais útil que o reconhecimento de Omar, e tomou seu
partido.
– Não haverá de fazer-me cúmplice de farsas indignas, exclamou com voz solene; eu não
falto nunca à palavra que dou. Tenho querido que se assegure um dote conveniente à mulher que
protejo, e cem mil piastras me pareceu bastantes. Enquanto a decidir entre os dois rivais, é
questão que toca à Leila. Que ela opte pelo mercador ou pelo beduíno, pela cidade ou pelo
deserto; à mim não me importa: respeitarei sua eleição e farei que todos a respeitem.
– Davi e Salomão não haveriam julgado com mais acerto, exclamou o Coxo.
Os dois irmãos estavam junto à Leila: Abdallah a olhava com olhos em que ardia a paixão:
Omar lhe falava estremecido pela cólera e pelos ciúmes.
– Pensa no porvir, lhe dizia, não sacrifiques a esse homem a flor de tua juventude e tua
formosura. Sabes o que é a vida de uma mulher debaixo de uma tenda? Estão tuas manos
acostumadas à moer o grão, tecer a lã e recolher a forragem e a lenha? Te dará um beduíno os
banhos, as joias e os perfumes a que estás acostumada? Fará que te pintem as sobrancelhas e as
pálpebras? Te lavará os cabelos com água de flor-de-laranjeira e te os secará com âmbar e
almíscar? Comigo terás mulheres para que te sirvam, vestidos caros para engalanar-te, ricas joias
para embelezar-te. No serás serva, senão senhora, e teus caprichos serão leis que obedecerei com
contente.
Leila se inclinou, tomou a mão de Abdallah, e disse colocando-a sobre sua cabeça:
– Eu sou a escrava de meu senhor. Estrangeira, não tenho outro refúgio; órfã, não tenho
outra família. Ele será meu pai, minha mãe e meu irmão. Oh! bem amado meu! finalmente sou
tua! enfim posso dizer-te, que és toda minha alma!
E chorando e sorrindo ao mesmo tempo, beijou a mão de seu esposo.
O chefe dos crentes contemplava contente aquele espetáculo que lhe rejuvenescia. A lição é
um pouco forte para Fátima, pensava, porém me alegro de haver confundido à sultana. Me
parece que isto a curará por alguns dias de seus incuráveis ciúmes.
Omar permanecia calado: suas feições contraídas, seus olhos ameaçadores, tudo revelava
nele o combate da dor e o orgulho.
– Filho de Mansur, lhe disse o Coxo; tu devias casar-te com Kafur; tua alma é tão negra
como sua pele; terias filhos dignos de Satanás seu avô.
– Tio, exclamou o filho de Yussuf; não sejais cruel. Se Omar ocupasse meu posto, nos
respeitaria. Irmão, acrescentou, estendendo-lhe a mão, perdoa-me minha felicidade.
– És mais hábil que eu, respondeu Omar, te felicito por teu triunfo.
Ditas estas palavras, saiu apressadamente.
– Que grande coisa é a juventude! disse Hafiz: nesta idade se é honrado, confia em todos e
crê na virtude. Eu já sou velho e participei de guerras. Quando encontro um malvado o esmago
sob meus pés como a um escorpião, para que não piques mais.

(1) – Imã ou Íman é um dos conceitos mais polêmicos do islamismo: varia de acordo com as seitas, com a
região e com a mesquita. Para muitos grupos, é o nome dado a quem está coordenando a oração. Entre os sunitas, é
conferido aos califas e, em outro sentido, a teólogos e outras figuras notáveis. Entre os xiitas, o imã é um iluminado
que deve guiar todo o mundo islâmico em assuntos religiosos e seculares.
Falando-se em teólogos, outras duas autoridades eram os Mulá, Ulemá e Aiatolá. Os dois primeiros termos se
referem a autoridades versadas no islamismo. São professores, teólogos e advogados conhecedores dos escritos
sagrados. A diferença entre eles é que os mulá (do árabe mawla, “senhor chefe”) surgiram no Irã e são
essencialmente xiitas, e os ulemá (de ulama, “os que possuem o conhecimento”) são sunitas.
Já o terceiro, Aiatolá, é um conceito que surgiu no século XIX no Irã para designar os juristas islâmicos mais
renomados – o mais alto grau dentro da hierarquia dos mulá. O termo vem do árabe ayat allah (“manifestação de
Deus”). Entre os xiitas, uma das correntes islâmicas, o aiatolá deve agir como fonte de referência para toda a
comunidade e, para alguns, possui um poder equivalente ao do imã.

CAPÍTULO XXII – A CHEGADA

É mais fácil reter a riqueza nas mãos do pródigo ou conduzir água em um crivo, que alojar
a paciência no coração de um amante.
Ainda não assomava o dia nem as aves haviam abandonado seus ninhos, quando o filho de
Yussuf havia despertado à seus companheiros, ordenando em largas filas os camelos carregados
com os presentes do xarife e da sultana.
Só esperava já impaciente à sua adorada, a quem Fátima havia detido no harém durante a
noite para ouvir-lhe referir a história de seus amores. A mulher quer sempre à rival que não teme.
Quando Kafur abriu a porta do harém e apareceu mais feia e mais alegre que nunca,
Abdallah não pode conter uma exclamação de alegria e surpresa.
A mulher que assomava detrás da negrinha à qual tendia sua mão, era Leila?
Ela era, – um amante, não se podia enganar; porém a egípcia carregada de joias havia
desaparecido para transformar-se na beduína, moradora constante da tenda. Leila estava vestida
com uma túnica de algodão azul longa que se fechava em torno do pescoço para descer até os
pés. Em cima a túnica tinha um albornoz de lã avermelhada que lhe cobria a cabeça. Seus
cabelos negros eram penteados em múltiplas tranças pequenas e numerosas que arrematavam-se
em uma conta de coral, lhe caiam pela frente até os olhos, prestando novo brilho e doçura seu
olhar. Com aquele modesto traje, com a cabeça descoberta e os pés nus a faziam parecer a rainha
do deserto.
Os beduínos encantados a saudavam alegres, alegres aquela encantadora criatura, à medida
que ela passava, fresca e risonha como o amanhecer de um dia sereno.
A caravana se pôs a caminho: uma tempestade recente reavivou natureza; a grama
molhada, ainda úmidas pelas gotas de orvalho, e as flores frescas e recém abertas, sorriam
àquelas almas ditosas. Abdallah, com a mão apoiada no bordo do palanquim, marchava à cavalo
ao lado de Leila; conversavam durante o percurso. Kafur não se havia mostrado jamais tão
faladora e insolente.
– “Oh, Abdallah,” disse Leila sorrindo, “Que Deus te castigue”, com o peso de teu braço
vais derrubar a liteira obrigando-nos a fazer o caminho a pé.
– Bah! respondeu o filho de Yussuf, deixa que flutue a rédea do camelo, então; não recuse-
me o prazer de segurar sua mão.”
– “Ingrato!” disse Kafur, “já não te recordas de mim. Então, beduíno negro da lenda que
rouba a esposa do califa Mohavish?” (Moyawiah) E com uma voz alegre como a da cotovia,
começou à cantar a “Canção da formosa beduína”, tão popular entre os árabes (1).

“Oh, leves este manto purpúreo;


Restitui minha larga de pelo de camelo,
E me sustente neste amontado
Aonde as tendas negras singram aéreas.
O potro do camelo, hesita seu passo,
O cão, como tudo, late em mim,
Encanta-me mais o manso trote das mulas,
Que toda arte do menestrel.
Como um primo qualquer, pobre mas livre,
Poderia me levar, asno predestinado, da árvore.”

Eles continuaram deste modo o dia inteiro, sem pensar na fadiga nem no calor. Quando a
alegria vem o sofrimento, se pode pensar em outra coisa que nela? Hafiz se havia encarregado de
dirigir a caravana, de sorte que Abdallah não tinha para que abandonar nem por um momento o
tesouro, devolvido pelo triunfo, e que os beduínos levavam às suas tendas.
Pela tarde descobriram as tendas dos Bani-amers. O sol se punha sob a abóboda de um
imenso arco íris, uma luz rosada iluminava as areias do deserto, e os raios de ouro do astro rei,
quais relâmpagos, cintilavam no cume das pirâmides de granito. À distância se ouvia o gemido
rouco e estridente da saqiya, os latidos dos cães e o arrulho das pombos. De repente um grito
penetrante anunciou o retorno dos viajantes.
– Que grito é esse? perguntou Leila.
– É a voz de minha mãe, respondeu Abdallah, apeando de sua égua. “A partir de hoje
seremos dois a amar-te.”
Halima logo apareceu manifestando seu assombro ao ver aquela caravana tão numerosa,
– “Que é tudo isso?”, perguntou apontando para os fardos. “O filho de Yussuf vendeu seu
cavalo e suas armas para tornar-se um mercador?
– “Sim, minha mãe,” respondeu Abdallah; “E eu trago o mais apreciado e o mais raro de
todos os bens; uma filha que te respeitará e ajudará.”
Leila desceu da liteira para arrojar-se nos braços da beduína que olhou para ela
surpreendida e lhe perguntou o nome de seu pai e de sua tribo.
A presença de Kafur não a maravilhou menos; de modo que apesar de todos os discursos
de Hafiz, Halima retornou para a tenda com um suspiro. A verdade era que não tinha grande
afeição às estrangeiras. Mas quando Abdallah, depois de haver descarregado os camelos, veio à
sentar-se à seu lado, Leila apressou com uma bacia de água quente à lavar, por si mesma, os pés
de seu marido, a anciã exclamou transportada de gozo: “Deus seja louvado!” Esta mulher será
verdadeiramente uma criada de seu marido. Esta casa encontrou finalmente sua senhora, já posso
morrer em paz.” E dizendo isto, ternamente foi abraçar àquela filha que Deus, em sua bondade,
lhe havia dado.
– Que tens, Mestre? disse Kafur, que, recostada aos pés de Abdallah, descansava a cabeça
apoiada nos joelhos de seu salvador; A fumaça de seu cachimbo entrou em teus olhos? Qualquer
um diria que choras. Vá, pois se o cachimbo está apagado. Queres um carvão para acendê-la?
– Cala-te: cala-te: murmurou o beduíno, passando a mão sobre a cabeça da negrinha, como
se acariciasse a um cão fiel: a criança voltou à recostar-se, porém ao mesmo tempo tirou com tal
força do braço de sua senhora, que a frente de Leila tocou nos lábios de Abdallah. Kafur se pôs a
rir do sucesso de seu estratagema. Pobre criatura! Para quem tudo era negado, mas que havia
encontrado um meio de ser ditosa, colocando a sua felicidade na felicidade dos outros.

CAPÍTULO XXIII – KARA-SHITAN

Omar havia voltado para Djeddah presa da desesperação, inutilmente trataram seus
escravos de desviar sua atenção inutilmente se lhe ofereceram negócios e dinheiro, a paixão lhe
consumia, passando-se os dias e mais dias encerrado em seus aposentos, com as pernas cruzadas
sobre uma tapeçaria, revolvendo, em sua imaginação, projetos insensatos e buscando uma
vingança, cuja forma não podia determinar.
– “Que proveito tem o que meu pai desejou para mim?” Ele caia em lágrimas. “Para que
me servem a saúde e o dinheiro que amontoei, de sou o mais infeliz dos homens? Esse miserável
beduíno miserável, em sua pobreza, triunfa sobre mim, e eu em meio a minha abundancia
permaneço triste e abandonado! Maldita seja a vida, maldito seja meu irmão! O oráculo não se
enganou, meu melhor amigo é o que me mata.”
E pensando assim voltava a cair em seu abatimento.
O pesar de Omar era objeto das conversações da cidade inteira. Ninguém tinha grande
estimação ou pena pelo filho de Mansour, um homem azedo, em troca, porém todos tinham em
alta conta sua posição e fortuna, e não faltavam pessoas que esquentavam a cabeça buscando
algum consolo para vender-lhe, em troca de uma recompensa. Despois da humilhação sofrida
diziam, pagará bem ao que lhe vingue do beduíno.
As palavras que se atiram aos ares, não se perdem nunca, em seu voo. A fatalidade do rico
consiste em que sempre existem pessoas prontas à entrar por sua conta no inferno. A paixão do
pobre é uma chama que lhe consome o coração, porém que quando lhe consome se extingue, a
paixão do rico é uma fogueira que cada qual alimenta e daí saem o incêndio, o crime e a morte.
Uma manhã anunciaram à Omar a visita de um capitão de arnautas que segundo haviam
dito, ia à tratar de negócios importantes que não se podiam adiar. Omar educadamente o recebeu
atentamente mandando servir os cachimbos e o café.
– “Bom café!”, disse o capitão sorvendo-o lentamente; “Amargo como a morte, negro
como o diabo, quente como o inferno. Que mistura primorosa de nós moscada, canela e cravo-
da-índia!” Ditosos os ricos! O mundo parece movimentar-se ao seu redor.”
– “Os homens, às vezes, se enganam ao crerem na felicidade dos ricos, disse Omar
suspirando.”
– “Ora! Um homem rico que teme pesares é um avaro que não sabe gastar seu dinheiro. Se
deseja uma mulher que lhe compre; se quer livrar-se de um rival que ponha preço à sua pele.
Tudo pode ser comprado aqui na Terra; Com dinheiro se tem tudo.”
– “A quem tenho a honra de falar?” perguntou o filho de Mansour.
– “Me chamo Kara-Shitan,” respondeu o estranho, recém chegado. “Eu sou capitão de
arnautas - um daqueles que os atacaram no deserto. Ao matar seu irmão Abdallah a meu amigo
Mohamede fez-me perder um negócio de cinco mil duros; paga-me essa dívida e te livro de
Abdallah.”
– “Um assassino!” disse Omar.
– “Ora!” retorquiu friamente o capitão; “Se Deus não houvesse inventado a morte
acabaríamos por comermos uns aos outros. Longe de falsos escrúpulos, quando se tem a ocasião
na mão, a prudência aconselha não deixá-la ir. Nada mais justo que obrigar nossos inimigos à
beber do amargo cálice que nos fez provar. Está em seu direito o que lucre com a arma com que
primeiro lhe feriram.”
– “Porém...; à meu irmão!” murmurou Omar como quem hesita.
– Teu irmão é teu inimigo: que te importa sua morte? Você não terá participação. Eu
matarei a Abdallah como a um cão se o achar no deserto. Eu não farei mais que vingar-me
pessoalmente, só que para vingar-me necessito esses cinco mil duros.
– “E de que me servirá tua vingança?” retrucou o filho de Mansour.
– “Eu não sei,” respondeu Kara-Shitan. “Eu nada entendo de negócios, tu sim os entendes;
porém se estivesse em seu lugar e Abdallah desaparecesse, logo haveria conseguido a bela Leila.
Segundo dizem, o beduíno não tem mais nenhuma família; apenas sua mãe e um velho louco;
com um pouco de coragem e de dinheiro se removerão estes obstáculos. Um rapto não é coisa
difícil; Leila, uma vez que viúva em sua casa, não tardará a consolar-se. Que existe para temer-
se? O xarife? Em Djeddah se riem da cólera dos beduínos. O paxá? É um homem como todos;
Ele tem uma ciência de trapaceiro, e nós sabemos seu preço.”
– “E a tribo pensastes nela?” “A tribo não me importa em nada,” disse o capitão. “Sei que
esses beduínos possuem tanto rancor r malícia quanto seus camelos; porém o sangue se paga
como tudo. No deserto, como em qualquer outra parte, o dinheiro nunca é desprezado, mais que
em qualquer outro lugar, e os Bani-amers se consolarão eles mesmos com a herança de
Abdallah.”
– “Sim,” replicou Omar, “o sangue se paga quando o homicídio é involuntário. Cem
camelos é o preço do sangue de um homem; porém quando se trata de um assassinato não
transigem; então a pena é a do Talião e me matarão.”
– “O deserto é mudo,” disse o capitão, “e os mortos não falam.” Quando se encontra um
cadáver dissecado em meio dos areais, se deve ser realmente astuto para distinguir se ele foi
vítima de um homicídio ou de um acidente casual. Mas, enfim, chega de conversa inútil,
completou erguendo-se, que me importa a bela Leila à quem nunca vi? Que siga amando à seu
beduíno, que sejam ditosos juntos e que juntos caçoem do filho de Mansour, – é todo o mesmo
para mim.
Afinal, depois de tudo, Abdallah é um homem valente à quem estimo. Se tu houvesse feito
a ofensa que ele fez a ti, estou seguro que não teria esses escrúpulos para vingar-se. Adeus!”
– “Espera,” exclamou o filho de Mansour; “Tens razão, enquanto Abdallah viver não
haverá paz na terra para mim. Isto foi predito em meu nascimento e cada vez o conheço melhor.
Livra-me deste inimigo. Também com o Coxo tenho uma conta pendente e já a acertaremos. Oh
Leila, Leila!” continuou; “quantos sacrifícios me custam teu amor!”
“Se queres crer-me,” concluiu o capitão, “ambos golpearemos ao mesmo tempo. Eu atrairei
Abdallah para o mais distante, seguro de que não haverá de retornar e tu, no entanto, roubas a
egípcia; E tudo se concluirá em não mais que duas horas, batendo ao inimigo antes de que ele
precinta o perigo.”
“Assim o faremos,” disse Omar; “Mas lembre-se porém que eu nunca mais desejo voltar a
ver seu rosto novamente.”
“Isto é muito natural,” respondeu Kara-Shitan, “diga-me o dia e a hora do golpe, dá-me
cinco mil duros e conta com minha pontualidade. Eu não falharia em manter a minha palavra, a
meu compromisso nem pelos mais formosos cavalos da Arábia.”

CAPÍTULO XXIV – A HOSPITALIDADE

Enquanto a avareza e o ódio tramavam juntos a morte de Abdallah, o filho de Yussuf


gozava de sua ventura, sem suspeitar sequer que poderia formar-se uma nuvem no horizonte.
Podia crer que tinha inimigos, sendo tão pura sua alma e abrigando um coração tão leal? Quando
se ama e se sente correspondido, parecem irmãos todos os homens. Cheio destas generosas ideias
fazia um mês que se embriagava de ternura e alegria, sem outros cuidados que admirar à Leila e
dar graças de Deus que havia abençoado sua casa.
Durante uma dessas manhãs sufocantes e pesadas que precedeu à tempestade, o beduíno
repousava em seu jardim à sombra dos limoeiros. Kafur sempre indolente, estava recostada aos
pés de seu senhor como um cão que espera uma olhada ou uma ordem: no fundo da tenda Halima
se ocupava de assar pães entre as cinzas quentes. Leila, ajoelhada diante de um bastidor, bordava
de ouro, prata e seda um albornoz para seu marido: rodeado de quanto amava no mundo, o filho
de Yussuf parecia abandonar-se à dita de viver, cercado por tudo que ele amava.
O latido dos cães despertaram Abdallah de sua profunda abstração; um homem havia
parado seu camelo à entrada do jardim e estendia sua mão ao beduíno. Leila desapareceu.
Abdallah saiu ao encontro do estrangeiro.
– “Sejas bem-vindo,” lhe disse, “tua chegada nos traz a bênção de Deus. A tenda e tudo
quanto ela contém te pertence, podes dispor a teu desejo.”
– “Filho de Yussuf,” respondeu o estranho, “não porei meus pés no chão, até que tu jures
prestar-me o favor que vou pedir-te.”
– “Fala,” disse o jovem, “tu és meu convidado e tuas palavras são uma ordem.”
– “Eu sou um pobre mercador da Síria,” continuou o estrangeiro, “havia vindo à Meca para
alguns negócios. Ontem me travei uma discussão, na cidade santa, com um Bani-mutayr’s,
(@Mutayr é uma das maiores tribos predominantemente árabes sunitas da Península Arábica ,
especialmente Arábia Sauditae Kuwait . A tribo Mutair pertence a Ghatafan, que é descendente de
Ismael, filho de Abraão (o pai dos árabes). os ramos principais de Mutayr hoje são Banu Abdullah,
Al-'Olwa (também soletrado 'Llwah) e Braih.)e das palavras passamos às obras e tive a desgraça de
matar à meu adversário. Sua família e seus amigos me perseguem e não tenho a ninguém que me
defenda; se não puder alcançar a nobre Medina, estou perdido. Segundo me disseram, só tu
podes conduzir-me em segurança até esta cidade. Minha vida e meu destino estão em tuas mãos.”
– “Entra em minha tenda,” respondeu o filho de Yussuf, “partiremos em duas horas.”
– Pensa, disse o mercador, que só me fio em ti.
“Lembre,” disse o mercador, “que, eu mesmo, só confio em ti.”
– “Somente eu te acompanharei,” disse Abdallah “e respondo por tua segurança com a
minha cabeça.”
Depois que o estrangeiro entrou na tenda e foi confiado aos cuidados de Halima, o jovem
beduíno saiu para preparar a partida, Kafur, entretanto, parou em seu caminho. “Conheces a esse
homem?” Perguntou ela.
– “Não, porém que me importa? Deus o enviou.”
– “Ele não é um mercador: vi suas pistolas e são demasiado boas; é um soldado, te
previnas, não te fies.”
– “Soldado ou mercador, replicou Abdallah, o que eu tenho que temer de um estranho e
um fugitivo?” Retorquiu Abdallah; “Apressa-te à servir-nos a comida, só terei tempo para
despedir-me de Leila.”
Quando o filho de Yussuf retornou para junto de seu convidado, Kafur já havia colocado,
diante do pretenso mercador uma pequena mesa com uma cesta de folhas de palmeira. Levou
depois pão sem levedura, tâmaras, arroz cozido, mel, leite azedo e água fresca. Dando voltas ao
redor do estrangeiro ela não tirava seu olhar, querendo recordar de onde havia visto
anteriormente aquele rosto suspeito, familiar para ela. O desconhecido conservava a calma e a
indiferença de um homem que não se apercebe de que se ocupam dele.
Kafur quis concluir de uma vez com suas dúvidas rompendo o véu que lhe ocultava o
perigo: para lográ-lo tomou um jarro de terra cozida e colocando-se por detrás do hóspede,
deixou-o cair ao solo, transformando-o em pedaços. O estrangeiro encolerizado se voltou
rapidamente para olhá-lo.
– “O arnauta!” gritou a negrinha, dirigindo-se à Abdallah.
– “Sai daqui, maldita!” exclamou o beduíno, “e não me aborreça com suas loucuras!”
Kafur se retirou a um estremo da tenda, de donde voltou em seguida com chá fervente. O
estrangeiro estava completamente tranquilo: a palavra “Arnauta” não o moveu.
– “Hóspede,” disse Abdallah, “seja bem-vindo à esta pobre mesa. A jornada será longa e
bom é prevenir-se contra a fatiga. Satisfaça sua fome.”
– Perdoa-me, respondeu o mercador; “Minha ansiedade e fadiga deram a mim uma febre, e
eu tenho um só desejo: pôr-me a caminho.”
– “O sal abre o apetite,” exclamou Kafur, e tomando um punhado de sal, ela o meteu na
boca do estrangeiro, fugindo depois pata refugiar-se no jardim.
– “Imprudente!” gritou o filho de Yussuf, “eu punirei sua insolência!” E furioso correu em
perseguição de Kafur para corrigi-la.
– “Pega,” dizia Kafur dizendo, “pega o cão que te adverte e acaricia ao chacal que te vai
devorar. Não ouvistes os latidos desta manhã? Teus cães viram a Azrael. Insensato, teus pecados
te cegam! a morte floresce sobre esta casa. Eu conheço a esse mercador?”
– “Um convidado está acima de qualquer suspeita.” interrompeu Abdallah. E retornando à
tenda encontrou ao estrangeiro no mesmo lugar com um sorriso nos lábios.
– “Creio que a escrava deu a mim uma lição em cortesia,” disse ele, “a barba do convidado
está nas mãos do dono da tenda: me empenharei para aproveitar de tua hospitalidade.” E
começou à comer com bastante apetite para um homem doente, conversava com fluidez sobre
diferentes assuntos e procurando parecer agradável ao filho de Yussuf.
No momento da partida e quando o estrangeiro estava já sobre sua montaria, saiu Leila
com o rosto semicoberto pelo albornoz, segurando um cântaro em suas mãos, de que ela borrifou
um pouco de água sobre os pés e a coxa do camelo.
– “Que Deus te dê boa jornada,” disse ao mercador, “e que te retornes em segurança para
aqueles que te esperam e te amam”
– “Aqueles que me amam estão sob a terra,” respondeu o estrangeiro “E desde que perdi
minha mãe, vinte anos atrás, ninguém mais me espera.”
– “Então que Deus te dê uma esposa para amar e que envelheça a teu lado.”
– “Partamos,” exclamou o estrangeiro abruptamente, “os momentos são contados.”
– “Meu senhor,” disse Leila a seu esposo, “contigo vai minha felicidade; oxalá me a tragas
novamente contigo!”
Kafur estava ao lado de Abdallah.
– “Senhor,” lhe disse, “não levas tua espingarda?”
– “Não! Seria um insulto àquele a que acompanho. Não tema nada; ao que Deus guarda vai
bem defendido. Quando retorne meu tio, diga-lhe que vigie a tenda. Depois de Deus é a ele em
quem confio a guarda de vocês.”
E tomando sua lança, Abdallah se pôs a caminho, seguindo a pé ao lado do camelo do
estrangeiro. Halima e Leila seguiam, com o olhar, aos caminhantes até quando puderam
distinguir-lhes, e depois, entraram à tenda. Kafur permaneceu só do lado de fora, com o olhar
fixo e o coração temeroso. Parecia-lhe, a cada momento, que o horizonte estava para se abrir e o
deserto para devolver o seu senhor. Vã espera de uma alma ansiosa! A noite, escura e silenciosa,
atacou a terra sem trazer Abdallah.

CAPÍTULO XXV – A FOLHA DE OURO

Apenas se internaram nos areais, olhou o estrangeiro a seu redor para assegurar-se de que
se encontravam a sós e levou a mão à bandagem, da qual pendiam as pistolas e começou a tocá-
las.
– “Eu espero, meu querido hóspede,” lhe disse Abdallah, “que me perdoarás a loucura
daquela criança que te turvou durante a refeição.”
– “Se a escrava fosse minha, eu a haveria castigado severamente”, respondeu o viajante
– “Nós devemos ser indulgentes com aqueles que nos amam,” disse Abdallah. “Kafur cria
que um grande perigo imaginário me ameaçava e cometeu aquela imprudência para salvar-me,
assim, involuntariamente ela ofendeu-te. Forçando-te a provar o sal de minha mesa, ela nos fez
amigos para toda a vida e morte. Entre vós os naturais da Síria, não acontece o mesmo?”
– “Em minha tribo,” respondeu o mercador, “a amizade dura um só dia, se se passa o
segundo dia sem que se torne a comer no mesmo prato, o sal perde sua virtude, e nós estamos
livres para odiar um ao outro.”
– “Pois bem, meu convidado,” disse Abdallah sorrindo, “Tu deverás matar-me amanhã
depois que eu tenha salvo a tua vida. Até então estou sob sua custódia e deves proteger-me contra
todos.”
– “Assim o farei, respondeu o viajante e permaneceu silencioso. “Estas são palavras
estranhas,” pensava ele. “Essa era uma coisa com que não havia contado; esse beduíno tem
razão, não posso o matar enquanto o sal de hospitalidade está ainda em meu estômago, – seria
um crime. Esperarei até a noite! Quando se ponha o sol, começará outro dia e então tenho o
direito de fazer o que quiser.”
Durante o caminho, o viajante não apartava o seu olhar de Abdallah que avançava com a
fronte alta e o olhar sereno. As pistolas do filho de Yussuf estavam desmontadas e, embora
conservasse a lança em sua mão, era mais bem para servir-se dela, como apoio que como defesa.
– “A confiança desse homem me causa embaraço, dizia o estranho para si mesmo; eu
alegremente cairia sobre um inimigo, não posso sacrificar uma ovelha, Cinco mil duros por tal
tarefa não são suficientes; Preferiria exterminar, pela metade desta soma, aquele cachorro do
Omar.”
Quando o sol estava a ponto de ocultar-se, o estrangeiro avivou o passo de seu camelo a
fim de preparar, sem que Abdallah se desse conta, as armas; ocultou depois o braço sob o
albornoz e se deteve.
– Vamos, pensou ele, chegou o momento.
Quando ele virou-se, o filho de Yussuf se aproximou ele, deteve o camelo pela rédea e
cravando a lança na terra, estendeu dois tapetes sobre a areia.
– “Irmão,” disse ao desconhecido, “esta é a hora da oração. Temos a keblah a nossa frente e
se precisarmos de água para a ablução, sabes que o Profeta nos permite substitui-la pela areia do
deserto.”
"Continuemos,” exclamou o mercador, “eu não tenho nenhum tempo para desperdiçar
aqui.”
– “Não és muçulmano?” perguntou Abdallah olhando para ele com ar ameaçador.
– “Não há mais Deus que Deus e Maomé é seu Profeta,” se apressou a responder o
estrangeiro. “Mas a religião de um peregrino pobre como eu, é mais simples que a de um nobre
Bani-amer. Eu não peço nada à Deus, porque creio que Deus faz bem tudo o que faz, não lavo o
rosto, porque a água do deserto me serve para beber; não dou esmola porque estou à ponto de
pedi-la; não jejuo no mês de Ramadã, porque padeço de fome todo o ano, e não faço a
peregrinação a Meca, porque creio que a Terra inteira é a casa de Deus. Está é a minha fé. Tanto
pior para aqueles que são muito bons para gostarem disto.”
– “Me assombras, meu convidado,” retornou o filho de Yussuf, “eu havia formado outra
opinião sobre ti. Não levas, como eu, atado ao braço um amuleto que afasta as tentações do
Espírito do Mal? E se o levas, não sabes que contém os dois capítulos salvadores?
– “Sim, levo um talismã, disse o viajante. Faz vinte anos que me o entregou minha mãe
antes de morrer, agonizante em sua cama. É a única coisa que respeito, e mais de uma vez
afugentou a morte que pairava sobre mim.”
– “E hás esquecido as palavras que constituem a virtude desse tesouro?”
– “Nunca me aborreci em aprendê-las,” replicou o desconhecido,” minha mãe as escolheu
para mim e ela sabia neste assunto mais que eu.”
– “ouça-as, pois,” exclamou Abdallah em tom solene. “Quando se vive em meio das ondas
de areia que um sopro pode subjugá-lo, é bom acercar-se da oração para afugentar o perigo. Deus
ouve com gosto ao que lhe suplica, Oh Senhor, a ti seja dado todo o louvor pelos séculos dos
séculos!”
E curvando-se em direção a Meca, o filho de Yussuf repetiu, com emoção, o capítulo do
Alcorão intitulado

A ALVORADA DO DIA (1).


Em nome de Deus clemente e misericordioso,
Dizeis, eu procuro um amparo perto do Senhor da ALVORADA DO DIA;
Contra a maldade dos seres que criou;
Contra os perigos da noite sombria;
Quando a noite nos surpreende;
Contra os danos daquele que nos tem inveja.

– A paz seja contigo! exclamou o mercador.


Essas são as palavras que me deixou minha mãe.
E prestando atenção a Abdallah, deixou outra vez as pistolas no cinto.
O filho do Yussuf continuou s recitar o Corão.

OS HOMENS (2).
No nome de Deus clemente e misericordioso,
Dizeis, eu procuro um amparo perto do Senhor dos homens;
Rei dos homens;
Deus dos homens;
Contra a maldade do que nos sugere os maus pensamentos
e se oculta.
Contra o que sussurra o mal no coração dos homens;
Contra os gênios e contra os homens.

– Quem diz isso? perguntou o desconhecido. Quem lê assim no mais secreto do coração?
– Deus mesmo, respondeu Abdallah. Nós somos sujos. Se quer nossa perdição, nossos pés
nos conduzem aonde nos espera a morte. Se quer nossa saúde, a morte cai a nossos pés como um
leão ferido, Ele tirou a Abraham dentre as chamas, e a Jonas do fundo do mar e das entranhas da
baleia.
– Tu não tens nunca medo à morte? disse o mercador.
– Não, respondeu Abdallah. Onde Deus manda, toda precaução é inútil. Há dois dias na
vida do homem em que é embalde quanto faça para defender-se da morte, – o dia em que Deus
ordena a Azrael para nos atingir, e o dia em que se proíbe.
– “Sem embargo, devemos essa hora desconhecida cujo destino é levar-nos para longe?”,
questionou o viajante.
– “Se se há seguido a palavra de Deus, não,” disse o filho de Yussuf. “Tua mãe
indubitavelmente haverá repetido a ti, como a minha, muitas vezes, repetia para mim a máxima
de nossos sábios: “Recorda-te de que o dia de teu nascimento todos estavam alegres e só tu
choravas. Vive de modo que em tua hora póstuma todos os demais chorem e só tu não tenhas que
derramar lágrimas, Assim não temerás a morte, seja a que queira a hora que escolha para
arrebatar-te de entre os teus.”
– Vós os habitantes do deserto, sois um povo estranho, murmurou o desconhecido: Vossas
palavras são de ouro e vossas ações de chumbo. E enquanto pronunciava estas frases, acariciava
maquinalmente com a mão suas pistolas.
– Nós somos o povo do Profeta, respondeu o beduíno e seguimos suas máximas. Antes que
houvesse posto o pé em minha tenda, acrescentou elevando a voz, já te havia reconhecido Kara-
Shitan. Tu és meu inimigo e hás entrado em minha casa com um nome falso, ignoro com que
objetivo. Nada me haveria sido mais fácil que desfazer-me de ti; porém me há pedido
hospitalidade, Deus te há posto sob minha custódia; é por isso por que te acompanho só e sem
armas. Se tens maus pensamentos, que Deus me proteja: se és meu amigo, dê-me a mão.
– “Que o inferno seja minha herança se eu tocar em alguém pelo que fez tão nobremente!”
Disse Kara-Shitan. “Tens aqui minha mão, a mão de um soldado que devolve o mal pelo mal e o
bem pelo bem.”
Ainda não havia o Arnauta acabado de pronunciar estas palavras, quando experimentou
como um tardio arrependimento.
– “Sempre me portarei como um menino, pensou ele. “Devolverei os cinco mil duros?
Não! Omar é rico o suficiente para pagar a dívida de seu irmão. Além disso eu não o liberto de
Abdallah? Se o seu coração não falhou, Leila já estará a caminho de Djeddah. Enfim, se não lhe
parecer bem o que fiz, deixe que venha reclamar os seus duros. Eu lhe prometi matar a alguém,
darei a ele a preferência.” Neste pensamento feliz Kara-Shitan riu consigo mesmo, admirado de
sua própria genialidade.
Um momento depois o remorso tomou conta de sua consciência. “Não é natural,” dizia
nunca cometi uma debilidade semelhante. Quem agora requisitará a minha ajuda? Sou como um
leão velho sem dentes ou garras. Aquela jovem mulher que, tão suavemente, me falava, este
beduíno que confiou em mim, a voz de minha mãe que parece sair de sua tumba, – tudo isto me
parece coisa de magia, Maldito amuleto, tu és o que me pôs perdido!” E ao dizer estas últimas
palavras arrancou o talismã do braço.
“Capitão,” disse neste momento Abdallah, “nós devemos mergulhar no deserto se não
queres encontrar aquela caravana que vemos lá embaixo a caminho da nobre Medina.”
– Não, respondeu Kara-Shitan, antes, pelo contrário, desejo alcançá-la e juntar-me a eles;
já não tenho necessidade de teus serviços. Que te darei como mostra de minha gratidão? Toma
esse talismã. Tu não sabes o que lhe deves nem o quanto me custa. Adeus ouvir alguém disser
que sou covarde, não esqueças que fui teu hóspede e teu amigo.
Ditas estas palavras, apressou o passo a seu camelo e desapareceu deixando à Abdallah
confuso e sem poder decifrar o sentido daquelas frases obscuras.
Quando se viu só o filho de Yussuf quis atar à seu braço o amuleto protetor: este consistia
em um rolo diminuto de pergaminho atado com uma seda: à um de seus lados haviam cosido um
pedaço de veludo, sobre o qual se via algo semelhante a uma abelha dourada presa. Abdallah
soltou um grito de alegria. Não era um engano, era a terceira folha; a folha de ouro! O trevo
estava completo! O filho de Yussuf não tinha mais nada que buscar na terra; a folha de diamante
lhe aguardava no céu?
Com a alma transbordando, cheia de gratidão, Abdallah prostrou-se ali mesmo, naquele
chão e com uma voz carregada de emoção recitou o Fát-hát:

Em nome de Deus clemente e misericordioso.


Louvores sejam dados a Deus, senhor do universo;
O clemente, o misericordioso;
Soberano no dia do julgamento;
A ti só te adoramos, de ti só imploramos auxilio:
Conserva-nos no caminho direito;
No caminho daqueles que tens favorecido;
Não daqueles que incorreram em tua ira, nem dos que se extraviam;
Assim seja, Senhor dos anjos, dos gênios e dos homens (3).

A oração terminou, Abdallah empreendeu o caminho de volta, com o coração leve e o


passo ligeiro.
Um novo pensamento mexia com sua cabeça, um pensamento que por si só constituía uma
nova felicidade nele mesmo. Era certo que a folha de diamante havia caído no paraíso? Aquelas
três folhas reunidas vindo para reunir-se de todos os partes do globo, pareciam chamar a sua
irmã? Poderia uma bênção de Deus ficar incompleta? Quem podia saber se um novo esforço,
uma mais completa abnegação à vontade divina não obteria, acaso, a suprema recompensa a que
aspirava o coração de Abdallah?
Entorpecido por esta esperança, caminhava o filho de Yussuf sem inquietar-se pela
distância e as fadigas da jornada. A chegada da noite e a escuridão o obrigou a deter-se. O céu
parecia abaixar-se obscuro e a lua, por longo tempo, teimava em não levantava-se. Envolto em
seu albornoz o beduíno recostou-se ao pé de uma árvore e dormiu em seguida.
Mas seus pensamentos não deixavam o Trevo divino; Ele viu isto em seus sonhos. Então as
folhas cresceram e assumiram a forma humana; eram Leila, Hafiz, Halima e a pobre Kafur que
se davam a mão, formando a planta misteriosa, e envolviam e enriqueciam a Abdallah com seu
sorriso e seu amor. Até manhã, amados meus, amanhã nós devemos nos encontrar novamente!”
Murmurou ele.
Deus se há reservado o domínio e o conhecimento das horas... ninguém alma sabe o que
lhe trará dia seguinte; ninguém sabe em que ponto da terra morrerá. Deus é o que o sabe e a tudo
conhece (4).
(1) Corão, cap. CXIII.
(2) Corão, cap. CXIV.
(3) Corão, cap. I.
(4) Corão, cap. XXXI, 34.

CAPÍTULO XXVI – O RETORNO

Quando despertou o filho de Yussuf, a lua derramava ainda sua doce claridade sobre as
areias, porém se sentia já a brisa da manhã. O viajante impaciente acelerou seus passos e ao
romper o dia ele divisou, a distância, as tendas de sua tribo. Diante da aldeia e nas proximidades
se destacavam sua habitação e o jardim que havia plantado, no qual permanecia sempre até o fim
do outono e era onde ele permanecia com Leila.
Ao descobrir sua casa se deteve Abdallah, para respirar e gozar do espetáculo que se
oferecia à seus olhos. À tranquilidade da noite, sucediam o movimento e os murmúrios do
amanhecer. Algumas mulheres se dirigiam com cântaros sobre a cabeça até os poços, os camelos
zurrando elevando seus longos pescoços; as ovelhas encerradas balindo chamavam pelo pastor.
Em torno da tenda de Abdallah tudo permanecia silencioso: no jardim não se notavam
movimentos nem ruídos.
– “Meu pobre tio está se tornando velho,” pensou; “cada dia faço mais falta. Que
felicidade, chegar inesperadamente e surpreender a todos! Quem teria pensado, em outra
oportunidade, que um dia de ausência pareceria tão longo?”
No momento em que descia a colina, um cavalo escapado passou, a galope, à frente dele;
era Hamama. Abdallah a chamou, porém a égua assustada seguiu espavorida em direção à aldeia.
Pela primeira vez não obedecia à voz de seu senhor.
“Quem desatou o cabresto de Hamama?” pensou Abdallah, “quem a terá espantado?
Alguma nova travessura de Kafur. Porém, porque não estão mais de sobreaviso?”
Com estes pensamentos ele chegou ao jardim: o portão estava aberto. Ao ruído de seus
passos saíram os cães da tenda; porém ao invés de correr para o encontrar, começaram a emitir
um uivo triste. “Deus é grande!” Exclamou o filho de Yussuf; “a desgraça entrou em minha
casa.”
Sentindo as amarguras da morte, quis avançar; porém se lhe curvaram os joelhos e uma
nuvem passou ante seus olhos. Ele tentou gritar, mas suas palavras o sufocavam. Por último,
fazendo um esforço desesperado, gritou: Tio! minha mãe! Kafur! Onde estão todos?
O eco de sua voz se perdeu sem obter resposta. As pombas arrulhavam em cima das
árvores, as abelhas zumbiam ao redor das flores que restaram, a água corria saltando por entre as
pedras e os sulcos, tudo no jardim conservava a vida; só interior da tenda estava como que
emudecido ou morto.
Abdallah se arrastava penosamente entre os arbustos. Recobrou de novo algumas forças, o
sangue lhe acendeu o rosto e avançou vacilando como um homem embriagado.
Na tenda não havia ninguém, tudo estava vazio, a mobília derrubada, uma mesa quebrada,
estava claro que ali fora palco de uma luta. A cortina do quarto das mulheres estava rasgada.
Abdallah se dirigiu até aquele cômodo, porém ao entrar seus pés tropeçaram em algo estendido
no chão: era o cadáver de Hafiz.
O Coxo estava estirado de costas com os dentes cerrados, a boca coberta de espuma e as
feições contraídas pela cólera. Suas mãos estavam estendidas; na mão esquerda tinha um pedaço
de algodão azul do vestido de Leila, e na direita um pedaço de tecido vermelho arrancado sem
dúvida do raptor. Ah valoroso Hafiz! os covardes não ousariam confrontá-lo de frente e lhe
assassinaram pelas costas enquanto defendia Leila.
Abdallah se ajoelhou junto ao cadáver do tio e cerrou-lhe os olhos. “Que Deus lhe conceda
a misericórdia!” murmurou.” Seja Ele tão bom para contigo como tu o fostes para conosco.”
Depois se levantou sem derramar uma lágrima e caminhou, com passo firme e seguro, em
direção à aldeia. Mas seus membros falharam. Em meio do caminho lhe faltaram forças e teve
que apoiar-se em uma palmeira. Então tomou suas duas pistolas e descarregou-as de uma só vez.
Àquele ruído acudiram de todas partes homens e mulheres e rodearam a Abdallah que
permanecia no mesmo lugar pálido, com os olhos extraviados e os membros trêmulos.
– Já estais aqui! exclamou os guerreiros valentes! os Bani-amers! Os reis do deserto!
Filhos de judeus! Corações de mulher, covardes! Que Deus os amaldiçoe!
E pela primeira vez de sua vida, depois de haver desafogado sua cólera com aquelas
imprecações, desatou a chorar como uma criança.
As palavras de Abdallah haviam provocado um grito de indignação e ira.
– “Estais louco,” se apressou a dizer um dos mais velhos, “respeita ao infeliz, cuja alma
está com Deus. Vamos filho meu, continuou tomando uma das mãos de Abdallah; tenhais calma,
que te sucede?”
– “Que me sucede?” exclamou o jovem, “esta noite, durante minha ausência, Hafiz foi
morto, minha mãe foi raptada, me tiraram tudo quanto amava neste mundo. E vós haveis
dormido sem ouvir nada. Maldição sobre vós! para mim é a dor e a amargura; para vós o ultraje e
a infâmia.”
Às primeiras palavras de Abdallah, as mulheres acorreram em direção à tenda e se as
ouviam gemer e lamentar-se. O Sheik baixou a cabeça.
– “E quem havia de crer fosse necessário velar pelos teus,” disse, “quando para defendê-los
tinham à teu tio e a teu irmão.”
– “Meu irmão!” exclamou Abdallah, “impossível!”
– “Ontem pela tarde,” replicou um beduíno, “chegou teu irmão com seis escravos.
Conheci perfeitamente ao mercador e ajudei ao velho Hafiz à matar uma ovelha para a ceia de
seus convidados.”
O filho de Yussuf permaneceu um longo tampo com o rosto escondido entre as mãos,
silencioso e imóvel, depois olhando para seus companheiros disse com a voz desfalecida;
– Vede o que fez meu irmão, e aconselha-me.
– “O conselho é fácil”, respondeu o Sheik, “ao ultraje deve seguir a vingança. Tu és um
dedo de nossa mão, quem te toca nos fere. Quem busca sua vida, busca a nossa. Omar nos leva
algumas horas de vantagem; porém com a ajuda de Deus nós nos vingaremos antes que anoiteça.
Venham, meu valentes guerreiros, continuou dirigindo-se aos beduínos, encilha vossos cavalos e
carreguem-se tomem uma ração dupla da água: o tempo é sufocante e os odres secarão logo.
Marchemos!
Antes de montar seu cavalo quis Abdallah ver uma vez mais ao tio. As mulheres já haviam
rodeado o corpo e começado suas lamentações.
– Oh meu pai e único amigo, murmurou o jovem, tu sabes porque me afasto de ti! Te juro
que não retornarei a esta tenda ante de que sejas vingado!
Os Bani-amers seguiram ao filho de Yussuf, o Sheik permaneceu longo tempo
contemplando o cadáver de Hafiz e por último exclamou levantando a destra: “Maldito seja
aquele dentre nós que volte à sua mulher antes de haver derrubado e morto ao inimigo. Infeliz do
que nos insulta. Não chegará a noite sem que tenhamos atirado seu corpo aos chacais, as águias e
aos abutres. A terra inteira saberá se os Bani-amers são irmãos que se apoiam entre si, ou
crianças com quem os homens podem meter-se com impunidade.”

CAPÍTULO XXVII – LEILA

Os beduínos partiram em meio às maldições das mulheres e dos gritos de vingança. Uma
vez no deserto, guardaram profundo silêncio e prepararam suas armas com o olhar fixo no
horizonte. Não era difícil seguir a pista da caravana porque o vento não havia apagado ainda os
rastros dos camelos, os quais apontavam em direção a Djeddah.
Abdallah, caminhando sempre à frente do grupo, clamava a ajuda de Deus; porém até o
ponto onde alcançavam seus olhos nada mais senão a solidão.
O vento era sufocante, os céus eram pesados e pareciam preparar-se para tempestade que
se aproximava. Os cavalos arquejando e cobertos com suor, avançavam em passo lento. O filho
de Yussuf suspirava impaciente: a vingança parecia estar escapando.
Ao fim avistaram um ponto negro, ao longo, no horizonte. Era a caravana; haviam
compreendido que se aproximava a tormenta e se refugiaram naquelas pedras vermelhas, que tão
bem conhecia Abdallah.
– “Meus amigos,” exclamou, “já são nossos! Vede-os ali; Deus os entregou em nossas
mãos; adiante!” E esquecendo todos a fadiga, esporearam seus cavalos de encontro dos raptores.
Naquelas planícies infinitas não é fácil surpreender a um inimigo que está de sobreaviso.
Omar logo reconheceu seus perseguidores e não aguardou por eles. Ele pôs seus camelos em
linha e colocou na retaguarda os condutores simulando uma defesa, e deter algum tempo aos
Bani-amers. Montou depois a cavalo e se internou no deserto seguido pelo resto de sua gente.
Surgiram então os beduínos. À primeira descarga os camelos de Omar fugiram
retrocederam, e foram refugiar-se entre as rochas. Ainda não se havia dissipado a fumaça quando
uma mulher correu ao encontro de Abdallah, – Era Halima, que tinha sido deixada atrás e que
havia logrado escapar-se de seus inimigos.
– Bendito sejas, filho meu! exclamou; não te detenhas, corre até o negro do albornoz
vermelho; esse é o assassino de Hafiz e o raptor de Leila.
“Santificado seja tu, meu filho!” Disse ela. “Não pare! Dê perseguição àquele negro com a
jaqueta vermelha; Ele é o assassino de Hafiz e o raptor de Leila. Vinga-nos: Olho por olho, dente
para dente! Morte para os traidores, morte para assassinos!”
A estes gritos, a Hamama como se participasse da dor de seu senhor, lançou-se sobre as
areias com a rapidez de uma torrente. Os beduínos mal podiam seguir a seu companheiro. O
furor fazia Abdallah esquecer o perigo.
– “Covardes!” gritava aos cúmplices de Omar, “para onde quereis fugir quando Deus os
persegue? e brandindo o sabre nu, passava por entre as balas com o olhar fixo no negro que
levava Leila.
Perseguidor e perseguido deixaram para trás os demais combatentes. O etíope, montado em
um cavalo veloz, fugia como a flecha no ar: Abdallah lhe seguia de perto; Hamama ganhava
terreno e a vingança se aproximava.
Leila colocada na frente da sela e segura por um braço forte, chamava a seu esposo,
retorcendo-se e lutando contra o cavaleiro, ainda que em vão. De repente ela agarrou a rédea com
um puxão, que fez o cavalo parar bruscamente.
– Maldição! disse o negro; solta a rédea, senhora, solta a rédea! me vão a matar por tua
culpa.
– Socorro! Abdallah! gritava Leila que apesar das ameaças e os golpes seguia puxando as
rédeas, com a energia do desespero.
Já estava salva. O filho de Yussuf caiu como o raio sobre seu raptor e já à mão, quando
Hamama assustada deu uma guinada capaz de derrubar a qualquer outro ginete menos hábil que
seu dono. Uma massa pesada havia caído à seus pés. Abdallah ouviu um gemido que lhe gelou o
coração. Sem em continuar a perseguição àquele que lhe escapava, saltou à terra e levantou a
infeliz Leila pálida, coberta de sangue e com o rosto contorcido. Tinha um ferimento profundo
no pescoço e seus olhos frágeis não viam a luz.
– Leila! meu amor, fale comigo! dizia o filho de Yussuf estreitando a sua esposa contra seu
coração, enquanto tentava estancar o ferimento, sentido que sua alma estava vazando. Leila não
podia ouvir-lhe. Ele acomodou-se sobre a areia com seu fardo precioso, e tomando mão de Leila
disse ele, “Filha minha, repita comigo: “Não há mais Deus que Deus e Maomé é seu Profeta.”
Responde-me, te suplico, é teu esposo, teu Abdallah quem te chama.”
Ao eco deste nome, Leila se estremeceu seus olhos buscaram ao que amava, seus lábios se
entreabriram e depois deste esforço derradeiro, sua cabeça pendeu sobre as costas de Abdallah
como cai a cabeça de uma lebre agonizante no ombro do caçador.
Quando os Bani-amers se reuniram ao filho de Yussuf lhe encontraram no mesmo lugar,
imóvel, segurando sua mulher nos braços e com o olhar fixo naquele rosto que parecia sorrir-lhe.
Os beduínos rodearam em silêncio a seu companheiro, e ainda que fossem homens acostumados
à vida e seus trabalhos, alguns deles choravam.
À vista da morta, Halima lançou um grito de angústia, e se lançou ao pescoço de seu filho.
Chorou um momento à seu lado; então, erguendo-se de repente, exclamou;
– Estamos vingados? Está morto Omar? Haveis matado ao negro?
– Vês aqueles corvos que se reúnem lá embaixo? disse um dos beduínos; ali está o
assassino de Hafiz. Omar nos escapou; porém vê o Simoom que se ergue. Omar não sairá do
deserto; antes de uma hora a areia lhe servirá de mortalha.
– Filho meu! apela à tua coragem, disse Halima, nosso inimigo vive ainda: deixa-nos
enterrar nossos mortos. Vá e castigue o traidor. Deus irá contigo.
Estas palavras reanimaram a Abdallah. Estas palavras reanimaram Abdallah. “Deus é
grande!” exclamou. “Tens razão, minha mãe, a vós lhes toca o pranto e a mim a vingança.”
Isto dito, ele se levantou, deixou Leila nos braços da beduína e contemplando aquele rosto
pálido e doce, com infinita ternura, exclamou com voz lenta e grave: A paz seja contigo, filha de
minha alma. A paz seja contigo, que já estás na presença do Senhor. Recebe o que lhe foi
prometido. É Deus quem nos ergue e nos abate: Deus é dono da vida e da morte.
E se ao senhor apraz logo nos reuniremos. Oh Deus, perdoe-a e perdoa-nos! E, erguendo os
braços para os céus, murmurou o Fát-hát e passando-se a mão pela frente, abraçou à sua mãe e
montou seu cavalo.
– Aonde vais? lhe disse o Sheik, não vês aquela nuvem de fogo que avança? Nós teremos
tempo apenas para nos refugiarmos nas pedras vermelhas. A morte reina já no deserto.
– Adeus! respondeu Abdallah, para mim já não há repouso exceto na sombra da morte.

CAPÍTULO XXVIII – A VINGANÇA


Pouco depois que o filho de Yussuf deixou seus companheiros, encontrou um cadáver. Era
o do negro. As aves de rapina revoavam sobre ele emitindo gritos agudos e arrancando-lhe as
sobrancelhas e os olhos. “A Deus desagrada os traiçoeiros,” murmurou o beduíno; “Ele
entregará o filho de Mansour em minha mão.”
A tormenta se aproximava, o céu estava coberto de um vapor esbranquiçado, o sol,
despojado de seus raios, parecia uma roda de moinho inflamada, um sopro fervente e
envenenado secava a saliva na garganta e derretia a medula dos ossos. No fundo se ouvia um
ruído semelhante ao de um mar irritado, grandes redemoinhos de cinza vermelha saiam das
areias e formavam colunas, assemelhando-se a gigantes com cara de fogo e braços de vapor. Em
todos os lugares reinava a desolação e um calor implacável, em meio a um silêncio mais
espantoso que os gemidos do Simoom.
Por aquela terra ressequida e escaldante, Hamama avançava lentamente, arquejando e
palpitando. Seu senhor conservava a tranquilidade de um homem que não conserva já a
esperança nem temor. Não sentia o calor nem a sede; um só pensamento governava seu corpo e
sua alma; alcançar o assassino e matá-lo.
Depois de uma hora de marcha ele viu um cavalo estirado na areia, e um pouco mais além
acreditou ouvir um suspiro. Aproximou-se; um homem jazia sob a areia morrendo de sede e sem
forças para pedir ajuda. Era o filho de Mansour. Tinha os olhos fora de órbitas, os lábios negros,
a língua seca e comprimia o peito com as mãos ofegante pelo sofrimento. Delirando de dor, ele
nem sequer reconheceu a Abdallah, limitando-se a levar seus dedos à garganta ressequida, como
se clamasse por socorro.
– “Sim, te darei água,” disse o beduíno, “porque não deves morrer assim.”
E desmontando de seu cavalo tomou um odre do arção (1) da cela, e depois de jogar a
alguma distância as pistolas e o sabre de Omar, deu de beber ao moribundo. Omar bebeu com
ânsia aquela água que lhe restituía a vida, encontrando-se ao concluir cara a cara com Abdallah.
– “És tu quem me salva!” exclamou. “Reconheço tua bondade inesgotável. Tu és um irmão
para aqueles que não tem irmão, tu és um orvalho benfeitor para os infelizes.”
– “Filho de Mansour,” disse o jovem, “é preciso que morras.”
– “Piedade meu irmão!” exclamou o mercador. “Me hás salvado a vida para matar-me?
Piedade em nome do que tenhas de mais querido no mundo, piedade! em nome daquela que nos
criou a ambos!”
– “Halima te maldiz,” respondeu Abdallah; “é preciso que morras.”
Amedrontado ante o ar sinistro do beduíno, Omar se pôs de joelhos e disse: “Meu irmão,
seja qual for o meu crime, mereço tua cólera, porém por grande que seja minha culpa não
poderei redimi-la de algum modo? Queres minha fortuna inteira, queres ser o mais rico da
Arábia?”
– Tirastes a vida de Hafiz, disse Abdallah, tu hás matado à Leila, é preciso que morras.
– Leila está morta! exclamou o filho de Mansour chorando, impossível! Que seu sangue
caia sobre a cabeça de seu assassino! eu não sou culpável de sua morte. Perdoa-me, Abdallah,
tem piedade de mim!
– “Imploras desde a porta de um sepulcro,” respondeu o filho de Yussuf, desnudando o
iatagã, “que Deus te dê coragem para suportar a aflição que te envia.”
“Ao menos, irmão,” insistiu Omar com a voz carregada de emoção, “dê-me tempo para
uma última oração. Tu não quererás que o anjo da morte me colha pelos cabelos antes de haver
implorado a misericórdia de Deus.
– “Diga suas orações,” disse o beduíno.
O mercador desfez seu turbante, o estendeu no solo, se ajoelhou em cima dele e curvando o
albornoz até descobrir o colo, inclinou a cabeça esperando o golpe mortal.
– “Deus é grande,” murmurava, “só Deus tem força e poder. A Ele pertencemos, a ele
retornaremos. Oh, Deus soberano, no dia das retribuições livra-me do fogo do inferno e tem
piedade de mim!”
Abdallah lhe contemplava em seus lamentos: “É preciso,” dizia para si mesmo, “é
preciso”, e, sem embargo, sentia faltar-lhe o coração. Aquele miserável era seu irmão, ele o
amou, – ele ainda o amava. Uma vez que o amor entra na alma e lá hospeda-se permanece nela
como a bala na carne. Se lhe pode arrancar, porém o ferimento fica para sempre. Em vão o filho
de Yussuf buscou despertar sua coragem: recordava à seu tio degolado e esposa agonizante, o
único que, à seu pesar, via presente, eram os ditosos tempos de sua infância: Halima estreitando-
os a ambos sobre seu seio: o velho Hafiz sentando-os para contar-lhes seus aventuras nas
batalhas: tristezas comuns, prazeres compartilhados, todos estas doces recordações se erguiam do
passado para proteger ao filho de Mansour. Coisa estranha: até as mesmas vítimas pareciam
levantar-se para implorar o perdão do assassino: “É teu irmão, está indefeso, dizia o velho
Hafiz.” “É teu irmão, repetia Leila em prantos, não lhe mates.” “Não, não, murmurava o jovem
rechaçando àquelas sombras queridas, é preciso: não castigar um crime é trair a justiça, quando
se castiga o crime, a justiça é piedade.”
Ainda quando o filho de Mansour estava muito turbado, a vacilação de Abdallah não
passou desapercebida à seus olhos e afim de inclinar a balança ao lado da misericórdia, se atirou
à seus pés com lágrimas e gemidos. – Oh irmão meu, exclamou, não acrescentes tua iniquidade à
minha! Recorda-te do que disse Abel à seu irmão que lhe ameaçava: “Se tendes a mão sobre mim
para ferir-me, eu não terei sobre ti a minha, porque eu tenho Deus, senhor das criaturas (2). Ai!
meu crime foi maior que o de Caim. Estás em teu direito matando-me, porém minha vida é
pouca coisa para espiar o crime ao qual fui conduzido por minhas paixões. Deus que perdoa, ama
aos que lhe imitam seu exemplo. Ele prometeu indulgência para aqueles que retornam a ele.
Deixa-me arrepender-me. Ele prometeu um paraíso imenso como a terra e os céus, aos que
dominam sua cólera: perdoa-me para que Deus por sua vez perdoe a ti. Deus ama aos bondosos
(3) perdoa-me.
– “Levanta-te,” disse Abdallah, “essas palavras te salvaram. A vingança pertence à Deus,
que o Senhor seja teu juiz: eu não mancharei minhas mãos com o sangue daquele que minha mãe
alimentou.”
– “Porém me vãs à abandonar aqui?” disse Omar olhando à seu redor com ar inquieto,
“isso seria mais cruel que matar-me.”
Abdallah, por toda contestação, lhe assinalou a Hamama. Omar se lançou sobre a égua, e
sem olhar para trás, lhe cravou a espora em seus flancos e desapareceu correndo através do
deserto entre os redemoinhos das areias, enquanto pensava: “Vamos, por entre as rajadas (4) que
se aproximam, escaparei para fora do perigo que me haviam predito.”
Abdallah comete uma verdadeira imprudência permanecendo a sós no deserto, sem cavalo
e sem água, diante de um tempo semelhante àquele. Que sua loucura caia sobre sua cabeça.
Esqueçamos esses malditos beduínos que não nunca me trouxeram qualquer coisa exceto
infortúnio. Chegou afinal o tempo de viver somente por mim mesmo.

(1) – Arção, peça arqueada de madeira que faz parte da armação de uma sela.
(2) – Corão, V, 31.
(3) – Corão, III, 117-130.
(4) – Simoom ou Garmsil. É um vento forte, seco, carregado de poeira que sopra no Saara, Israel, Jordânia,
Síria e nos desertos da Península Arábica. Suas rajadas precedem a tempestade de areia. Uma tempestade sufocante
e circular que se move em forma de ciclone.

CAPÍTULO XXIX – A FOLHA DE DIAMANTE

Quando o malvado consegue seu objetivo ri no fundo de seu coração e diz: “Que hábil sou!
A habilidade é rainha do mundo.” O justo se resigna a tudo, e levantando as mãos ao céu
exclama: “Senhor, tu extravias e diriges ao que queres: tu és o poderoso e o sábio: o que tu fazes
está bem feito.”
Abdallah se encaminhou até sua tenda, tinha a alma repleta de uma profunda tristeza. Seu
coração estava inquieto: havia logrado extinguir nele a cólera, porém não podia, livrar-se da dor.
Grossas lágrimas rolavam por suas faces, apesar dos esforços que fazia para conter o pranto.
– “Perdoa-me, Senhor,” dizia, “sê indulgente para com a debilidade de um coração que não
pode resignar-se. O Profeta disse: “Os olhos foram feitos para o pranto e a carne para a aflição.”
Glória ao que tem em sua destra o domínio de todas as coisas. O Senhor me dará forças para
sofrer a aflição que me enviastes.
Orando assim caminhava por meio das areias e dos vendavais ígneos. O calor e o cansaço
finalmente lhe obrigaram a deter-se. Não era mais sangue o que corria por suas veias, senão
fogo: uma agitação estranha turvava seu cérebro e ele não era mais dono de seus sentidos ou
pensamentos. Devorado pela sede havia momentos em que nem via nem ouvia nada. Outras
vezes a imaginação lhe transportava para profundos jardins cheios de sombras e lagos limitados
por flores, o vento agitava as folhas das árvores e uma fonte esguichava entre as ramagens. O
aspecto daqueles mágicos jardins reanimavam ao beduíno que se arrastava penosamente até suas
ondas encantadas. Ilusão cruel! Jardins e fontes tudo desaparecia à sua aproximação. Existia
nada além de areia e fogo. Fora de si e ofegante, compreendeu Abdallah que sua última hora se
aproximava.
– “Não há mais Deus que Deus,” disse, “e Maomé seu profeta!” Está escrito que eu devo
nunca partir deste lugar! Oh Senhor! venha em minha ajuda e afasta de mim os horrores da
morte!
Feita esta breve oração, se pôs de joelhos, lavou o rosto e as mãos com a areia do deserto, e
desnudando depois o sabre começou a cavar sua própria sepultura.
Apenas havia começado a remover a terra, quando, de repente, lhe pareceu que o simoom
(tempestade) se havia afastado. O horizonte se iluminou com uma claridade mais suave que a do
amanhecer, e as nuvens se abriram lentamente, como as cortinas de uma tenda. Era aquela uma
nova miragem? Quem sabe? Abdallah permaneceu mudo de surpresa e admiração.
Ante seus olhos se estendia um jardim imenso regado por arroios que corriam de todas
partes. Árvores com o tronco de ouro, as folhas de esmeralda e os frutos de topázios e rubis que
cobriam com sua luminosa sombra pradarias esmaltadas de flores desconhecidas, longos e
verdejantes gramados. Recostados sobre almofadas e tapeçarias magníficas, formosos jovens
vestidos de cetim verde e com os braços adornados de braceletes e caras joias se olhavam uns
aos outros com ar de agrado, bebendo em taças de prata e água das fontes celestiais, aquela água
mais branca que o leite, mais suave que o mel, e que aplaca a sede para sempre. Ao lado dos
jovens se viam formosas mulheres de grandes olhos negros e olhar modesto. Nascidas da luz, e
transparentes como ela, sua graça encantava os olhos e o coração. Seus rostos brilhavam com um
resplendor mais suave que o da lua quando emerge das nuvens. Naquele reino das delicias e da
paz, os deliciosos casais falavam e sorriam, enquanto uma multidão de crianças adoráveis e
eternamente crianças, lhes rodeavam como as pérolas de um colar, tendo cada uma um vaso mais
resplandecente que o cristal, e servindo aos bem-aventurados esse licor inextinguível que não
embriaga, nem intoxica e que é mais agradável que o perfume do cravo.
Ao longe se ouvia o anjo Izrafil, a mais melodiosa das criaturas de Deus: as hurís (1) uniam
suas encantadoras vozes ao cântico do anjo, e até as árvores mesmo, agitando sua folhagem
sonora, entoavam os louvores divinos, com uma harmonia superior a quanto o homem pode
conceber, Enquanto Abdallah admirava em silêncio aquelas maravilhas, desceu até ele um anjo.
No era o terrível Azrael, senão o mensageiro da graça, o amável e bondoso Gabriel. Tinha em
sua mão a minúscula folha de diamante, da qual brotava uma torrente de luz que iluminou todo o
deserto.
O filho de Yussuf saiu ao encontro do anjo com a alma embriagada de gozo, porém logo se
deteve terrificado. A seus pés se abria um golfo insondável repleto de fogo e chamas. Para passar
sobre aquele abismo que separava a terra do céu, não havia mais que um arco imenso formado de
uma folha de aço mais fina que um fio de cabelo e mais cortante que uma navalha.
O desalento começava já à apoderar-se do beduíno, quando se sentiu ajudado por uma
força invisível, Hafiz e Leila estavam a seu lado: ele não os via nem ousava voltar para vê-los,
temeroso de despertar, porém sentia a presença daqueles seres queridos, e ouvia suas palavras.
Entre os dois lhe ajudavam e lhe sustinham naquele trânsito, “Em o nome de Deus clemente
misericordioso!” exclamou Abdallah, e ainda não havia acabado de pronunciar estas palavras,
que são a chave do paraíso, quando se encontrou do outro lado da ponte, passando sobre o
abismo como passam o raio e o vento. O anjo estava ali oficiando-lhe a flor misteriosa: o jovem
se apoderou dela. Ao fim tinha o trevo de quatro folhas: o ardor do desejo estava apagado,
rasgando-se o véu da carne; a hora da recompensa acabava de soar. Gabriel voltou os olhos para
o fundo do jardim onde se levantava o trono da majestade divina, o olhar de Abdallah seguiu a
direção do olhar do anjo, e uma chispa do resplendor eterno feriu seu rosto. Ao ver aquela
torrente de luz que os olhos humanos não podiam suportar, caiu Abdallah com o rosto no solo
soltando um grito tal como ouvidos humanos não o ouviram nunca, nem há voz que o possa
repetir. A embriaguez de regozijo do náufrago que escapa ao furor das ondas, o encanto do noivo
que pela primeira vez estreita à sua amada contra o coração, os transportes da mãe que
reencontra o filho a quem tinha morto, todas as alegrias da terra juntas, não representam senão o
duelo e a aflição junto àquele grito de suprema felicidade que saia da alma de Abdallah.
Ao ouvir esta grande voz repetida à distância pelos ecos, a terra recuperou por um instante
a formosura de seus dias de inocência, cobrindo-se de flores do Paraíso, e o céu mais azul que a
safira, parecia sorrir à terra e então, depois, gradualmente, tudo foi ficando em silêncio; o dia
caiu nos braços da noite, e o furacão recuperou novamente o domínio do deserto.

(1) No islã, uma hurí é uma das jovens perpetuamente virgem que esperam a seus prometidos no Janah, o dia
do Yaum ao-Qiyamah. Além do dom da eterna juventude, elas estão dotadas de encantos e simbolizam a eterna bem-
aventurança. Segundo o Corão, há hurís brancas, verdes, amarelas e vermelhas; seus corpos são de açafrão, almíscar,
âmbar e incenso.

CAPÍTULO XXX – A FORTUNA DE OMAR

Ao retornar à sua casa em Djeddah o filho de Mansour experimentou a alegria de quem


escapa à morte. Seu primeiro cuidado foi encerrar-se para recuperar sua compostura, e
novamente passou em revista às suas riquezas e removeu seu ouro; aquilo constituía sua
existência e seu poder!
Estes tesouros davam a ele armas para humilhar e sujeitar a seus caprichos aos homens, e o
direito de menosprezá-los depois?
Não obstante, a felicidade de Omar não era, sem embargo, perfeita: existia ainda mais de
um perigo no horizonte. Se Abdallah retornasse à sua tenda poderiam induzir-lhe a que se
arrependesse de sua clemência? Se morresse no deserto, não teria quem o vingasse?
Ademais, o xarife podia mostrar-se ofendido, e neste caso que preço lhe venderia o paxá
sua proteção? O filho de Mansour viajava naqueles pensamentos inoportunas.
– Por quê haverei de apavorar-me, dizia, quando o mais iminente do perigo passou graças à
minha habilidade? Apurei acaso, todos os meus recursos? Meus inimigos reais caíram. Devo eu
não superar os outros? A vida é um tesouro que diariamente diminui; Que loucura desperdiça-la
atormentando-se com ansiedades pueris? Que difícil é ser completamente feliz neste mundo!
Estes temores infundados eram seguidos por outros cuidados que assombravam ao filho de
Mansour.
Dia e noite pensava no velho Hafiz, a quem havia mandado matar, nem podia pôr de lado a
recordação de Leila e de seu irmão moribundo no deserto, vítima de sua devoção generosa, lhe
acossavam por todas partes.
– “Esta aqui,” dizia, “uma dessas tolas recordações que nos branqueiam o cabelo antes do
tempo. Que debilidade a minha de pensar em coisas semelhantes: Posso eu mudar o destino das
pessoas? Morreu o velho Hafiz foi porque estavam contados os seus dias. Desde quando
Abdallah surgiu do ventre de sua mãe já estava escrita a hora de sua morte no livro de Deus. Por
que haveria de crer-me o responsável por ela? Não sou rico? Não compro quando quero a
consciência dos outros? Pois então haverei de encontrar um meio de comprar a tranquilidade do
meu coração.
Todos seus raciocínios eram, sem embargo, inúteis: sua alma se assemelhava a um oceano
inquieto que, incapaz de satisfazer suas ondas bravias, atirava na praia lama e espuma.
– “Eu devo ganhar tempo,” pensava ele, “o que experimento não é mais que um resto de
agitação e de espanto que os néscios chamam de remorso; porém não é, em suma, mais que um
pouco de cansaço e de febre. Eu sei o meio de curar-me. Tenho um vinho de Shiraz que mais de
uma vez consolou-me em minhas aflições, por que não hei de pedir-lhe a calma e o
esquecimento?
Revolvendo em sua imaginação estas ideias, subiu ao harém e chamou a uma escrava persa
cuja voz lhe encantava. Era uma herege que não se assustava com o vinho e o servia com graça
infernal esse veneno maldito pelos verdadeiros muçulmanos.
– Que pálido estás senhor! disse ao fixar-se nas descompostas feições do filho de Mansour.
– É o cansaço de uma viagem demasiado longa, disse Omar; sirva-me vinho e canta-me
uma dessas canções de teu país que desterram o fastio e atraem a alegria.
A escrava trouxe duas taças de cristal incrustadas de ouro, e depositou nelas um licor
amarelo como o ouro e transparente como o âmbar. Então, tomando um tamborim, ela o
executava alternadamente com sua mão e seu cotovelo, e enquanto fazia gesticulações com a
cabeça. Depois cantou uma dessas odes perfumadas do Ruiseñor de Shiraz (1).

Como raio de sol faisqueia o vinho


Nas taças de prata;
Bebe! Ele cura o que ninguém cura:
Os males da alma.
As dobras da dor sulcam tua frente?
Temes as longas noites?
Bebe essa taça. Sabes o que contém?
Esquecimento das dores.

“Passe ao redor do flowirg tigela, criança,


Fiiled para a borda com vinho brilhante;
Todos os males e aflições de vitalícios São curados neste suco divino.
O escrito de tempo Tem suas linhas em thy sobrancelha?
Tem sieep pela noite fugiu thine tyes ?
Lance nestas chamas líquidas Thy regrttful cuidados e thy suspiros.
“Longe com aquele bebedor sombrio,
Que lamenta pelos anos que foram;
Nestes vinhos de âmbar e subiram As flores e a fonte vivem de.
São o morto de rosas em seu bowers ?
Tem o rouxinol deixado thee só?
Bebida, bebida, e o tinido do vidro Deve ser doce como o bulbufs melodia.
“ Fortuna de Lcave, o duende traiçoeiro,
Para a fraca ou a multidão má;
Que bom pode ela dar a nós mais,
Desde que ela nos deixa vinho e canção?
O falso um, ligeiramente traiu,
Noturno em visões eu vejo;
Oh, vinho, dê-me de volta o doce dreair. 1 Oblivion e o amor estão em thee.”

– Sim, dá-me o esquecimento, exclamou o filho de Mansour: “Eu não sei o que se passa
comigo hoje e faz que este vinho entristeça-me em vez de divertir-me. Canta mais alto e mais
depressa, que teu instrumento atinja o som mais alto. Embebeda-me se podes.
A formosa escrava persa prosseguiu erguendo sua voz e brandindo seu tamborim:

A loucura e a morte dizem todos


Que bebo nesse vinho;
Mas eu respondo: Hafiz ouve com um riso
do corvo os grasnidos.

“Hafiz, tu squanderest vida;


‘ No winecup morte lurks, ' diz o velho.
Oh, sábios, ele inveja você não,
Nem suas fechaduras nevadas nem seu ouro.
Você pode o repreender, mas quieto ele beberá;
Dia e noite ele ainda beberá fundo,
Para vinho só pode o fazer stnile,
O vinho só pode fazer ele lamentar.”

– Maldição sobre você! exclamou Omar erguendo sua mão para atingir a escrava que fugiu
aflita. Que nome me traz à memória! Os mortos não podem ficar em paz sob a terra? Venham até
o fundo de meu harém para perturbar meu repouso? Desembaraçado já de meus inimigos me
deixarei intimidar por fantasmas? Longe de mim estas quimeras! Eu rasgarei uma a uma estas
recordações e apesar de tudo serei feliz e rirei. Não bem havia acabado de pronunciar estas
palavras, soltou um grito de terror. Kafur estava diante dele.
– De donde sais, filha do inferno? disse. Que fazes em minha casa?
– Isso é o que eu te pergunto, contestou a negrinha; teus homens me trouxeram à ela contra
minha vontade.
– Vai-te: não te quero ver.
– Não me irei respondeu Kafur, até que me devolvas à minha senhora: pertenço à Leila, eu
desejo servi-la.
– Tua senhora não tem mais necessidade de seus serviços.
– Por quê? disse a negrinha.
– Porquê? respondeu o filho de Mansour com voz entrecortada, já o saberás mais tarde,
Leila está no deserto, vá a buscá-la.
– Não, respondeu Kafur, eu fico aqui: espero a Abdallah.
– Abdallah não está em minha casa.
– Sim está, disse Kafur, eu vi o seu cavalo.
– Meus homens o trouxeram quando te trouxeram para cá,
– Não, replicou a negrinha, quando teus homens me agarraram eu havia deixado Hamama
solta, que mais afortunada que eu logrou escapar-se, Abdallah deve estar aqui, e senão está, quê
fizestes de teu irmão?
– Fora daqui, desavergonhada! exclamou o filho de Mansour: quem és tu para interrogar-
me? Cuida-te de minha cólera; sabes que posso mandar te açoitar até a morte? E ao dizer isto,
pareciam seus olhos os de um homem completamente ébrio.
– Por quê me ameaças? disse Kafur em tom doce e carinhoso; ainda que eu não seja mais
que uma escrava, quiçá me necessites para algo, tu temes alguma pena oculta, o vejo na turbação
de teu semblante. Em meu país há remédios para curar o coração. A tristeza, o remorso mesmo,
ainda quando se esconda no fundo da alma, posso eu sacá-lo de sua guarida como se saca o
veneno que corrói o corpo com uma pedra de bezoar. (2)
– Tu tens esse poder? disse Omar ironicamente, olhando para Kafur; “tu, uma criança?”.
Seus olhares se encontravam, Kafur entretanto não parecia desconcertar-se.
– Quem sabe! Completou Omar, os negros do Magreb são filhos de Satanás e conhecem os
segredos de seu pai.
– Pois bem, é verdade, tenho pesares, cura-me e te pagarei.
– Tu deves ter bang (haxixe) (3) em teus armazéns, disse Kafur, deixa-me preparar-te uma
bebida; Eu restabelecerei a tua calma e a felicidade.
– Faça o que queiras respondeu Omar, tu és uma escrava e sabes que sou rico e generoso:
tenho confiança em ti, custe o que custar quero gozar da vida.
Kafur logo achou as folhas de cânhamo. Ela as trouxe para o filho de Mansour, que seguia
seus movimentos com um olho ávido. Ela tomou a planta, lavou por três vezes, pronunciando
palavras misteriosas e depois as amassou em um morteiro de cobre misturando-as com
especiarias e leite. “Aqui está a taça do atordoamento,” disse, “bebe e não temas nada.”
Apenas havia bebido sentiu Omar a cabeça mais ligeira. A seu pesar se lhe abriam de par
em par os olhos, e seus sentidos adquiriam uma sensibilidade e uma delicadeza de percepção
extraordinárias, porém coisa singular! houvera dito que a vontade de Kafur era a sua. Se a
negrinha cantava, repetia o filho de Mansour, a canção: se ria, se punha a rir, se se entristecia,
assomava o pranto à sua pupilar, se lhe ameaçava tremia como uma criança. Quando Kafur lhe
viu em seu poder, quis arrancar-lhe seu segredo.
– Já és feliz, lhe disse esforçando-se para sorrir, te hás vingado de teus inimigos.
– Muito feliz, exclamou rindo-se; já estou vingado. A formosa Leila não amará à seu
beduíno.
– Está morta? perguntou com voz trêmula.
– “Ela está morta; respondeu Omar lamentando; porém não fui eu senão o negro o que lhe
deu a morte. Pobre mulher! Tão formosa! Que bem haveria se estivesse em meu harém!
– E não tens a Abdallah? prosseguiu Kafur.
– Não; não lhe temo porque lhe hei deixado sem a égua a sós no meio do deserto exposto
ao simoom (tempestade). Ele nunca mais sairá dali.
– Perdido entre as areias! Morto talvez! exclamou Kafur rasgando suas roupas num acesso
de dor.
– Que queres? disse Omar em tom melancólico. “Como ele podia ser ajudado?” Era
destino. Me haviam vaticinado que meu melhor amigo seria meu maior inimigo. Os mortos nos
querem sempre e não fazem mal a ninguém.
– Que amigo poderias ter tu que a ninguém hás querido no mundo? disse a negrinha. Em
uma inspiração súbita, ela concluiu: “Devo eu mostrar ao amigo que há de será causa de tua
morte?
– Não! não! exclamou Omar tremendo como uma criança a quem ameaçam. Diverte-me,
Kafur, e não me dês pesares.
– Veja, prosseguiu a escrava pondo-lhe um espelho diante dos olhos: Vês ao assassino de
Hafiz? Vês ao assassino de Leila? Vês ao fratricida, ao infame, àquele para quem não há perdão
nem repouso! pois esse é. Miserável! tu não hás amado a ninguém mais que a ti mesmo! Teu
egoísmo tem sido sua ruína; teu egoísmo te matará.
À vista de seu rosto contraído e de seus olhos desfigurados, permaneceu Omar apavorado,
mudo de espanto. A consciência iluminou um instante os obscuros seios de sua alma, e teve
horror de si mesmo. Porém logo a vergonha lhe fez retornar a si, olhou a seu redor, e ao ver a
Kafur dona de seu segredo, se apoderou dele uma cólera horrível.
– Espera, filha da perdição, disse, espera, vou castigar tua insolência enviando-te a fazer
companhia à Abdallah.
Ainda que estivesse completamente embriagado, tratou de levantar-se; porém lhe faltou
equilíbrio, e tropeçando na pequena mesa, caiu novamente ao solo derrubando atrás de si a
luminária. O fogo alastrou-se em suas roupas e, num momento, seu corpo inteiro estava em
chamas.
– Morre, miserável, morre como um cão! exclamou Kafur. Abdallah está vingado!
O filho de Mansour gritava de um modo espantoso: lhe ouviram no harém e correram em
seu auxílio. Ao ouvir o ruído dos passos, Kafur pôs seu pé sobre o rosto de Omar, e sentando-se
rapidamente sobre o corpo, correu em direção a porta de saída e desapareceu.

(1) Por Ruiseñor de Shiraz era chamado ao poeta persa Shamsuddin Hafiz.
(3) A pedra de Bezoar é encontrada no sistema gastrointestinal, usualmente no estômago, principalmente dos
ruminantes. Era utilizada como medicamento para diferentes males, como dores ou febres, esfregando a pedra ou
raspando-a.
(2) Bang ou hacskích é o cânhamo indiano que se bebe ou se fuma para embriagar-se.

CAPÍTULO XXXI – OS DOIS AMIGOS

Enquanto os escravos socorriam o filho de Mansour, Kafur ensilava Hamama, tomava um


odre e algumas provisões e galopava pelas estreitas ruas de Djeddah. A escuridão havia tomado a
noite e a tempestade vagueava à distância.
A criança acariciava a égua e lhe falava como se aquele rude animal pudesse entender a
linguagem dos homens. “Oh, Hamama, amiga querida, exclamava, leva-me aonde está seu
mestre. Nós duas o salvaremos. Sabes o quanto ele te quer, sabes que ninguém mais que eu te
cuidava, ajuda-me a encontrá-lo. Graças a ti eu o devolverei à sua mãe; Juntas nós lamentaremos
a perda de Leila, e eu o confortarei em sua dor. Faça-o, Hamama, amiga minha, faça-o e te
quererei muito.” E abraçando-se ao pescoço da égua afrouxou-lhe as rédeas. Hamama, qual uma
seta, arremessou-se para a frente, como se levada por uma mão invisível.
Quando ao raiar o dia, atravessou a planície por diante de uma avançada de arnautas, um
sentinela espantado descarregou sua arma de fogo, declarando que ele viu Satanás montado em
um cavalo branco, como o vento, passando com a rapidez da águia que fende as nuvens. De tal
modo cavalgava Hamama sem deter-se para descansar ou beber água. Um instinto maravilhoso a
impelia e guiava em direção a seu mestre. Corria em direção a ele, não importando o caminho
batido, acima das rochas, pelos leitos dos rios, e através de profundos areais. Deus a guiava.
À metade do dia avistou Kafur ao longe a Abdallah prosternado como um homem que reza.
– “Mestre! Mestre!” Ela gritou ao ver-lhe, “vê-me aqui! sou eu!”
Mas nem a voz de Kafur, nem o som dos cascos de Hamama despertaram Abdallah de sua
contemplação, de seu recolhimento, e quando Hamama se deteve a seu lado, não se moveu
tampouco.
Kafur temerosa correu a ele. Ele parecia adormecido; seu irradiando êxtase, se
assemelhava ao de um dervixe e um sorriso divino vagava em seus lábios; O duelo fugira
daquele semblante, os rastros da dor haviam desaparecido do rosto daquele mortal que tanto
havia sofrido. “Mestre! Mestre! Responda-me!” Clamava a pobre escrava, envolvendo o beduíno
em seus braços. Ele estava frio; A vida havia abandonado aquela envoltura de barro, aquela
envoltura mortal e o espírito seguia para o céu, havia sido chamado ao seio de Deus. Deus
chamou-o para ele mesmo, em espírito, favorecê-lo no céu.
– “Abdallah!” exclamou Kafur ajoelhando-se sobre ele e cobrindo-lhe de beijos.
“Abdallah! Eu te amei!”
E, sobresseu corpo, pronunciando estas palavras, ela ofertou sua alma a Deus.
Com apreensão, Hamama lançou um longo olhar nos dois amigos, e aproximando seu
focinho queimado algumas vezes sobre o rosto de Kafur, fazia força para reanimá-la, então ela
estirou-se na areia, com os olhos fixos nos dois corpos, aguardando o despertar daqueles que
nunca iriam despertar novamente na Terra.

CAPÍTULO XXXII – CONCLUSÃO

Eis aqui, nos disse Ben-Hamed concluindo, a história do Poço da Benção tal como se
refere às caravanas que cruzam por este lugar; é uma história verdadeira e há muitos testemunhos
dela que vive ainda.
Não existe alguém entre vós que conheça à Mansour? A última vez que esteve em Djeddah,
me o ensinaram. É um velho seco e amarelado, de longa barba, olhos fundos e apagados e o rosto
cheio de cicatrizes. Sua fortuna, é, segundo contam, maior que a do Sultão: os ricos que tem
necessidade dele lhe rodeiam e lhe adulam: os pobres lhe depreciam e mais de um mendigo lhe
atiraram sua esmola na cara chamando-lhe Cain.
Estes desprezos, dizem que lhe fazem menos dano que as adulações. Suas palavras são
duras, é cruel e violento. Sus mulheres lhe odeiam, seus escravos lhe enganam, o aborrecimento
lhe rodeia como o ar que respira. Ninguém lhe ouve queixar-se, sem embargo, o orgulho lhe
empresta forças, porém asseguram que não dorme nenhuma noite e as passa fumando bang e
ópio. Está cansado da vida e tem horror à morte.
– Como eu encontro a esse cão à boca de meu fuzil, exclamou um jovem cameleiro, já lhe
ajustarei a conta.
– Cala-te, criança, exclamou um velho condutor; Omar é um muçulmano e tu não és Bani-
amer, não tens direito sobre sua vida. Deus faz bem o que faz, sabes tu se para esse homem não é
a vida o mais cruel dos castigos?
– Que seja maldito o fratricida, exclamou Ben-Ahmed. E cada um de nós repetiu em alta
voz. – Maldito seja!
– Por minha parte continuou o velho cameleiro, me recordo de haver visto aqui à mãe de
Abdallah. Depois de haver saciado nossos camelos, nos mostrava com orgulho um pequeno
rincão de terra rodeado de um círculo de pedras que o defendia dos chacais.
Ali esperavam seus filhos o dia do juízo. Todo o ano se viam flores naquele lugar, e longos
festões de jasmins sujeitos por fios de palmeira rodeavam a tumba. Hoje o jardim pertence a
outros senhores e do filho de Yussuf não ficou mais que o nome. Pobre Halima! me parece que
ainda a ouço referir-nos como alguns beduínos, muito tempo depois, vagando no deserto,
descobriram nas areias Abdallah e Kafur, recolheram-nos então, como haviam encontrado entre
as areias, para depositá-los, abraçados, no mesmo caixão.
E coisa singular! Estranho dizer, que as aves de rapina e as bestas com suas presas haviam
devorado ao cavalo, mas nenhum abutre desceu, durante o dia, sob o corpo de Abdallah, e
nenhum chacal tocou, durante a noite, o corpo de Kafur.
Debaixo da sombra das palmeiras, próximo ao Poço da Benção, dois montículos de Terra,
cercados com pedras para repelir os chacais, marcam o lugar onde os beduínos, os egípcios, e a
negrinha aguardam juntos o dia do julgamento. Ali, arrastando-se dos galhos das árvores, o
fragrante jasmim, em meio às flores odoríferas, recobrem aquela tumba durante todo o ano.
– Assim morre o justo, continuo o ancião; as almas nobres são sempre as primeiras que se
vão. Deus as arrebata às misérias da vida e aos ataques da maldade. Os melhores frutos caem
apenas maduros: os maus permanecem na árvore e apodrecem sem amadurecer para ser atirados
ao fogo com a lenha seca.
Distraídos nesta conversação, nos surpreendeu a aurora; era tempo de partir. Se arrancaram
os postes, se ataram os cordéis e se levantou a tenda; porém enquanto trabalhavam não havia um
só que não pensasse no beduíno. Nenhum de nós lhe havia conhecido e todos lhe sentíamos
como a um irmão.
Emendou o velho cameleiro, aqui Halima chora lamentando suas crianças, chamando para
Azrael juntar-se elas; E aqui o cansado viajante recupera-se antes de extinguir sua sede na bem
santificada, recitando um Fát-hát em honra de Abdallah.
Quando a caravana se pôs em linha, o velho cameleiro fez o sinal para partir, porém antes
de começar a jornada quis recitar um Fát-hát em honra do filho de Yussuf. Todos lhe imitamos
afastando-nos depois silenciosos e cheios de respeito e admiração por aquele homem do qual
desapareceu até o sepulcro.
– Este, disse o velho, era Abdallah, (1) com razão chamado assim, porque verdadeiramente
era servidor de Deus.

(1) Abdallah quer dizer servidor de Deus.

CAPÍTULO XXXIII – EPÍLOGO

Aqui da fim a esta demasiado longa história, o pobre escravo de Deus, sempre resignado
(assim o espera) à vontade divina, Mohammed, filho de Haddah da nobre tribo dos Bani-malik.
(@ Bani Malik (‫ )بني مالك‬ou Banu Malik (‫ )بنو مالك‬é uma das principais tribos árabes da Península
Arábica . Eles são descendentes de Malik al-Ashtar Al-Nakh'ei que lutaram com Ali ibn Abi
Talib , primo do profeta Maomé . Bani Malik compreende as seguintes tribos: Al-ali, Al-Faraj,
Al-Ismail, Al-Awabid, Al-Humaidat, Al-Ibrahim, Bani Rzaij, Bani Hasan (Iraque))
Mohammed não trata de comprazer aos delicados, deixando esta glória aos rosqueadores
de pérolas e aos cinzeladores do Cairo e de Teerã. Se conseguiu que sorrissem por um instante os
que choram que chorem um momento os que riem, sua ambição está satisfeita. Que Deus lhe
perdoe sua loucura! Em presença d'Aquele para quem toda nossa sabedoria não é mais que
vaidade, pode que o dia do juízo encontre mais acolhida à fábula que consola, que a verdade que
seca e mata.
Naquela hora terrível, em que cada qual responderá por suas palavras, pregue ao céu que as
quimeras de um sonhador não pesem demasiado no prato da balança; isto pede e isto espera o
filho de Haddah.
Se algum malvado faz aplicações desta relação e se crê aludido, com seu pão se o coma, o
narrador não se ocupa sequer dele porque não fala com os filhos do Faraó. Faz tempo que viaja
pela terra e viu a mais de um Omar triunfante e desaparecer, arrebatado em flor, mais de um
Abdallah; porém seu espírito não se conturbou por que se fia em Deus. Deus é quem mescla a
amargura às satisfações do egoísta. Deus quem impregna em segredo prazer ao sofrimento dos
corações amantes. Deus glorifica a derrota do justo e empana o triunfo do malvado. E1e é quem
dá a paz! Ele é o Senhor da vida e da morte! Ele é o Eterno, o Sábio, o Forte, o Clemente, o
Misericordioso, o Único!

O FIM
Aziz e Aziza

INTRODUÇÃO

As Mil e uma noites quase não se conhecem na Europa mas que pela tradução de Antoine
Galland, e se crê que só existe uma coleção de contos orientais com este título; porém a verdade
é que existem muitas coleções que levam o título das Mil e uma noites; sempre se trata nelas do
mesmo sultão Schariar (Xariar) crédulo e feroz, sempre figura em primeiro termo a simpática
Scherazade, porém se o marco não muda, os quadros variam e os contos se diversificam até o
infinito.
Um sábio inglês, Mr. Edward William Lane, trouxe do Egito e traduziu ao cabo de quinze
anos um manuscrito das Mil e uma noites. Nesta coleção figura um episódio tão delicado e tão
cheio de verdade, que não poderia eu resistir ao desejo de traduzi-lo. Aziz e Aziza, é o título do
que não deveríamos chamar de conto. Com efeito, não é uma dessas produções maravilhosas,
fruto de uma imaginação ardente que tanto agradam aos indianos e aos persas, autores de quase
todos estes contos orientais; senão uma pequena novela árabe em que se pinta a vida dos simples
muçulmanos; é pura e simplesmente uma história de amor, porém contada com tanta verdade e
poesia que eu não vacilaria em comprá-la com o mais delicado e sentido que se encontre na
literatura Ocidental.
Para apreciar bem seu mérito, é preciso conhecer algo dos costumes orientais afim de não
assombrar-se com certas coisas, que parecerão estranhas. Aziz, o herói que se queixa de que o
amor e as inquietudes diminuem sua beleza e que mais tarde nos pinta sua alegria dizendo que
vivia sem penas e se punha gordo e vermelho, é sem dúvida um personagem que subleva nossos
instintos delicados. Nossos enamorados engordam de certo modo quando são felizes, porém não
se ufanam disto. A maneira expedita que tem Fátima de casar-se e descasar-se, tem um sabor
demasiado oriental para nosso gosto, e o mesmo pode dizer-se dos furores da sultana; porém em
troca, quão comovedora, quão simpática e verdadeira, é a figura de Aziza! A mesma grosseria
dos personagens que a rodeiam, faz ressaltar também, pelo contraste, que formam, sua
delicadeza e sua formosura! Quem creria encontrar uma alma tão delicada e tão nobre em uma
muçulmana, em um país em que é instituição a poligamia e onde, segundo nós sabemos, a
mulher não é mais que uma escrava?
Quanto talento não se há necessitado para fazer interessante à mesma Sultana ao próprio
tempo que desempenha um papel odioso! O que estude com detenção esta obra de um novelista
desconhecido, encontrará uma arte imensa sob a aparência de uma grande sensibilidade; e verá
transtornadas, ademais, todas as ideias admitidas entre nós acerca das mulheres orientais.
Eu espero que meus leitores vejam com gosto esta obra mestra de um narrador esquecido.

E. L.

AZIZ E AZIZA

Quatro vezes havia saído o Sol desde que o filho do rei da Cidade Verde, o príncipe Taj-el-
Moluk, andava de caça, quando ao raiar a aurora avistou uma numerosa caravana, escoltada por
escravos brancos e negros. A caravana se deteve em uma planície, à margem de um arroio, sobre
o qual flutuavam as sombras de um grupo de árvores: uma vez naquele lugar, os que a
compunham começaram à descarregar os camelos e a levantar as tendas.
– Vá ao encontro desses viajantes, disse o príncipe a um dos que lhe acompanhavam, e
pergunta-lhes quem são e por quê acampam nesse lugar.
Quando chegou o enviado lhe contestaram os viajantes:
– Somos mercadores, e nos detivemos aqui para descansar porque a primeira estação está
muito distante. Escolhemos este lugar, porque aqui estamos sob a proteção do rei Suleimam
(Solimão, Salomão) e de seu filho. Quem entra nos domínios do rei da Cidade Verde, goza em
elos de paz segura; assim é que em mostra de respeito e agradecimento, trazemos ricas telas para
oferecidas ao príncipe Taj-el-Moluk.
Quando o filho do rei Suleimam soube a resposta dos mercadores, disse;
– Posto que me trazem presentes, não quero retornar à a Cidade Verde, nem apartar-me
deste lugar sem vê-los.
Este dito montou à cavalo, e seguido de seus guardas e de seus escravos, se dirigiu até a
caravana. Ao ver-lhe surgindo se levantaram a saudar-lhe os mercadores rogando à Alá que
aumentasse a glória e perfeições do príncipe.
Levantaram diante de Taj-el-Moluk uma tenda de seda carmesim, bordada de pérolas e
pedrarias, e sobre uma alfombra de seda estenderam um tapete real, cujos extremos enriqueciam
grossas esmeraldas. Sentou-se o príncipe, seus guardas e escravos se colocaram em semicírculo
atrás dele, e mandou aos mercadores que lhe ensinassem todas suas riquezas. Os mercadores
desdobraram suas diversas mercadorias. Taj-el-Moluk escolheu aquelas que mais lhe agradavam,
mandando satisfazer seu preço.
Já a cavalo e a ponto de partir, avistou a certa distância um jovem, de ar distinto e elegante
traje, porém pálido, silencioso e como agoniado pela tristeza. Taj-el-Moluk se aproximou do
estrangeiro e lhe contemplou um instante com assombro. O jovem completamente absorto em
sua dor não via à ninguém, deixando resvalar algumas lágrimas por suas grossas faces enquanto
recitava estes versos:

Levou-me a eternidade sombria,


Levando-se-me a alma:
Partiu, e partiu com ela minha alegria
Minha ventura e minha calma!

Só sou um cadáver, sombra perdida


que entre os vivos vaga;
como a tocha se apagou minha vida
que o furacão apaga!

Pronunciadas estas palavras rompeu à chorar amargamente, e por último, se desmaiou.


Ao retornar a si seus olhos estavam como extraviados, e exclamou:

Dessa mulher separa-te,


que se adorá-la chegas
invejarás a paz dos que dormem
debaixo da terra!
Sua ternura é falsa;
mentira sua inocência!
Seu amor é triste sonho, do que sempre
chorando se desperta!

Ao concluir estes versos, atirou um profundo suspiro e voltou a desmaiar-se. Comovido


pela piedade, deu Taj-el-Moluk alguns passos em direção do estrangeiro, porém este, voltou a si
e reconhecendo ao príncipe, se adiantou e beijou a terra diante do filho de Suleiman.
– Por que nome hás ensinado tuas mercadorias? lhe disse Taj-el-Moluk.
– Oh, senhor! respondeu o jovem; não trago nada digno de tua grandeza.
– Não importa, disse o príncipe, ensina-me o que trazes, e diga-me quem és. Se algo te
aflige, eu farei que cessem teus sofrimentos: se estás arruinado, eu pagarei tuas dívidas, porque
desde quando te vi, sinto turvados meu coração e minha alma.
Taj-el-Moluk fez um sinal à seus escravos: ato contínuo lhe levaram um assento de marfim
e ébano adornada de trancas e franjas de seda e ouro, e estenderam a seus pés um tapete de seda.
O príncipe se sentou, e mandando ao estrangeiro que se colocasse sobre o tapete lhe disse:
– Ensina-me tuas mercadorias.
O jovem tratou de escusar-se novamente; porém a uma ordem de Taj-el-Moluk foram seus
escravos a buscar os fardos do mercador. Em vão chorou e suspirou: lhe foi preciso mostrar suas
mercancias ao príncipe, fardo por fardo, peça por peça. Ao desdobrar um vestido de seda
bordado, que valia pelo menos duas mil peças de ouro, caiu um lenço de entre as dobras do
tecido. O jovem se apressou a recolhe-la ocultando-a sob seu joelho: sua cabeça se turvou e
exclamou entre gemidos:

Oh tu que a dor renovas


Do coração, a que vens?
A trazer-me a esperança
ou a dar-me outra vez a morte?

Surpreendido Taj-el-Moluk ao ouvir aquelas palavras cujo sentido não compreendia, disse
ao mercador:
– Que lenço é esse?
– Oh, senhor! respondeu o jovem; perdoa-me. Se não queria ensinar-te minhas
mercadorias, era para que não visses esse triste objeto, Tu não podes nem deves vê-lo!
Aquela linguagem ofendeu ao príncipe.
– Tua conduta, disse ao mercador, é pouco respeitosa. Quero ver esse lenço e quero saber
por quê choras ao encontra-lo.
– Oh, senhor! disse o jovem; minha história é muito estranha, e esse lenço cumpre um
grande papel nela, fui eu mesmo quem bordei as figuras e emblemas que o adornam.
Dizendo isto desdobrou o lenço. Em uma de suas pontas havia dos gazelas bordadas em
seda, olhando-se; uma estava realçada com fio de ouro e a outra com fio de prata, tendo esta
última um colar de ouro colorado com três crisóis.
Quando Taj-el-Moluk viu aquela obra mestra, exclamou:
– Louvado seja Deus, que ensinou ao homem o que o homem não sabia.
E seu coração ardeu ainda mais no desejo de ouvir a história do mercador.
– Conta-me tua vida, lhe disse, fala-me daquela por quem bordastes essas duas gazelas.
O jovem começou nestes termos:
– “Sabe, pois, oh, senhor! que meu pai era um rico mercador que não tinha outro filho que
eu. Um irmão lhe havia confiado ao morrer sua filha também única, exigindo-lhe formal
promessa de casa-la comigo. Me eduquei portanto na casa paterna, em companhia de minha
prima, sem que nos separassem quando tornamo-nos adultos, porque estávamos destinados um
aa outro.
Um dia disse meu pai à minha mãe:
– Casaremos este ano Aziz e Aziza.
E havendo aprovado minha mãe esta vontade, começaram à fazer provisões para a festa.
Enquanto isto acontecia, vivíamos sem saber que se ocupavam de nós, ainda que para dizer
a verdade, minha prima, mais inteligente, sabia algo mais que eu sobre este assunto.
Quando tudo estava preparado e já não faltava mais que estender o contrato e celebrar a
boda, meu pai propôs que se firmasse o ato depois das orações da sexta-feira, e foi a convidar a
seus amigos, os outros mercadores, enquanto que minha mãe convidava, por seu lado, a suas
amigas e às mulheres da família. Chegada a sexta-feira, se lavou o salão disposto para receber
aos convidados, se aljofrou o mármore do pavimento, se estenderam tapetes pelo solo e se
adornaram as paredes de tecidos de seda bordadas de ouro. Meu pai saiu a mandar fazer pasteis e
doces para a tarde. Minha mãe me enviou ao banho e me fez trazer vestimentas novas de
admirável riqueza. Ao sair do banho vesti-me com aquelas roupas perfumadas, das quais se
exalava um suava odor que deixava como um rastro de aromas por meu caminho. Só faltava
então estender o contrato.
Minha primeira ideia foi dirigir-me à mesquita; porém me recordei do nome de um amigo a
quem não havia convidado às bodas, e calculei que teria tempo de avisar-lhe antes de que soasse
a hora da oração. Com este propósito entrei em uma rua por onde nunca havia passado, fazia
calor, o banho me havia extenuado e estava suado de maneira que vendo ali um banco de pedra,
estendi meu lenço e me sentei para descansar um pouco. As gotas de suor me corriam pela frente
e pelas faces e não tinha nada com que enxugar-me, já ia a fazê-lo com uma ponta de minhas
roupas quando caiu a meus pés um lenço branco.
Levantei a cabeça e meus olhos se encontraram com os de uma mulher que me olhava
através de umas cortinas entreabertas. Era formosa sobre toda ponderação. Eu não havia visto
nunca mulher mais encantadora. Me levantei; porém a desconhecida pôs um dedo sobre sua
boca, colocou depois sobre o peito o índice e o do coração e de repente se retirou da janela
cerrando as cortinas.
O fogo havia aceso em meu coração; permaneci por um longo tempo naquele lugar,
inquieto, suspirando, fazendo esforços por compreender aquelas cenas misteriosas. Vinte vezes
olhei à janela que permanecia muda. Ali estive até que se pôs o sol, porém sem ouvir nenhum
ruído nem ver à ninguém.
Cansado, enfim, e desesperado, me resignei a sair dali, recolhi o lenço, o desdobrei e dele
saiu um odor de almíscar que me transportou ao paraíso. Ao mesmo tempo encontrei um bilhete
perfumado que continha estes versos:

Com pena lograrás, amado meu,


ler estas palavras
que foram ditadas pela dor.
E sem embargo, crê-me, ao riscá-las,
muito mais que a mão,
me treme o coração.

Voltei a desdobrar o lenço e admirei seu trabalho lendo os versos amorosos bordados nos
cantos com uma delicadeza estremada.
Aqueles versos e aquela carta aumentaram meus desejos e minhas angústias. Voltei à
minha casa com o passo vacilante: tinha turbada a razão e não sabia que fazer para encontrar
aquela mulher que me havia aprisionado a alma.
Quando cheguei à minha casa era mais de meia noite. Minha prima me aguardava
chorando, porém apenas me viu, enxugou as lágrimas, e correu a meu encontro para tirar-me o
kaftan, (1) Me disse que as pessoas notáveis da cidade, os mercadores e os amigos, haviam
confirmado sua presença na festa, que o cadi havia estado dentre as testemunhas, que haviam
comido, aguardando-me muito tempo para celebrar as bodas; porém que ao fim, cansados de
esperar haviam partido todos. Acrescentou que meu pai estava furioso, e que havia jurado não
casarmos até que passasse um ano, porque havia feito gastos consideráveis para aqueles
preparativos e que, por último, não haviam servido para nada.
– Que te aconteceu e por quê chegastes tão tarde? Acrescentou ela.
Eu estava louco de amor e nada ocultei dela, lhe contei como uma mão desconhecida me
havia arremessado um lenço fazendo-me gestos misteriosos, e como por este motivo havia
permanecido o dia inteiro ao pé da janela. Para concluir lhe dei o lenço e a carta dizendo:
– Essa é minha história; ajuda-me a sair do mar de confusões em que me encontro.
Minha prima leu os versos, e enquanto os lia grossas lágrimas se escapavam de seus olhos.
Depois me disse:
– Oh primo meu! se me pedísseis um de meus olhos eu o sacaria para dar-te. Eu te ajudarei
a realizar teu desejo e lhe ajudarei a ela, porque conheço que o amor é em seu peito tão intenso
como no teu.
– E me explicarás, lhe disse, os gestos que me hás feito?
– Sim, respondeu Aziza. O dedo colocado sobre a boca, significa que tu és para ela o que a
alma é para o corpo, o lenço é a saudação que a amante envia a seu amado, a carta indica que hás
cativado seu coração, e enquanto aos dois dedos postos sobre o coração, é uma maneira de dizer-
te: “Volta dentro de dois dias afim de que tu presencia calme minha ansiedade,”; Oh primo meu!
continuou, tem por certo que te ama de verdade, e confia eu ti, porque isso dão a entender estes
sinais. Se eu fosse livre para sair e chegar, eu os reuniria os dois.
Ao ouvir aquelas frases amáveis que me devolviam a esperança, dei graças a minha prima
e pensei esperar dois dias.
Aquele tempo o passei sem sair de casa, sem comer nem beber, sentado ao solo com a
cabeça entre os joelhos de Aziza. Ela me reanimava com suas palavras repetindo-me:
– Tens coragem e vá buscá-la à hora prevenida.
Quando chegou o momento minha prima me trouxe minhas mais formosas vestimentas e
me perfumou com incenso.
Saí com o coração agitado e cheguei à hora combinada.
Já fazia algum tempo que estava sentado no banco de pedra quando se entreabriu a cortina.
Levantei os olhos até a desconhecida, e uma nuvem passou por diante de minha vista. Voltei a
mim, levantei os olhos pela segunda vez, e pela segunda vez estive a ponto de cair desvanecido.
Quando ao cabo logrei serenar-me um pouco, vi que tinha nas mãos um espelho e um lenço
encarnado, Se levanto as mangas até o cotovelo, abriu os cinco dedos e se os pôs sobre o peito;
depois levantou as mãos e agitou o espelho. Feitos estes sinais desapareceu um instante para
retornar com o lenço encarnado o qual sacudiu três vezes fora da janela torcendo-o e
destorcendo-o. Eu seguia com o olhar suas ações tratando de adivinhar aquilo linguagem muda,
quando se fechou a cortina, ficando tudo em silêncio. Em vão esperei até a noite, ninguém
apareceu na janela: tive de novo que retornar à minha casa confuso e desesperado.
Já estava muito entrada a noite quando cheguei à minha morada onde encontrei à minha
prima com a cabeça oculta entre as mãos e chorando. Sua vista aumentou minha dor e me atirei
em um canto da sala gemendo. Aziza correu até mim, me levantou, enxugou minhas lágrimas
com a manga de seu vestido, e me perguntou o que havia sucedido.
– Oh primo meu! me diz quando se passou o referido, tranquiliza-te. Os cinco dedos
colocados sobre o peito significam “Volte dentro de cinco dias,” O espelho e o lenço querem
dizer: “Senta-te na tenda do tintureiro até que te vão buscar por ordem minha.”
Ao ouvir aquelas palavras o fogo abrasou meu coração.
– Por Alá, exclamei, é certo o que dizes, porque na mesma rua eu vi um tintureiro judeu.
Dizendo isto comecei a chorar e minha prima completou:
– Valor, outros existem que como tu sofrem os tormentos do amor e tem que lutar muitos
anos contra este terrível mal, enquanto tu só tens que esperar uma semana. Te deixarás vencer
pela impaciência?
Tratou depois de distrair-me com sua conversação e me serviu a comida. Bebi um pouco de
vinho é tentei comer, porém não pude. Durante aqueles cinco dias apenas tomei nada; não
dormia, estava pálido, se desfiguravam minhas feições, e pouco a pouco ia perdendo minha
beleza. Ai! eu desconhecia o amor e a intensidade de sua chama devoradora.
Caí enfermo, e minha prima, vendo-me sofrer, não estava menos enferma que eu. Sem
embargo, para reanimar-me, me contava histórias de amor, logrando às vezes acalmar-me e
fazer-me dormir. Ao despertar via sempre que ela velava chorando.
Desta maneira passaram os cinco dias. Ao quinto minha prima preparou-me um banho
temperado, arrumou com esmero meu traje, e me disse;
– Anda, e queira Alá que logres o que desejas!
Ao chegar à rua, vi que a tenda do judio estava fechada; era sábado. Me sentei para esperar
na mesma pedra que os dias anteriores. O sol se pôs; cantavam nas torres chamando à oração,
veio a noite e não vi a ninguém nem recebi mensagem alguma.
Ao retornar à minha casa vi à minha prima com a cabeça apoiada contra a parede,
soluçando enquanto recitava uns versos.
Quando os concluiu se voltou, e enxugando as lágrimas com a manga do vestido veio até
mim sorrindo, e me disse;
– Primo meu, que Alá te acompanhe! Por que não ficastes esta noite junto à tua adorada?
Ao ouvir aquelas palavras, a cólera me cegou, e dando-lhe uma chute no ventre a atirei ao
solo.
Ao cair se feriu a frente e brotou o sangue; porém não soltou nenhum um grito ou disse
uma palavra sequer. Levantou-se como pode, @avermelhou o lenço que se pôs sobre a ferida, e
se colocou uma venda ao redor das têmporas, lavou depois o sangue que havia caído sobre o
tapete e tudo ficou como se nada houvesse acontecido.
Concluída esta operação, se aproximou de mim com um sorriso nos lábios, e me disse com
doçura:
– For Alá, primo meu, te asseguro que não quis me burlar nem de ti nem dela. Uma dor
violenta de cabeça me turvava o espirito, e pode que sem querer dissera algo desagradável,
porém agora que já não me dói a cabeça nem a frente, diga-me o que aconteceu contigo.
Se o contei chorando, e ela me disse:
– Anima-te, porque tudo anuncia que lograrás teus desejos e se cumprirão tuas esperanças.
Sem dúvida hoje quis provar-te para saber se teu amor é sincero e firme. Tua alegria se acerca e
tua aflição desaparecerá.
Estas palavras e outras muitas que me disse, não chegavam a consolar-me. Então pôs um
velador diante de mim e me trouxe pratos com a comida; porém de um pontapé derrubei a mesa e
quanto continha exclamando:
– Em verdade que o amor é absurdo! Tira o apetite e o sono!
– Por Alá, disse Aziza, que certamente são esses os sintomas do amor.
Ao dizer isto se lhe saltaram as lágrimas; recolheu os cacos dos pratos, varreu o tapete e
veio sentar-se a meu lado, tratando sempre de divertir-me enquanto eu pedia a Deus apressar o
curso da noite e trazer a manhã.
Ao romper o dia voltei à rua e ocupei meu lugar sobre o banco de pedra, A janela se abriu e
a desconhecida assomou a cabeça rindo.
Se retirou depois de um momento para retornar com um espelho, uma planta verde e uma
lâmpada. O primeiro que fez foi meter o espelho no saco e atirar ambas as coisas no interior da
sala; em seguida se deixou cair as tranças dos cabelos sobre o rosto, e colocou a lâmpada em
cima da planta verde, e sem dizer uma palavra, fechou a janela e desapareceu. Todos aqueles
mistérios contribuíam para turvar o meu espírito e de aumentar a violência e a loucura de meu
amor.
Quando voltei à casa, encontrei à minha prima com a cabeça apoiada contra a parede. Os
ciúmes lhe roíam o coração, porém afogava suas penas para não ocupar-se mais que das minhas.
Olhando-a de mais perto reparei que tinha uma dupla atadura; uma ocultava a ferida da frente e a
outra estava colocada sobre um olho que se lhe havia inflamado à força de chorar. A pobre Aziza
estava realmente em um estado lamentável e soluçava recitando estes versos:

Deus afaste o perigo que te espreita


quando foges de meu lado!
Oh, quem fora a sombra de teu corpo:
o eco de teus passos!

Quando minha prima acabou de recitar os versos, volvia a cabeça e me viu; eu o momento
veio até mim enxugando suas lágrimas: porém era tal ia violência de sua paixão, que esteve um
longo momento sem poder articular uma só palavra, ao fim me disse:
– Oh, primo meu, conta-me o que te há passado hoje!
Eu narrei tudo e ela me disse:
– Tem um pouco de paciência: tua esperança se há realizado e vossa união não tardará. O
espelho no saco significa: “Espera que se oculte o sol.” Os cabelos soltos sobre o rosto indicam:
“Quando venha a noite e caia sua negra sombra sobre a luz do dia, vem aqui.” A planta verde te
dá à entender que entres pelo jardim que se encontra atrás da casa, e enquanto à lâmpada, é como
se a desconhecida te dissesse; “Uma vez no jardim, verás uma lâmpada acesa, permanece ali e
aguarda-me, porque teu amor me consome."
Ao ouvir aquelas palavras, a força da paixão me fez cair em pranto, e disse à minha prima:
– Quantas vezes me hás prometido a felicidade! Todas tuas explicações me anunciam o
triunfo, e sem embargo, meus desejos não se realizam.
Aziza me respondeu sorrindo:
– Espera até que se conclua o dia: quando e a noite traga ao mundo suas espessas sombras,
se cumprirão teus votos.
Isto dito se aproximou de mim e me consolou com doces palavras, ainda que sem oferecer-
me de comer. Temia incomodar-me, e seu único afã era comprazer-me. Porém eu não lhe fazia o
menor caso, e repetia à cada instante:
– Oh! Alá apresse a chegada da noite!
Quando chegou a hora, minha prima me deu um grão de almíscar dizendo-me:
– Oh, primo meu! ponha este grão de almíscar em tua boca, e depois que vejas a tua amada
e ela escutes teus votos, recitar-lhe estes versos:

Ouve uma voz enferma que te implora:


Que fará a alma que a paixão devora?

Ao dizer isto, Aziza me abraçou fazendo-me jurar que não recitaria aqueles versos à
desconhecida até o momento de abandoná-la.
Eu lhe respondi:
– Entendo, e obedecerei.
Entrada a noite, fui ao jardim; a porta estava aberta e entrei, divisando ao entrar uma luz.
Cheguei aonde ardia, e vi uma grande sala coberta de um artesanato de marfim e ébano. A
lâmpada estava suspensa em meio da abóbada: debaixo se divisava uma “bugia ardendo em um
grande candelabro. Cobria o solo um tapete de seda bordado de ouro e prata: ao lado de um poço
d’água havia uma mesa servida e coberta com um mantel de seda. Junto à mesa, um jarro de
porcelana cheio de vinho e uma taça de cristal incrustada em ouro; o serviço de mesa era de
prata, e os pratos estavam cobertos.
Ao descobri-los, encontrei frutos de toda espécie, figos, romã, uvas, limões, laranjas e
flores diferentes como rosas, jasmins, mirto e narcisos. O ar estava cheio daquele perfume.
Notando que minha prima havia acertado em tudo, se dissipou minha tristeza e me sentia
feliz: porém com grande surpresa por minha parte, naquela deliciosa estância, não encontrei
nenhuma criatura de Deus (cujo nome seja louvado) nem um escravo sequer. Parecia aquilo coisa
de encantamento.
Permaneci no mesmo lugar esperando a bem amada de meu coração, passou uma hora,
passaram dois, passaram três, e não veio ninguém, estava impaciente, ainda que não inquieto, e
olhava por todas as partes prestando ouvindo atentamente; tudo permanecia imóvel e silencioso.
Então comecei a sentir fome. Desde que estava enamorado nem comia nem bebia, seguro já do
êxito me deixei tentar por aquela mesa servida expressamente para mim. Levantei o mantel de
seda e vi um prato de porcelana, e no prato dois polos adereçados com especiarias: ao redor do
prato havia quatro bandejas. Uma continha doces, outra sorvetes de romã, a terceira um pastel de
amêndoas, e a quarta biscoitos com mel. Provei um dos biscoitos, logo um pedaço do pastel do
amêndoas, depois tomei uma colherada de doce seguida de uma segunda e uma terceira; por
último, comi uma coxa de frango, sem pensar que meu estômago, debilitado pelo jejum, não
poderia suportar aquele pouco de alimento. Ainda não havia concluído de lavar as mãos, me senti
com a cabeça pesada, me joguei sobre um coxim e acabei dormindo.
Ignoro quantas horas permaneci naquele estado. Fazia tanto tempo que não dormia! porém
quando despertei o sol queimava. Não me custou pouco trabalho retornar a mim e coordenar
minhas ideias. A mesa, os tapetes, tudo havia desaparecido: estava tendido em uma sala com as
paredes desnudas sobre um pavimento de mármore, e não sem grande assombro encontrei sobre
meu peito um punhado de sal e alguns carvões. Me levantei, sacudi minhas roupas e olhei à
direita é a esquerda: estava completamente só. Triste, humilhado e cheio de vergonha, tomei o
caminho de minha casa.
Minha prima estava ali golpeando-se o sono, enquanto suas lágrimas caíam espessas como
a gota de água de uma nuvem. Ao ver-me se levantou, e com voz doente me disse:
– Oh! primo meu, Deus teve misericórdia de ti e é amado por aquela a que amas, enquanto
eu me desfaço em pranto, porque não encontro piedade a teus olhos; porém que Deus não te
castigue por minha causa.
Então sorriu como uma mulher que sorri para dissimular uma dor viva, me acariciou, me
tirou o kaftan, e ao tempo de cobrar-lhe disse:
– Por Alá, aqui está um perfume que não é certamente o da alcova de uma dama! Que te há
sucedido?
Eu lhe contei minha má ventura.
Tornou a sorrir com o mesmo ar de sofrimento, e exclamou:
– Em verdade que padeço ao ver-te padecer: castigue Deus a que assim te aflige. Essa
mulher é exigente e caprichosa e começou a ter medo por ti. Ao pôr-lhe o sal sobre o peito te diz
a desconhecida: “Te hás embriagado de sono, e me pareces insípido, minha alma te rechaça com
desdém. Tu não mereces o nome de amante.” Tal é a pretensão dessa mulher, porém seu amor é
mentira, se te quisera te houvera despertado. Enquanto ao carvão significa: “Oxalá Deus te
enegreça a cara por haver mentido, dizendo que sabias amar. Isto é mais que uma criança que só
pensa em comer, beber e dormir.” Este é o sentido das duas coisas. Queira Alá (cujo nome seja
louvado) livrar-te dessa criatura.
Ao ouvir aquelas palavras comecei a golpear-me o peito exclamando:
– Por Alá, que o que dizes é certo. Acabei dormido e os enamorados não dormem: eu sou o
culpável, o que eu fiz, de comer e dormir, foi uma tonteira. Que partido tomar agora?
E rompi a chorar dizendo à minha prima:
– Aconselha-me, tem piedade de mim e Deus a terá de ti. Se me abandonas sou homem
morto.
Aziza que me amava me respondeu:
– Por minha cabeça e por meus olhos te asseguro, primo meu, que farei quanto possa por
comprazer-te, e se Deus o permite os reunirei aos dois. Escuta meu conselho. Quando chegue a
noite volte ao jardim, entra na sala, porém tem cuidado com o comida porque a comida chama ao
sonho. Mantêm-te, pois, desperto: ela não virá até passada uma grande parte da noite. Deus te
guarde da malicia dessa mulher!
Aquelas palavras me devolveram o ânimo, pedi a Deus que apressasse as horas, e quando
acabou o dia me dispus a sair. Minha prima me disse,
– Se a encontras, antes de abandoná-la não esqueças recita os versos que te ensinei.
– Eu o prometo por minha cabeça e por meus olhos, lhe respondi e corri ao lugar
combinado.
A sala estava preparada como o dia anterior: fonte, flores, frutos, mesa servida, tudo estava
em seu lugar. Espere longo tempo, a noite avançava e começava à cansar-me de minha solidão; o
sangue me queimava nas veias e me devorava a sede. Vi uma garrafa de água de arroz mesclada
com mel e açafrão e tomei um trago, ao que seguiram outros. Em pouco tempo, não sabendo em
que entreter-me, comecei a provar os doces e os pasteis, até que beliscando aqui e ali fiquei com
fome e comi de tudo. A cabeça me pesava e se me cerravam os olhos: me reclinei sobre um
coxim, porém dizendo com o propósito firme de cumpri-lo. Não haverei de dormir. Sem
embargo, o sono pode mais que eu, e acabei dormido.
Quando despertei o sol se havia levantado. Pela segunda vez me encontrei estendido sobre
o pavimento de um cômodo desmobiliado, e vi sobre meu peito uma tábua, um caroço de tâmara
e um grão de algaroba.
Me levantei e depois de atirar aqueles miseráveis emblemas, corri à minha casa furioso. No
momento que vi à Aziza a enchi de injúrias até o ponto de levá-la ao pranto, porém ela se
aproximo a mim soluçando, e me abraçou estreitando-me contra seu coração. Eu a empurrei para
longe de mim amaldiçoando minha estupidez e minha loucura.
– Oh primo meu! exclamou me parece que também dormistes esta noite.
– Sim, respondi, e ao despertar encontrei uma tábua, um caroço de tâmara e um grão de
algaroba. Que querem dizer isto?
– Por minha cabeça e por meus olhos, respondeu ela, a tábua significa, “que hás ido lá
como uma criança brincalhona; teu coração estava em outra parte, assim não se enamora: não és
um amante formal.” O caroço de tâmara, “Se me houvesses amado como eu te amo, o amor
arderia em tua alma como a tâmara no braseiro, e não dormirias.” Por último, o grão de algaroba
é como se te dissesse “tudo está acabado entre nós. Sofre esta separação com a mesma paciência
com que Jó sofreu sua miséria."
Aquelas palavras atiçaram o fogo que ardia em meu coração, e exclamei:
– Deus havia disposto que eu dormisse. Oh! minha prima senão queres ver-me morrer,
inventa algum estratagema que me permita retornar a ver,
– Aziz, me respondeu, o pranto afoga minhas palavras. Volta ao jardim, e se não dormires
obterás o objeto de teus desejos. Este é meu conselho, que a paz seja contigo.
– Se Deus assim o quiser, eu não dormirei e seguirei teus conselhos.
Minha prima se levantou e me serviu a comida, dizendo-me:
– Come agora para que à noite não tenhas fome.
Lhe obedeci e criando chegou a noite Aziza me trouxe minhas mais belas roupas e me os
pôs recordando-me os dois versos que devia recitar.
Ao chegar ao jardim o encontrei tudo disposto da minha maneira e esperei como as noites
anteriores. Para que o sono não me acudisse sacudia a cabeça e erguia as pálpebras com os
dedos, prometendo a mim mesmo não comer. Porém a impaciência e o desejo me secaram a
garganta e bebi a garrafa do vinho, dizendo: Não beberei mais que uma taça.
Por infortúnio o vinho me subiu à cabeça e a tudo esqueci, comendo e bebendo com ardor
febril.
À décima taça caí como fulminado por um raio.
Voltei à recordação de mim mesmo ao despontar o dia e encontrar-me na rua, e
encontrando sobre meu sobre peito uma peça de ferro e uma faca. O medo se apoderou de mim e
tomei aqueles dois objetos, apressando-me a retornar à minha casa.
Apenas entrei, caí desvanecido aos pés de Aziza, e a peça e a faca se escaparam de minhas
mãos. Quando à força de cuidados logrei retornar a mim, perguntei à minha prima que
significavam aqueles ameaçadores emblemas.
– A esfera de ferro, me disse, é a pupila negra dessa mulher e a faca, quer dizer, que há
jurado pelo Senhor de todas as criaturas e por seu olho direito, que se retornas ao jardim para
nele adormeceres, te dará morte com esse punhal.
– Oh primo, meu! completou, temo a malicia dessa mulher, meu coração está cheio de
inquietude e apenas posso falar. Se estás completamente seguro de não tornares a dormir, volte
ao jardim e obterás o que desejas porém sabe que se dormires te degolarás de vez.
– Oh, minha prima! exclamei; que partido devo tomar? Tira-me desta aflição. Em nome de
Deus te suplico!
– Por minha cabeça e por meus olhos te juro que se segues meus conselhos verás realizada
tua esperança.
– Farei quanto queiras exclamei.
Aziza me estreitou sobre seu coração, me fez recostar sobre o divã e passou suave mente
suas mãos sobre minhas pálpebras cansadas até que adormeci. Depois tomou um leque, sentou-se
à cabeceira do leito e pôs-se a abanar-me até que chegou a noite. Me parece que a vejo ainda
tendo em suas mãos o leque, havia chorado tanto, que sua túnica estava ensopada de lágrimas.
Apenas abri os olhos dissimulou sua dor com um sorriso e me trouxe de comer. Eu não
tinha vontade de comer porém me disse:
– Não sabes que tens que obedecer-me?
E por sua mão me ia metendo os pedaços de carne na boca. Eu a deixava fazer. Quando
conclui me serviu uma infusão de açofaifas e açúcar, me lavou as mãos e me as enxugou
perfumando-me com água de rosas. Nunca me havia sentido tão bem e tão ágil.
No momento de sair me disse:
– Primo meu, vela toda a noite, porque não virá até o raiar da aurora. No esqueces meu
encargo, completou desfazendo-se em lágrimas. Sua dor amarga me causava pena e a perguntei
que encargo era aquele de que me falava.
– Quando os separais, me disse, repita-lhe os versos que recitei para ti.
Corri ao jardim com o coração cheio de júbilo. Não tive sono, e sem embargo, a noite me
pareceu eterna. Já começava a clarear o dia, quando percebi um rumor. Era ela. A
acompanhavam dez formosas escravas, e brilhava em meio a sua coorte como a lua cheia em
meio às estrelas. Trajava um vestido comprido verde e bordado de ouro.
Ao verme abriu um sorriso, exclamando:
– Como pudestes resistir ao sono?
Agora conheço que és um amante formal, porque a paixão a tem os enamorados que velam
por toda a noite.
Se voltou às escravas, lhes fez um sinal para que se retirassem, e dirigindo-se a mim me
estreitou sobre seu coração detendo-me a seu lado até que o dia raiou completamente.
Ao momento de sair me disse:
– Espera, quero presentear-te com algo. E tirou esse lenço em que estão bordadas as duas
gazelas, o qual me entregou, fazendo-me prometer que retornaria todas as noites. A abandonei
louco de alegria.
Ao chegar à casa encontrei minha prima recostada no divã, ao ver-me se levantou e com os
olhos úmidos ainda, me deu um abraço e me perguntou:
– Hás recitado os dois versos?
– Não, lhe respondi, esqueci-me e este lenço carrega toda a culpa.
Aziza deu alguns passos como quem recebe uma ferida de morte e caiu como um chumbo
sobre o divã, desfazendo-se em lágrimas.
– Oh, primo meu, exclamou enfim entre soluços, dá-me esse lenço.
Atirou-o aos pés, desdobrou-o e esteve por um longo tempo olhando silenciosamente as
duas gazelas.
Enfim já à noite ela me disse:
– Vá e que Deus te proteja; porém quando vos separeis recita-lhe esses versos que te hei
dito e que esquecestes.
– Volta a recitá-los para mim, disse eu.
Aziza os repetiu.
Na sala do jardim encontrei à sultana, a qual ao ver-me se levantou, veio a meu encontro e
me deu um abraço, fazendo-me sentar a seu lado para cearmos juntos. Pela manhã lhe recitei os
dois versos de Aziza;

Ouve uma voz doente que te implora;


Que fará a alma que a paixão devora?

A sultana me olhou friamente, seus olhos se inundaram de lágrimas e disse:

Deves calar e sofrer


Dando mostras de valor!

Satisfeito por haver cumprido o que prometi à minha prima, voltei à casa.
Aziza estava na cama e à sua cabeceira velava minha mãe contemplando-a tristemente: ao
aproximar-me ao divã me disse minha mãe:
– Maldição sobre um parente tão ingrato como tu. Como hás podido abandonar a tua prima
enferma sem cuidar de seus sofrimentos?
Ao ver-me Aziza levantou a cabeça, se sentou trabalhosamente sobre a cama e me
perguntou:
– Aziz, lhe hás repetido os dois versos?
– Sim, lhe respondi, e ao ouvi-los ela chorou, dizendo-me outros dois versos que conservo
na memória.
– Recitam eles, disse Aziza.
Eu os recitei e quando concluí exclamou soluçando:

E se se sente morrer?
E se aumenta sua dor
Calar?

Aziza, completou:
– Repita esses quando vos separeis amanhã.
– Ouço e obedeço, lhe respondi.
Voltei ao jardim como no dia anterior e recitei ao despedir-me da sultana os versos de
minha prima.
A sultana me olhou friamente, seus olhos se encheram de lágrimas e me disse:

Mais vale morrer.

A minha volta encontrei Aziza desmaiada, velando por ela estava minha mãe. O eco de
minha voz a fez retornar a si, abriu os olhos e me perguntou:
– E meus versos, os recitaste?
Quando lhe repeti a contestação da sultana voltou à desmaiar-se, porém aos pouco
recobrando os sentidos exclamou:

Morrerei como me mandas


invejosa de tu alegria,
pois me roubas um tesouro
que amava mais que a vida!

Por minha parte não faltei ao compromisso do jardim. A sultana me esperava e ceamos
juntos. Pela manhã, antes de partir, lhe recitei os versos de minha prima. Ao ouvi-los, irrompeu
em pranto e com voz trêmula me disse:
– Por Alá, a que ditou estes versos está morta! Depois completou entre soluços.
– Desgraçado de ti! a que ditou esses versos, não era tua parente?
– É filha de meu tio, lhe respondi.
– Mentes, replicou; se assim o fosse, filha de teu tio a terias amado como ela te amava a ti.
Tu a hás matado. Permita Deus que morras como ela morre! Por Alá que se me houvesses dito
que tinhas uma prima não te haveria recebido em minha casa.
– Pois minha prima é, respondi, e ela me explicou os sinais que me fez dando-me
instruções sobre o modo de conduzir-me nesta questão. Graças a ela foi que pude chegar até a ti.
– Logo conhecia nosso amor!
– Sem dúvida! contestei.
– Queira Alá que chores tua juventude como por tua culpa chora ela as suas. Saia neste
momento e vá vê-la.
Saí em extrema turvação: ao entrar em minha rua ouvi gemidos e lamentações. Perguntei
que sucedia e me responderam que haviam encontrado à Aziza morta e seu corpo estendido no
solo. Minha mãe ao ver-me exclamou:
– A morte desta jovem pesa sobre ti! Oxalá Deus não te perdoe esse sangue inocente!
Maldição sobre um parente tão desnaturado como tu.
Meu pai entrou e preparamos o corpo para dar-lhe sepultura. Celebrou-se a cerimônia
fúnebre, e enterramos à pobre Aziza encarregando-me eu de mandar recitar o Corão inteiro sobre
sua tumba.
Permanecemos a seu lado durante três dias, passados os quais voltei à casa afligido pela
perda de minha prima.
Minha mãe me disse:
– Oh filho meu! quisera saber que fizestes para destroçar-lhe o coração. Eu lhe perguntava
sem cessar a causa de seu sofrimento, e nunca quis confiá-lo a mim. Por Alá te conjuro me diz
que fizestes a ela para que morresse!
– Eu nada lhe fiz, respondi.
– Que Deus a vingue e te castigue, replicou minha mãe. A pobre criança não quis dizer-me
nada ocultando-me a verdade até o último suspiro e guardando sempre seu afeto por ti.
Momentos antes de morrer abriu os olhos pela última vez e me disse: “Oh mulher de meu tio!
oxalá Deus não peça a teu filho contas de meu sangue. Alá lhe perdoe o que me fez. Agora que
estou resignada, que Deus me transporte deste mundo perecedouro à eternidade."
– Eu lhe contestei: “Oh filha minha! que Deus te conserve e conserve tua juventude.” E lhe
perguntei a causa de sua enfermidade, porém não me respondeu nada.
Alguns momentos depois ela sorriu e me disse: “Oh mulher de meu tio! se Aziz quer
retornar ao lugar que frequenta, diga-lhe que antes de sair repita esta frase: “A fidelidade é nobre
e a traição é baixa:” Lhe hei servido durante minha vida e quero ser-lhe útil depois de minha
morte."
– Tua prima, continuou minha mãe, incumbiu-se de dar-te uma coisa, porém fazendo-me
jurar que não te a entregaria até que chorasses e sentisses sua morte de verdade. Quando assim
suceda te confiarei sua última recordação.
– Ensina-me, disse à minha mãe; porém minha mãe se negou.
Apesar da morte de Aziza, eu não pensava mais que em meus amores, estava como louco e
havia querido passar as noites e os dias ao lado de minha adorada. Apenas chegou a noite, corri
ao jardim e encontrei à sultana a quem devorava a impaciência.
– Está morta! lhe disse; todos os rituais foram cumpridos e o Corão foi recitado. Quatro
noites se passaram desde que morreu e esta é a quinta.
– Não te disse que a matarias, exclamou soluçando. Se me houvesses dito antes lhe haveria
dado um testemunho de meu agradecimento por sua bondade, pois sem ela nunca haverias
chegado até mim. Temo que esta morte atraia alguma desgraça sobre tua cabeça,
– Não, disse; ela me perdoou antes de morrer.
E lhe contei o que minha mãe me havia dito, ouvido o qual exclamou:
– Por Alá te conjuro que peças a tua mãe esse segredo.
– Também, continuei, minha mãe me confio que minha prima lhe encarregou que me
dissesse: “Se teu filho quer retornar ao lugar que frequenta, previna-lhe que antes de sair repita
esta frase: A felicidade é nobre e a traição é baixa.
Ouvindo aquelas palavras exclamou a sultana:
– Que Deus (cujo nome seja louvado), tenha piedade dela que te salva de minhas mãos. Me
ia à vingar em ti; porém ao presente não quero já tocar-te nem fazer-te mal algum.
Assombrado de ouvir aquelas frases disse à sultana.
– De quê vingança estás falando? Não nos une um mútuo amor?
– Tu me queres, respondeu ela, porém és jovem, não conheces a mentira e não sabes quanta
malícia e perfídia encerra o coração de uma mulher. Se Aziza vivesse ainda, te ajudaria a
conhecê-lo como te há salvado da morte.
Daqui em adiante, acrescentou, te proíbo que fales à mulher alguma jovem ou velha. Tem
muito cuidado porque não sabes nada das astúcias das mulheres, aquela que te explicava essas
coisas, está morta, e se cais em uma rede ninguém virá à sacar-te dela.
Oh, e como sinto a filha de teu tio! Que Deus (cujo nome seja louvado) tenha piedade de
sua alma. Ela guardou seu segredo, ocultou o que sofreu, e por sua mediação chegaste até mim.
Agora tenho que pedir-te um favor, Leva-me aonde repousa, quero visitar sua tumba e
escrever alguns versos sobre a pedra.
– Amanhã, lhe disse, te levarei se é vontade de Deus (cujo nome seja louvado).
À manhã seguinte tomou uma bolsa que continha moedas de ouro e me disse:
– Vamos visitar a tumba, quero escrever versos nela, levantar uma cúpula, rezar pela alma
de tua prima e dar esmolas em seu nome.
Ouço e obedeço, respondi.
Iniciamos a marcha, eu à frente e ela atrás. Durante o caminho detia-se para dar esmolas
dizendo:
– Esta esmola é pela alma de Aziza, que guardou seu segredo até beber a taça da morte,
espirando sem revelar seu amor.
Deste modo esgotou o guarda-moedas em esmolas, repetindo a cada uma delas: “Pela alma
de Aziza."
Quando chegamos ao lugar em que repousava, prorrompeu em pranto e se atirou sobre a
tumba, depois sacou uma ponta de aço e sobre a pedra da tumba gravou com sua mão e em
pequenos caracteres os versos que seguem:

Vi aquele jardim deserto


aonde crescem as sarças!
Vi aquelas flores, que não rega ninguém,
cair sobre a tumba desfolhadas!
Me aproxime à pedra
vi a inscrição apagada,
e perguntei às árvores e ao vento:
– Quem dorme nesta tumba solitária?
Me respondeu a brisa
agitando as ramagens:
– “Repousa aqui a que morreu em silêncio
de um ignorado amor vítima santa.
Que importam ao ditoso
amarguras estranhas?
Que importam aos vivos os que morrem
e seus segredos na terra guardam?
– Abandonadas flores!
exclamei, pobre alma!
Ainda que os esqueçam todos, quando menos
eu rezarei e os regarei com lágrimas! (2)
Quando acabou seu trabalho chorou de novo, se levantou e partiu. Voltei ao jardim com ela
e me disse:
– Te conjuro por Alá que não me esqueceis.
Eu lhe respondi:
– Ouço e obedeço.
Todas as noites ia em busca de minha amada que me recebia sempre com bondade
fazendo-me repetir por vezes a frase que Aziza havia dito à minha mãe. Ditoso ao saber que era
amado sem inquietudes nem desgostos, gozava daquela vida deliciosa e me punha “avermelhado
e grosso” sem pensar por nada em minha prima.
Assim passei um ano embriagado de prazeres. Um dia de festa que me havia posto minhas
melhores roupas, entrei no banho de onde saí mais feliz e mais alegre que nunca. Havia bebido
um pouco de vinho de Shiraz (@Xiraz, Chiraz ou Shiraz (em persa: ‫ )شیراز‬é uma cidade do
sudoeste do Irão, é a capital da província de Fars.

Situada a 1 580 metros de altitude, a cidade tem uma área de 340 km². Em 2005, a sua
população era de 1 255 955 habitantes.

Fundada no século VII, Xiraz foi a capital do Império Zand entre 1750 e 1794, e por um
breve período na era Safárida. Em 1794, os Qajars transferiram a capital para Teerã. )e sentia o
coração contente. O perfume de minhas roupas me embriagava, enquanto dizia para mim
mesmo:
– Haverá outro homem mais ditoso que eu no mundo?
Ao dirigir-me à casa de minha amante, equivoquei-me de direção e segui por outra rua; o
vinho de Shiraz se me havia subido um pouco à cabeça e me fez perder o rumo. Quando tratava
de orientar-me se acerco a mim uma velha que trazia nas mãos uma luz e uma carta.
– Filho meu, me disse em tom de lástima, sabes ler?
– Sim, eu sei, lhe respondi.
– Pois toma esta carta e leia-me.
Tomei a carta, a abri e a li. Era de um ausente que enviava à sua família notícias de sua
saúde. A velha se alegrou muito ao conhecer o conteúdo da carta, e exclamou em forma de
oração:
– Filho meu, que Deus dissipe tuas aflições como hás dissipado as minhas.
Tomou a carta e se afastou, porém voltou um pouco, rapidamente, e me disse depois de
beijar-me a mão:
– Oh, meu senhor! assim Deus (cujo nome seja louvado) te permita gozar de tua juventude.
Te rogo que venhas comigo até aquela porta; aos que lá estão, lhes hei dito o conteúdo da carta,
porém não querem crer-me: faça-me o favor de vir, lerás para eles a carta desde o lintel e eu
rezarei por tua saúde.
– De quem é a carta? perguntei.
– Querido senhor, me respondeu a velha, é de um filho que saiu faz dez anos da cidade
com umas mercadorias e não tivemos mais notícias dele até agora. Porém meu filho tem uma
irmã que durante esses dez anos chora por ele, dia e noite, e não quer crer que esta carta é sua,
dizendo-me:
– Traz alguém que me leia esta carta afim de que meu coração se alivie e se tranquilize
meu espirito. Faz-me esse favor e obterás a recompensa prometida pelo apóstolo de Deus (a
quem Deus favoreça e exalte) quando diz: “Ao que afugenta dele o espírito de uma pessoa aflita
uma das inquietudes deste mundo, Deus lhe recompensa afugentando de seu espírito uma das
inquietudes do mundo futuro."
E aquela outra tradição que nos diz: “Ao que afugenta do espírito de seu irmão uma das
inquietudes deste mundo, Deus lhe recompensa afugentando de seu espírito setenta e duas
inquietudes no dia da ressurreição,"
Agora filho meu, não torneis vãs as minhas esperanças. Eu respondi:
– Anda que te sigo.
Passou diante de mim e me conduziu a uma grande porta forrada de cobre a qual depois de
haver dito algumas palavras em persa, chegou uma jovem caminhando rápida e graciosamente.
Estava vestida como uma mulher que se ocupa dos cuidados da casa. Tinha a vestimenta
arregaçada até o joelho, deixando ver duas pernas que só podiam comparar-se com duas colunas
de alabastro. Nos tornozelos levava dois braceletes de ouro com pedras incrustadas e suas
mangas levantadas também até o cotovelo, deixavam ver seus magníficos braços realçados por
braceletes de grande valor. Os pendentes eram de pérolas, o colar de diamantes e sobre a cabeça
luzia um adorno estranho todo cravejado de rubis. Estava encantadora.
Ao ver-me disse com voz cuja doçura não pode ponderar-se.
– É esta a pessoa que irá ler a carta?
E ouvindo a resposta da velha, me estendeu o papel.
Como estava à alguma distância da porta, estendi o braço para recolher a carta, e minha
cabeça e minhas costas trespassaram o lintel. (3) Já tinha a carta na mão, quando de improviso e
sem dar-me tempo de evitá-lo, a velha topou com a cabeça em minhas costas à maneira dos
carneiros, me empurrou para dentro do vestíbulo, e com a rapidez do relâmpago fechou a porta
atrás de nós.
Ainda não havia recomposto de minha surpresa, quando a jovem se aproximou de mim
estreitando-me sobre seu coração. Depois me tomou a mão e apesar de minha resistência me
obrigou a segui-la, enquanto que a velha nos precedia iluminando o caminho, Atravessamos sete
vestíbulos e chegamos à um salão tão grande que podia jogar-se futebol nele. Os muros eram de
alabastro e os móveis e até os almofadas, de brocado. Havia dois bancos de bronze e um sofá
guarnecido de pérolas e esmeraldas. Parecia o palácio de um rei.
Quando chegamos ali, a jovem me disse:
– Que preferes, a vida ou a morte?
– A vida, me apressei a responder.
– Pois bem, se não queres morrer, casa-te comigo.
– De nenhum modo, exclamei, não quero casar-me com uma mulher como tu.
– Aziz, repôs ela, se te casas comigo não terás que temer as armadilhas da filha da astuta
Dalila.
– Quem é a filha da astuta Dalila? lhe disse.
A jovem começou a rir exclamando:
– Com que tu não a conheces, tu que faz um ano e quatro meses que a vês todos os dias:
Que Deus (cujo nome seja louvado) a confunda. Não há mulher mais pérfida. Quanta gente há
levado à morte! Que coisas não há feito! Como hás podido escapar a seu furor?
– Porém tu conheces? perguntei cheio de assombro.
– Que se a conheço? respondeu, como a velhice conhece suas próprias misérias. Conta-me
tudo o que há passado entre vós, quero saber a que se deve tua salvação.
Então lhe referi minha história e a de minha prima Aziza.
Mais de uma vez exclamou ouvindo-me:
– Que Deus tenha piedade dela! Quando cheguei a relatar a morte de Aziza, chorou
retorcendo as mãos dizendo:
– Aziz, dá graças a Deus; tua prima te há protegido contra a filha da astuta Dalila, sem ela
podias contar-te entre os mortos.
Acabada a conversação bateu as mãos e chamou a velha.
– Mãe, lhe disse, faça entrar aos que estão contigo.
A velha saiu para retornar acompanhada de quatro testemunhas. Acendeu quatro tochas, as
testemunhas se sentaram depois de saudar-me, e a jovem se cobriu com um véu, encarregando a
um dos circunstantes que a representasse no contrato. Redigiu-se a ata e Fátima (então soube o
nome daquela mulher) declarou que havia recebido adiantado seu dote e que me era devedora de
dez mil moedas de prata. Depois deu às testemunhas seus honorários e os despediu.
Ao dia seguinte quis sair porém ela se aproximou de mim e num tom risonho me disse:
– Crês tu que se sai da prisão com a facilidade que se entra? Pensas que me pareço a filha
da astuta Dalila? Pois arranca essa ideia de tua imaginação. És meu marido, seguir o Corão e o
Sunnah (4), se te hás embriagado é tempo de que recobres o juízo. Esta casa não se abre mais que
uma vez ao ano, se não o crês vê a porta da rua e desengana-te por teus próprios olhos.
– Era verdade, a porta estava cerrada e cravada.
– Não te inquietes por isso, me disse minha mulher, temos provisões para muitos anos;
farinha, arroz, frutas, romãs, açúcar, carne e aves: porém convence-te de que não sairás daqui até
que passe um ano.
– Só em Deus reside o poder e a força, disse.
Ela se pôs a rir, eu fiz o mesmo e me resignei a fazer o que minha mulher quisera, ficando
a seu lado um ano justo.
O dia assinalado se abriu a porta, vi entrar a alguns homens carregados de pastéis, farinha e
açúcar; quis sair, porém minha mulher me disse:
– Espera que chegue à noite, sairás à hora que entrastes.
Esperei e Fátima me disse ao afastar-me.
– Por Alá que não te deixarei sair se não me juras primeiro que retornarás esta noite antes
que se feche a porta.
Lhe prometi retornar a hora indicada e me obrigou a prestar os três juramentos
irrevogáveis; pela espada, pelo Corão e pelo divórcio.
Uma vez em liberdade, aonde havia de dirigir-me senão ao jardim? Encontrei a porta
aberta parecendo-me aquilo um mal indício.
– Que! dizia comigo mesmo, faz um ano que não venho a este lugar e quando volto sem ser
esperado encontro a porta aberta como se houvera saído ontem. É possível que a sultana esteja aí
todavia? Irei assegurar-me.
A noite havia chegado, entrei na sala e encontrei nela a filha da astuta Dalila. Estava
sentada no solo com a cabeça apoiada em uma mão e sua intensa palidez fazia ressaltar a
obscuridade de seus olhos. Ao ver-me exclamou:
– Graças sejam dadas a Deus que te há salvado.” Tratou de levantar-se porém sua emoção
era tão forte que voltou a cair sobre os almofadas. Eu me adiantei, confuso, com o rosto baixo e
envergonhado de mim mesmo, a abracei e lhe disse:
– Como sabias que eu viria esta noite?
– Não sabia nada, respondeu. Por Alá, faz um ano que hei perdido o sono. Desde o dia que
me abandonastes prometendo-me retornar ao seguinte, hei vindo aqui todas as noites a esperar
tua volta: tão absurdas esperanças engendra o amor! E a ti quem te há detido? Diga-me por que
faz um ano que não te vejo?
Narrei-lhe toda a minha história. Ao saber de meu casamento empalideceu.
– Eu vim esta noite, lhe disse, porém tenho que deixar-te antes que chegue o dia.
– Como! exclamou, não lhe basta a essa mulher haver-te tido prisioneiro durante um ano,
depois de fazer-te seu esposo por surpresa, senão que não há de deixar-te sequer um dia com tua
mãe ou comigo? Não há pensado no que haverá sentido durante essa longa separação, a que te
possuía antes que ela? Que Alá tenha piedade de Aziza! A infeliz sofreu o que ninguém há
sofrido, suportando o que não há suportado ninguém. Tua ingratidão a matou e ela te há salvado
de mi. Quando te deixei a liberdade imaginei que retornarias, senão, quem me houvera impedido
aprisionar-te e dar-te a morte?
Ditas estas palavras irrompeu em amargo pranto; logo passando de repente da dor à cólera,
fixou sobre mim seus irados olhos.
Estava tão terrível, que tive medo e comecei a olhar a meu redor.
A sultana chamou, e a seu mandato, dez de suas mulheres se atiraram sobre mim e me
derrubaram no chão. Quando me viu sujeitado, levantou-se, tomou uma faca e disse:
– Vou a quitar-te a vida como se mata uma cabra: essa será tua recompensa pelo que hás
feito a tua prima.
Conheci que estava perdido e implorei sua piedade, porém minhas súplicas só conseguiram
aumentar seu furor. Fez que suas escravas me atassem as mãos às costas. Já atado, lhes ordenou
que me maltratassem, e aquelas mulheres, começaram a me golpear com tal fúria, que perdi o
conhecimento. Ao retornar a mim exclamei:
– Em verdade que a morte é menos dura que este suplício.
E recordava as palavras de minha prima “Deus te preserve da malícia dessa mulher,”
enquanto o pranto me dava um nó na garganta.
Enquanto isso a filha de Dalila, afiava sua faca, dizendo às mulheres:
– Descobre a garganta.
Cumprindo esta ordem, duas delas se sentaram sobre meus joelhos, outras duas, me
sujeitaram os pés, e uma negra me agarrou a cabeça, ladeando-a um poço. Naquele momento,
Deus me inspirou e repeti a frase que me havia dito minha prima:
– A fidelidade é nobre e a traição é baixa.
Apenas pronunciei estas palavras, a sultana se deteve e exclamou:
– Que Alá tenha piedade de ti, Aziza. Hás protegido a teu primo durante tua vida e depois
de tua morte. Logo continuou dirigindo-se a mim:
– Por Alá, essas palavras te hão livrado de minha vingança; porém guardarás o cheiro de
meu ressentimento.
– E aproximando-se, me fez uma cruel ferida: o sangue correu e desmaiei.
Quando voltei a mim, estava vendado, me deram um pouco de vinho, e a sultana me
empurrou com a ponta do pé.
Me levante como pude, sai com grande trabalho do jardim, logrando arrastar-me até a casa
de minha mulher. A porta estava aberta e me atirei ao solo no vestíbulo. Fátima me ajudou a
entrar, eu estava delirante e nem sei o que fiz; quando pude dar razão de minha pessoa me
encontrei na rua à porta do jardim de Fátima. Também ela me, havia expulsado de sua casa e de
seu coração.
Não me quedava mais que minha mãe e tomei o caminho da casa paterna. Encontrei a
minha mãe chorando e dizendo:
– Oh! filho meu, não poderei saber onde te encontras?
Me atirei em seus braços, me estreitou neles com toda sua alma, e me disse:
– Estás enfermo?
Tinha a cara amarela e negra dos golpes que havia recebido; porém naquele momento, o
que mais me fazia sofrer era a recordação de minha prima. Havia sido tão boa para mim! Me
havia amado tanto!
Chorei amargamente, minha mãe, acompanhando-me no pranto me disse:
– Teu pai há morto.
Esta notícia aumentou meu desespero e chorei com maior amargura. Em toda a noite não
cessei de gemer contemplando o lugar em que se sentava minha prima. Minha mãe voltou a
dizer-me:
– Faz dez dias que teu pai, há morto:
– Oh minha mãe! lhe respondi, perdoa-me, porém neste momento não tenho lágrimas mais
que para minha prima. Eu mereci o que me sucede desdenhando à que tanto me amava.
Foi preciso pensar em minha ferida. Graças aos cuidados de minha mãe, logo estive
restabelecido. Vendo-me já bom, me disse um dia:
– Filho meu, há chegado a hora de entregar-te o depósito que me confiou tua prima. Me fez
jurar que não te o daria até que deixasses de pensar em outras e a sentisses e a chorasses. Creio
que há chegado esse momento.
Abriu um cofre e tirou o lenço em que estão bordadas as gazelas, Era o lenço que eu lhe
havia dado. Havia bordado em uma de suas pontas alguns versos, queixando-se de amar sem
esperança. Com o lenço havia uma carta que continha consolos e conselhos para mim.
Lendo aquele último adeus de Aziza, senti que se me partia o coração. Minha mãe chorava
comigo. Eu não podia apartar meus olhos daquela carta e daquele lenço que me traziam à
memória quanto havia perdido.
Fazia cerca de um ano que me consumia a dor, quando se dispôs a sair da cidade uma
numerosa caravana.
– Saí com ela, me disse minha mãe, acaso se mitigue tua dor com as viagens.
Seguindo seu conselho, vim aqui com a caravana, porém o remédio há sido inútil, Cada
vez é mais grande minha dor e não deixo de pensar um instante naquela a quem minha crueldade
tirou a vida, na que tanto bem me fez, e a quem paguei com tanto mal.
Esta é minha história, senhor; que a paz seja contigo.
Taj-el-Moluk era jovem e estava enamorado: a história de Aziz encontrou eco profundo em
seu coração.
– Irmão, exclamou abraçando ao mercador, a partir de hoje não nos separaremos mais
nunca.
– Eu, senhor, respondeu Aziz, quisera morrer a teus pés; porém me recordo de minha mãe.
– Irmão meu, insistiu o príncipe, tu tens experiência das coisas da vida e tenho necessidade
de teus conselhos, Ajuda-me a conquistar a minha amada, e quando meus votos estejam
cumpridos, tudo irá bem para ti.
Com este motivo entrou Aziz a formar parte da comitiva do príncipe Taj-el-Moluk partindo
com ele às Ilhas de alcanfor (4) em seguimento da princesa Duma.

(1) – Kaftan - Casaco ou sobretudo abotoado pela frente que chega aos joelhos, com mangas longas.
(2) – Tradução livre e direta de D. F. de T.
(3) – Lintel, também chamado de arquitrave, padieira, verga ou ombreira, é uma peça dura de matérias como
madeira, ferro, pedra, concreto, etc a qual se assenta nas ombreiras e constitui o acabamento da parte superior
de portas e janelas; sendo também chamado de dintel.
(4) - A palavra árabe Suna (Sunnah) significa “caminho trilhado”. A “suna do profeta” significa o caminho
trilhado pelo profeta Maomé, ou o que é conhecido como “Tradições do Profeta”. Terminologicamente, a palavra
“Suna” significa também os feitos, dizeres e aprovações do Profeta Maomé durante os seus 23 anos de profeta (Um
Hadij). A Sunnah é pois um ditado atribuído ao profeta islâmico Maomé que diz: “Eu deixei a vocês duas fontes
infalíveis para que não se equivocassem; o Corão (o Livro de Deus) e minha Sunnah (a explicação detalhada dos
princípios estabelecidos, o exemplo vivo de Muhammad.)
(5) – Os indianos nomearam Bornéu Suvarnabhumi (a terra de ouro) e também Karpuradvipa (Ilha de
Cânfora). O javanês chamado Borneo Puradvipa , ou Diamond Island. As descobertas arqueológicas no delta do rio
de Sarawak revelam que a área era um centro comercial próspero entre India e China do 6o século até
aproximadamente 1300

FIM

ÍNDICE

Página
Aos assinantes 4
Prefácio 5
Prólogo 6

O TREVO DE QUATRO FOLHAS

Capítulo I A alegria da casa 8


Capítulo II O horóscopo 12
Capítulo III A educação 18
Capítulo IV Uma prova de gratidão 27
Capítulo V O novo Salomão 32
Capítulo VI A virtude recompensada 43
Capítulo VII Barsim 51
Capítulo VIII O hebreu 57
Capítulo IX As fontes de Zubaida 63
Capítulo X A folha de cobre 66
Capítulo XI Os jardins de Iram 69
Capítulo XII Os dois irmãos 71
Capítulo XIII A caravana 74
Capítulo XIV Kafur 76
Capítulo XV História do sultão de Candahar 80
Capítulo XVI O ataque 83
Capítulo XVII A sultana 89
Capítulo XVIII A folha de prata 93
Capítulo XIX O segredo 96
Capítulo XX A paciência da raposa 100
Capítulo XXI O leilão 109
Capítulo XXII A chegada 116
Capítulo XXIII Kara-Shitan 119
Capítulo XXIV A hospitalidade 123
Capítulo XXV A folha de ouro 127
Capítulo XXVI O retorno 134
Capítulo XXVII Leila 138
Capítulo XXVIII A vingança 141
Capítulo XXIX A folha de diamante 145
Capítulo XXX A fortuna de Omar 149
Capítulo XXXI Os dos amigos 156
Capítulo XXXII Conclusão 158
Capítulo XXXIII Epílogo 160

AZIZ E AZIZA
UM CONTO DAS MIL E UMA NOITES

Introdução 163
Aziz e Aziza 165
OBRAS PUBLICADAS.

– Medina ou Cenas da Vida Árabe, por A. de Gondrecourt: 2 tomos. (Esgotado.) – No prelo 2ª edição.
– Cursos familiares de Literatura, por Lamartine: 2 tomos. (Esgotado) -No prelo 2ª edição.
– Paris na América, por Laboulaye: um tomo. (Esgotado.) – No prelo 2.ª edição.
– Estudos sobre Constituição dos Estados Unidos, por J Laboulaye: 2 tomos. (2ª edição.)
– Os Mártires da Libertade, por Esquiros: um tomo. (Esgotado.)
– Os Cantões Suiços, por Molina: um tomo. (2ª edição.)
– História dos Estados-Unidos, por Laboulaye: dois tomos. (2ª edição.)
– A Mulher do porvir, por Dona Conceição Arenal.
– As Civilizações desconhecidas, por Oscar Comettant: um tomo
– O Espiritismo, estudo, caráter e controvérsias sobre esta nova seita: um tomo.
– História geral de Andaluzia, tomo 4.º
– Portugal, sua origem, constituição e história política, em relação com a do resto da Península: um tomo.
– O Trevo de quatro folhas, por Eduardo Laboulaye: um tomo

NO PRELO
História da Andaluzia, tomo quinto.

CONDIÇÕES DA PUBLICAÇÃO

EM SEVILHA FORA DE SEVILHA


Um ano 48 Rvn Um ano 60 Rvn

Nas Ilhas Canárias, Baleares, um ano 72 rs. Nailha de Cuba um ano id., 120, franco de porte.

As pessoas que desejem assinar esta Biblioteca podem fazê-lo remetendo em carta certificada o importe de
sua assinatura ao editor, praça São Tomás n.° 13, Sevi1ha; ou a D. Félix Perié, rua Santo André, nº. 1, piso 3º, Madri.
Se acha aberta a assinatura, ademais nas principais livrarias da nação.

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