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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE

DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA


DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS.

HIDEMI SOARES MIYAMOTO

A Representação da Realidade no Romance Mágico Latino-Americano.

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HIDEMI SOARES MIYAMOTO

A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE NO ROMANCE MÁGICO LATINO


AMERICANO.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial à obtenção do grau
de Doutor em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Antônio da Silva Câmara

Salvador
2019

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AGRADECIMENTOS

Meus mais sinceros agradecimentos a todos e a todas que me ajudaram na conclusão dessa etapa
muito decisiva de minha vida. Devo agradecer especialmente a minha família, a minha mãe, a
minha irmã, a minha tia Val. Nesse momento no qual finalizo esse doutorado devo salientar a
importância essencial para minha vida em geral, não somente a acadêmica, de meu querido
Orientado o Professor Dr. Antônio da Silva Câmara, devo muito a ele por nunca desistir de mim e
sempre me estimular para que eu sempre extraia o máximo de minhas capacidades, espero que esta
tese esteja à sua altura. Devo também agradecer imensamente ao Professor Dr. Jair Batista da Silva
pela sua amizade e pela suas precisas correções e orientações, devo muito a ele. Agradeço também
ao Professor Dr. Bruno Andrade de Sampaio Neto, grande amigo que tenho a meu desde o dia em
que me matriculei na graduação. As Professoras Doutoras Maria de Lourdes Soares Ornellas Frias e
Anatercia Ramos Lopes Contreiras por aceitarem o convite para a participação em minha banca
avaliativa. Agradeço especialmente aos amigos Bruno Evangelista, Rodrigo Lessa e Luiz Augusto e
Anderson Costa. A todos e a todas do grupo de pesquisa Representações Sociais: arte, ciência e
ideologia. A Fapesb, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, por ter financiado esta
pesquisa, e aos professores e professores do Programa de Pós-Gradução em Ciências Sociais da
UFBA.

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RESUMO

Neste estudo buscamos analisar as representações do continente latino-americano na obra maior de


Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão (2012), obra central do movimento literário que ficou
conhecido com o realismo mágico latino-americano. O realismo mágico latino-americano na literatura
possibilitou que nosso continente passasse a ter uma grande importância no cenário literária mundial.
Nossa investigação toma como ponto de partida o próprio romance, pois, sob a perspectiva dialética
aqui empregada, os conhecimentos presentes na obra de arte são parte de uma representação que é a
síntese das determinações resultantes da relação reciprocamente mediada entre o sujeito e a realidade
social. Dessa forma, através da análise de uma obra de arte em particular é possível acessar os valores,
as representações das lutas sociais em um determinado período histórico. Portanto, uma obra literária,
por ser essa síntese entre o sujeito criador e o mundo objetivo, torna-se uma importante documento
histórico que nos possibilita conhecer uma determinada realidade social.

PALAVRAS-CHAVE: Sociologia do Romance; Representação; Realismo Mágico.

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ABSTRACT

In this study we seek to analyze the representations of the Latin American continent in the larger work
of Gabriel Garcia Márquez, One Hundred Years of Solitude (2012), the central work of the literary
movement that became known with the Latin American magical realism. The Latin American magical
realism in literature allowed our continent to become of great importance in the world literary scene.
Our research takes as its starting point the novel itself, because, under the dialectic perspective em-
ployed here, the knowledge present in the work of art is part of a representation that is the synthesis of
the determinations resulting from the reciprocally mediated relationship between the subject and social
reality. In this way, through the analysis of a particular work of art, it is possible to access the values
and representations of social struggles in a given historical period. Therefore, a literary work, as this
synthesis between the creative subject and the objective world, becomes an important historical docu-
ment that enables us to know a certain social reality.

KEYWORDS: Sociology of Novel; Representation; Magical Realism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO… ......................................................................................................... 7

1. Afinal, realmente qual nosso lugar no mundo?… ................................................. 16


1.1 Gabo, em busca da identidade perdida… ............................................................ 16
1.2 Então, qual é a nossa identidade?… ..................................................................... 33
1.3 A racionalidade mágica de nosso continente....................................................... 33
1.4 No caminho de Gabo… ......................................................................................... 34

2. O realismo no romance: uma trajetória… ........................................................... 56


2.1 O realismo dos conquistadores… .........................................................................56
2.2 Goldmann e o retorno ao jovem Lukács… ......................................................... 77
2.3 A solidão de nosso romance histórico… .............................................................. 77

3. A Odisseia de nosso continente: uma análise de Cem Anos de Solidão… ......... 87


3.1 A magia de Melquíades e Macondo… ................................................................ 87
3.2 Entre avanços e retrocessos: o progresso em Macondo… ............................... 100
3.3 Tempos presente, passado e futuro: as diferentes temporalidades de Macondo.116
3.3 As metamorfoses do romance histórico: a Guerra dos Mil Dias….................154
3.4 Imperialismo e barbárie: o massacre da companhia bananeira… ................ 163

Conclusão… ............................................................................................................... 176

Referências Bibliográficas… .................................................................................... 182

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Introdução

O percurso intelectual que me levou a escrever esta tese teve como germe as aulas proferidas
pelo Professor Antônio da Silva Câmara na disciplina Sociologia da Arte. Em uma de suas aulas o
professor realizou uma pequena brincadeira perguntando aos alunos, um deles eu, é claro, se alguém
havia lido a obra Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez, para sua surpresa nenhum dos
alunos presentes tinha lido. O professor, obviamente, horrorizado com este fato, exigiu que nós
lêssemos o livro até o final do semestre letivo.
Pois bem, a forma como o professor falou sobre o livro deixou-me entusiasmado e com uma
imensa vontade de lê-lo, eu tive que pedir emprestado para meu amigo de curso, Bruno Sampaio, e
passei a lê-lo, ou melhor, a devorá-lo. Olhando em retrospectiva, lembro-me de terminar a leitura em
uma semana. O realismo mágico de Gabriel Garcia Marquez deixou-me profundamente perplexo, não
pude acreditar que seria possível alguém ter escrito um livro com tamanha riqueza e complexidade,
eivado de uma imensa paixão em representar uma realidade tão singular quanto a que se forjou no
continente latino-americano, em especial na Colômbia.
Porém, só agora no doutorado eu pude realizar este sonho, pois, na minha monografia de
conclusão de curso eu resolvi estudar a representação da violência urbana em duas obras literárias
contemporâneas nacionais, O Invasor (2002), de Marçal Aquino1, e O Matador2 (1995), de Patrícia
Melo. Já em meu mestrado meu sonho era trabalhar como a obra O Tambor de Gunter Grass3, obra
que considero magnífica, porém, meu orientador, Câmara, sugeriu trabalhar com as adaptações
cinematográficas dos dois romances que analisei em minha monografia, devo admitir que fiquei
frustrado, mas como não olho para trás com rancor, hoje em dia admito que ele estava corretíssimo.
Pois, se trata de uma obra literária tão complexa como o presente romance objeto dessa tese e, por
outro lado, soma-se o fato do menor tempo para se defender uma dissertação de mestrado do que uma
tese de doutorado. Devo agradecer a Câmara.
Dessa forma, ainda que não pudesse trabalhar com a obra magna de Gunter Grass, pude, no
entanto, realizar outro sonho de analisar a obra maior de Gabriel Garcia Marquez (doravante Gabo),
Cem anos de solidão (2012). Justificamos a escolha de Cem Anos de Solidão pela sua importância em
sua trajetória literária, por conta dessa obra ele acabou sendo agraciado com o prêmio Nobel de
Literatura, bem como, é uma obra de particular importância para o movimento que ficou conhecido

1 Romancista, contista, roteirista e jornalista brasileiro, nascido na cidade de Amparo-SP em 1958 e sua obra literária
caracteriza-se por ter a violência como tema central, autor de obras como O Invasor e Famílias Terrivelmente Felizes.
2 Escritora brasileira nascida em Assis interior de São Paulo e sua obra gravita em torno da literatura policial, autora dentre
outras obras de O Homem do Ano, Acqua Toffana, dentre outras obras.
3 Escritor e artista plástico de expressão alemã (1927-2015), nascido na cidade de Gdásnk, autor de um clássico da
literatura alemã no século XX, O Tambor, e foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1999.
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como boom da literatura latino-americana. Assim como, já podemos afirmar que se trata da obra na
qual Gabo atinge sua maturidade literária, atingindo o ápice do seu itinerário na literatura. Além de
ser o romance em que é representado a exaustão aquilo que de mais original tem o realismo mágico
latino-americano, a unidade de figuração entre os elementos mágicos e a representação realística do
mundo.
Para prosseguirmos a exposição da tese é necessário apontarmos quais os procedimentos
metodológicos mais adequados para analisar e compreender as especificidades de uma análise
sociológica que tenha como objeto uma obra literária. Há algumas ressalvas concernentes aos estudos
sobre a arte, e em nosso caso, sobre o romance. Essa ressalva reside no fato de que existiria uma
compreensão de que o fazer artístico seria produto exclusivamente do campo do irracional, de uma
sensibilidade meramente individual sem levar em consideração as mediações sociais existentes entre o
artista e o meio histórico em que se encontra inserido. Seria a arte uma construção meramente
individual, produto da genialidade de um indivíduo superdotado? Ou as obras de arte carregam em si
as marcas de seu tempo histórico? Ou ambas as alternativas? De que forma ocorre a relação entre o
indivíduo e a sociedade que tem como síntese uma obra de arte em particular? Dessa forma, no
decorrer dessa análise argumentaremos que a obra de arte é justamente a síntese entre o indivíduo,
historicamente determinado, e o ambiente histórico que o circunda. Portanto, a criatividade individual
do artista é de suma importância e o ambiente social no qual ele se encontra inserido é igualmente
importante na produção de obras artísticas. Marx (2004) já em seu Manuscritos Econômicos –
Filosóficos, aponta para a centralidade da relação entre interioridade e exterioridade, entre objetivismo
e subjetivismo,

Da mesma maneira, os sentidos e o espírito do outro homem se tornaram a minha própria


apropriação. Além destes órgãos imediatos formam-se, por isso, órgãos sociais, na forma da
sociedade, logo, por exemplo, a atividade em imediata sociedade com outros etc., tornou-se um
órgão da minha externação de vida e um modo da apropriação da vida humana (Marx, 2004,
pg.109).

Pois, nesse sentido, para Marx a própria constituição e gênese dos sentidos humanos, da
consciência, é explicado como sendo resultado de uma relação dialética entre os indivíduos socais e a
totalidade social.
Acreditamos que as obras de arte não são produtos de um gênio individual que
independentemente de sua relação com o mundo que o circunda conseguiria produzir obras
magníficas. Defendemos a tese de que a subjetividade artística depende em boa medida da relação do
artista com o mundo que o circunda. Apontamos que não se trata de uma mensuração quantitativa, ao
contrário de uma apreciação qualitativa, pois existiria a necessidade do artista em conhecer as próprias
formas artísticas com as quais pretende se expressar e, também ter um conhecimento do mundo social

8
no qual se encontra inserido, pensemos em Henry Fielding4 quando afirmava ser um historiador da
modernidade burguesa ou o próprio Gabo que em seu processo de criação artística reafirma a
centralidade de determinados romancistas, Juan Rulfo5, Franz Kafka6 ou William Faulkner7, essenciais
para o domínio da técnica romanesca, assim como, da importância que seu avô e sua avó para que ele
tivesse conhecimento da própria história da Colômbia e da América Latina, da imersão no mundo
social por parte do criador de obras de arte, então, essa relação entre subjetividade e objetividade é de
fundamental importância tanto para o domínio e desenvolvimento das técnicas quanto no tocante ao
conteúdo literário. Mas, devemos ressaltar que a sensibilidade individual de cada artista tem extrema
importância, porém acreditamos que a obra de arte é fruto dessa relação entre subjetividade e
objetividade.
Como analisamos acima, e que será analisado de forma mais minuciosa mais adiante,
Antônio Candido (2010) esclarece de uma forma bastante precisa essa relação. Essa relação,segundo
ele, fundamentada em uma dupla determinação, de um lado os elementos sociais se transformam em
elementos estéticos, relação mediada pela subjetividade do artista, e de outro lado há uma possibilidade
de uma obra artística lançar luz para problemas sociais que se encontram no subterrâneo,
escamoteados, por exemplo, em Cem Anos de Solidão há uma passagem sobre o massacre das
bananeiras, para a historiografia oficial esse massacre não existiu ou na melhor das hipóteses teve um
número de mortos bem menor do que de fato ocorreu, Gabo problematiza este fato histórico
desnudando, trazendo à tona o que realmente ocorreu no começo do século XX na Colômbia.
Dessa forma, seria interessante adentramos na relação entre texto e contexto ou entre forma e
conteúdo. Encontramos uma análise interessante sobre essa relação na obra de Antônio Candido
(2010), Literatura e Sociedade. Candido (2010) busca realizar uma análise do objeto estético tentando
superar duas formas de análise antitéticas. De um lado buscava-se analisar o valor e o significado de
uma obra de arte na medida em que ela exprimia certos aspectos da realidade, sendo essa característica
o ponto central da análise sociológica e, por outro lado, a centralidade da análise vinculava-se às
operações formais postas pelas obras, não importando o condicionamento histórico e social dentro
desse tipo de análise. Então, percebe-se um movimento pendular que ora compreende a obra de arte
como uma meio na qual é possível acessar de forma mediada a dimensão histórica, ora entende-se a
obra de arte como tendo um fim em si mesma, como sendo apenas mais um objeto no mundo

4 Romancista inglês (1707-1754), autor do clássico romance Tom Jones.

5Juan Rulfo escritor mexicano (1917-1984), foi autor que exerceu uma profunda influência sobre Gabo, é considerado um
dos maiores representantes do realismo mágico latino-americano apesar de ter escrito apenas duas obras: o romance Pedro
Páramo e o livro de contos Chão em Chamas.
6 Franz Kafka escritor tcheco de expressão alemã (1883-1924), escreveu alguns clássicos da história da literatura como O
Processo, A Metamorfose, e O Castelo.
7 William Faulkner escritor estadunidense (1897-1962), considerado um dos expoentes das vanguardas literárias do século
XX. Escreveu um dos maiores romances desse período, O Som e A Fúria.
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possuindo sua riqueza e singularidade nas operações formais que o autor empreende em sua obra em
particular.
Há problemas nessas duas formas de análises. Na primeira existe um reducionismo da obra de
arte, o que não permite apreender a sua uma autonomia relativa diante do ambiente histórico do qual
ela emerge e, por outro lado, a segunda abordagem é igualmente unilateral por preconizar a
indispensabilidade dos fatores externos enquanto instância condicionante de toda e qualquer obra
literária. Pensamos, que uma obra de arte não se reduz à reprodução de determinações sociais, bem
como, traz em si mesma marcas do ambiente histórico e social no qual o artista se encontra inserido.
Dessa relação entre autonomia e heteronomia há um elemento a mais que se pode acrescentar na
formulação de Candido, qual seja, a possibilidade de uma determinada obra de arte descortinar,
desfetichizar determinadas situações sociais que se encontram encobertas, possibilitando um novo
olhar sobre a própria realidade. Candido (2010) nos esclarece a relação entre arte e sociedade na
seguinte passagem,

Hoje sabemos que a integralidade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões
dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores
externos, quanto outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente,
se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o
externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como
elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando, portanto,
interno (Candido, 2010, pg.14).

Em nosso objeto de pesquisa podemos exemplificar essa relação entre os condicionamentos


externos e a estrutura interna das obras literárias ao mencionarmos a relação não contraditória entre os
elementos mágicos e realistas que compõem a narrativa de Cem Anos de Solidão, ou seja, como o
caráter heteróclito da cultura latino americana, ou seja, o continente latino-americano se caracteriza por
ser forjado através do encontro de diferentes culturas distintas. Assim como, o choque entre os
diferentes níveis de desenvolvimento social e econômico transformam-se em elementos estruturantes,
portanto, formais da referida obra. Na presente exposição afirmamos que os condicionamentos sociais
atuam como matéria-prima para o escritor servindo como uma espécie de veículo que propicia orientar
a corrente criadora do escritor, além disso, tais elementos atuam na “constituição do que há de
essencial na obra enquanto obra de arte” (Candido, 2010, pg.15).
Do ponto de vista da estrutura romanesca, à forma como é figurado o tempo adquire uma
grande importância nas transformações formais empreendida por Gabo em Cem Anos de Solidão.
Analisaremos mais adiante que a superação da representação do tempo linear, característica do
romance realista clássico, não é uma qualidade específica do realismo mágico, pensemos em autores

10
como Proust8, Joyce9, Beckett10 e na vanguarda europeia que também superaram essa linearidade
temporal, porém a forma como Gabo o faz o diferencia de todos eles, portanto, será interessante
apontar já alguns pontos interessantes da figuração do tempo empreendida por Gabo nessa obra.
Segundo Julio Ortega, citado por Torre (2017), há quatro formas de figuração temporal nessa
obra, a primeira seria a do tempo mítico, posteriormente iremos analisar criticamente essa formulação,
a segunda é o tempo histórico, a terceira vincula-se ao tempo cíclico, e a quarto e última é a do tempo
em que ocorre o declínio de Macondo. A primeira forma de figuração do tempo conteria uma busca
por parte dos personagens de um mundo a ser conquistado para o estabelecimento de um mundo e uma
identidade primordiais, dessa forma, tem-se a figuração de um mito fundador.
A segunda forma de figuração do tempo relaciona-se ao momento histórico no qual há uma
transformação na História de Macondo a partir da segunda geração dos Buendía, fazendo com que
Macondo se insira em “mundo mais amplo” e numa lógica temporal linear. É a partir do personagem
Aureliano Buendía que ocorre essa outra forma de figuração do tempo nessa obra de Gabo. Através das
inúmeras guerras em que Aureliano participa Macondo passa a estabelecer relações com outras
localidades geográficas estabelecendo um vínculo entre a história local de Macondo e a história
universal. Pois, a guerra civil representada na obra busca figurar as guerras entre os conservadores e os
liberais em um processo de modernização capitalista do continente latino-americano.
A terceira forma de representação temporal vincula-se ao tempo cíclico. Há uma repetição de
nomes na família Buendía, subdividindo-se em dois grupos: os Aurelianos e os Arcadios, a figura de
Aureliano Buendía passa a tecer e a destecer o tempo com sua fabricação de peixes de ouro até sua
morte, assim como, a personagem Amaranta morre quando termina de tecer sua mortalha. Trata-se de
um movimento circular de ir e vir. Por último, de acordo com Ortega apud Torre (2017) a última forma
de figuração do tempo é aquela na qual se narra o declínio e desaparecimento de Macondo. Porém,
acreditamos que esse declínio de Macondo insere-se na temporalidade circular e histórica, dessa forma,
o desparecimento de Macondo tem uma relação direta com o próprio processo de constituição da
cidade. No capítulo subsequente iremos analisar de forma minuciosa a figura do tempo na presente
obra.
Em outra obra importante do realismo mágico latino-americano, Pedro Páramo, de Juan
Rulfo, há alguns elementos dos quais podemos tecer uma comparação com Cem Anos de Solidão.
Nessa obra o autor narra a busca empreendida por Juan Preciado para encontrar seu pai, Pedro Páramo,
na cidade de Comala, a pedido de sua mãe. O caráter mágico dessa narrativa relaciona-se ao fato de

8 Marcel Proust (1871-1922), escritor francês autor do clássico romance Em Busca do Tempo Perdido.
9 James Joyce (1822-1941), escritor irlandês, considerado um dos maiores renovadores da forma romanesca, escreveu
dentre outras obras Ulisses e Finnegans Wake.
10 Samuel Beckett (1906-1989), escritor irlandês, foi fortemente influenciado por James Joyce, escreveu dentre outras
obras os romances Molly, Malone Morre e a clássica peça Esperando Godot.
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todos os moradores de Comala estarem mortos, o que não impede o desenrolar do romance e que o
protagonista trave relações com os mortos que habitam a cidade. Sem entrar em uma análise mais
acurada do romance pois iria extrapolar o escopo dessa tese, um dos pontos de convergência dessas
duas obras se dá justamente na forma como o tempo é figurado para que seja possível da construção de
uma atmosfera mágica. Então a coexistência de temporalidades distintas, os mortos e o vivo, na obra
de Rulfo nos parece apontar, para a existência simultânea de tempos históricos distintos, mais
precisamente de uma permanência das antigas formas de sociabilidade que andam junto ao processo de
modernização capitalista que as nações da América Latina experimentaram no século XX.
Com essa discussão sobre o tempo no romance mágico latino-americano, e que será retomado
mais profundamente no capítulo de análise da obra, conseguimos entender o sentindo da análise de
Candido (2010) sobre a relação entre os elementos internos e externos que compõem uma obra
literária. A existência simultânea de estágios distintos de desenvolvimento econômico e a confluência
de distintas formações culturais, os elementos externos, tornam-se através da criatividade estética do
escritor em elementos estruturais ou formais do próprio romance.
Portanto, voltando à discussão sobre os procedimentos metodológicos, buscaremos
transcender a uma análise mecânica que busca compreender e analisar homologias entre as estruturas
históricas e sociais e as estruturas das obras de arte, pois no nosso entender haveria uma incompletude
nesse tipo de análise. Talvez seja essa a limitação da obra de Goldmann (1976) – trataremos dessa
limitação mais adiante -, mais adiante faremos um tratamento mais rigoroso da nossa discordância do
pensamento de Goldmann. O começo desse tipo de procedimento metodológico deverá
necessariamente ter início com a leitura extremamente minuciosa do texto em questão. Nessa etapa
buscaremos analisar de que maneira o autor busca figurar o mundo, de que forma aparece a figura do
narrador, qual tempo o narrador utiliza para narrar essa história, o foco narrativo e de que forma o
romancista cria sensações novas a partir de uma lógica discursiva, como, por exemplo, as formas que
Gabo se utiliza da linguagem para nos transmitir determinadas sensações, medos ou alegria, como ele
rearruma a lógica que opera na linguagem do senso comum, ou seja da certeza causal que opera nesse
nível de existência e da lógica e que através dessa rearrumação nos transmite uma experiência
estético-literária fora do comum.
Como acreditamos que a atividade artística nunca será uma construção meramente individual
e sim um construto social a partir de uma leitura mais acurada da obra podemos perceber algumas
considerações acerca dos propósitos de um texto literário em particular mesmo que não saibamos nada
a respeito das características de escrita de determinado autor, por exemplo, ao se realizar uma leitura de
um texto de Gabo às cegas saberemos que se trata de uma obra do realismo mágico mesmo sem saber
de qual autor especificamente. Assim como, atentando aos termos utilizados, às comparações
efetuadas, aos aprofundamentos realizados, saberemos apontar aspectos do texto que uma leitura
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corrida não seria capaz de realizar.

Devemos também apontar para o fato de que o autor de um texto apresenta uma determinada
concepção de mundo e que essa concepção deverá estar representada na obra literária. Para Lukács
(2000), a forma romance teria uma característica em particular, a ética do escritor se transformaria em
matéria prima estética, a visão de mundo do escritor torna-se parte constitutiva da matéria estética o
que é o inverso daquilo que ocorria na epopeia grega na qual fundamentalmente eram os valores da
comunidade que se tornavam a matéria-prima das epopeias antigas.
Com isso não pretendemos afirmar que uma obra de arte seria uma representação direta da
concepção de mundo do escritor o que faria com que um romance, por exemplo, estivesse muito
próximo de uma autobiografia do escritor, do que do romance, visão essa que não nos parece correta.
Pensamos que há uma transcendência, ou seja, há uma figuração das determinações essenciais do
mundo objetivo através da mediação subjetiva do artista, dos valores subjetivos dos escritores e de
qualquer artista em particular com relação à sua obra. Dito de outra forma, o escritor transcenderia sua
visão de mundo particular ao produzir sua obra de arte. Pensemos na análise de Marx sobre a totalidade
das obras de Balzac, acentuando o fato do escritor mesmo enquanto membro da aristocracia ter tido a
capacidade de representar realisticamente todas as contradições de sua classe, bem como, o caráter
anacrônico da visão de mundo e das relações econômicas em comparação com a burguesia ascendente.
Por outro lado, pensamos ser necessário atentar para o fato de que o escritor se encontrar
inserido em determinada época histórica, quais as influências sociais e históricas que possibilitaram o
surgimento de determinada forma artística e de conteúdo. Pois, compartilhamos da interpretação de
que as formas artísticas são condicionadas pelo desenvolvimento das forças preditivas sociais de uma
determinada sociedade, pensemos na relação existente entre o romance e a modernidade burguesa,
seria possível o desenvolvimento do romance sem que já existisse relações sociais marcadamente
contraditórias entre a sociedade e os indivíduos? Esse é o ponto central de nossa compreensão dessa
realção entre as determinações sociais e a aparecimento ou desaparecimento de uma determinada
forma artística. Procuramos entender como se encontravam estruturadas as relações sociais e
econômicas em determinado período histórico e como consequência dessa metodologia buscamos
apreender a influência deste meio social sobre a subjetividade criadora dos artistas.
Dessa forma, tentaremos centrar nossa análise no “eu artístico” da obra em vez de centrar no
“eu empírico” do autor, pois compartilhamos da tese, segundo a qual a obra de arte possui sua própria
objetividade. Esta separação entre o “eu empírico” e o “eu artístico” se relaciona com a discussão
empreendida acima, o artista na produção de seu objeto estético transcende sua individualidade quando
dá forma ao conteúdo social do mundo no qual se encontra inserido. Logo, a obra de arte é o resultado
dessa relação dialética entre o artista e o mundo, não se reduzindo à visão de mundo particular do

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sujeito criador, dessa forma, a arte adquire uma independência sobre o seu criador. Podemos citar o
exemplo de Louis Ferdinad Céline (1894-1961) e sua obra, Viagem ao Fim da Noite, do ponto de vista
individual Céline era uma figura execrável, nazista convicto e que auxiliou os nazistas quando da
invasão à França, porém sua obra consegue desnudar toda a desumanidade e iniquidade do modo de
produção capitalista em sua fase imperialista que resultou justamente na ascensão do nazismo e da
eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Dessa forma, devemos salientar que na nossa perspectiva de estudo buscamos compreender que
a forma e o conteúdo das obras de arte mantêm entre si uma relação dialética. Pois, quando nos
reportamos em específico à forma romanesca percebemos que as novas relações sociais que foram
engendradas no capitalismo possibilitaram a emergência desta nova expressão literária, assim como, o
romance moderno tornou-se de certa maneira um documento histórico da modernidade. Portanto, não
há uma forma a priori atinente ao romance, ele absorve em sua forma o caráter prosaico das relações
cotidianas na modernidade burguesa. As novas categorias que surgem com o advento da moderna
sociedade burguesa, como o individualismo e os valores degradados, aqueles mediados pelo egoísmo
burguês, tornam-se eles mesmos elementos formais e de conteúdo da nascente forma romanesca.
Então, o que buscamos compreender ao analisar essa obra de Gabo é a forma como a
especificidade da América Latina foi representada por este escritor, mesclando elementos de uma
narrativa mágica à elementos de cunho realista. Pois, vislumbramos que Gabo jamais perde de vista a
objetividade da realidade latino-americana, neste romance em particular, realidade e fantasia se
entrecruzam nesse romance, pensemos no personagem Melquíades em que ao mesmo tempo que não
conhecia impedimentos para transitar no tempo e no espaço trazia a Macondo inventos tão triviais e é
também dessa relação que possibilita a Gabo representar esteticamente essa dimensão mágica, além
disso a própria realidade da América Latina nós encontramos situações sociais que beiram o mágico.
Lembremos da figuração literária empreendida por Gabo sobre o massacre das bananeiras, episódio tão
cruel da história colombiana que mais parece uma pura invenção literária de Gabo.
Então, argumentaremos que o romance surgiu e se desenvolveu em suas variadas formas tendo
como substrato social a ascensão da modernidade capitalista. Portanto, seguindo as indicações deixadas
por Lukács (2000;2009;2011) não é possível conceber o romance fora desta temporalidade histórica.
Isso por duas razões, a primeira vincula-se ao desenvolvimento do individualismo do mundo moderno
e, a segunda diz respeito à relativa perda de força das instituições sociais, como a religião, o Estado,
em determinar as ações dos indivíduos. Nesse sentido, esse trecho de Sérgio Lessa (2012) esclarece
essa questão,

A ruptura da submissão direta do indivíduo à sua comunidade, realizada pelo capitalismo


nascente, foi um gigantesco avanço na história do gênero humano. Pela primeira vez os

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indivíduos adentravam na reprodução social como portadores de necessidades e possibilidades
próprias – portanto, como uma força ativa da história, e assim o eram reconhecidos em escala
social (Lessa, 2012, pg.49).

Enxergamos essa tensão entre indivíduo e sociedade ao lembrarmos da tragédia escrita por
Shakespeare, Romeo e Julieta (1593-1594), nessa obra o amor entre os dois personagens não tem
nenhuma possibilidade de realização, justamente devido aos impedimentos postos pela família de
Julieta. Como a tragédia é ambientada em um momento histórico em que ainda existiam resquícios da
tradição feudal havendo barreiras familiares que impedia a livre escolha de Julieta em se relacionar
com quem desejasse. É com a superação dessas restrições sociais, da subordinação do indivíduo à
comunidade, que emerge o modo de produção capitalista, bem como possibilita a ascensão da forma
romanesca. O romance é, dentro dessa perspectiva, a forma literária que melhor representa as
contradições da sociedade capitalista e o romance mágico, por sua vez, é um tipo particular de romance
histórico que melhor figura as contradições da América Latina.

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Capítulo 1. Afinal, realmente qual nosso lugar no mundo?

Nesse primeiro momento de nossa tese faremos uma análise sobre o itinerário literário pelo
qual Gabo passou até conseguir escrever sua obra de maior vulto. Reconstruiremos a trajetória desde o
lançamento de seu primeiro romance até o lançamento de Cem Anos de Solidão. Nessa análise
apontaremos as semelhanças, os personagens de Cem Anos de Solidão que já aparecem em seus
primeiros escritos, as vicissitudes pelas quais o Gabo passou até lançar em 1967 o romance em
questão.
Posteriormente, analisaremos de forma minuciosa os autores que precederam historicamente o
debate sobre a natureza do continente latino americano, quais as especificidades históricas em relação a
América do Norte e a Europa Ocidental, em suma tratamos da discussão sobre a construção da
identidade latino americana e, dessa forma, apontaremos que apesar das substanciais diferenças entre
os diferentes autores e Gabo, há também significativas continuidades entres esses autores e Gabo.
Nessa parte de nosso estudo a questão central será a de tentar compreender de que forma a
obra que é objeto de nosso estudo também se insere nessa lógica da construção de nossa identidade ao
longo de nossa trajetória histórica.

1.1 Gabo, em busca da identidade perdida.

Passemos agora à descrição do processo de escrita do romance objeto de estudo dessa tese. No
que se refere à obra Cem Anos de Solidão, Eric Nepomuceno (2012), no texto Gabriel Garcia
Márquez: duas anotações para um perfil, buscou reconstruir neste texto todo o processo de escritura de
Cem Anos de Solidão. Para o autor nem o próprio Gabo sabe exatamente o mês, a semana ou o dia em
que escreveu a primeira frase de Cem Anos de Solidão, segundo o autor tudo o que se sabe é que
ocorreu em uma terça-feira do ano de 1965, entre o final de junho e o começo de agosto.
Na época em começou a escrever esta obra Gabo tinha exatos 37 anos, havia acabado de
chegar a Cidade do México. Ele tinha o intuito, depois de passar uma temporada em Nova York, de ser
um roteirista de cinema e também de se estabelecer de vez enquanto escritor. Ao chegar à Cidade do
México, em 1961, já havia escrito quatro livros, sendo que apenas O Enterro do Diabo havia sido
publicado na Colômbia. Alguns trechos de seus livros e alguns contos tinham sido publicados em
alguns veículos de prestígio no México. Portanto, no começo desta estadia o nome de Gabo já gozava
de algum reconhecimento em um círculo restrito de intelectuais, muito por causa de seu amigo e
escritor colombiano Álvado Mútis, que também morava na cidade. Nos primeiros dois meses de
16
estadia na Cidade do México, Gabo não conseguiu nenhum trabalho e teve que voltar a trabalhar como
jornalista.

17
Em 1961 Gabo se torna diretor de redação de duas revistas, La Familia e Sucesos para Todos,
segundo Nepomuceno (2012) “Eram duas publições dedicadas à carolice (a primeira) e à reportagem
policial escandalosa e leviana (a segunda), e para ele não tinha outra função além de garantir a
sobrevivência” (Nepomuceno, 2012, pg.17).
Um ano depois, em 1962, a sorte muda um pouco para Gabo e ele recebe o prêmio Esso de
literatura na Colômbia pela obra O Veneno da Madrugada, assim como, Ninguém Escreve ao Coronel,
escrito no final de 1961, obteve um boa acolhida por parte da crítica especializada latino- americana,
malgrado o fato de ter vendido apenas 800 cópias. Tais críticas positivas a essas obras de Gabo
possibilitaram a inserção de Gabo no universo do cinema como roteirista.
Pouco tempo depois ele acaba sendo contratado por Manuel Barbachano Ponce, produtor de
alguns filmes de Buñuel. O primeiro trabalho delegado a Gabo foi bastante animador, tratava-se de
escrever o roteiro de uma obra de Juan Rulfo, O Galo de Ouro. Vale ressaltar que Rulfo, segundo
Nepumoceno, era o autor vivo mais admirado por Gabo, sendo que o impacto de sua leitura somente
era comparado a Kafka e Sófocles11. Terminado o roteiro, o produtor teria criticado apenas os diálogos,
pois estava escrito “em colombiano, não em mexicano”, coube a Carlos Fuentes a tarefa de reparar este
pequeno problema. Fuentes e Gabo tornaram-se eternos amigos. Mas a união entre dois talentosos
escritores não foi o suficiente para que O Galo de Ouro se tornasse um bom filme, segundo a crítica da
época tal como afirma Nepomuceno. Muito por culpa do diretor da película Ricardo Gavaldón.
O próximo projeto cinematográfico de Gabo também foi uma adaptação de um romance de
Rulfo, Pedro Páramo, novamente com a colaboração de Fuentes. Igualmente se tratou de um projeto
que não logrou nenhum sucesso nem de crítica nem de público. Pouco tempo depois Gabo recebeu
uma proposto do produtor Manuel Barbachano Ponce, para realizar trabalhos ao lado de Antonio
Matouk, Gabo torna-se nesse momento um roteirista assalariado. Os dois escreveram três roteiros e
alguns outros rascunhos, porém nenhum deles foi para frente e a partir daí desencantou- se com o
universo cinematográfico. Definitivamente o cinema não era o caminho que levaria Gabo a ser
reconhecido como um grande artista.
Depois das frustrações por que passou, a viragem de Gabo começa em uma viagem que faria
com sua família rumo a Acapulco. Segundo conta Nepumoceno, foi em uma viagem a Acapulco que
finalmente surgem as ideias que posteriormente serão materializadas em Cem Anos de Solidão. Tempos
depois Gabo haveria de dizer que tinha começado a escrever esta obra em 1948, em Cartagena das
Índias. E, durante 17 anos havia escrito diferentes versões, com o título de La Casa, mas não tinha
encontrado ainda a estrutura correta, a narrativa adequada, e, tudo isso ocorreu justamente em sua

11 Sófocles (496 a.C- 406 a.C) importante dramaturgo da Grécia antiga e um dos clássicos da literatura universal, autor de
Antígona, Édipo Rei, dentre outras obras.
18
viagem a Acapulco.
Porém, ele no início não pode se dedicar inteiramente em escrever o livro por conta de outras
obrigações profissionais. Nessa hora Gabo toma uma medida radical e se isola do mundo trabalhando
seis horas por dia para escrever sua obra maior. Com a ajuda de seu amigo Álvaro Mutis consegue
reunir 5 mil dólares, entrega para sua companheira Mercedes e refugia-se em um canto na sala de
jantar, separando-se do resto da casa por uma divisória de madeira. Em seu ato de escrever Gabo se
impunha uma disciplina rígida que considerava que um erro de digitação trata-se de um erro de estilo.
Dessa forma, a primeira versão de Cem Anos de Solidão tinha em torno de 1200 páginas
datilografadas, ao longo do tempo caiu para 590.
No meio desse tortuoso caminho o dinheiro foi-se findando, da previsão de seis meses
passaram-se quatorze até o que o livro fosse concluído. O primeiro bem penhorado foi o Opel, depois
as joias de Mercedes, televisão e rádio, alguns amigos emprestaram-lhe dinheiro, e no final Gabo e
Mercedes deviam 9 meses de aluguel, 4 de açougue, dentre outras dívidas. A situação era tão difícil
que na hora de despachar os originais para a editora argentina Sudamericana faltou dinheiro. Havia
dado 82 pesos e só tinham 53, Gabo resolve dividir pela metade os originais e dessa forma consegue
despachar. Mas ocorreu um erro: ele mandou a parte final do livro. Foi aí que a sorte mudou de lado, a
editora envia um adiantamento pelos direitos autorais do livro e assim a vida de Gabo se reequilibra.
Finalmente Cem Anos de Solidão é lançado no dia 20 de junho de 1967 com uma tiragem
inicial de dez mil exemplares. Algum tempo depois Gabo reconheceria não esperar que o livro
venderia tanto, pois nenhum de seus livros anteriores havia vendido mais do que mil cópias. Para
engano dele a primeira tiragem esgotou-se em 15 dias. Sucedeu-se outra de dez mil que teve a mesma
sorte. A partir daí começaram os pedidos para outros países, México, Colômbia, dentre outros, em
pouco tempo o livro tornou-se um sucesso absoluto a ponto da editora ter de suspender a impressão de
todos os outros livros.
Daí em diante os números se tornaram impressionantes. Em apenas três anos foram vendidas
600 mil cópias em espanhol, em 1982, ano em que foi laureado com o Nobel de Literatura, apenas em
espanhol haviam sido vendidos 25 milhões de exemplares. Ao completar 80 anos em 2007 as vendas
somaram 50 milhões de cópias em impressionantes 36 idiomas diferentes.
Sobre o processo de criação literária de Gabo é interessante apontarmos para o fato de que nos
parece que as obras anteriores de Gabo vistas em retrospectiva são como uma preparação para sua obra
maior, lembrando que Gabo começou a escrever um romance com uma temática parecida com Cem Anos
de Solidão mas largou de lado e somente anos depois lhe veio a “inspiração” para escrever. Essa nosso
afirmação pode ser fica mais cristalina quando analisamos o processo de citação de algumas de suas
obras anteriores a Cem Anos de Solidão, como no caso Os Funerais de Mamãe Grande aparece em
outros momentos da narrativa do romance ora analisado. Além da escolha de se passar a presente
19
narrativa em Macondo, cidade que já havia sido representada em outras obras de Gabo, como já
assinalamos, há ainda algumas referências à outra obra famosa de Gabo, Ninguém Escreve ao Coronel
(1961), quando ao final da Guerra dos mil dias os veteranos da guerra, como o Coronel Aureliano
Buendía, esperam a pensão do governo chegar mas como se sabe a pensão nunca chegará, sendo esse o
tema central no qual a narrativa de Ninguém Escreve ao Coronel é estruturada.
Parece-nos que as obras que precederam Cem Anos de Solidão, como A Revoada (O Enterro
do Diabo), Ninguém Escreve ao Coronel, Os Funerais de Mamãe Grande e Má Hora: O Veneno da
Madrugada, já contêm temas e personagens que serão retomados em Cem Anos de Solidão, quando
serão desenvolvidos plenamente.
Assim, na sua obra-prima, Gabo alcança finalmente sua maturidade literária, pois entendemos
que todos os elementos trabalhados esteticamente em Cem Anos de Solidão já se encontravam
embrionariamente nas obras anteriores. Essa interpretação encontra sua fundamentação na forma como
esta obra foi gestada segundo o próprio Gabo, como foi por nós descrita anteriormente, aquela
profusão de ideias que o acometeu em sua viagem a Acapulco sinaliza o ponto de chegada para o seu
amadurecimento literário. Talvez não seja exagero afirmar que Cem Anos de Solidão estava contido de
germine nas obras anteriores. Podemos realizar um paralelo entre A Revoada (O Enterro do Diabo),
obra lançada em 1955 pelo nosso autor, e Cem Anos de Solidão, vejamos esse trecho presente na
primeira obra literária lançada por Gabo,

Foi o único médico do povoado, até que chegou a companhia bananeira e se iniciaram os
trabalhos da estrada de ferro. Então começaram a sobrar cadeiras na saleta. As pessoas que
o procuraram nos primeiros quatro anos de sua permanência em Macondo ausentaram-se
depois que a companhia organizou o serviço médico para os trabalhadores. Ele, sem dúvida,
percebeu os novos rumos traçados pela invasão, mas não disse nada. Continuou abrindo a
porta da rua, sentando-se o dia inteiro na cadeira de couro, até que transcorreram muitos
dias sem que aparecesse um só doente. Então passou o ferrolho na porta, comprou uma rede
e fechou-se no quarto. (Márquez, 1980, pg.73).

Percebemos com esta citação a linha de continuidade dos dois romances comparados. No
romance que é objeto de nossa análise esses dois momentos marcam o período no qual a cidade de
Macondo começa o seu declínio em direção a seu completo desaparecimento. Porém, há uma pequena
inversão na ordem cronológica dos fatos, primeiro há a construção da estrada de ferro e,
posteriormente a companhia bananeira chega a Macondo. O interesse dessa passagem é que esses dois
fatos narrados adquirem uma maior complexidade e profundidade narrativa em Cem Anos de Solidão,
tanto intensivamente quanto extensivamente. Causa-nos um misto de estranheza e admiração, essa
linha de continuidade que se encontra entre essas duas obras de Gabo. Pois, parece que se trata de um
“rascunho” escrito por Gabo, e que em 1967 vai encontrar uma forma de figuração literária com um
grau de complexidade maior do que na primeira obra narrativa dele.

20
Das quatro obras lançadas por Gabo antes de Cem Anos de Solidão temos três romances e um
livro de contos, sendo que os três romances têm volume bem menor do que o romance objeto de nossa
análise. Apontamos para essa peculiaridade na trajetória literária de Gabo, pois esses três romances se
encontram mais próximos da novela do que da forma romanesca propriamente dita. Pensemos na obra
Ninguém Escreve ao Coronel, a narrativa dessa obra é bem curta não chegando a cinquenta páginas e a
história é bem simples, trata-se da narração da história de um veterano coronel da Guerra dos Mil Dias
que em sua velhice aguarda de forma paciente o pagamento de sua pensão pelo governo. Obviamente
esse pagamento nunca se efetiva e, consequentemente, a vida desse coronel transcorre na mais absoluta
miséria. Dessa maneira, Gabo consegue representar um tipo social característica de sua região
profundamente marcada por esses conflitos ou guerras civis e que o Estado posteriormente os
abandonava.
Então há uma figuração de um fragmento da história da Colômbia e, por conseguinte, da
América Latina, a já citada Guerra dos Mil Dias, mais precisamente esse fato histórico aparece tão
somente de forma implícita e o enredo dessa obra gira em sua integralidade sobre a história e o destino
desse coronel. Romance e novela vão se diferenciar, segundo a análise de Lukács (2000), no tocante a
questão da figuração da totalidade. No romance, podemos pensar no próprio Cem Anos de Solidão, a
guerra dos Mil Dias é representado em seu preparatório, mostrando a gênese histórica que antagoniza
tanto o partido Liberal quanto o Conservador até o momento em que eclode o conflito e adentra as
consequência desse conflito mesmo depois do término, nesse sentido, há uma figuração de uma
totalidade extensiva da vida e já em Ninguém escreve ao coronel a temática dessa novela se centra nas
experiência que esse conflito teve para uma personagem específico, ou seja, não há uma figuração de
uma totalidade.
O ponto de viragem da trajetória de Gabo ocorre justamente com a publicação de Cem Anos
de Solidão. Como já afirmado, muitos personagens e temas, além da cidade de Macondo foram
representados literariamente nas obras anteriores de Gabo, pois bem, a diferença essencial que emerge
em Cem Anos de Solidão e que não se encontra nas outras obras é a figuração da totalidade ao passo
que nas outras obras havia tão somente uma representação de um fragmento de vida.
Com A revoada (O Enterro do Diabo) ocorre uma lógica semelhante a Ninguém Escreve ao
Coronel, a primeira obra de Gabo não apresenta uma concisão tão pronunciada quando se encontra em
Ninguém Escreve ao Coronel, mas trata-se de uma narrativa que mais se aproxima da novela do que do
romance. Na sua primeira obra Gabo narra a história do enterro de um morador que chega a Macondo
por indicação do Coronel Aureliano Buendía e presume-se que é um médico, um doutor. Em um
determinado momento da narrativa alguns habitantes da cidade pedem-lhe ajuda, o doutor nega-se a
ajudar, por isso passa ser uma pessoa malquista por todos os moradores dacidade exceto pelo
coronel que o acolhe na cidade; por sua filha, que nutre uma espécie de compaixão pelo pai; e por uma
21
índia, Meme, que passa a ser sua concubina. Toda a trama do livro gira em torno desse estranho e
trágico evento.
Temos em torno dessa análise uma contraposição entre as figurações literárias fragmentárias
de mundo, tanta n’A Revoada (O Enterro do Diabo) como em Ninguém Escreve ao Coronel, à
representação estética de uma totalidade, que se encontra em Cem Anos de Solidão. Quando no
primeiro capítulo analisamos a forma como Lukács compreende a forma romanesca clássica e o
romance histórico clássico percebemos que a categoria da totalidade possui uma grande importância
nesses escritos. Pois bem, se essa totalidade fragmentária se assenta na representação da biografia do
herói problemático e concomitantemente na figuração daquilo que o jovem Lukács denomina como a
necessidade de figurar uma espécie de crônica social, na qual se situa o herói problemático que busca
por um sentido para a vida, de forma simultânea figura-se também o ambiente histórico-social no qual
a aventura desse herói se efetiva, tem-se, portanto, a representação de uma totalidade fragmentária,
pois um evento significativo de um determinado período histórico emerge como substrato essencial na
forma romanesca. Na obra romanesca que ora estudamos trata- se da representação de um longo
período da história da América Latina, que não perfaz exatamente cem anos dado a forma como o
tempo é figurado nessa obra, mas que vai da descoberta e colonização de nosso continente até o
processo de dominação imperialista por parte dos EUA.
Posteriormente, em seu discurso de agradecimento à Academia Sueca de Literatura em razão
do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1982 Gabriel Garcia Marquez, Gabo já nos
apontava para a idiossincrasia que caracteriza o continente latino-americano, desde o período das
grandes navegações, no qual foi possível a articulação entre o nascente modo de produção capitalista
que ocorria na Europa ocidental juntamente com as formações sociais pré-capitalista existentes na
América Latina. Então, o imaginário dos primeiros europeus que tiveram contato com a América
Latina era permeada por uma visão mágica da realidade. Gabo afirma logo no início de seu discurso,

Antônio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao


redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu uma crônica rigorosa, que,
no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo
no ombro, e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e
outros como alcatrazes sem línguas cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto
um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho
de cavalo. Contou que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na
Patagônia, e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor da própria
imagem (Márquez, 2012, p.7).Gabo, dessa forma, argumenta que nesses relatos oriundos do
choque cultural entre europeus e ameríndios, no princípio da época colonial, em realidade pode
ser entendido como um germe desse tipo de literatura que surgiu séculos depois. Noutro relato
histórico, Gabo, relembra a procura pela fonte da Eterna Juventude, empreendida pelo mítico
Alvar Núñez Cabeza de Vaca12, no qual durante 8 anos explorou o norte do México na sua
busca e das 600 pessoas que começaram a expedição, teriam restado apenas cinco ao seu final,
além disso, nesse episódio ainda houve casos de canibalismo. Dessa maneira, o autor nos
aponta que desde os primórdios da colonização europeia já se fazia presente em nosso
continente a existência de elementos mágicos.
22
Gabo, dessa forma, argumenta que nesses relatos oriundos do choque cultural entre europeus e
ameríndios, no princípio da época colonial, em realidade pode ser entendido como um germe desse
tipo de literatura que surgiu séculos depois. Noutro relato histórico, Gabo, relembra a procura pela
fonte da Eterna Juventude, empreendida pelo mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca 12, no qual durante 8
anos explorou o norte do México na sua busca e das 600 pessoas que começaram a expedição, teriam
restado apenas cinco ao seu final, além disso, nesse episódio ainda houve casos de canibalismo. Dessa
maneira, o autor nos aponta que desde os primórdios da colonização europeia já se fazia presente em
nosso continente a existência de elementos mágicos13
Ainda em seu discurso Gabo enumera situações políticas e sociais que beiram ao absurdo, em
contraposição à “normalidade” europeia, como no caso do general Antonio López de Santana, que
governou o México por três vezes, e ordenou que fosse enterrada com honras sua perna direita,
arrancada de seu corpo na Guerra dos Bolos. Ou quando o monumento do general Francisco
Morazán14, erguido em Tegucigalpa, em verdade era uma estátua do marechal Ney, que havia sido
comprada em Paris em um depósito de esculturas usadas. Gabo afirma,

Eu me atrevo a pensar que é esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária,
que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a
do papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes
cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza,
e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte
(Márquez, 2012, pg.9).

Portanto, com o processo das grandes navegações houve um choque não só cultural entre os
europeus e os ameríndios, posteriormente também com os negros que foram escravizados, mas também
existiu um processo de estranhamento da própria natureza, sendo ela considerada mágica, muito
diferente da fauna e da flora do continente europeu. Dessa lógica é que foi possível o surgimento de
descrições da natureza de cunho mágico. A realidade latino-americana fez com que até mesmo o
arsenal linguístico dos europeus fosse insuficiente para nomear aquilo com que eles se deparavam.
Devemos relembrar o processo histórico que o continente europeu experimentou com o
desenvolvimento do capitalismo. Como consequência do advento do modo de produção houve
concomitantemente um enorme desenvolvimento das ciências e, por conseguinte, um arrefecimento
das cosmovisões religiosas e mágicas do próprio cotidiano dos europeus. É nesse sentido que Gabo

12 Alvar Núñez Cabeza de Vaca (1490-1560), foi um conquistador espanhol que assinou em 1540 um contrato real com o
imperador Carlos V para a viagem e a exploração da região da Prata. Disponível em <Álvar Núñez Cabeza de Vaca |
Spanish explorer | Britannica> Acesso em 17 janeiro 2019.
13 Todas as informações estão contidas no discurso de agradecimento de Gabo ao recebimento do Prêmio Nobel de
Literatura em 1982.
14 José Francisco Morazán Quezada (1797-1842), foi um estatista, orador, advogado e general que atuou na América
Central. Disponível em < The Biography of Francisco Morazan (thoughtco.com)> Acesso em 10 janeiro 2019.
23
afirma o caráter solitário da realidade latino americana.

Pois se estas dificuldades nos deixam – nós, que somos da sua essência – atordoados, não é
difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de
suas próprias culturas, tenham ficado sem um método válido para nos interpretar. É
compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que se medem, sem recordar
que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade própria é tão
árdua e sangrenta para nós como foi para eles (Márquez, 2012, pg.10).

Então, como Gabo deixa transparecer em seu discurso de agradecimento à Academia Sueca de
Letras a dimensão mágica é um traço constitutivo da própria realidade latino-americana desde os
tempos do “descobrimento” , na verdade conquista, da América Latina.

1.2 Então, qual é a nossa identidade?

Portanto, a partir dessa análise de Gabo emerge uma outra indagação que se vincula à
discussão acerca da identidade latino-americana, em outras palavras, quais as especificidades que
marcam esse continente em contraste com a Europa ocidental. Nesse sentido Irlemar Chiampi (1980)
realiza uma análise sobre os discursos ideológicos da especificidade do continente latino americano.
Para a autora,

A importância desse discurso para os estudos literários se observa pelo modo como a
investigação americanista, desbordando o âmbito da ensaística, refluiu para a série literária-
poética, e como muitas vezes com ela se confundiu. É, sobretudo, desde o primeiro quarto
de século, quando essa investigação ganha notável impulso – e depois de uma longa
operação de trânsito e acumulação de ideias, que teve de superar as dificuldades de
comunicação entre os intelectuais, ora as das formas alienantes dos colonialismos – que se
pode apreciar melhor como a literatura hispano-americana soube absorver as modulações e
as próprias contradições dos ideologemas americanistas e resolvê-los poeticamente sob a
forma romanesca (Chiampi, 1980, pgs. 96-97).

Segundo Chiampi (1980) o primeiro problema que surgia para os americanistas ao tentar
compreender esse “novo continente” referia-se à questão geográfica. Quais os limites espaciais dessa
América? Essa América dos americanistas, para a autora, se referia ao que hoje se convencionou
denominar de América Latina, excluindo-se, dessa forma, a parte mais setentrional do continente
americano. Convém salientar que hodiernamente o termo “América” funciona quase como um
sinônimo dos Estados Unidos e não de todo o continente. Fato esse que teria se originado com a
usurpação dessa nomenclatura, a partir de 1776, com a declaração de independência das treze ex-
colônias inglesas, tendo sido uma solução encontrada para designar uma denominação abrangente,
grandiosa, de uma nova nação que estava surgindo, e, posteriormente com a crescente hegemonia
política e econômica dos EUA consumou essa identidade entre o termo “América” e os EUA.
24
Mas mesmo com a “perda” do termo América para os habitantes do norte ainda alguns
americanistas insistem em utilizar esse termo para referir-se a parte sul do continente, tal persistência
envolve, evidentemente, um posição política de confrontar a hegemonia dos EUA no continente, bem
como, evidencia uma problemática mais profunda, da qual analisaremos mais adiante, o choque entre
as tradições culturas anglo-saxônicas e a hispano-americanas.
Historicamente a nomenclatura “América” surgiu para se referir tão somente a parte
meridional do continente. Segundo a autora o batismo da América, foi realizado pelos cartógrafos
Ginásia Vosgiense de Saint-Dié, no folheto denominado Cosmographiae Introductio, em 1507.
Segundo a autora,

O editor Martin Waldseemuller agregou ao mapa múndi a célebre Lettera de 1504 de


Américo Vespúcio, responsável pela revelação do continente como a “quarta parte” do
mundo, contra a hipótese colombiana do “ser asiático” das terras descobertas. De acordo
com os relatos de Vespúcio, a inscrição cartográfica do nome América aplicava-se às terras
do sul, visitadas na sua viagem portuguesa de 1501 a 1502. Assim, no mapa que ilustra a
tese de Vespúcio, o mundo novo refere-se apenas à terra firme meridional, ficando esta
separada da setentrional pelo mar, e ainda tida como sendo a Ásia .(Chiampi, 1980, pgs. 97-
98).

São esses os aspectos que fundamentam as análises de ensaístas contemporâneos como


15
Alfonso Reyes , Alejo Carpentier16 ou Lezama Lima17 . Então, para a autora, a busca de se
identificar as diferenças culturais que particularizam o continente latino-americano em contraposição a
outras formações sociais, foi o maior legado que os primeiros ensaístas deixaram para os pensadores
contemporâneos acima mencionados.
As origens cronísticas sobre a imagem de mundo da América Latina começam muito antes de
sua existência histórica. Segundo Reyes “antes de ser um fato comprovado, a América começa a se um
pressentimento ao mesmo tempo científico e poético18” (Reyes apud Chiampi, pg. 98, 1980). Segundo
a autora, Reyes, estaria referindo-se aos discursos mágicos sobre terra ocidentais que perpassam
documentos egípcios de 3000 anos a.C, sobre a Atlântica de Platão, as lendas da idade Média de ilhas
remotas, as profecias de Ramón Lull, dentre outros. Buscamos ressaltar que o caráter mágico,
maravilhoso já existia no imaginário antes mesmo da América ser “descoberta”.

Mas é com a “descoberta” e conquista do continente americano que os relatos mágicos antigos
ganham uma materialidade geográfica. Para Chiampi (1980) são frequentes as expressões que

15 Alfonso Reyes (1889-1959) foi um poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano. Morreu vítima de um atentado na
Revolução Mexicana. Disponível em <Biografia de Alfonso Reyes (biografiasyvidas.com)> Acesso em 17 janeiro 2019.
16 Alejo Carpentier (1904-1980) escritor cubano, um dos mais importantes representantes do realismo mágico, publicando
alguns clássicos como O Reino deste mundo e o Século das luzes. Disponévl em <Alejo Carpentier | Cuban author |
Britannica> Acesso em 10 dezembro 2018.
17 José Lezama Lima (1910-1976) foi um escritor, ensaísta e poeta cubano, também um expoente do realismo mágico,
escreveu o clássico Paradiso. Disponível <José Lezama Lima | Cuban author | Britannica > Acesso em 18 janeiro 2019.
18 “antes de ser um fato comprometido, América a se um pressentimento ao mesmo tempo científico e poético” (Tradução
25
sinalizam a perplexidade do europeu ao ter contato com o continente americano, expressões como
“encantamento”, “sonho”, “faltam-me palavras”, denotam esse assombro provocado pela realidade
americana aos primeiros conquistadores.
E esse descompasso entre o arcabouço linguístico dos conquistadores e a realidade a ser
nomeada fez com que os primeiros narradores que chegaram na América recorressem a autores
antigos, gregos e latinos, aludindo a relatos da bíblicos, lendas medievais e à mitologia clássica. Dessa
forma, segundo a autora, “o símil, a metáfora, a hipérbole e mesmo as reticências cumpriram a função
retórica de descrever frutas ou animais dos trópicos [...]” (Chiampi, pgs. 99-100, 1980). Além disso,
prossegue a autora, muitos acontecimentos mágicos foram consequência do caraáter incipiente da
botânica e da zoologia da época, como, por exemplo, no caso do parasitismo vegetal, que ocasionou
Colombo a acreditar que as árvores nos trópicos tinham a capacidade de produzir em um só ramo
folhas de tamanho diverso, ou sobre os raros mamíferos do Caribe, os manatis, que foi posto na mesma
categoria explicativa das sereias.
Então, devemos apontar para o fato de que a dimensão mágica que caracteriza a realidade da
América Latina, também se deve à inadequação entre o sistema linguístico dos colonizadores europeus
e a realidade sui generis que eles encontraram no processo de colonização do continente latino-
americano. O choque entre situações distintas, tanto naturais quanto culturais, acabaria por
proporcionar a emergência de uma realidade que foge aos padrões de “normalidade” que se encontrava
na parte ibérica da Europa. Segundo Schumacher (2012),

Se a reconstrução da situação epistemológica descrita acima estiver correta, as leis causais


baseadas em conceitos mágicos são surpreendentemente produtivas e racionais, em
oposição à evidência de uma experiência recalcitrante. As crônicas de Descoberta e
Conquista mostram que, uma vez que os membros de uma comunidade lingüística deixam
sua província indutiva e exploram novos mundos, sua linguagem particular encontrará
limites naturais para sua capacidade de abranger a variedade de novas espécies naturais.
(Shumacher, 2012, pg. 176,)19.

Nos relatos dos primeiros cronistas sobre este “novo” continente recém “descoberto” fica
evidente de como a diferença entre a natureza na Europa e a da América, possibilitou o
aparecimento de uma linguagem híbrida, pois a língua espanhola e a língua portuguesa
apresentavam limites conceituais para nomear, categorizar, outra realidade, por isso, em muitos
casos não seria exagero que esse hibridismo fosse construído com uma perspectiva mágica. Logo,
naquele período histórico, o arcabouço linguístico do colonizador, nas palavras do autor “ la función

19 No original: “Si la reconstrucción de la situación epistemológica arriba descrita es correcta, las leyes causales que se
basan en conceptos mágicos son sorprendentemente productivas y racionales, frente a la evidencia de una experiencia
recalcitrante. Las crónicas del Descubrimiento y de la Conquista muestran que, una vez que miembros de una comunidad
lingüística dejan su provincia inductiva y exploran mundos nuevos, su particular lenguaje va a encontrar límites naturales
para su capacidad de abarcar la variedad de nuevas especies naturales.” (Shumacher, 2012, pg176. Tradução Nossa).
26
espistemológica del testimonio” (Schumacher, 2012, pg. 156) era contraposto à natureza divergente
da realidade latino-americana.
Dessa forma, haveria uma insuficiência da linguagem em caracterizar uma realidade
estranha, com determinações ontológicas não encontradas na Europa. Os europeus encontraram na
América espécimes tanto da fauna quanto da flora que se não eram totalmente estranhos à
linguagem espanhola e portuguesa, apresentavam diferenças significativas àquelas já classificadas
cientificamente. Destarte, como o arcabouço conceitual do espanhol e do português não conseguia
descrever adequadamente esta outra realidade de forma parcial, pois a América Latina obviamente
fazia parte do mundo, mas com suas especificidades, ou seja, os colonizadores trabalharam a partir
das semelhanças entre as espécies naturais da Europa e aquelas encontradas na América Latina, o
que possibilitou aproximar essas realidades, no entanto, permanecerá diferenças quanto à
correspondência entre os conceitos e os novos objetos naturais, ocasionando inadequação ou
insuficiência da linguagem europeia em categorizar essa outra realidade. Segundo o autor,

O problema é que a linguagem familiar é necessária para descrever o que é estranho.


Diante da experiência americana, os relatores encontram espécies que, embora tenham
características semelhantes às espécies conhecidas e, portanto, são levados a serem
descritas com categorias existentes, não podem ser devidamente descritas porque a
semelhança parece ser mais acidental do que essencial e, portanto, é mais enganosa do que
certa. Gerbi descreve esse problema nesses termos: "Oviedo conhece 'uma fruta que
chamamos de banana aqui, mas na verdade não são'; e outra 'frutos que chamam de
nisperos, sem ser'; e árvores chamadas "quinces, embora não sejam"; e 'pássaros que
chamam de faisões cristãos, mas eles não são […] (Schumacher, 2012, pg.156)20.

Portanto, essa insuficiência dos idiomas espanhol e português em categorizar uma natureza
estranha aos colonizadores vai abrir caminho para que se insira no relato dos primeiros colonizadores,
a bem verdade não só desses primeiros, elementos mágicos que coexistem com os elementos não-
mágicos da própria realidade da América Latina.
Dessa forma, Schumacher (2012), argumenta que a concepção mágica da natureza na América
Latina seria consequência de uma resposta racional para uma limitação dos conceitos dos idiomas
espanhol e português para categorizar um ambiente estranho aos colonizadores. Talvez essa questão
pertinente à filosofia da linguagem possa ser um dos elementos que permitam explicar o realismo
mágico latino-americano.

20 No original; “El problema consiste en que se requiere de un lenguaje familiar para describir lo que es ajeno. Ante la
experiencia americana, los relatores encuentran especies que, si bien tienen rasgos similares a las especies conocidas y, por
lo tanto, invitan a ser descritas con las categorías existentes, no pueden ser descritas adecuadamente porque la semejanza
parece ser más accidental que esencial y, por lo tanto, es más engañosa que certera. Gerbi describe esta problemática en
estos términos: “Oviedo conoce ‘una fructa que acá llamamos plátanos , pero en la verdad no lo son’; y otra ‘fructa que
llaman nísperos, sin lo ser’; y árboles llamados ‘membrillos, aunque no lo son’ ; y ‘aves que llaman los christianos
faysanes, pero no lo son’ […]” (Schumacher, 2012, pg.156, tradução nossa).
27
Chiampi (1980) corrobora a análise de Schumacher (2012) sobre as peculiaridades da
colonização espanhola e do choque cultural entre o colonizador e o continente colonizado e sua
reverberação na própria linguagem. Para ela os espanhóis conseguiram estabelecer um significado
bastante duradouro sobre o que é o Novo Mundo. Então, a autora assim argumenta sobre a necessidade
da “criação” de uma linguagem mágica para descrever toda essa realidade singular que encontramos
em nosso continente,

Nomear a realidade como maravilha veio ser a solução (para bem ou para mal) para a tarefa
contingente de sistematizar, de dar forma ao conjunto plural e informe de conteúdos do
mundo recém-ingressado na História. Diz com acerto Edmundo O’Gorman que a América
não foi descoberta, mas inventada. O longo processo que começa com o problema de
resolver o ser geográfico das novas terras e culmina com a necessidade de inventar-lhe um
ser histórico, tem na concepção do maravilhoso americana uma imagem poética fundadora,
um primeiro atributo, capaz de preencher o vazio original e de iniciar a construção de um
ente diferenciado da Europa (Chiampi, 1980, pg.101).

O discurso americanista adquire uma peculiar importância, segundo a autora, como uma
forma de resistência e afirmação da identidade latino-americana contraposta as teses racistas de Buffon
e Cornelio de Pauw sobre a inferioridade do Novo Mundo. Para o primeiro a América se caracterizava
pela sua juventude e imaturidade, os nativos seriam incapazes de dominar o meio ambiente, o clima
seria insalubre e as espécies sofriam de imperfeições e degenerações. Para o segundo, a América seria
um lugar que se encontrava à margem do progresso e só poderia superar esse atraso social com um
contato mais estreito com a Europa. Dessa forma, percebe-se que a imagem construída sobre a
América vai do Eldorado para um continente marcado pelo atraso social.
Então, coube aos americanistas e precursores da independência questionarem tais concepções
etnocêntricas acerca do Novo Mundo, pode-se citar nomes como José Manuel Dávalos21, Hipólito
Unanue22, Frei Servando Teresa de Mier23, dentre outros. Frei Servando afirma,

Pauw, que parece ter escrito suas investigações americanas no círculo polar, de acordo com
sua absoluta ignorância das coisas da América, e a sugestão de um espanhol escreveu contra
os americanos (...), com uma pena tingida no sangue de canibais, disse que toda a América
É um continente que acaba de sair das águas. Portanto, todos cheios de pântanos e lagoas
fétidos e mortais, incapazes de amadurecer qualquer fruto e capazes de produzir juncos,
répteis e espinhos; que de seus lagos corruptos uma casta de sapos chamada índios saltou,
espécie média entre homens orangotangos e macacos. Estas são ilusões dignas de uma
gaiola25 (Servando apud Chiampi, 1980, pg. 103).

21 José Manuel Dávalos Zamudio (1758 – 1821) foi um médico peruano.Disponível em <Biography of José Manuel
Dávalos <small>(1758-1821)</small> - TheBiography.us> Acesso em 14 dezembro 2018.
22 José Hipólito Unanue y Pavón (1755 - 1833) foi um médico, naturalista, meteorologista, cosmógrafo, Primeiro Ministro
das Finanças do Peru, Ministro das Relações Exteriores. Disponível em <José Hipólito Unanue y Pavón (científico y
político) - Héroe del Perú (iperu.org)> Acesso em 17 dezembro 2018.

23 Fray José Servando Teresa de Mier Noriega y Guerra ( 1765 – 1827), foi um frei mexicano que lutou por um México
livre do julgo da colonização espanhola. Disponível em < José Servando Teresa de Mier Noriega y Guerra | Mexican friar |
Britannica> Acesso em 18 janeiro 2019.
28
Ao lado da crítica desses pensadores americanistas contra as teses racistas oriundas da Europa
Ocidental, houve contestações por parte de alguns jesuítas expulsos da Igreja sobre a existência de uma
possível inferioridade do continente americano. A autora aponta para estudos dos padres Juan Ignacio
de Molina, sobre o Chile, e também Francisco Xavier Clavijero que com sua obra Storia Antica del
Messico (1780-81), valoriza e defende o potencial criador dos náhuatl, prenunciando, segunda a autora,
os futuros movimentos nacionalistas da América Latina.
Chiampi (1980) afirma que é uma visão de mundo racional utópica que prevalece no discurso
desses novos americanistas, os jesuítas. Nesse sentido a autora escreve,

Mas à imagem edênica, que unifica a sua ensaística, prevalece a racional utópica, mais
afeita ao propósito político-social de dar às coisas americanas um posto válido na era
moderna. É na literatura que a tendência a revitalizar o utopismo, traço do modo criollo de
apropriação das teses ilustradas, vai encontrar terreno favorável a combinar o seu código
racionalista ao poético da imagem edênica (Chiampi, 1980, pg.104).

Mais adiante a autora prossegue,

Esse paradoxal criollismo em latim não se limitou, contudo, à mera afirmação do nativo
para desautorizar as teses dos naturalistas Buffon e de Pauw. À idealização arcádica do
agro novo-hispano, Landívar acrescenta, no VI canto, uma alegoria da América utópica na
descrição da vida comunitária dos castores (“fibri”): a divisão do trabalho, a engenhosa
construção da “cidade”, a solidariedade laboral, as provisões para o inverno, os
passatempos compartilhados, o rigor dos castigos aos infratores, etc...(Chiampi, 1980,
pg.105)24.

Então, a América Latina passa a ser o locus onde os ideias de uma humanidade melhor, mais
justa, de uma verdadeira liberdade seriam efetivados. Os ideais humanista da modernidade capitalista
europeia foram, dessa forma, apropriados pelos pensadores hispano-americanos e pelos personagens
históricos que lutaram pela independência do continente. Chiampi (1980) argumenta que essa visão de
mundo teve um papel muito importante naquele primeiro período de movimentos pela independência
na América Latina, pois emprestava-lhes um vigor na luta contra a coroa espanhola, contribuindo,
assim, com o intuito de implantar nesse continente uma nova História de acordo com os princípios do
Iluminismo. Prossegue a autora,

Quando se frustram os ideais da Revolução Francesa, com a destruição do Império de


Napoleão e o surgimento da Santa Aliança (1818-1822), da crítica à claudicante Europa,
brota a mais perdurável imagem que o pensamento decimonônico conseguiu forjar (e a que

24 No original: “Pauw, que parece escribió sus investigaciones americanas dentro del círculo polar, según su absoluta
ignorancia de las cosas de América, y a sugestión de un español escribió contra los americanos (…), con una pluma teñida
en sangre de caníbales, dijo que la América entera es un continente acabado de salir de las aguas. Por consiguiente, todo
lleno de pantanos y lagunas hediondas y mortíferas, incapaz de madurar ninguna fruta y sólo capaz de producir juncos,
réptiles y espinos; que de sus corrompidos estanques ha saltado una casta de ranas llamadas indios, especie media entre los
hombres y monos orangutanes. Estos son delirios dignos de una jaula.”
29
pôde atravessar o período romântico em meio a tantas vicissitudes): a da América jovem,
depósito de potencialidades, reserva da História, destinada à suprema vocação de reformar
o Homem. Na exaltação da natureza, subproduto da mitologia do porvir, refina-se a vontade
de ocupar o sítio privilegiado da liberdade e da cultura (Chiampi, 1980, pg.106).

Porém, todo esse otimismo sobre a América Latina não se efetivou. A distância entre intenção
e gesto se mostrou intransponível. Então, o ideal de democracia e liberdade que havia se instalado com
a vitória das treze colônias nos EUA, pelo menos ideologicamente, não logrou sucesso na parte sul do
continente. As especificidades da América Latina, como no caso do caudillismo, funcionavam como
uma espécie de impedimento para o desenvolvimento do continente. Dessa forma, para a autora, o
cenário que marcava esse continente no século XIX fundamentava-se na conflitividade de opostos do
tipo, absolutismo e democracia, civilização e barbárie, ocasionando uma crise na identidade cultural da
América Latina.
Chiampi (1980) argumenta que Simón Bolívar (1783-1830) teria encarnado de forma
paradigmática essa passagem de uma visão de mundo eufórica e a sua subsequente crise ou
questionamento ao não se efetivar os ideais preconizados pela filosofia iluminista. A autora afirma,

Bolívar encarna, melhor que nenhum outro americano de seu tempo, o processo de
conversão da imagem eufórica da América na sua contrapartida e a consequente crise
axiológica patente nos dualismos exclusivos. O seu pensamento descreve um trajeto
parabólico que, em duas décadas, vai do otimismo dos ideais da democracia absoluta para o
ceticismo, digamos, da relativização da democracia. A Carta de Jamaica (1815), texto que
marca o zênite da mencionada evolução, já revela a pugna entre a visão utópica e a realista.
O sonho da Grande Federação Americana, da fraternidade das novas nacionalidades, unidos
como na antifictionia grega […], esbarra com a falta de preparação dos hispano-americanos
para a liberdade, devida à passividade colonial (Chiampi, pgs. 1980, 107-108).

Embora mesmo com os questionamentos que emergiram com o bolivarianismo sobre o caráter
utópico da América Latina, não há de forma alguma uma total descrença sobre o futuro da parte sul do
continente americano. O ideal de universalidade da cultura latino-americana que se fundamenta na
ideia de uma solidariedade latina não perde força, ao contrário, perdura até o século XX. Surge dessa
experiência histórica uma nova forma de mitologia que buscava explicar as origens do atraso da
América Latina e quais caminhos deveriam ser trilhados para a superação desse atraso. O que
fundamentava esse mito eram dois princípios que deram força à Revolução de Símon Bolívar, o
primeiro consistia na busca da superação da tradição espanhola, origem de todo o atraso da América
Latina; e o segundo, vinculava-se à possibilidade de superação desse estado social e econômico,
caracterizado pela importação de modelos econômicos, políticos e sociais europeus e estadunidenses.
Contudo, mesmo com a predominância desse entendimento sobre o atraso de nosso continente
houve pensadores, dentre eles Esteban Echeverría25, Francisco Bilbao26, Juan Bautista Alberdi27 , que

25 Esteban Echeverría (1805-1851), nascido na Argentina, foi um poeta cívico comprometido tanto com a renovação da
literatura quanto com a "regeneração" da sociedade, foi condicionado pela época turbulenta que o tocava e que aparece em
30
rechaçavam a importação de modelos de desenvolvimento forâneos como se a simples importação
destes pudesse resolver todos os problemas da América Latina. Tais pensadores defendiam a
necessidade de uma produção intelectual local que permitiria abusca de uma “independência espiritual”
para se resolver os problemas particulares de nosso continente. Os limites desse tipo de pensamento
encontrava-se na ausência de considerações sobre as dificuldades encontradas no próprio continente,
como por exemplo, a inexistência de uma Filosofia americana, de um sistema educacional autônomo,
do afastamento do intelectual das massas, em suma, para a autora, do profundo desconhecimento
desses pensadores da própria realidade da América Latina. Teria sido Sarmiento quem teria conseguido
sistematizar tais problemáticas ao reduzir os problemas da América à dualidade entre barbárie e
civilização.

Segundo seu esquema, no solo argentino – e extensivamente no da América – conviviam duas


civilizações: uma medieval, retrógrada, bárbara que habita o campo e outra moderna, educada,
europeizada, que habita a cidade. Os elementos que compõem a imagem da América bárbara
são identificados com a herança espanhola (a Inquisição, a escravidão, o despotismo) e com o
substrato indígena (a perfídia, a indolência, o primitivismo, a ignorância) – inclusive nas zonas
autóctones superiores. Facundo, o caudillo sinistro, ‘gaúcho malo’, produto do regime tirânico
de Rosas, personifica os males da barbárie (Chiampi, 1980, pg.110).

Dessa forma, naquele período histórico dois atributos que caracterizavam a América Latina, a
latinidade e a mestiçagem, eram julgados segundo os juízos das teorias darwinistas e racistas da
Europa ocidental. Então, a mestiçagem era interpretada sob o signo da negatividade, vinculava-se à
defeitos como: indisciplina, irracionalidade, preguiça, impulsividade, etc... Essa visão de mundo
creditava o atraso latino americano às qualidades negativas dos mestiços, tanto as biológicas, quanto
as desenvolvidas na interação com o meio. Para se superar esse estado social a solução seria o
embranquecimento da população, literalmente por meio da imigração, ou metaforicamente através dos
estudos positivos de disciplinas como a Sociologia, Economia e História.
Da passagem do século XIX para o século XX alguns autores como José Martí e Justo Sierra
fazem objeções ao construto teórico de cunho positivista e que justificava este racismo. Chegava a hora
de desmistificar esse discurso apresentando um novo quadro interpretativo sobre a latinidade e
mestiçagem, esse novo quadro de interpretação buscava reinterpretar essa questão da mestiçagem
enquanto uma característica positiva de nossa cultura, as heranças dos negros e principalmente dos

seus textos, exacerbada e contraditória, como a história resgata isso. Disponíel em <Esteban Echeverría: biografia, estilo,
obras, frases – Maestrovirtuale.com> Acesso em 18 dezembro 2018.

26 Francisco Bilbao Barquín ( 1823 – 1865) foi um ensaísta, filósofo e político chileno. Disponível em <Francisco Bilbao
Barquín (1823-1865) - Memoria Chilena, Biblioteca Nacional de Chile> Acesso em 23 janeiro 2018.

27 Juan Bautista Alberdi (1810 – 1884) foi um político, diplomata, escritor e um dos mais influentes ativistas liberais
argentinos de seu tempo. Passou a maior parte de sua vida no exílio em Montevidéu e no Chile. Disponívem em <Juan
Bautista Alberdi | Argentine political philosopher | Britannica> Acesso em 18 janeiro 2018.
31
índios longe ser ser as origens do subdesenvolvimento da América pelo contrário seria a nossa força.
Adentrando ao século XX o discurso americanista, em seu conjunto, buscou superar a
interpretação anterior que afirmava a existência de uma inferioridade racial e, como visto
anteriormente, o atraso social e econômico seria consequência direta dessa inferioridade. Dessa forma,
o romance mágico latino-americano se ergue sobre esse novo panorama interpretativo, deixando de
lado a exaltação da tradição de pensamento europeia e estadunidense. A autora afirma,

Visto em conjunto, o discurso americanista deste século se caracteriza pelo esforço sistemático
de (re)construir a imagem eufórica da América. Seu método prospectivo se apóia,
fundamentalmente, na crítica aos preconceitos que nutriam a ideologia da “inferioridade
natural” dos povos sulistas, para reabilitar o conceito da América como reserva dos ideais
humanitários da cultura ocidental. Esse movimento que vai da aceitação irrestrita de uma
condição histórica, para o retorno à qualificação utópica do Descobrimento (ou melhor, da
“invenção”) da América, mostra, por um lado, o paradoxo que tem regido os anseios
americanistas de promover a descolonização cultural. Mas, sua outra face significa que, nessa
busca agônica e contraditória da identidade do “ser latino-americano”, o resultado é a
,consciência da diferença, cuja função é estimular um projeto de superação da marginalidade
histórica, imposta aos povos latino-americanos (Chimapi, pg. 112, 1980).

Essa mudança no sentido da interpretação do ser latino-americano tem início, segundo a


autora, com a obra Ariel, de José Henrique Rodó28. Nessa obra o autor busca tecer uma crítica aos
valores inautênticos da tradição cultural estadunidense apontando para a superioridade de Ariel, pois o
personagem seria a síntese dos ideais de beleza grego com o da solidariedade humana cristã. Nessa
obra ao criticar o materialismo oriundo da tradição dos EUA ele buscou reivindicar um status de
universalidade da tradição cultural da América Latina através do ideal da Magna Pátria, sendo este um
local em que haveria uma unidade moral e intelectual dos povos latino-americanos.
Com o desenvolvimento dessa visão de mundo busca-se, dessa maneira, a substância que
diferencia a América Latina de outras partes do mundo. Nesse caso a mestiçagem torna-se central para
se entender a singularidade latina. Desse americanismo dos anos vinte a autora indica duas linhas
norteadoras na forma como se compreende a especificidade da América Latina, a primeira vincula-se
ao novo exame dos valores culturais europeus e à construção de uma crítica sistemática, a segunda
toma por base a valorização das tradições culturais indígenas. Então, afirma a autora,

Esses fatos contraditórios e divergentes definem a tensão que experimentam os hispano-


americanos ao começar o século e que terá, como instância positiva, o despojamento do seu
complexo de inferioridade. Foi a Revolução Mexicana a responsável, nos anos vinte, pela
euforia quanto ao futuro da América Latina, assim como, nos anos sessenta, foi a
Revolução Cubana que abriu o novo ciclo de perspectivas otimistas (Chiampi, pg.114,
1980).

28 José Henrique Rodó (1872-1917), foi um escritor uruguaio que se caracterizou pela defesa da cultura hispano-
americana em detrimento das influências externas.José Manuel de los Reyes González de Prada y Ulloa (1844-1918) foi um
político peruano e anarquista, crítico literário e diretor da Biblioteca Nacional do Peru. Disponível em <José Enrique Rodó |
Uruguayan philosopher | Britannica> Acesso em 18 dezembro 2018.
32
Nesse contexto histórico no qual os americanistas buscam uma nova interpretação da História
latino-americana adquire centralidade para os americanistas o pensamento filosófico de Spengler ao
problematizar a cultura europeia. De talhe irracionalista, pois o pensamento de Spengler interpreta as
culturas enquanto organismos biológicos e afirma que a decadência cultural tem início quando o
pensamento filosófico substitui a mitologia da religião pelo pensamento racionalista. Por isso, ele
identifica as sociedades pré-capitalistas, em especial, as sociedades indígenas, como o “universal-
história”. Além da influência que a filosofia de Splenger exerceu nessa redefinição do ser latino-
americano houve também as influências dos estudos arqueológicos e antropológicos de pensadores
como Lévy-Bruhl, Frazer e Lang no que refere a descobertas de grandiosas ruínas em diferentes áreas
da América Latina. Essa nova interpretação sobre a América Latina tem como signo a valorização dos
índios e proporcionou uma espécie de pedra de torque à crítica dos modelos europeus de
desenvolvimento. Os índios passam a ser símbolos “da nacionalidade, o mártir da colonização, o herói
da resistência às deformações capitalistas” (Chiampi, 1980, pg. 118). Segundo a autora nomes como
Manuel González Prada29, Antenor Orrego31 e Victor Haya de la Torre30 foram expoentes desse novo
processo de descolonização e de construção da identidade latino-americana.
Nesse ponto cabe destacar a importância do pensador peruano marxista Mariátegui. Para a
autora, Mariátegui teria repensado a questão colonial objetivando dar voz aos vencidos. Criticou uma
forma de literatura na qual havia um culto aos índios como sendo uma forma de representá-los de
forma exótica, propondo, dessa forma, uma literatura produzida pelos próprios sujeitos históricos, no
caso, os índios.
A especificidade da interpretação de Mariátegui, segunda a autora, vai residir no fato de tentar
superar a compreensão do índio focada apenas na dimensão étnica. Assim, esse autor, produziu um
conhecimento em que busca entender a posição dos indígenas a partir das dimensões econômica, social
e política, argumentando, segundo a autora, que o processo de domínio colonial teria se erguido e
destruído uma espécie de economia socialista. Mariátegui também teria criticado a concepção utopista
de Vasconcelos, acreditando haver traços negativos na constituição dos mestiços por causa do
hibridismo. Fazendo com que se sobressaíssem os elementos sórdidos e mórbidos consequência desse
processo de hibrdização, ao contrário das sociedades indígenas que possuiriam um padrão social
resgatável. Mas por ser um pensador marxista a efetivação desse ideal somente poderia ser feito com a

29 Antenor Orrego Espinoza (1892-1960) foi um periodista, ensaísta e político peruano. Disponíl em <ANTENOR
ORREGO | Serperuano.com> Acesso em 17 novembro 2018.
30 Víctor Raúl Haya de la Torre (1895-1979) foi um político e pensador peruano. Fundador da Aliança Popular
Revolucionária Americana e líder histórico da APRA. Disponível em <Victor Raul Haya de la Torre | Biography & Facts |
Britannica> Acesso em 17 janeiro 2019
33
superação da ordem burguesa, que se fundamenta em um marxismo que não nega, no limite, a
religiosidade dos índios. A autora esclarece,

A identificação absoluta entre a religião quéchua e o regime político do Tawantinsuyu apoiada


mais em princípios éticos que em concepções espiritualistas, é a verdadeira fonte do socialismo
antimaterialista que Mariátegui projetou para toda a América. Por isso, o relativismo do seu
pensamento, no qual muitos acusam inspiração “europeizante” vem a ser apenas a envoltura
filosófica, que visa teorizar a estrutura social de uma cultura ágrafa (Chiampi, pg.119, 1980).

Então, dessa discussão acerca da realidade da América Latina dos anos 1920 é possível
identificar dois tipos básicos de reflexão, o primeiro aponta para o utopismo fundado sobre bases
mestiças e vislumbra uma renovação dos valores do Ocidente, e o segundo é um utopismo
fundamentado nos elementos autóctones mas dessa vez valorizando as heranças dos indígenas. Essas
duas reflexões básicas se distinguem na forma como realizam suas críticas à Europa.
A primeira linha de reflexão busca realizar uma crítica à Europa, mas conserva alguns
elementos da tradição europeia, pois a América Latina seria o espaço social por excelência da herança
e da renovação dos valores europeus. Já a segunda linha de reflexão defende uma radical negação das
tradições europeias e tenta construir um outro mundo no qual a América passe a se tornar o modelo.
Dessa forma,

Uns admitem, em suma, que o universalismo da cultura ocidental abriga o próprio germe de sua
desintegração ontológica e prevê a geração de novos entes feitos à sua semelhança. Para outros,
a América desencadeou a aniquilação da Europa como enteléquia, pela resistência das culturas
autóctones, a qual vem a ser a própria negação de sua capacidade de gerar outros entes
(Chiampi, pg.122, 1980).

Mais adiante a autora complementa,

No utopismo unificador de ambas as versões, a América significa o universo cultural que


caminha – ou pode caminhar – em rumo à homonoia, à era mundial de paz e fraternidade, de
progresso e de justiça social. No Brasil, o projeto nacionalista do modernismo careceu deste
conteúdo utopista, mas teve a nota otimista de valorização do país e foi similar o desejo de
liberar-se da tutela europeia. Na América Hispânica, as contradições, vacilações e até erros de
perspectiva na conceituação de cultura nacional foram, provavelmente, mais visíveis e
dramáticas que os do modernismo brasileiro, mas tiveram o poder de dar coesão à tarefa
intelectual, de reunir e multiplicar projetos. O discurso americanista dos anos vinte foi uma
tentativa programática de reencontrar as raízes perdidas, de reinventar a mitologia do porvir e
essa aventura pôs definitivamente a América no centro do debate (Chiampi, pgs. 122-123,
1980).

Nos anos de 1930 e 40, segunda a autora, através da influência de Ortega y Gasset e do
filósofo espanhol radicado no México, José Gaos, houve uma tentativa de compreender quais as
causas imediatas do ser latino-americano, portanto, algumas das características negativas atribuídas aos
mestiços, como por exemplo, a hipocrisia, o cinismo, a dissimulação, foram explicados enquanto
resultado da exploração pela qual passou o continente na época da colonização. Consequentemente,
34
emerge dessa atmosfera intelectual uma leitura que aponta para uma conceituação positiva da
mestiçagem como o símbolo da cultura americana. Pode-se, então, segundo Chiampi (1980)
compreender então a vontade de produzir-se um pensamento descolonizador que perpassa as análises
de autores como Fernando Ortiz, Alfonso Reyes, Mariano Picón Salas, Alejo Carpentier, Octavio Paz,
Leopoldo Zea, Arturo Uslar-Pietri e José Lezama Lima.
O ideário que dominou esse período histórico consistiu em sustentar uma essência
diferenciadora dos latinos-americanos residindo justamente na mestiçagem, assim como, é nela que se
deposita a possibilidade de surgimento de um bloco cultural, diverso, porém possuidor de uma
homogeneidade como consequência da receptividade das diferentes matizes culturais que aqui se
encontraram. Argumenta a autora,

Segundo suas teses, os sucessivos cruzamentos raciais, efetuados nesta América, provocaram
na linguagem e no comportamento social, na literatura e na arte, nos regimes políticos e nas
práticas religiosas, nos modos de vestir e de habitar, nas técnicas e na imaginação, uma
capacidade de combinação e de estilização deformadoras dos modelos originários. Logo se vê
até que ponto o fenômeno da mestiçagem, enquanto padrão diferenciador funciona como
suporte da reivindicação de uma identidade para o homem latino-americano no contexto
ocidental (Chiampi, pg.124, 1980).

Segundo a autora, um dos teóricos que mais trataram dessa problemática foi Arturo Uslar
Pietro31, em seu ensaio “Lo criollo en la literatura” apontando para o caráter ou para a vocação se fazer
em nosso continente uma “mestiçagem literária”, apontando para o fato de que a literatura hispano-
americana teria uma predileção por subverter modelos, pela importância ou centralidade da intuição e
emoção, pela forma como a utilização da literatura enquanto instrumento de luta política e reformismo.
No que se refere aos outros autores mencionados, Fernando Ortiz cunha o conceito de
“transculturação”34 para denominar esse processo de assimilação recíproca de diferentes culturas,
Alfonso Reyes fala sobre um universalismo que se encontra aberta para assimilar outras tradições
culturais, Martínez Estrada32 afirma que a experiência na América Latina assemelhou-se a experiência
do Império Romano e de diversas tradições culturais que teriam dado origem a uma “cultura bastarda”,
Mariano Picón Salas33 afirma que a combinação de formas culturais oriundas da Europa e das
tradições indígenas formam o legado original da América Latina, já para Leopoldo Zea34 a

31 Arturo Uslar Pietro (1906-2001) grande nome da intelectualidade venezuelana foi bastante influente na politica da
Venezuela além de ter sido escritor e educador. Disponíel em<Biografias em portugues - Biografia de Arturo Uslar Pietri
(infobiografias.com)> Acesso em 10 dezembro 2018.
32 Ezequiel Martínez Estrada (1895-1964) foi um escritor, poeta, ensaísta e crítico literário argentino, recebendo por duas
vezes o Prêmio de Literatura, em 1933 e 1937. Disponível em <Ezequiel Martínez Estrada | Argentine author | Britannica>
Acesso em 21 janeiro 2019.
33 Mariano Federico Picón Salas (1901-1965) foi um escritor, diplomata e acadêmico venezuelano. Sua obra destaca os
ensaios históricos, a crítica literária e a história cultural da América Latina que fazem dele um dos intelectuais venezuelanos
mais universais.Disponível em <Mariano Picón Salas | Biografía (ivenezuela.travel)> Acesso em 11 janeiro 2018.
34 Leopoldo Zea Aguilar (Cidade do México,México, 30 de junho de 1912 - 8 de junho de 2004,Cidade do México), foi
35
contradição que impera em nosso continente é oriunda de uma superposição cultural que se encontra
em uma eterna busca de uma forma unitária.
Para o escritor cubano Lezama Lima aquilo que fundamenta a mestiçagem latino- americana é
a capacidade de nosso continente de receber e gerar novas modalidades culturais. Sobre Lezama Lima
a autora escreve,

Em seu pensamento poético, o momento-chave de assentamento de uma verdadeira cultura


americana foi o período barroco, quando as altas criações artísticas coincidem com o
aparecimento de uma sociedade que sintetiza o hispânico e o incaico, o hispânico e o africano.
Os exemplos desta síntese – a obra escultória do índio Kondori e a do mulato Aleijadinho –
manifestam traços formais e ideológicos que distinguem o barroco colonial do europeu. Nos
interiores e portadas esculpidas por Kondori, a natureza do mestiço americano se expressa mo
“plutonismo”, o fogo imaginário que rompe a unidade da teocracia hispânica, pela introdução
de emblemas mágicos do sol e da lua junto aos anjinhos de pedra. A tensão formal da
proliferação desmedida das esculturas do Aleijadinho revelam, igualmente para Lezama, a
vontade de “contraconquista” que lateja sob a aparente docilidade da adoção do barroco
português (Chiampi, pg. 126, 1980).

Portanto, a mestiçagem seria a qualidade que confere autenticidade à América Latina, dessa
forma, ela não se limita ao mero hibridismo sanguíneo, mas, principalmente, vincula-se à questão da
produção cultural, consequentemente, a importância dela emerge como uma crítica mordaz ao
complexo de inferioridade do ser latino-americano, e, segundo Uslar Pietro, o preconceito que vincula
a superioridade da cultura anglo-saxônica, assim como, o conceito de pureza, são absurdos e teriam
sido os responsáveis “pelo impedimento de aceitarmos o mais valioso de nossa condição” Pietro apud
Chiampi, pg. 127, 1980).
Então, essas análises que enaltecem a mestiçagem, e questionam as análises positivistas de
inferioridade da América Latina, construíam uma nova percepção amparando-se na dimensão legítima
e original de nosso continente reverberando-se no campo da produção artística, em especial da
literatura, ao postular a anormalidade e a deformação, pois tais elementos agora passam a ser
considerados positivos, pois apresentam a capacidade de representar a própria especificidade de nosso
continente. Dada essa incorporação de elementos heteróclitos, oriunda da incorporação de elementos
culturais diversos, possibilitando a deformação de formas artísticas, o questionamento das normas dos
modelos artísticos forâneos e do realismo, valoriza-se, assim, a hibridização de modelos que são
diferentes entre si, elementos que conferem à nossa cultura sua singular contribuição à cultura
universal. Por isso, a autora afirma,

Uslar Pietri, por exemplo, chega a comprovar que a mistura de estilos na poesia e na ficção
hispano-americana lhe confere um “halo de intemporalidade” (Em busca…, 18) – uma
espécie de polifonia transcultural que condensa vozes de várias procedências. Lezama Lima

um filósofo mexicano, ensaísta e idealizador de múltiplas iniciativas com o objetivo de promover a unidade cultural da
América Latina. Disponível em <Biografia de Leopoldo Zea (biografiasyvidas.com)> Acesso em 15 fevereiro 2018.
36
recorre a uma metáfora para definir a arte barroca colonial – uma “grande lepra”, como a do
Aleijadinho, que alastrou no espaço americano a grandiosidade da rebelião mestiça (“La
curiosidad barroca”, 57). Para Carpentier, os acréscimos americanos à cultura hispano-
greco-mediterrânea provêm de uma “perpétua germinação de práxis”, que nos dá uma visão
do mundo mais ampla que a dos intelectuais europeus (Chiampi, pgs. 127-128, 1980).

A partir dessa digressão histórica podemos perceber que a confluência cultural e o caráter
heteróclito de nosso continente são características que melhor definem a singularidade da América
Latina. Apesar das vicissitudes da interpretação dos diversos autores americanistas, ora com um tom
eufórico ora com tom pessimista, não há dúvidas da centralidade da mestiçagem na construção de
nossa visão de mundo, o que veremos também na narrativa romanesca do realismo mágico.
Posteriormente veremos de que forma esse turbilhão de culturas é representado literariamente na obra
magna de Gabo, Cem Anos de Solidão.
Buscamos evidenciar com essa análise que o romance mágico realista apresenta uma linha de
continuidade com todas essas interpretações americanistas. A busca por compreender qual o legado da
América Latina para o mundo reaparece também, literariamente, com o realismo mágico. Dessa forma,
a questão das confluências culturais, os papéis sociais dos indígenas e dos negros para a constituição de
nosso continente, o lugar que os europeus, portugueses e espanhóis, tiveram na formação do continente
e, por fim, a dimensão mágica/maravilhosa que é constituinte da própria realidade da América Latina
perpassam tanto os discursos americanistas como as narrativas do realismo mágico.
Os motivos para essa busca, quase obsessiva de uma especificidade identitária da América,
pode ser atribuída ao fato de nosso continente ter adentrado tardiamente no desenvolvimento da
história universal. Explicando melhor, é apenas com as grandes navegações, no século XV, que se
inicia um debate acerca das especificidades, sobre o que é esse continente em comparação ao
continente europeu, sobre os habitantes autóctones, sobre o processo de colonização, enfim apenas
naquele século a América Latina tornou-se conhecida. Com isso, devemos deixar bem claro que não
incorremos em nenhum tipo de etnocentrismo ao fazer essa afirmação, pois o nosso continente, como o
conhecemos hoje, é fruto da necessidade da expansão do capitalismo na Europa Ocidental. Marx e
Engels (2010) afirmam,

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia dá um caráter cosmopolita à produção e


ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria
sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser
destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma
questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias que não emprega matérias-primas
nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se
consumem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. Ao invés das
antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que
reclamam para sua satisfação os produtos das longínquas e de climas os mais diversos. No
lugar do antigo isolamento de regiões e nações autossuficientes, desenvolvem-se um
intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à
produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação
tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a unilateralidade nacionais tornam-se cada vez
37
mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura
universal (Marx & Engels, pg.43, 2010).

Então, podemos afirmar que tanto os discursos americanistas quanto o realismo mágico só
podem ser compreendidos quando os inserimos no período histórico conhecido como modernidade. É
do confronto entre a lógica racionalista, mercantil e laica que emergiu na Europa capitalista com a
visão de mundo dos ameríndios e dos negros africanos que foram escravizados que podemos entender
a lógica que permeia o realismo mágico latino-americano.
Compreende-se, dessa forma, que a obra Cem Anos de Solidão, pode ser considerada como o
romance responsável pelo chamado boom da literatura da América Latina. Nenhum outro escritor
latino-americano produziu uma obra que fosse tão aclamada tanto pela crítica especializada, que
culminará com o recebimento do Nobel de Literatura em 1982, quanto pelo público leitor. Nessa obra
nos parece que todos os elementos que compõem o realismo mágico estão plenamente desenvolvidos.
Do caráter não conflitante que caracteriza o realismo literário com os elementos mágicos, da
representação da confluência de diferentes culturais que compõem a paisagem da América Latina, com
relação as formas como o princípio de causalidade dos fenômenos sociais e naturais aparecem na obra
e são subvertidos, todos esses fatos se encontram de uma forma particularmente intensa nessa obra.
Chiampi (1980) corrobora com essas afirmações,
O realismo maravilhoso, ao contrário, não foge aos realia pela indeterminação espaço-
temporal (pelo “dépaysement” simbolizante); tampouco explicita ou questiona a causalidade
para eliminá-la. À diferença do maravilhoso, ela é restabelecida e à diferença do fantástico, ela
é não-conflitiva, mas à diferença do realismo não é explícita, mas difusa. O regime causal do
realismo maravilhoso é ditada pela descontinuidade entre causa e efeito (no espaço, no tempo,
na ordem de grandeza). Como já observou Borges, há uma necessária conexão, um vínculo
inevitável entre coisas distantes numa narrativa em que a causalidade é “mágica”
(Chiampi,1980, pg.60).

Visualizamos assim que além desses elementos acima mencionados sobre as especificidades
do realismo mágico há outros elementos igualmente importantes que se encontram nessa obra em
particular, e que serão escrutinados mais detalhadamente quando formos analisar própria obra, como,
por exemplo, a forma particular como Gabo estruturou seus personagens dentro da obra, para além de
um só personagem principal o que temos é a centralidade da família Buendía na narrativa de Cem Anos
de Solidão. Tal singularidade faz com que seja possível construir uma temporalidade condensada. Pois,
nesses cem anos estão figurados vários eventos históricos ocorridos em períodos históricos distintos,
mas que na obra aparecem magicamente reunidos em um mesmo espaço histórico representado
literariamente.
Essa confluência de uma variedade de tradições sociais, culturais e econômicas salta às vistas
nessa presente obra de Gabo. A importância que os ciganos apresentam em toda a obra ao introduzir
em Macondo novidades científicas e culturais, a introdução de novidades através dos personagens

38
europeus, das mercadorias e tecnologias fruto do desenvolvimento capitalista. Nesse sentido os autores
Simioni e Freitas (2009) afirmam,

Durante vários anos, continuariam as visitas ciganas, acompanhadas sempre de novidades


científicas e culturais. Em uma dessas vindas, mais especificamente no período da
adolescência do primogênito de José Arcádio Buendía, José Arcádio, que estava atordoado
pela inevitável e próxima paternidade, encontrou nos braços de uma cigana a oportunidade
de fugir da cidade. Consumado o fato, Úrsula empreende uma busca tentando encontrar o
filho mais velho, mas, ao retornar ao povoado, traz consigo o que vem a ser o segundo
fluxo migratório até então visto na povoação […] (Simiono e Freitas, pg.160, 2009).

Percebemos, dessa forma, que nessa obra, a migração torna-se um tema central no processo de
figuração da realidade da América Latina. É nesse ponto que enxergamos a linha de continuidade
existente entre toda a construção teórica entre os pensadores americanistas e a obra maior de Gabo.
Como consequência desse exposto, o que nos parece o ponto fulcral em nossa análise é a forma
peculiar como Gabo entrelaça História e literatura, ou seja a relação entre os os elementos endógenos e
exógenos da atividade literária. Mais adiante iremos analisar mais detalhadamente essa relação quando
estivermos analisando as peculiaridades da forma romanesca e do Romance Histórico. Retornando ao
discurso proferido por Gabo na Academia Sueca de Letras ele realiza a seguinte afirmação,

Pois se estas dificuldades nos deixam – nós, que somos das duas essências – atordoados, não é
difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de
suas próprias culturas, tenham ficado sem um método válido para nos interpretar. É
compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que se medem, sem
recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade própria
é tão árdua e sangrenta para nós como foi para eles. A interpretação da nossa realidade a partir
de esquemas alheios só contribuiu para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez
menos livres, cada vez mais solitários (Márquez, 2012, pg.10).

Porém, devemos relativizar o caráter homogêneo de Portugal e da Espanha, pois devemos


lembrar do domínio dos mouros na península ibérica e que teve a duração de mais de 500 anos. Trazer
esse fato histórico é de extrema importância, pois foi também uma experiência histórica na qual os
ibéricos se confrontaram com outra formação social, econômica e cultural. Se formos pensar na forma
como o protestantismo se afasta do culto aos Santos Católicos, podemos perceber como pode se
desenvolver em nosso continente o sincretismo religioso e como foi possível a manutenção do culto às
divindades negras e indígenas. Demonstraremos mais adiante como o conteúdo e a forma do realismo
mágico se assentam nessa confluência cultural.

1.3 A racionalidade mágica de nosso continente

Estamos diante, dessa forma, de uma tradição cultural, em especial religiosa, na qual houve
uma abertura para que se preservasse o culto às divindades tanto ameríndias quando das tradições dos

39
negros africanos. Pensemos, por exemplo, no sincretismo religioso que aproxima a divindade Tupã
com a figura de Jesus Cristo, Oxalá a Senhor do Bonfim, Iansã com Santa Bárbara, Oxóssi com São
Jorge. Então, a própria natureza do catolicismo e seus cultos aos Santos possibilita a permanência de
divindades de outras formas religiosas, permitindo um caldo cultural no qual a própria realidade da
América Latina se impregna de elementos de natureza mágica. Salienta-se que essa abertura histórica
que possibilitou a permanência dos cultos das divindades africanas somente se tornou possível como
uma consequência inesperada das proibições aos cultos das divindades africanas por parte dos
colonizadores portugueses e espanhóis.
Devemos nos lembrar, por exemplo, na crença dos milagres operados pelos Santos Católicos,
ou seja, a permanência da lógica mágica que opera na própria realidade cotidiana, transcendendo à
racionalidade operante no mundo. Se fizermos uma comparação com o protestantismo e seu subjacente
racionalismo percebemos que essa magia, mediada pelos milagres divinos, desaparece nas seitas
protestantes. Rapidamente podemos citar o conceito de desencantamento do mundo no qual Max
Weber busca compreender a lógica que opera na modernidade capitalista.
Tentaremos fazer agora uma breve análise sobre esse conceito em Weber apenas no que se
refere ao processo de desmagificação das seitas protestantes e a permanência, mesmo que em um grau
bem menor de expressões religiosas dos índios e dos negros, da magia no catolicismo. Nesse sentido
Nascimento (2008) argumenta que o puritanismo ascético rompe com quatro elementos do catolicismo.
O primeiro, se liga ao fato de que não seria necessário a intermediação de um pregador ou de um
corpus religioso para se interpretar a palavra de Deus, caberia a cada crente em particular interpretar a
palavra de Deus e, dessa forma, caberia ao indivíduo em particular compreender qual caminho deveria
seguir em sua vida. O segundo, vincula-se na crença da inutilidade dos sacramentos para que se
operasse qualquer tipo de salvação ou que fosse utilizado quaisquer tipos de meios para preparação ou
reparação de uma ação de Deus. Nascimento (2008) afirma,

A tensão entre “estar em pecado” ou em “estado de Graça” não era aliviada por meio da
confissão ritual (religiões mágica) ou auricular (Igreja Católica), mas pela fé incondicional na
misericórdia de um Deus absolutamente insondável e imutável nos seus planos salvíficos e pela
“comprovação” da “eleição” (chamado/vocação) por meio do exercício da ascese racional
intramundana (Nascimento, 2008, pg.211).

O terceiro, refere-se a descrença na Igreja enquanto uma instituição mediadora da salvação,


pois para o puritanismo a salvação não se encontrava vinculada a uma observação estrita dos preceitos
religiosos e rituais e sim na observância estrita dos mandamentos e no exercício de uma profissão.
Sobre o quarto ponto Nascimento (2008) afirma,

[…] o puritanismo ascético deu mostra do seu alto grau de exigência e racionalização ao impor

40
limites à própria ação salvífica do Deus-Filho: toda ação salvífica do Deus- Encarnado foi
direcionada aos eleitos. Com isso o puritanismo ascético era consequente com sua doutrina,
racionalmente construída, de que se o mérito humano ou a culpa humana fossem determinantes
para fixar o destino salvífico do crente, então as decisões de Deus não eram absolutamente
livres e nem estabelecidas desde a eternidade, mas antes eram passíveis de alteração pelo
mérito das obras humanas, “ideia impossível” (Weber, 2004, pg.94), para um puritano ascético
(Nascimento, 2008, pg.211).

Salientamos assim que o conceito weberiano de “desencantamento do mundo” refere-se


precisamente a desmagificação da vida religiosa. Sobre as formas religiosas mágicas o autor afirma,

Observamos que, segundo Weber, as religiões mágicas visavam em termos gerais o alívio do
sofrimento do indivíduo enquanto indivíduo independente de sua condição étnica. Os magos
foram os portadores das condições religiosas e sociais para o indivíduo experimentar o alívio da
culpa e do sofrimento, enquanto indivíduo. Logo, nas religiões mágicas, a superação do
sofrimento e da culpa estava radicalmente apoiada na obediência e no seguimento estrito dos
mandamentos rituais os quais estavam por sua vez estruturados, basicamente, em fórmulas
mágicas e celebrações rituais (pureza ritual). (Nascimento, 2008, pg.215).

Portanto, o catolicismo ainda manteve princípios mágicos-sacramentais, que se objetivavam


através da mediação salvífica operada pelos sacerdotes, pelos Santos católicos e pela Igreja. Então,
dentro dessa lógica que permeia o Catolicismo que analisamos há, segundo Nascimento (2008), uma
preservação de elementos mágicos, de uma possibilidade, portanto é mantido no Catolicismo a abertura
para um questionamento ou uma mudança no princípio da causalidade que opera no mundo e que se
perdeu com o aparecimento das seitas protestantes.
Extrapolando um pouco essa análise acima empreendida devemos também salientar que foi
possível o sincretismo religioso, através das parciais similitudes entre determinados Santos católicos
com as divindades negras e em menor grau com as dos indígenas. No sincretismo religioso para
preservar o culto às divindades africanas, os negros. que foram escravizados, utilizavam o subterfúgio
do culto aos Santos católicos fazendo uma associação entre as divindades africanas e católicas. Além
disso, devemos também salientar que existe uma influência mais intensa entre as divindades negras e
indígenas tanto na vida cotidiana dos homens como na influência que elas exercem na própria natureza.
Nesse sentido, e, com base no que expomos fica mais cristalino entender o caráter não
contraditório da mescla entre os elementos mágicos e os elementos realistas que caracterizam o
realismo mágico de Gabo. Posteriormente, iremos analisar de forma mais detalhada essa característica
do realismo mágico em contraposição ao realismo fantástico, que se pauta na contraditoriedade entre a
realidade e a fantasia. Pensemos no personagem Melquíades que consegue transcender o tempo e o
espaço, na figura de Remédios, a Bela que em uma passagem belíssima da obra sobe aos céus e na
proximidade dos mortos e dos vivos, trechos esses em que ao se ler não há nenhum tipo de espanto e
incredulidade, tais fênomenos são perfeita plausíveis de acontecer.
Buscamos analisar nessa pequena digressão teórica que teve como objetivo demonstrar a
existência de uma linha de continuidade, sem desconsiderar as enormes diferenças, entre as
41
religiosidades dos negros e dos índios com o catolicismo europeu, o ibérico em específico, em relação
a esse presente estudo. Pois, ambas as formas preservam elementos mágicos em seus cultos. O que
possibilitou em um não apagamento das tradições religiosas ameríndias e dos negros mas formas
novas, ou sincréticas, para que houvesse essa permanência. Por outro lado, devemos salientar que a
confluência de diferentes formas de desenvolvimento econômicos também proporcionaram uma
realidade social mágica. De forma rápida lembremos também da epidemia de insônia que acomete os
moradores de Macondo. Para Marcelo Ferraz de Paula (2018) a peste da insônia ocorreu, segundo o
autor, após o primeiro processo de modernização que acometeu Macondo. De Paula (2018) afirma,

Durante o episódio em análise, a imagem primeva de Macondo aparece em rápido processo de


transformação. Após a busca desenfreada de Úrsula pelo filho José Arcadio, que havia fugido
com os ciganos, a aldeia “[…] transformou-se logo num povoado ativo, com lojas e oficinas de
artesanato[…] (Garcia Márquez, 2005, p.42), passando por um incipiente processo de
modernização. É como se a insônia e o esquecimento não pudessem atormentar aquele pequeno
emaranhado de vinte casas que iniciam o romance, um mundo centrado no obstinado e
engenhoso igualitarismo de José Arcadio Buendía, portanto ainda sem memória, sem
história[…]. A insônia e o esquecimento que dela derivam estão intimamente ligados ao
primeiro dos muitos saltos modernizadores de Macondo, articulados ao crescimento
populacional e econômico que faz a localidade atrair trabalhadores de outras regiões, sobretudo
indígenas como Visitación e seu irmão Cataure (De Paula, 2018, pg. 3).

Posteriormente, quando formos analisar o romance voltaremos a discutir mais detalhadamente


esse trecho da obra de Gabo, no momento salientamos o fato de que os processos de modernização
capitalista experimentados por Macondo têm como consequência a emergência de situações mágicas.
Além da peste da insônia há o episódio do dilúvio que comete Macondo logo após o massacre das
bananeiras.
Agora partiremos agora para a análise de Irlemar Chiampi (1980) sobre o realismo mágico.
Para tanto iremos nos centrar em sua obra O realismo maravilhoso (1980). Para essa autora o realismo
mágico surge na América Latina a partir da obra de Jorge Luís Borges, História universal da infâmia,
lançada em 1935. Para a autora, o realismo mágico emerge como um contraponto ao romance realista
dos anos vinte e trinta do século passado, opondo-se à narrativa estritamente objetiva e à construção do
tempo de forma linear, dentre outras características, que marcavam o romance latino-americano no
início do século passado Portanto, segundo Chiampi (1980), o romance mágico latino-americano
apresentaria alguns traços em comuns entre si, como a desintegração da lógica causal dos fenômenos
naturais, a simultaneidade ou a subversão na figuração do tempo e do espaço, o questionamento da
construção do narrador-observador, ou, em outras palavras, do narrador onisciente e a construção
polissêmica dos personagens. Para a autora essa forma de representação literária expõe uma nova
postura do narrador perante a realidade.
Dessa forma, devemos salientar, tendo como fundamento a análise de Chiampi (1980), que o
realismo mágico que se desenvolveu na América Latina deu-se sobremaneira devido à peculiaridade da
42
formação histórica deste subcontinente, tendo em vista a aproximação contraditória de várias culturas
(negras, portuguesa/espanhola e indígenas) na construção de nosso continente e de nossa cultura.
Através desse processo cultural, emergiu uma singular realidade histórica, que subverteu as normas
culturais da racionalidade ocidental. Tal como anteriormente afirmamos, as novas formas de relações
sociais que emergiram com o advento do capitalismo engendraram uma nova forma literária, uma nova
relação entre forma e conteúdo; na América Latina essa cultura heterogênea propiciou o surgimento de
uma singular forma romanesca, o realismo mágico.

1.4 No caminho de Gabo.

43
Partindo dessa compreensão, podemos fazer uma dupla afirmação, em primeiro lugar o
realismo mágico latino-americano surge a partir da singularidade do continente latino-americano, da
relação entre forma/conteúdo, relação entre a expressão literária e a história da América Latina e, em
segundo lugar observa-se no seu interior o desenvolvimento de mudanças formais expressivas.
Podemos destacar, segundo a autora, “a desintegração da lógica linear de consecução e de
consequência do relato, através de cortes na cronologia fabular, da multiplicidade e simultaneidade dos
espaços de ação […] (Chiampi, 1980, p. 21).
Ainda segundo a autora, o termo realismo mágico tem sua origem no historiador e crítico de
arte Franz Roh35. Este autor tinha como objetivo caracterizar como realista mágica a produção
pictórica do pós-expressionismo alemão e italiano, citemos, por exemplo, os artistas plásticos Anton
Räderscheidt36, Henry Rousseau37 e Giorgio de Chirico38 . Para Chiampi (1980), o objetivo desse
teórico era antes postular como miraculoso o ato de percepção do artista do que a realidade objetiva em
si, Roh, dessa forma, partia de uma perspectiva fenomenológica, centrada no sujeito criador da obra
artística, para analisar o fenômeno do realismo mágico nas artes plásticas. Logo, na sua interpretação o
ato de percepção do artista teria centralidade, portanto em um ato de deformação subjetiva do real, ao
contrário do realismo mágico literário no qual a própria realidade é miraculosa em si mesma.
Bontempelli39, no mesmo período histórico, formulou o termo “realismo místico” ou “realismo
mágico” como construções estéticas para a superação do futurismo, para ele a nova forma estética
refutava a “realidade pela realidade e a fantasia pela fantasia” (Chiampi, 1980, p. 22), buscando a
representação de outras dimensões do mundo objetivo, porém sem perder de vista o visível e o
concreto.
O desenvolvimento do termo mágico, segunda a autora, se dá em um ambiente cultural do
período de entre-guerras, algumas correntes da arte passaram a incorporar elementos das pesquisas
antropológica e etnológicas, valorizando as culturas ditas “primitivas” e suas respectivas visões de
mundo, a escola psicanalítica e sua enfâse no inconsciente em detrimento da racionalidade, e, por fim,

35 Franz Roh (1890-1965), foi um historiador, fotógrafo e crítico de arte. Foi um dos primeiros teóricos da arte a cunhar a
expressão “realismo mágico” para caracterizar a arte pós-expressionista alemã. Disponível em <Roh, Franz | Dictionary of
Art Historians > Acesso em 23 janeiro 2018.

36 Anton Räderscheidt (1892-1970), foi um pintor pós-expressionista alemão, foi um dos fundadores do grupo alemão de
arte Estúpido. Disponível em <Anton Räderscheidt - Verkaufen & Kaufen Werke, Preise, Biografie (lempertz.com)>
Acesso em 30 fevereiro 2018.
37 Henry Rousseau (1844-1910), pintor francês, também conhecido por Aduaneiro, foi considerado o fundador da arte
Naïf. Disponível em <Henri Rousseau - Biografias - UOL Educação> Acesso em 12 dezembro 2018.
38 Giorgio de Chirico (1888-1978), pinto italiano, também conhecido como Népoli, fez parte do movimento chamado
pintura Metafísica. Disponível em <Biografia de Giorgio de Chirico – eBiografia> Acesso em 12 dezembro 2018.
39 Massimo Bontempelli (1878-1960), foi um poeta, dramaturgo e romancista italiano, fundador do grupo 900 que se
caracterizava por utilizar uma estética realista-mágica. Disponível em <BONTEMPELLI, Massimo in "Dizionario
Biografico" (treccani.it)> Acesso em 13 dezembro 2018.
44
as novas teorias da física, com sua relatividade temporal e espacial, da partição do átomo, dentre
outros.

Portanto, a crítica ao romance de cunho realista ou de tradição estritamente realista tem


origens no continente europeu, tal como o romance realista. Como já assinalamos, a questão da forma
no romance europeu e no latino-americano apresenta distinções significativas. O que não impede, no
entanto, de haver algumas influências das vanguardas literárias europeias no romance realista mágico
latino-americano. Pois, ambas as tradições literárias tiveram como objetivo dar uma resposta à crise do
romance realista, consequentemente buscavam produzir uma renovação na narrativa romanesca, pois a
mesma já não conseguia representar de forma adequada as transformações pelas quais o mundo estava
experimentando. Podemos apontar a influência que o surrealismo exerceu em Alejo Carpentier no
tocante ao questionamento das formas tradicionais das narrativas realistas, alicerçadas no princípio de
causalidade dos fenômenos naturais, na linearidade do tempo e na racionalidade dos fenômenos
sociais, assim como, o próprio Gabo reivindica a influência de autores vanguardistas como William
Faulkner, Virginia Woolf e Franz Kafka.
Dessa forma, foram dois caminhos antípodas que o romance e os romancistas desenvolveram
para questionar o realismo oriundo de uma tradição que engloba nomes como os de Balzac 40 e
Tolstói41,
Sobre a experiência modernista do romance europeus e dos EUA, em que Faulkner talvez seja
o maior expoente, Adorno (2003) argumenta que se desenvolve já no final do século XIX e intensifica-
se no começo do século XX um tipo de romance que na visão dele se caracteriza pelo “antirrealismo”.

40 Honoré de Balzac (1799-1850), escritor francês, nascido na cidade de Tours, grande representante do romance realista
do século XIX, escreveu a Comédia Humana, um grande painel humano das transformações pelas quais a sociedade
francesa experimentava no decorrer do século XIX. Liev Tolstói (1828-1910), escritor realista russo, autor de grandes obras
como Guerra e Paz e Anna Karenina, Stendhal (1783-1842), escritor francês, autor de alguns clássicos do realismo como O
Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, por fim, Thomas Mann (1875-1955), escritor alemão, autor de clássicos como
A Montanha Mágica, Doutor Fausto e Morte em Veneza. Disponível em <Biografia de Balzac - eBiografia > Acesso em 31
janeiro 2018.
41 Leon Tolstói (1828-1910) foi um escritor russo, autor de “Guerra e Paz", obra-prima que o tornou célebre. Profundo
pensador social e moral é considerado um dos mais importantes autores da narrativa realista de todos os tempos.Leon
Tolstói ou Liev Nikoláievitch Tolstói nasceu na vasta propriedade rural de Iasnaia-Poliana, perto de Tula, Rússia, no dia 09
de setembro de 1828. Filho de Nicolau Tolstói, de origem ilustre da mais alta aristocracia russa, que remota à princesa
Maria Nicolaievna. Disponível em <Biografia de Leon Tolstói - eBiografia > Acesso em 16 feveriro 2018.

45
Houve uma tendência de se questionar o princípio da objetividade, ou o “preceito épico da
objetividade” (Adorno, 2003, p. 55) que fundamentava os romances realistas dos séculos XVIII e XIX.
O romance dessa época se caracteriza por um intenso subjetivismo: “Do ponto de vista do narrador,
isso é uma decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la”
(Adorno, 2003, p. 55).
Para Adorno (2003) este desenvolvimento do subjetivismo na forma romanesca tem uma
dupla justificação. Em primeiro lugar, há uma desintegração da experiência de vida em comum, de
uma existência articulada, pois, segundo o autor, seria um disparate depois da experiência da Primeira
Guerra Mundial alguém narrar sua experiência na guerra da mesma forma que uma pessoa
anteriormente narrava suas aventuras. Os horrores da primeira guerra silenciaram a possibilidade de
uma experiência em comum. Este argumento de Adorno parece fundamentar-se na análise sobre o ato
de narrar que se encontra em Walter Benjamim (1996), no texto O Narrador-Considerações sobre a
obra de Nikolai Leskov. Sobre o ambiente histórico após a Primeira Grande Guerra, Benjamim afirma,

Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da
guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não são mais
ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois,
na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com a experiência transmitida
de boca em boca (Benjamim, 1996, p. 198).

Nesse sentido, Benjamin (1996) aponta que os horrores da Primeira Guerra teve como
consequência um arrefecimento de uma experiência humana em comum, que fundamentava a
própria forma narrativa épica. Dessa forma, esse conflito bélico fez com que se potencializasse o
processo de subjetivação da literatura, em especial, no romance, solapando aquilo que Adorno
(2003) chama de princípio da objetividade romanesca. James Joyce42, Virginia Woolf43 dentre
outros são expoentes dessa vanguarda literária.
Voltando a Adorno (2003), há um segundo fundamento que explica esse processo de
subjetivação desse tipo de romance, reside no fato de sua crítica à arte figurativa e um
desdobramento de sua crítica à sociedade administrada, esta sociedade seria hostil ao
desenvolvimento da personalidade, da individualidade, assim como, à produção de uma arte

42 James Joyce (1882-1941) foi um escritor irlandês. Autor de "Ulisses" e de um dos romances mais complexos da
literatura modernista “Finnegans Wake”, considerada a obra que inaugura o romance moderno e uma das mais importantes
da literatura ocidental. Disponível em <Biografia de James Joyce - eBiografia > Acesso em 15 fevereiro 2019.

43 Virgínia Woolf (1882-1941) foi uma escritora e editora inglesa. Uma das principais escritoras modernistas do século
XX. Famosa por apresentar em suas obras as questões políticas, sociais e feministas. Foi autora de clássicos da literatura
modernista como “Mrs. Dalloway”, e “Ao farol”. Disponível em <Biografia de Virgínia Woolf – eBiografia> Acesso em 15
feveiro 2019.
46
verdadeiramente autêntica. Para escapar desse cerco à criação artística autentica, o autor preconiza
que a obra de arte expresse a negação desse mundo administrado, como na arte não figurativa, ou
nas palavras dele a “arte negativa”. Para o autor,

Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo
administrado, pela estandardização e pela mesmice. Antes de qualquer mensagem de
conteúdo ideológico já é ideológica a própria pretensão do narrador, como se o curso do
mundo ainda fosse essencialmente um processo de individuação, como se o indivíduo, com
suas emoções e sentimentos, ainda fosse capaz de se aproximar da fatalidade, como se em
seu íntimo ainda pudesse alcançar algo por si mesmo: a disseminada subliteratura
biográfica é um produto da desagregação da própria forma do romance (Adorno, 2003, p.
57).

Destarte, para Adorno (2003), a crise do romance realista clássico teria origem justamente nas
transformações pelas quais o indivíduo experimentou na sociedade plenamente administrada, dado o
processo de generalização da reificação não seria mais possível o indivíduo contrapor-se às coerções
sociais, ou seja, o caráter problemático ou crítico do herói que caracterizou a fase anterior do romance
teria sofrido dissolução, por isso o romance clássico estaria ultrapassado.
Consequentemente, a dissolução da figura do herói problemático, segundo Adorno, é
plenamente percebido nas obras de Samuel Beckett (1906-1989), como exemplo, podemos citar a obra
do, O Inominável (2012), no qual o autor põe em cena apenas uma voz anônima, não há nenhum herói,
apenas um monólogo desta voz, não há uma representação de uma realidade histórica, contrariamente,
o mundo objetivo se dissolve nas experiências subjetivas desta voz anônima. Portanto, como
consequência da universalização da reificação e estandardização dos indivíduos na sociedade burguesa
não seria mais possível figurar-se um tipo de herói cujos valores são contrapostos ao da sociedade e,
por outro lado, o mundo objetivo desaparece, pois representá-lo seria praticar uma reconciliação com a
realidade administrada.
Porém, devemos salientar o caráter unilateral da análise de Adorno, pois como afirma
Anderson (2007) “nenhum período estético é homogêneo”, se, por um lado o romance experimentou
transformações profundas em sua forma, em especial com as metamorfoses do herói romanesco, assim
como, houve um intenso processo de subjetivação ocasionando uma dissolução na representação do
mundo objetivo, não se deixou de produzir obras significativas que fogem à lógica
vanguardista/”antirrealista”. Podemos citar autores como Heinrich Mann44 (1871-1950), Thomas Mann
(1875-1955)45 e Roger Martin du Gard (1881-1958)46.

44 Escritor alemão, irmão de Thomas Mann, autor do clássico romance histórico, A Juventude do Rei Henrique IV, e da
obra Um Anjo Azul.
45 Um dos maiores escritos alemães de todos os tempos, prêmio Nobel de Literatura em 1929, autor de vários clássicos,
47
A perspectiva de Adorno encontra-se no polo oposto da teoria estética de Lukács e sua defesa
do realismo na arte. Se o autor húngaro delimita a qualidade, o que por si só já é uma postura a nosso
ver problemática, através do conceito de realismo, Adorno caminha no sentido oposto, igualmente
problemático, só se pode falar em uma arte digna de carregar esta alcunha ao se negar a possibilidade
de representação do mundo objetivo, ou em suas palavras o mundo administrado47 Segundo Adorno,

Se o romancista quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as
coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida que reproduz a
fachada, apenas a auxilia na produção do engodo. […] O momento anti-realista do romance
moderno, sua dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma
sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na
transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo (Adorno, 2003, pgs. 57-58).

O ponto culminante no texto de Adorno para exemplificar as mudanças pelas quais o romance
moderno passou refere-se à posição do narrador nessas obras. Se a narração em terceira pessoa era
fundamental para que o romancista pudesse representar a realidade objetiva em seus traços mais
essenciais, o princípio épico fundamental, nas obras modernas esse tipo de na narração é solapada pelo
ato reflexivo que proporciona uma ruptura na forma romanesca. A natureza dessa reflexão, Adorno
exemplifica esse tipo de romance em Os Moedeiros Falsos, de André Gide48, Em Busca do Tempo
Perdido, de Marcel Proust e O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil49 Esse tipo de romance
modernista questionava a possibilidade de se produzir um tipo de narração realista.
Além disso, o narrador passa também a ser um comentador, portanto o comentário se imiscui
na própria ação romanesca, a distância estética entre a narração e a ação é solapada. Segundo Adorno
“No romance tradicional, essa distância era fixa. Agora ela varia como as posições da câmara no
cinema: o leitor ora é deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a
casa de máquinas” (Adorno, 2003, p. 61). Para Adorno esses romances nos quais a subjetividade se
move de maneira irrestrita, solapa a figuração da objetividade, princípio que fundamenta a forma épica,
por ele denominado de “epopeias negativas”.
Portanto, apesar de ambos os autores buscarem analisar a forma romanesca percebemos o

dentre eles, A Montanha Mágica e Doutor Fausto.


46 Escritor francês, prêmio Nobel de Literatura e 1937, e autor do romance Os Thibault, romance dividido em cinco
volumes.
47 Para um maior aprofundamento desse interessante embate teórico, além das sistematizações teóricas que encontram- se
na Estética de Lukács e na Teoria Estética de Adorno, recomendo o artigo de Nicolas Tertulian, Lukács/Adorno: a
reconciliação impossível.
48 André Gide (1869-1947), foi um escritor francês, laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1947, fundador da
prestigiosa Editora Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française, escreveu os romances Os Moedeiros Falsos e O
Imoralista.
49 Robert Musil (1880-1942), também é considerado um dos grandes nomes das vanguardas literárias do século XX e
escreveu o clássico romance O Homem Sem Qualidades.
48
caráter unilateral das respectivas análises. Em Adorno há uma importante análise sobre o romance
modernista do século XX e um rechaço radical do romance realista, em Lukács há uma importante
análise do romance realista, mas sua análise sobre as transformações pelas quais a forma romanesca
experimentou pecou pela sua unilateralidade, houve em linhas gerais um rechaço das vanguardas
literárias do século XX. Logo, é possível perceber elementos na análise de ambos os autores que são
fundamentais para que possamos compreender toda a diversidade que caracteriza a forma romanesca.
Na análise adorniana sobre as transformações da forma romanesca nos fornece um poderoso arsenal
analítico para compreendermos a virada subjetiva pelo qual passou o romance. Nesse sentido, a arte
vanguardista teria uma distância em relação ao mundo empírico, ou uma “negação determinada” da
realidade imediata, provocando, assim, radical ruptura com a figuração do mundo administrado,
estranhado, nesse sentido as obras de James Joyce e Samuel Beckett são exemplares dessa tendência.
Já em Lukács, por outro lado, percebe-se um caminho distinto pois, na relação sujeito- objeto
concernente ao fazer estético, a subjetividade criadora do escritor deve ultrapassar a representação da
realidade imediata, nesse ponto aproxima-se da teoria de Adorno, porém essa transcendência da
empiria direciona-se em um sentido de que o artista possa ter acesso às determinações fundamentais da
realidade social. Desta forma, o realismo romanesco de Lukács assenta-se na possibilidade de
representação da própria realidade objetiva, daí o seu apreço por Thomas Mann em detrimento a James
Joyce.
Retornando à nossa análise do realismo mágico, é significativo como em Cem Anos de
Solidão, há tanto um processo de negação do realismo romanesco clássico, como também há uma
permanência daquele princípio da objetividade apontado por Adorno, nesse sentido, há uma síntese
entre o realismo e a magia nessa obra de Gabo, perfazendo a originalidade dessa tradição literária
surgida na América Latina. Nesse caso, é de fundamental importância apontar que o realismo mágico
latino-americano insere-se também nesse movimento crítico ao romance realista e, por conseguinte, ao
romance de tradição europeia, pois essa tradição distancia-se de caminhos trilhados pelas vanguardas
literárias da Europa e dos EUA. Nesse caso, a respostas dos escritores latino- americanos à crise do
realismo, são disitntas, qualitativamente daquelas expressas pelas vanguardas dos países centrais, e a
solidão em Gabo relaciona-se com essa particularidade dos romances mágicos no interior desse
movimento literário mais amplo.
Em sua análise sobre as metamorfoses do romance histórico Perry Anderson (2007) tece
algumas considerações que nos auxiliam a entender algumas mudanças pelas quais passou o romance
histórico, dentre os quais as duas obras de Gabo que são objeto deste estudo. Para Anderson na
segunda metade do século XX teria ocorrido um ressurgimento dessa forma literária que havia sido
esquecida na primeira metade do século passado. Porém, esse reaparecimento significou mudanças
49
significativas em comparação com o romance histórico clássico. A discussão sobre o romance
histórico, que será discutido de forma mais detalhada mais adiante se insere em um movimento mais
ampla da trajetória da própria forma romanesca, nesse sentido, não exagera afirmamos que Cem Anos
de Solidão pode ser caracterizado como sendo uma atualização daquele. Por exemplo, Anderson
(2007) argumenta que,

Agora, virtualmente todas as regras do cânone clássico, tais como explicitadas por Lukács, são
desprezadas e invertidas. Entre outros traços, o romance histórico reinventado para pós-
modernos pode misturar livremente os tempos, combinando ou entretecendo passado e
presente; exibir o autor dentro da própria narrativa; adotar figuras históricas ilustres como
personagens centrais, e não apenas secundárias; propor situações contrafactuais; disseminar
anacronismos; multiplicar finais alternativos; traficar com apocalipses (Anderson, 2007, p.
217).

50
Então, algumas mudanças formais do romance histórico, como a forma de figuração do tempo
que deixa de ser linear e as transformações no narrador, que deixa de se objetivar apenas com um
narrador em terceira pessoa e onisciente, inserem-se em um movimento que transcende os romances
mágicos realistas latino-americano, segundo esta autora, fica, portanto, a pergunta: o que singulariza
essas obras, então? Chiampi (1980) nos dará um norte a essa pergunta.
Para Chiampi (1980), a caracterização da ficção romanesca realista mágica por Carpentier
desdobra-se em dois níveis, o primeiro nível residiria na posição do narrador em relação ao real, o
segundo, vincula-se à relação “entre a obra narrativa e os constituintes maravilhosos da realidade
americana” (Chiampi, 1980, p. 33). Segundo Carpentier,

[…] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma inesperada
alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma
iluminação inabitual ou singularmente favorecedora das inadvertidas riquezas da realidade, de
uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em
virtude de uma exaltação do espírito que conduz a um modo de “estado limite” (Carpentier
apud Chiampi, 1980, p. 33, tradução nossa).

Ainda em sua tentativa definir precisamente quais as características do realismo mágico, a


autora detém-se na definição do realismo mágico de Alejo Carpentier, que além de escrever obras
seminais desta ficção latino-americana, também buscou refletir sobre quais as características
definidoras desta forma romanesca singular. Em O Reino deste Mundo (1949), Carpentier constrói,
segundo a autora, uma narrativa em que há uma união entre elementos heterogêneos decorrentes da
imbricação de realidades culturais díspares e que apresenta como consequência a emergência de uma
nova realidade histórico-social, descaracterizando os padrões culturais do racionalismo ocidental.
Partindo dessa afirmação que se vincula sobremaneira à forma como o narrador interpreta o
real, Chiampi aponta para duas formas distintas de manifestação dos aspectos mágicos da realidade
para Carpentier, através dos verbos pelos quais ele busca exprimir a relação entre narrador e realidade
objeto, ou a forma como o artista percebe a realidade. O primeiro grupo, através dos verbos “alterar” e
“ampliar”, significa um ato de modificação do real por parte da subjetividade criadora do romancista;
Já o segundo grupo, incluindo os verbos “revelar”, “perceber” e “iluminar”, denotam uma postura que
se fundamenta no conceito de mimese.
Dessa forma, na concepção de Carpentier o realismo mágico aparece como uma síntese entre a
miraculosidade da realidade em si mesma e fruto da atividade deformadora da subjetividade criadora
do romancista, resultando na unidade da objetividade com a subjetividade. Contrariamente ao
surrealismo, que influenciou em parte Carpentier, o realismo mágico era uma forma de leitura da
realidade que deveria unir a razão e a fé, porém a dimensão mágica dessa forma romanesca não seria o
resultado do arbítrio psicológico do romancista, mas seria parte constituinte da própria realidade, nesse

51
ponto o autor cubano rompe com a literatura surrealista.
Prosseguindo a análise da autora, o segundo nível da explicação engendrada por Carpentier
refere-se ao caráter essencialmente mágico dos objetos e fenômenos na realidade latino-americana.
Então, a dimensão mágica pertence à própria realidade da América Latina não sendo uma mera
construção subjetiva do escritor. Dessa forma,

A relação entre o signo narrativo (no caso, o romance El reino de este mundo) e o referente
extralinguístico (o real maravilhoso da história haitiana) é postulada desde uma perspectiva
realista, ou seja, o relato deverá conter essa combinatória imanente ao real. Não se trata,
Carpentier o frisa bem, de um “regreso a lo real” pretendido pela literatura engajada
politicamente, mas de expressar uma ontologia da América, ou sua essência como entidade
cultural. (Chiampi, 1980, p. 37).

Para uma análise mais detalhada das especificidades do romance mágico latino-americano,
Chiampi realiza uma análise comparativa entre o realismo mágico e a literatura fantástica, pois ambas
apresentam muitas aproximações formais e de conteúdo. Porém, devemos salientar que nesse ponto a
autora centraliza sua análise no polo da recepção estética.
A autora salienta que há algumas e importantes semelhanças entre o realismo fantástico e o
realismo mágico latino-americano, dentre essas semelhanças cabe mencionar “a problematização da
racionalidade, a crítica implícita à leitura romanesca tradicional, o jogo verbal para obter a
credibilidade do leitor” (Chiampi, 1980, p. 52). A fantasticidade, seria para a autora, um ato de
produzir no leitor uma inquietação física – através, especialmente, do medo – e intelectual – através da
dúvida. Dessa forma, Chiampi faz da recepção do leitor a condição que estrutura a narrativa fantástica.
Então, o medo adquire uma centralidade na explicação da autora acerca da narrativa fantástica, dessa
forma,

Se o medo é, portanto, uma emoção significada no discurso com os dados do relato, a


questão consiste em saber – antes de qualquer exame dos procedimentos narracionais para
obter essa emotividade imanente – qual o fundamento sócio-cultural que suporta as relações
pragmáticas do fantástico. Na opinião de alguns analistas clássicos, é o nosso medo atávico,
inconsciente, do sobrenatural, do desconhecido, gerado pela cisão entre o real e o
imaginário, que garante a fantasticidade. (Chimapi, 1980, pg.52).

Se, do ponto de vista da recepção, a autora argumenta que a narrativa fantástica se


fundamenta na cisão entre o real e o imaginário, acreditamos que se deve realizar uma crítica ao
fundamento social que possibilita a emergência deste tipo de narrativa. A centralidade do medo no
processo explicativo da autora deixa algumas lacunas, pois como será mais adiante explanado, a
cisão entre o real, suas leis físicas e convenções sociais e o imaginário, produziu formas narrativas
bem distintas entre si, por exemplo, escritores com Gabo e Edgar Allan Poe 50. Como explicar

50 Nasceu em 19 de janeiro de 1809 em Boston, Massachusetts. Ficou órfão aos dois anos de idade e foi enviado à Escócia
52
formas tão diferentes entre essas duas tradições literárias? Acreditamos que em parte a resposta já
foi dada, pois somente ao se analisar a trajetória histórica da América Latina e dos EUA pode-se
explicar as diferentes concepções de narrativa, dessa maneira, a questão do fantástico e do mágico
tem sua explicação mais no ambiente histórico do que na dimensão receptiva dos leitores.

Chiampi (1980), ao analisar a relação entre a narrativa fantástica e mágica argumenta que o
efeito psicológico produzido no leitor do discurso fantástico decorre d no temor do não-sentido, não há
explicação empírica para os eventos fantásticos. Para Chimapi (1980), há uma quebra da estabilidade
no sistema do leitor, suspendendo, ou melhor, questionando a norma cultural do real e do irreal, sem
que em seu lugar se produza outra certeza, mesmo que metafísica. Assim, no discurso fantástico, seria
oferecido ao leitor tão somente incertezas, nesse sentido a narrativa fantástica erige a falsidade como
seu próprio objeto.

O fantástico contenta-se em fabricar hipótese falsas (o seu “possível” é improvável), em


desenhar a arbitrariedade da razão, em sacudir as convenções culturais, mas sem oferecer, nada
além da incerteza. A falácia das probabilidades externas e inadequadas, as explicações
impossíveis – tanto no âmbito do mítico – se constroem sobre o artifício lúdico do verossímil
textual, cujo projeto é evitar toda asserção, todo significado fixo (Chiampi, 1980, p. 56).

Diferentemente, da narrativa fantástica, o realismo mágico retira de sua narrativa o medo, o


calafrio ou o terror que caracteriza o fantástico. O evento insólito no realismo mágico não conduz a
uma contradição entre o real e o irreal, ao contrário, os elementos do desconhecido, da realidade meta
empírica são incorporados ao real, a realidade em si contém tanto os elementos que obedecem a
legalidade física e as normas sociais como também os elementos mágicos. Então, podemos afirmar que
o universo figurado pela literatura mágica latino-americana não nega a lógica da causalidade dos
objetos que marca a literatura fantástica, nem tampouco é explicitada como no romance realista, mas é
apreendida e figurada de maneira diferente, de forma difusa, pautada por uma descontinuidade entre
causa e efeito. É estabelecida a unidade entre os elementos empíricos e meta empíricos.
Como consequência disso na narrativa mágica os personagens nunca se assombram, nunca
tomam como algo sem sentido os acontecimentos que fogem a lógica imanente dos objetos e normas
sociais. Tais eventos são vivenciados de forma tão natural como é o ato de respirar, de andar, de
comunicar-se através da linguagem, “Os personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam
jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza do acontecimento insólito” (Chiampi, 1980,

e à Inglaterra para fazer seus estudos. Na Universidade da Virgínia, se tornou alcoólatra e grande adepto do jogo. Publicou
seu primeiro livro de poesias em 1827. Seus poemas são pouco numerosos, mas compreendem versos de primeira classe,
especialmente a admirável composição O Corvo, que tanto em prosa como em verso tem sido vertida para várias línguas.
Poe também é autor do romance O relato de Arthur Gordon Pym (que inspiraria Melville em seu clássico Moby Dick) e de
contos antológicos, entre eles, Assassinatos na rua Morgue e Histórias extraordinárias. Suas narrativas de terror, de
mistério e policiais são marcos na história da literatura, tendo influenciado grandes autores como Conan Doyle, Agatha
Christie, G. K. Chesterton. Jorge Luis Borges etc.
53
p. 61).
A particularidade social que fundamenta essa não contradição entre o real e o irreal é dado
principalmente pela religião. É o universo religioso presente nas relações sociais cotidianas, produto do
desenvolvimento particular da colonização dos países da América Latina, produziu uma lógica em que
através das heranças religiosas dos índios e dos negros africanos e do catolicismo europeu, ibérico.,
proporcionou uma realidade na qual as situaçoes mais absurdas são encaradas de forma natural, ou
seja, sem causar quaisquer tipos de espanto. Aquilo que é vivenciado cotidianamente insere-se nessa
lógica social em que os aspectos racionais e os aspectos da realidade mágico- religiosa não se
contrapõem. Chiampi argumenta,

No realismo maravilhoso, o objetivo de problematizar os códigos-cognitivos do leitor, sem


instalar o paradoxo, manifesta-se nas referências frequentes à religiosidade, enquanto
modalidade cultural capaz de responder à sua aspiração de verdade supra-racional. Em El reino
de este mundo, de Alejo Carpentier, a série de acontecimentos legendários que antecederam a
independência do Haiti é sistematicamente vinculada ao pensamento mítico dos negros, para
evitar o efeito de fantasticidade que converteria a própria História numa impossível referencial.

Devemos ressaltar que a interpretação da autora por se assentar em uma análise semiótica, não
analisa a miraculosidade do continente apenas como uma construção discursiva sobre a realidade,
rechaça a existência dessa magia como sendo um elemento constitutivo da própria realidade, como
parte integrante da natureza de nosso continente, tal como compreendiam Carpentier e Gabo. A
interpretação de Chiampi, portanto, se baseia em uma negativa da discussão ontológico que se
encontram tanto em Carpentier quanto em Gabo, para ela existem apenas discursos sobre a realidade,
em suma, representações sobre ela.
As forças sobrenaturais que operam nas religiosidades afro e indígena impregnam a própria
vida cotidiana. Tais forças são muitas vezes utilizadas de forma bem pragmática para a resolução de
problemas cotidianos triviais. Queremos destacar o caráter de proximidade entre essas entidades
sobrenaturais, veneradas através dos cultos, e as relações sociais cotidianas, ou seja, de uma
onipresença delas na natureza e no destino de cada ser humano. Sendo assim, os deuses e as deusas
dessas tradições religiosas podem ser representados de acordo com a intencionalidade de quem os
representa. E, esse fenômeno cultural, dos rituais mágicos, são muito presentes nas religiosidades dos
índios e dos negros, de forma menos intensa no catolicismo ibérico, fazendo com que fosse possível a
emergência de um ambiente social propício ao surgimento do realismo mágico latino- americano.
Essa lógica é bem evidente na obra de Alejo Carpentier, O reino deste mundo. Nos
acontecimentos que precedem o processo de independência do Haiti, através dos rituais mágicos da
religiosidade Vodu, há uma contraposição entre a lógica mágico-religiosa e a racionalidade europeia
dos colonizadores franceses que não conseguem compreender aqueles eventos tão estranhos à norma

54
cultural da Europa. Segundo a autora,

Neste caso, a informação crítica sobre a realidade consiste em postular a coexistência não-
conflitiva (para o leitor) num mesmo espaço e tempo de duas modalidades de relação
pragmática. A ausência de vacilação faz da mitologia vodu uma causa transcendente que
“explica” o evento impossível, de tal modo que o leitor não é solicitado a optar pela
versãonatural ou pela sobrenatural, mas para a revisar a separação dessas duas zonas de sentido
(Chiampi, 1980, p. 64).

Porém, tal como já foi mencionado, na análise de Chiampi (1980), de que o caráter mágico
desse tipo de narrativa se assenta no universo mitológico específico do continente latino- americano, e
dessa mitologia e dessa cosmovisão religiosa, se erige uma narrativa em que não há uma contradição
entre os aspectos reais e irreais produzindo como consequência o efeito estético peculiar ao realismo
mágico. Ou seja, no realismo mágico o autor nunca perde de vista a figuração das determinações da
realidade objetiva ao mesmo tempo em que passa a figurar lado a lado situações mágicas que fogem à
lógica causal. Porém, devemos salientar que para a autora esse tipo de representação é o resultado de
uma postura puramente subjetiva do romancista, dessa forma, a realidade em si não existe.
Acreditamos que ao contrário de Chiampi (1980) é somente pela particularidade da própria realidade
em si da América Latina e se processo de colonização que foi possível a existência dos romancistas
realistas mágicos.
Tendo em vista o romance que é objeto da presente tese, Cem Anos de Solidão, percebemos
que além dessa dimensão mitológica, religiosa, há outros aspectos do desenvolvimento histórico da
América Latina que estão também em contraposição ao desenvolvimento da modernidade do
capitalismo e de sua lógica da racionalidade. Devemos apontar para o fato de que temos ciência das
particularidades que caracterizam os países da América Latina, mas para além das diferenças existentes
entre eles, que são muitas, a totalidade desse continente experimentou em maior ou menor grau a
confluência de três tradições sociais, culturais e econômicas distintas, o colonizador europeu, em
especial o português e o espanhol, os índios e os negros africanos. Sendo que esse hibridismo cultural,
esse síntese entre diferentes realidades culturais, explica grande parte da lógica narrativa do realismo
mágico.
A emergência do realismo fantástico reside precisamente na coexistência entre o novo e o
velho, e que segundo Lukács surge já na época do Renascimento. Segundo nosso autor,

As particularidades do Renascimento geram também o estilo original do romance em sua fase


inicial: o realismo fantástico. Os grandes princípios ideológicos e sociais da época são
apreendidos e representados pelo romancista de modo realista; realistas são os tipos figurados,
os quais, por meio da heterogênea variedade das aventuras, são levados pelo artista e autênticas
ações, a uma verdadeira explicitação de sua essência; realista é o moda escrita […]. Mas a
história narrada é conscientemente não realista e, sim, fantástica. Este elemento fantástico
nasce neste caso, por um lado, da visão utópica das grandes forças da época, e, por outro, da
comparação satírica do velho mundo em dissolução e do novo que está nascendo a partir dos
55
princípios de luta pela libertação do homem (Lukács, 2011, p. 216).

Mais adiante Lukács (2012) afirma,

56
E este fantástico não se contrapõe ao realismo e não constitui algo contrário, nem sequer do
ponto de vista artístico, ao realismo geral da composição; ao contrário, funde-se com ele num
todo orgânico: tem sua fonte na grandeza da concepção de conjunto destes escritores, em sua
capacidade de apreender e figurar de modo justo as características verdadeiramente decisivas
de sua época, sem levar em conta a verossimilhança exterior das situações e da combinação em
que elas se manifestam. A luta contra a Idade Média, acompanhada ao mesmo tempo pela
apropriação de sua herança temática e formal, torna possível a Cervantes e Rabelais cultivarem
este original realismo fantástico (Lukács, 2011, p. 216).

Porém, a característica fantástica que marcou os primórdios do desenvolvimento do romance


não se restringiu apenas àquele período histórico. Assim como, percebemos na análise de Lukács que
sua interpretação da narrativa realista fantástica se assentava em um pressuposto progressista, na luta
entre o novo e o velho; na qual se figurava a óbvia caducidade do velho e a vitória do novo, como
ocorre no romance histórico, e talvez o essencial resida mesmo na coexistência entre as novas formas
sociais e as antigas, pois acreditamos que no realismo mágico da América Latina o pressuposto do
progresso histórico tenha tomado uma direção diferente daquela que a Europa experimentou, que se
caracterizou na América Latina com seu capitalismo depedente. Mais adiante trataremos da análise do
conceito de progresso e da forma como ele se encontra representado nessa obra de Gabo, afinal pelas
distintas formas como se desenvolveram a América Latina e a Europa o próprio conceito de progresso
absorve essa contraditoriedade do real.
Assim, ao analisar a gênese e transformações do gênero romanesco até chegar às
especificidades que encontramos no realismo mágico latino-americano será possível a análise da obra
que é objeto dessa tese, Cem Anos de Solidão.

57
Capítulo 2: O realismo no romance: uma trajetória.

Nessa parte de nossa tese faremos uma análise acurada sobre as especificidades dessa nova
forma literária que emerge no mesmo período histórico do capitalismo, ou melhor, o romance é a
expressão literária por excelência da modernidade capitalista, pois o romance de forma geral em sua
estrutura interna consegue expressar a profunda cisão que ocorre na modernidade capitalista: a relação
conflituosa entre o indivíduo e a sociedade.
Também analisaremos as vicissitudes dessa forma romanesca desde os seus primórdios,
passando pelas transformações ocorridas no início do século XX até chegarmos a Gabo. E, após essa
discussão nos centraremos nas especificidades do romance histórico, desde seu surgimento até
chegarmos a Cem Anos de Solidão, ou seja, traçaremos as metamorfoses pelas quais essa peculiar
expressão do romance adquiriu ao longo de tempo, bem como, as mudanças históricos que
possibilitaram essas transformações.

2.1 O realismo dos conquistadores.

Parece-nos ser impensável analisar a forma romanesca sem ter em vista as profundas
transformações ocasionadas pelo advento do capitalismo na Europa Ocidental, tanto Lukács (2000)
quanto Magris (2009) e Goldmann (1976) afirmam esta estreita relação entre a modernidade capitalista
e o surgimento de uma nova forma narrativa: o romance.
No estudo clássico de Lukács, A Teoria do Romance (2000), o pensador húngaro constrói duas
formas de objetivações da épica, as epopeias, em especial as gregas, e o romance moderno. No
primeiro caso o surgimento das epopeias era uma consequência do caráter fechado de sua cultura, já no
segundo caso é o caráter aberto do mundo na modernidade que possibilitou o surgimento da forma
romanesca. A característica principal da forma épica, segundo Lukács, é a necessidade de
representação de uma totalidade extensiva da vida, diferentemente da forma dramática que se assenta
sobre a representação de uma totalidade intensiva da vida, “A grande épica dá forma à totalidade
extensiva da vida, o drama à totalidade intensiva da essencialidade” (Lukács, 2000, p.44). O que
Lukács nos chama a atenção é de que a realidade empírica é o fundamento último das grandes obras
épicas.
À diferença entre a épica e o drama aparece no jovem Lukács na contraposição entre a
figuração do mundo e a da realidade dos valores, da realidade meta empírica. Então, se na épica a
essência da vida aparece como consequência da figuração da realidade empírica, o drama realiza o
caminho oposto de intensificação da essência ou de como esta essência se efetiva na realidade

58
empírica, ou seja, o objeto do drama é o “eu inteligível” e o da épica o “eu empírico”, explicando
melhor essa nossa afirmação à épica, da qual o romance é sua objetivação no mundo moderno tal como
a epopeia era na antiguidade clássica, busca a figuração essencialmente da vida cotidiana das relações
triviais do homem com os objetos sociais e com a natureza. Assim a forma épica através de sua forma
tende a se adaptar a matéria-prima disforme da própria realidade, dessa maneira, torna-se inteligível,
para Lukács, a plasticidade da forma romanesca em conseguir figura a realidade complexa e caótica da
modernidade capitalista.
Por outro lado, a forma dramática opera sob outra lógica, não tem como objetivo figurar os
fragmentos da vida cotidiana e sim busca à representação “das correlações que estruturam a realidade”
(Macedo, 2000, 201), então na forma dramática figurado-se os conflitos essenciais de uma determinada
época de uma forma que se prescinda de se narrar os problemas triviais da vida cotidiana. No drama há
uma figuração de um único embate, o conflito essencial de uma dada realidade histórica simbolizando,
dessa forma, o conjunto da vida, já na épica à figuração dos conflitos essenciais de uma determinada
época emergem através da figuração da “totalidade extensiva da vida”, ou seja, a épica não tem como
objetivo a figuração de uma totalidade intensiva , como ocorre no drama, mas busca através da
representação da totalidade extensiva figurar um determinado período histórico. Macedo (2000)
exemplifica essa relação entre essas formas literárias,

A épica adere aos passos miúdos da realidade, curva-se à sua indisciplina, adapta-se a seus
acidentes de percurso para tentar dobrar-lhe a resistência e impor-lhe ordem valendo-se de suas
próprias armas, ou seja, dos fragmentos de vida. Não que o drama, por oposição, faça pouco da
realidade e a relegue a segundo plano; se assim fosse, a própria existência da forma estaria
ameaçada. É só que o drama filtra o mundo com outras lentes, e onde a épica estende a vida, o
drama aprofunda a essência (Macedo, 2000, pg.199).

Prosseguindo com nossa análise o que verdadeiramente diferenciará às epopeias do passado


para o romance moderno para o referido autor é justamente o caráter fechado ou aberto das culturas da
antiguidade e da modernidade.

Afortunados os tempos para os quais o céu é estrelado, é o mapa dos caminhos transitáveis e a
serem transitados, e cujos rumos a luz das estrelas ilumina. Tudo lhes é novo e, no entanto,
familiar, aventuroso e, no entanto, próprio. O mundo é vasto, e, no entanto, é a própria casa,
pois o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas; distinguem- se eles
nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um
ao outro, pois o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo o fogo. (Lukács, 2000, p.25).

Então, o cerne do argumento de Lukács relaciona-se ao fato de que a cosmovisão religiosa da


antiguidade grega a tudo abarcava e dotava de sentido, não havendo uma separação entre o eu e o
mundo, entre o interior e o exterior, então dentro desta perspectiva não se poderia falar sobre
conflitos psicológicos dos heróis das epopeias, pois para que fosse possível tais conflitos já deveria
59
existir a separação entre o eu e o mundo.
Assim, em última instância são os laços comunais, os valores da comunidade, que estão
representados nas grandes epopeias gregas, enquanto no romance se caracteriza pela figuração da
solidão que marca o mundo moderno, Lukács se refere à solidão ao analisar o romance moderno, pois
contrapõe a antiguidade grega com a modernidade capitalista, porém tal contrapondo é eivado de um
idealismo excessivo, ou seja, ele não explicita as tranformações na realidade empírica com instância
que possibilitou tais mudanças na grande épica, sendo que o núcleo racional dessa análise é a de
afirmar que na modernidade há uma suprassunção dos elementos comunais em relação ao indivíduo,
dessa maneira, o sentido de pertencimento a uma comunidade se arrefece, perde força, possibilitando
assim um desenvolvimento do individualismo que não se encontrava na forma sociais pré capitalistas,
sendo esse é o sentido de solidão empregado por Lukács.
Diante disso, às epopeias gregas caracterizam-se pela sua perfeição formal apriorística em
contraposição ao caráter problemático da forma romanesca, novamente o que fundamenta essa
distinção entre epopeia e romance é o resultado das diferenças existentes entre a moderna sociedade
burguesa e a antiguidade grega, diferença essa posta pelas transformações das relações entre sociedade
e indivíduo, se na antiguidade grega havia uma pouca autonomia dos indivíduos perante a sua
comunidade, daí a centralidade que a religião tinha neste período histórico, e na modernidade
capitalista ocorre um fenômeno oposto há um crescimento na autonomia do indivíduo perante as
determinações sociais.
Dessa forma, o maior peso às determinações sociais em relação ao indivíduo, relação essa
mediada pela religião, tinha como resultado uma expressão literária que impunha aprioristicamente a
forma da epopeia e, não é de forma acidental que às epopeias gregas eram escritas em forma de verso e
o romance em prosa. Pois, os versos se assentam sobre uma rigidez formal, sobre uma métrica bem
delimitada, sobre um ordenamento bem definido, uma forma bem definida, que se constitui de uma
maneira anterior ao conteúdo que será representado, assim sendo, dada essa característica dos versos
épicos gregos na visão de Lukács essa perfeição da forma e seu caráter apriorístico em relação ao
conteúdo narrado tinha como explicação a harmonia e perfeição das próprias relações sociais da Grécia
antiga. Já a narrativa em prosa, característica do romance moderno não possui uma formalização bem
definida, ela é fluida, polimórfica, portanto se adequada as relações sociais do emergente modo de
produção capitalista, em suma ela não se estabelece anteriormente ao conteúdo a ser representado,
porém segundo Lukács o verso e a prosa não são o fundamento último que explicam a vicissitudes das
epopeias gregas e o romance moderno.
O caráter problemático do romance está relacionado ao fato de que é o escritor que deve
forjar, construir a forma romanesca, pois na modernidade o sentido da vida, a unidade entre o mundo e
o eu se perdeu, em outras palavras, a forma da epopeia era dada a priori, como já mencionamos, e no
60
romance a forma é construída no processo da criação artística, daí o seu caráter multiforme, podendo
conter os diálogos do drama, os versos poéticos e a narração em prosa, esta última a predominante.
Assim, Lukács (2000) argumenta,

Epopeia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções
configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração.
O romance é a epopeia de uma era para qual a totalidade extensiva da vida não é dada de modo
evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda
assim tem por intenção a totalidade. Seria superficial e meramente artístico buscar as
características únicas e decisivas da definição dos gêneros no verso e na prosa (Lukács, 2000,
pg. 55).

Nesta perspectiva de análise a conduta do indivúduo é tão somente o acolhimento passivo de


um sentido que já se encontra dado, issocom relação as epopeias gregas. Consequentemente, podemos
afirmar que para o jovem Lukács o processo de criação literária na Grécia antiga era restrito à “cópia”
de verdades já estabelecidas, pois o processo de criação artística na antiguidade grega tinha como
determinação última aquela relação entre indivíduo e sociedade que apontamos mais acima, assim
sendo, na perspectiva do jovem Lukács existiria uma figuração dos valores comunais já existentes e, ao
contrário do romance no qual o escritor deve mergulhar e verdadeiramente criar um universo estético
que irá se fundamentar em sua experiência e relação solitária, individual com o mundo. O mundo
moderno neste caso se encontra assentado em uma espécie de estranhamento e solidão, numa cisão
entre o eu e o mundo.

Essa cisão entre indivíduo e sociedade é produto da moderna sociedade capitalista na medida
em que com o desenvolvimento do capitalismo os laços “naturais” de consanguinidade e o
pertencimento dos indivíduos a uma dada comunidade, assim como, o arrefecimento das cosmovisões
religiosas, são enfraquecidos em decorrência da ascensão do modo de produção capitalista,
proporcionando um desenvolvimento do individualismo. O indivíduo social adentra nas relações
sociais na modernidade não por pertencer a uma determinada família ou por professar algum tipo de
religiosidade e sim adentra única e exclusivamente por suas capacidades individuais, portanto esse
seria o fundamento explicativo de Lukács para a emergência do par dicotômico indivíduo problemático
e mundo degradado.
Dessa forma, Lukács (2000) o mundo grego antigo se caracterizava pela homogeneidade
social, ao contrário, do que ocorre na modernidade, pois aquela não se caracterizava pela solidão, o
indivíduo não era o único portador de uma substancialidade, os objetos e a estrutura social não estavam
apartadas, ou melhor, não se encontravam em contraposição aos desejos e anseios dos indivíduos, ao
contrário, eram tão substanciais como o próprio indivíduo social, talvez mais verdadeiramente dotadas
de substancialidade, pois os anseios e os desejos dos indivíduos não se contrapunham às normas

61
sociais, pelo contrário, a ação dos heróis das epopeias gregas seriam a representação desses valores
sociais. Para que se torna mais clara nossa análise, Lukács (200), argumenta que indivíduo, sociedade e
natureza possuíam uma mesma e única substancialidade, pois eram realidades forjadas pelas
divindades do mundo grego.
A vida no universo da antiguidade grega era perfeita, homogênea e acabada, segundo nosso
autor. Existia uma totalidade fechada e harmônica, ressaltamos o caráter idealista dessa formulação de
Lukács sobre o mundo grego, que como um círculo dotava de sentido à existência. Pois, a totalidade
do ser só poderá ser alcançada em um universo social em que a existência seja homogênea, em que
exista uma identidade entre interioridade e exterioridade, e esse fechamento do mundo grego só pode
ser explicado por Lukács justamente por uma espécie de baixa complexidade social que existia na
Grécia Antiga, ao contrário do mundo moderno que é mais complexo e, portanto, incapaz de produzir
uma existência homogênea, pois não há mais uma realidade religiosa que possibilitasse uma unidade
entre o eu e o mundo, reiteramos o caráter mais idealista do que factual desta análise de Lukács.
Entendemos que há problemas nessa formulação teórica, compreendemos o caráter conflitivo
e heterogêneo da Grécia antiga, podemos citar a diferença social entre os cidadãos gregos, os escravos
e as mulheres, porém salientamos que os valores comunais exerciam um forte caráter impositivo em
relação os indivíduos proporcionando um horizonte limitado dos papéis sociais a que cada indivíduo
deveria exercer no processo de produção e reprodução social. Então, era a religiosidade grega que a
tudo dotava de sentido e a tudo abarcava, possibilitando o fechamento cultural daquela realidade social
e, de forma oposta, o período moderno por esse arrefecimento dessa religiosidade tem como
consequência o desenvolvimento de uma cultura aberta51.
Então, qual a consequência que esta homogeneidade, pressuposição ideológica do jovem
Lukács como apontamos acima, do universo antigo grego teria proporcionado à estrutura da epopeia
grega? Em termos formais, a epopeia se caracteriza pela refiguração desse universo perfeito e dotado
de sentido, pois não há uma contradição entre os heróis da epopeia grega e o mundo histórico-social
representado, ou seja, os heróis da epopeia grega davam vazão aos valores comunais daquela sociedade
e não a valores individuais, dessa maneira, a ação dos heróis da epopeia além de serem
representativos do valores da comunidade grega não se contrapunham aos valores vigentes no próprio
mundo, diametralmente diferente da estrutura da forma romanesca que veremos mais adiante.
Porém, antes de adentrarmos na caracterização da forma romanesca para o jovem Lukács,
devemos tecer algumas críticas sobre a análise lukacsiana que encontramos em sua Teoria do Romance
(2000), pois devemos salientar o caráter idealista da análise de Lukács sobre a antiguidade grega

51 Para ver uma análise mais detalhada sobre questões de estratificação social nas epopeias da Grécia antiga e, por
conseguinte, ver a Dissertação de Félix Jácome Neto, Entre representação e realidade histórica: considerações sobre a
configuração social da sociedade homérica, disponível em
<https://estudogeral.sib.uc.pt/.../1/DISSERTAÇÃO%202011%20Felix%20Jacome.pdf> Acesso em 27 nov. 2018.
62
principalmente no tocante ao caráter homogêneo desta sociedade, pois como afirmamos mais acima a
sociedade grega antiga já era permeada de uma heterogeneidade mas em um grau de intensidade menor
do que encontramos nas sociedades capitalista. Apenas os homens gregos eram considerados cidadãos
e homens livres, as mulheres e os escravos não cabiam nesta definição de cidadão livre. Portanto,
devemos questionar a caracterização do jovem Lukács de que a sociedade grega antiga seria
homogênea, ao contrário a Grécia Antiga já se caracteriza pela existência de uma heterogeneidade
social e uma hierarquização social, como pode ser evidenciado na relação entre os cidadãos gregos e os
escravos ou na posição inferiorizada da mundo.
Podemos apontar que essas insuficiências teóricas que se encontram nesta obra podem ser
explicadas pelo caráter idealista do jovem Lukács. Devemos ressaltar que tal obra marca o caminho
que o autor percorre do neokantismo, presente em sua outra obra clássica juvenil, A Alma e as Formas,
em direção a uma abordagem teórica ancorada no idealismo objetivo de Hegel. Dessa forma, a
realidade material da Grécia Antiga e do mundo moderno não é analisada na Teoria do Romance, não
existe uma explicação fincada nas profundas transformações materiais, sociais e políticas que
marcaram o advento do capitalismo e que explicariam o porquê do surgimento da forma romanesca.
Por isso, concordamos com a crítica que Lukács empreende a este livro em seu prefácio de
1962 em que classifica o livro como sendo uma fusão de uma “ética de esquerda e epistemologia de
direita” (Lukács, 2000, pg.27). Esta ética de esquerda a qual Lukács se refere se encontra na radical
crítica à sociedade capitalista, e sua epistemologia de direita refere-se às sínteses categóricas abstratas,
seguramente a tais sínteses abstratas Lukács se refere à forma como ele constrói determinadas
categorias, como “épica” e “drama”, sem realizar uma análise das condições materiais de existência
que possibilitaram o surgimento e as transformações dessas formas literárias, não há nessa obra do
jovem Lukács uma análise das mediações materiais que explicariam as transformações das formas e
dos conteúdos dessas expressões artísticas. “Tais distorções têm ao menos de ser mencionadas para
revelar corretamente as limitações das sínteses abstratas das ciências do espírito”. (Lukács, 2000, p.10).
Voltando para nossa análise poderemos continuar a analisar a forma romanesca. O universo
religioso grego que conferia à epopeia grega aquele universo estético de uma “totalidade” perfeita se
romperam para sempre, “totalidade” esta meramente aparente, pois, o universo grego já era permeado
por profundas contradições sociais. A “poesia da vida” que caracteriza a Grécia Antiga, segundo Hegel
e Lukács, cedeu lugar a representação da “prosa da vida”, com a modernidade houve um profundo
rompimento entre o indivíduo e o mundo, para Lukács,

Um verdadeiro despropósito para o grego! O céu estrelado de Kant brilha agora somente na
noite escura do puro conhecimento e não ilumina mais os caminhos de nenhum dos peregrinos
solitários – e no Novo Mundo, ser homem significa ser solitário. E a luz interna não fornece
mais do que ao passo seguinte a evidência – ou a aparência – de segurança. (Lukács, 2000,

63
p.34).

Com o arrefecimento e reconfiguração dessas esferas transcendentais do mundo, a religião, e


com a perda da imanência do sentido da vida, o solo histórico-social que possibilitou o surgimento do
romance é essencialmente diferente do universo grego, as culturas fechadas deram lugar às culturas
abertas. A busca pelo sentido da vida e pela busca de reconstruir uma totalidade permanece no
horizonte artístico dos romancistas.
Consequentemente o advento da modernidade burguesa trouxe profundas mudanças na forma
épica, devemos salientar que o objeto da grande épica é a vida, a realidade empírica; o horizonte
histórico-social que sustentava a epopeia se esfacelou ocasionando o desaparecimento da epopeia e o
surgimento de uma nova forma literária: o romance. Segundo Lukács (2000),

O sujeito da épica é sempre o homem empírico da vida, mas sua presunção criadora e
subjugadora da vida transforma-se, na grande épica, em humildade, em contemplação, em
admiração muda perante o sentido de clara fulgência que se tornou visível a ele, homem
comum da existência cotidiana, de modo tão inesperadamente óbvio. (Lukács, 2000, p.48).

Chamamos a atenção para a refiguração do empírico na configuração das grandes formas


épicas, pois, é desta necessidade formal que podemos depreender a dimensão realista e não utópica que
caracterizará o romance moderno52. O romancista dentro desta perspectiva de análise deve buscar sua
matéria estética na própria realidade histórico-social em que se encontra inserido. Pois, os modelos
transcendentais que serviam como modelo para as epopeias gregas desaparecem, quando Lukács
aponta para o desaparecimento das esferas transcendentais o sentido correto dessa afirmação para nós
reside no fato de que as religiões perderam o poder de dar o sentido último para os destinos individuais
e os destinos do conjunto da sociedade abrindo espaço para o surgimento de uma relação conflituosa
entre o indivíduo e a sociedade. A unidade espontânea entre interioridade e exterioridade, entre o eu e
o mundo, se romperam e, dessa forma, a representação de uma totalidade perfeita e harmônica não é
mais possível na forma romanesca, porém novamente reiteramos que ainda permanecendo enquanto
horizonte a ser representado pelo romancista. Trata-se de uma totalidade problemática que se constrói
de modo artificial. Frederico (2013) argumenta,

Ao mesmo tempo, a forma do romance é uma totalização que reagrupa, numa estrutura

52 Neste sentido discordamos da interpretação de Celso Frederico (2013), pois o mesmo afirma que em sua Teoria do
Romance, Lukács acentua o caráter utópico do romance, recusando a mímese “Essa projeção utópica recusa a mímese[…]
(Frederico, 2013, p.61), pois Lukács afirma que “Toda tentativa de uma épica verdadeiramente utópica está fadada ao
fracasso, pois terá, subjetiva ou objetivamente, de ir além da empiria[…] (Lukács, 2000, p.44), portanto como o romance é
uma das objetivações da grande épica deve estar vincada na representação do mundo no qual o romancista se encontra
inserido, então mesmo que o idealismo de Lukács deixe lacunas na tentativa de explicar a relação entre o artista, o
romancista, e o mundo que o circunda e, que serve de matéria-prima estética, acreditamos que Lukács aponta para o caráter
realista do romance.
64
significativa, os elementos desconexos de uma exterioridade caótica e dissonante, dando a ela a
imanência do sentido que havia se evadido e se recusava a retornar à vida empírica […]. Como
“epopeia do mundo burguês”, o romance “tem como intenção a totalidade”, tal como a epopeia,
mas desta se diferencia também por ganhar um sentido ético. (Frederico, 2013, p.61).

Assim, Lukács (2000) afirma que a epopeia e o romance não se distanciam pelas intenções
configuradoras, o objetivo de representar a totalidade, a unidade entre o eu e o mundo da vida e a
imanência do sentido à vida, “mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a
configuração” (Lukács, 2000, p.55). Portanto, a epopeia grega dá forma a uma totalidade da existência,
um sentido à vida, que se encontra de forma mais evidente haja vista que a distância entre os valores
comunais e os destinos individuais não experimentam uma distância tão abismal quanto na moderna
sociedade burguesa, já o romance busca construir e descobrir, a totalidade que se encontra escondida
da vida. Dessa forma, a busca que o herói romanesco empreende significa a ausência dessa imanência
do sentido da vida que era dada de forma espontânea no universo antigo grego, assim como, aponta
para o fato de que as relações entre os indivíduos nada têm de espontâneo e de harmonioso.
Dessa ausência de sentido imanente que caracteriza a modernidade capitalista, o herói do
romance é definido por empreender uma busca pelo sentido perdido, não mais evidente, esta busca a
qual Lukács se refere nada mais é do que a forma de ser da modernidade, ou seja, este período
histórico caracteriza-se por um vazio de sentido, um vazio existencial.

Se portanto numa forma o cúmulo do contra-senso, o desaguar no vazio de profundos e


autênticos anseios humanos ou a possibilidade de uma nulidade última do homem, tem que ser
acolhido como fato condutor, se aquilo que é em si um contra-senso tem de ser explicado e
analisado, e em decorrência inapelavelmente reconhecido como existente, então é possível que
nessa forma certas correntes desemboquem no mar da satisfação, embora o desaparecimento
dos objetivos evidentes e a desorientação decisiva de toda a vida tenham de ser postos como
fundamentos do edifício, como a priori constitutivo de todos os personagens e acontecimentos.
(Lukács, 2000, pgs. 61-62).

Então, o processo de busca do herói romanesco é o itinerário do indivíduo problemático em


busca de si mesmo, é o caminho ao seu autoconhecimento. Portanto, na busca de um sentido para sua
vida e no caráter estranhado que caracteriza a modernidade capitalista irá possibilitar a emergência
do indivíduo problemático, personagem crítico dessa nova realidade social, e sua eterna busca por um
significado de vida. Para Lukács (2000) “A imanência do sentido exigida pela forma é realizada pela
sua experiência de que esse mero vislumbre do sentido é o máximo que a vida tem para dar, a única
coisa digna do investimento de toda uma vida […].” (Lukács, 2000, p.82).
Dessa forma, este processo de busca empreendida pelo herói romanesco, dá origem à forma
biográfica, categoria também central para a forma romanesca. O romance, nesse sentido, é a
representação do itinerário biográfico de seu herói. A forma biográfica do herói romanesco aponta para
uma diferença formal entre a epopeia e o romance, trata-se da distinção entre a infinitude descontínua

65
da matéria romanesca, descontinuidade essa que relaciona-se com o universo social que é marcado pela
fragmentação, pelo caráter desconexo e caótico das relações sociais e, a infinitude contínua da matéria
das epopeias, pois aquela realidade social seria marcada pela unidade, pela perfeição e pela harmonia,
já vimos que nesse ponto as formulações do jovem Lukács estava equivocada.
No caso do romance esta má infinitude precisa de limites, que são dados pela subjetividade
criativa do romancista, para se transformar em forma, já nas epopeias gregas a infinitude se vincularia
ao caráter orgânico daquele tipo de formação social, segundo o autor, seria uma infinitude orgânica,
positiva, portanto. Dessa forma, é a biografia do herói que realiza essa delimitação da má infinitude e,
isso ocorre em dois sentidos, a biografia organiza o desenvolvimento do herói rumo ao encontro de seu
autoconhecimento, daquele sentido da vida que se perdeu com o advento da modernidade e, por outro
lado, organiza a heterogeneidade social, o isolamento dos indivíduos e os acontecimentos carentes de
sentido, possibilitando uma articulação unitária entre cada elemento em relação ao herói e ao problema
levantado pela sua biografia.
Consequentemente, início e fim da busca empreendida pelo herói romanesco delimita e
confere forma ao romance, o problema levantado pelo herói demarca o único segmento essencial
levantado por este.

Nele, começo e fim são a decisão da vida essencial, e tudo o que, como doador de sentido, pode
adquirir importância transcorre entre eles; antes do início jazia um caos irredimível, após o
término, uma segurança da redenção, agora livre de perigo. Mas o que o início e fim abarcam
furta-se precisamente às categorias biográficas do processo; e o que seria apreensível e
configurável para a forma romanesca é condenado à absoluta inessencialidade pelo significado
total dessa experiência. (Lukács, 2000, p.84).

Além da forma biográfica, outras duas categorias presentes nessa obra de Lukács adquirem
centralidade na sua análise sobre o romance, são os conceitos de herói problemático e de mundo
degradado. Dada a dissolução das esferas metafísicas que a tudo abarcava no universo grego, houve,
como já foi dito, um processo de ruptura entre o mundo e o eu, entre a interioridade e a exterioridade.
Pois bem, dessa forma, o herói do romance se caracteriza por se encontrar em uma espécie de crise
existencial, pois o mundo exterior é dominado pelas relações burguesas, pelo individualismo, em
outras palavras, pela alienação, estranhamento.
A natureza dessa insatisfação do herói problemático remete a própria periodização histórica na
qual surgiu a forma romanesca. Lembremos que o romance surge no alvorecer da sociedade capitalista,
pré-Revolução Francesa e Industrial, desse modo, havia ainda à existência de valores sociais que não
eram pautados pela lógica mercantil, os valores da pretérita sociedade feudal, portanto é nesse embate
entre os valores estranhados da sociedade mercantil burguesa e os valores autênticos que fundamente a
forma conflitiva ou ambivalente por excelência do romance. Nesse sentido Magris (2009) afirma,

66
Em uma passagem do Fausto goethiano, Marx via uma das primeiras expressões da nova
natureza demoníaca do dinheiro e uma das primeiras intuições da essência do capitalismo, no
qual o dinheiro não se limita a oferecer bens, mas transforma a pessoa, torna-se um modo de
ser e sobretudo instrumento de uma permutabilidade universal, que pode converter uma coisa –
também afetos e valores – em outra qualquer. De Defoe a Goethe ou a Balzac, para citar alguns
nomes, o dinheiro e os seus diversos, até opostos, empregos – o consumo, o investimento, a
especulação – são inseparáveis do quadro de sedução e violência que a literatura – com
sentimentos e opiniões diversos, de acordo com os autores, as épocas e as situações – traça,
narrando a vida, o encontro e o desencontro entre o indivíduo e a realidade (Magris, 2009,
pg.1022).

Assim, o herói problemático, ainda guarda em si valores considerados autênticos, porém tais
valores estão impossibilitados de realizarem-se, pois, o mundo já não compartilha de tais valores e,
consequentemente, não é possível a sua realização. Entende-se, dessa forma, a afirmação de Lukács,
segunda a qual o processo de busca da forma biográfica, resulta em um processo de autoconhecimento
por parte do herói problemático. A realidade social torna-se opaca, impenetrável, só restanto, portanto,
seu autoconhecimento.

O romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da


alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada
e, pondo-se à prova, encontrar sua própria essência[…]. Daí a passividade do herói épico
exigida por Goethe e Schiller: a ciranda de aventuras que lhe adorna e preenche a vida é a
configuração da totalidade objetiva e extensiva do mundo, ele próprio é somente o centro
luminoso ao redor do qual gira esse desdobramento, o ponto intrinsecamente mais imóvel do
movimento rítmico do mundo. Ora, a passividade do herói romanesco não é uma necessidade
formal, antes define a relação do herói com sua alma e sua relação com o mundo circundante.
(Lukács, 2000, pgs. 91-92).

Portanto, a oposição entre o herói problemático e o mundo degradado, reside justamente


no fato de que a própria realidade da modernidade burguesa produziu esta cisão. Se, o herói das
epopeias dava vazão aos valores comunais, no herói problemático não há possibilidade deste
determinação ocorrer. Então, a própria relação entre indivíduo e sociedade é que experimentou uma
mudança fundamental nestes dois períodos históricos.

O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial
da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com razão,
pois a perfeição e completude do sistema de valores que determina o cosmo épico cria um todo
demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma, tão
fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se
individualidade. (Lukács, 2000, p.67).

Passemos agora para analisar o lugar que a ética ocupa no romance. Se, nas epopeias gregas a
substância metafísica, os valores religiosos, a tudo abarcava e emprestava sentido, consequentemente, a
forma era dada a priori, pois, como afirmamos, Lukács a rigor não acreditava em uma verdadeira
criação estética no mundo grego antigo, pois tanto forma como conteúdo estavam dados de forma

67
cristalina, em outras palavras, o sentido imanente da vida existia de forma evidente. Porém, na forma
romanesca a ética do escritor, seus valores e sua subjetividade, se transforma em material estético. A
ética do escritor se transforma em elemento estrutural da composição literária. Segundo o autor, “As
relações que mantêm a coesão dos componentes abstratos são, em pureza abstrata, formais: eis por que
o princípio unificador último tem de ser a ética da subjetividade criadora que se torna nítida no
conteúdo” (Lukács, 2000, p.85).
O que o autor busca salientar ao analisar a importância da ética na forma romanesca é que ela
vai configurar a objetividade que caracteriza as formas épicas. Em verdade Lukács aponta para um
duplo movimento ético. O elemento unificador da forma romanesca é justamente esta ética subjetiva
do escritor, pois como vimos não há uma realidade meta empírica que confere uma unidade de sentido
ao mundo. O duplo movimento ao qual Lukács se refere é que a subjetividade ética do escritor deve
superar a si própria em direção a construção de uma representação objetiva e, como o mundo moderno
se caracteriza pela dissolução entre o eu e o mundo, essa ética jamais conseguirá penetrar nos objetos
de sua configuração, assim como, torna-se impossível a superação de sua subjetividade e a apreensão e
figuração do sentido intrínseco do mundo objetivo. Dessa forma, a visão de mundo do escritor
necessita, ela mesma, de uma autocorreção ética, dessa maneira, essa autocorreção é aquilo que o
jovem Lukács chama de ironia. Então, a ética é justamente o ato de reflexão do escritor e apresenta sua
gênese justamente no fato de que a realidade na modernidade capitalista é marcada por uma extrema
heterogeneidade e complexidade.
A ironia do escritor tem uma consequência dupla para a forma romanesca. Em um primeiro
momento a ironia representa artisticamente a acentuada desesperança da luta que o herói problemático
empreende na busca por realizar seus ideais em uma realidade social hostil a efetivação destes, é a
contradição entre os valores autênticos do herói e os valores degradados da moderna sociedade
burguesa, busca essa fadada ao fracasso, ou seja, trata-se do fracasso da adaptação do indivíduo ao
mundo. E, no segundo momento, a ironia do escritor, que refigura a realidade enquanto vencedora, ela
mostra o caráter opaco e inessencial da própria realidade em relação ao seu adversário derrotado, ou
seja, dos ideais do herói problemático. Por outro lado, essa vitória da realidade nunca será definitiva,
pois sempre será questionada por novas irrupções de novos ideais e, principalmente, porque que essa
vitória não se deve ao fato da realidade apresentar uma força própria.

Para o romance, a ironia é essa liberdade do escritor perante Deus, a condição transcendental da
configuração. Ironia que, com dupla visão intuitiva, é capaz de vislumbrar a plenitude divina
do mundo abandonado por Deus; que enxerga a pátria utópica e perdida da ideia que se tornou
ideal e ao mesmo tempo a apreende em seu condicionamento subjetivo-psicológico, em sua
única forma de existência possível; ironia que-ela própria demoníaca-concebe o demônio no
sujeito como essencialidade metassubjetiva e, com isso, num pressentimento inexprimido, fala
de deuses passados e futuros quando narra as aventuras de almas errantes numa realidade
inessencial e vazia; ironia que tem que buscar o mundo que lhe seja adequado no calvário da
interioridade, sem poder encontrá-lo; que dá forma simultaneamente ao prazer perverso do
68
deus-criador com o malogro das débeis insurreições contra sua fancaria poderosa e inútil e ao
sofrimento sublime, além de toda expressão, do deus-redentor com sua incapacidade de
regressar a este mundo. (Lukács, 2000, p.95).

Dessa forma, a ironia do escritor que, para Lukács, é a “intenção normativa do romance”, é
analisada como sendo aquele elemento que confere coesão aos elementos dissonantes da realidade
objetiva carente de substância. A ironia do escritor ou a subjetividade normativa do romancista
constrói a unidade na relação entre os personagens, as relações entre os personagens secundários e a
aventura do herói problemático, e sua relação com o mundo circundante e o destino dos personagens
figurados na obra romanesca.
Através do conceito de ironia Lukács analisa a relação entre subjetividade e objetividade no
que se refere à figuração da forma romanesca. Portanto, no romance o princípio normativo que confere
a unidade instável e a possibilidade de representar-se uma totalidade, mesmo que fragmentária, é dada
pela subjetividade crítica do romancista, porém há de se ter sempre em mente que esta subjetividade
criadora do romancista não descamba para uma pura lírica. Filho (2012) argumenta,

Para a configuração da forma romanesca, no que toca às suas leis normativas, a lírica e a
reflexão do escritor devem vir mitigadas pela vigília da subjetividade em busca de configurar
as relações objetivas burguesas. Isso significa, para Lukács, que a “autocorreção” e a
“autossuperação” levadas a efeito pela ironia do escritor são, igualmente, líricas e reflexivas.
Isso aparece porque, tanto na obra como na vida (e aqui expediente artístico- estilístico não se
separa da concepção irônica da vida), a ironia permanece presa à própria subjetividade, já que é
este o princípio determinante que ainda pode dar algum sentido à vida (Filho, 2012, p.53).

Então, dessa relação entre subjetividade e objetividade, cabe à subjetividade do romancista


superar a má infinitude, a dissonância da realidade empírica, conferindo ao romance aquela totalidade
que caracteriza a grande forma épica.
Diante do exposto, parece-nos que a análise de Lukács se fundamenta em uma lógica “de
quem perde, ganha”, pois ao analisar o romance o autor argumenta que existe maior liberdade criativa
por parte do escritor na modernidade burguesa, por outro lado, “quem ganha, perde”, pois como
consequência do esfacelamento do universo metafísico o sentido imanente à vida não se dá mais de
forma evidente, dessa forma, a epopeia se caracteriza por fundamentar-se na representação de uma
totalidade fechada, enquanto, no romance há a emergência de uma totalidade fragmentária.
Em seu texto, O romance como epopeia burguesa (Lukács, 2009), retoma sua análise sobre a
forma romanesca e sua vinculação à sociedade capitalista, porém tendo como base metodológica o
marxismo. Nesse texto ele ainda afirma que a epopeia e o romance são objetivações da grande épica e
que por essa vinculação e natureza o romance preserva alguns traços épicos, segundo Lukács,

Por suas finalidades e natureza, o romance tem todos os traços característicos da forma épica: a
tendência a adequar o modo da figuração da vida ao seu conteúdo; a universalidade e a

69
amplitude do material abarcado; a presença de vários planos; a submissão do princípio da
reprodução dos fenômenos da vida por meio de uma atitude exclusivamente individual e
subjetiva diante deles (como é o caso na lírica) ao princípio da figuração plástica, na qual
homens e eventos agem na obra quase por si, como figuras vivas da realidade externa (Lukács,
2009, pgs. 201-202).

Então, a contradição fundamental da forma romanesca reside justamente no fato de o romance


aspirar à totalização épica, mas a própria realidade objetiva impede a possibilidade dessa criação. Essa
afirmação de Lukács sofre modificações ao longo do seu itinerário intelectual. Posteriormente já em
solo marxista Lukács afirma a possibilidade de figuração de uma totalidade, a totalidade dos objetos –
trataremos mais adiante sobre isso –, na forma romanesca e já no final de sua vida o autor aponta para
uma nova metamorfose do romance, em um movimento que o aproxima de uma representação da
totalidade de reações53.

Segundo Lukács (2009) o ponto nodal da teoria da forma romanesca vincula-se ao problema
da ação. Toda a representação da realidade exterior e interior dos homens, da relação entre o mundo e o
eu, da descrição dos objetos inanimados, só adquirem um verdadeiro valor estético quando o
romancista os vincula ao problema da ação, este problema deve ser entendido com o centro
gravitacional do romance, toda a narrativa deve encontrar-se mais ou menos vinculada a este
problema. Isto é o que o autor na obra A teoria do romance denominou de busca pelo sentido da vida
empreendida pelo herói problemático, “Esta posição central da ação não é uma invenção formal da
estética; ao contrário, ela deriva da necessidade de refletir a realidade do modo mais adequado
possível” (Lukács, 2009, p.205).
O processo que condiciona a construção dessa ação romanesca, com relação ao conteúdo e a
forma, depende do grau do desenvolvimento das contradições de classes e da economia em um dado
momento histórico. Tanto na epopeia quanto no romance há a necessidade de aparecer de forma
límpida as singularidades essenciais de uma sociedade particular através da figuração dos destinos, das
ações de indivíduos concretos. Pois é, segundo o autor, pela mediação, ou seja, pela relação entre o
indivíduo e a sociedade que aparecem as características essenciais dos indivíduos histórico-sociais de
um determinado período histórico.
À diferença entre a figuração da epopeia e do romance reside no fato de que no período
histórico da Grécia antiga o indivíduo, no centro da narração na epopeia, era um personagem típico em
que se expressava a tendência da sociedade como um todo e não uma contradição típica no interior de
uma sociedade. “A ação da epopeia homérica é a luta de uma sociedade relativamente unida, de uma
sociedade enquanto coletividade, contra um inimigo externo” (Lukács, 2009, p.206). Então, naquele

53 Para uma análise mais detalhada dessas transformações na análise do romance em Lukács recomendamos o artigo de
Leandro Candido de Souza, György Lukács leitor de Alexander Soljenítsin, disponível em
http://www.verinotio.org/conteudo/0.14008509194486.pdf> Acesso em 17 Janeiro 2019.
70
período histórico ainda não estava plenamente desenvolvido a contradição entre o indivíduo e a
totalidade, pois os destinos individuais não experimentaram ainda uma contraposição ao destino de
uma coletividade.
Devemos insistir que não estamos afirmando que a sociedade grega se assentava em uma
totalidade harmoniosa e homogênea como enxergava o jovem Lukács, pois havia uma enorme
hierarquização social entre homens e mulheres e entre os cidadãos gregos e os escravos, mas
afirmamos que o individualismo, tal com ocorre na moderna sociedade burguesa, não se encontrava
desenvolvido. De modo mais preciso, podemos afirmar que o processo de estranhamento se encontra
em níveis diferentes de desenvolvimento na antiga sociedade grega e na moderna sociedade capitalista,
o estranhamento nesta última formação social se encontra em um estágio muito mais avançado.
Prosseguindo agora com a análise Magris (2012), em seu ensaio O romance é concebível sem
o mundo moderno? Partindo em grande medida da análise hegeliana e a do próprio Lukács, o autor
argumenta que a melancolia, a percepção oprimida de sentir-se culpa, adquire centralidade no romance.

O indivíduo experimenta o sentimento de viver em um mundo caído e o próprio sentimento é


percebido como culpado: como ocorrerá com as personagens de Kafka, que se sentirão
culpadas exatamente porque incapazes de remir sua condição de fraqueza e de vaidade, porque
incapazes de resistir ao mundo que as ameaça, inadequadas à força - criadora e ao mesmo
tempo destrutiva- da existência. (Magris, 2012, p.1020).

Para o autor, o romance frequentemente mistura crítica social e celebração da modernidade


burguesa, celebração no sentido de que há uma afirmação da superioridade da moderna sociedade
burguesa em relação ao feudalismo, visto como um passado que já não tem condições de responder
positivamente aos problemas postos pelo presente. Pensemos, por exemplo, nas obras de Honoré de
Balzac (1799-1850) e Walter Scott (1771-1832) que representam justamente a transição da sociedade
feudal em direção ao capitalismo e, ao mesmo tempo, uma visceral crítica social, pois essa superação
entre dois modos de produção distintos não significa a emergência de uma sociedade mais justa, em
que exista uma unidade entre indivíduo e sociedade, dessa forma, a sociedade burguesa complexifica-
se, surgindo outros tipos de problemas, como o individualismo, a ausência de sentido para a vida e uma
brutal hierarquização social.
Como consequência dessa nova realidade social, o autor analisa a representação que os
romancistas fazem acerca da nova função que o dinheiro adquire na modernidade burguesa. Portanto, a
nova função do dinheiro adquire uma grande importância na estrutura narrativa do romance. O autor
aponta para a análise de Marx sobre o Fausto de Goethe, no qual ele via uma das primeiras
manifestações artísticas capaz de capturar a essência do capitalismo e a nova função do dinheiro nas
relações sociais. Marx esclarece essa nova função social do dinheiro em seus Manuscritos Econômico-
Filosóficos (2004),
71
O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar,
isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha
força. As qualidades do dinheiro são minhas – [de] seu possuidor – qualidades e forças
essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha
individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou
feio, pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro (Marx, 2004,
pg,159).

Para o autor, a própria realidade moderna se transforma na estrutura narrativa, como exemplo,
o autor cita o romance de Robert Musil, O homem sem qualidades, no qual o autor configura, na
própria estrutura narrativa, as profundas transformações ocorridas no capitalismo do início do século
XX.

Em muitos romances - de Berlim Alexanderplatz às obras de Dos Passos e tantos outros


exemplos - a complexidade, a organização, a desconexão, e o caleidoscópio da vida na
metrópole tornam-se montagem e colagem narrativa, estilo e respiro da narração. Em Karl e o
século vinte, Rudolf Brunngraber transforma em romance e personagens romanescos os eventos
históricos, a estatística, as flutuações dos preços, os índices de emprego e inflação. (Magris,
2012, p.1026).

Dessa maneira, tanto em Lukács quanto em Magris o romance poderia ser definido como uma
expressão artística da desilusão, sendo que esta não se encontra ou não é uma mera criação subjetiva do
romancista mas um dado que existe na própria realidade burguesa. Em Berlim Alexanderplatz (2009),
de Alfred Döblin, obra que se insere no movimento vanguardista que marcou a literatura
principalmente nas primeiras décadas do século XX, percebe-se as transformações da forma romanesca
em contraposição as narrativas clássicas do século XIX. Tem- se, como Magris afirmou acima, a
inserção direta de elementos externos ao romance na própria estrutura narrativa, como as peças
publicitárias, notícias de jornal, e a própria velocidade das relações sociais adentram na estrutura dos
romances, vejamos de que forma isso aparece na referida obra de Döblin,

[…] Lá fora, anúncios de lutas de boxe, pavilhão Germania, Chausseetrasse 110, entrada de
1,50 a dez marcos. Quatro lutas classificatórias.
Volume de vendas do mercado de gado; 1.399, 2.700 vitelas, 4.654 ovelhas, 18.864 porcos.
Comportamento das vendas: bois de boa qualidade, normal, depois calmo. Vitelas, normal.
Ovelhas, calmo. Porcos, de início, firme, depois fraco, porcos gordos, pouca procura. (Döblin,
2009, pg.156).

À vista disso, o que devemos ressaltar da forma romanesca é que ela se encontra em uma
relação estreita com o mundo empírico e com as sucessivas transformações deste, formalmente ela é
capaz de se adaptar as dissonâncias, mudanças operadas de uma maneira muito mais intensa do que em
outras expressões literárias.
Então, para o autor, a literatura contemporânea se caracteriza pelo sentimento de que houve
uma profunda ferida na constituição de uma personalidade autêntica por parte do indivíduo, por
72
personalidade autêntica o autor se refere ao desenvolvimento do indivíduo social que ainda não se
orientava pelas valores da moderna sociedade burguesa, o que impossibilita o indivíduo de se realizar,
de efetivar os valores autênticos neste tipo de organização social. Além disso, o faz sentir o peso da
fragmentação social que marca os tempos modernos, ocasionando aquela melancolia que citamos
anteriormente, tal processo pode ser percebido na própria destruição de Macondo que ocorre ao final
do romance.

2.2 Goldmann e o retorno ao jovem Lukács.

Já na análise de Goldmann (1976) sobre o romance ela se fundamenta seu estudo sobre essa
forma literária tendo como pano de fundo as formulações do jovem Lukács e de René Girad. Para o
autor romeno, radicado na França, haveria uma homologia rigorosa entre as estruturas sociais, da
sociedade industrial burguesa e a estrutura romanesca clássica, assim como, existiriam certos
paralelismos entre as suas respectivas evoluções. Para fins dessa presente tese centralizaremos nossa
análise na forma como Goldmann compreende a teoria literária do jovem Lukács e como ele busca
desenvolvê-la em sua teoria do romance, portanto não adentraremos nas considerações dele sobre
Girad, pois acreditamos que não nos ajudaria a lançar novas luzes para o entendimento de nosso objeto
de estudo.
Nesse ponto, Goldmann aceita a proposição de Lukács, segundo a qual o romance atuaria
sobre um universo degrado, na qual existiria a busca por valores autênticos, mas de natureza qualitativa
diferente. Por valores autênticos, o autor, entende como sendo os valores implícitos do escritor, em
última instância a do grupo social do qual o escritor pertence e, que, dessa forma, organizam o universo
romanesco de cada obra.
A contradição dialética entre o herói problemático e o mundo degradado tem como resultado
uma ruptura insuperável entre esses dois elementos. Assim, Goldmann argumenta que há em Lukács
uma análise da natureza de tais degradações, pois, elas devem produzir ao mesmo tempo uma
“oposição constitutiva”, que explica o caráter insuperável dessa ruptura e também é capaz de produzir
também uma “comunidade suficiente” para que seja possível a existência de uma forma épica.

Situado entre esses dois polos, o romance possui uma natureza dialética na medida em que,
precisamente, participa, por um lado, da comunidade fundamental do herói e do mundo que
toda a forma épica supõe, e, por outra parte, de sua ruptura insuperável; a comunidade do herói
e do mundo resulta, pois, do fato de ambos estarem degradados em relação aos valores
autênticos, e a sua oposição decorre da diferença de natureza entre cada uma dessas
degradações. (Goldmann, 1976, p.9).

Dessa forma, Goldmann prossegue sua análise tecendo uma crítica a forma dominante de

73
análise sociológica da literatura, centrada no conteúdo das obras romanescas e nas relações
estabelecidas entre tais conteúdos e a representação da realidade social empreendida pelo romancista,
ou mais precisamente como elementos do conteúdo dos romances poderiam refletir situações ou
problemáticas sociais. O autor critica tal proposição e desloca o viés analítico da sociologia da
literatura do conteúdo para a forma, buscando correspondência entre as categorias que possibilitam a
estruturação da criação literária e os grupos sociais.
Segundo Goldmann, o romance seria uma representação literária da forma como a vida
cotidiana se estruturou na sociedade individualista burguesa, pois existiria uma “homologia rigorosa”
entre o romance e a forma como se dão as relações cotidianas nessa sociedade. Portanto, a finalidade
da sociologia da literatura de Goldmann reside justamente na busca da compreensão, refere-se a busca
pelo entendimento da estrutura imanente de cada obra de arte, e sua explicação, centra-se na busca pela
gênese dos condicionamentos sociais que possibilitaram o surgimento das obras de arte, das estruturas
significativas concernentes aos grupos sociais, estruturas essas que conferem uma unidade e coerência
a uma determinada obra literária.
Se, em formações sociais pré-capitalistas, as relações econômicas eram conscientemente
orientadas para a satisfação das necessidades sociais da população em geral, a moderna sociedade
burguesa inverte as relações econômicas, que não seriam mais orientadas conscientemente para a
satisfação de necessidades sociais, na medida em que se subordinam à irracionalidade do mercado, a
produção das riquezas sociais passam a se orientar no sentindo de serem trocadas no mercado,
subordinando às satisfações das necessidades sociais. Assim sendo, o caráter consciente dessas
relações desaparece tornando-se implícito em consequência da centralidade que a categoria do valor de
troca adquire no capitalismo. Consequentemente, dessa forma, o valor de uso, ou a utilidade dos
objetos, que orientava a produção econômica se subordina ao valor de troca. Então, para Goldmann a
relação autêntica que se orienta através do valor de uso dos objetos e dos indivíduos sociais entre si
cede lugar às relações inautênticas mediada pelos valores de troca que são puramente quantitativos.
“Naturalmente, os valores de uso continuam existindo e regem até, em última análise, o conjunto da
vida econômica; mas sua ação adquire um caráter implícito, exatamente como o dos valores autênticos
no mundo romanesco”. (Goldmann, 1976, p.17).
Destarte, o autor argumenta que esta homologia entre a lógica individualista da moderna
sociedade burguesa e a forma romanesca na verdade trata-se de uma mesma estrutura só que em dois
níveis diferentes. “Essa homologia rigorosa” tem sua explicação pelo caráter universal que o
fetichismo da mercadoria e a reificação adquirem na moderna sociedade burguesa.
Por conseguinte, Goldmann enumera quatro novas tipologias acerca dessa relação entre a
estrutura social e a forma romanesca, a primeira é a de que a obra romanesca não seria simplesmente
um reflexo da consciência coletiva real e dada, mas seria a efetivação em um grau de coerência muito
74
elevado das tendências próprias de um grupo social específico, consciência esta que se caracteriza por
sua dinamicidade, orientando-se por certo grau de equilíbrio. O segundo ponto se vincularia ao fato, já
por nós assinalado, de que a relação entre estrutura social e forma romanesca não se encontra em sua
identidade de conteúdo, mas na homologia entre as estruturas e as formas, possibilitando uma
variedade muito grande entre os conteúdos particulares em obras artísticas distintas, nesse ponto em
específico, acreditamos que o autor realiza uma delimitação muito rígida entre a relação de um
específico grupo social e a criação artística, pois o mesmo tende a identificar uma determinada visão de
mundo com um grupo social específico e, dessa maneira, haveria uma vinculação quase que mecânica
entre o pertencimento a um determinado grupo social e a forma artística na qual os membros desse
hipotético grupo se expressam esteticamente. Dentro de nosso entendimento sobre Goldmann a cada
grupo social singular haveria uma respectiva forma artística que expressaria esteticamente essas
tendências particulares do grupo social em questão. O principal questionamento que podemos formular
contra essa teorização de Goldmann se refere a possibilidade objetiva de determinações formas de
expressão artísticas não estarem vinculadas a um grupo social em específico, a forma romanesca é um
exemplo disso pois, ela consegue penetrar em variados grupos sociais distintos, pela razão de que o
indivíduo social, pelo menos ideologicamente, sofre a influência de visões de mundo que não se
limitam ao grupo social a que pertence.
O terceiro ponto elencado por Goldmann aponta para certos casos específicos nos quais as
obras de arte podem ser elaboradas ou construídas por indivíduos com poucas relações com um grupo
social em específico, porém o autor afirma que muito raramente este fato ocorre, poderíamos citar o
exemplo de Balzac nesse sentido. Dessa forma, a crítica tecida mais acima continua válida, sobre o
caráter mecânico da relação entre grupo social e formas artísticas. O quarto, e último ponto, se refere à
natureza da consciência coletiva, pois ela não teria uma existência autônoma e nem seria uma realidade
primeira, sendo elaborada implicitamente através do comportamento dos indivíduos que se relacionam
na vida social, econômica e política.
Consequentemente, o autor aborda os processos sociais que permitiram uma transposição
direta da vida econômica para a figuração literária. Neste ponto da análise do autor, parece-nos que fica
claro a abordagem mecanicista de seu estruturalismo genético54, pois literalmente Goldmann utiliza a
expressão “transposição direta”. Logo essa abordagem não leva em consideração as mediações que se
interpõem entre a estrutura econômica de uma sociedade e suas objetivações ideais, como as criações
artísticas. Se, com o advento da modernidade capitalista, houve um solo histórico que possibilitou a

54 O estruturalismo genético de Goldmann é uma interpretação do método dialético de Marx mediado pelas contribuições
advindas da interpretação luckasiana contida em História e Consciência de Classe, para a qual a categoria da totalidade é
central no pensamento marxista. Dessa forma, o estruturalismo genético busca analisar a realidade social através dessas
totalidades estruturadas, ou seja, da relação do todo e das partes que compõem uma determinada formação social. Para uma
compreensão mais adequada do método em Goldmann ver As Ciências Humanas e a Filosofia, disponível em
<http://www.culturabrasil.pro.br/zip/goldmann.pdf>, Acesso em 17 dez. 2018.
75
emergência de uma nova forma literária, o romance, tal transposição não ocorre de forma direta, pois
pensemos na mediação da subjetividade crítica do romancista, mesmo porque o romancista para
representar a moderna sociedade burguesa precisa superar a realidade empírica imediatamente dada
para que sejam figuradas as determinações dessa realidade histórica, portanto, é necessária a mediação
do artista com o mundo, propiciando assim a produção de determinada obra de arte.
Tal noção de “transposição direta” que, em nossa interpretação, carregava um peso
determinista pode ser observada na análise da obra La jalousie de Robbe-Grillet, talvez o autor mais
conhecido do chamado novo romance francês, obra que apresenta como tema central o ciúme,
estruturalmente nesse romance há uma supressão dos personagens, ausência de ação e supressão da
linearidade temporal, dessa forma, o narrador-personagem caracteriza-se por apenas registrar os

eventos sem realizar nenhum tipo de comentário. Pois bem, para Goldmann o caráter realista do novo
romance francês, em especial nesta obra de Robbe-Grillet, está no fato de que há uma profunda
homologia entre a realidade capitalista do pós-segunda guerra, que se encontra marcada pelo que o
autor chama de “capitalismo de organização”, realidade marcada profundamente pelo fetichismo da
mercadoria e pela reificação, nesse sentido, essa obra de Robbet-Grillet figura justamente uma
realidade na qual a autonomia do indivúdo é muito reduzida perante a importância que os objetos
adquirem na realidade cotidiana. O indivíduo seria quase como um títere das estuturas sociais
autonomizadas.
Logo, seria impossível representar a realidade tal como o realismo clássico fazia, restando à
representação dessa realidade regida pela centralidade dos objetos, mais precisamente pela autonomia
que os objetos adquirem frente aos homens, fundamento esse do fetichismo da mercadoria, nesse
sentido o romancista francês objetiva figurar literariamente a realidade histórico- social na qual o
mundo dos objetos, das mercadorias, se autonomizam perante seus produtores. Então, na sociedade
mercantil onde se universaliza a produção de mercadorias para a troca faz com os homens que a
produzem passam a tratar as coisas como se essas tivessem uma objetividade própria na qual a origem
social destas é escamoteada, dessa maneira, são os produtores das mercadorias passam a ser meros
suportes na condução destas para serem trocadas no mercado, o mundo das mercadorias que
determinam o agir dos homens e não o inverso. Essa é a realidade social representa por Robbe-Grillet.
Celso Frederico (2005), critica tal análise empreendida por Goldmann, acerca do novo romance
francês,

Em Marx, a autonomia das coisas não passava de uma ilusão, se bem que ilusão necessária a
uma ordem social na qual a exploração do homem pelo homem apóia-se exclusivamente na
coerção econômica, dispensando a presença de outros fatores de legitimação (políticos,
religiosos etc.), presentes nas formações sociais anteriores. A economia política clássica foi
criticada por ser uma ideologia empenhada em duplicar essa aparência enganosa, tomando- a
como um dado natural, a-histórico e, dessa forma, elidindo a existência do trabalho humano
76
como gênese da criação da riqueza. Lukács, a propósito, observou que Marx, em oposição às
mistificações da economia política, promoveu ‘a dissolução de todas as objetividades reificadas
da vida econômica e social em relações inter-humanas’ (Frederico, 2005, p.11).

Prosseguindo com a análise de Goldmann para explicar as ligações entre as estruturas


econômicas e a literatura, observamos que o autor constrói quatro hipóteses explicativas dessa relação.
A primeira, postula que na moderna sociedade burguesa, o pensar e o comportar-se seriam pautados
por valores meramente quantitativos tornando o dinheiro e o prestígio social os valores máximos desse
tipo de formação social; a segunda, assegura que indivíduos sociais comportam-se em maneira
problemática, crítica perante os valores dominantes que operam na sociabilidade burguesa, ou seja,
indivíduos que orientam suas vidas tendo como fundamento os valores de uso, como exemplo, o autor
cita os escritores, artistas, filósofos e outros, valores esses contrapostos a centralidade que as trocas
mercantis adquirem na modernidade burguesa.
A terceira hipótese, afirma que nenhuma obra pode ser fruto exclusivamente de uma
experiência individual, o romance só nasceu e se desenvolveu como consequência de uma espécie de
insatisfação afetiva não conceptualizada, uma busca afetiva tendo como objetivo a busca por valores
autênticos. Tal sentimento de insatisfação e busca deve ter se generalizado pelo menos no seio daquelas
camadas sociais, as camadas médias principalmente, em que se recrutam a maior parte dos
romancistas, nesse ponto o autor em questão não deixa claro quais camadas ou estratos sociais seriam
esses, porém podemos inferir que o autor se refere aos estratos médios da classe trabalhadora e, em
certa medida da pequena- burguesia; a quarta hipótese, assegura que no interior da moderna sociedade
burguesa se desenvolve um conjunto de valores revestidos de uma validade universal, o autor refere-se
fundamente ao desenvolvimento do individualismo burguês, valor este que se dissemina por toda a
sociedade independentemente da classe social a qual o indivíduo pertence, porém o desenvolvimento
deste se choca com os valores dominantes do mundo, sendo assim, o indivíduo social não consegue
realizar seus valores no mundo.
A partir de tais valores emergiu os dois conceitos fundamentais do romance, o herói
problemático e a biografia individual, tendo como fundamento a experiência dos indivíduos
problemáticos em uma sociedade hostil para a efetivação dos valores autênticos no qual o herói
problemático é portador. Como desdobramento dessa hipótese, o autor assinala a contradição entre
esses valores universais, autênticos e o mundo degradado, espaço da inautenticidade enfim às
limitações que esta mesma sociedade impõe ao desenvolvimento da personalidade.
Assim, Goldmann afirma uma rigorosa homologia entre a estrutura econômica e a forma
romanesca, fixando três fases de transformações econômicas que engendrariam mudanças
fundamentais na forma romance, quais sejam: capitalismo de livre concorrência; capitalismo
monopolista (compreendendo aqui sua fase imperialista); e o capitalismo organizado.

77
A primeira, caracteriza-se pela forma clássica do romance na qual se encontra o herói
problemático, a busca pelo sentido imanente à vida e a representação do mundo degradado, o romance
aqui é entendido enquanto crônica social, odisseia do herói problemático em busca de valores
autênticos em um mundo inessencial.
Na segunda fase, o período imperialista, ocorre a supressão do individualismo e da livre
concorrência resultando em uma mudança substancial na ordem burguesa. Para Goldmann, há uma
mudança substantiva na forma romanesca com o desaparecimento do herói problemático, os exemplos
dados pelo autor são Kafka, Joyce e Musil.
Na terceira fase do capitalismo, o capitalismo organizado, que irrompe após a segunda guerra
mundial, caracteriza-se pela crescente intervenção do Estado para sanar as crises cíclicas do
capitalismo. Nesse “capitalismo organizado”, houve um processo de conquistas de direitos sociais e
expansão econômica, o que produziu uma ilusão de uma ordem socioeconômica autor-regulada e
permanentemente estável, Seria a vitória definitiva do processo de reificação. Seria, ou é importante,
estabelecer uma relação entre essas formulações de Goldmann e a obra Cem Anos de Solidão, objeto
desse presente estudo. Cabe apontar para o fato que na história da América Latina talvez não tenha se
desenvolvido de forma tão clara essas quatro tipologias de desenvolvimento do capitalismo. Aqui o
capitalismo se desenvolve atrelado a formações econômicas pré-capitalistas, como o escravismo, e
dada as particularidades do processo de colonização emergiu em nosso continente um tipo de cultura,
ou culturas, bastante heteróclita.
Como consequência das particularidades de nosso objeto podemos argumentar que muitos dos
elementos que caracterizam alguns dos romances produzidos na Europa e nos EUA, regiões que
vivenciaram essas transformações capitalistas, adquirem outras colorações, especialmente em Cem
Anos de Solidão. Como, por exemplo, a questão da não centralidade de um único personagem
principal, a unidade entre realismo/magia, dentre outras características. Porém, a questão central da
análise de Goldmann e que ainda se encontra válida para o nosso estudo é justamente a relação que
existem entre as relações materiais e as objetivações culturais, da literatura, mas sem o excessivo
mecanicismo que se encontra nas análises de Goldmann, mediada pela categoria da “homologia direta”

2.3 A solidão de nosso romance histórico.

Neste presente item analisaremos as particularidades do romance histórico tal como foi
inicialmente estudado por Lukács em sua obra, já clássica, O Romance Histórico (2011),
compreendemos que o ponto chave dessa análise de Lukács e que irá nos esclarecer sobre alguns
pontos em nossa tese se encontra na nova forma como o romance histórico articula a estrutura da
forma literária com uma nova concepção da História que emerge com as revoluções burguesas, em
78
especial, a Revolução Francesa. Consequentemente, respeitando as mediações existentes entre as
transformações e o processo de criação artística, surgem significativas transformações do romance,
como demonstraremos mais adiante. Portanto buscamos, dessa forma, compreender à natureza dessa
forma romanesca para que posteriormente adentremos na análise do realismo mágico latino-
americano, bem como, analisaremos as possíveis relações entre a narrativa romanesca histórica e o
realismo mágico.
Então, tentaremos compreender de que forma o romance histórico se objetiva em uma
realidade histórica de que se difere muito da realidade europeia dos séculos XVIII, XIX, em especial,
pela heterogeneidade de nossa realidade cultural, pelo caráter subordinado de nossa realidade
econômica e pelo distanciamento temporal entre essas duas realidades históricas.
Partiremos da análise lukacsiana por se tratar de uma obra clássica, pois como afirma
Anderson, “Qualquer reflexão sobre a estranha trajetória dessa forma deve partir de Lukács, não
importa o quanto se afaste dele em seguida” (Anderson, 2007, p.205). A importância deste ponto de
partida analítico reside no fato de Lukács buscar através da gênese do romance histórico, mediado pelo
seu procedimento metodológico genético55, que o possibilita dele analisar a relação entre a História e
as categorias estéticas, sua gênese histórica e suas características singulares. Mais precisamente as
vicissitudes históricas pós-revolução Francesa e guerras napoleônicas que possibilitaram a emergência
de uma nova concepção de História e de uma nova concepção de tempo, figuradas nos romances
históricos.
Para Lukács (2011) o romance histórico emergiu no início do século XIX, mais precisamente,
após a queda de Napoleão, em 1814, Lukács aponta para essa especificidade histórica: “O que falta ao
pretenso romance histórico anterior ao de Walter Scott é o elemento especificamente histórico: o fato
de a particularidade dos homens ativos derivar da especificar histórica de seu tempo”. O romance
histórico clássico foi influenciado, segundo Lukács (2011), pelos grandes romances sociais realistas do
século XVIII, nestes romances a figuração artística dos costumes da época e da construção do modo de
pensar produziram uma abertura muito importante para a figuração da realidade, porém o autor
argumenta que nessas obras o presente histórico era representado apenas como um “ente”, como uma
realidade já acabada, não havia uma figuração do devir histórico, que permitisse compreender de que
forma o desenvolvimento histórico desembocou em uma singular realidade social. Salienta-se que o
propósito de Lukács é o de justamente apontar para o fato de que com a emergência do romance
histórico a figuração literária passa a representar uma complexa dialética entre passado e presente,
nesse sentido o passado é entendido como a pré-história do presente e, consequentemente, figura-se o
vir a ser do presente histórico.

55 Para uma discussão mais detalhada sobre este método ver o capítulo O Trabalho em sua Para uma Ontologia do Ser
Social (2013), ou o esclarecedor artigo de Nicolas Tertulian, Sobre o Método Ontológio-Genético em Filosofia (2010).
79
Para tanto, Lukács busca em sua análise histórica, a partir do Iluminismo e da Revolução
Francesa, apontar o solo histórico-social que possibilitou a gênese desse tipo de romance. Para o autor
a historiografia iluminista teria sido uma preparação do ponto de vista ideológico da própria Revolução
Francesa.
Consequentemente, a apreensão da história concreta enquanto construção exclusivamente
humana emerge com muita força na Inglaterra. Então, foi esta especificidade histórica que possibilitou
ao romance social inglês do século XVIII ser uma espécie de protoforma do romance histórico. Teria
sido esta singularidade histórica que fez com que o romancista olhasse para a realidade buscando
apreender sua significação concreta no espaço e no tempo, do devir das condições sociais, criando o
meio expressivo literário realista para que houvesse uma figuração dessa especificidade espaço-
temporal dos homens e da realidade social.
Porém, foi só na última fase do Iluminismo que a problemática do espelhamento artístico de
períodos históricos passados aparece como uma questão central da literatura. Para o autor foi na
Alemanha daquele período que essa nova forma de figuração artística da realidade se torna um
procedimento artístico consciente. Isso se deve à própria especificidade do desenvolvimento do
capitalismo na Alemanha. Segundo Lukács (2011),

Essa ascensão consciente do historicismo, que encontra sua primeira expressão teórica nos
escritos de Herder, tem suas raízes na situação particular da Alemanha, na discrepância entre o
atraso econômico e político do país e a ideologia dos iluministas alemães, que, apoiando-se em
seus predecessores ingleses e franceses, levaram as ideias do Iluminismo a um patamar mais
elevado. (Lukács, 2011, p.37).

Desse particularismo alemão resultou em uma consciente volta à história alemã. O discurso
ideológico de renascimento nacional extraindo parte de sua força dessa reconstrução da grandeza
nacional passada da Alemanha. Para compreender essa retomada da grandeza nacional alemã é
necessário apreender quais as causas do seu declínio, tal como aparece figuradas artisticamente. Por
isso, nela houve uma historização no campo artístico antes e de forma muito mais forte do que em
outros países europeus, como a França e a Inglaterra. Lukács (2011) exemplifica esse desenvolvimento
nas memórias juvenis de Heine em sua obra O livro de Le Grand, relato que em se figura a forma como
as rápidas mudanças sociais afetaram o menino Heine.
Já no que se refere ao romance histórico propriamente dito a Revolução Francesa, as guerras
revolucionárias e as guerras empreendidas por Napoleão Bonaparte propiciaram que a História fosse
vivenciada como uma experiência de massa. Essa nova forma de se experienciar a História tem seu
fundamento das inúmeras revoluções sociais que marcaram a período histórico de 1789 a 1814 e, por
conta dessa velocidade das transformações sociais houve uma mudança qualitativa na forma com a
História era percebida e vivenciada pelo conjunto da sociedade. A impressão que as massas tinham de
80
que as transformações sociais eram tão somente acontecimentos naturais, elas passam a ser percebidas
como consequência de contradições eminentemente sociais, portanto históricas e, assim são
consequência das ações dos homens. Com todos esses fatos históricos a experiência particular de cada
povo vem a se relacionar com uma história universal, pois as guerras napoleônicas atingiram grande
parte do continente europeu, assim Lukács aponta para o fato de que as sucessivas transformações
sociais fizeram com que se entendesse que o processo histórico é um processo de constantes
transformações que impactam profundamente a vida cotidiana de cada indivíduo.
Essa mudança na forma como as massas passaram a vivenciar o processo histórico vincula-
se, na análise de Lukács, em como as sucessivas guerras ocorridas na Europa tiveram como resultado o
próprio alçar destas ao processo histórico, ou seja, a necessidade de se recrutar um contingente muito
grande de indivíduos para essas guerras ocasionou uma participação direta de amplos contingentes
populacionais nas transformações históricas.

Isso muda de um só golpe com a Revolução Francesa. Em sua guerra defensiva contra a
coalizão das monarquias absolutas, a República Francesa foi forçada a criar exércitos de massa.
No entanto, a diferença entre os exércitos mercenários e os de massa é qualitativa e diz respeito
precisamente à relação estabelecida com a massa da população. Se se trata de formar um
exército de massas, em vez de recrutar pequenos contingentes de marginais para o serviço
militar ou forçá-los a servir, então o conteúdo e a finalidade da guerra têm de ser expostos à
população de maneira clara, na forma de propaganda […]. Essa propaganda, no entanto, não
pode limitar-se a uma única guerra isolada. Ela tem de revelar o conteúdo social, os
pressupostos históricos e as circunstâncias da luta, estabelecer a conexão da guerra com a vida
em sua totalidade e com as possibilidades de desenvolvimento da nação. (Lukács, 2011,
pgs.38-39).

Com a Revolução Francesa, as guerras napoleônicas e o período da Restauração houve uma


acirrada disputa ideológica entre os ideólogos da Restauração e os defensores das conquistas das
revoluções burguesas. Dessa forma, Lukács (2011) argumenta que como consequência desta luta
aqueles que se encontravam ao lado da classe burguesa tiveram que defender a ideia de progresso que
superasse a visão de mundo iluminista, trata-se de um momento posterior no desenvolvimento do
capitalismo, mais precisamente no período histórico após a queda de Napoleão e a tentativa de
Restauração mediada pela Santa Aliança, houve para o autor uma suprassunção do conceito de
progresso, há uma superação de uma interpretação demasiada abstrata da filosofia iluminista em
direção a uma compreensão mais concreta do processo histórico.
A nova visão de mundo que emerge dessas lutas sociais supera a ideia de progresso iluminista,
da luta a-histórica entre a razão iluminista e a razão feudal, indo em direção à ideia de que o progresso
humano é o resultado de conflitos sociais que se desenvolvem na própria história. O ponto central que
o autor nos chama a atenção é a de que surge pela primeira vez a tentativa de apreender-se de forma
racional e científica a especificidade da história e o devir do presente.
Esta nova visão de mundo encontra seu cume com a filosofia de Hegel, pois a filosofia
81
hegeliana consegue desenvolver de forma original o historicismo progressista que emergiu desse
período histórico. Hegel enxerga que o homem é produto de si mesmo, de sua própria ação na história,
nesse sentido apesar de ser um filósofo idealista entendemos que há momentos no itinerário intelectual
do referido filósofo em que existe uma tensão entre o idealismo e uma análise materialista em especial
quando este analisa a centralidade do trabalho na autoformação do homem e na formação da
consciência de si. Ele em sua Fenomenologia do Espírito (1992) afirma “O verdadeiro ser do homem é
a sua operação: nela, a individualidade é efetiva” (Hegel, 1992, v.1, pg. 267), através do trabalho Hegel
argumenta que pela mediação dele se forma a consciência individual e social se desenvolvendo
também a dimensão pública e universal do ser humano, desse centralidade do trabalho para o processo
de autoformação do homem Hegel afirma: “o homem que é racional em si (em potência), deve realizar
a produção de si pelo trabalho, pela objetivação que o leva a sair de si, de modo que pode tornar-se
plenamente real (para si) (Hegel, 1996, §57, pg.60)56.
Com as lutas sociais e ideológicas surgem uma nova espécie de humanismo e um novo
entendimento sobre o conceito de progresso. Esse novo tipo de humanismo buscar preservar as
conquistas da Revolução Francesa enquanto fundamento do desenvolvimento futuro da humanidade,
assim como concebe os processos revolucionários como algo indispensável para o desenvolvimento do
homem. Esta concepção de história e de progresso caracterizava-se por analisar e compreender todas as
contradições do presente, não se furtando a tecer severas críticas às novas desumanidades que surgiram
com a moderna sociedade burguesa. Devemos chamar a atenção para o conceito de progresso histórico,
pois quando adentrarmos na análise dos romances de Gabo uma das mudanças que percebemos nestes
romances é a relativização dessa perspectiva que encara o processo histórico enquanto um progresso
em direção a uma emancipação humana.

A ideia de progresso que caracterizava os primeiros romances históricos vinculavam-se ao


ambiente histórico e social do século XIX, pois tratava-se da figuração de uma época histórica na qual
o capitalismo emergia como um modo de produção predominante em contraposição ao feudalismo,
dessa forma, ideologicamente os escritores buscaram representar a caducidade do feudalismo e
simultaneamente o caráter superior do capitalismo, daí nasce a importância do conceito de progresso
nos primórdios do romance histórico. Por outro lado, no decorrer do tempo histórico e do
desenvolvimento do capitalismo e todas as suas mazelas, a exploração do continente latino-americano
pelos europeus, o progresso material e espiritual não se efetivaram, ao contrário em espaços periféricos
como nosso continente o que se efetivou foram os saques, a violência dos povos autóctones e dos
negros que aqui foram escravizados. Compreende-se assim o arrefecimento da figuração do progresso
nessa obra de Gabo, ou melhor uma forma bem particular de se figurar o progresso tem-se nessa obra

56 Para uma análise mais detalhada sobre o papel do trabalho no pensamento de Hegel ver Jesus Ranieri, Trabalho e
Dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir.
82
de Gabo, apontando todas as contraditoriedades que o progresso adquiriu ao longo do tempo com seus
aspectos positivos e negativos. Uma discussão mais detalhada sobre esse conceito será realizado mais
adiante.
Para Lukács foi nesse solo histórico que emergiu, através da obra do inglês Walter Scott,
(1771-1832) o romance histórico. E, para Balzac, Scott teria introduzido no romance algumas
determinações novas, como por exemplo, o retrato dos costumes e das circunstâncias das situações
sociais, a natureza dramática da ação e o novo papel do diálogo no romance. Segundo o autor a
importância da figuração romanesca de Scott reside também no fato de que ele sempre procurar o
caminho do “meio” entre os extremos e busca representar as grandes crises da história inglesa.
Segundo Lukács,

Ele se esforça para figurar as lutas e as oposições da história por meio de homens que, em sua
psicologia e em seu destino, permanecem sempre como representantes de correntes sociais e
potências históricas. Scott estende esse modo de conceber aos processos de marginalização;
considera-a sempre em sentido social, e não individual. Seu entendimento de problema do
presente não é profundo o suficiente para resolver essa questão dos processos de
marginalização. Por isso, ele se desvia da temática e conserva, em sua figuração, a grande
objetividade histórica do épico legítimo (Lukács, 2011, p.50).

Do ponto de vista da composição, Scott levou ao centro de sua figuração literária o herói
mediano e esse tipo de herói na verdade condensa em si esse ponto médio entre os extremos sociais,
são os representantes da “classe média” inglesa. Dessa forma, o personagem central teria como função
narrativa o de ser o centro ao redor do qual os acontecimentos históricos se desdobram, pois o herói da
epopeia seria a própria vida e não os homens, que estariam submetidos aos acontecimentos históricos.

Os heróis scottianos têm, como personagens centrais do romance, uma função oposta. Sua
tarefa é mediar os extremos cuja luta ocupa o romance e pela qual é expressa ficcionalmente
uma grande crise da sociedade. Por meio da trama, que tem esse herói como ponto central,
procura-se e encontra-se um solo neutro o qual forças sociais opostas possam estabelecer uma
relação humana entre si (Lukács, 2011, p.53).

Para Lukács o diálogo no romance histórico expõe duas concepções de mundo conflituosas,
apresentando uma significativa relação com a figuração objetiva da realidade pois essas concepções de
mundo conflitantes são a figuração literária desses dois grupos sociais que se encontram em confronto.
No romance histórico clássico, nos referimos em especial a Walter Scott, Alessandro Monzoni
e, posteriormente, Honoré de Balzac, não é objetivo de figuração por parte do romancista representar o
relato contínuo e exaustivo de todos os acontecimentos históricos e sim a forma como ocorre o
despertar dos homens que o protagonizavam, em outras palavras, como de forma necessária ocorreu
essa determinação entra as condições sociais em transformação e o comportamento dos indivíduos
sociais. Dessa forma, o romance histórico pretenderia demonstrar a realidade histórica a partir da forma

83
artística, o “ser-precisamente-assim” que liga as circunstâncias históricas ao comportamento dos
personagens figurados. A “pergunta” que o romance histórico responde é a de que maneira os grandes
acontecimentos históricos influenciam e determinam os comportamentos dos personagens medianos da
obra.
Portanto, Lukács aponta que a grande força da obra de Scott teria sido a capacidade de
representar as situações sociais singulares e históricas como grandes convulsões populares. Ele parte
sempre da representação de como atritos históricos influenciam diretamente a vida cotidiana do povo,
quais transformações do ponto de vista psicológico e materiais provocam na vida cotidiana da
população em geral. O autor salienta que a principal tendência na figuração artística de Scott se
encontra na concepção da História enquanto progresso. E, nesse ponto em específico veremos mais
adiante que a concepção da História como progresso vai gradativamente sendo criticada no romance
histórico moderno, pois lembramos que Scott vivenciou a fase ascendente do capitalismo, além disso, a
vivenciou em um país central do capitalismo em um período histórico de ascensão do capitalismo.
O autor observa que para que haja uma figuração objetiva do processo histórico dentro dessa
modalidade romanesca é necessário que o romancista aproxime o passado figurado dos problemas
postos pelo presente, em outras palavras, o passado representado deve ser figurado de forma orgânica
para que o presente histórico seja entendido como sendo uma consequência direta dos eventos
ocorridos, ou seja, haveria uma necessidade de um distanciamento temporal na figuração do romance
histórico. Assim, o processo de figuração épica consistiria na produção de um processo de
revivificação do passado como sendo a pré-história do presente. Estamos diante do conceito de
necessidade histórica que para Lukács é um processo complexo de inter-relações sociais concretas em
um ininterrupto processo de transformação social, de uma relação dialética entre os processos sociais e
o comportamento dos indivíduos sociais emergindo, consequentemente, um movimento de retroação
desses indivíduos sobre essas determinações sociais, “de acordo com suas paixões pessoais” (Lukács,
2011, p.79). Além disso, essa necessidade histórica sempre aparece como o resultado de um processo e
nunca como sendo algo pressuposto.

É óbvio que isso não significa que as personagens de Walter Scott não reflitam sobre seus
objetivos e tarefas. Mas essas reflexões são de homens ativos, em circunstâncias concretas. E a
atmosfera da necessidade histórica surge precisamente dessa dialética muito sutil entre a
potência e a impotência do discernimento em circunstâncias históricas concretas (Lukács, 2011,
p.70).

Dessa relação, entre passado e presente, o autor aponta para a correta fundamentação estético-
conceitual hegeliana, segundo ele, Hegel fala de um “anacronismo necessário na arte”. O sentido
desse conceito reside no fato de que “A substância interna do representado permanece a mesma, mas a
forma desenvolvida na representação e no desdobramento dessa substância necessita sofrer uma

84
transformação para sua expressão e figuração” (Hegel apud Lukács, 2011, p.82). Então, o significado
desse anacronismo necessário é o de figurar artisticamente os acontecimentos ocorridos no passado de
tal forma que as tendências que operaram objetivamente e que não haviam sido reconhecidas no
passado apareçam com a importância que tiveram para o desenvolvimento do presente.
Posteriormente, o autor analisa a especificidade do romance histórico em contraposição ao
drama histórico. Lukács afirma que tanto a tragédia, que se vincula ao drama, quanto a forma épica
relacionada ao romance, objetivam figurar a totalidade dos processos sociais vitais. Este é o ponto de
convergência entre as duas formas artísticas. Mas qual o ponto nodal em que essas duas manifestações
literárias se afastam? Para responder a essa pergunta Lukács vai buscar na estética hegeliana a sua
resposta.
Dessa forma, através de Hegel, o autor, argumenta que fundamentalmente a diferença entre a
figuração no drama e na épica reside na diferenciação entre a necessidade de representação da
“totalidade do movimento”, típico do drama, e a “totalidade dos objetos”, essa última característica
das formas épica, portanto, também do romance. Dessa forma, a figuração da totalidade dos objetos
não significa a construção estética exaustiva do mundo objetivo nem tampouco a representação de um
mundo objetivo ou dos objetos de forma autônoma em relação ao comportamento dos indivíduos, pelo
contrário a totalidade dos objetos é justamente a forma pala qual se encontra representada a mútua
dependência entre o mundo objetivo, a natureza, as instituições sociais, o direito, a moral a
comportamento dos indivíduos.
A profundidade dessa definição de Hegel, para Lukács, reside justamente nesta correlação,
pois esse tipo de totalização que caracteriza a grande forma épica reside na figuração do grau de
desenvolvimento de um determinado período histórico, para a qual é imprescindível recompor “as
bases que a cercam e o ambiente material que forma o objeto de sua atividade” (Lukács, 2011, p.120”).

Assim, em sua dependência da atividade do homem, em relação permanente com a atividade


humana, os objetos tornam-se não apenas importantes e significativos, mas alcançam sua
autonomia artística como objetos de figuração. A exigência de que a grande épica tenha de
figurar a “totalidade dos objetos” significa fundamentalmente a exigência de uma sociedade
humana tal como ela se produz e reproduz em seu processo de vida cotidiano (Lukács, 2011,
p.120).

Portanto, o processo de figuração da “totalidade dos objetos” que caracteriza a grande épica
busca não só representar artisticamente as relações entre os homens, mas, além disso, tem como
objetivo figurar essas relações com as coisas e as instituições humanas, pois, apenas através dessas
mediações é que se efetivam as relações dos homens entre si e com a natureza, pensemos, por exemplo,
na mudança extraordinária ocorrida em Macondo quando algumas instituições sociais como a igreja e
as forças repressivas do Estado se estabelecem em Macondo daí em diante há mudanças fundamentais
no comportamento dos personagens pois daquele momento em diante se desenvolve na cidade a
85
rivalidade entre os partidos liberais e conservadores.
Por outro lado, essa necessidade de figuração impõe ao romancista a escolha de determinados
objetos, estes não podem ocorrer de forma arbitrária, orientando-se pela necessidade de relacionar os
momentos da realidade com a ação romanesca e, por outro, lado, Lukács aponta que essa necessidade
artística também não se confunde com a representação exaustiva dos objetos feita de forma
enciclopédica, como, por exemplo, na prosa naturalista de Zola. Segundo Lukács,

A “totalidade dos objetos”, portanto, não é uma justaposição pedante de elementos isolados de
um suposto “meio”, mas nasce – a partir de uma necessidade do próprio relato – da
representação de destinos humanos, na qual as determinações típicas de um problema social se
expressam com base em uma ação. Como imagem da realidade social, do desenvolvimento da
sociedade, a ação do romance é dominada pela necessidade (Lukács, 2009, p.211).

Do lado oposto, no grande drama, a totalidade figurada concentra-se no ponto firme que se
vincula ao conflito dramático “É um retrato artístico do sistema – se é que podemos dizer assim –
daquelas aspirações humanas que, lutando uma com as outras participam desses conflitos” (Lukács,
2011, p. 120), para deixar mais inteligível essa afirmação devemos ressalvar que a épica se caracteriza
pela figuração extensiva da realidade empírica, extensividade significa, nesse caso, amplitude, o
drama, pelo contrário, tem seu móvel na forma como um determinado conflito é representado de forma
intensiva, assim tudo aquilo que não se vincula direta ou indiretamente ao conflito é desnecessário na
figuração dramática. Então, no grande drama há uma figuração de um determinado conflito em que é
agrupada todas as situações vitais ao redor de tal conflito e fazendo- se com os personagens vivam
apenas em relação a este conflito; dessa forma, Lukács afirma que existiria uma espécie de
simplificação das possíveis tomadas de partido dos homens em relação aos seus problemas vitais.

A figuração é reduzida à representação típica dos posicionamentos mais importantes e


característicos dos homens, àquilo que é indispensável para a configuração dinâmica e ativa do
conflito, portanto àqueles movimentos morais e psicológicos nos homens que provocam o
conflito e sua resolução. Toda personagem, todo traço psicológico de uma personagem que
ultrapasse a necessidade dialética desse contexto e a dinâmica viva do conflito tem de ser
superficial do ponto de vista do drama. (Lukács, 2011, p.122).

É neste sentido que se aclara a diferença entre o drama e o romance, pois se o primeiro tem
como objeto a essência da vida, logra realizar uma espécie de economia no processo de figuração da
realidade empírica e, do lado oposto, o romance justamente opera na figuração da extensividade da
vida. Dessa nossa análise sobre a épica e o drama e suas diferenças essenciais, o importante a ser
ressaltado é a maneira como a forma romanesca busca figurar extensivamente a realidade histórica-
social da qual o romancista se encontra inserido.

86
Capítulo 3. A Odisseia de nosso continente: uma análise de Cem Anos de
Solidão.

Esse capítulo, composto por três itens, será dedicado a análise empírica da obra Cem Anos de
Solidão. Dividiremos em três partes esse capítulo. Na primeira do capítulo analisaremos as
peculiaridades, a atmosfera mágica da cidade de Macondo e sua importância no universo romanesco de
Gabo e a importância do personagem Melquíades para a estrutura da obra. Em um segundo momento
buscamos realizar uma análise minuciosa das representações do tempo dentro desse obra romanesca.
De como Gabo produziu novas formas de representação do tempo que ultrapassaram a mera
representação do tempo de forma linear. E na terceira parte analisaremos a maneira como Gabo
representa dois eventos históricos de suma importância na história da Colômbia, a Guerra dos Mil Dias
e o massacre da companhia bananeira. Apontando, dessa forma, as metamorfoses do romance
histórico.
O romance Cem Anos de Solidão de Gabo teve sua primeira edição publicada no ano de 1967,
conforme já afirmamos, e narra a história da família Buendía durante cem anos. A narrativa inicia-se
com a fundação da cidade fictícia de Macondo, descreve seu apogeu e encerra-se no momento em que
esta é varrida da face da Terra. Nesse diapasão histórico, Gabo representa vários momentos da história
da Colômbia e da América Latina, de modo metafórico acompanhamos um processo similar ao da
história de nosso continente: o ato inicial de colonização dos espanhóis e portugueses; o período
colonial; a luta pela independência das colônias em relação às metrópoles; as guerras entre liberais e
conservadores; a Guerra dos Mil Dias e, por fim, a relação de dependência econômica entre os países
da América Latina e os EUA.

3.1 A magia de Melquíades e Macondo.

Ao lermos de modo atento e com fins analíticos o livro Cem Anos de Solidão, percebemos
uma semelhança com a realidade de toda a América Latina em seus traços mais essenciais.Mas ao
mesmo tempo nos impõe muitos obstáculos para a análise da obra, consequência, por exemplo, das
repetições de nomes dos personagens, da forma peculiar de figurar tempo, e a relação entre magia e
realismo. Todos esses elementos que emprega certa dificuldade na leitura da obra são fruto da
inventividade do autor, que foi capaz de representar, de modo mágico, acontecimentos históricos da
realidade colombiana elevando-os à condição e a símbolo da realidade da América Latina, construindo,
assim uma obra de grande complexidade. Dada a complexidade do romance seria pretensioso, de nossa
parte, oferecer qualquer análise a título definitivo, pois, várias são as possibilidades de interpretação

87
dela. Restringimo-nos, portanto, a oferecer uma análise a partir de uma perspectiva da sociologia da
literatura, ancorada no marxismo focando a homologia entre a criatividade do escritor e a realidade
figurada.
Quando se analisa o romance Cem Anos de Solidão nos deparamos de imediato com uma
característica bastante singular da obra: a da importância central da cidade fictícia de Macondo em
toda a narrativa. Talvez apenas outra cidade fictícia tenha tamanha fama e importância na história da
literatura mundial, nos referimos à cidade de Combray imortalizada na clássica obra do francês Marcel
Proust, na obra Em Busca do Tempo Perdido. Combray adquiriu uma fama tão grande que a cidade de
Illiers, a cidade que serviu de inspiração para Combray e que Proust passava suas férias em sua
infância, passou a ser oficialmente denominada Illiers-Combray em de 8 de Abril de 1971, ano do
centenário de nascimento do escritor francês.
Situação parecida ocorreu com a cidade natal de Gabo e que serviu de inspiração a construção
de Macondo: Aracataca, que se situa na península de La Guajira na costa caribenha da Colômbia. O
então prefeito da cidade Pedro Sánchez Rueda em 25 de Junho de 2006 resolveu realizar um plebiscito
visando alterar o nome da cidade de Aracataca para Aracataca-Macondo. O intuito do prefeito era o de
aumentar o fluxo turístico da cidade, caso fosse aprovada a mudança do nome de Aracataca, mas
distinto do ocorrido na França e talvez mais adequado ao pensamento mágico, não foi aprovado o
projeto por conta da alta abstenção, houve apenas 3600 votos quando era necessário alcançar os 7400.
Assim, Macondo continua apenas como cidade imaginária.. Acerca disso, Vieira (2012) afirma,

Na véspera da votação, ao perceber que sua ideia não estava agradando, Pedro Sánchez Rueda
subiu no teto de um Dogde Dart repleto de alto-falantes e fez ele mesmo propaganda de sua
“causa”. Não adiantou, a proposta perdeu por abstenção. O referendo atingiu apenas 3.600
votos do 7.400 necessários para aprovação do novo nome. No entanto, apesar da empreitada
fracassada, uma faixa dizendo “Bienvenido a Aracataca-Macodo, tierra del realismo mágico”
ainda tremula na estrada à vista dos visitantes que vão chegando à cidade (Vieira, 2012, pg.
255).

Nesse sentido, a narrativa romanesca de Gabo consegue transcender o universo literário e


passa a fazer parte de um imaginário popular que tende a identificar Aracataca com a cidade fictícia de
Macondo. Ao realizar uma viagem à Europa o referido prefeito algumas vezes foi interpelado por
europeus se realmente Aracataca era mesmo Macondo ou não. Então, se Aracataca serviu de matéria-
prima para a construção estética de Macondo agora é esta última que faz com que os leitores dessa obra
lançarem um olhar sobre Aracataca despertando curiosidade sobre a cidade sem muito expressão
política da costa caribenha colombiana.
No texto de Lucena (2009) a autora aponta que a escolha da palavra Macondo para designar a
cidade teria relação com a figura de um “duende milenar” que acompanhou Gabo desde a sua infância.
Seria também o nome de uma fazenda bananeira localizada em Aracataca administrada por um amigo
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da família de Gabo, além do fato de que seria também o nome de “uma árvore, um jogo de azar e um
povoado chamado Pivijay” (Lucena, 2009, pg.184). A autora ainda afirma,

Em Viver para contar, livro de memórias de Garcia Márquez, ele afirma que gostou da palavra
macondo por sua “ressonância poética” (GARCIA MÁRQUEZ, 2007, p.23). Somente muito
tempo depois de utilizá-las em suas obras descobriu os significados que tinha. Mas a criação de
um território imaginário tem origem em um conselho de dom Ramón Vinyes, mestre do
escritor na época de Barranquilha e inspiração para o personagem do sábio catalão. Depois de
ler o rascunho que Garcia Márquez estava escrevendo recomendou “que a cidade do romance
não se chamasse Barranquilha, como eu tinha decidido no rascunho, porque era um nome tão
condicionado pela realidade que deixaria para o leitor pouco espaço para sonhar” (GARCIA
MÁRQUEZ, 2007, p. 114). (Lucena, 2007, pg. 185).

Pois bem, parece-nos que Gabo aponta para o século XIX como o período histórico no qual
José Arcádio Buendía, Úrsula Iguarán e mais alguns amigos empreenderam a travessia da serra que
teria como resultado a fundação de Macondo, “à terra que ninguém havia prometido” (Gabo, 2012,
pg.65). É através de dois trechos dessa narrativa que ficamos sabendo que a fundação de Macondo
ocorre, provavelmente neste século,

Quando o pirata Francis Drake assaltou Riohaca, no século XVI a bisavó de Úrsula Iguarán se
assustou tanto como o ressoar do sinal de alarme e o estampido dos canhões que perdeu o
controle dos nervos e sentou-se no chão acesso. As queimaduras a deixaram transformada em
uma esposa inútil para o resto da vida (Gabo, 2012, pg.61).

Mais adiante Gabo afirma,

Na aldeia escondida vivia desde muito tempo um filho de imigrantes espanhóis que cultivavam
tabaco, dom José Arcádio Buendía, com quem o bisavô de Úrsula estabeleceu uma sociedade
tão produtiva que em poucos anos fizeram fortuna. Vários séculos mais tarde, o tataraneto do
filho de imigrantes espanhóis casou-se com a tataraneta do aragonês. Por isso, cada vez que
Úrsula saia dos eixos com as loucuras do marido, saltava por cima de trezentos anos de
coincidência e amaldiçoava a hora em que Francis Drake assaltou Riohaca (Ibidem, 2012,
pg.61).

A narração da gênese da cidade de Macondo e a escolha do século XIX como o período


histórico no qual se deu a construção desta cidade, apresenta três significados distintos dentro nesta
obra romanesca. O primeiro, reside em uma lógica que remete a questões mitológicas, pois se refere
ao surgimento e povoamento de um determinado espaço geográfico, como fica evidente nessa
passagem do romance,
[…] Macondo era então uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídas
na beira de um rio de águas diáfanas que precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e
enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de
nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo […] (Ibidem, 2012, pg. 43).

As duas outras interpretações possíveis vinculam-se a inserção da América Latina à


modernidade capitalista. Podemos afirmar que além dessa dimensão mítica, de fundação que se

89
encontra no processo de construção da cidade de Macondo há também um elemento secular, pois como
já afirmamos no capítulo precedente a História da América Latina vincula-se a uma universalidade
histórica, pois foi apenas no período colonial que a América Latina inseriu-se na lógica reprodutiva do
capitalismo. Nesse sentido, a superação do isolamento geográfico de nosso continente apenas foi
possível com a sua conquista pelos colonizadores europeus.
Já a terceira interpretação relaciona-se ao fato de que foi no século XIX que várias nações da
América Latina conseguiram a sua independência do julgo espanhol e português, possibilitando a
construção de uma nova história sem julgo da sujeição colonial. Dessa forma, compreendemos que a
construção literária do surgimento de Macondo pode ser apreendida a partir destes três sentidos, um
mítico/religioso, e os outros dois ligados aos processos seculares fomentados pelo desenvolvimento e
expansão do capitalismo.
Por essa razão, segundo Vieira (2012), argumenta há uma espécie de bifurcação na
interpretação de Cem Anos de Solidão, de um lado existe uma tendência a interpretar esta obra como
tendo uma relação direta e indireta com temas bíblicos, em especial com o Antigo Testamento e, outra
vertente que aponta a obra como sendo uma intricada representação estética na qual há uma profícua
relação entre a História da Colômbia e da América Latina e o texto literário. Segundo Figueroa apud
Vieira (2012) a construção de Macondo vincula-se diretamente ao mito de fundação do paraíso na Terra
preconizado pelo texto bíblico. O autor esclarece mais adiante a lógica dessa interpretação,

Ainda segundo Figueroa, é possível estabelecer uma conexão direta e indireta de Cien años de
soledad com a Bíblia e a mitologia do Antigo Testamento. A narrativa bíblica proporciona
elementos básicos para a estruturação do romance e engendra um marco sugestivo em que o
leitor, formado na tradição judaico-cristã, reconhece história a anjos e demônios, às profecias,
ao dilúvio universal etc. Além disso, abundam fórmulas de linguagem que recriam a forma do
texto bíblico: “A imagen y semejanza”, “por los silgos de los siglos”, “infundió un soplo de
vida”,“fue concebido y dado a luz” ou “o arrasar a Macondo de la faz de la tierra”. Podemos
afirmar que a Bíblia funciona como uma espécie de “intertexto” que organiza arquetipicamente
o material narrativo: gênesis, êxodo, pecado original, castigos e profecias, apocalipse e juízo
final (Vieira, 2012, pg.245).

Por outro lado, Rodrigues apud Vieira (2012) tece uma interpretação secularizada dessa obra
de Gabo e da fundação de Macondo, para elatrata-se de uma grande metáfora de nosso continente, d
uma busca da construção identitária latino-americana através da mediação dos processos históricos que
este continente experimentou com o advento da modernidade capitalista. Trata-se de uma espécie de
acerto de contas com todo o processo histórico pela qual a América Latina passou. Pois, como já
afirmou Walter Benjamin (2007) “[…] Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo
tempo, um documento da barbárie” (Benjamin, 2007, pg.70), mesmo que seja uma barbárie matizada
com elementos mágicos. Dessa maneira, a interpretação de Rodrigues apud Vieira (2012) aponta nesse
sentido,

90
Selma Calasans Rodrigues possui uma interpretação bastante interessante com relação à
fundação de Macondo. Interpretando a construção do romance como uma grande metáfora da
história hispano-americano, a autora afirma que o gesto de fundação do pequeno povoado,
assim como a necessidade de deixar o passado para trás, diz muito sobre a construção da
identidade no continente. Apoiada em Leopoldo Zea – Dialéctica de la conciencia americana
(1960) –, a autora afirma que o ibero-americano é o mais vocacionado dos americanos a uma
eliminação do passado, vivendo um presente que aspira a ser distinto. Zea afirma que o ibero-
americano vê em seu passado a impossibilidade de um futuro, de um “vir-a-ser”. Trata-se de
sentir o passado como um obstáculo a transpor: a violência da colonização, a depredação dos
grandes impérios inca, maia e asteca, em especial, são os móveis desse sentimento, na origem.
Enquanto o americano do norte, orgulhoso de seu passado de peregrino que buscou a liberdade
em terras novas, fazia desse um instrumento do futuro, assimilando-o, o ibero, ao contrário,
tinha que enfrentar esse passado, destruindo-o, por considerá-lo a causa da impossibilidade de
construir o seu novo ser. Daí o filósofo mexicano acentuar o traço do ibero-americano do ser
inacabado, que se caracteriza sobretudo por aquilo que quer chegar a ser, negando um passado
para buscar algo distinto e vivendo sempre à espera desse algo (Vieira, 2012, pg. 265).

Da confrontação dessas duas vertentes interpretativas compreendemos que na obra de Gabo há


uma subversão do discurso mítico/religioso que se aproxima de um sentido paródico. Além de
Macondo não ser a Terra prometida como Gabo assinala na narrativa, Rodrigues apud Vieira (2012)
aponta para algumas inversões do discurso mítico que ocorrem na obra Cem Anos de Solidão como,
por exemplo, a fundação de Macondo é antecedida pelo pecado original, talvez por dois pecados, o
incesto fruto da relação entre José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán e o assassinato de Prudência
Aguilar, cometido por José Arcádio Buendía. Segundo Vieira (2012, pg.265) “A narrativa se estrutura
a partir daí, pelas “pragas” e só perto do final tem-se o “dilúvio”, seguido do “apocalipse”, ocorrendo
dessa forma uma inversão da ordem do discurso bíblico.
Mesmo atentando para essa interpretação que advoga a existência de uma temporalidade
mítica/religiosa nessa obra de Gabo, a exemplo de Figueroa (1998) e de Julio Ortega (1992),
reiteramos o caráter paródico existente nesse romance e mais adiante ao analisarmos a forma como o
tempo é figurado esteticamente realizaremos uma análise crítica mais detalhada dessa tese.
Por hora é importante salientar que o processo de construção e os primeiros anos de
desenvolvimento de Macondo são marcados por uma atmosfera fundada na igualdade social, na
juventude de seus habitantes e na ausência da experiência da morte. Trata-se de uma visão utópica, que
se encontra vinculada ao caráter recente da constituição da cidade de Macondo, Gabo evidencia isso
nessa passagem,

José Arcádio Buendía, que era o homem mais empreendedor que a aldeia conheceu e jamais
veria outro igual, havia disposto de tal modo a posição das casas que de todas elas era possível
chegar ao rio e abastecer-se de água com o mesmo esforço, e traçou as ruas com tanta sabedoria
que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Em poucos anos, Macondo foi
a aldeia mais arrumada e laboriosa que qualquer outra que seus 300 habitantes tivessem
conhecido. Era de verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde
ninguém tinha morrido (Márquez, 2012, pg.41).

91
A fundação de Macondo é marcada pelo signo da igualdade social. Nos primórdios do
desenvolvimento da aldeia não se encontra classes sociais distintas, nem mesmo nenhuma escala de
estratificação social, assim, ressaltavam-se relações sociais nas quais prevaleciam a harmonia social e a
cooperação. Soma-se a isso o fato de que Macondo durante um significativo período da narrativa era
uma aldeia isolada do restante do mundo e essas características só irão se alterar de forma significativa
quando dos surtos de modernização pelas quais ela passa. Gabo narra dessa forma esse isolamento da
aldeia, bem como, nos apresenta o único grupo social que trava relações com os habitantes de
Macondo, a tribo cigana de Melquíades,

Desde os tempos da fundação, José Arcádio Buendía construía alçapões e gaiolas. Em pouco
tempo encheu de corrupiões, canários, azulões e tiês-sangue não só a própria casa, mas todas da
aldeia. O concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão atordoante que Úrsula tapou os
ouvidos com cera de abelha para não perder o senso de realidade. A primeira vez que a tribo de
Melquíades chegou vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreendeu
que eles tivessem conseguido encontrar aquela aldeia perdida no marasmo do pantanal, e os
ciganos confessaram que tinham se orientado pelo canto dos pássaros (Márquez, 2012, pg.51).

Essa relação entre os habitantes de Macondo, em especial de José Arcádio Buendía, e os


ciganos principalmente a figura de Melquíades é central na estruturação do romance. A primeira razão
se encontra no fato de que os ciganos introduzem na aldeia alguns conhecimentos que os habitantes
desconheciam e, por outro lado, Melquíades é o escritor do pergaminho que conta toda a história e
trajetória de Macondo durante seus cem anos de existência. Comecemos então pela nossa primeira
afirmação da importância dos ciganos para o desenvolvimento da aldeia.
Já na primeira página da obra Gabo apresenta Melquíades e os ciganos como representantes
de uma etnia que carrega em si diversas qualidades mágicas. Gabo escreve,

Todos os anos, lá pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava sua tenda
perto da aldeia e com grande alvoroço de apitos e tímbalos mostrava as novas invenções.
Primeiro levaram o ímã. Um cigano corpulento, de barba indomada e mãos de pardal, que se
apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública do que ele
mesmo chamava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em
casa arrastando dois lingotes metálicos e todo mundo se espantou ao ver que os caldeirões, as
caçarolas, os alicates e os fogareiros caíam de onde estavam, e as madeiras rangiam por causa
do desespero dos pregos e parafusos tentando se soltar, e até mesmo os objetos perdidos há
muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados e se arrastavam em debandada
turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades […]. José Arcádio Buendía, cuja desaforada
imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e muito além do milagre e da
magia, pensou que era possível servir-se daquela invenção inútil para desentranhar ouro da
terra. Melquíades, que era um homem honrado, avisou: “Para isso, não serve” (Márquez, 2012,
pg.43).

A inventividade de Gabo no que se refere a essa relação essencial nessa narrativa vai residir
no fato de que as novidades que os ciganos trazem para Macondo são invenções triviais que já há um
longe tempo haviam sido descobertas e que teoricamente não causariam maiores assombros justamente
92
por fazer parte da vida cotidiana de boa parte da humanidade. Nesse sentido, em todo o romance há
essa inversão lógica, pois os elementos mais bizarros, miraculosos são vivenciados com a maior
naturalidade possível e aquelas descobertas que já fazem parte do cotidiano são revestidas das mais
assombrosas e espantosas reações por parte dos personagens do romance.
Dessa forma, não seria exagero afirmar que a figura de Melquíades adquire a forma de uma
autoconsciência da humanidade na qual tanto o tempo como o espaço adquirem uma conotação
mágica. Utilizando desse artifício estético Gabo consegue representar no livro alguns inventos e
algumas lendas da humanidade sem a necessidade da figuração desses mesmos períodos históricos. O
tempo e o espaço estão condensados em Melquíades, ou melhor, a lógica causal e secular como nós
experimentamos o tempo e o espaço encontram-se suspensos nesse personagem. Com é possível viajar
pelos mais diferentes espaços e pelas mais variadas temporalidades históricas, o que permite aos
habitantes de Macondo o acesso às descobertas de toda a história da humanidade. Diante dessa
inversão empreendida por Gabo em Cem Anos de Solidão, Chiampi (1980) esclarece,

Os exemplos da conversão do maravilhoso em real e vice-versa multiplicar-se em obras de


Asturias, Carpentier, J. M. Arguedas, Roa Rastos, Vargas Llosa e Onetti. Mas é, sem dúvida,
Garcia Márquez quem explora à saciedade a não antinomia dos planos real maravilhoso,
exagerando o efeito discursivo do encantamento do leitor. Em Cien años de soledad (1967), o
narrador não só inverte essa relação pragmática do leitor com a maravilha, como também
inverte essa relação com a realidade. No primeiro caso, figuram os acontecimentos prodigiosos,
narrados com dados realistas: a ascensão de Remedios la Bella, a volatização do armênio na
feira, a levitação do padre Reyna, as diversas ressurreições de mortos, a personificação da
morte, etc., etc. Nestes episódios, os personagens participantes se assombram ou padecem
dúvidas; ao contrário, os tomam por triviais, destituídos de mistérios. No segundo caso estão os
fatos ou objetos reais, como o gelo, a redondez da terra, a bússola, a fotografia, o ímã, a pianola
de Pietro Crespi, a dentadura de Melquíades, diante dos quais os personagens ficam
atemorizados, desconcertados ou fascinados (Chimapi, 1980, pg. 66).

A explicação dessa inversão no princípio da causalidade dos fenômenos relaciona-se com a


discussão empreendida na primeira parte dessa tese. Pois, como salientamos, o próprio processo de
desenvolvimento do modo de produção capitalista compreende uma dessacralização da vida, as
expressões religiosas vão paulatinamente arrefecendo-se, assim como, esses elementos mágicos
também vão perdendo sua força na vida cotidiana. Contrariamente a essa lógica de parte das religiões
de matrizes europeias, especialmente das seitas protestantes, e sua consequente racionalização do
mundo, observa-se um desdobramento singular na América Latina, pois a prática religiosa do
catolicismo ibérico, as religiões ameríndias e de matriz africana proporcionaram uma outra forma de
vivenciar o elemento mágico, que persiste em nossa própria experiência cotidiana. Então, a própria
forma como o catolicismo foi imposto como a principal religião na América Latina, em detrimento das
religiosidades ameríndias e africanas, não pode ser dissociada da própria forma como o modo de
produção capitalista se instaurou nesse continente.
Portanto, aquilo que suscita uma espécie de espanto, de admiração por parte desses inventos
93
tão triviais para nós se dá justamente por serem inventos e tecnologias nas quais simplesmente eles
ainda não tinham conhecimento. E, aqueles eventos que fogem a causalidade dos mesmos, os eventos
mágicos conforme nós analisamos anteriormente são situações rotineiras, triviais dentro dessa
realidade da América Latina. Não há um espanto quando Remédios, a Bela voa, assim como, não há
nada demais em Melquíades ressuscitar, mas o sorvete é uma iguaria miraculosa para os habitantes de
Macondo, tal como o gelo também o é. Dessa forma, a inversão do cotidiano que existe na narrativa de
Gabo se assenta nesse duplo fundamento, em primeiro lugar são objetos, invenções, tecnologias ainda
desconhecidos por eles e, por outro lado, o ambiente cultural na qual Macondo está imersa permite que
as situações mais miraculosas sejam vivenciadas da forma mais natural possível.
Pois, essa atmosfera religiosa que se encontra na Colômbia e na América Latina faz com que
os acontecimentos mais absurdos e mágicos não causem estranheza aos personagens do romance e
também aos seus leitores, bem como, devido ao relativo atraso tecnológico e ao isolamento geográfico
de Macondo faz com as descobertas tecnológicas da humanidade produzam um impacto enorme para
os personagens da obra e provocam nos leitores de Cem Anos de Solidão um misto de espanto e
comicidade.
Exemplificando essa afirmação, na segunda vez que os ciganos voltam à aldeia no mês de
março levando uma luneta e uma lupa que, segundo Melquíades, se trata da última grande descoberta
dos judeus de Amsterdã. Tais instrumentos provocaram um enorme espanto e impacto especialmente
em José Arcádio Buendía. É necessário atentar para o fato de que esse personagem Melquíades
constiui-se numa unidade indissociável entre os conhecimentos secularizados e a magia.
Portanto, ciência e magia não aparecem enquanto objetivações humanas contrapostas, como
ocorreu com o desenvolvimento da ciência moderna nos primórdios da modernidade capitalista, nesse
sentido, o desenvolvimento da ciência e a emergência do racionalismo são as duas faces da mesma
moeda, na história ocidental. Gabo subverte a lógica desse devir histórico. Lukács (2012) nos esclarece
essa ruptura ocorrida na Europa ocidental,

Obviamente o compromisso belarminiano jamais conseguiu bloquear totalmente a repercussão


que a ruptura com a posição cósmica e ontológica especial da Terra teve no plano das
concepções de mundo. O fato de que, na época em que a Igreja ainda exercia pleno domínio,
muitos cientistas e filósofos se vissem na contingência de empregar uma linguagem esopiana
sobre tais complexos em nada altera a linha histórico-universal. A filosofia de Pascal exibe da
maneira mais clara possível como tal linha influiu sobre os crentes cristão. Seu sentimento
profundo do abandono cósmico do ser humano, a necessidade de poder obter todas as
categorias de uma vida humana intimamente cristã não mais de uma imagem de mundo da
salvação cósmica, mas, ao contrário, meramente de uma nova lógica da autonomia humana,
uma lógica do coração, como dizia Pascal, mostra quão profundamente a nova ontologia
penetrou no pensamento (Lukács, 2012, pg.39).

Portanto, é o mágico Melquíades que de forma pioneira apresenta as descobertas científicas e

94
tecnológicas de toda a história da humanidade. Gabo escreve dessa forma essa unidade entre o
misticismo e o conhecimento secular,

A troco de cinco pesos, as pessoas chegavam até a luneta e viam a cigana ao alcance da mão.
“A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Daqui a pouco, o homem vai poder
ver o que acontece em qualquer lugar da terra sem sair de casa.” Num meio-dia ardente fizeram
uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca juntaram um montão de capim seco no
meio da rua e puseram fogo por meio da concentração de raios solares. José Arcádio Buendía
que ainda não tinha acabado de se consolar do fracasso de seus ímãs, concebeu a ideia de
utilizar aquele invento como arma de guerra[…]. Tratando de demonstrar os efeitos da lupa
sobre a tropa inimiga, ele se expôs à concentração de raios solares e sofreu queimaduras que se
transformaram em úlceras e demoraram muito a curar[…]. José Arcádio Buendía prometia
tentar chegar lá assim que recebesse ordens do governo, com o objetivo de fazer demonstrações
práticas de seu invento diante dos poderes militares e adestrá-los pessoalmente nas complicadas
artes da guerra solar (Márquez, 2012, pgs. 44-45).

É interessante esse trecho da narrativa de Gabo pelo fato de que é o primeiro momento da
obra na qual faz uma referência a uma lenda histórica, em outros trechos do livro há auto referências a
outras obras e a outros escritores. Nesse trecho em específico trata-se de uma alusão a Arquimedes,
lenda essa que teria começado na Idade Média e afirmava que ele havia destruído navios inimigos
romanos. Esse “fato lendário” teria ocorrido entre os anos 214 e 212 a.C durante a Segunda Guerra
Púnica57.
Afirmava-se com base nessa lenda que Arquimedes teria queimado navios romanos ao utilizar
grandes espelhos direcionando os raios solares em direção aos navios inimigos fazendo com que os
mesmos se incendiassem. Acredita-se que os gregos e Arquimedes tenham utilizado uma espécie de
canhão a vapor com bolas feitas de argila e materiais químicos inflamáveis. Porém, cabe ressaltar que a
utilização de espelhos e lupas podem dar origem ao fogo, mas sua intensidade seria menor e de mais
fácil contenção, isso faz com que essa narrativa seja mais uma lenda do que um fato histórico.
O intercâmbio entre os ciganos e os habitantes de Macondo tem por objeto a natureza das
descobertas e das invenções da humanidade que são trazidas pela tribo de Melquíades, objetos sem
muita importância para o desenvolvimento social de Macondo. Diríamos que são tecnologias que
precedem a revolução científica proporcionada pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista.
A lista dos objetos que causam a maior euforia principalmente em José Arcádio Buendía incluem
desde o gelo, a dentadura de Melquíades e o daguerreótipo.
A passagem da narrativa em que os habitantes de Macondo conhecem o gelo é fantástica.
Nessa parte do romance os ciganos voltam a aldeia porém dessa vez sem o lendário Melquíades, pois
ele havia morrido de febre nas dunas de Singapura e seu corpo teria sido jogado no mar profundo de
Java. José Arcádio Buendía fica aturdido e sem acreditar nessa informação porém outros ciganos a

57 Trata-se do mais conhecido e importante conflito bélico entre Roma e Cartago entre os anos de 218 a.C e 201 a.C.
95
confirmaram.
Posteriormente, os filhos de José Arcádio Buendía pediram encarecidamente para conhecer as
novidades dos sábios de Mênfis, que se encontrava na entrada de uma tenda cigana e que teria
pertencido ao rei Salomão, percebe-se nesse trecho a figuração de distintas temporalidades históricas
em um mesmo trecho do romance. Dentro da tenda havia tão somente um enorme pedaço de um bloco
transparente, aquela visão deixou José Arcádio Buendía estupefato o que o fez acreditar que se tratava
do maior diamante do mundo, porém o cigano o corrigiu afirmando que não era diamante e sim gelo.
Segundo José Arcádio Buendía “- Este é o grande invento do nosso tempo” (Márquez, 2012, pg.60).
A partir desses exemplos supracitados, sobre a influência da tribo cigana de Melquíades sobre
os habitantes de Macondo surge um questionamento das razões pelas quais os ciganos são tão
importantes nessa narrativa romanesca, por conta disso, tentaremos a seguir analisar as peculiaridades
dessa etnia.
Anteriormente creditamos a Melquíades a alcunha de autoconsciência da humanidade, isto
deve-se muito a uma característica marcante dos ciganos, pelos menos no que tange o imaginário que
se tem acerca desse grupo social, estamos nos referindo ao nomadismo. Além é claro da vinculação do
misticismo ao modo de vida dos ciganos, mesmo que essa vinculação seja estereotipada. Muito daquilo
que imaginamos sobre os ciganos e que Gabo representa de forma tão apaixonante tem uma relação
direta com esse nomadismo, pois é propiciando múltiplas experiências a partir da vivência em
diferentes partes do mundo e em diversos tempos históricos. Enquanto cigano, Melquíades e sua tribo
tiveram possibilidades de absorver tantos conhecimentos produzidos pela humanidade e, dessa forma,
levá-los para que os habitantes de Macondo.
Ao analisar os ciganos em Macondo, França (2013) aponta para o sentido da profícua relação
que se estabelece entre Melquíades e a cidade de Macondo,

Desde a fundação de Macondo, o espaço ficcional abrangeu vários grupos de ciganos,


trabalhadores e outros estrangeiros, em explícito processo de deslocamento. Em especial,
Melquíades elegeu Macondo em busca por um lugar melhor para viver. Essa relação foi
propícia para aproximar diferentes concepções étnicas. Para Stuart Hall, a América Latina,
responsável pelo fenômeno de acolhimento dos povos, se define como “sócio-história da
humanidade”, portanto Macondo remete à ideia de encontro de vários povos e culturas […]
(França, 2013, pg. 61-62).

Para França (2013), há uma relação recíproca entre o fato do personagem Melquíades ser um
cigano e ter escolhido fincado raízes em Macondo, uma cidade da América Latina, pois em primeiro
lugar os ciganos são um grupo social com uma história milenar, transcultural, e, em segundo lugar, a
América Latina é um continente que acolheu diversos migrantes de todas as partes do globo.
Segundo Angus Fraser (1997), os ciganos teriam desembarcado nas Américas já no século

96
XVI, em pleno processo de colonização dos europeus, eles teriam conseguido se infiltrar nas
embarcações que traziam os “novos-cristãos”, judeus recém convertidos ao cristianismo, e ao
desembarcar em nosso continente já chamavam a atenção dos demais imigrantes pelas singularidades
de sua língua e de seu modo de vida, alguns desses ciganos resolveram fincar raízes por aqui em busca
da reconstrução de suas vidas muito em consequência da perseguição que sofriam da Igreja Católica,
naquele período na Europa. Mas, como trata-se de uma cultura milenar a história dos ciganos é bem
anterior ao período das grandes navegações. Há basicamente dois consensos sobre eles, sua origem
geográfica e seu idioma de origem.
Voltando ainda mais no tempo acredita-se que a origem dos ciganos tenha ocorrido no norte da
Índia tendo como idioma nativo o Romani ou Rom. O sânscrito, que é o idioma utilizado por
Melquíades na escritura do pergaminho, teria se originado nessa mesma região. Ainda segundo Fraser
(1997), os ciganos saíram da Índia em direção ao Afeganistão, à Pérsia, posteriormente chegaram à
Ásia Menor, e na Europa, através da Grécia. Parte desses grandes grupos dirigiram-se ao norte da
África chegando ao Egito e a Marrocos e outra parte dirigiu-se ao norte do continente africano e daí
conseguiram adentrar na Península Ibérica. Esse é o itinerário dos ciganos ao longo do tempo. No
continente europeu os ciganos teriam se concentrado especialmente na Europa oriental e na própria
Península Ibérica, segundo a autora. França (2013) tece uma consideração que esclarece muitos pontos
acerca do próprio modo de vida dos ciganos que estão figurados na obra de Gabo,

Existem registros de ciganos no mundo todo, segundo Liègeois (2012), com mais relevância na
Europa, com maior concentração na Europa oriental e na Península Ibérica. Quase tudo que se
sabe sobre os ciganos é marcado por fantasias. Os ciganos eram peregrinos e liam a sorte, duas
boas profissões em épocas de superstições. Carregam consigo um poder de persuasão muito
grande, pelo qual são conhecidos mundialmente e causam certo sentimento de medo,
insegurança e incredibilidade sobre a população considerada não cigana. Com suas técnicas,
ganham a admiração de muitos que creem na previsão do futuro. (França, 2013, pg.66).

Essa visão negativa da população local em relação aos ciganos encontra-se em algumas
passagens de Cem Anos de Solidão, em alguns momentos o personagem José Arcádio Buendía
questiona a honestidade dos ciganos e de Melquíades “Mas naquele tempo José Arcádio Buendía não
acreditava na honradez dos ciganos, e trocou sua mula e uma partida de bodes pelos dois lingotes
imantados”. (Márquez, 2012, pg.43). Noutra passagem do romance é o próprio narrador que aponta
para essa desconstrução da imagem negativa que paira sobre os ciganos, “No fim, cansado de esperar,
lamentou-se com Melquíades do fracasso de sua iniciativa, e o cigano deu então uma prova
convincente de honradez […].” (Márquez, 2012, pg.45).
As tecnologias e descobertas introduzidas por Melquìades não acarretam consequências
sociais negativas, ao contrário do que ocorre com grandes invenções modernas como a estrada de ferro
que possibilita no decorrer da trama a instauração da companhia bananeira. Parece-nos que essa
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diferente forma de figuração estética, uma positiva e a outra negativa, vincula-se aos dois períodos
históricos representados na obra, a fase com supremacia de Melquíades e a fase posterior, na qual se
instala a companhia bananeira na aldeia. Os inventos de Melquíades não provocam alterações
substanciais nas relações sociais em Macondo, já a estrada de ferro e a multinacional estadunidense
desarticulam as relações sociais precedentes.
As repercussões sociais com o advento da instauração da estrada de ferro e a posterior
instauração da companhia bananeira é figurada de forma negativa pelo autor pois é justamente o
momento histórico no qual se efetiva a dominação imperialista dos EUA na América latina,
metaforicamente representada por Macondo. Se nesse trecho da obra o autor busca representar o
processo de degradação e da sucessiva queda e desaparecimento de Macondo, na descrição das
descobertas de Melquíades ocorre o oposto, a inter-relação entre a tribo cigana de Melquíades e os
habitantes locais é representada de forma positiva denotando, portanto, um período de ascensão e
desenvolvimento da aldeia.
Mais do que descobertas e tecnologias que Melquíades leva à Macondo também é importante
salientar que em se tratando de um sábio ele contribui especialmente para o desenvolvimento espiritual
da aldeia e não só para o desenvolvimento material. Numa perspectiva benjaminiana poderíamos
afirmar que Melquíades seria um narrador nato. Para Benjamin (1996) “A experiência que passa de
pessoa a pessoa é a fonte que recorreram todos os narradores” (Benjamin, 1996, pg.198). O ato de
narrar, portanto é antes de tudo a capacidade humana de intercambiar experiências.
Nessa análise Benjamin (1996) aponta para a existência de dois tipos de narradores, o
primeiro tipo é aquele que vem de longe, que viaja muito e por isso teria muitas experiências a
compartilhar, já o segundo grupo é aquele tipo humano que fincou raízes em uma determinada
localidade e, dessa forma, detém um vasto conhecimento de suas histórias e de suas tradições.
Benjamin (1996) assim escreve sobre os narradores,

O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. Mais tipicamente que em
Leskov, encontramos esse atributo em Gotthelf, que dá conselhos de agronomia a seus
camponeses, num Nodier, que se preocupa com os perigos da iluminação a gás, e num Hebel,
que transmite a seus leitores pequenas informações científicas em seu Schatzkastlein (Caixa de
tesouros). Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num
provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar
conselhos. (Benjamin, 1996, pg.200).

Essa característica de “dar conselhos”, de legar ensinamentos para os habitantes de Macondo é


bem explícito na figuração do cigano Melquíades em Cem Anos de Solidão. Dessa forma, se torna
compreensível a representação de forma positiva desse personagem, que tem como objetivo
principalmente ensinar, trazer conhecimentos para uma aldeia que se encontra isolada do restante do
mundo.
98
Pois bem, trata-se da representação de dois momentos históricos distintos um ascendente e
outro descendente, um que contribui para o desenvolvimento social da aldeia e o outro que funciona na
estrutura do livro como sendo o começo da derrocada. A unidade entre sabedoria e magia que se
encontra no cigano Melquíades, a inseparabilidade entre a racionalidade e a irracionalidade não
produzem uma cisão social ou uma divisão clara entre classes sociais distintas. Mais do que isso
Melquíades é de suma importância para o desenvolvimento intelectual de José Arcádio Buendía por
estimular e desenvolver neste a busca pelo conhecimento científico mesmo que eivado de elementos
mágicos, pois entendemos que se vincula aos primórdios do desenvolvimento humano que mais tarde
irá culminar com o pleno desenvolvimento da ciência, na separação radical entre o conhecimento
científico e a magia. Nesse trecho do romance fica evidenciado essa dinâmica,

A aldeia inteira estava convencida de que José Arcádio Buendía havia perdido o juízo, quando
Melquíades chegou para pôr as coisas em ordem. Ele exaltou em público a inteligência daquele
homem que através da pura especulação astronômica havia construído uma teoria já
comprovada na prática, embora até então desconhecida em Macondo, e como prova de sua
admiração deu a ele um presente que haveria de exercer uma influência decisiva no futuro da
aldeia: um laboratório de alquimia. (Márquez, 2012, pg.47).

Mais à frente Gabo escreve,

Num povoado escaldado pela lembrança da experiência com os ciganos, não havia um bom
porvir para aqueles equilibristas do comércio ambulante, que com a mesma ligeireza ofereciam
uma panela associadora e uma receita de vida para a salvação da alma no sétimo dia – mas
entre os que deixavam convencer por cansaço e os incautos de sempre, obtinham lucros
estupendos. Em meio a essas criaturas de circo, com armação de aço, olhos de topázio e pele de
galo fino, numa das tantas quartas-feiras chegou a Macondo e almoçou na casa o rechonchudo
e sorridente Mr. Herbert […]. Nos dias seguintes foi visto com um puçá e um cestinho caçando
borboletas nos arredores do povoado. Na quarta-feira chegou um grupo de engenheiros,
agrônomos, hidrólogos, topógrafos e agrimensores que durante várias semanas exploraram os
mesmos lugares por onde Mr. Herbert caçava borboletas. Mais tarde chegou o senhor Jack
Brown num vagão suplementar que engancharam na causa do trem amarelo, e que era todo
laminado de prata, com poltronas de veludo episcopal e teto de vidros azuis. (Ibidem, 2012,
pgs.264-265).

Portanto, percebe-se a diferença abissal na forma em que Gabo representa literariamente os


dois períodos históricos. No primeiro momento, as invenções da humanidade trazidas pelos ciganos
não tinham finalidade econômica, mas ajudavam no desenvolvimento de Macondo e, sobretudo, da
personalidade de José Arcádio Buendía. No segundo período, o único objetivo da multinacional é a
exploração econômica sem nenhuma preocupação com o desenvolvimento social da cidade, tão
somente levam à Macondo miséria social e exploração econômica, além do massacre dos trabalhadores
que se rebelaram contra as condições degradantes de trabalho. Iremos nos dedicar de forma detalhada
mais adiante a análise sobre o massacre da bananeira e a Guerra dos Mil Dias no subcapítulo dedicado
à relação entre esses dois eventos históricos ocorridos na Colômbia e a figuração estética empreendida

99
por Gabo, por ora nosso objetivo foi o de apreender as diferentes formas de representação literária de
choques culturais que impactaram no destino de Macondo e de seus habitantes. O sentido atribuído à
tribo de Melquíades e ao próprio cigano como propiciadores do desenvolvimento social de Macondo
sem ter em mente objetivos estritamente econômicos fica evidenciado no seguinte trecho da obra,

José Arcádio Buendía, porém, foi firme ao assegurar que a antiga tribo de Melquíades, que
tanto havia contribuído para o engrandecimento da aldeia com sua milenar sabedoria e
seusfabulosos inventos, encontraria sempre as portas abertas. Mas a tribo de Melquíades, pelo
que os vira-mundos contaram, tinha sido varrida da face da terra por haver superado os limites
do conhecimento humano. (Márquez, 2012, pg.80.)

3.2 Entre avanços e retrocessos: o progresso em Macondo.

Dessa forma, percebemos que Gabo representa literariamente o conceito de progresso já


analisado na segunda parte da tese quando estudamos o romance histórico. A forma clássica do
romance histórico, segundo Lukács (2011), caracterizava-se por uma figuração do progresso histórico,
a exemplo da obra de Walter Scott que representavam literariamente a transição do modo de produção
feudal para o modo de produção capitalista e a superioridade deste último. Esta perspectiva do romance
clássico sofre alterações consideráveis em Cem Anos de Solidão, pois o sentido do progresso adquire
novas colorações.
Da relação entre a tribo de Melquíades e os habitantes de Macondo emerge uma construção
estética do conceito de progresso bem distinta daquela construída nos primórdios do capitalismo.
Percebemos que na obra em tela essa influência dos ciganos com relação aos habitantes da aldeia é
fundamentalmente a de enriquecer com o conhecimento da história da humanidade, pois como
afirmamos Melquíades é uma espécie de autoconsciência da humanidade, todos os moradores dessa
cidade.
Dessa maneira, entendemos que a representação do progresso nessa obra de Gabo
fundamenta-se em uma contraposição ao entendimento dessa categoria dentro da lógica do capitalismo.
Se, nesse momento histórico o progresso é identificado tão somente enquanto o desenvolvimento
econômico, das forças produtivas, em Cem Anos de Solidão ele apresenta um significado totalmente
diferente. Percebemos que Gabo figura o progresso vinculando-o com uma acumulação do
conhecimento como consequência de um intercâmbio entre os habitantes de Macondo com a história
de toda a humanidade. É o contato de uma região isolada de nosso continente com os conhecimentos
trazidos pela tribo cigano de Melquíades o ponto central da narrativa dele, portanto é possível
compreender a forma como nosso autor narra o processo de modernização de Macondo quando a
companhia bananeira chega em Macondo. Há uma contraposição entre o acúmulo do conhecimento
adquirido em boa parte por causa de Melquíades e o progresso visto apenas sobre uma lógica utilitária.
100
Ao lado disso, a própria especifidade histórica que Gabo representa na obra difere
substancialmente daquela observada por Walter Scott ou Honoré de Balzac, dois autores
paradigmáticos nos estudos de Lukács sobre o romance histórico. Lembremos que fundamentalmente
os romances históricos clássicos narravam o intenso processo de luta de classes entre a classe feudal
descendente e a burguesia ascendente e de que forma tais acontecimentos históricos impactavam nas
vidas dos cidadãos comuns.
A luta entre o passado feudal reacionário e o futuro burguês progressista, ou seja, o cerne da
narrativa do romance histórico clássico não encontra eco na América Latina, pois aqui não se opuseram
senhores feudais e a classe burguesa. Em nosso continente ocorreu algo diverso a constituição e
desenvolvimento do capitalismo da Europa Ocidental. Primeiramente, a burguesia que se constituiu na
América Latina sempre esteve subordinada inicialmente à burguesia europeia e, posteriormente, a dos
EUA e, por outro lado, não houve uma luta com mesma intensidade da que ocorreu entre os senhores
feudais e a então nascente burguesia da Europa. Aqui houve um processo de dizimação das populações
autóctones dada a desproporcionalidade do poderio bélico dos colonizadores em relação aos índios,
assim como, do ponto de vista ideológico nossa burguesia não teve a necessidade de construir teorias
nas quais fosse afirmada a superioridade histórico do modo de produção capitalista em relação a
organização social dos índios, como ocorreu na realidade europeia. Pois, como afirmou Lukács (2011),
dessa luta de classes é que emerge a necessidade da burguesia se afirmar ideologicamente apontando o
modo de produção capitalista enquanto uma etapa superior do desenvolvimento da humanidade.
E essa realidade histórica não se desenvolveu na América Latina, assim como, não se
desenvolveu uma burguesia independente. A luta que as classes dominantes tiveram que travar em
nosso continente foi justamente a de subordinar primeiramente os índios e, posteriormente os negros
africanos que foram escravizados para a implantação do capitalismo nessa parte do mundo.

Progresso e exploração, portanto são duas faces do mesmo processo no desenvolvimento do


capitalismo. Se no continente europeu esse processo de lutas desencadeou do ponto de vista ideológico
o surgimento da filosofia iluminista, como afirmou Lukács (2011), houve também um processo
ideológico de justificação da escravidão e da barbárie perpetrada em nosso continente. Somente a título
de exemplo podemos citar dois autores considerados clássicos do liberalismo que ao mesmo tempo
defendiam a escravidão e o pensamento liberal, John Locke (1632-1704) considerado um dos
fundadores do liberalismo, e o francês Alexis de Tocqueville (1805-1859)57 este acreditava em uma
superioridade dos europeus perante os povos selvagens58.
Desse modo, o progresso é representado artisticamente de forma contraditória. Nas relações

58 Para uma análise mais aprofundada das contradições do liberalismo ver Domenico Losurdo, A Contra-História do
Liberalismo.
101
estabelecidas entre os ciganos e os habitantes de Macondo o progresso aparece como forma de
enriquecimento social e cultural da aldeia com as novidades trazidas pelos ciganos; nele não cabe a
visão clássica do conceito que designa crescimento das forças produtivas, com ênfase nas condições
materiais. Por outro lado, a separação entre ciência e religião que foram pré-condições para o progresso
técnico, perde sentido em Cem Anos de Solidão, pois agora ciência e magia entrelaçam-se na visão de
mundo que teima persistir na América Latina. Perry Anderson (2006) resume bem essas
transformações pelas quais o romance histórico passou em seu artigo intitulado Trajetos de uma forma
literária (2006),

Ditaduras militares, assassinatos raciais, vigilância onipresente, guerra tecnológica e genocídio


programado. O persistente pano de fundo da ficção histórica do período pós- moderno está nos
antípodas de suas formas clássicas. Não a emergência da nação, mas as devastações do império;
não o progresso como emancipação, mas a catástrofe iminente ou consumada. Em termos
joycianos, a história como um pesadelo do qual ainda não conseguimos despertar. Mas se não
olharmos apenas as fontes e os temas dessa literatura, mas também as suas formas, Jameson
sugere que deveríamos reverter o julgamento. O revival pós-moderno, ao jogar a
verossimilhança ao vento, fabricando períodos e verossimilhanças intoleráveis, deveria ser
visto antes como uma tentativa desesperada de nos acordar para a história, em um tempo em
que morreu qualquer senso real dela. (Anderson,2006, pg.219).

Porém, devemos relativizar alguns pontos dessa análise de Anderson com relação à obra Cem
Anos de Solidão. Sobre a questão da verossimilhança não nos parece que ela seja jogada “ao vento”
,mas que há uma forma diferente de relacionar a magia e a objetividade dos fatos históricos na presente
obra de Gabo. Reiteramos que o nosso autor nunca perde de vista a representação a realidade empírica
em seu processo de figuração estética, como também pode ser visto no prólogo da obra de Alejo
Carpentier, O reino deste mundo, ontologicamente a própria realidade latino americana é mágica..
Distintas realidades históricas e sociais possibilitaram a emergência e as transformações do romance
histórico desde Walter Scott até Gabo.
Então, salientamos que o processo de construção estética em algumas obras do realismo
mágico, dentre elas Cem Anos de Solidão, não apresentam uma total negação da realidade empírica,
mas representam um mundo no qual magia e realidade coexistem. Pois, para Gabo, todo bom romance
deveria ser uma figuração poética da realidade.
O progresso, que se encontrava no centro da análise luckasiana atinente ao romance histórico
clássico sofre forte alteração nessa obra. Em nossa análise não enxergamos um total e radical rechaço
ao progresso, mas vislumbramos um crítica ao processo de desenvolvimento histórico-social sob a
lógica capitalista, em especial, a do período imperialista. Por outro lado, há na obra uma forma de
representação que aponta para uma outra lógica de desenvolvimento não mediada pelo modo de
produção capitalista e pela racionalidade estritamente econômica. O desenvolvimento social da aldeia
desencadeado pela tribo de Melquíades opera através de lógica de solidariedade, principalmente na

102
relação que se estabelece entre Melquíades e José Arcádio Buendía.
Entretanto, não há como negar as modificações na forma clássica do romance histórico e
nessa obra em específico que estamos analisando. Concordamos com Anderson (2006) sobre a questão
temporal e suas vicissitudes, e com suas críticas ao progresso capitalista, porém como apontamos não
há uma negação absoluta na representação do real em Cem Anos de Solidão mas uma diferente maneira
de se representar esses elementos. Pensemos na forma como Gabo figura o tempo, ao sintetizar vários
momentos históricos diferentes em um personagem, como é o caso de Melquíades, ou ao misturar
diferentes temporalidades em um mesmo trecho do livro, como na chegado da igreja em Macondo,
Gabo ao invés de solapar o princípio de objetividade o potencializa ao retratar, dessa forma, a própria
constituição do continente Latino Americano.
O realismo em Gabo se encontra imbricado com os elementos mágicos, como já foi aventado
por nós em outros momentos. Nesse trecho, logo após o massacre da companhia bananeira, alguns
militares vão à casa de José Arcádio Buendía buscá-lo, pois ele foi o um dos sobreviventes do
massacre, ao lado de uma criança que ele conseguiu salvar, Gabo narra assim esse fato,

O único sobrevivente foi José Arcádio Segundo. Numa noite de fevereiro ouviram-se na porta
os golpes inconfundíveis da coronha dos fuzis. Aureliano Segundo, que continuava esperando
que estiasse para sair, abriu a porta para seis soldados comandados por um oficial. Empapados
de chuva, sem pronunciar uma palavra, revistaram a casa quarto por quarto, armário por
armário, das salas até a despensa.
[…] O golpe de humanização, porém, não modificou sua conduta profissional. Diante do quarto
de Melquíades, que estava outra vez com cadeado, Santa Sofia de la Piedade lançou mão de
uma última esperança. “Está fazendo um século que ninguém mora nesse quarto”, disse. O
oficial fez com que fosse aberto, percorreu-o com o facho da lanterna, e Aureliano Segundo e
Santa Sofia de la Piedad viram os olhos árabes de José Arcádio Segundo no momento em que a
rajada de luz passou pela sua cara, e compreenderam que aquele era o fim de uma ansiedade e o
princípio de outra que só encontraria alívio na resignação. Mas o oficial continuou examinando
o quarto com a lanterna, e não deu nenhum sinal de interesse enquanto não descobriu os setenta
e dois urinóis amontoados nos armários. (Márquez, 2012, pgs. 345-346).

Percebe-se então no trecho supracitado o caminho trilhado por Gabo no processo de figuração
da realidade empírica, tal como analisamos no primeiro capítulo sobre as especificidades do realismo
mágico. Nesse trecho, da obra de Gabo, que é imediatamente posterior a narração de um evento que
ocorreu na Colômbia, há uma coexistência entre os fatos que obedecem a causalidade, como a
descrição dos objetos encontrados no quarto mas ao lado disso irrompe por sua vez o evento
miraculoso, que ocorre justamente por ser o quarto onde o cigano Melquíades morou em sua estadia na
casa dos Buendía.
Agregado a essa forma de representar a realidade empírica, que em nosso continente apresenta
uma miraculosidade ontológica, a permanência do termo realismo na denominação dessa tradição
literária da América Latina, justifica-se pelo fato de que ao questionar os cânones do realismo
tradicional os escritores não empreenderam nenhum procedimento visando a dissolução do
103
mundoobjetivo na representação literária. Dessa maneira, o princípio da objetividade que fundamenta a
forma romanesca continua preservada nesta obra de Gabo.
É através das peculiaridades do continente latino-americano que possibilita a emergência
dessas transformações pelas quais experimentou o romance histórico. Então aquela articulação entre os
grandes eventos históricos e as repercussões destes na população comum, na vida cotidiana ainda
permanece nesse longo processo histórico do século XVIII até o século XX. Pensemos no impacto nos
habitantes de Macondo das guerras entre liberais e conservadores, nas mudanças proporcionadas em
Macondo por conta desse conflito e também no desenvolvimento dos conflitos sociais, de classe e que
se intensificam a partir dessa guerra.
É interessante notar também em Cem Anos de Solidão o longo processo pelo qual a pequena
cidade se transforma de uma aldeia na qual não existia uma estratificação social definida, persistindo
uma organização social igualitária, vai lentamente modificando-se na medida em que se avança o
processo de inter-relação entre os seus habitantes e os de outras regiões. O abalo mais consistente
inicia-se na narrativa com a chegada de Dom Apolinar Moscote, alcaide enviando pelo governo
central.

[…] A casa nova estava quase terminada quando Úrsula arrancou-o do seu mundo quimérico
para informar que havia uma ordem para que a fachada fosse pintada de azul, e não de branco,
como eles queriam. Mostrou a ordem oficial escrita num papel. José Arcádio Buendía, sem
entender o que a mulher dizia, examinou a assinatura.
- Que é esse fulano? - perguntou.
- O alcaide – disse Úrsula desconsolada. - Dizem que é uma autoridade que o governo
mandou.
Dom Apolinar Moscote, o alcaide, havia chegado a Macondo sem fazer alarde. Baixou no
Hotel do Jacob – instalado por um dos primeiros árabes que chegaram barganhando bugigangas
por araras – e no dia seguinte alugou um quartinho com porta para a rua, a duas quadras da casa
dos Buendía. Montou uma mesa e uma cadeira que comprou do próprio Jacob, pregou na
parede um escudo da república que tinha trazido na bagagem e pintou na porta o letreiro:
Alcaide. (Márquez, 2012, pg. 97).

Gabo reitera a ruptura na qual a chegada de Apolinar Moscote estabelece em Macondo


quando a tensão entre liberais e conservadores desencadeará uma guerra entre esses dois grupos
políticos, no trecho seguinte percebemos mais claramente essa ruptura,

Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar padres, de implantar
o matrimônio civil e o divórcio, de reconhecer direitos iguais aos filhos naturais e aos
legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojava de poderes a autoridade
suprema. Os conservadores, em contrapartida, que haviam recebido o poder diretamente de
Deus, defendiam a estabilidade da ordem pública e da moral familiar; eram os defensores da fé
em Cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o país fosse
esquartejado em entidades autônomas. Por sentimentos humanitários, Aureliano simpatizava
com a atitude liberal em relação aos direitos dos filhos naturais, mas fosse como fosse não
entendia como se chegava ao extremo de fazer uma guerra por coisas que não podiam ser
tocadas com as mãos. Pareceu-lhe um exagero que seu sogro mandasse trazer para as eleições
seis soldados armados com fuzis, por um sargento, numa aldeia onde não existiam paixões
104
políticas. (Márquez, 2012, pg.137).

Então, é com a chegada do alcaide a Macondo como represente do poder do Estado é que
ocorre uma significativa mudança na estrutura social da cidade, pois a partir desse momento Macondo
passará a ser governada por um poder estranho à realidade de Macondo. E, como consequência da
chegada dos poderes do Estado chega também nela a disputa entre os partidos Liberal e Conservador e,
posteriormente irá desembocar no conflito entre esses partidos.
Já com a chegada da companhia bananeira as mudanças sociais tornam-se ainda mais intensa,
nesse momento da narrativa é que as classes sociais antagônicas e fundamentais do modo de produção
capitalista aparecem explicitamente nesta obra de Gabo. Voltaremos mais adiante em uma análise mais
detalhada dessas duas partes fundamentais no desenvolvimento do romance. Pois, nesse momento,
buscamos analisar como se encontra representado o progresso social na obra em tela e, de que forma,
ele repercute no desenvolvimento social de Macondo.
Ao lado do fato de que essa relação não se encontra mediada, ou melhor, não tem como
objetivo o enriquecimento material nem de Melquíades e nem de José Arcádio Buendía. Nessa
passagem do romance fica claro a influência de Melquíades para o desenvolvimento intelectual de José
Arcádio Buendía,

[...] Construiu outro, reuniu no quartinho os homens da aldeia e demonstrou a eles, com teorias
que para todos eram incompreensíveis, a possibilidade de regressar ao ponto de partida
navegando sempre rumo ao Oriente. A aldeia inteira estava convencida que José Arcádio
Buendía havia perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr as coisas em ordem. Ele
exaltou em público a inteligência daquele homem que através da pura especulação astronômica
havia construído uma teoria já comprovada na prática, embora até então desconhecida em
Macondo, e como prova de sua admiração deu a ele um presente que haveria de exercer uma
influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia. (Márquez, 2012, pgs.46-
47).

A centralidade e importância dos ciganos da tribo de Melquíades é assinalado pelo nosso autor
justamente por não ser uma tribo qualquer de ciganos, mas essa tribo diferencia-se das outras
justamente por levar a Macondo o progresso. Gabo escreve,

Úrsula mal havia cumprido o resguardo de quarenta dias quando os ciganos voltaram. Eram os
mesmos saltimbancos e malabaristas que tinham levado o gelo. Mas eram diferentes da tribo de
Melquíades, pois em pouco tempo haviam demonstrado que não eram arautos do progresso, e
sim mascates de diversões. Mesmo quando levaram o gelo não o anunciaram em função de sua
utilidade na vida dos homens, mas como uma simples curiosidade de circo. Desta vez, entre
muitos outros jogos de artifício, levavam uma esteira voadora. Mas não a ofereceram como
uma contribuição fundamental para o desenvolvimento do transporte, e sim como objeto de
recreação. (Márquez, 2012, pgs. 72-73).

Dessa relação entre Melquíades e José Arcádio Buendía surge uma amizade sincera entre os
dois, o cigano através de seus comportamentos e de sua honradez consegue desconstruir a imagem

105
negativa que o patriarca dos Buendía tinha dessa etnia, como já foi citado e, dessa amizade emerge
influências recíprocas, porém em que sentido? Pois a sabedoria e os conhecimentos de Melquíades era
bem superiores ao de José Arcádio Buendía.
No desenvolvimento da narrativa a amizade entre os dois personagens em questão faz com
que cada vez mais Melquíades se sinta mais familiarizado com a família Buendía do que com sua tribo
de origem. Esta amizade opera uma mudança na percepção de sobre o nomadismo. Ao se instalar em
um quartinho oferecido por Úrsula Iguáran, o cigano deixa para trás essa qualidade muito particular do
povo cigano, que é justamente o nomadismo. Logo após ter disponibilizado a cura para a peste da
insônia, o cigano passa a residir na casa dos Buendía perdendo parte de suas qualidades mágicas,

[…] Numa curiosa inversão de costume, foi Úrsula quem tirou essa ideia de sua cabeça, da
mesma forma que também foi ela que se esqueceu de seus antigos ressentimentos e decidiu que
Melquíades ficaria morando na casa, embora nunca tenha permitido que fizessem seu
daguerreótipo por que (de acordo com suas próprias palavras textuais) não queria virar, sabe-se
lá quando, motivo de troça de seus netos. (Márquez, 2012, pg.91).

Depois desse abandono de sua tribo e, consequentemente, do nomadismo que a caracterizava


em direção ao sedentarismo ocorre o desfecho derradeiro desse personagem no romance. Ao se instalar
no quartinho da casa dos Buendía passa a dedicar-se exclusivamente à alquimia e aos estudos da obra
de Nostradamus, é nesse período que Melquíades termina de escrever o pergaminho que narra a
história e trajetória de Macondo e da família Buendía.
Mas o que há de fundamental nessa passagem que citaremos logo a seguir é que a derradeira
morte de Melquíades ocorre justamente quando ele deixa para trás parte seus poderes mágicos de
cigano. A mudança experimentada por Melquíades ao abandonar sua tribo é acompanhada da perda de
alguns poderes sobrenaturais, incluindo a capacidade de ressurreição. A morte definitiva chega quando
se efetiva um processo de mudança identitária, ou seja, quando a identidade de um habitante sedentário
de Macondo sobrepõe-se à identidade nômade cigana. De fato, não há um processo de radical anulação
da identidade cigana, pois alguns elementos mágicos permanecem, o que vemos é uma rearticulação
identitária, com a nova identidade sobrepondo-se à anterior. Gabo narra dessa maneira esse processo,

A harmonia recobrada só foi interrompida pela morte de Melquíades. Embora fosse um


acontecimento previsível, as circunstâncias não foram. Poucos meses depois de seu regresso,
tinha ocorrido nele um processo de envelhecimento tão apressado e crítico, que de repente
passou a ser tratado como um desses bisavôs inúteis que perambulam feito sombraspelos
dormitórios, arrastando os pés, recordando os bons tempos em voz alta, e de quem ninguém
cuida nem se lembra até o dia em que amanhecem mortos. (Márquez, 2012, pg.112).

Observa-se, que a lógica que opera nos corpos orgânicos somente passa a funcionar, efetivar-
se em Melquíades também após ele abandonar sua tribo. É como se agora, com seus poderes
sobrenaturais reduzidos, o personagem torna-se plenamente humano. Concomitantemente, perde todo o

106
seu prestígio decorrente dos seus poderes mágicos, visto, agora como mais um ancião inútil, sem
qualidades extraordinárias, sem capacidade de realizar descobertas, para oferecer aos habitantes de
Macondo.
Essa forma como Gabo figura os anciãos é recorrente em toda a narrativa, não só quando se
refere a Melquíades. José Arcádio Buendía, o patriarca fundador de Macondo, ao perder a razão é
amarrado em um castanheiro no quintal de sua casa; ou no isolamento de Úrsula Iguarán no momento
de sua velhice, da solidão que o Coronel Aureliano impõe a si mesmo em sua velhice, ou a solidão
autoimposta de Rebeca. Seria como se o passar do tempo potencializasse o caráter solitário dos
habitantes de Macondo. Sobre Rebeca é interessante assinalar que, no presente romance, Gabo faz uma
referência direta ao primeiro conto de Os Funerais de Mamãe Grande (1975), um livro de contos
lançado originalmente em 1962, A sesta da terça-feira,

Tudo começara na segunda-feira da semana anterior, às três da madrugada e a poucas quadras


dali. A senhora Rebeca, uma viúva solitária que vivia em uma casa cheia de cacarecos,
percebeu por entre o rumor da chuva fina que alguém tentava forçar da rua pelo lado de fora.
Levantou-se, procurou tateando no guarda-roupa um revólver arcaico que ninguém havia
disparado desde os tempos do coronel Aureliano Buendía, e foi para a sala sem acender as
luzes. Orientando-se menos pelo ruído da fechadura que por um terror desenvolvido nela por
28 anos de solidão, localizou na imaginação não só o lugar em que estava a porta como a altura
exata da fechadura. Segurou a arma com as duas mãos, fechou os olhos e apertou o gatilho. Era
a primeira vez na vida que disparava um revólver. Imediatamente após a detonação não ouviu
nada além do murmúrio da chuva fina no teto de zinco. Depois percebeu um barulhinho
metálico na calçada de cimento e uma voz muito baixa, tranquila, mas terrivelmente fatigada:
“Ai, minha mãe”. O homem que amanheceu morto diante da casa, com o nariz despedaçado,
vestia uma blusa de flanela de listas coloridas, uma calça ordinária com uma corda em lugar de
cinto, e estava descalço. Ninguém conhecia no povoado. (Márquez, 1975, pgs 16-17).

Em Cem Anos de Solidão nosso autor rememora esse conto:

Assim que o cadáver foi tirado da casa, Rebeca fechou as portas e se enterrou em vida, coberta
por uma grossa crosta de desdém que nenhuma tentação terrena conseguiu romper jamais. Saiu
à rua uma única vez, já muito velha, com uns sapatos cor de prata antiga e um chapéu de flores
minúsculas, na época em que o Judeu Errante passou pelo povoado e provocou um calor tão
intenso que os pássaros atravessaram as telas das janelas para morrer nos dormitórios. A última
vez que alguém a viu com vida foi quando matou com um tiro certeiro o ladrão que tentou
forçar a porta da sua casa. (Márquez, 1975, pg.173).

Porém, uma particularidade que se encontra nessa obra refere-se à questão da construção
estética do herói problemático, sendo esta uma categoria marcante e central na análise do romance do
jovem Lukács (2000). No decorrer da análise que fizemos sobre essa categoria percebemos a
articulação empreendida pelo autor entre o exacerbado desenvolvimento do individualismo na moderna
sociedade burguesa e a figuração estética deste mesmo fenômeno social. O romance é, portanto, a
representação literária desse estar sozinho em um mundo degradado, assim, trata da forma mais
desenvolvida o estranhamento desenvolvido na história da humanidade, Esse descompasso entre o
desenvolvimento social e o desenvolvimento do indivíduo adquire centralidade na estruturação da
107
forma romanesca.
Em Cem Anos de Solidão há uma quebra dessa estrutura clássica do romance. Trata-se da
narrativa da história de toda uma família durante um século de desenvolvimento histórico. Se, no
primeiro momento da referida obra, a narrativa desse romance centra-se nos personagens José Arcádio
Buendía e Melquíades, posteriormente o centro da narrativa recai sobre o coronel Aureliano Buendía e,
na parte final da obra, Aureliano Babilônia centraliza a ação da obra romanesca. Porém, não se pode
esquecer das marcantes e importantes personagens como Úrsula Iguáran, Fernanda del Caprio, Meme,
Pilar Ternera, dentre outras e outros, o que buscamos chamar a atenção é que Gabo acaba construindo
diversas personagens com um grau de importância similar entre si na estruturação do romance.
De José Arcádio Buendía partiu a ideia de fundar Macondo, mas Melquíades é de
fundamental importância no desenvolvimento da cidade e também é ele que escreve os pergaminhos
que contam todo o desenvolvimento da cidade, Úrsula Iguarán, por sua vez, é um dos personagens
chaves pois perpassa quase todo o romance. A sua força moral tende a manter a estirpe dos Buendía
sempre unida; já Aureliano Babilônia é o membro dessa família que finalmente consegue desvendar
todo o pergaminho de Melquíades e por seu romance com sua tia nasce o temido filho com o rabo de
porco do qual Úrsula tinha medo, além de Fernanda del Caprio representando a figura do colonizador
espanhol mesmo que em um momento de franca decadência.
Essa particularidade da obra de Gabo entendemos que tem uma dupla explicação: à primeira
vincula-se com a própria estrutura do romance, é um elemento interno à obra; à segunda refere-se a um
contexto próprio da história da América Latina, dessa forma, trata-se de um componente externo à obra
mas se torna uma característica interna do romance, tal como já explicitamos no capítulo teórico sobre
a relação entre aquilo que é uma determinação exterior mas torna-se ela mesmo um componente
estruturante de uma determinada obra.
A primeira explicação vincula-se a questão da temporalidade, do período histórico que Gabo
buscou representar em Cem Anos de Solidão, ou seja, por narrar a trajetória de Macondo durante cem
anos houve a possibilidade de desenvolver uma variedade de personagens com importâncias similares
dentre do mesmo romance.
A segunda explicação relaciona-se com questões culturais que se encontra em nosso
continente. Pois, os arranjos familiares na América Latina distanciam-se da forma de estruturação
efetivada na Europa no período em que se passa a narrativa do romance. Naquele período a
constituição da família abrangia não somente aqueles que têm um grau de parentesco baseado na
consanguinidade, a família se acolhia indivíduos que não lhe pertencem biologicamente, não seria
exagero afirmar que na América Latina existia uma forma de família um tanto quanto ampliada,
alargando o conceito de família nuclear burguesa, filhos legítimos, filhos ilegítimos, amantes, netos
tanto legítimos como não legítimos, empregados e empregadas todos estariam englobados nessa
108
família latina. Cabo salientar que essa nova afirmação sobre as peculiaridades da constituição familiar
e a forma como Gabo a representa nessa obra está vinculado ao período histórico na qual a narrativa se
passa, lembremos que a história se dá entre os séculos XIX e XX, portanto temos consciência das
profundas transformações que a instituição família passou ao longo dos tempos e que fez com que se
aproximasse cada vez mais a típica família nuclear que se encontram na Europa Ocidental e nos EUA.
Assim como, a constituição de outras famílias, como no caso de Aureliano Segundo e Petra Cotes,
talvez seja mais explícito e tolerável nessa parte do mundo do que em outros lugares. Gabo narra da
seguinte forma essa particularidade,

A maior preocupação de Fernanda em seus anos de abandono era que Meme fosse passar as
primeiras férias e não encontrasse Aureliano Segundo em casa. A congestão pôs um fim a esse
temor. Quando Meme voltou, seus pais tinham chegado a um acordo não para que a menina
acreditasse que Aureliano Segundo continuava um esposo domesticado, mas também para que
não notasse a tristeza da casa. Todos os anos, durante dois meses, Aureliano Segundo
representava seu papel de marido exemplar e promovia festas com sorvetes e biscoitinhos, que
a alegre e vivaz estudante abrilhantava com o clavicórdio. (Márquez, 2012 pgs. 295-297).

Retornando a Ninguém Escreve ao Coronel, a figuração de um evento particular, isolado,


da espera do coronel por sua pensão se vincula a uma questão histórica mais ampla, a da Guerra
dos Mil Dias, da luta política entre conservadores e liberais na Colômbia que, por sua vez, é uma
figuração artística que transcende a realidade colombiana sendo em boa medida uma expressão de
conflitos que ocorreram em vários países de nosso continente. Essa é a lógica da forma novelística.
Na forma romanesca há uma figuração de uma multiplicidade de pequenas histórias que se
ligam entre si através da personalidade do personagem principal, numa multiplicidade de novelas
com uma relativa autonomia perante o enredo principal de determinada narrativa romanesca,
Lukács (2011) sintetiza dessa maneira a forma romanesca,

O novo romance recolhe da narrativa medieval a liberdade e heterogeneidade da composição de


conjunto; a sua dispersão numa série de aventuras singulares ligadas entre si somente pela
personalidade do protagonista principal; a relativa autonomia destas aventuras, cada uma das
quais se apresenta como uma novela acabada; a amplitude do mundo representado. (Lukács,
2011, pg.213).

A importância da comparação entre a forma novelística e a forma romanesca, entre Ninguém


Escreve ao Coronel e Cem Anos de Solidão, para nossa tese relaciona-se com a forma como Gabo
parece aglutinar os elementos dessas narrativas anteriores na obra em questão. Em Cem Anos de
Solidão encontra-se uma significativa caracterização dos personagens e das situações na qual se
desdobra o drama, isto pode ser observado em diversos momentos, tais como: a história sobre a luta
entre conservadores e liberais, a caracterização mais minuciosa de uma personagem como Rebeca, há a
discussão mais aprofundada sobre questões como a solidão, a morte, o desenvolvimento de Macondo e,

109
sobretudo, a amplitude na representação da realidade histórico- social.
Nesta obra a solidão adquire uma importância significativa, sobretudo aquela que advém com
a passagem dos anos. A velhice convive com o isolamento social forçado, como no caso de José
Arcádio Buendía ou auto imposto como nos casos de Rebeca e do Coronel Aureliano. É interessante
notar que o tema da velhice ou como a velhice se encontra representada por Gabo destoa do modo de
vivenciar essa fase da vida em determinadas formas sociais pré-capitalistas, como as ameríndias ou
antigas sociedades africanas, nas quais os mais velhos são visto como aqueles que acumularam
sabedoria ao longo do tempo. Em Cem Anos de Solidão os idosos encontram-se relegados à solidão,
como se no final da vida restasse apenas o recolhimento e o isolamento social, a solidão, seria o único
desfecho possível, assim como, ocorre com a cidade de Macondo. O fim é a solidão.
Nesse sentido a solidão aparece como um fim inevitável na estrutura narrativa de Cem Anos
de Solidão. É esse caráter de inevitabilidade que se encontra nesse romance que pode ser aproximado
de uma possível dimensão mítica estruturante dessa narrativa. Apontamos, mesmo de forma incipiente
essa questão e retomaremos de forma mais detalhada mais adiante, essa leitura que vincula a questão
mítica com a estrutura do romance em tela. Adiantemos que em nossa análise percebemos essa
inevitabilidade enquanto resultado do próprio processo histórico que marcou a história da América
Latina.
Mas o sentido de solidão que Gabo empresta a esse vocábulo foge em certo ponto ao
entendimento mais difundido no senso comum. A solidão cujo significado social muitas vezes se
vincula a um processo de tristeza, da falta de um vínculo entre indivíduos sociais ancorada, por sua
vez, no exacerbado individualismo da modernidade capitalista, é vista por Gabo de modo distinto, pois
aparece como um todo que significa mais uma forma de estrutura social em muito dissonante do
ideário de desenvolvimento social que tem com marco e régua o processo de desenvolvimento ocorrido
na Europa ocidental, soma-se a isso a inadequação em entender nossas particulares através da forma
como o capitalismo se desenvolveu por lá, dessa forma, somos exóticos, sem alma, seres inferiores,
todo o continente se encontra atrasado em relação à Europa. Portanto, o sentido da solidão nessa obra,
acreditamos se distancia daquela solidão pela qual Lukács já havia apontado como uma das
características marcantes da modernidade capitalista. Não entendemos a solidão sob esse prisma, a
entendemos como uma incessante busca pela construção de uma identidade própria e de um
desenvolvimento social diferente daquele desenvolvimento experimentado pelos países capitalistas
centrais. Sendo assim, pode-se compreender a solidão que persiste nos variados personagens da obra,
como José Arcádio Buendía, Aureliano Buendía, Meme, Aureliano Triste, que em suas sucessivas
buscas por efetivar seus sonhos, seus ideais sempre malogram. Gabo afirma,

110
Não obstante, os progressos da navegação que reduziram tanto as distâncias entre nossas
Américas e a Europa parecem haver aumentado nossa distância cultural. Por que a
originalidade que é admitida sem reservas em nossa literatura nos é negada com todo tipo de
desconfiança em nossas tentativas tão difíceis de mudança social? Por que pensar que a justiça
social que os europeus desenvolvidos tratam de impor em seus países não pode ser também um
objetivo latino-americano, com métodos distintos e em condições diferentes? Não: a violência
e a dor desmedida da nossa história são o resultado de injustiças secularese amarguras sem
conta, e não uma confabulação urdida a três mil léguas de nossa casa. Mas muitos dirigentes e
pensadores europeus acreditaram nisso, com o infantilismo dos avós que esqueceram as
loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse possível outro destino além de viver à
mercê dos dois grandes donos do mundo. Este é, amigos, o tamanho de nossa solidão
(Márquez, 2012, pg.11).

Contudo, essa forma de dar significado ao termo solidão não faz com que nessa obra exista
uma negação total do desenvolvimento social e muito menos uma crítica ao desenvolvimento, ou
melhor, ao intercâmbio maior entre os diferentes povos do mundo, marca inconteste da América
Latina. Lembremos do impulso irresistível que José Arcádio Buendía sente pela ciência, pelas
descobertas que o mundo desenvolveu para o progresso humano, por acreditar ainda na possibilidade
de desenvolvimento do homem, do progresso humano mesmo com marcas especificamente latinas, da
forma que analisamos a figuração dessa categoria na presente obra em estudo.
Por outro lado, há no romance uma busca intensa em superar o isolamento de Macondo,
através da expedição de José Arcádio Buendía, na posterior construção da estrada de ferra, no desejo
expresso por Úrsula em sair desse isolamento.
A própria lógica da mestiçagem aponta nessa direção. Mais do que isso a mestiçagem é o
signo de nossa solidão, devemos salientar que a solidão em Gabo não tem o significado corrente mas a
característica particular da América Latina e que a faz ser única. Portanto, toda aquela discussão acerca
da especificidade do continente latino-americano é nesse trecho em questão representado literariamente
por Gabo, o processo de construção identitária heterogênea marca de nosso espaço geográfico e
cultural passa a influenciar não só os habitantes de Macondo como também reverbera no próprio
personagem Melquíades. Então, uma característica da estrutura social de nossa continente, a
mestiçagem, é ela mesmo elemento interno dessa obra narrativa, como nos chamou a atenção Antônio
Cândido. Há, portanto, uma troca de experiências sociais e culturais entre esses dois personagens do
romance, além disso, diferentemente do ocorrido no processo de colonização da América Latina, essa
relação não se desenvolve sob o signo da violência.
A lógica dessa relação se fundamenta em outros elementos estranhos aos imperativos das
relações sociais que se tornam predominantes com o advento e o desenvolvimento do capitalismo em
suas fases colonialistas e imperialistas. Pois, essa relação de ambos não são pautadas pelos valores de
troca mercantis e sim por um sentimento de solidariedade e irmandade. Nesse sentido, a narrativa de
Gabo nos remete a uma forma de sociabilidade que carrega muitas características das sociedades pré-
capitalistas. Sociedades nas quais as relações sociais não se pautavam pelos valores de troca, pelo
111
dinheiro, pela lógica mercantil de troca e pela emergência das duas classes sociais fundamentais do
capitalismo: o proletariado e pela burguesia.
Talvez por essa razão a forma como é construída a relação entre os dois pelo autor é pautada
por elementos positivos. Mesmo porque muitas das peripécias de José Arcádio Buendía somente foram
possíveis por conta do estímulo de Melquíades e também por causa dos instrumentos tecnológicos que
ele apresentou ao patriarca de Macondo. Paulatinamente José Arcádio Buendía deixe de ser o
empreendedor e patriarca juvenil de Macondo para dar vazão a sua paixão aventureira, tudo isso com a
forte influência de Melquíades. Nessa parte da narrativa o patriarca decide se aventurar pelo mundo
com o intuito de abrir um caminho para que Macondo entrasse em contato com o resto do mundo,

Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo. Arrastado pela febre dos
ímãs. Dos cálculos astronômicos, dos sonhos de transmutação e das ânsias de conhecer as
maravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcádio Buendía transformou-se num
homem de aspecto folgazão, descuidado no vestir, com uma barba selvagem que Úrsula
conseguia aparar a duras penas com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse
vítima de algum sortilégio. Mas até os mais convencidos de sua loucura abandonaram trabalho
e famílias para segui-lo quando jogou sobre os ombros suas ferramentas de desbastar matos e
bosques e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em
contato com os grandes inventos.
[…] Sempre atento à bússola, continuou guiando seus homens rumo a um norte invisível, até
que conseguiram sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão
estava impregnada por um ar novo e limpo. Exauridos pela longa travessia, dependuraram suas
redes e dormiram pesado pela primeira vez em duas semanas. Quando despertaram, já com o
sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de samambaias e palmeiras,
branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol.
(Márquez, 2012, pgs.51-53).

Nesse trecho da narrativa evidencia-se as mudanças pelas quais José Arcádio Buendía passa,
muito por conta da influência do cigano Melquíades e a necessidade advinda dessas mudanças em
encontrar um caminho que faça com que Macondo entra em contato com outras localidades. A birra de
Úrsula com relação ao cigano é a de justamente fazer com que seu marido se torne relapso com suas
obrigações de pai e de patriarca da aldeia e, por conseguinte, passa a direcionar suas energias para o
desenvolvimento da ciência, mais precisamente da ciência mistificada de Melquíades. Nessa busca ao
se deparar com o mar José Arcádio Buendía se desespera imaginando erroneamente que Macondo
estava cercado pelo mar. Dessa forma, ele e sua esposa acreditavam que nunca poderiam estabelecer
um intercâmbio com outras localidades, a aldeia estava fadada ao isolamento perpétuo, o que no
decorrer da narrativa se mostrará errôneo, por fim o patriarca lamenta: “Aqui vamos apodrecer em
vida, sem receber os benefícios da ciência.” (Márquez, 2012, pg.54).
Talvez não seja exagerado traçar um paralelo entre o isolamento geográfico da aldeia de
Macondo e o isolamento da América Latina no período que antecedeu a conquista e posterior
colonização dos povos latinos pelos europeus da Península Ibérica. Essa busca por informações e pelo
intercâmbio entre Macondo e o restante do mundo é um objetivo perseguido pelos habitantes de

112
Macondo em boa parte do presente romance de Gabo.
A partir dessa necessidade de estabelecimento de um maior intercâmbio entre Macondo e o
resto do mundo é inserido na narrativa o peculiar personagem Francisco, o Grande que leva as notícias
do mundo para Macondo, porém diferentemente de Melquíades ele não leva à aldeia as descobertas da
história da humanidade mas somente comunica os acontecimentos do mundo para quem estiver
disposto a pagá-lo.

Meses depois, voltou Francisco, o Homem, um andarilho ancião de quase 200 anos que passava
com frequência por Macondo divulgando canções compostas por ele mesmo. Nelas, Francisco,
o Homem, relatava com detalhes minuciosos as novidades acontecidas nos povoados em seu
itinerário, de Manaure aos confins do pantanal e, se alguém tinha algum recado para mandar ou
um acontecimento para divulgar, pagava a ele dois centavos para ser incluído em seu território.
Foi desse jeito que, por acaso, Úrsula ficou sabendo da morte de sua mãe, na noite em que
escutava as canções com a esperança de que dissessem alguma coisa de seu filho José Arcádio.
Francisco, o Homem, que assim era chamado por ter derrotado o diabo num duelo de repentes,
e cujo verdadeiro nome ninguém jamais ficou sabendo, desapareceu de Macondo durante a
peste da insônia e certa noite reapareceu sem aviso algum na taberna de Catarino. (Márquez,
2012, pgs. 92-93).

Não seria exagero de nossa parte afirmar que Gabo acaba tecendo uma analogia entre o
isolamento geográfico de Macondo e a solidão que caracterizaria o nosso continente e que é uma pedra
de torque na estrutura do romance analisado. Nesse sentido, a busca pela superação de nossa solidão
geográfica, social e cultural perpassa a construção estética de variados personagens como o próprio
José Arcádio Buendía, o Coronel Aureliano ou Meme, Amaranta Úrsula, dentre outros personagens.
Apesar das inúmeras tentativas de superação dessa solidão social e cultural, pois a geográfica
é superada em determinado momento da narrativa, há um recorrente fracasso nessas tentativas. José
Arcádio Buendía no fim de sua vida acaba enlouquecendo, o Coronel Aureliano termina sua vida na
mais completa solidão e Meme, um dos últimos membros da família Buendía, acaba morrendo em seu
parto em decorrência do incesto praticado com seu sobrinho, Aureliano Babilônia. Essa solidão que
aparece no título e acaba sendo quase que um destino trágico dos personagens do romance vincula-se
ao próprio desenvolvimento de nosso continente, a própria especificidade que faz da América Latina
um espaço tão diametralmente oposto ao continente europeu.
Ao lado disso, como foi por nós analisados no primeiro capítulo, a tradição do realismo
mágico latino-americano insere-se em um debate mais longínquo sobre a natureza da identidade dos
habitantes dessa miraculosa realidade. Identidade caracterizada pela sua heterogeneidade cultural,
social e econômica e, que, produziu nessas terras uma forma societária na qual os padrões sociais da
Europa entraram em choque com as formas de vida cultivadas pelas populações autóctones, bem como,
com o modo de organização dos negros africanos que foram escravizados, tudo isso mediado pela mais
extrema violência.
É essa natureza heteróclita da América Latina que produz ou que produziu essa dificuldade
113
em se inserir no processo de modernização capitalista. Solidão, identidade e independência formam
uma tríade importante para se entender a estrutura narrativa de Cem Anos de Solidão, em especial,
sobre a natureza solitária de toda a família Buendía, se pensarmos a odisseia dessa família como um a
metáfora de toda a América Latina. Sobre a solidão já tecemos nossa análise logo acima, do caráter
heteróclito da cultura na América Latina o que produz por sua vez uma singularidade/solidão perante
os países coloniais/imperialistas, as buscas pela formação identitária pela qual passamos, como, por
exemplo, os intercâmbios entre os diferentes personagens de localidades díspares tendo Melquíades um
papel preponderante na narrativa, pois ele é uma metáfora que carrega em si o conhecimento da
história da humanidade, ele é a autoconsciência da humanidade e que ajuda no desenvolvimento de
Macondo, como já apontamos, identidade pois não é exagero afirmar que a construção da identidade
latino americana é um tema importante na estrutura dessa obra e também a independência da América
Latina, tanto em termos culturais, sociais e econômicos, adquire também uma grande importância na
narrativa de Gabo.
Dessa complexa dialética entre solidão/construção da identidade emerge na obra romanesca a
necessidade de se figurar esteticamente o processo e a busca pela independência política de nosso
continente perante a Espanha e a Portugal. Necessidade essa que se fundamenta na lógica de que
somente com o rompimento da dependência política se tornaria possível alcançar a independência
cultural e a independência econômica. Lembremos de toda a discussão de variados teóricos latinos que
se debruçaram sobre qual seria nossa identidade no mundo, assim como, devemos recordar o ímpeto
que moveu o revolucionário latino Simón Bolivar (1783-1830). O objetivo desse revolucionário
nascido na Venezuela era o de lutar pela independência dos países que até aquele momento eram
colônias da Espanha, porém não se resumiu a isso, ele objetivava também que houvesse além da
independência das colônias uma construção de uma unidade econômica, política e cultural em torno de
uma Pátria Grande, que englobaria o que hoje são os países da Bolívia, Venezuela, Peru, Colômbia,
Equador, Panamá e Peru.
Portanto, dessa forma, muito do que é representado em Cem Anos de Solidão no que se refere
à solidão, à identidade e à independência e, que aparentemente nos faz interpretar a obra como marcada
por uma espécie de fatalismo místico, exemplificando nossa afirmação podemos citar a inevitabilidade
da destruição de Macondo, nos parece mais com a representação histórica do passado de nosso
continente e que muitas dessas lutas por uma independência tanto cultural quanto política e econômica
malograram.
Se a forma épica, da qual o romance é uma das objetivações possíveis, como afirma Lukács
(2000) e, se o romance histórico é uma representação de uma realidade pretérita nos parece mais
correto afirmar que o malogro dessas buscas empreendidas pelos diversos personagens do romance que
ora estamos analisando seria em virtude de figurar-se esteticamente uma realidade que malogrou, sem,
114
no entanto, cair em uma representação da realidade somente marcada por esses fracassos históricos.

115
3.3 Tempos presente, passado e futuro: as diferentes temporalidades de Macondo.

Em momentos anteriores do presente capítulo tecemos algumas breves considerações acerca


da representação do tempo em Cem Anos de Solidão, especialmente no momento em estávamos
analisando o personagem Melquíades e sua complexa relação com o tempo. Nesse subcapítulo,
portanto, iremos analisar as diferentes temporalidades e como elas se entrecruzam nessa narrativa de
Gabo. Acreditamos que a maneira como nosso autor figura literariamente essas temporalidades
distintas, passado, presente e futuro, é um ponto forte na renovação formal da qual essa obra é um
exemplo paradigmático.
Atentemos para o fato de que essa subversão da representação temporal no romance mágico
da América Latina não é o traço essencial que o diferencia de outras obras romanescas vanguardistas,
James Joyce, Marcel Proust, Samuel Beckett e William Faulkner, dentre outros, também realizaram
experimentos formais no qual o tempo é representado de maneira distinta da encontrada no romance
clássico realista. Mas, a questão central, que diferencia a tradição literária do realismo mágico das
vanguardas literárias da Europa e dos EUA, encontra-se na sua acentuada subjetivação da figuração da
realidade objetiva.
No romance histórico clássico a figuração do tempo respeitava a sua forma de transcorrer em
nossa vida cotidiana, ou seja, passado, presente e futuro eram representados de maneira linear.
Portanto, a representação do tempo de forma linear era uma condição central para que houvesse uma
figuração realista do mundo objetivo, tal como Lukács (2011) analisa. No realismo mágico o tempo
não se encontra representado de forma linear, entretanto não se perde o princípio da objetividade, pelo
contrário, sob uma nova forma de representação Gabo consegue representar as diferentes formas de
temporalidades existentes em nosso continente.
Dessa maneira, a representação do tempo naqueles escritores clássicos do romance histórica
apresenta, tal como já foi por nós analisado, ancorado em acontecimentos já transcorridos, a exigência
formal da norma literária consistia em evocar acontecimentos pretéritos como para fixar- se
determinado desenvolvimento do presente. Esse “anacronismo necessário”, desse passado
representado enquanto uma pré-história do presente, será de fundamental importância em nossa
análise para compreender as diferentes figurações de temporalidades encontradas no romance que ora
analisamos.
Dessa forma, a estratégia narrativa utilizada por Gabo subverte a tradição clássica do romance
histórico. No entanto, é necessário destacar que em Cem Anos de Solidão as novas formas de
representação do tempo, são articuladas a partir de dois eventos históricos significativos, a Guerra dos
116
Mil Dias e o massacre da companhia bananeira e, como tais eventos influenciam de forma significativa
as ações, valores e pensamentos dos indivíduos médios no romance., caso paradigmático ocorre com
Aureliano Buendía que é por conta dos conflitos entre liberais e conversadores que ele se torna um
líder nacional, o coronel Aureliano Buendía. Este aspecto da obra analisaremos de forma mais
detalhada na próxima parte da tese, mantendo aqui, o foco na representação do tempo, articulando
passado, presente e futuro sem, no entanto, perder as determinações mais essenciais da realidade
histórica. Gabo, nesse sentido, realiza uma atualização bem particular sobre a forma do romance
histórico.
Sugerimos que, se essas obras não se pautam por uma forma de representação linear do tempo
e nem opera um jogo em que há uma oscilação entre um subjetivismo e um objetivismo temporal, o
fundamento dessa nova estrutura de representação do tempo presentes no realismo mágico latino-
americano explica-se ou melhor tem sua fundamentação empírica na própria constituição ontológica da
realidade em nosso continente. Como afirmou Carpentier, já assinalado no primeiro capítulo da
presente tese, a lógica que opera em nossa realidade é em si mesma mágica, portanto culturalmente a
forma como experienciamos o tempo é essa mistura, essa coexistência entre passado, presente e futuro.
Exemplificando nossa afirmação, se pensarmos, por exemplo, sobre o significado da morte em
nosso continente e a sua representação literária teremos uma dimensão dessa peculiar maneira de
vivenciar-se o tempo ou os tempos mais precisamente no romance mágico latino-americano. Pois, o
significado da presença da morte nas relações sociais estabelecidas pelos vivos é uma forma de fazer
com que coexistam o passado, o presente e o futuro nessa tradição literária.
Desenvolvendo melhor essa afirmação, a permanência dos mortos entre os vivos pode ser
entendida como o peso das tradições e saberes pretéritos que, por sua vez, influência o comportamento
do indivíduo no presente orientando seu comportamento futuro. Então, a morte pode ter o significado
de um passado que ainda determina tanto o presente quanto o futuro de quem ainda se encontra vivo.
Qual o sentido da morte em Pedro Páramo de Juan Rulfo? Escritor que teve uma grande
influência em Gabo segundo o mesmo, certa vez ele chegou a afirmar que Pedro Páramo havia-lhe
mostrado os caminhos que deveria seguir em sua trajetória literária, afastando-se da representação de
um passado mexicano dos caudilhos e da revolução mexicana que ainda teima em influenciar o
presente. Metaforicamente aquela atmosfera sufocante que perpassa o povoado de Comala seria a
forma como Rulfo figura o peso do passado colonial do México e, também de como os mortos ainda
travam o processo de modernização daquele país.
Essa interpenetração entre vida e morte parece ser, em maior ou menor grau, um componente
cultural que particulariza a América Latina. Porém, essa marca cultural se efetiva no México de uma
forma bastante intensa produzindo naquele país um culto a uma figura que representa a própria morte.
Isso possibilita que na obra de Rulfo exista uma espécie de indefinição entre os vivos e os mortos. Em
117
Pedro Páramo narra-se a busca de um personagem Juan Preciado, procura por seu pai, o Pedro Páramo
do título, para cumprir promessa feita à sua mãe em seu leito de morte. Como seu pai morava na cidade
de Comala é para lá que Juan Preciado irá, porém logo no início do romance o próprio personagem em
busca do pai morre e a sua descoberta será feita no decorrer do romance, através das vozes de variados
personagens-mortos traça-se o perfil de Pedro Páramo e quais as razões para ser odiado por todos, em
especial pela mãe de Juan Preciado. Existe, dessa forma, uma unidade entre morte/vida,
realidade/magia e, principalmente entre temporalidades distintas. Cantarelli (2013) nos esclarece,

À primeira vista, a ideia de estabelecer a morte como um símbolo nacional surpreende. A partir
do imaginário cristão e de uma concepção linear de tempo, essa ideia parece aniquilar a
perspectiva de futuro da sociedade mexicana, fadando-a a uma espécie de perecimento gradual
ou a uma estagnação na qual o presente reproduziria o passado sem qualquer projeção de
futuro. Tal concepção “amputaria” a percepção de desenvolvimento ou ainda de avanço social,
econômico e intelectual. Porém, o imaginário acerca da morte construído no México envolve
ao menos outra face atuante da constituição do pacto social: a concepção pré-colombiana de
morte das tribos indígenas e a concepção circular do tempo por elas adotada. A união do
imaginário cristão e do imaginário indígena mexicano em um processo transculturador somada
ao processo histórico vivenciado pelo México desde a chegada dos espanhóis, deu origem às
configurações assumidas pela morte nesse país. (Cantarelli, 2013, pg.144).

A essa circunstancia religiosa acresce-se as próprias peculiaridades geográficas e históricas


no México. Parte do território mexicano é composto por regiões desérticas, pouco propícias a um
desenvolvimento social e econômico mais intenso, por ouro lado, o México conheceu dois grandes
conflitos armados que dizimaram boa parte da população economicamente ativa, especialmente os
homens, foram os conflitos da Revolução Mexicana59 e da Guerra Cristera 60
. Nesse sentido, a
confluência desses componentes da realidade mexicana permitiram a Juan Rulfo representar
literariamente o mundo empírico, objetivo, no qual se encontrava inserido. Talvez por isso há a
figuração onipresente da morte nessa narrativa que tanto influenciou nosso Gabo em seu itinerário
literário.
A direção tomada pelo romance mágico latino-americano somente foi possível pelas próprias
particularidades de nossa história. Isso vale tanto para Juan Rulfo quanto para Gabriel Garcia Márquez.
Há, dessa forma, uma linha de continuidade entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos que, por
sua vez, encontra-se em uma profunda dissonância com o catolicismo ibérico tal como Cantarelli

59 A Revolução Mexicana de 1910 foi o movimento armado que conseguiu colocar um ponto final no poder de Porfírio
Díaz, um presidente que, após ser eleito pela primeira vez, em 1876, mudou a constituição para poder ser reeleito várias
vezes. Para uma discussão mais aprofundada ver: A Revolução Mexicana: seu alcance regional, precursores, a luta de
classes e a relação com os povos originários.
60 Conflito armado ocorrido no México que teve início em 1926 e perdurou até 1929. Esse conflito opôs os crentes
católicos e o governo do México sobre o direito à liberdade religiosa. Também ficou conhecido como cristiada. Para
maiores informações ver: Gamonalismo y redes de poder local en el nordeste Antioqueño, Colombia, 1930-1953).

118
(2013) afirmou. A morte não causa maiores espantos entre os vivos, pelo contrário, podemos afirmar
que estrutura significativamente a vida dos vivos.

Nesse sentido, tal relação é uma particularidade das próprias formações sociais dos
ameríndios, tal como Cantarelli apontou, a espontaneidade com esses povos cultuam os mortos não é
encontrada nem no catolicismo ibérico, nem nas religiões de tradição africana. Pois, se, por um lado,
não há um culto sistematizado e institucionalizado para os mortos no catolicismo ibérico e nas religiões
de matrizes africanas, por outro lado, esse culto é fortemente marcado por um profundo respeito e
afastamento na relação entre os vivos e os mortos, e por uma doutrina de culto bastante rígida que se
encontra no culto aos Egunguns61.
A influência da temporalidade dos ameríndios encontra-se de modo marcante em Cem Anos
de Solidão. Percebemos que através da mediação dos pergaminhos de Melquíades encontram-se
condensados, coexistem, todo o desenvolvimento histórico de Macondo, passado, presente e futuro já
se encontravam determinados de antemão, através de seus pergaminhos, por esse personagem da obra.
Essa figuração temporal objetiva-se na estrutura dos próprios pergaminhos de Melquíades e na língua
utilizada por ele para escrevê-los, o sânscrito.
Como fica evidenciado na parte final do romance é por meio de Aureliano Babilônia que os
pergaminhos são finalmente decifrados e traduzidos para a linguagem materna dele, ou seja, o
castelhano. A língua utilizada por Melquíades para escrevê-los é o sânscrito, língua que tem sua
origem no oriente, na Índia, e, provavelmente tem uma relação, com as origens históricas da etnia
cigana e da língua escolhida por Melquíades para escrever seus pergaminhos. Do ponto de vista da
forma, os pergaminhos apresentam vínculos com o passado da humanidade, pois os versos pares
estavam escritos com os códigos pessoais do imperador Augusto (63 a.C- 14 d.C), sendo este o
primeiro imperador da Roma antiga, e os versos ímpares através dos códigos militares da
Lacedemônia, também conhecida como Lacônia ou Esparta. Gabo, em uma passagem de intensa beleza
narra o momento em que Aureliano Babilônia começa a decifrar os pergaminhos,

Encontro-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos


luminosos que haviam desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela
terra, e não teve serenidade para levá-los até a luz, mas ali mesmo, de pé, sem a menor
dificuldade, como se tivessem escritos em castelhano debaixo do resplendor deslumbrante do
meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades
nos seus detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Tinha redigido em sânscrito, que
era sua língua materna, e havia cifrado os versos pares com os códigos pessoais do imperador
Augusto, e os ímpares com códigos militares da Lacedemônia. A chave final, que Aureliano

61 Segundo Balbino Daniel de Paula, alagbá do Ilê Agboulá, todo ser humano ao morrer se torna um egun, porém para
realizar a passagem de egun para egungum e ser objeto de culto, deve ser realizado variados rituais de purificação durante o
período de sete anos. Então dentro das religiões de matrizes africanas há uma nítida separação entre os eguns e os
egunguns, mesmo com esses últimos deve haver o máximo respeito e também não existe uma relação tão próxima com os
vivos como existe no México.
119
começava a vislumbar quando se deixou confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, tinha sua
raiz no fato de Melquíades não ter ordenado os fatos no tempo convencional dos homens, mas
concentrando um século de episódios cotidianos, de maneira que todos coexistissem num
mesmo instante. Fascinado pelo achado, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas
cantadas que o próprio Arcádio escutar, e que na realidade eram as predições de sua execução,
e encontrou anunciado o nascimento da mulher mais bela do mundo que estava subindo aos
céus de corpo e alma, e conheceu a origem dos gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar
os pergaminhos, não apenas por incapacidade e inconstância, mas porque suas tentativas eram
prematuras. (Márquez, 2012, pg.446).

Portanto, através da articulação entre o sânscrito e a as formas pretéritas de estruturação dos


pergaminhos, através de uma tradição da Grécia antiga – dos versos ímpares – e, da tradição da Roma
antiga – dos versos pares – há uma convergência entre três tradições das mais antigas da humanidade, a
da Índia antiga, do oriente, a da Grécia antiga, localizada nos interstícios entre oriente e ocidente e, por
fim, a tradição da Roma antiga, o ocidente. Todos esses momentos históricos coexistindo em uma
mesma temporalidade tem como função estética contar a história de uma localidade, Macondo, em um
momento histórico bem posterior, entre os séculos XIX e XX.
Através da língua utilizada pelo cigano e pela forma como ele escreve os pergaminhos Gabo
reafirma a complexa inter-relação entre o passado, o presente e o futuro que encontramos nessa obra.
Dessa maneira, o processo de supressão da temporalidade linear vincula-se também fortemente ao
personagem do cigano Melquíades. Mas não é somente a representação temporal que apresenta essa
dimensão mágica em relação a este cigano, como consequência de suas qualidades miraculosas,
também a figuração do espaço também se traveste desse teor mágico. Somente alguém com poderes
sobrenaturais poderia ter vivido em diferentes espaços geográficos em um período histórico no qual os
meios de transporte não eram desenvolvidos a tal ponto de possibilitar o conhecimento de áreas tão
distantes entre si. Nesse trecho da obra Gabo narra dessa forma essa aura miraculosa de Melquíades no
tocante ao tempo e ao espaço,

Naquela altura, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Em suas primeiras
viagens parecia ter a mesma idade de José Arcádio Buendía. Mas, enquanto José Arcádio
conservava sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando- o pelas
orelhas, o cigano parecia arruinado por um mal tenaz. Era, na verdade, o resultado de múltiplas
e raras doenças contraídas em suas incontáveis viagens ao redor do mundo. Segundo ele
mesmo contou a José Arcádio Buendía enquanto ajudava a montar o laboratório, a morte o
seguia em todos os lugares, pisando seus calcanhares, mas sem se decidir a dar o golpe final.
Era um fugitivo de todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano.
Sobrevivera à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em
Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto da Sicília e a
um naufrágio multitudinário no estreito de Gibraltar. (Márquez, 2012, pg.47).

Então, aquele acúmulo de conhecimento de toda a história da humanidade é representado em


Melquíades justamente por essa aura miraculosa que ele possui. Ao transcender as limitações do tempo
é permitido a esse personagem conhecer diversas localidades em diferentes períodos históricos sem nos
causar, enquanto leitores, espanto ou incredulidade. Esse personagem carrega em si qualidades

120
mágicas que nos permitem afirmar que Melquíades talvez seja o único personagem do livro que
consegue transcender os limites do tempo e do espaço simultaneamente. Não há nenhuma barreira
temporal e nem espacial que Melquíades não seja capaz de transpor.
Nenhum outro personagem desse romance possui essa capacidade de transcender de forma
mágica as limitações ontológicas do tempo e do espaço. A nenhum personagem é dado o direito de
conhecer diferentes localidades geográficas tão distantes entre si e em momentos históricos bem
diversos pois, lembremo-nos que ele leva a Macondo inventos desenvolvidos na antiguidade clássica
até o período moderno. Nenhum outro personagem desse romance condensa tão intensamente as
qualidades mágicas de Melquíades. É essa singularidade, de transgredir as leis da temporalidade linear,
que possibilita ao personagem realizar também essa transgressão espacial. Tamanha é a miraculosidade
que encontramos em Melquíades, que ele é o único personagem a quem é dado o direito da
ressurreição, que só perderá esse “direito” no momento em que passa a vivenciar um modo de vida
sedentário ao ir morar na casa dos Buendía.
Além dessa forma miraculosa/mágica de representação do tempo temos também nesse
romance uma figuração de uma temporalidade, da narração de acontecimentos históricos ocorridos na
história da Colômbia, a Guerra dos Mil dias e o massacre da companhia bananeira. Assim, a partir de
Cem Anos de Solidão podemos pensar em duas formas, a representação do tempo: a primeira é a
temporalidade miraculosa/mágica e a segunda refere-se a figuração do tempo histórico. Ressaltamos
que ambas entrecruzam-se, às vezes uma sobrepõe-se à outra, em outros momentos ocorre o
movimento inverso. Nesse sentido Pereira (2007) aponta para essa bifurcação interpretativa,

Na interpretação de C.A.S., observamos que a crítica literária adota basicamente dois caminhos
divergentes. Há críticos que vêem a obra como a representação do local: do Caribe, da
Colômbia e por extensão da América Latina (A.L.); ou seja, a obra é vista como espaço de
representação da história, como metáfora da situação hispano-americana, entrelaçada com a
história da Colômbia. Outros buscam pensar a obra dentro do cruzamento entre História e Mito.
Nesta interpretação, C.A.S. é vista como criação e síntese do mundo, sendo estruturada de
forma mítica, uma metáfora universal da condição humana, revelada através dos membros da
família Buendía. (Pereira, 2007, pg. 64).

Dessas peculiaridades da representação do tempo podemos apontar para alguns momentos da


narrativa em que as quebras temporais ocasionam mudanças significativas para os habitantes de
Macondo, possibilitando, dessa maneira, a figuração de novos momentos históricos. Tais como: a
imigração dos inúmeros comerciantes árabes a Macondo, que antecede o importante episódio da peste
da insônia; a vinda do alcaide na cidade, que precede a eclosão da Guerra dos Mil Dias; ou a
construção da estrada de ferro e suas futuras consequências na história de Macondo com a chegada da
companhia bananeira e o massacre dos trabalhadores.
Na interpretação de Torre (2017) há uma tendência dos estudiosos desse romance em
interpretar a questão do tempo através de três perspectivas: a mítica, a histórica e a temporalidade
121
cíclica. Ainda segundo essa autora os interpretes que buscam analisar o romance através da perspectiva
do tempo mitológico se apoiam fundamentalmente na forma circular do tempo, no determinismo do
destino aparentemente inevitável da família Buendía e da cidade de Macondo e na solidão ontológica
que paira sobre todos os membros da família. Já um segundo grupo de estudiosos adotam uma
perspectiva na qual a representação de eventos históricos adquire proeminência. Sobre a relação entre o
mito, a história e a religião, Torre (2017) afirma,

No que se refere à questão do tempo e da construção narrativa em Cien años de soledad, parto
do pressuposto de que na obra podem ser identificados o tempo mítico, o tempo cíclico e os
tempos históricos. Para essa discussão, vali-me de textos críticos e teóricos. Saliento que, para
pensar o tempo mítico, recorri ao estudo de Michael Palencia-Roth, que concebe o tempo em
Cien años de soledad como um tempo mítico, baseado na tradição judaico-cristã; e em Mircea
Eliade, que concebe o mito como a narrativa de uma história sagrada, que relata um
acontecimento que ocorreu em um tempo primordial. Sob essa perspectiva, relaciono os
acontecimentos primordiais da fundação de Macondo com o tempo mítico. (Torre, 2017,
pg.12).

Mais adiante a autora tece novos esclarecimentos sobre a figuração do tempo dentro dessa
nova narrativa romanesca histórica,

O novo romance histórico, surgido na segunda metade do século XX, conforme discutido pelos
autores mencionados, realiza uma leitura crítica da História, ou seja, de uma vertente da
historiografia, escrita, em grande parte, pelos grupos vencedores que relegavam os vencidos ao
silêncio. O novo romance também aboliu a distância épica, utilizando-se de relatos em primeira
pessoa, monólogos interiores e descrição de subjetividades dos personagens. Os mitos de
fundação passaram a ser degradados, muitas vezes, pelo uso da ironia, da sátira e da
carnavalização. O uso da paródia de textos históricos, ou outros textos, de forma às vezes
sarcástica, atribui outros sentidosaos textos parodiados, despojando os textos históricos de seu
caráter sacralizado. Um dos objetivos do novo romance histórico é propor uma releitura do
passado histórico. (Torre, 2017, pgs.42-43).

Dessas duas formas de representação do tempo que encontramos nessa obra de Gabo
primeiramente iremos nos ater no momento à figuração temporal do tipo mágico., justifica-se esse
escolhe justamente pelo objetivo de nossa tese em centrar a análise nas dimensões mágicas dessa obra
de Gabo. Essa forma específica de figuração de uma temporalidade mágica costuma aparecer em
alguns estudos sobre Cem Anos de Solidão desdobrada em dois aspectos da representação mágica do
tempo, quais sejam: a temporalidade mítica e a temporalidade circular. Para alguns, o tempo
representado de maneira circular seria a confirmação da tese de que existiria nesse romance uma
figuração mítica do tempo, o mito explicaria e fundamentaria a experiência circular do tempo. Nesse
sentido, o romance de Gabo em determinados momentos fundamentar-se-ia em um paradoxo inerente à
própria forma de ser que rege o tempo mitológico, que teria por pressuposto uma temporalidade não-
temporal, pois narra um período anterior a emergência da própria história do mundo e da história dos
homens. Pois, como aparece na narrativa em questão a circularidade do tempo pressupõe que o decurso

122
real do tempo inserido em um movimento ininterrupto entre passado, presente e futuro não ocorre, o
passado é o presente e o futuro se torna a repetição do passado. Essa forma de vivenciar-se o tempo
caracterizar-se-ia por uma espécie de imobilidade, de repetição. Assim, o destino de Macondo e de
seus habitantes já estaria determinado de antemão por força dessa mitologia. Tentaremos realizar uma
análise crítica a esse tipo de interpretação no decorrer dessa tese.

Para essa interpretação, a fundação de Macondo teria como objetivo primordial a construção
de uma realidade de identidades primárias, assim sendo, a figuração da gênese da aldeia se basearia em
uma perspectiva mítica. Sobre o processo de constituição de Macondo, Torre (2017) afirma “A origem
da viagem empreendida por José Arcadio e Úrsula é como uma espécie de expulsão, na qual o rito já se
insinua.” (Ibidem, 2017, pg.74), sendo o pecado e o castigo da relação incestuosa entre José Arcádio
Buendía e Úrsula Iguarán o motivo da viagem que resultou na construção de Macondo.
A autora prossegue, baseando-se na análise de Julio Ortega, “Cien años de soledad y El otoño
del patriarca: texto y cultura”, afirma que a dimensão mítica da obra também se encontra presente na
busca empreendida de José Arcádio Buendía pelo conhecimento. Pois,

O mítico também está presente, na concepção de Julio Ortega, na ânsia de José Arcadio pela
ciência e pelo conhecimento. Essa ânsia leva José Arcadio a um recomeço constante de
experimentos com a variedade de inventos trazidos por Melquíades. Por isso, diz Ortega, a
peste da insônia é uma parábola que revela a experiência recente do homem com o mundo, pois
a realidade é escorregadiça, ameaçada pelo esquecimento, e apenas o conhecimento a fará
tangível. É por essa parábola que o passado começa a ser construído, a partir da conquista da
realidade pelo conhecimento. (Torre, 2017, pg.75).

Então, percebemos que uma visão de mundo religiosa seria o pressuposto que explicaria a
lógica do romance, o surgimento e posterior desaparecimento de Macondo seriam a representação
literária da gênese e do apocalipse bíblico. Novamente citaremos Torre (2017) para exemplificar essa
nossa interpretação,

[…] O caráter mítico está na narrativa de fundação, numa origem baseada na violência e no
incesto, os quais estão relacionados à viagem do casal, que deixa sua cidade natal para fundar
um novo povoado.
Michael Palencia-Roth, no artigo “Los pergaminos de Aureliano Babilonia”, publicado na
Revista Iberoamericana, em 1983, realiza um estudo sobre a questão do mito em Cien años de
soledad. Segundo o autor, no romance estão entrelaçados os mitos de origem e criação, de
incesto e de apocalipse, o mito bíblico de origem e de destruição do mundo. Palencia- Roth
identifica na obra a relação profecia-apocalipse, que é desvendada, quando os pergaminhos de
Melquíades são decifrados por Aureliano Babilonia.
Na concepção de Palencia-Roth, quando os pergaminhos são decifrados e o personagem
percebe que os episódios vividos em Macondo e pela família Buendía foram concentrados de
forma a coexistirem em um único instante, essa é uma visão apocalíptica. Nesse instante, há a
união de uma imagem cósmica, que é aquela que capta o mundo como um todo, com a ideia
religiosa de apocalipse. A literatura apocalíptica está em livros ocultos, secretos, que são
revelados aos escolhidos, assim, os pergaminhos de Melquíades não foram decifrados por
outros personagens que o tentaram, mas apenas para Aureliano Babilonia, que era o
predestinado à revelação, no tempo designado pelo cigano. (Torre, 2017, pgs.80-81).

123
Na interpretação de Michael Palencia-Roth (1983), que consta em seu artigo Los Pergaminos
de Aureliano Babilonia (1983), a chave explicativa encontra-se justamente nos pergaminhos de
Melquíades e no personagem da narrativa que conseguiu decifrá-lo, Aureliano Babilônia, por ter sido,
como se encontra no romance, o único Buendía que teve um filho movido pelo amor. Para o autor
Gabo teria produzido uma literatura que funde uma imagem de mundo cósmica e uma imagem de
mundo apocalíptica, em suma uma interpretação mítica, Palencia-Roth (1983) define dessa forma a
junção entre essas duas formas de interpretação,

Apoiando-nos primeiro nas palavras do crítico canadense Northrop Frye, a técnica de tal visão
descreve << um universo composto inteiramente de metáforas, onde cada coisa é,
potencialmente idêntica uma à outra, como se tudo existisse dentro de um único corpo
infinito>.> Segundo Frye, tal visão é apocalíptica. Ao unir a idéia do apocalipse com a da <<
imagem cósmica >>, quase todos os enigmas de Cem anos de solidão são decifrados sem
grande dificuldade (Palencia-Roth, 1983, pg.410)62.

Prosseguindo com a análise do autor essa imagem cósmica busca captar o mundo em sua
totalidade ou captar a imensidão do universo, imagem essa própria das concepções míticas do homem
primitivo ou das fantasias de nossa infância, pois ambas as visões de vida pretendem construir uma
explicação de totalidade do mundo ou do universo, porém de uma forma mágica não racional. Essa
imagem de mundo cósmica soma-se a uma visão de mundo religioso, ou no caso em questão,
apocalítica, religiosa. Esse autor, entende que o texto deste romance seria uma síntese entre uma visão
de mundo cósmica e uma visão de mundo religiosa. Este seria um ponto de partida para compreender-
se Cem Anos de Solidão em sua totalidade.
A visão de mundo cósmica, segundo esse autor, determinaria na lógica imanente do romance a
representação do início e do fim de Macondo, da figuração dessa totalidade de mundo, por sua vez, a
visão apocalíptica e religiosa vincula-se a questão do determinismo que rege o destino de todos os
personagens do romance. O autor nos esclarece a lógica da visão de mundo apocalíptica no seguinte
trecho,

Ao contrário da tradição profética, que é oral, a tradição apocalíptica é escrita; acaba sendo a
literatura de Melquíades, será lembrado, preocupa-se muito em escrever suas revelações, em
fazer literatura. A numerologia também é importante na tradição apocalíptica: os << 100 anos
>> do título, e seu significado dentro do romance, a importância dessa tradição.
A literatura apocalítica interpreta a história do ponto de vista determinista. Conforme explicado
em Daniel (11,36), o que foi especificado ocorrerá. É somente lendo os pergaminhos que

62 No original: Apoyindonos primero en las palabras del critico canadiense Northrop Frye, la técnica de tal visión describe
<<un universo compuesto totalmente de metaforas, donde cada cosa es, potencialmente idéntica a cada otra, como si
existiese todo dentro de un solo cuerpo infinito>.> Según Frye, tal visión es apocaliptica. Al unir la idea del apocalipsis con
la de la <<imagen cósmica>>,se descifran sin gran dificultad casi todos los enigmas de Cien años de soledad. (Palencia-
Roth, 1983, pg.411)
124
Aureliano Babilonia entende que o ciclo do incesto foi predeterminado (Palencia-Roth, 1983,
pg.411)63.

Como já visto no primeiro capítulo dessa tese, a forma romanesca clássica, incluindo o
romance histórico clássico, caracterizam-se pela representação ou por almejar a representação da
totalidade, dessa forma, essa categoria tem um significado bem restrito. Nas análises de Lukács, o
romance objetiva figurar um determinado período de tempo no qual esteja representado um problema
ou conflito essencial dessa mesma periodização histórica. De forma sucinta podemos afirmar que a
ação no romance abrange o início e o fim, a gênese, o início desse conflito e a sua resolução, ou seja a
figuração da totalidade dos objetos.
Já para Palencia-Roth (1983) essa totalidade está vinculada às fantasias da infância ou às
construções míticas dos povos primitivos, tal perspectiva suscita a questão: de que forma na imanência
do texto literário ora estudado pode-se inferir essa fundamentação explicativa como instância
norteadora da escrita de Gabo? É inegável no romance de Gabo há uma figuração do tempo que se
aproxima de uma estrutura mítica. Porém articular esse elemento cósmico, da necessidade de
representar um “mundo inteiro” com começo, meio e fim, ou concebê-la como uma representação
determinista aproxima-se mais de especulação metafísica do que de uma análise imanente da obra
literária.
Não encontramos na biografia de Gabo nenhuma afirmação que corrobore com esse tipo de
interpretação. O autor continua sua análise afirmando que por consequência dessa temporalidade de
caráter místico as sucessivas repetições, de nomes, de eventos, seria uma prova da atuação do destino,
de uma predestinação que de antemão determina a ação dessa narrativa. A visão de mundo apocalíptica
se assenta em uma lógica na qual a destruição do mundo se torna inevitável. Inevitáveis são os destinos
dos Buendía, inevitável é a solidão que acomete a todos na narrativa, inevitáveis sãs as derrotas do
coronel Aureliano Buendía em suas dezenas de batalhas, “O coronel Aureliano Buendía promoveu
trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas elas.” (Márquez, 2012, pg.144).
Dessa visão apocalíptica emergiria, segundo Palencia-Roth, a própria lógica da circularidade
do tempo tão presente nessa obra. O autor tece ainda uma peculiar analogia entre a circularidade do
tempo em Cem Anos de Solidão, o mito apocalíptico e mito da serpente de Uroboros, trata-se do mito
em que uma serpente morde a própria cauda denotando esse aspecto da circularidade do tempo, há
indícios de que já no Egito antigo e na Grécia antiga já era conhecido esse mito, nessa analogia o autor

63 No original: “ A diferencia de la tradición profética, que es oral, la tradición apocaliptica es escrita; termina siendo
literatura Melquíades, se recordará, se preocupa mucho en escribir sus revelaciones, en hacer literatura. La numerologia es
también importante en la tradición apocaliptica: los <<cien años>> del titulo, y su significado dentro de la novela, la
importancia de dicha tradición. La literatura apocaliptica interpreta la historia desde un punto de vista determinista. Como
se explica en Daniel (11,36), lo que se ha precisado ocurrirá. Es solamente al leer los pergaminos cuando Aureliano
Babilonia entiende que el ciclo del incesto ha sido predeterminado. (Palencia-Roth, 1983, pg. 411).
125
busca enfatizar o ininterrupto surgimento e desaparecimento de um novo mundo. Dentro da tradição do
cristianismo esse novo mundo seria a própria Nova Jerusalém, nesse ponto, em específico, há
aproximações bastante claras em determinadas passagens bíblicas e a narrativa de Gabo, como na
semelhança entre a gênese de Macondo e a criação do mundo para a tradição católica.
No livro do Apocalipse há essa passagem “E as doze portas eram doze pérolas; cada uma das
portas era uma pérola; e a praça da cidade, de ouro puro, como vidro transparente.” Apocalipse 21:21,
mais a frente existe a seguinte passagem “E mostrou-me o rio puro da água da vida, claro como cristal,
que procedia do trono de Deus e do Cordeiro” Apocalipse 22:1, já no romance de Gabo ele descreve
Macondo em seus primórdios como uma aldeia de […] águas diáfanas que se precipitavam por um
leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.” (Márquez, 2012, pg.43), mais
adiante na viagem em que José Arcádio Buendía, Úrsula Iguarán e alguns empreenderam a viagem que
culminaria com a construção de Macondo, José Arcádio ao dormir teve um sonho no qual via Macondo
como uma “[…] cidade ruidosa com casas de paredes de espelho.” (Márquez, 2012, pg.66). Nesse
ponto em específico não podemos negar as semelhanças existentes entre as passagens bíblicas e a
narrativa de Gabo. No entanto, nos parece que Gabo teria realizado mais uma representação subversiva
de uma terra prometida, ou de uma terra na qual não se efetivou um Novo Mundo tal como alguns
americanistas vislumbravam. Pelo que já expusemos na análise sobre o realismo mágico em geral não
nos parece razoável esse tipo de leitura realizado por Palencia-Roth, pois nos parece inegável que essa
obra de Gabo é um retrato metafórico de parte significativa da história de nosso continente.
No tocante a questão da temporalidade circular que encontramos na narrativa de Cem Anos de
Solidão haveria uma relação entre esse tipo de representação do tempo, a circular, e o tempo mítico,
mais precisamente a temporalidade de natureza mítica seria o fundamento lógico dessa circularidade
do tempo, por esta razão nós fizemos uma separação analítica entre o tempo histórico e o tempo
místico/circular, justamente por conta dessa unidade entre o mito e a circularidade do tempo. José
D’Assunção Barros apresenta uma argumentação que se assemelha a nossa interpretação,

O Tempo Mítico, de modo geral, apresenta uma estrutura circular. Além disto, trata-se de um
tempo reversível – se não através do próprio mito, que realiza o retorno em sua própria
narrativa ou repetição cíclica, ao menos através do “rito”, que corresponde a um retorno ritual
às origens, conforme veremos mais adiante. A passagem do tempo e o seu ritmo também são
bem distintos do que se dará com o tempo linear, medido cronologicamente. De fato, tal como
assinala Jean-Pierre Vernant (1973, p.71-112), com o Mito não se tem propriamente uma
cronologia, mas sim uma “genealogia”. (Barros, 2010, pg.181).

Dessa forma, o autor nos chama a atenção para uma dupla característica da temporalidade
mítica: a supressão do sentido linear dos acontecimentos, ou seja, não há uma sucessão temporal entre
o passado, o presente e o futuro e, também o tempo se torna reversível, a reversibilidade do tempo,
para Barros, torna-se possível através da mediação dos ritos. Por outro lado, a temporalidade

126
mitológica, em suas variadas formas, busca explicar os diferentes níveis de desenvolvimento de uma
determinada formação social. Barros (2010) afirma,

O padrão mítico apresentado por Hesíodo não é um caso isolado na história do pensamento
mitológico. Muitas outras sociedades produziram narrativas similares, em geral para explicar as
evidentes deficiências humanas. É assim que o imenso repertório de mitos nas várias
sociedades e civilizações oferece muitas variações que envolvem sequências míticas de
degradação da humanidade. Podemos citar o interessante exemplo do Janaísmo, que é uma das
mais antigas religiões indianas, ao lado do Budismo e do Hinduísmo. Aqui se apresenta uma
imagem bastante peculiar do Tempo, descrito como um “giro cosmogônico” que inclui dentro
de si a sequência da degradação humana. O que ocorre, porém, é que a ‘série descendente de
degradação’ será contrabalançada por uma ‘série ascendente’ de recuperação da virtude, de
modo que ao fim de tudo se constitui um círculo que se repete eternamente. (Barros, 2010, pg.
186).

Um pouco mais adiante Barros (2010) complementa sua argumentação sobre a concepção de
tempo circular mística da religiosidade jainista e faz uma afirmação muito importante que vai
possibilitar um esclarecimento melhor sobre nossa crítica a esse tipo de interpretação ao romance de
Gabo, o autor escreve,

[…] O circuito descendente, no qual a felicidade começa a se misturar com a tristeza e a virtude
com os vícios, corresponde à ocorrência de sucessivos decréscimos na estatura física e moral
dos seres humanos, que de colossais gigantes geminados, plenos de virtudes, ao final da série
descendente já terão se transformado em anões entregues a toda sorte de vícios e já sem
nenhum resquício das virtudes primordiais. Mas então se iniciará deste que é o ponto mais
baixo possível da decadência humana, a série ascendente, que através de seis novas idades
restituirá progressivamente aos seres humanos a sua estatura moral e física, levando-os de novo
ao ponto de origem, no qual todos possuíam uma altura descomunal em relação ao padrão
atual. Depois disso, o círculo se reinicia, e assim ocorreria indefinidamente através de imensos
ciclos de tempo. (Barros, 2010, pg. 187).

Ao lermos Cem Anos de Solidão, especialmente o seu final, no trecho em que Aureliano
Buendía finalmente consegue traduzir o pergaminho escrito por Melquíades e, apesar de Gabo
reiteradamente representar o tempo de forma circular, no grand finale essa circularidade, essa eterna
repetição é rompida. E, não há uma possibilidade de um recomeço, de uma repetição indefinida desse
ciclo mítico, de ascensão e decadência, lógica essa que alicerça essa temporalidade mítica.
Relembremos as últimas palavras escritas por Gabo em Cem Anos de Solidão “[…] e que tudo que
estava escrito neles era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem
anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra.” (Márquez, 2012, pg.447).
Se tivermos em mente que a temporalidade circular explica os momentos de ascensão e
degradação em um ininterrupto vai e vem ou se essas mitologias utilizam-se dos rituais religiosos para
a manuntenção dessa circularidade do tempo “Desta maneira, pode-se dizer que, também aqui, refaz-se
o tempo cíclico. Através do ritual, o indivíduo pertencente a uma humanidade decaída encontra a sua
redenção na origem: torna-se ele mesmo Deus.” (Barros, 2010, pg. 188).

127
Portanto, se em diversas partes do romance existem trechos em que se afirma e reafirma esse
tempo circular que rege Macondo e os habitantes dessa cidade, não seria exagero afirmar que essa
circularidade temporal não é produto apenas de uma visão de mundo mítica/religiosa da realidade64
como podemos perceber na interpretação de Palencia-Roth (1983) ou Cristo Figueroa (1998), mas sim
um forma de Gabo se utiliza para figurar as tentativas frustradas da América Latina de se tornar
independente da Europa tanto cultural, política e conomicamente. Nesse sentido, assim como em
outros momentos dessa tese apontamos para uma característica bem peculiar da narrativa realista
mágica e, por conseguinte a de Gabo, que é a de unir duas categorias aparentemente inconciliáveis da
realidade empírica, o relato realista e o relato mágico, o progresso técnico/científico e miraculoso
levado a Macondo por Melquíades e também essa questão que se vincula ao tempo e forma como Gabo
figura nessa obra. O tempo místico/circular forma uma unidade com a temporalidade linear, do decurso
real do tempo, há, dessa maneira, uma representação estética na qual essas diferentes temporalidades
coexistem em uma mesma estrutura narrativa, as passagens de Melquíades são bem esclarecedoras
nesse sentido em um momento Melaquíades reaparece na narrativo e logo depois se volta a uma
figuração do tempo linear. Assim sendo a análise desse autor nos permite corroborar com nossa
interpretação, pois no romance ora analisado existe mais um processo de ruptura com essa
temporalidade circular do uma representação estática da mesma.
Porém, há um ponto interessante nesse texto de Palencia-Roth, trata-se do trecho em que o
autor realiza, de forma rápida, um paralelo entre os pergaminhos escritos por Mequíades e o conto de
Jorge Luís Borges, O Aleph. Tanto no Aleph de Borges quanto nos pergaminhos escritos por
Melquíades há uma representação do tempo que faz com ele seja figurado de uma maneira condensada,
coexistindo várias temporalidades em um só ponto do espaço, como no Aleph de Borges, ou nos
pergaminhos do cigano. Lembrando que o Aleph de Borges é um ponto que se encontra na escadaria de
um porão da casa do poeta argentino, Carlos Argentino Daneri, nesse ponto é possível ver todos os
pontos do universo, sob todos os ângulos possíveis e tudo isso de forma simultânea. Vejamos como
Borges (1999) narra esse momento,

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda
linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os
interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa
memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para
significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros;
Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em
nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e
ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma
relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma

64 Para uma discussão mais aprofundada sobre a concepção de tempo da população indígena da Mesoamérica ver o artigo
de Eduardo Natalino dos Santos, Além do eterno retorno: uma introdução às concepções de tempo dos indígenas da
Mesoamérica, (2009).
128
imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo
porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito.
Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou
tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem
transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a
linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei. (Borges, 1999, pg.93).

A convergência da representação do tempo em Gabo e em Borges, tal como em Rulfo, nos


aponta para a singularidade de como o realismo mágico latino-americano representa o tempo em obras
e autores tão díspares como esses três, Gabo, Borges e Rulfo. Mas, voltemos a nossa análise de
Palencia-Roth sobre o tempo nessa obra de Gabo.
Concernente a essa leitura mística, determinística e apocalíptica, há uma tendência a associar
o dilúvio que acomete Macondo após o massacre da bananeira como sendo um trecho marcante dessa
narrativa que corroboraria a interpretação de cunho místico, o dilúvio que arrasa Macondo de forma
ininterrupta durante anos seria uma representação estética do dilúvio bíblico. Além de Palencia-Roth,
corrobora essa interpretação Cristo Figueroa, Cien años de soledad: reescritura bíblica y posibilidades
del texto sagrado (1998), texto no qual o autor sustenta a hipótese de que a estrutura da Bíblia
funcionaria como um texto que organizaria toda a estrutura narrativa em Cem Anos de Solidão, haveria
ou há no romance de Gabo uma lógica organizativa baseada no escrito bíblico: gênesis, êxodo, pecado
original e o juízo final.
O dilúvio que acomete Macondo logo após o massacre da companhia da bananeira é
mencionado por Gabo em mais de um momento da narrativa, teria tido a duração de quatro anos, onze
meses e dois dias. Esse evento foi também mencionado em obra anterior, em um dos contos reunidos
em Olhos de Cão Azul (1947), conto esse denominado Isabel vendo chover em Macondo. Nesse conto
é narrado um monólogo da personagem Isabel no momento em que cessa o período de seca na cidade e
começa o período chuvoso, mas essa chuva se transforma em um dilúvio, Gabo dessa vez não
especifica a duração dele, e temas como a solidão, a morte e a atmosfera sufocante de Macondo já
aparecem nesse conto.
Uma perspectiva bastante interessante, e que se contrapõe a essa leitura mística da obra de
Gabo, é a análise de Cunha (2014) sobre a inter-relação entre alguns elementos da própria geografia da
Colômbia e de como Gabo através dessas circunstâncias geográficas consegue figurar literariamente
passagens tão significativas como o dilúvio que se encontra narrado no romance e no conto acima
citado. Para Cunha (2014), no século XIX, o Caribe colombiano, região na qual Aracataca fica situada,
passa por basicamente duas estações no ano, uma extremamente seca e outra extremamente chuvosa,
ao lado disso, segundo a autora um quinto dessa região é coberta por pântanos e rios, imaginemos lá no
século XIX e começo do século XX, período que se passa boa parte do romance, com uma malha
hidroviária pouco desenvolvida e o isolamento social que essa região experimentava em relação com o
resto da Colômbia. Essa articulação entre as particularidades climáticas e geográficas do Caribe
129
colombiano, o parco desenvolvimento técnico da região e do país que tinha como consequência essa
dificuldade de locomoção entre as regiões da Colômbia servem de matéria-prima para que Gabo
represente esteticamente um tema tão caro a ele: a solidão. Cunha (2014) escreve,

Devastação, isolamento…solidão. E a chuva que convida ao alheamento, à melancolia e leva os


personagens a perderem o sentido do tempo e da realidade. Trazida por uma humidade tropical
opressiva, que retira as forças e a vontade de agir à população de Macondo – semelhante ao
aroma da goiaba a apodrecer como afirma o Autor em El olor de guayaba, em entrevista a
Plínio Apuleyo Mendoza. (Cunha, 2012, pg.29).

Desse isolamento social que se explicava por características geográficas dessa região
colombiana e, o baixo desenvolvimento tecnológico que não permitia uma maior mobilidade entre as
regiões da Colômbia, Gabo produz dois episódios de uma densidade dramática impressionante.
Vejamos como no conto Isabel vendo chover em Macondo,

Choveu durante toda a segunda-feira, como no domingo. Mas então, parecia como se estivesse
chovendo de outro modo, porque algo diferente e amargo acontecia em meu coração. Ao
entardecer um a voz disse junto à minha cadeira: "É aborrecida esta chuva". Sem que eu me
virasse par a olhar, reconheci a voz de Martim. Sabia que ele estava falando da cadeira do lado,
com a mesma expressão fria e atordoada que não mudara nem mesmo depois daquela sombria
madrugada de dezembro em que começou a ser meu esposo. Passaram cinco meses desde
então. Agora eu ia ter um filho. E Martim estava ali, a meu lado, dizendo que a chuva o
aborrecia. "Aborrecida, não — disse. — O que me parece muito triste é o jardim vazio e essas
pobres árvores que não se pode tirar do pátio." Então me virei para olhá-lo e Martim já não
estava ali. Era apenas um a voz que me dizia: "Pelo que se vê, não pensa em estiar nunca", e
quando olhei para a voz só encontrei a cadeira vazia. (Márquez, s/d, pg.66).

E, por conseguinte, esse conhecimento das particularidades climáticas, geográficas e do


desenvolvimento econômico da Colômbia naquele período histórico é o ponto de partida para que
Gabo represente literariamente um desenvolvimento histórico que desembocou na construção de nossa
identidade, de nossa particularidade, de nossa solidão e que de forma alguma pode se identificar como
sendo uma condição humana.
Porém, a nossa explicação para essa semelhança entre o texto bíblico e a narrativa de Gabo
distancia-se em demasia da análise de Palencia-Roth (1983), para ele, como apontamos acima, o
fundamento dessas semelhanças decorrem de uma perspectiva mítica, apocalíptica, no nosso caso
entendemos que tal similitude é encontrada nos relatos dos primeiros conquistadores de nosso
continente. Na anaálise empreendida no primeira capítulo da tese apontamos o espanto, a sensação de
maravilha, as metáforas por eles criadas, comparando o nosso continente com o paraíso em terra, dessa
maneira, vemos em Cem Anos de Solidão como uma releitura ou reatualização daquilo discurso dos
primeiros navegadores.
Gabo já no final do livro novamente cita a questão do espelho quando Aureliano Babilônia
finalmente consegue decifrar o pergaminho de Melquíades, “[…] Porém, antes de chegar ao verso final

130
já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos
espelhos (ou das miragens) […]. (Márquez, 2012, pg.447), nesse trecho final do romance, um dos mais
belos da história do romance e da literatura, Gabo reitera a analogia entre Macondo e os espelhos, mas
nessa analogia insere um terceiro elemento comparativo, as miragens, qual o sentido metafórico do
substantivo miragem? Trata-se de uma falsa realidade, algo que em princípio poderia parecer como
sendo algo bom mas que em realidade se provou não sendo, nesse sentido, podemos analisar esse
trecho com o sentido de que todo o processo e tentativas de se empreender uma nova forma de
socialibilidade, em contraposição aos padrões europeus, de seguir em direção ao desenvolvimento
pautado em nossas particularidades enquanto latino-americanos provou-se um fracasso ou não
conseguiu efetivar-se, portanto, tratava-se apenas de uma miragem. Ao discursar em agradecimento por
ter sido angariado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, há um trecho que parece nos lançar luz
sobre nossa interpretação,

Num dia como o de hoje, meu mestre William Faulkner disse neste mesmo lugar: “Eu me nego
a admitir o fim do homem”. Não me sentiria digno de ocupar este lugar que foi dele se não
tivesse a consciência plena de que pela primeira vez desde as origens da humanidade, o
desastre colossal que ele se negava a admitir há 32 anos é, nada mais que uma simples
possibilidade científica. Diante dessa realidade assombrosa, que através de todo o tempo
humano deve ter parecido uma utopia, nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo,
nos sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na
criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir
pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a
felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre,
uma segunda oportunidade sobre a terra. (Márquez, 2012, pg.12).

Pois, interpretamos que a construção de Macondo, seu desenvolvimento, seu apogeu, seu
declínio e, por fim, sua destruição vinculam-se mais aos processos e conflitos sociais pela quais a
aldeia e, posteriormente, a cidade experimenta, do que a uma interpretação que se fundamenta em um
destino inexorável da cidade, sem negar contudo, que não haja uma influência mítica/religiosa na
própria estrutura do romance. Para delinear bem nossa linha interpretativa e afastar possíveis mal-
entendidos, afirmamos que em Cem Anos de Solidão existe em parte uma lógica temporal mítica,
porém ela sofre uma subversão, talvez estejamos diante de uma temporalidade mística- histórica.
À primeira vista pode parecer paradoxal essa afirmação, tal como já analisamos em outro
momento dessa tese a figuração do progresso vinculado a Melquíades tem uma natureza racional
mágica e não se fundamenta sobre uma utilidade mercantil, assim como, já vimos que a tradição
literária do realismo mágico latino-americano caracteriza-se, fundamentalmente, pela unidade entre os
elementos mágicos e realistas na figuração estética. Logo, o caráter a-histórico e determinístico que são
duas características marcantes em uma temporalidade mística, sofrem uma modificação em seus
significados usuais.
131
Por conseguinte, a temporalidade mítica, para nós, encontra-se subordinada à figuração da
temporalidade linear, porém deve-se enfatizar que o tempo histórico representado nessa narrativa de
Gabo não se identifica com uma figuração do tempo de tipo linear que se pauta pela articulação
irreversível entre eventos do passado, do presente e do futuro. O tempo histórico nesse romance de
Gabo efetiva-se de uma maneira em que existe de forma simultânea as instâncias do passado, do
presente e do futuro.
Aquilo que buscamos expressar nessa nossa análise sobre o tempo se vincula ao fato de que
na lógica imanente dessa obra as representações do tempo em suas formas místicas, circulares e
históricas se entrecruzam, em um momento em que se está narrando um acontecimento histórico
irrompe alguns elementos mágicos ou a temporalidade circular é indicada, reafirmada.
Nesse trecho, podemos perceber como Gabo estrutura diferentes representações do tempo
fazendo com que esse entrecruzamento entre as suas diferentes formas sejam representadas, dotadas
de uma unidade, de uma organicidade que não produz nenhum tipo de espanto, nem de susto ou
alguma sensação parecida. O narrador do romance começa a narração em um ponto futuro, no
momento em que o coronel Aureliano Buendía iria ser fuzilado, fato esse que acabou não ocorrendo e
através de uma lembrança do coronel recorda o momento em que seu pai, José Arcádio Buendía, o
levou para conhecer o gelo. Futuro e passado se entrecruzam e como consequência dessa inter-relação
entre períodos históricos distintos torna-se possível ao narrador passar a contar as origens da aldeia e
introduzir o momento mágico através do cigano Melquíades.
Em outros momentos da narrativa há trechos no qual existe a figuração de uma temporalidade
histórica e de repente o autor tece afirmações nas quais aparentemente afirma e reafirma uma
temporalidade regida pela destino, uma temporalidade mística, vejamos duas passagens referentes ao
personagem Aureliano Buendía sobre uma possível inevitabilidade da solidão,

[…] As numerosas cédulas vermelhas que apareceram nas urnas, e que foram atribuídas por
dom Apolinar Moscote à novidade própria da juventude, eram parte de seu plano: obrigou seus
discípulos a votar para convencê-los de que as eleições era uma farsa. “A única coisa eficaz -
dizia – é a violência.” A maioria dos amigos de Aureliano andava entusiasmada com a ideia de
liquidar a ordem conservadora, mas ninguém tinha se atrevido a incluí-lo em seus planos, não
apenas por causa dos seus vínculos com o alcaide, mas também por causa de seu temperamento
solitário e evasivo. (Márquez, 2012, pgs.139-140).

Mais adiante o autor reafirma o caráter solitário de Aureliano Buendía,

Só seis meses mais tarde Aureliano ficou sabendo que o doutro o havia desenganado como
homem de ação, por ser um sentimento sem porvir, com um temperamento passivo e uma bem
definida vocação solitária. Trataram de cercá-lo temendo que denunciassem a conspiração.
(Márquez, 2012, pg.141).

Podemos ressaltar nessas duas passagens do romance a imbricação entre duas formas de
132
representação do tempo, a histórica na qual Gabo narra o período imediatamente anterior à eclosão da
Guerra dos Mil Dias e no mesmo parágrafo é mencionado a “vocação” e “temperamento solitário de
Aureliano Buendía, como se essa qualidade de Aureliano Buendía já tivesse sido determinada antes de
nascer, ou seja, é narrado o processo histórico no qual desemboca a Guerra dos Mil Dias e, por outro
lado, Gabo nesse momento salienta o caráter solitário de Aureliano Buendía. Dessa forma,
aparentemente a história da família dos Buendía estariam determinados pelo destino, interpretação essa
que tecemos uma crítica mais acima. Percebemos que essa determinada interpretação da obra de Gabo
apresenta uma aproximação com um tipo de interpretação da tragédia dramática na qual o ponto central
explicativo se refere justamente ao poder do destino. Por mais que as personagens da tragédia tentem
de todas as formas superar esse destino trágico não há escapatória, todo o enredo é construído com o
objetivo de representar o destino dos personagens de forma inevitável.
Lukács (2009) tem um entendimento e uma compreensão bastante dispare com relação a esta
interpretação que apresentamos acima. Antes de adentrarmos nessa análise de Lukács devemos
salientar as diferenças existentes entre o drama e o romance, tentamos compreender essas diferenças no
nosso capítulo 2, mas nessa análise crítica que estamos empreendendo sobre a interpretação que
confere um teor trágico ao romance em tela a abordagem luckasiana nos trará uma luz ao nosso objeto
de estudo. Em seu ensaio Sobre a tragédia (2009) Lukács escreve,

Marx e Engels, obviamente, nunca redigiram uma teoria sistemática do drama; contudo
descobriram claramente os momentos fundamentais da tragédia verdadeira e, ao mesmo tempo,
a função real que lhes cabe. Os fundadores do marxismo colocaram em destaque a função
determinante do conflito, sem a qual não há tragédia nem drama. Marx observa, porém, que a
essência trágica ou cômica de um conflito social real não é determinada por nenhuma
característica formal e, menos ainda, pela fantasia poética subjetiva: também o tempo e o lugar
em que um conflito emerge sob forma trágica ou cômica representam, enquanto dados de fato,
o resultado da concreta situação histórico-social. (Lukács, 2009, pg.258).

Então, o cerne dessa questão por nós aludida tem sua origem no caráter concreto de uma
determinada situação histórica e, dessa maneira, o resultado desse conflito social que é figurado
esteticamente pode vir a ter um fim trágico ou cômico. Qual a possível relação dessa citação de Lukács
com a análise crítica que estamos tecendo com relação a interpretação mística-fatalista de Palencia-
Roth? De que modo essa interpretação nos ajuda na compreensão de nosso objeto?
Faz-se necessário apontar que no presente romance de Gabo a figuração dos fatos históricos
ocorridos na Colômbia não são os únicos elementos históricos que se encontram figurados em Cem
Anos de Solidão. De uma maneira extremamente complexa, como em parte analisamos já na primeira
parte deste capítulo, existe de um modo condensado, compactado, toda a trajetória da história da
América Latina, seus conflitos, suas guerras, a exploração por nós sofrida, o intercâmbio entre
diferentes grupos sociais, índios, negros, europeus, os ciganos, dentre outros, nos permite interpretar tal
obra enquanto uma representação da história desse continente. Não se trata de exagero afirmar que em
133
Macondo coube o mundo todo.
Por outro lado, a solidão nos parece ser o elemento, a qualidade humana que parece realizar o
elo entre todos os personagens do romance, independentemente de fazer parte ou não da família
Buendía, em menor ou maior grau a solidão os acompanha. De José Arcádio Buendía, passando por
seu filho o coronel Aureliano Buendía, por Úrsula Iguarán, Rebeca, que se isola do mundo, Fernando
del Caprio, Pilar Ternera, Petra Cotes, coronel Gerineldo Márquez, são todos personagens que de uma
forma mais intensa ou menos intensa estão em solidão. O que nos chama mais a atenção ao lermos esta
obra é que a solidão emerge em um ambiente social e histórico bastante distinto ao que se desenvolveu
no continente europeu e que literariamente possibilitou a figuração do individualismo burguês através
do herói problemático. Contrariamente, conforme apontamos, não há nem a presença de uma
personagem central nessa narrativa, bem como, o universo social, o mundo vai gradativamente se
degradando a partir do processo de desenvolvimento da aldeia até a sua transformação em uma cidade.
Entretanto, o mundo de Macondo não é o mesmo mundo em que se desenvolveu o
individualismo, os personagens de Macondo estão todos conectados entre si, porém dessa conexão não
se desenvolve ou não é superada essa solidão. Parece que estamos diante de mais uma contradição, mas
que de forma genial Gabo a figura não mais como dois termos que se encontram em oposição, mas
como dois termos que estão em unidade, as inúmeras interconexões sociais empreendidas pelos
personagens do romance desembocam de forma necessária na solidão.
Essa é a conexão na qual a passagem citada acima de Lukács (2009) ajuda a nos iluminar na
interpretação dessa obra. Em outra parte do presente estudo já analisamos a natureza, o significado que
a solidão adquire em Cem Anos de Solidão, e em parte substancial da obra de Gabo, relembrando que a
solidão para Gabo não se trata de uma falta de laços sociais, nem tampouco se fundamenta em um
patológico desenvolvimento do individualismo, mas antes se vincula a questão das qualidades únicas,
mágicas, que constituem nossa identidade e se encontram em contraposição ao desenvolvimento do
capitalismo na Europa e nos EUA. Estamos solitários no mundo e isso se reflete nos inúmeros
personagens que experimentam a solidão nesse romance, portanto antes se ser uma fatalidade operada
pelo destino, o caráter solidário em Cem Anos de Solidão seria o resultado de um longo processo de
desenvolvimento histórico.

Então, o que aparentemente é consequência de uma obra do destino, de um desenvolvimento


inexorável das forças sociais, na nossa interpretação se tem uma adequada compreensão na própria
história de nosso continente, na figuração estética dessa gênese de nosso continente, novamente
afirmamos a existência de uma riquíssima e complexa história dos ameríndios antes do processo de
colonização, recordemos os impérios dos Incas, dos Maias e dos Astecas, porém o sentido que damos
para esse caráter histórico recente de nosso continente relaciona-se com esse sentido dado por Marx e
134
Engels n’A ideologia alemã: “[…] (no qual já está contida, ao mesmo tempo, a existência empírica
humana, dada não no plano local, mas no plano histórico-mundial […].” (Marx e Engels, 2007, pg.38),
ou como eles deixam mais explícito o sentido dessa argumentação no trecho seguinte,

Ora, quanto mais no curso desse desenvolvimento se expandem os círculos singulares que
atuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento primitivo das nacionalidades singulares é
destruído pelo modo de produção desenvolvido, pelo intercâmbio e pela divisão do trabalho
surgida de modo natural pelas nações, tanto mais a história torna-se história mundial, de modo
que, por exemplo, se na Inglaterra é inventada uma máquina que na Índia e na China tira o pão
a inúmeros trabalhadores e subverte toda a forma de existência desses impérios, tal invenção
torna-se um fato histórico-mundial; ou pode-se demonstrar o significado histórico-mundial do
açúcar e do café no século XIX pelo fato de a falta desse produto, resultado do bloqueio
continental napoleônico, provocou a sublevação dos alemães contra Napoleão e foi, portanto, a
base real [reale] das gloriosas guerras de 1813. (Marx e Engels, 2007, pg.40).

Esse é o pressuposto histórico na qual se desenvolve toda a narrativa desse romance. Entende-
se que a narração da gênese de Macondo se vincula a essa análise empreendida por Marx e Engels
sobre as mudanças que o modo de produção capitalista provocou em todos os cantos do mundo.
Portanto, dessa nova realidade histórica que se desenvolve com as grandes navegações, o processo de
escravidão dos negros e dos indígenas, é a matéria-prima da qual se nutre Gabo na escrita de Cem Anos
de Solidão.
Numa passagem bastante cômica de Cem Anos de Solidão, Gabo realiza uma brincadeira
sobre a relação entre o destino e a família Buendía. Gabo escreve,

Fernanda del Carpio, a formosa mulher com quem havia se casado no ano anterior, concordou.
Já, Úrsula, não conseguiu ocultar um vago sentimento de aflição. Na longa história da família,
a tenaz repetição dos nomes tinha permitido que ela chegasse a conclusões que lhe pareciam
definitivas. Enquanto os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, os José Arcádio
eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um destino trágico. Os únicos
casos de classificação impossível eram dos de José Arcádio Segundo e Aureliano Segundo.
Foram tão parecidos e travessos durante a infância que nem a própria Santa Sofía de la Piedad
era capaz de distingui-los. No dia do batizado, Amaranta colocou pulserinhas com os
respectivos nomes nos dois e vestiu-os com roupas de cores diferentes, marcadas com as
iniciais de cada um, mas quando começaram a ir à escola optaram por trocar a roupa e as
pulseiras e a se chamarem eles mesmos com os nomes trocados. O professor Melchor Escalona,
acostumado a conhecer José Arcádio Segundo pela camisa verde, perdeu as estribeiras quando
descobriu que ele usava a pulseira de Aureliano Segundo, e que o outro se dizia chamar, no
entanto, Aureliano Segundo, apesar de vestir a camisa branca e a pulseira marcada com o nome
de José Arcádio Segundo. Desde então já não se sabia mais com certeza quem era quem.
Mesmo quando cresceram e a vida os fez diferentes, Úrsula continuava perguntando a si
mesma se eles em algum momento não teriam cometido um erro em algum momento do seu
intrincado jogo de confusões, e não teriam ficado trocados para sempre. (Márquez, 2012, pg.
220).

Aparentemente apenas José Arcádio Segundo e Aureliano Segundo teriam conseguido pregar
uma peça nas determinações imperiosas das forças que operam o destino. Mas de certa forma também
poderíamos afirmar que a história da América Latina também não seria, tal como os “destinos” dos
José Arcádio e dos Aureliano, uma mistura de tragédia e de solidão?
135
Excetuando-se, talvez, José Arcádio Segundo e Aureliano Segundo, todos os outros
personagens da narrativa experimentam essa circularidade temporal. Uma passagem de extrema
importância no decorrer da narrativa e que se relaciona a circularidade temporal se encontra justamente
na passagem em que o patriarca da família Buendía e de Macondo torna-se louco. Vejamos como Gabo
narra essa passagem,

[…] Poucas horas depois, estragado pela vigília, entrou na oficina de Aureliano e perguntou:
“Que dia é hoje?” Aureliano respondeu que era terça-feira. “Conforme eu pensava”, disse José
Arcádio Buendía. “Mas de repente percebi que continua sendo segundo-feira, como ontem.
Olhe o céu, olhe as paredes, olhe as begônias. Hoje também é segunda-feira.” Acostumado às
suas manias, Aureliano não deu importância. No dia seguinte, quarta-feira, José Arcádio
Buendía voltou à oficina. “Isso é um desastre – disse – Olhe o ar, ouça o zumbido do sol, igual
ao de ontem e ao de onteontem. Hoje também é segunda-feira.” (Márquez, 2012, pg.119).

Como consequência dessa percepção da qual o tempo não seguiria de forma progressiva,
linear e irreversível José Arcádio Buendía se desespera e perde sua sanidade,

“A máquina do tempo destrambelhou – quase soluçou – e Úrsula e Amaranta, tão longe!”


Aureliano repreendeu-o como se ele fosse uma criança e ele assumiu um ar submisso. Passou
seis horas examinando as coisas, tratando de encontrar uma diferença em relação ao aspecto
que tinham no dia anterior, na esperança de descobrir nelas alguma mudança que revelasse o
transcurso do tempo. Passou a noite inteira com os olhos abertos, chamando Prdudêncio
Aguilar, chamando Melquíades, chamando todos os mortos, para que fossem compartilhar sua
mágoa sem fim. Mas ninguém acudiu. Na sexta-feira, antes que alguém selevantasse, voltou a
vigiar a aparência da natureza, até que não teve a menor dúvida de que continuava a ser
segunda-feira. Então agarrou a tranca da porta e com a violência selvagem de sua força
descomunal destroçou até fazer pó os aparelhos de alquimia, o gabinete de daguerreotipia, a
oficina de ourivesaria, gritando feito um endemoniado num idioma altissonante e fluido mas
completamente incompreensível. Estava a ponto de acabar com o resto da casa quando
Aureliano pediu ajuda aos vizinhos. Foram necessários dez homens para derrubá-lo, catorze
para amarrá-lo, vinte para arrastá-lo até a castanheira do quintal, onde o deixaram atado,
ladrando em língua estrangeira e botando espuma verde pela boca. (Márquez, 2012, pg. 120).

Mais do que transparecer certo fatalismo temporal, pois há esse elemento nos dois trechos
acima que reproduzimos, podemos apontar para outro caminho de análise sobre a questão da loucura
de José Arcádio Buendía. Nesses dois trechos percebemos que o patriarca e fundador de Macondo
perde seu juízo ao tomar consciência da circularidade do tempo que opera em Macondo, aparentemente
essa é a causa de sua loucura, mas resta uma pergunta a ser feita: na estrutura do romance qual o
sentido, qual o significado estético dessa loucura de José Arcádio Buendía? Acreditamos que desde o
início da narrativa José Arcádio foi representado como um homem empreendedor e mais do que isso
sempre buscou se apropriar do conhecimento científico trazido por Melquíades. Em determinados
momentos da narrativa essa sua paixão pela ciência causa animosidades em sua esposa Úrsula.

Quando os ciganos voltaram, Úrsula havia predisposto contra eles a população inteira. Mas a
curiosidade foi mais forte que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a aldeia
fazendo um ruído ensudecedor com tudo que é tipo de instrumento musical, enquanto o
136
pregoeiro anunciava a exibição do mais fabuloso achado dos antigos Nacianço. E todo mundo
foi até a tenda, e mediante o pagamento de um centavo todos viram um Melquíades juvenil,
reposto, desenrugado, com uma dentadura novo e radiante. Quem recordava suas gengivas
destruídas pelo escorbuto, suas faces flácidas e seus lábios murchos, estremeceu de pavor
diante daquela prova determinante dos poderes sobrenaturais do cigano. (Márquez, 2012,
pg.49).

Um pouco antes desse episódio da desavença entre Úrsula e os ciganos, Melquíades havia
ajudado a José Arcádio Buendía a construir uma espécie de laboratório primitivo de alquimia. Por
conta dessas influências de Melquíades em José Arcádio se explica essa indisposição dela perante os
ciganos. Talvez implicitamente nosso Gabo constrói a figura de José Arcádio, ou melhor, desenvolve o
personagem de José Arcárdio como estando em oposição aos elementos mágicos da aldeia de
Macondo. Em outro trecho ao levar a famigerada lupa para os habitantes de Macondo, Melquíades
vaticina: “A ciência eliminou as distâncias” (Márquez, 2012, pg.44). Já em outra passagem do romance
quando uma tribo de ciganos havia visitado Macondo e não era a costumeira tribo de Melquíades, logo
foram inquiridos sobre esta e responderam que foram varridos da face da terra pois transcenderam os
limites do conhecimento humano.
Logo, a questão do fatalismo não consegue explicar a totalidade da obra, penetrar nos
intricados labirintos que essa obra proporciona aos leitores e pesquisadores. Por isso, a interpretação do
fatalismo na passagem na qual José Arcádio Buendía fica louco perante a sua constatação de que em
Macondo o tempo é circular, não é suficiente para captar as nuances dessa passagem, para nós esse
trecho se torna melhor compreendido quando seguimos uma pista deixada por Gabo, em seu discurso
proferido na Academia Sueca de Letras em 1982, nesse trecho Gabo afirma,

Pois se estas dificuldades nos deixam – nós, que somos da sua essência – atordoados, não é
difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de
suas próprias culturas, tenham ficado sem um método válido para nos interpretar. É
compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que se medem, sem recordar
que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade própria é tão
árdua e sangrenta para nós como foi para eles. (Márquez, 2012, pg.10).

Isto posto, o processo de enlouquecimento pelo qual passa José Arcádio Buendía ao se
deparar com a circularidade do tempo em Macondo ou com a impressão desta nos faz analisar tal
acontecimento sobre o prisma da inadequação de uma visão de mundo estritamente científica/racional,
assentada na lógica inerente ao modo de produção capitalista. Esta lógica não é e talvez nunca seja
capaz de compreender todas as riquezas e complexidades da nossa realidade. Se lembrarmos que a
circularidade do tempo está vinculado essencialmente às religiões ameríndias e a racionalidade
obviamente relaciona-se ao modo de vida dos colonizadores europeus temos representados nesse
trecho do romance a contraposição entre duas temporalidades distintas, duas formas sociais que foram
essenciais no processo de formação da América Latina, mas que nesse trecho existe uma incapacidade

137
da visão de mundo europeia em compreender a própria complexidade do modo de vida dos indígenas,
modo de vida esse que se encontra plasmado na própria representação da circularidade temporal.
Gabo retoma essa questão da racionalidade em José Arcádio Buendía em um trecho mais
adiante quando o padre Nicanor Reyna ao buscar financiamento para construção de um templo em
Macondo se depara com o patriarca de Macondo amarrado na castanheira e é ele que finalmente
descobre em qual língua José Arcádio Buendía se comunicava, era em latim. Daí o padre Nicanor
Reyna decide evangelizar o louco… o resultado é esse,

Foi assim que todos ficaram sabendo que era latim a endiabrada língua falada por José Arcádio
Buendía. O padre Nicanor aproveitou a circunstância de ser a única pessoa que tinha
conseguido se comunicar com ele para tratar de infundir a fé em seu cérebro transtornado.
Todas as tardes sentava-se ao lado da castanheira, predicando em latim, mas José Arcádio
Buendía se obstinou em não admitir labirintos retóricos nem transmutações de chocolate, e
exigiu como única prova o daguerreótipo de Deus. O padre Nicanor então levou para ele
medalhas e santinhos e até uma reprodução do tecido de Verônica, mas José Arcádio Buendía
por serem objetos artesanais sem fundamento científico . Era tão cabeça dura que o padre
Nicanor renunciou aos seus propósitos de evangelização e continuou visitando-o por
sentimentos humanitários. Mas então foi José Arcádio Buendía quem tomou a iniciativa e
tentou quebrantar o padre com artimanhas racionalistas. Em certa ocasião emque o padre
Nicanor levou até a castanheira um tabuleiro e uma caixa de pedras para convidá-lo a jogar
damas, José Arcádio Buendía não aceitou, segundo disse, porque jamais conseguiu entender o
sentido de contenda entre dois adversários que estavam de acordo nos princípios. O padre
Nicanor, que jamais havia encarado dessa maneira o jogo de damas, nunca mais conseguiu
jogar. Cada vez mais assombrado com a lucidez de José Arcádio Buendía, perguntou a ele
como era possível que o tivessem amarrado a uma árvore.
- Hoc est simplicisimum – respondeu: - é porque fiquei louco. (Márquez, 2012, pgs. 124- 125).

Efetivamente há um processo de loucura que acomete o personagem José Arcádio Buendía,


loucura essa que se fundamenta em uma espécie de inadequação dele em relação as mudanças sociais
pelas quais a cidade de Macondo experimentava. Dessa forma, dessa contraposição entre as regras
sociais dominantes em um determinado período histórico e o comportamento dos indivíduos sociais é
que opera-se a lógica da loucura. Aquele comportamento de José Arcádio Buendía no começa do
desenvolvimento de Macondo já não é visto e nem percebido como um tipo de comportamento
socialmente aceito pela comunidade da qual ele faz parte. Portanto, a loucura que acomete o patriarca
de Macondo ocorreu justamente em um momento do romance no qual há uma mudança substancial na
cidade, é o momento da chegada da Igreja e do Estado, então José Arcárdio Buendía parece não mais
se adequar a esses novos tempos pelos quais Macondo vai passar. Os conflitos e as relações sociais não
mais são mediadas pela autoridade que a família Buendía constituiu ao longo do tempo mas agora o
poder do Estado regulará tais conflitos e relações sociais.
Então, de forma sucinta a categoria da tipicidade luckasiana nos ajuda a compreender essa
relação entre os traços mais individuais com as determinações sociais, trata-se da relação que se
estabelece entre as paixões individuais e as determinações da sociedade e de como estão representadas
literariamente essas conexões. Portanto, Gabo ao construir esse personagem, José Arcádio Buendía, o
138
representa tanto em sua individualidade quanto em sua universalidade, pois o ímpeto racionalista, de
busca o conhecimento técnico/científico torna a representação de um tipo humano mais universal, o
que se desenvolveu na Europa ocidental. Salientamos que a categoria da tipicidade em Lukács em nada
se aproxima com a tradição neokantiana, especialmente com as construções lógicas dos tipos-ideais de
Max Weber, nela Lukács busca analisar a forma com um escritor articula as determinações sociais e
traços individuais de seus personagens.

Os fenômenos típicos e universais devem ser, ao mesmo tempo, ações específicas, paixões
individuais de homens determinados. O artista inventa situações e meios expressivos através
dos quais torna-se evidente que as paixões individuais transcendem os limites do mundo
puramente individual. (Lukács, 2010, pg. 191).

Seguindo essa pista analítica deixada por Lukács (2010) talvez nos ilumine também na
discussão acerca sobre a inevitabilidade da solidão que perpassa por toda Macondo. Como já
analisamos e afirmamos mais acima o sentido da inevitabilidade da solidão e o próprio sentido dela
apresenta aquela especificidade já por nós apontadas. a relação dialética entre individualidade e
universalidade na representação da tipicidade em Lukács nos permite compreender o processo de
figuração literária na qual a própria Macondo e seus habitantes seriam ou são a representação de todo
um continente: a América Latina, portanto os personagens de Macondo são figurações em que são
dotados de uma indivudualidade rica e, ao mesmo tempo, são expressões grosso modo de uma tradição
cultural, social e econômica de todo o continente.

E, novamente gostaríamos de reiterar que o caminho interpretativo que seguimos é o de tentar


compreender as formas como as diferentes temporalidades estão representadas e se entrecruzam, assim
como, tentar compreender à sua maneira Gabo subverte determinadas formas de vivenciar-se o tempo.
Esta categoria, estaria no seu caso subordinada à necessidade de contar a história de Macondo e da
América Latina desde o descobrimento de nosso continente até a influência do imperialismo, por isso
seguimos por uma linha de análise que explica essa narrativa de Gabo como sendo uma grande
metáfora da construção de nossa identidade, ou da busca por essa construção, em meio às peripécias,
que marcaram e que marcam ainda, essa temporalidade histórica.

Prosseguindo com nossa análise a representação do tempo ou dos tempos em Cem Anos de
Solidão não se restringem ou se limitam a essas estratégias narrativas que analisamos até agora,
chamando a atenção para o fato de que essas diferentes formas de representação do tempo se
entrecruzam, em um mesmo parágrafo há a narração de um acontecimento que ocorrerá no futuro,
depois volta-se para o tempo presente da narração ou volta-se para explicar algum evento passado,
além dessas artimanhas estéticas há outros procedimentos de figuração do tempo bem marcantes nesse
romance como, por exemplo, na fase inesquecível da peste da insônia. Trata-se de um episódio que
139
ocorre na parte inicial do romance e que tem uma duração indeterminada e da forma repentina que
acomete os habitantes de Macondo e o famigerado cigano Melquíades leva à cura.
Antes dessa peste da insônia se instalar na aldeia de Macondo dois eventos significativos
ocorrem nela. O primeiro fato importante que ocorre um pouco antes da eclosão da peste é o processo
no qual Macondo recebe uma grande leva de imigrantes que faz com que a cidade experimente seu
primeiro surto de modernização, produzindo mudanças significativas na paisagem de Macondo,

José Arcádio Buendía demorou muito tempo para se estabelecer da perplexidade quando saiu à
rua e viu a multidão. Não eram ciganos. Eram homens e mulheres como eles, de cabelos lisos e
pele parda, que falavam a mesma língua e se lamentavam das mesmas dores. Traziam mulas
carregadas de coisas de comer, carretas de bois, com móveis e utensílios domésticos, puros e
simples acessórios terrestres postos à venda sem mais delongas por mascates da realidade
cotidiana. Vinham do outro lado do pantanal, a apenas dois dias de viagem, onde havia aldeias
que recebiam o correio todos os meses e conheciam as máquinas de bem-estar. Úrsula não tinha
alcançado os ciganos, mas encontrara o caminho que o marido não havia conseguido descobrir
em sua frustrada procura das grandes invenções. (Márquez, 2012, pg.78).

Mais adiante Gabo acrescenta outros elementos para mostrar as mudanças provocadas por
esse ciclo migratório,

Macondo estava mudada. As pessoas que tinham chegado com Úrsula divulgaram a boa
qualidade do solo e sua posição privilegiada em relação ao pantanal, e assim a acanhada aldeia
de outros tempos converteu-se depressa num povoado ativo, com lojas e oficinas de artesãos, e
uma rota de comércio permanente através da qual chegaram os primeiros árabes de pantufas e
argolas mas orelhas, trocando colares de vidro por araras e papagaios. José Arcádio Buendía
não teve um instante de sossego. Fascinado por uma realidade imediata que acabou sendo mais
fantástica que o vasto universo de sua imaginação, perdeu todo o interesse pelo laboratório de
alquimia, pôs para descansar a matéria extenuada por longos meses de manipulação, e voltou a
ser o homem empreendedor dos primeiros tempos, que decidia o traçado das ruas e a posição
das novas casas, de maneira tal que ninguém desfrutasse de privilégios que não fossem de
todos. (Márquez, 2012, pg.79).

Nesse processo, de renovação de Macondo mediado pelo maior intercâmbio entre a cidade e o
restante da Colômbia, ou da América, ocorre de forma simultânea com outro fato de extrema
importância para os Buendía e para a narrativa, trata-se da chegada de Rebeca. Portanto, do ponto de
vista social, a vinda e, por conseguinte, o desenvolvimento da cidade é ocasionado pelos imigrantes
que desembarcam em Macondo e do ponto de vista microscópio a chegada de Rebeca produz
mudanças significativas para a família Buendía, especialmente, em sua eterna rixa com outra
personagem do romance, Amaranta, Gabo narra dessa forma a chegado de Rebeca,

No domingo, realmente, chegou Rebeca. Não tinha mais do que onze anos. Havia feito a
penosa viagem desde Manaure com uns traficantes de peles que receberam a missão de entregá-
la com uma carta na casa de José Arcádio Buendía, mas não conseguiram explicar com
precisão quem era a pessoa que havia pedido o favor. Sua bagagem inteira era composta pelo
bauzinho de roupa, uma pequena cadeira de balanço de madeira com florzinhas coloridas
pintadas a mão e um embornal de lona que fazia um permanente ruído de cloc cloc cloc, onde
levava os ossos de seus pais. (Márquez, 2012, pg. 82)

140
Então, do ponto de vista da análise do tempo com a chegada desses imigrantes e dos
comerciantes árabes a vida em Macondo vai ficando mais complexa, com o desenvolvimento do
comércio a aldeia deixa de apresentar um ar bucólico, calmo, típico de uma cidade de pequeno porte e
sem um contato mais intenso com outras regiões, e passa a se tornar uma cidade mais dinâmica, mais
frenética, as relações sociais se tornam mais complexas, portanto a experiência do tempo também
muda para seus habitantes.
É a própria Rebeca a primeira habitante de Macondo que é acometida pela denominada peste
da insônia, mas quem acaba decifrando o mal que acometerá todos os habitantes será a índia que
trabalha na casa dos Buendía, Visitación. Essa descoberta da peste da insônia por Visitación não
ocorre por acaso, pois tanto ela quanto seu irmão foram obrigados a fugir do reino onde eram príncipes
justamente por esta misteriosa doença. A passagem em questão é essa,
Certa noite, na época em que Rebeca curou-se do vício de comer terra e foi levada para dormir
no quarto das outras crianças, a índia que dormia com eles despertou por acaso e ouviu um
estranho ruído intermitente no canto. Levantou-se alarmada, achando que algum animal tinha
entrado no quarto, e então viu Rebeca na cadeirinha de balanço, chupando o dedo e com os
olhos alumbrados como os de um gato na escuridão. Pasmada de terror, angustiada pela
fatalidade de seu destino, Visitación reconheceu naqueles olhos o sintoma da doença cuja
ameaça a havia obrigado, com o irmão, a desterrar-se para sempre de um reino milenar onde
eram príncipes. Era a peste da insônia. (Márquez, 2012, pg.85).

Compreendemos que não é de forma acidental que um par de irmãos indígenas souberam
antes dos outros habitantes que a enfermidade que acometeu o reino deles havia chegado a Macondo.
Mas qual o sentido dessa nossa afirmação? Nossa afirmação, do caráter não acidental dos índios terem
descoberto essa peste, se fundamenta em uma afirmação proferida por Visitación um pouco mais
adiante da narrativa, o narrador afirma:

[…] “Se não voltarmos a dormir, melhor”, dizia José Arcádio Buendía, de bom humor. “Desse
jeito a vida renderá mais.” A índia, porém, explicou a eles que o mais terrível da enfermidade
da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço algum, mas sua
inexorável evolução rumo a uma manifestação mais crítica: o esquecimento. (Márquez, 2012,
pg.85).

A questão do esquecimento e o conhecimento dessa peste por parte de Visitación e seu irmão
Cautare explica-se pelo fato de que no processo de colonização da América Latina, foram os índios as
primeiras vítimas desse processo colonial. Novamente devemos chamar a atenção para o fato de que o
sentido que Gabo emprega para a palavra esquecimento adquire um sentido estranho ao entendimento
do senso comum, não se trata de um processo que obedece a uma lógica imanente, interna ao
funcionamento das relações socais dos ameríndios, pelo contrário o esquecimento pela qual os índios
passaram no processo colonial foi mediado pela extrema violência e imposição de uma cultura
estranha, nesse caso a cultura ibérica. Foi um esquecimento imposto.

141
Historicamente os povos que ocuparam toda essa região que hoje conhecemos como América
Latina, obviamente foram os índios, dessa maneira, metaforicamente Visitación e Cautare já haviam
vivenciado esse processo de perda de sua independência tanto econômica, quanto social e cultural.
Mudança semelhante que a pequena e autônoma aldeia de Macondo passa a experimentar com uma
crescente intensidade a partir da chegada desses imigrantes. Porém, diferentemente do que ocorreu
com as populações indígenas nesse primeiro momento esse intercâmbio sociocultural entre os
habitantes de Macondo e os de fora se dá de forma pacífica, sem conflitos, nem violência, porém houve
mudanças significativas com relação àquela aldeia que no início contava com 300 habitantes e na qual
todas as casas foram construídas para que nenhuma delas ficasse mais exposta ao sol intenso de
Macondo do que as outras. De Paula (2018) é bem preciso em sua análise sobre a relação entre a peste
da insônia, os índios, o esquecimento e o processo colonial, o autor escreve,

Alheios a essa visão instrumentalizada e utilitária – isto é, moderna – do tempo, limitado ao


âmbito da produtividade, os dois indígenas surgem como aqueles que já tiveram suas raízes
rompidas por aquele mal e conhecem, portanto, o seu caráter destrutivo. Nessa leitura, a insônia
adquire um caráter metafórico poderoso, ressaltando a perversidade do esquecimento imposto
aos povos indígenas na América, sendo a perda de sua identidade o preço cobrado pela
integração ao processo produtivo e à cultura dominadora que o representa. (De Paula, 2018,
pgs.3-4).

As trocas comercias tornam-se mais intensas, consequentemente, estamos diante de outra


Macondo. Se com os indígenas o esquecimento foi consequência de uma violência extrema por parte
dos colonizadores, através do extermínio da evangelização forçada para a fé cristã, dos estupros
sistemáticos e do processo de escravidão, de forma semelhante há uma mudança substancial de
Macondo que se encontrava quase que totalmente isolada do mundo exterior para essa nova cidade
tomada por imigrantes, que experimenta uma ebulição comercial.
Destarte, a peste da insônia também pode ter uma dupla significação na estrutura narrativa de
Cem Anos de Solidão, o primeiro significado carrega um sentido positivo, pois para José Arcádio
Buendía a insônia apesar dos pesares proporciona um tempo maior para a dedicação integral ao
trabalho, José Arcádio Buendía por duas vezes confirma essa dimensão positiva, “Se não voltarmos a
dormir, melhor”, dizia ele, de bom humor. “Desse jeito a vida renderá mais.” (Márquez, 2012, pg.85).
Já para Visitación o significado da peste da insônia era totalmente negativo, pelo seu conhecimento
prévio da doença como mostramos anteriormente. Só no decorrer da narrativa José Arcádio Buendía e
todos os habitantes de Macondo deparam-se com os inúmeros problemas advindos do esquecimento.
Marcelo Ferraz de Paula (2018) nos esclarece sobre o sentido dessas transformações históricas pelas
quais Macondo estava passando,

[…] Se seguirmos as pegadas que Adorno e Horkheimer deixaram em sua Dialética do


Esclarecimento (1985), poderemos pensar esta passagem de García Márquez como a encenação

142
de uma transição da ‘pré-história da razão’ para uma conturbada e, no caso emblemático do
romance, apocalíptica era de racionalidade técnica, política e econômica. À luz dessas ideias,
identificamos neste episódio a encenação de uma passagem problemática, instável e imperfeita
para uma nova etapa civilizatória, cujo movimento atualiza artisticamente a dialética entre Mito
e Esclarecimento. (De Paula, 2018, pg. 2).

Cabe ressaltar que na análise de Adorno e Horkheimer em sua obra Dialética do


Esclarecimento (2006) o mito e o esclarecimento não são de forma alguma duas categorias
mutuamente excludentes, como nas análises que realizamos mais acima, mas para ambos os autores
trata-se, antes de tudo, de uma dialética de aproximação, na qual o pensamento mítico já contém em si
os germes da racionalidade técnica e o pensamento esclarecido da modernidade ainda tem de forma
residual elementos do pensamento mitológico. Segundo Olmaro Paulo Mass (2011),

A racionalidade moderna teve seu germe na natureza do mito. A forma mítica não deixa de ser
conhecimento, porque já procurava esclarecer fatos, elucidar conceitos e dar explicações sobre
os acontecimentos. Portanto, tanto o potencial mítico de conhecimento quanto a ilustração do
conhecimento moderno, que se definem em uma nova roupagem, estão ligados a um processo
histórico, pelo qual o homem busca conhecer-se e libertar-se de uma natureza ainda
desconhecida. A Aufklärung passa a existir como uma reação ao medo. (Mass, 2011, pgs. 29-
30).

Dessa forma, a estrutura narrativa de Cem Anos de Solidão talvez não seja a representação
desse itinerário entre mito e esclarecimento concebido por De Paula (2018), mas há realmente um
processo de degradação que progressivamente acometendo Macondo até chegar ao seu ápice com a
implantação da companhia bananeira.
Com a peste da insônia, começa o processo de grandes transformações sociais que irão
perpassar a aldeia de Macondo. Progressivamente abandona-se a metáfora da condição originária de
nosso continente, pelo menos no tocante aos relatos dos colonizadores, que viam um continente eivado
de elementos miraculosos e também uma formação social que se fundamentava no princípio da
igualdade social, sucintamente era uma aldeia feliz e mágica. O esquecimento aparece como
consequência negativa desse primeiro surto de modernização, superando esse estágio originário em que
Macondo se encontrava. E, como todo o processo de colonização e desenvolvimento da América
Latina foi marcado por essa articulação entre o velho e o novo produzindo, dessa maneira, uma nova
realidade social que é síntese desses dois momentos. O esquecimento não foi e nunca poderia ter sido o
esquecimento total de uma identidade, pois, por mais traumático e violento que seja o processo de
intercâmbio cultural - como é caso da expansão colonial - ele instaura um processo de rearrumação, de
novas articulações entre as diferentes tradições culturais que se chocam entre si. No que tange à
realidade construída no romance, parece-nos que a escolha de Melquíades para levar a cura da
enfermidade da insônia e, consequentemente eliminar o esquecimento, pode ser explicado tanto pela
própria natureza do personagem, no qual se encontra de forma bastante condensada os elementos
mágicos, como pelo fato de, a partir dele, urdir-se uma síntese perfeita e mais bem acabada dessas
143
inter-relações de diferentes povos, portanto, o esquecimento e a lembrança também são partes que
compõem a natureza de Melquíades e da própria sociedade resultante da modernização. Dessa relação
entre a Macondo idílica e a Macondo do seu primeiro surto modernizador, De Paula (2018) observa
que,

Durante o episódio em análise, a imagem primeva de Macondo aparece em rápido processo de


transformação. Após a busca desenfreada de Úrsula pelo filho José Arcadio, que havia fugido
com os ciganos, a aldeia “[...]transformou-se logo num povoado ativo, com lojas e oficinas de
artesanato [...]” (García Márquez, 2005, p. 42), passando por um incipiente processo de
modernização. É como se a insônia e o esquecimento não pudessem atormentar aquele pequeno
emaranhado de vinte casas que iniciam o romance, um mundo centrado no obstinado e
engenhoso igualitarismo de José Arcadio Buendía, portanto ainda sem história, sem memória.
O povoado surge marcado por um estado de inocência ao mesmo tempo primitiva e utópica,
que só se agita com os prodígios mágicos e científicos – quando não mágico-científicos –
trazidos pelos ciganos, inicialmente o único vínculo da aldeia com o mundo exterior. A insônia
e o esquecimento que dela derivam estão intimamente ligados ao primeiro dos muitos saltos
modernizadores de Macondo, articulados ao crescimento populacional e econômico que faz a
localidade atrair trabalhadores de outras regiões, sobretudo indígenas como Visitación e seu
irmão Cataure. (De Paula, 2018, pg. 3).

Ao invés de creditar a impossibilidade da insônia e do esquecimento à natureza mítica da


aldeia de Macondo em seus primórdios, tendemos a analisar esse trecho do romance ou esses dois
momentos da narrativa romanesca, - da natureza idílica de Macondo para o primeiro choque
modernizador -, como sendo consequência do choque cultural entre grupos sociais distintos, dessa
forma, no conflito daí oriundo é que emerge a possibilidade de haver trocas culturais e,
consequentemente do “esquecimento” de determinados elementos de uma dada cultura. Mas essa
argumentação poderia ser questionada sobre o papel da tribo cigana de Melquíades no momento
anterior a esse processo de modernização, já naquele momento da narrativa não haveria esse choque
cultural? Nossa resposta é não, pois a tribo cigana de Melquíades é figurada como um grupo social em
que leva as conquistas da humanidade para Macondo, ou seja, trás uma enriquecimento cultural para a
mesma.
Relembremos que anteriormente quando analisamos mais detalhadamente Melquíades e sua
tribo na estrutura de Cem Anos de Solidão vimos que esse personagem transmite os conhecimentos da
história da humanidade para os habitantes de Macondo, por isso afirmamos que ele é a autoconsciência
da humanidade. Isto ocorre desde a chegada de Melquíades, que construirá uma forte relação de
amizade com José Arcádio Buendía. Além disso, isso essa tribo cigana não tinha por objetivo o
enriquecimento, o seu único desejo era levar novos conhecimentos para Macondo e, assim,
proporcionar o seu enriquecimento sociocultural. Já com os imigrantes advindos com o processo de
modernização de Macondo o objetivo principal era o de explorar economicamente a cidade, portanto
tratava-se de uma finalidade meramente utilitária. Por isso, os choques culturais são tão diferentes
nesses dois momentos da narrativa de Gabo e produzem consequências tão díspares.
144
Essa relação entre uma visão de mundo baseada nas trocas comerciais, no utilitarismo, em
contraposição a visão de mundo idílica e igualitária que se fundamenta essa peste da insônia. Então, o
esquecimento causado por esta doença é uma metáfora para o processo de superação daquele sentido
comunitário original que norteou a construção de Macondo. Como afirmamos, esse primeiro grande
surto de modernização no decorrer da narrativa do romance só se intensifica.
Gabo, através de sua criatividade estética, representa esses momentos de rupturas dramáticas
sempre fazendo referências diretas ou indiretas à própria lógica do desenvolvimento colonial que se
estabeleceu na América Latina. No último trecho que citamos fica evidenciado o fato de que se trata de
uma referência ao primeiro contato dos colonizadores com os povos indígenas autóctones, “[…] e uma
rota de comércio permanente através da qual chegaram os primeiros árabes de pantufas e argolas nas
orelhas, trocando colares de vidro por araras e papagaios. (Márquez, 2012, pg. 79)”. Vale a pena
citarmos a carta, escrita no dia primeiro de maio de 1500, que Pero Vaz de Caminha endereçou ao Rei
de Portugal, D. Manuel I, Caminha (1500),descrevendo o primeiro contato entre os portugueses e os
índios,

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e
suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousasse os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que
aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um bar rete vermelho e uma
carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um
sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como
de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem
parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se
volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar. (Caminha,
1500, pg. 3).

Posteriormente, Gabo vai introduzir em sua narrativa uma instituição social que até aquele
momento não havia sequer sido mencionada no romance, o Estado. Através do personagem de
Apolinar Moscote, o alcaide, o processo de dominação política toma o centro da narrativa em Cem
Anos de Solidão. Esse segundo momento de “modernização” de Macondo, talvez seja a representação
do momento histórico no qual a metrópole espanhola ou portuguesa finca sua dominação de vez em
nosso continente, fazendo com que haja uma dominação formal/jurídica de todo o continente latino-
americano perante as coroas de Portugal e da Espanha. Com a emergência da dominação política direta
sobre Macondo, há a figuração de uma outra temporalidade histórica na obra, da construção da idílica
de uma aldeia, passa-se por um primeiro ciclo de modernização, por segundo, no qual estabelece-se a
subordinação política e, por fim, desemboca-se no terceiro ciclo que se refere ao período marcado pelo
imperialismo. Para não fugirmos de nossa análise sobre a peste da insônia analisaremos os dois últimos
momentos de ruptura narrativa e dramática no próximo tópico da tese.
As posições conflitantes entre o diagnóstico dessa enfermidade, de um lado a correta
145
compreensão por parte dos irmãos indígenas Visitación e Cautare, e de outro lado a percepção
equivocada dos Buendía, especialmente, a visão de José Arcádio Buendía sobre a possibilidade de
melhor aproveitar o tempo para as atividades laborais, serão resolvidas ao longo da narrativa. No
decorrer dessa parte do romance Gabo evidencia a correção da percepção dos índios com relação a
doença e também aponta para o próprio caráter contraditório do desenvolvimento econômico
capitalista nas nações periféricas, assim como, não seria exagero afirmar, esboça uma visão crítica da
centralidade da esfera econômica e em especial, do trabalho abstrato, nas sociedades capitalistas,
reduzindo a humanidade ao homo economicus. Nesse sentido Marx (2010) já em 1844, apontava para
essa característica do modo de produção capitalista,

[…] O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto
como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar,
degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua
individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos
comunitários, | | VII | são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o
objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana; seu comportamento para
com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão
múltiplice (vielfach) quanto múltiplices são as determinações essenciais e atividades humanas),
eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma
autofruição do ser humano. (Marx, 2010, pg.108).

Mais adiante Marx complementa sua análise sobre esse fenômeno social,

A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterias que um objeto é o nosso [objeto] se
o temos, portanto, quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente
possuído, comido, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós, etc., enfim, usado.
Embora a propriedade privada apreenda todas estas efetivações imediatas da própria posse
novamente apenas como meios de vida, à qual servem de meio, é a vida da propriedade
privada: trabalho e capitalização. (Marx, 2004, pg. 108).

Gabo vai também apontar de forma crítica para esse fenômeno social que emerge com o
desenvolvimento da moderna sociedade burguesa, esse racionalismo instrumental e utilitário que
subordina todas as outras esferas da existência social e pessoal.

No começo ninguém se assustou. Ao contrário, se alegraram por não dormir, porque havia
tanta coisa a ser feita em Macondo que o tempo mal dava. Trabalharam tanto que logo não
tiveram mais nada para fazer, e às três da madrugada estavam com os braços cruzados,
contando o número de notas da valsa dos relógios. Os que queriam dormir, não por cansaço,
mas por saudades de seus sonhos, recorreram a todo tipo de remédios esgotadores.
(Márquez, 2012, pg.87).

A primeira estratégia dos habitantes de Macondo para curar essa enfermidade é posta por
Úrsula Iguarán utilizando um “remédio” denominado “beberagem de acônito” , receita essa aprendida
com sua mãe, mas para o azar de todos tal emplasto não consegue exterminar o mal da doença da
insônia. O único efeito desse “remédio” foi o de possibilitar que todos os habitantesvoltassem a
sonhar, porém ninguém conseguia dormir. Todos passam a se comportar como se estivessem em uma
146
“alucinada lucidez” e cada um consegue enxergar as imagens oníricas dos outros.
A partir do momento em que as estratégias para que voltasse o sono aos habitantes de
Macondo, inclusive o “remédio” de Úrsula não surtem efeito, será Aureliano Buendía que tentará uma
estratégia interessante para que as pessoas não esquecessem do passado tanto em sua dimensão social
quando em uma dimensão individual. A lógica dessa estratégia consistiu em pintar com uma tinta preta
o nome de cada objeto do mundo, dessa maneira, pensava Aureliano, que apesar do esquecimento ao se
deparar com o nome de cada objeto haveria mais problemas para os habitantes. Porém, essa estratégia
que a princípio apresenta uma lógica bastante plausível, não levou em consideração de que a unidade
entre o signo e o referente não preenche totalmente a lacuna desse esquecimento, ou seja, qual ou quais
as utilidades desses objetos? Pois, sem se saber a utilidade dos objetos qual o sentido de saber a
nomenclatura dos mesmos?

[…] Quando seu pai falou de sua preocupação por ter se esquecido até dos fatos mais
impressionantes de sua infância, Aureliano explicou seu método, e José Arcádio Buendía
colocou-o em prática na casa inteira e mais tarde impôs em toda a aldeia. Com um galho de
hissopo marcou cada coisa com seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama,
caçarola. Foi até o curral e marcou os animais e as plantas: vaca, bode, porco, galinha, aipim,
inhame, banana. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento,
percebeu que podia chegar o dia em que as coisas seriam reconhecidas por suas inscrições, mas
ninguém se lembraria da sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no
cachaço da vaca era uma mostra exemplar da qual os habitantes de Macondo estavam dispostos
a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, e deve ser ordenhada todas as manhãs para que
se produza leite, e o leite deve ser fervido para ser misturado com o café e fazer café com leite.
E assim continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas
palavras, mas que fugiria sem remédio quando fosse esquecida o valor da letra escrita.
(Márquez, 2012, pgs.88-89).

O patriarca de Macondo, José Arcádio Buendía, também tentou dar uma contribuição para
remediar o esquecimento oriundo da peste da insônia, aventando a possibilidade de criar uma máquina
da memória, nada poderia ser mais condizente com a personalidade imaginativa e visionária do
patriarca de Macondo. Tal maquinário funcionaria como um dicionário giratório em que um indivíduo
situado no eixo dessa máquina tivesse acesso às experiências e noções mais básicas para se viver.
Uma quarta tentativa de cura, na verdade não se tratou de se buscar uma cura para a
enfermidade, mas Pilar Ternera buscou através do jogo de cartas reconstruir o passado de cada
habitante de Macondo que havia se esvaído por conta do esquecimento. Gabo opera esteticamente uma
inversão lógica com relação a essa situação que é em si mesma mágica, ou seja, tal jogo que funciona
para que as pessoas saibam de algum fato futuro de suas respectivas vidas sofre uma subversão, agora
Pilar Ternera “advinha” o passado em vez de ler o futuro. Deixemos Gabo e sua genialidade literária
narrar essa passagem tão bela do livro,

Na entrada do caminho do pantanal tinha sido colocado um anúncio que dizia Macondo, e outro
maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas tinham sido escritas palavras para

147
memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tamanha vigilância e tanta
fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por
eles mesmos, que acabou sendo menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi
quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o
passado nas cartas do baralho, da mesma forma que antes lia o futuro. Através desse recurso os
insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas das cartas, onde o
pai era lembrado apenas como se fosse o homem moreno que havia chegado em princípios de
abril e a mãe era recordada como a mulher triguenha que usava um anel de ouro na mão
esquerda, e onde uma data de nascimento ficava reduzida à última terça-feira em que a cotovia
cantou no pé de louro. (Márquez, 2012, pgs.89-90).

É pelo poder irresistível da imaginação, da possibilidade de recriação de um passado fictício,


mas aprazível em que se opera a estratégia de Pilar Ternera em ludibriar o esquecimento de si que no
fundo é o esquecimento de nossa personalidade, de nosso passado. Se as estratégias de Aureliano
Buendía e José Arcádio Buendía orientavam-se no sentido de que através da escrita e da máquina
pensada por José Arcádio pudessem deter o esquecimento em sua dimensão social, o caminho proposto
por Pilar é o de reconstruir o passado, condição essa de fundamental importância para a constituição de
qualquer identidade, de barrar o esquecimento porém em uma dimensão individual65.
Mas coube ao personagem mais miraculoso de todo o romance finalmente reestabelecer o
sono e estancar com as dores do esquecimento, nos referimos ao famigerado Melquíades. Para uma
enfermidade tal, cercada por mistérios e que foge a qualquer tipo de lógica racional, a peste da insônia
é uma enfermidade de natureza mágica, e somente um personagem mágico por excelência poderia
conhecê-la e ter a cura para esta doença. Reestabelecida a normalidade em Macondo Melquíades leva
consiga também um novo invento que apresenta uma certa relação com a memória e o esquecimento: o
daguerreótipo, aparelho tecnológico esse que é considerado o precursor das máquinas fotográficas.
Portanto, a restauração da memória por parte de Melquíades se dá ao mesmo tempo em que ele leva
para Macondo um invento no qual se torna possível a fixação de uma situação ou mesmo de pessoas
em um objeto, em uma lâmina de metal. Nesse sentido De Paula (2018) realiza uma interessante
comparação entre esses dois momentos da narrativa,

Todavia, junto com o recipiente de cor suave, Melquíades traz uma nova invenção que, embora
não explicitada no romance, parece indissociável da recuperação coletiva da memória: o
daguerreótipo. A surpreendente descoberta emudece de espanto os habitantes de Macondo,
perplexos ao ver suas feições “[...] plasmadas numa idade eterna sobre uma lâmina de metal
com reflexos” (García Márquez, 2005, p. 54). O encanto com a imagem fixada pela técnica e a
recuperação das memórias ocorrem de modo simultâneo, como a sugerir o vínculo entre os
retratos lentamente esboçados pela ‘aparatosa câmara’ e a preservação das lembranças
familiares e públicas. (De Paula, 2018, pg.7).

No decorrer dessa doença mágica Macondo fica isolada do restante do mundo para que a
enfermidade não se alastrasse por outras localidades, portanto cessou-se qualquer forma de contato

65 Um discussão clássica sobre essa questão da memória e construção da identidade é a obra de Éclea Bosi, Memória e
sociedade: lembrança de velhos.
148
entre esta cidade e o resto do mundo, dessa maneira, a volta de Francisco, o Homem reestabelece o
contato com o mundo. Já analisamos em outra parte esse personagem, porém é interessante assinalar
que ele é portador de informações e acontecimentos ocorridos do mundo exterior, desconhecidas
durante o período do isolamento,

Todo mundo foi escutar o que ele contava, para saber o que tinha acontecido no mundo. Dessa
vez chegaram com ele uma mulher tão gorda que quatro índios tinham de levá-la carregada
num andor e uma mulata adolescente de aparência desamparada que a protegia do sol com uma
sombrinha. Aureliano foi naquela noite até a taberna de Catarino. Encontrou Francisco, o
Homem, feito um camaleão monolítico, sentado no meio de uma roda de curiosos. Cantava as
notícias com sua velha voz áspera e exaurida, acompanhando- se com o mesmo acordeão
arcaico que tinha ganho de sir Walter Raleigh na Guiana, enquanto marcava o compasso com
seus grandes pés caminhadores rachados pelo salitre. (Márquez, 2012, pg.93)66.

Logo adiante há uma nova transformação social, política e histórica-temporal em Cem Anos
de Solidão, nos referimos ao processo no qual o poder político central se estabelece em Macondo. Tal
acontecimento ocorre em um determinado dia quando o alcaide Apolinar Moscote chega à cidade,
como já mencionado. Esse fato adquire uma significativa importância no romance pois além de
inaugurar um novo momento histórico na narrativa também constitui-se, também, em um preâmbulo
para a representação da Guerra dos Mil Dias, que será analisada na próxima parte de nosso estudo
detalhadamente. A figuração desse fato histórico, quebra a temporalidade da narrativa de Gabo.
Se primeiro momento do surto modernizador Macondo sofrerá com a peste da insônia e pelo
esquecimento. Já nesse novo momento histórico a natureza mágica não trará nenhum tipo de
consequência para a cidade e seus habitantes, porém o resultado muda radicalmente as características
da cidade e de seus habitantes, mas quais mudanças são essas? Quais instituições sociais passam a se
instalar em Macondo a partir desse momento? Trata-se do Estado e da igreja Católica. Emerge, dessa
forma, um embate entre duas formas de organização social bem distintas entre si. Assim, Gabo
representa a forma o desenvolvimento histórico em dois momentos singulares de nosso continente.
Sobre a Igreja é interessante mencionar esse trecho da narrativa,

[…] Pensando que nenhuma outra terra fazia tanta falta a semente de Deus, decidiu ficar mais
uma semana, para cristianizar circuncisos e gentios, legalizar concubibatos e sacramentar
moribundos. Mas ninguém deu importância a ele. Respondiam que durante muitos anos haviam
estado sem padre, cuidando dos assuntos da alma diretamente com Deus, e haviam perdido a
malícia do pecado mortal. Cansado de pregar no deserto, o padre Nicanor resolveu empreender
a construção de um templo, o maior do mundo, com santos em tamanho natural e vidro
coloridos nas paredes, para que gente até de Roma fosse honrar a Deus naquele centro de
impiedade. (Márques, 2012, pg.123).

66 Acredita-se que o personagem de Francisco, o Homem, tenha sido inspirado em um grande compositor de um estilo
musical bastante apreciado na Colômbia, o vallenato, Rafael Escalona. Mais do que isso, ao receber sua premiação do
Nobel de Literatura em 1982 Gabo teria feito questão de que um grupo de vallenato tocasse nessa cerimônia. O vallenato,
na sua formação clássica do gênero é composto por voz, acordeão, tambor e guacharaca, e tal como a história de nosso
continente tem origens que remontam às culturas europeias, ameríndias e africanas.
149
Paulatinamente o povoado vai perdendo sua autonomia econômica, política, religiosa e social.
Através desse intercâmbio maior com outras regiões da Colômbia o povoado vai cada vez mais
deixando para trás aquela atmosfera idílica que o caracterizava. No começo da narrativa quando
Macondo era um povoado recente, tanto José Arcádio, quanto Úrsula Iguarán temiam morrer isolados
do mundo, naquele momento era impossível imaginar os problemas que iriam advir do contato
sistemático com o restante do mundo e a derrocada de Macondo.
Cabe salientar que o processo de figuração artística empreendida por Gabo aglutina eventos
históricos distintos em um mesmo momento da narrativa. Isto significa firmar, que o processo de
subordinação política ocorreu em um período anterior ao narrado no romance; já o período de
dominação colonial, precisamente a instalação de um poder político central é figurado na
contemporaneidade, quando a maioria das nações da América Latina são independentes. O mesmo
pode-se dizer da Igreja Católica, que acompanhou os primeiros colonizadores.
Nesses dois momentos históricos estão aglutinados na narrativa. Apolinar Moscote ao chegar
em Macondo para instituir o poder do Estado naquela aldeia entra imediatamente em choque com o
patriarca José Arcádio Buendía. Até então o povoado não regulado por nenhum instituição formal do
Estado, José Arcadío Buendia exercia a autoridade moderadora por ser reconhecido pelos moradores.
Pesava pra isto o fato de ter sido o fundador de Macondo e demonstrar qualidades de liderança. Enfim
o poder estatal, praticamente desconhecia a existência daquele povoado. A nova situação, com a
chegada do alcaide, conhecerá o primeiro conflito entre este poder consuetudinário e o estatal. Gabo
assim escreve,

[…] Sua primeira providência foi determinar que as casas fossem pintadas de azul para
comemorar a independência nacional. José Arcádio Buendía, com a cópia da ordem nas mãos,
encontro-o fazendo a sesta na rede que tinha pendurado no escritório acanhado. “Foi o senhor
que escreveu este papel?”, perguntou. Dom Apolinar Moscote, um homem maduro, tímido, de
compleição sanguínea, respondeu que sim. “E com que direito?”, tornou a perguntar José
Arcádio Buendía. Dom Apolinar Moscote procurou um papel na gaveta e mostrou a ele: “Fui
nomeado alcaide deste povoado.” José Arcádio Buendía sequer olhou a nomeação.- Neste
povoado não mandamos com papéis – falou sem perder a calma. - E para que o senhor fique
sabendo de uma vez por todas, não precisamos de nenhum alcaide nem de corregedor nem de
nada disso, porque aqui não tem nada a ser corrigido. (Márquez, 2012, pg.98).

Mais adiante Gabo narra o embate entre os dois personagens,

E desse jeito levou-o pelo meio da rua, suspenso pelo colarinho, até botá-lo sobre seus dois pés
no caminho do pantanal. Uma semana depois, ele voltou com seis soldados descalços e
esfarrapados, armados com espingardas, e um carro de boi onde viajavam sua mulher e suas
sete filhas. Mais tarde chegaram outros dois carros com os móveis, os baús e os utensílios
domésticos. Instalou a família no Hotel do Jacob, enquanto procurava uma casa, e tornou a
abrir o escritório, protegido pelos soldados. Os fundadores de Macondo, decididos a expulsar
os invasores, foram, com seus filhos mais velhos, se colocar à disposição de José Arcádio
Buendía. Mas ele recusou, conforme explicou, porque dom Apolinar Moscote havia regressado
com a mulher e as filhas, e não era próprio de um homem vexar outro homem diante da família.
Assim sendo, decidiu resolver a situação de maneira pacífica. (Márquez, 2012, pg.99).
150
A partir desse momento em que um poder político central tenta subordinar a comunidade local
e organizar as relações sociais, instala-se um choque entre uma sociedade na qual o modo de produção
capitalista já havia se constituído, mesmo que de forma heterogênea, com o poder estatal, que pretendia
atuar de forma planejada para desenvolver o capitalismo. Aqui temos similitude com a ação do Estado
em diversos países da América Latina, nos quais se irrompeu conflitos entre os conservadores e liberais
quanto às estratégias para impulsionar o desenvolvimento.
O que ocorre a partir desse momento da narrativa é uma mudança significativa nas relações
sociais em Macondo. Desse embate entre as duas formas de organização social, ou de duas
temporalidades históricas distintas, os tempos modernos com sua nova organização do trabalho e com
suas instituições sociais acabam saindo vitoriosas. E a representação desse conflito histórico e posterior
desenvolvimento econômico de Macondo, culmina com achegada da companhia bananeira, marcando,
também, simultaneamente um movimento de degradação da cidade. Trata-se do caráter contraditório
da forma como Gabo representa o progresso nessa obra. E esse fenômeno social só tendeu a se agravar
no decorrer do romance chegando ao ápice com a companhia bananeira e as arbitrariedades e violência
perpetradas por ela. Porém, isso será objeto de uma análise mais detalhada e aprofundada no próximo
item dessa tese.

3.3 As metamorfoses do romance histórico: a Guerra dos Mil Dias

Nesse momento, analisaremos a representação que Gabo realiza sobre um importante evento
histórico que marcou profundamente a história da Colômbia, nos referimos à Guerra dos Mil Dias. No
romance de Gabo esse fato histórico ocupa uma significativa parte do romance e vinculamos a sua
representação a um segundo surto de modernização de Macondo, precedido pela peste da insônia.O
conflito ao qual nos referimos foi travado entre dois partidos políticos, que surgiram no período
anterior à independência da Colômbia, organizando em lados opostos os liberais e os conservadores.
Esses partidos diferenciavam-se por motivos religiosos e políticos, esse último envolvendo a oposição
entre o federalismo e centralismo.
A narrativa do autor sobre a Guerra dos Mil dias sofreu significativa influência das histórias
contadas por seu avô. Segundo Cunha (2014),

García Márquez viveu até os oito anos na casa de seus avós, a emblemática casa de
Aracataca. Sua mãe, dona Luíza Santiaga, viajou até a casa dos pais para ali dar a luz a seu
primogênito. Por motivos nunca realmente especificados, os pais de Gabriel García
Márquez foram embora, deixando o filho para ser criado pelos avós maternos. O pequeno
Márquez só voltaria a ver sua mãe com sete anos.
Tal constituição familiar foi decisiva para a construção de García Márquez como escritor:
Sua relação com seu avô marca o princípio de sua percepção do mundo masculino e de suas
151
representações acerca da Guerra dos Mil Dias de sua relação com sua avó advém seu
contato com o universo do fantástico, com todo um constructo de superstições (Cunha,
2014, pgs.17-18).

Dessa maneira, boa parte do conhecimento de Gabo sobre a Guerra dos Mil Dias foi mediada
justamente pelos relatos de seu avô. Além do seu avô ter participado ativamente desse conflito político,
ao lado dos liberais, um tio de Gabo também lutou nesse confronto porém do lado dos conservadores.
Mais adiante Cunha (2014) esclarece as relações entre Gabo, seu avô e seu tio,

O Coronel Nicolás Márquez Mejías, avô de García Márquez, foi combatente na Guerra dos Mil
dias, conquistando a patente de coronel e o cargo de Intendente Geral. Conquistou tal patente –
como muitos outros de seus companheiros – em meio à guerra e não devido a academicismos.
Lutou pela causa dos liberais, uniu-se às tropas de Uribe Uribe com trinta e cinco anos e lutou
ao lado deste nas províncias da Guajira, Padilla e Magdalena.
A longa guerra, com poucas vitórias relevantes por parte dos liberais, começou a se voltar para
esforços de reconciliação em outubro de 1902 – com a assinatura do tratado de Neerlandia. Um
novo tratado – o de Winsconsin – seria firmado no mês seguinte e este, sim, traria o fim
político definitivo ao conflito. Ambos os tratados são assinados pelos partidos em conflito:
Liberais e Conservadores. A violência ainda perdurou por muitos meses depois de seu fim
político. Mas, para o Coronel Márquez, a guerra propriamente dita acabou ali em Neerlandia. O
acordo de paz foi inclusive levado ao acampamento dos liberais por um dos filhos naturais do
avô de García Márquez, José Maria Valdeblanquez, que lutava pelos conservadores (Cunha,
2014, pg. 19).

Então, em seu círculo familiar nosso autor conviveu com duas pessoas que lutaram
diretamente do conflito e especialmente a figura de seu avô teria sido de fundamental importância para
a criação de personagens com Aureliano Buendía e o coronel inominado de Ninguém Escreve ao
Coronel. Os percalços pelos quais seu avô passou à espera de uma pensão por ter participado da
referida guerra retomado ficcionalmente na construção dos personagens de Aureliano Buendía,
Gerineldo Márquez e esse coronel que não tem nome, sendo esta uma estratégia narrativa para designar
todos aqueles combatentes da Guerra dos Mil Dias que ao se findar o conflito acabaram sem direito a
nenhum tipo de indenização ou pensão. Segundo Cunha (2014), houve uma promessa por parte do
governador conservador em pagar pensões a todos os combatentes, mas isto jamais foi efetivado.

No tratado de Neerlandia, o governo conservador prometeu aos veteranos da guerra – dos dois
lados – uma pensão vitalícia, pensão esta que incluía fundos para inclusive retirar os soldados
liberais do acampamento de Neerlandia. Os soldados acabaram por voltar para casa com seus
próprios meios financeiros, mas não deixaram de esperar pela pensão. Também não deixou o
coronel Márquez e sua família (Cunha, 2014, pg. 20).

A autora em questão nos aponta que a Guerra dos Mil Dias se trata de um conflito limite,
talvez o mais importante, que sacudiu a Colômbia no século XIX. Esse conflito marca o final de mais
de meio século de contendas entre o partido Liberal e o Conservador pelo controle da Colômbia. O
país, ao longo do século XIX, esteve mergulhado em uma permanente atmosfera de guerras. Os
números são de oito guerras civis nacionais, quatorze guerras civis locais, duas guerras contra o
Equador e três golpes de Estado.
152
O isolamento ficcional de Macondo, corresponde ao isolamento da Aracataca e da própria
Colômbia em sua totalidade no século XIX, e a explicação para isto deve ser buscada na história
daquele país naqueleséculo. Segundo Cunha (2014) o território da Colômbia no século XIX
apresentava baixa densidade populacional, bem como, grande isolamento regional. Em função disto, o
poder e a presença do Estado nas diversas províncias colombianas era bastante diminuto. Observamos
que este fato histórico, qual seja a dificuldade das províncias estabelecerem contatos entre si, servirá de
matéria-prima para a figuração estética de Gabo em sua narrativa sobre esse conflito que marcou
fortemente a Colômbia do século XIX. A chegada súbita de dom Apolinar Moscote a Macondo e a
instauração de um poder político legal, certamente inspira-se na própria história colombiana.
É a partir desse momento que a pacata cidade de Macondo estabelece um vínculo direto com o
poder político central instituído e, dessa forma, começa a experimentar profundas transformações
políticas, sociais e, posteriormente, econômicas. Os moradores de Macondo só terão contato com a
disputa política e seus procedimentos pouco éticos quando ocorrem o conflito entre ambos os partidos
chegam a realidade de Macondo, opondo o partido Liberal. Relembremos como Gabo narra as
impressões que o jogo político exerce sobre Aureliano Buendía.
Além de apresentar de forma sucinta as diferenças entre os dois partidos, que em realidade
não eram tão diferentes assim, é interessante apontar uma passagem bastante significativa desse trecho
que aponta a baixa complexidade social e política de Macondo em decorrência de seu relativo
isolamento nessa parte da narrativa: “não entendia como se chegava ao extremo de fazer guerras por
coisas que não podiam ser tocadas com as mãos”, a realidade social em Macondo era de tal maneira
simples que Aureliano Buendía não poderia imaginar um conflito bélico tendo como justificação
elementos tão abstratos e tão distantes da sua realidade como, por exemplo, a oposição entre o sistema
federalista defendido pelos liberais e o sistema centralizador defendido pelos conservadores.
Assim, podemos compreender o choque pelo qual os habitantes de Macondo passaram ao
verem-se de uma hora para outra sendo governados por um representante totalmente estranho,
defendendo ideiais totalmente alheios e distantes de suas demandas cotidianas. Em outro momento de
nossa tese apontamos o caráter estranhado do Estado democrático de direito. No caso de Macondo e de
Aureliano Buendía, este estranhamento é ainda mais agravado por seu relativo isolamento e baixa
complexidade social, política e econômica, com a predominância de relações sociais e econômicas pré-
capitalistas.
Os partidos em contenda foram fundados em meados do século XIX, o Liberal em 1848 por
Ezequiel Rojas, e o Conservador em 1849 por Mariano Ospina Rodríguez e José Eusébio Caro. Sobre a
constituição de ambos os partidos Cunha (2014) nos aponta,

153
Ambos os partidos são formados por, obviamente, políticos, Gamonales67 e intelectuais pré-
existentes a estes. Tais grupos pertenciam a partidos, também, pré-existentes. Assim, muitas das
bandeiras dos partidos Liberal e Conservador os precedem. Por exemplo, estes defendiam o
federalismo e o centralismo, respectivamente. Essas bandeiras são antigas, remontam a Bolívar
e Santander, mas não são permanentes nos partidos Rojo e Godo. Como veremos mais adiante,
nos muitos anos do século XIX, muito mudará na política perpetrada entre ambos os partidos.
A única contenda imutável seria a questão religiosa (Cunha, 2014, pgs. 31-32).

Dessa maneira, além das diferenças já mencionada acima, sobre a questão religiosa e a forma
de organização do Estado, o partido Liberal e o partido Conservador também diferenciavam- se quanto
à compreensão de qual deveria ser o papel do Estado na economia. Se os liberais caracterizavam-se por
defender uma menor interferência do Estado sobre a economia o partido conservador defendia um
Estado atuando forma mais intensa na economia. Logo, do ponto de vista ideológico os partidos
distinguiam-se em função de três questões principais: a religião, a organização do Estado e, por fim, a
intervenção do Estado na economia. Referente a questão religiosa os dois partidos tinham uma postura
bastante dispares, pelo menos ideologicamente, o partido Liberal defendia a laicidade completa do
Estado, já para os conservadores a Igreja Católica deveria ter uma participação ativa na sociedade
colombiana, os conservadores defendiam que o catolicismo fosse declarada a religião oficial da
Colômbia, que a educação tivesse subordinada à Igreja, assim como ela deveria regular os casamentos,
dentre outras coisas proibindo, por exemplo, o divórcio. Ao estourar a guerra civil o irmão do coronel
Aureliano Buendía, José Arcádio, é indicado para governar a cidade de Macondo, mas para o espanto
de todos seu governo caracteriza- se por um autoritarismo e violência que Macondo jamais tinha visto,

Arcádio deu uma interpretação muito pessoal à recomendação. Inventou para si mesmo um
uniforme com galões e dragonas de marechal, inspirado nas gravuras de um livro de
Melquíades, e dependurou no cinto o sabre com borlas douradas do capitão fuzilado. Instaurou
as duas peças de artilharia na entrada do povoado, uniformizou seus antigos alunos,
exacerbados por seus discursos incendiários, e deixou-os vagar armados pelas ruas para dar aos
forasteiros uma impressão de invulnerabilidade. Foi um truque de dois gumes, porque o
governo não se atreveu a atacar o povoado durante dez meses, mas quando atacou foi com uma
força tão desproporcional que liquidou a resistência em meia hora. Desde seu primeiro dia de
mandato Arcádio revelou sua vocação para os decretos. Leu até quatro por dia, para ordenar e
dispor tudo o que lhe passava pela cabeça. Implantou o serviço militar obrigatório a partir dos
dezoito anos, declarou de utilidade pública os animais que transitavam pela rua depois das seis
da tarde e impôs aos homens maiores de idade a obrigação de usar uma braçadeira vermelha.
Enclausurou o padre Nicanor na casa paroquial, sob ameaça de fuzilamento, e proibiu-o de
rezar missa e tocar os sinos a não ser para celebrar as vitórias dos liberais […]. No começo
ninguém levou a sério. Eram, afinal de contas, os garotos da escola brincando de gente grande.
Mas certa noite, quando Arcádio entrou na taberna de Catarino, o trompetista da banda saudou-
o com um toque de fanfarra que provocou o riso da clientela, e Arcádio mandou fuzilá-lo por
desrespeito à autoridade (Márquez, 2012, pgs.144-145).

67 Gamonales, grosso modo é a versão colombiana dos caudilhos. Eram líderes locais que detinham o poder político, social
e econômico. Em nosso realidade podemos fazer um paralelo entre eles e os nossos coronéis. Para uma discussão mais
aprofundada ver: Gamonalismo y redes de poder local en el nordeste Antioqueño, (Colombia, 1930-1953) | Revista Tempo
e Argumento (udesc.br)

154
É essa mudança no comportamento de José Arcádio que provoca um entrevero entre ele e sua
mãe “adotiva”, Úrsula Iguarán. Nesse ponto da narrativa o único contraponto às arbitrariedades, à
violência e aos desmandos de Arcádio ao governar Macondo se deve a força moral e ética de sua mãe e
matriarca de Macondo, Úrsula, que põe um freio ao comportamento de seu filho. Assim narra Gabo a
oposição entre José Arcádio e Úrsula Iguarán,

155
[…] Os que reclamaram, mandou botar a pão e água com os tornozelos num cepo que instalou
numa sala de escola. “Você é um assassino!”, Úrsula gritava cada vez que ficava sabendo de
alguma arbitrariedade. “Quando Aureliano souber vai fuzilar você e eu serei a primeira a me
alegrar.” Mas foi tudo inútil. Arcádio continuou apertando os torniquetes de um rigor
desnecessário, até se transformar no mais cruel dos governantes que Macondo jamais tinha
conhecido.” “Agora sofram com a diferença”, disse em certa ocasião dom Apolinar Moscote.
“Esse é o paraíso liberal.” Arcádio ficou sabendo. À frente de uma patrulha invadiu a casa,
destroçou os móveis, espancou as filhas e levou dom Apolinar Moscote arrastado. Quando
Úrsula irrompeu no pátio do quartel, depois de ter atravessado o povoado inteiro clamando de
vergonha e brandindo de raiva um rebenque coberto de alcatrão, o próprio Arcádio se dispunha
a dar ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento (Márquez, 2012, pgs. 145-146).

Mais adiante Gabo continua,

Antes que Arcádio tivesse tempo de reagir, ela soltou a primeira chibatada. “Se atreve só,
assassino!”, gritava. “E me mate também, filho da mãe. Porque aí não terei olhos para chorar a
vergonha de ter criado um fenômeno.” Açoitando sem misericórdia, perseguiu-o até o fundo do
pátio, onde ele se enrolou feito um caracol. Dom Apolinar Moscote estava inconsciente,
amarrado no poste onde antes estava o espantalho despedaçado pelos tiros de treinamento. Os
rapazes do pelotão se dispersaram, com medo de Úrsula acabasse se desafogando neles. Mas
ela nem os olhou. Deixou Arcádio com o uniforme em frangalhos, bramindo da dor e de raiva,
e desamarrou dom Apolinar Moscote para levá-lo à sua casa. Antes de abandonar o quartel,
soltou os presos dos grilhões.
A partir daquele momento, foi ela quem mandou no povoado. Restabeleceu a missa dominical,
suspendeu o uso de braçadeiras vermelhas e desqualificou os decretos iracundos. Mas, apesar
de sua fortaleza imensa, continuou chorando a desdita de seu destino […]. (Márquez, 2012,
pg.146).

E essa rusga entre Úrsula Iguarán e José Arcádio é explicado na narrativa de Gabo por ele ser
o filho bastardo de José Arcádio Buendía com Pilar Ternera mas que sempre morou na casa dos
Buendía e foi criado por Úrsula Iguarán como se fosse realmente seu um filho. Dessa maneira ele
sempre se sentiu solitário por não um membro legítimo da estirpe dos Buendía. Além das
arbitrariedades, violência e desmandos praticados por José Arcádio ele também se envolverá com
esquemas de corrupções o que deixa sua mãe ainda mais desolada com essa situação,

Úrsula levou vários meses para saber o que já era de domínio público, porque as pessoas
escondiam dela para não aumentar seu sofrimento. Continuou suspeitando. “Arcádio está
construindo uma casa”, confiou com fingido orgulho ao marido, enquanto tratava de meter em
sua boca uma colherada de xarope de cabaceira. No entanto, suspirou involuntariamente: “Não
sei por que, mas tudo isso me cheira mal.” Mais tarde, quando ficou sabendo que Arcádio não
apenas tinha terminado a casa como havia encomendado mobiliário vienense, confirmou a
suspeita de que estava usando fundos públicos. “Você é a vergonha do nosso sobrenome”,
gritou para ele num domingo depois da missa, quando o viu jogando baralho com seus oficiais
(Márquez, 2012, pg. 155).

Então, percebemos a forma como nosso autor articula os eventos de grande importância na
história da Colômbia e de como esses influenciavam, mudavam ou determinam o agir dos indivíduos
representados literariamente. Somente com o advento da Guerra dos Mil Dias, permitiu a José Arcádio
tornar-se o governante de Macondo e, dessa forma, levar o leitor a conhecer as mutações de seu
comportamento e sua personalidade. Entende-se assim a dialética que se encontrar no centro daquilo

156
que caracteriza por excelência o romance histórico tanto para suas versões clássicas quanto para suas
atualizações, como Cem Anos de Solidão. Esse romance procede dialeticamente ao vincular os grandes
acontecimentos históricos às trajetórias particulares dos indivíduos.

Esse úlimo conflito do século XIX entre liberais e conservadores é recriado por Gabo, que ao
desenvolver a narrativa constroi um personagem aglutinador e catalisador no campo liberal, justamente
um veterano de outros conflitos que envolveram os dois partidos políticos, Alirio Noguera. Ele chega a
Macondo alguns anos antes de estourar o conflito com uma maletinha cheia de bolinhas que deveriam
ser remédios mas que na realidade tratava-se apenas de placebo. Alirio Noguera era um liberal e não
um médico que havia se refugiado em Macondo por conta de suas desilusões com os rumos que os
conflitos entre os dois partidos havia tomado.

No dia seguinte, atendendo às pressões dos amigos, foi visitar o doutor Alirio Noguera para que
ele cuidasse de uma suposta dor no fígado. Nem mesmo sabia qual o sentido da patranha. O
doutor Alirio Noguera havia chegado a Macondo poucos anos antes com uma maletinha cheia
de bolinhas sem sabor e uma máxima médica que não convenceu ninguém: Não há mal que o
bem não cure. Na realidade, era um farsante. Atrás de sua inocente fachada de médico sem
prestígio se escondia um terrorista que tapava com meias que iam até o joelho as cicatrizes que
cinco anos de grilhões deixaram em seus tornozelos. Capturado na primeira aventura
federalista, conseguiu escapar para Curaçao disfarçado com o traje que mais detestava neste
mundo: uma batina. Ao cabo de um prolongado desterro, iludido pelas exaltadas notícias que
levavam a Curaçao os exilados do Caribe inteiro, embarcou numa escuna de contrabandistas
em Riohaca com os vidrinhos de comprimidos, que não eram outra coisa além de bolinhas de
açúcar refinado, e um diploma da universidade de Leipzig falsificado por ele mesmo. Chorou
de desencanto. O fervor federalista, que os exilados definiam como um paiol a ponto de
explodir, havia se dissolvido em uma vaga eleitoral. Amargurado pelo fracasso, ansioso por um
lugar seguro onde esperar pela velhice, o falso homeopata tinha se refugiado em Macondo
(Márquez, 2012, pgs. 138-139).

Porém, com a chegado do alcaide Dom Apolinar Moscote, a verve de agitador novamente
aflorou em Alirio. A partir desse momento ele passa a fazer propaganda e agitação política com os
habitantes de Macondo e, por fim, consegue recrutar todos os filhos dos fundadores de Macondo para o
partido Liberal, com exceção de um: Aureliano Buendía. O primeiro processo eleitoral pela qual
Macondo vai passar, logo após a chegada do alcaide, será o estopim para que Aureliano e os outros
jovens se convençam da necessidade de partir para o conflito armado contra o partido Conservador.

Ao término das eleições Aureliano Buendía na casa de seu sogro percebe o jogo de cartas
marcadas que era esse processo eleitoral. O resultado dessas eleições caso não fosse fraudada por seu
sogro seria bastante equilibrado, pois havia tantas cédulas azuis quanto vermelhas, mas com a fraude
perpetrada pelo partido Conservador, o partido Liberal é derrotado de forma avassaladora. Uma nova
guerra se torna mais próxima com a acirramento dos ânimos entre os partidos. Tal como Gabo narra a
desilusão de um veterano de guerra, Alirio Noguera, com as decisões da cúpula do partido Liberal em

157
concentrar sua luta nas disputas eleitorais, o leva a buscar nos jovens habitantes de Macondo novos
militantes políticos. Na própria história colombiana encontramos algo parecido, pois foram jovens
militantes liberais que se opuseram aos velhos líderes do partido e agiram em prol da eclosão da
Guerra dos Mil Dias, Cunha (2014) nos aponta como ocorreu esse movimento histórico,

No plano do real, a partir deste momento as relações tão tensas entre os partidos voltam a se
aflorar e as feridas ainda abertas da Guerra Civil de 1895 voltam a se abrir. O setor mais jovem
do Partido Liberal – dentre eles Uribe, à época com quarenta anos – ignora o tradicional
apaziguamento de importantes líderes do partido como Parra – setenta e quatro anos – e se
lançam a uma nova Guerra Civil, a mais violenta de todas e o foco deste nosso estudo.
A situação política colombiana se encontrava em seu período mais tenso. Depois de longos
anos de Regeneración e com uma juventude política bastante ativa do lado dos Liberais, as
políticas de apaziguamento dos últimos anos já não surtiam mais efeito. O Partido Nacional de
Nuñez e Caro há muito já tinha se tornado conservador em todos os sentidos e se dedicava a
constante supressão política de seus adversários […].
Estes atos acabaram por aquecer ainda mais a contenda entre os partidos e por criar divisões
entre os conservadores. Em 1899, quando as movimentações pelo conflito já haviam se iniciado
entre ambas as partes, o Partido Liberal se encontrava convulsionado. A ala mais antiga do
partido desautorizava qualquer movimento bélico, enquanto a mais jovem não queria voltar
atrás.
Os Liberais Pacifistas se esforçaram até o fim para evitar a insurreição. Quando esta estoura,
em outubro de 1899, a direção do Partido Liberal envia um telegrama a todos os líderes
regionais, desautorizando a guerra. Tal telegrama ficou mais tarde conhecido como o
Telegrama Mortal por ter causado desavenças que vieram a dar em mortes. Não adiantou. No
dia seguinte, a Guerra dos Mil Dias tem início (Cunha, 2014, pgs.65-66-67).

Anteriormente, apontamos para fato de que apenas Aureliano Buendía não havia sido
convencido por Alirio Noguera para participar de um levante armado dos liberais contra os
conservadores, porém, logo depois Aureliano se juntará a outros amigos, dentre eles Gerineldo
Márquez, rumo a Guerra dos Mil Dias. São dois os eventos que influenciam essa mudança em
Aureliano Buendía. O primeiro evento relaciona-se justamente com as fraudes do processo eleitoral,
nesse momento ele percebe todo o lamaçal no qual o partido Conservador estava inserido. O segundo,
que também apresenta uma forte repercussão social, vincula-se ao fato de que alguns militares que
foram deslocados para acompanhar o processo eleitoral em Macondo antes da eleições recolheram
alguns utensílios domésticos e de trabalho que poderiam ser utilizados para uma sublevação dos
liberais. Mas ao término das eleições esses utensílios acabam não sendo devolvidos pelos militares o
que gera uma revolta por parte do moradores de Macondo. A isto acresce-se o assassinato de uma
mulher por parte dos militares conservadores, em um ato brutal de violência gratuita. Sobre o evento
das armas Gabo assim escreve,

O que causou na verdade indignação no povoado não foi o resultado da eleição, mas o fato de
que os soldados não tivessem devolvido as armas. Um grupo de mulheres falou com Aureliano
para que conseguisse com seu sogro a restituição das facas de cozinha. Dom Apolinar Moscote,
explicou a ele, na mais estrita reserva, que os soldados tinham levado as armas apreendidas
como prova de que os liberais estavam se preparando para a guerra. Aureliano alarmou-se com
o cinismo da declaração. Não fez nenhum comentário, mas certa noite em que Gerineldo
Márquez e Magnífico Visbal conversaram com outros amigos sobre o incidente das facas,

158
perguntaram a ele se era liberal ou conservador […] (Márquez, 2012, pg.138).

Logo após esses episódios Aureliano Buendía sai para a guerra e torna-se coronel Aureliano
Buendía, título militar conquistado no campo de batalho e não através de uma trajetória regular no
exército. Nesse primeiro momento da figuração da guerra Gabo narra o conflito entre liberais e
conservadores pintando os conservadores, pelo menos nesse primeiro momento, de forma
exclusivamente negativa, aponta as fraudes, a violência e as arbitrariedades do partido Conservador
porém ao longo da representação da Guerra dos Mil Dias as diferenças entre os dois partidos vão
paulatinamente se esvaindo, deixando às claras que não havia diferenças tão significativas entre os dois
partidos, especialmente quando nos referimos à cúpula dos mesmos. Até mesmo o heroico coronel
Aureliano Buendía é traído por membros de seu partido no momento em que já se negociava os
acordos de paz.

[…] Os dirigentes liberais, que naquele momento estavam negociando uma participação no
parlamento, diziam que ele não passava de um aventureiro sem partido. O governo nacional o
incluiu na categoria de bandoleiro e pôs um prêmio de cinco mil pesos pela sua cabeça. Após
dezesseis derrotas, o coronel Aureliano Buendía saiu de La Guajira com dois mil indígenas
bem armados, e a guarnição supreendida durante o sono abandonou Riohaca (Márquez, 2012,
pgs.171-172).

Dessa forma, a Guerra do Mil Dias pode ser dividida em duas fases distintas, a primeira na
qual, segundo Cunha (2014) houve um confronto tradicional entre ambos os exércitos, e uma segunda
fase na qual teria predominado um conflito marcado por guerrilhas e pela acentuada violência.
Podemos ao lado desse distinção feita pela autora fazer um acréscimo que se refere à postura oficial do
partido Liberal com relação ao conflito. Em um primeiro momento houve uma identificação entre os
objetivos do partido liberal e os objetivos perseguidos pelo coronel Aureliano Buendía, e no segundo
momento como consequência da traição do partido Liberal dos seus ideias há um confronto entre
aquilo que o coronel Aureliano Buendía defende e os rumos que o partido toma em direção a uma saída
pacífica do conflito. O personagem Aureliano Buendía comenta sobre esse descompasso entre os
caminhos do partido Liberal e seus ideais.

[…] “Estamos perdendo tempo”, queixava-se aos oficiais. “E estaremos perdendo tempo
enquanto os sacanas do partido estiverem mendigando um assento no congresso.” Em noites de
vigília, estendido de costas na rede dependurada no mesmo quarto em que esteve condenado à
morte, evocava a imagem dos advogados vestidos de negro que abandonavam o palácio
presidencial no gelo da madrugada com as golas dos sobretudos levantados até as orelhas,
esfregando as mãos, cochichando, refugiando-se nos botequins lúgubres do amanhecer, para
especular sobre o que o presidente quis dizer quando disse que sim, ou o que quis dizer quando
disse que não, e não para supor inclusive o que o presidente estava pensando quando disse uma
coisa inteiramente diferente enquanto ele espantava mosquitos a trinta e cinco graus de
temperatura, sentido se aproximar a alvorada terrível em que teria que dar aos seus homens a
ordem de se atirarem ao mar (Márquez, 2012, pg.174).

As lutas do coronel Aureliano Buendía à revelia da direção da cúpula do partido Liberal ainda
159
perduram por um longo período e no seu decorrer Aureliano Buendía vai percebendo o vazio de sua
luta e sua transformação naquilo que mais repugnava, um militar sangrento que não estava mais
lutando por nenhum ideal mas apenas pelo poder. Em um diálogo do coronel Aureliano Buendía com o
general conservador Moncada, a degradação de Aureliano é evidenciada,

O general Moncada levantou-se para limpar os grossos óculos de armação de tartaruga nas
fraldas da camisa. “Provavelmente”, disse. “Mas o que me preocupa não é que você me fuzile,
porque afinal de contas, para gente como a gente isto é morte natural.” Pôs os óculos na cama e
tirou o relógio de corrente. “O que me preocupa - continuou – é que de tanto odiar os militares,
de tanto pensar neles, você acabou sendo igual a eles. E não existe um só ideal na vida que
mereça tanta abjeção.” Tirou a aliança e a medalha da Virgem dos Remédios e as colocou ao
lado dos óculos e do relógio (Márquez, 2012, pg.199).

No romance de Gabo, a Guerra dos Mil Anos tem uma duração de vinte e três anos e depois
de vivenciar sucessivas traições, de perceber a proximidade entre os partidos Liberal e Conservador, de
conseguir compreender que a guerra que ele travava não tinha mais nenhuma relação com ideais mais
elevados, de que o conflito não trouxe e não traria nenhuma melhora na vida cotidiana dos habitantes
de Macondo e de toda a Colômbia e depois de transformar-se naquilo que mais odiava, um militar frio
que estava lutando apenas pelo poder, finalmente o coronel Aureliano Buendía resolve aceitar assinar a
paz entre os liberais e os conservadores.
Tanto na realidade quanto na obra romanesca o tratado que marca o fim da Guerra dos Mil
Dias é assinado no povoado de Neerlândia, com um dado mais interessante, o tratado de Neerlândia foi
assinado sob os pés de uma enorme castanheira, local que o patriarca de Macondo foi amarrado quando
perdeu o juízo e o local no qual o coronel Aureliano Buendía se refugiará nos momentos finais de sua
vida. Esse ato é assim narrado por Gabo,

O ato foi celebrado a vinte léguas de Macondo, à sombra de uma paineira gigantesca ao redor
da qual haveria de ser fundado mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e
dos partidos, e a comissão rebelde que entregou as armas, foram atendidos por um alvoroçado
grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam um revoar de pombas assustadas pela
chuva. O coronel Aureliano Buendía chegou numa mula enlameada. Estava sem se barbear,
mas atormentado pela dor dos furúnculos do que pelo imenso fracasso de seus sonhos, pois
havia chegado ao fim de toda esperança, muito além da glória e da nostalgia da glória. De
acordo com o que ele mesmo determinou, não houve música, nem rojões, nem companhia de
júbilo, nem qualquer manifestação que pudesse alterar o caráter lutuoso do armistício. Um
fotógrafo ambulante que tomou o único retrato seu que poderia ter sido conservado foi
obrigado a destruir as placas sem revelá-las (Márquez, 2012, pg.215).

Logo após a assinatura da paz entre os partidos Liberal e Conservador o coronel Aureliano
Buendía tenta se suicidar com um tiro no peito, porém essa tentativa se mostra fracassada e ele acaba
vivendo o resto da vida uma existência pacata e solitária em Macondo, construindo e vendendo
peixinhos de ouros e muito amargurado com o fracasso que anos de guerra provocaram em vida.
Depois desse longo e traumático evento histórico que muda profundamente a fisionomia da cidade,

160
outro evento causará uma mudança ainda mais profunda e traumática em Macondo, chegará à cidade a
companhia bananeira que tantas desgraças provocará em todos através do massacre da bananeira.

3.4. Imperialismo e barbárie: o massacre da companhia bananeira.

Ao longo de nossa análise sobre Cem Anos de Solidão apontamos que há três momentos
significativos no qual Gabo narra a representação dos processos de modernização pela qual Macondo
passou. O primeiro, refere-se ao período em que habitantes de outras regiões do seu entorno vão
trabalhar e morar lá em razão das qualidades naturais do local, momento que antecede a peste da
insônia; o segundo, inicia-se com a chegada do alcaide Apolinar Moscote à cidade enquanto
representante do Estado, será neste período que eclodirá a guerra civil entre liberais e conservadores;
por fim, o período no qual a companhia bananeira se instaura em Macondo, precedendo o grande
massacre dos trabalhadores dessa companhia.
A história desse companhia bananeira na América Latina remota ainda século XIX e era
propriedade de Minor Cooper Keith do Brooklyn Nova York. Segundo Silva (2016) Tal companhia
bananeira tinha filiais espalhadas pela Colômbia, Equador e Guatemala e também foi objeto da obra de
outro escritor latino-americano consagrado, Miguel Ángel Austúrias, a obra em questão é a Trilogía
Bananera, composta pelas obras Viento Fuerte (1950), El Papa Verde (1954) e Los ojos de los
enterrados (1960).
Um dado interessante que percebemos nesse romance de Gabo é que a companhia bananeira
que se instaura em Macondo não é nomeada, mesmo sabendo que trata-se de uma representação da
United Fruit Company, talvez nosso autor buscou acentuar que a atuação dessa empresa em particular
significava um movimento histórico mais geral.
Uma informação interessante sobre a exploração econômica das bananas reside no fato de que
essa fruta ao longo dos séculos XIX e XX passa de uma iguaria exótica e cara para uma fruta bastante
consumida nos EUA, segundo Silva (2016). Lembramos o espanto que acomete o personagem Mr.
Herbert quando ele consome pela primeira vez essa fruta. Albano (2016) escreve sobre o processo de
massificação do consumo das bananas nos EUA,

Nesse período, a banana já era consumida largamente nos Estados Unidos. De produto exótico,
caro e quase inacessível na segunda metade do século XIX, passou por um rápido processo de
massificação e nos primeiros anos do século XX a banana já se encontrava nas mochilas e
lancheiras de milhões de americanos e era objeto de inovações culinárias como a “banana
split” e de novos hábitos como a banana machucada que era dada por algumas mães para seus
bebês e que foi amplamente difundida pela United Fruit através de grande campanha de
marketing com a utilização de médicos que endossavam a prática. A United Fruit inclusive
firmou uma “parceria” com a Associação Médica Americana para a divulgação das qualidades
da banana (Albano, 2016, pg. 26).

161
Nessa parte da tese analisaremos com acuidade esse último momento de modernização
experimentada por Macondo. O momento de consolidação desse período de modernização é precedido
pela construção de uma estrada de ferro que permite uma permanente superação das condições sociais
e materiais de Macondo, o que marca boa parte da narrativa de Cem Anos de Solidão. Dessa forma, o
intercâmbio entre o restante do mundo e Macondo deixa de ser esporádico para tornar-se permanente e,
como consequência dessa mudança drástica, abriu-se a possibilidade da chegada da empresa que iria
causar tantas desgraças para os habitantes de Macondo.
Já em seu primeiro romance A Revoada (O Enterro do Diabo) há uma explícita referência a
essa estrada de ferro e ao período em que a companhia bananeira se instaurou na cidade,

Pouco depois começou a funcionar a estrada de ferro. Macondo era um povoado próspero,
cheio de casas novas, com um cinema e numerosos lugares de diversões. Então houve trabalho
para todo mundo, menos pare ele. Continuou enclausurado, esquivo, até aquela manhã em que
intempestivamente apareceu na sala de jantar, de manhã, e falou com espontaneidade e até
mesmo com entusiasmo das magníficas perspectivas do povoado. (Márquez, 1999, pg.74).

Mais adiante Gabo situa historicamente o período na qual a companhia bananeira teria se
instalado em Macondo, informação essa que não existe em Cem Anos de Solidão,

Os médicos da companhia não se conformaram em privá-lo de fato por meio de vida, e em


1907, quando já não existia em Macondo um só paciente que se lembrasse dele, quando ele
próprio havia desistido de esperar, um dos médicos da companhia sugeriu ao alcaide que
exigisse de todos os profissionais do povoado o registro de seus diplomas. Ele não se sentiu
atingido quando o edital apareceu, uma segunda-feira, nas quatro esquinas da praça. Fui eu
quem lhe falou da conveniência de cumprir com esse requisito. (Márquez, 1999, pg.75).

Já em Cem Anos de Solidão a construção da estrada de ferro partiu de um dos filhos bastardos
do coronel Aureliano Buendía, no princípio ele esperava expandir a sua produção de gelo com o
mundo, assim como estabelecer meios de pôr Macondo em contato com o mundo de forma
permanente, então Gabo assim narra esse momento,

[…] Em pouco tempo incrementou de tal maneira a produção de gelo que transbordou o
mercado local, e Aureliano Triste precisou pensar na possibilidade de estender seu negócio a
outros povoados do pantanal. Foi quando concebeu o passo decisivo não apenas para a
modernização de sua indústria, mas para vincular a população com o restante do mundo.
– Precisamos de uma estrada de ferro – disse ele.
Foi a primeira vez que ouviu falar disso em Macondo. Diante do desenho que Aureliano Triste
traçou na mesa, e que era um descendente direto dos esquemas com que José Arcádio Buendía
ilustrou o projeto de guerra solar, Úrsula confirmou sua impressão de que o tempo estava dando
voltas redondas.
[…] Naquele momento a população estremeceu com um uivo de ressonâncias pavorosas e uma
descomunal respiração ofegante. Nas semanas precedentes tinham vistos bandos de homens
que estendiam dormentes e trilhos, mas ninguém prestou atenção porque se pensou que era um
novo artifício dos ciganos que voltavam com sua centenária e desprestigiada ladainha de apitos
e chocalhos apregoando as excelências de sabe-se lá que xarope dos gênios esfarrapados de
Jerusalém. Mas quando todos se restabeleceram do desconcerto dos apitos uivantes, os
habitantes saíram às ruas e viram Aureliano Triste na locomotiva, acenando com as mãos, e

162
viram, enfeitiçados, o trem adornado de flores que chegava com oito meses de atraso. O
inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidências, e tantas alegrais e desventuras, tantas
mudanças, calamidades e nostalgias haveria de levar a Macondo. (Márquez, 2012, pgs.259-
260).

Em um primeiro momento, a construção da estrada de ferro possibilita o acesso para os


habitantes de Macondo de novidades tecnológicas, como, por exemplo as lâmpadas elétricas, os
gramofones cilíndricos levados pelas matronas francesas e, especialmente o cinema. Esse último
invento levado para Macondo provoca uma reação extremamente cômica como podemos ver a seguir,

Deslumbradas com tantas e tão maravilhosas invenções, as pessoas de Macondo não sabiam
por onde começar a se assombrar. Viravam as noites contemplando as lâmpadas elétricas
alimentadas pela geradora que Aureliano Triste levava na segunda viagem do trem, e a cujo
tum-tum obsessivo custou tempo e trabalho se acostumarem. Indignaram-se com as imagens
vivas que o próspero comerciante dom Bruno Crespi projetava no teatro com as bilheterias de
boca de leão, porque um personagem morto e sepultado num filme, e por desgraça foram
vertidas lágrimas de aflição, reapareceu vivo e transformado em árabe no filme seguinte.
(Márquez, 2012, pg.261).

Parece-nos evidente que a figuração literária da chegada do cinema a Macondo assemelha- se


ao impacto que o primeiro filme da história provocou nos espectadores. Em 1895 os irmãos Lumière
exibiram um filme com aproximadamente 60 segundos de duração intitulado l´Arrivée d’un train em
gare à La Ciotat (Chegada de um trem à estação da Ciotat), ao-se passar o filme na sala de cinema
alguns espectadores refugiaram no fundo da sala de cinema simplesmente com medo de que o trem
saísse da tela e os atropelasse. A autenticidade das obras fílmicas em seus primórdios provocava tais
reações que hoje nos parecem absurdas.
Portanto, Gabo representa o progresso, tal como analisamos em um momento anterior dessa
tese, com todas as suas contradições; os aspectos negativos e positivos do desenvolvimento são
representados, porém no decorrer da narrativa, como objetivamos mostrar, os aspectos negativos do
progresso vão se tornando cada mais predominantes. Com a construção da estrada de ferro e com a
chegada da companhia bananeira em Macondo o caráter destrutivo da modernidade capitalista é
recriado por Gabo de uma forma bastante dramática.
Dessa maneira, como já afirmamos esse período marca o início da destruição de Macondo e
da estirpe dos Buendía, como se esse último surto de desenvolvimento do capitalismo de Macondo
fosse literalmente a grande desgraça da sua trajetória de cem anos de história. O progresso que
acompanha a instauração da companhia bananeira na cidade não é acompanhado por um
desenvolvimento da cidade em sua totalidade, pois o avanço econômico e social fica circunscrito aos
altos funcionários de tal empresa, especialmente aos estadunidenses. Nesse último período, Gabo
acentua bastante o caráter negativo do progresso capitalista. Torre (2017) afirma,

Na concepção de Vargas Llosa, a decadência dos Buendía se inicia com a instalação da


163
companhia bananeira, pois a família perde o poder aristocratizante que detinha naquela
sociedade, sendo que os “gringos” passam a controlar as nomeações políticas locais, a
economia e a polícia da região. Os Buendía perdem o poder, arruínam-se economicamente e
sua estirpe se desagrega no mundo, sendo que a quinta geração da família já não é educada em
Macondo, mas fora da cidade. O cataclismo, com o dilúvio e a partida da companhia bananeira,
leva a região à decadência e ao isolamento. Segundo Vargas Llosa, a tormenta final, que acaba
com os últimos sobreviventes da cidade, encerra o ciclo vital de Macondo (Torre, 2017, pg.63).

Historicamente a empresa dos EUA que se instaurou em Aracataca chamava-se United Fruit
Company e o massacre, mencionado na obra ficcional, ocorreu de fato em 1928. As relações de
trabalho que se estabeleceram entre a companhia bananeira e os trabalhadores em Aracataca eram
marcadas pela precariedade, falta de direitos e pela conivência do Estado em legitimar todas essas
formas de exploração do capital sobre o trabalho. Nesse sentido o romance de Gabo torna-se um
contraponto à narrativa oficial sobre esse fato histórico. Assim, Cem Anos de Solidão descortina e
desfetichiza a realidade colombiana do século passado, pois durante muito tempo a versão oficial desse
acontecimento histórico foi aceito como uma verdade inconteste. Nesse sentido, acima exposto esse
romance de Gabo acaba descortinando, fazendo com que através da mediação da obra literária
tenhamos uma abordagem crítica perante a historiografia dominante oficial daquele período histórico.
Dessa maneira, o escritor ao se lançar em busca do conhecimento das determinações mais essências da
realidade objetiva acaba por realizar um movimento de desfetichizar a própria realidade.
Então, dessa relação entre o sujeito criador da obra de arte e o mundo objetivo a síntese, que é
a obra de arte, acaba por nos proporcionar, também mas não exclusivamente, um determinado
conhecimento dessa mesma realidade. Então, ao figurar esse fato histórico tão traumático e marcante
da história da Colômbia nos possibilita ter um acesso privilegiado a esse evento histórico que por
muito tempo havia sido interpretado de forma inverídica por essa historiografia. Ao figurar
esteticamente esse brutal episódio da história colombiana Gabo acaba realizando uma denúncia do
imperialismo dos EUA, período histórico no qual a dominação capitalista adquire novos contornos,
especialmente no exercício de um tipo de dominação na qual não existe mais a necessidade de uma
dominação política direta68.
A obra de Gabo é significativa nesse sentido pois consegue reinterpretar um episódio histórico
ocorrido na Colômbia escamoteado pela própria ciência histórica colombiana. Para Torre (2017),
somente a partir da década de 1950 uma nova leva de historiadores colombianos debruçam sobre esse
fato histórico traumático da Colômbia, a autora escreve,

68 Sobre a lógica do imperialismo ver O Imperialismo: fase superior do capitalismo, de Lênin. Texto no qual Lênin analisa
exaustivamente essa nova fase do capitalismo, na qual como consequência de uma enorme concentração de capitais em um
número reduzido de empresas, há um movimento no qual elas passam a realizar massivos investimentos em nações
periféricas. Esse movimento tem como consequência uma nova modalidade de dominação em que não há mais uma
necessidade de se dominar um país de forma direta, como ocorreu no período colonial, dessa forma, a dependência
econômica exerce um papel central nessa relação centro-periferia.
164
Em referência ao massacre dos grevistas da companhia bananeira, em 1928, Rama explica
que o episódio foi esquecido pela História oficial da Colômbia, embora no momento em
que ocorreu tenha tido uma imensa importância. Segundo o crítico uruguaio, nesse mesmo
ano, Jorge Eliecer Gaitán, deputado da oposição, inicia sua requisição ao parlamento
colombiano contra as autoridades coniventes com o massacre na zona bananeira. Mas é na
década de 1950 que o grupo de jovens intelectuais de Barranquilla, cidade da costa atlântica
da Colômbia, recupera o episódio vendo nele o prenúncio da violência vigente no país.
Dentre os jovens escritores, Alvaro Cepeda Samudio escreve, em 1962, La casa grande,
obra baseada no episódio do massacre. De acordo com Rama, ao situar o acontecimento do
massacre - já esquecido por muitos, forçosamente - no passado como um fato vivido pela
população e que se relaciona ao processo de violência vivenciado na Colômbia
contemporânea, os escritores reinscrevem o episódio na História e na memória do país e o
fazem ocupar o seu lugar no processo histórico da violência da Colômbia (Torre, 2017, pg.
72).

Sobre a figuração desse massacre das bananeiras Gabo não utiliza de estratégias narrativas
mágicas, porém no decorrer da narração do episódio, destaca as mortes que ocorreram durante a
sublevação dos operários e a brutalidade das forças repressivas estatais. E a manipulação posterior do
fato por parte das autoridades políticas, nos põe diante de uma nova versão ao lermos esse trecho do
romance, sentimo-nos diante de um pesadelo, de uma alucinação compartilhada com José Arcádio
Segundo, como se tal episódio jamais tivesse ocorrido.

No final de seu grito aconteceu uma coisa que não produziu nele nenhum espanto, mas uma
espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo, e catorze ninhos de metralhadoras
responderam no ato. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras tivessem sido
carregadas com balas de festim, porque ouvia-se a sua tosse arfante, e viam-se as suas
cusparadas incandescentes, mas não se notava a mais leve reação, nem uma voz, nem mesmo
um suspiro, na multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade
instantânea. De repente, num lado da estação, um grito de morte rasgou o encantamento:
“Aaaaaai, minha mãe!” Uma força sísmica, um alento vulcânico, um rugido de cataclismo
explodiram no meio da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcádio
Segundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a mãe, com o outro, era absorvida
pela multidão centrifugada pelo pânico (Márquez, 2012, pg.340).

Logo mais adiante Gabo continua sua narrativa sobre o referido massacre,

Muitos anos depois, o menino ainda haveria de contar, embora os vizinhos continuassem
achando que não passava de um velho gagá, que José Arcádio Segundo levantou-se por cima da
sua cabeça e deixou-se arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, até uma
rua vizinha. A posição privilegiada do menino permitiu que ele visse que naquele momento a
massa desvairada começava a chagar na esquina e a fileira de metralhadoras abriu fogo. Várias
vozes gritaram ao mesmo tempo:
– No chão! Joguem no chão! (Márquez, 2012, pgs. 340-341).

A repressão empreendida pelo exército contra parte da população de Macondo massacrando


mais de de três mil moradores é o ponto máximo das arbitrariedades e violências perpetradas pela
companhia bananeira em Macondo. Com o estabelecimento dessa empresa estadunidense na cidade
instaura-se uma espécie de segregação social, de separação sócio-econômica entre os nativos e os

165
gringos, análogo ao sistema de segregação sócio-econômica que imperou na África do Sul, e no sul do
EUA ao longo do século XX. Em Macondo a segregação também era física. No decorrer do romance
foi possível perceber o processo de degradação social e moral, bem como a dissolução de laços de
solidariedade que caracterizava Macondo nos seus primórdios, apesar de seu baixo desenvolvimento
tecnológico e econômico. A chegada da companhia bananeira na cidade, inverterá a lógica das relações
humanas na cidade, o desenvolvimento tecnológico e econômico trazido por essa empresa é
acompanhado por essa acentuada degradação. A nova configuração de Macondo é assim representada
por Gabo,

Entre as amigas de Meme havia três jovens norte-americanas que romperam o cerco de
galinheiro eletrificado e fizeram amizade com moças de Macondo. Uma delas era Patrícia
Brown. Segundo, o senhor Borwn abriu as portas de sua casa para Meme e convidou-a para os
bailes dos sábados, que eram os únicos em que os gringos se misturavam com os nativos
(Márquez, 2012, pg. 310).

Porém, diferentemente das experiências históricas racistas pelas quais passaram os EUA e a
África do Sul, na narrativa de Gabo não é figurada de forma explícita a questão racial como ocorreu
naqueles países. Contudo, a dimensão racial encontra-se presente de forma implícita, difusa,
representada por exemplo no relacionamento amoroso entre Maurício Babilônia e Meme, filha de
Fernanda Del Caprio e Aureliano Segundo. A tensão racial, o racismo, é mais pronunciado, explícito
em Fernanda Del Caprio do que nos gringos estadunidenses.

No dia seguinte, às seis da tarde, Fernanda reconheceu a voz do homem que foi visitá-la. Era
jovem, amulatado, com uns olhos escuros e melancólicos que não a teriam surpreendido tanto
se tivesse conhecido os ciganos, e um ar sonhador que teria bastado para mulher qualquer
mulher de coração menos rígido entender os motivos de sua filha. Vestia um linho muito usado,
com sapatos defendidos desesperadamente por camadas sobrepostas de tinta branca., e levava
na mão um chapéu canotier comprado no sábado anterior. Nunca na vida havia estado ou
tornaria a estar mais assustado do que naquele momento, mas tinha uma dignidade e um
domínio que o punham a salvo da humilhação, e uma galhardia legítima que só fracassava nas
mãos maltratadas e nas unhas lascadas pelo trabalho rude. Para Fernanda, porém, bastou vê-lo
uma vez para intuir sua condição de peão de ralé. Percebeu que levava no corpo a única muda
dos domingos, e que debaixo da camisa tinha a pele carcomida pela sarna da companhia
bananeira. Não deixou nem que ele falasse. Não permitiu sequer que passasse da porta que um
momento depois precisou fechar porque a casa estava cheia de borboletas amarelas.
- Caia fora daqui – disse a ele. - Não tem o que procurar entre gente decente.
Chamava-se Maurício Babilônia. Tinha nascido e crescido em Macondo, e era aprendiz de
mecânico nas oficinas da companhia bananeira (Márquez, 2012, pg.320).

Essa atitude bem preconceituosa de Fernanda Del Caprio é explicada por ela ser a personagem
que representa por excelência os colonizadores espanhóis. Toda a altivez, nobreza, que caracterizavam
os colonizadores europeus se encontram na figuração dessa personagem, assim como, o racismo.
Talvez, por isso, no trecho do romance Gabo acentue a cor de Maurício Babilônia, amulatada, para que
ficasse bem ressaltada a distância que separava Maurício Babilônia, um mulato e trabalhador, de
Fernanda Del Caprio, branca e descendente de uma família nobre da Espanha.

166
Como nessa parte estamos analisando o episódio do massacre da companhia bananeira
rapidamente apenas iremos citar o trecho no qual nosso autor nos apresenta a essa personagem
marcante do romance. Gabo narra dessa maneira,

[…] Sua mãe, suando a febre das cinco, falava do esplendor do passado. Ainda muito menina,
em certa noite de Lua Fernanda viu uma formosa mulher vestida de branco que atravessou o
jardim rumo ao oratório. O que mais a inquietou naquela visão fugaz foi que a sentiu
exatamente a ela, como se tivesse visto a si mesma com vinte anos de antecipação. “É a sua
bisavó, a rainha”, disse sua mãe nas tréguas da tosse. “Morreu por causa de um golpe de ar que
sofreu ao cortar um ramo de nardos.” Muitos anos depois, quando começou a se sentir igual à
bisavó, Fernanda pôs em dúvida aquela visão da infância, mas sua mãe recriminou sua
incredulidade.
- Somos imensamente ricos e poderosos – disse ela. - Um dia você vai ser rainha. (Márquez,
2012, pg.243).

É como consequência dessa construção estética que vincula toda a tradição escravocrata e
racista dos colonizadores espanhóis, e portugueses, que se pode compreender a atitude de Fernanda Del
Carpio em relação a Maurício Babilônia. Portanto, em Cem Anos de Solidão existe uma diferença entre
a segregação social e econômica imposta pela companhia bananeira em Macondo e o comportamento
de Fernanda Del Carpio com relação a Maurício Babilônia.
Ao longo do romance e da construção estética dessa personagem percebemos que Gabo a
caracteriza com muitos elementos de uma tradição histórico que remonta aos tempos da colonização
espanhola. Seu pai almejava que ela se tornasse uma rainha, seus hábitos aristocráticos, como seus
penicos de ouro, ou a forma como as refeições eram precedidas de todo um ritual, remete os leitores
dessa obra a revisitar esse passado que há muito já havia passado. E talvez por esse motivo já na parte
final desse romance Fernanda Del Carpio acabe por perder o juízo, tal como havia acontecido com o
patriarca da família, José Arcádio Buendía, e por razões semelhantes, pois ela se encontra tão presa ao
passado que não se adequa as transformações pelas quais Macondo e o mundo estavam vivenciando.
Essa inadequação que Fernanda Del Carpio experimenta com as transformações que o mundo
estava experimento. Dessa maneira, o comportamento racista dela tem sua explicação na educação que
ele recebeu daquele período histórico conhecimento como o período colonial, já no período
imperialista a questão racial se encontra subordinada à dominação estritamente econômica, não é por
serem negros ou mestiços que eles estão apartados do convívio com forasteiros estadunidenses, mas
sim por não pertenceram a classe social daqueles. Nesse ponto, o período imperialista com as
justificativas e a própria dominação econômica e social se transformam ao longo do tempo.
Em momentos anteriores apontamos que a instauração da companhia bananeira marca o início
da decadência da cidade de Macondo; observamos também que progresso implementado baseando-se
somente em relações utilitárias, meramente econômicas, sem aquela unidade entre a magia e o
conhecimento, aparece literariamente enquanto um momento histórico no qual se sobrepõem elementos

167
negativos em detrimento dos possíveis elementos positivos contidos no modo de produção de
capitalista. Assinalamos, também, que essa figuração estética dos dois eventos históricos, a Guerra dos
Mil Dias e o massacre das bananeiras, expressariam as lutas políticas que marcaram a história de
variados países da América Latina, entre liberais e conservadores, contextualizado em um período
histórico que marca a transição do capitalismo de livre concorrência para o período imperialista, do
capitalismo monopolista.
É interessante salientar que na narrativa de Gabo a representação desse período imperialista é
tratada de forma bastante cruel, sendo figurado esteticamente o massacre da bananeira de forma
bastante realista, ausenta-se aí os elementos mágicos presentes em outros momentos do romance.
Pode-se realizar um paralelo entre a mudança temporal nesse episódio com a sua representação do
episódio da peste da insônia no primeiro caso, o do massacre das bananeiras, a representação realista
destaca a crueldade da ação histórica e sua posterior versão ideológica, não observando-se unidade
entre os elementos mágicos e a história. Já no episódio da insônia, quando esta acomete todos os
habitantes de Macondo, não se sabe a sua origem e a figuração é plena de elementos mágicos,
remetendo-se, assim, a um novo momento no desenvolvimento da cidade. A instauração da United
Fruit Company ocorreu em 1905 na cidade de Aracataca, terra natal de Gabo. Ao mesmo tempo em
que se implantava essa empresa dos EUA, novos empreendimentos tecnológicos chegavam a
Macondo, a exemplo do trem. No romance, Gabo atribui este feito a um dos inúmeros filhos bastardos
do coronel Aureliano Buendía, Aureliano Triste. Como visionário do progresso, Triste imaginava que
este meio de transporte permitiria a superação do isolamento de Macondo, como narrado por Gabo,

– Precisamos de uma estrada de ferro – disse ele.


Foi primeira vez que se ouviu falar disso em Macondo. Diante do desenho que Aureliano
Triste traçou na mesa, e que era um descendente direto dos esquemas com que José Arcádio
Buendía ilustrou o projeto da guerra solar, Úrsula confirmou sua impressão de que o tempo
estava dando voltas redondas. Mas ao contrário de seu avô, Aureliano Triste não perdia o
sono nem o apetite, nem atormentava ninguém com crises de mau humor: concebia os
projetos destinados como se fossem possibilidades imediatas, elaborava cálculos racionais
sobre custos e prazos, e os levava a cabo sem intervalos de exasperação. Aureliano Segundo,
que se tinha alguma coisa de bisavô e não do coronel Aureliano Buendía era uma absoluta
impermeabilidade para tirar lições da experiência, soltou o dinheiro para trazer o trem com
a mesma frivolidade com que havia soltado para a absurda companhia de navegação do
irmão […] )Marquéz, pg. 259).

Nesse trecho percebemos a radicalidade da mudança histórica, pois os habitantes passam de


indiferentes a árduos apreciadores da nova tecnologia, o fetiche do progresso capitalista apodera-se dos
indivíduos. Agora, não estamos mais diante do caráter miraculoso das invencionices de José Arcádio
Buendía, e sim do cálculo racional dos custos e prazos do empreendimento encarnado por Aureliano
Triste. Em termos frankfurtianos estaríamos diante da razão instrumental, a quando a racionalização
econômica e o utilitarismo tornam-se predominantes, o sucesso econômico define os meios escolhidos

168
pelas classes dominantes.
Dessa maneira, essas profundas transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais
pasa Macondo torna a localidade mais complexa e, por conseguinte, a desigualdade social entre os seus
habitantes acentua-se, culminado com o o massacre aos trabalhadores da companhia bananeira. A
relação entre essa empresa e os trabalhadores colombianos foi sempre marcada pela mais brutal
exploração e precarização, poucos eram os direitos trabalhistas e sociais, a greve do trabalhadores
reivindicava melhores condições de trabalho. Já naquele período histórico as relações trabalhistas eram
marcadas por uma lógica bem semelhante à terceirização, ou seja, a mão de obra da empresa não tinha
um vínculo empregatício direto com a United Fruit Company sendo contratada por algumas
empreiteiras que realizam essa intermediação na contração dos trabalhadores. Assim a multinacional
eximia-se da responsabilidade dos encargos sociais. É com base nessa atmosfera de lutas sociais que
eclode a greve dos trabalhadores com duração de 28 dias. Adoue, Delamuta e Engel (2007) escrevem,

Os dirigentes sindicais, comunistas e anarco-sindicalistas, convocaram uma greve que durou


28 dias e que provocou prejuízos à empresa. O governo conservador de Miguel Abadia Méndez
declarou “estado de alteração da ordem pública” e “toque de recolher” na véspera do massacre.
Ao mesmo tempo, tendeu-se uma armadilha aos trabalhadores: disseram-lhes que o governador
e o gerente da United Fruit viriam no trem propor um acordo. Ao amanhecer do dia 6 de
dezembro, os grevistas concentraram-se na estação à espera das autoridades. Mas foram
surpreendidos pela chegada do general Carlos Cortés Vargas, chefe civil e militar da zona,
acompanhado por uns 300 soldados. O general leu para a multidão 4 decretos ordenando que se
dispersasse sob ameaça de abrir fogo. Como a multidão não se retirara, Cortés Vargas deu mais
um minuto. Segundo a historiografia, uma voz no meio da massa respondeu: Pode ficar com o
minuto que falta (Roberto Herrera Soto e Renan Veja apud SALDÍVAR, 1997: p. 60). Os
militares abriram fogo. O massacre aconteceu entre uma e meia e duas da madrugada. A
contagem oficial de cadáveres ocorreu só às seis da manhã. Supõe-se que entre duas e seis
houve procedimentos para desaparecer com a grande maioria dos corpos, reduzindo o número
oficial a 9, que coincidiria com o número de reivindicações levantadas pelo movimento, e 3
feridos. Existem documentos gráficos da bala comum em que foram enterrados esses 9. O
historiador Herrera Soto instala a controvérsia, porém, dizendo, no seu livro La zona bananera
del Magdalena, que a contagem deu o número de 13 mortos e 19 feridos. O jornal La Prensa de
Barranquilla falou em 100 mortos. O general conservador Pompíllio Gutíérrez, 5 meses depois
do massacre, deu entrevista ao jornal El Espectador afirmando que tinha provas irrefutáveis de
que os mortos eram mais de 1000 e que o governo ocultava. Carlos Arango, no seu livro
Sobreviviente de las bananeras, fala em centenas de mortos e cita testemunhos como os de
Carlos Leal e Victor Gómez Bovea, motorista de um dos carros que levavam os cadáveres às
lanchas para serem jogados no mar antes das 6 da manhã. O próprio cônsul dos EUA, num
relatório já desclassificado, afirmou que os mortos passavam de 1.000 (Adoue, Delamuta e
Engel, s/d, 2007).

Posteriormente, a empresa foi alvo de um processo empreendido pelo político liberal Jorge
Eliecer porém não houve nenhum tipo de punição. Com a crise mundial de 1929 houve uma
diminuição na exportação das bananas e, finalmente em 1932 , como consequência de um período
extremamente chuvoso em Aracataca, consequência dos desvios feitos por essa companhia dos rios
Aracataca, San Joaquín e Ají, a empresa acaba por se retirar definitivamente do município. Esse
período chuvoso é descrito no romance de Gabo, como um evento destruidor da cidade.. Sobre esse
fato histórico Gabo representa da seguinte forma essas transformações na natureza de Macondo,
169
[…] O setor estava cercado por uma malha metálica, como um gigantesco galinheiro
eletrificado que nos frescos meses de verão amanhecia negro de andorinhas eletrificadas.
Ninguém ainda sabia o que é que procuravam, ou se não passavam de filantropos, e já haviam
ocasionado um transtorno colossal, muito mais perturbador que dos antigos ciganos, mas
menos transitório e compreensível. Dotados de recursos que em outros tempos estavam
reservados à Providência Divina, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das
colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com suas pedras brancas e suas
correntes geladas no outro extremo do povoado, atrás do cemitério (Márquez, 2012, pg.264).

A representação contraditória do progresso, adquire aqui uma conotação bastante negativa


pois o que importava era a construção de uma nova sociabilidade na qual o único objetivo seria o
enriquecimento material, a lógica utilitarista do modo de produção capitalista adentra de forma intensa
em Macondo. De outro lado, a tecnologia trazida pela companhia bananeira produz um forte
estranhamento, pois eram tecnologias tão “puras”, sem nenhuma conotação mágica, que por mais
incrível que fosse só poderiam ser “reservadas à Divina Providência”. A arrogancia da ciência
positivista que se considerava superior ao conhecimento mágico é assim posta à prova, pois ergue- se
metaforicamente à altura do próprio Deus. Como assinalam Adorno e Horkheimer (2006), e estaríamos
diante de uma nova mitologia. Cem anos de solidão, chega assim a um resultado similar ao da crítica
filosófica, por meios sensíveis, o da experiência dos habitantes de Macondo.
Retornando à comparação entre Cem Anos de Solidão e o romance histórico clássico,
atentando para a continuidade entre essas duas formas literárias apontada por Lukács (2011),
observamos que estes dois eventos históricos exercem imapcto e influenciam o comportamento o
comportamento de personagens médios da narrativa de Gabo. Esse importante momento de Cem Anos
de Solidão é narrado desde a chegado do senhor Brown que foi o responsável por levar a empresa a
Macondo até depois do massacre propriamente dito. Brown chega com os novos migrantes que
desembarcam em Macondo junto com o trem de Aureliano Triste. Gabo narra dessa forma a chegada
de Brown a Macondo,

[…] Em meio a essas criaturas de circo, com calças culote e polainas, chapéu de cortiça, óculos
com armação de aço, olhos de topázio e pele de galo fino, numa das tantas quartas- feiras
chegou a Macondo e almoçou na casa o rechonchudo e sorridente Mr. Herbert.
Ninguém reparou nele até que comece o primeiro cacho de bananas. Aureliano Segundo o
havia encontrado por acaso, protestando num espanhol trabalhoso porque não havia um quarto
livre no Hotel do Jacob, e como fazia com frequência com muitos forasteiros, levou- o para
casa. Tinha um negócio de balões cativos que se elevavam aos céus presos ao solo por uma
corda grossa, e que havia levado por meio mundo com excelentes resultados, mas não havia
conseguido elevar ninguém em Macondo porque consideravam aquele invento um retrocesso,
depois de terem visto e experimentado as esteiras voadoras dos ciganos. Então, iria embora no
próximo trem. Quando levaram para a mesa o cacho malhado de bananas que costumavam
pendurar na sala de jantar durante o almoço, arrancou a primeiro fruta sem muito entusiasmo.
Mas continuou comendo enquanto falava, saboreando, mastigando, mais com a distração de
sábio que com deleite de bom comedor, e ao terminar o primeiro cacho suplicou que
trouxessem outro (Márquez, 2012, pgs.262-263),

170
Com o desenvolvimento das relações capitalistas em Macondo e a degradação das condições
de trabalho, vemos surgir um embrião de consciência de classe por parte dos trabalhadores da
companhia bananeira. Assim, o autor ao recriar uma situação específica, nos dá uma representação do
que teoricamente seria o desenvolvimento das duas classes sociais fundamentais do capitalismo, a
burguesia e o proletariado. A liderança do movimento grevista dos trabalhadores de Macondo é
exercido por José Arcádio Segundo. Gabo narra dessa forma a crescente tensão social em Macondo e o
papel central de José Arcádio Segundo na organização dos trabalhadores da companhia bananeira,

Fernanda regressou a Macondo num trem protegido por policiais armados. Durante a viagem
notou a tensão dos passageiros, o aparato militar dos povoados da linha e o ar rarefeito pela
certeza de que alguma coisa grave ia acontecer, mas careceu de informação até que chegaram a
Macondo e lhe contaram que José Arcádio Segundo estava incitando os trabalhadores da
companhia bananeira a fazerem greve. “É só o que nos faltava”, disse Fernanda a si própria.
“Um anarquista na família.” A greve explodiu duas semanas depois e não teve as
consequências dramáticas que se temia (Márquez, 2012, pgs.331-332).

Porém, depois dessa primeira greve as demandas dos trabalhadores que foram atendidas não
foram suficientes para melhorar as condições de trabalho na companhia bananeira. Além disso, os
líderes do movimento grevista foram forçados a viver na clandestinidade devido as perseguições das
autoridades. Posteriormente, eles retornam a Macondo realizando novas agitações e dessa vez vão
todos presos. Permanecem presos por três dias e são soltos apenas, porque a Companhia e o Estado não
teriam entrado em consenso sobre quem arcaria com as despesas de alimentação dos presos na cadeia.
Nosso autor narra as condições degradantes impostas aos trabalhadores estavam submetidos,

Desta vez, o inconformismo dos trabalhadores se baseava na insalubridade das moradias, no


engodo dos serviços médicos e na iniquidade das condições de trabalho. Afirmavam, além
disso, que não eram pagos em dinheiro, mas com vales que só serviam para comprar presunto
da Virginia nos armazéns da companhia. José Arcádio Segundo foi encarcerado porque
revelou que o sistema dos vales era um recurso da companhia para financiar seus barcos
fruteiros, pois se não fosse pela mercadoria dos armazéns teriam de vir vazios de Nova Orleans
até os portos de embarque da banana. As outras acusações eram de domínio público […]. Os
engenheiros, em vez de construir latrinas, levavam aos acampamentos, no Natal, uma retrete
portátil para cada cinquenta pessoas, e faziam demonstrações de como utilizá-las para que
durassem mais (Márquez, 2012, pg. 335).

Com o acirramento da luta de classes em Macondo a questão da facticidade e da imaginação


novamente volta à tona com muita força nessa narrativa de Gabo, porém de uma outra natureza. Se em
boa parte do romance a relação entre facticidade e imaginação tinha por base sob o signo da unidade
entre magia e causalidade, nesse momento do livro o ponto central desloca-se para o questionamento
das versões atinentes aos eventos históricos, ou seja, alça ao primeiro plano a questão da verdade
histórica. Nesse ponto aquilo que realmente aconteceu e as possíveis versões desse fato vão variar
conforme os interesses das classes sociais que estão em disputa. Nesse trecho do romance é nítida essa
disputa de cunho ideológico entre o Estado, a burguesia e os trabalhadores da companhia bananeira,
171
[…] Quando os trabalhadores redigiram um documento de petições unânimes, passou-se muito
tempo sem que pudessem notificar oficialmente a companhia bananeira. É que assim que foi
divulgado o acordo, o senhor Brown enganchou-se no trem seu suntuoso vagão de vidro e
desapareceu de Macondo junto com os representantes mais conhecidos de sua empresa.
Aconteceu, porém, que vários operários encontraram um deles no sábado seguinte no bordel, e
fizeram com que assinasse uma cópia do documento de petições quando estava nu com a
mulher que se prestou levá-lo à armadilha. Os enlutados advogados demonstraram em juízo
que aquele homem não tinha nada a ver com a companhia, e para que ninguém pusesse em
dúvida seus argumentos fizeram com que o usurpador fosse preso. Mais tarde, o senhor Brown
foi surpreendido viajando incógnito num vagão de terceira classe, e fizeram com que assinasse
outra cópia do documento de petições. Os advogados demonstraram que não era o senhor Jack
Brown, superintendente da companhia e nascido em Prattville, Alabama, e sim um inofensivo
vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado com o nome de
Dagoberto Fonseca […]. E foi lá que os ilusionistas do direito demonstraram que as
reclamações careciam de qualquer valor, simplesmente porque a companhia bananeira não
tinha, nem tivera jamais, trabalhadores a seu serviço, mas os recrutava ocasionalmente e em
caráter temporário. Portanto, desbaratou-se a patranha do presunto da Virginia, das pílulas
milagrosas e das retretes natalinas, e estabeleceu-se por decisão do tribunal, e se proclamou em
decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores (Márquez, 2012, pg.336).

Logo depois desse trecho do romance Gabo utiliza-se de uma estratégia narrativa interessante,
José Arcádio Segundo põe em seu ombro um menino para que ele ouvisse e visse melhor o que os
militares falavam e faziam antes de abrir fogo contra a multidão.
Por fim, dessa luta entre a verdade histórica, conhecida somente pela criança e por José
Arcádio Segundo e a falsidade histórica estabelecida e divulgada pelas autoridades estatais, prevaleceu
esta última com sendo a descrição fato que teria ocorrido naquele fatídico dia na história de Macondo.
Como consequência do massacre dos trabalhadores da companhia bananeira ocorre um dilúvio que
perdura durante anos, exatamente quatro anos, onze meses e dois dias, logo após esse dilúvio a cidade
de Macondo é varrida da face da terra. O período imperialista literalmente marca o início do declínio
irreversível dessa magnífica cidade.

172
Conclusão.

Em nossa análise sobre a obra mais famosa de Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão,
conseguimos perceber e apontar que boa parte da produção literária do realismo mágico latino-
americano tem raízes históricas que retomam uma discussão bem antiga da história de nosso
continente. Desde os primeiros colonizadores até os romancistas do realismo mágico da América
Latina, uma discussão específica perpassa todos os escritos. Trata-se da questão de nossa identidade e,
por conseguinte, da especificidade da América Latina em contraposição à Europa Ocidental, e
posteriormente aos EUA.
O contraste entre o ambiente natural e social da Europa e a nossa realidade proporcionou o
surgimento de um tipo de literatura em que os aspectos mágicos e realistas formam uma unidade, e não
se contrapunham como na maior parte da literatura da Europa Ocidental e dos EUA. Esse é o
fundamento sócio-histórico será a matéria-prima para a inventividade estética de Gabo. Mais do que
esse choque entre o modo de vida e as relações econômicas que diferenciavam a América latina do
continente europeu, os colonizadores defrontaram-se com uma natureza estranha em relação à dos seus
países de origem.
Aliado a esse duplo estranhamento a América Latina, acrescenta-se a formação demográfica
do novo continente, tendo por base uma síntese, mediada pela violência, de três grupos étnicos
bastantes díspares entre si, o ameríndio que já vivia em nosso continente, os colonizadores europeus,
especialmente os espanhóis e os portugueses e, por fim, as diversas etnias negras africanas que foram
brutalmente escravizadas pelos colonizadores europeus.
Ao longo de nossa tese identificamos os fundamentos históricos, sociais e econômicos que
nortearam todas essas discussões e a produção bibliográfica que têm por objeto compreender essa nova
realidade que se forja na aurora do modo de produção capitalista. Porém, tal como nos adverte Antônio
Candido (2010) seria insuficiente em nossa análise nos determos apenas nas condicionantes sociais
para obter uma devida interpretação das obras literárias, realizar uma análise estética de uma obra de
arte, no nosso caso de uma obra literária, requer mais do que apontar as determinações sociais e como
se encontram representadas em uma obra de arte. É necessário ir além e conceber a arte sob seu duplo
aspecto, de um lado os seus elementos estéticos singulares, fruto da luta da ate pela autonomia e, de
outro, os elementos sociais ou externos na medida em que são apropriados e transformados pela obra
de arte. No caso da literatura é bastante expressiva essa dialética entre os elementos externos e internos
de uma obra.
Enquanto uma obra exemplar, Cem Anos de Solidão nos abre uma dupla possibilidade
analítica, em um primeiro momento nos permite ter acesso, de forma mediada à própria história da
América Latina, problematizando desde o descobrimento até o início do século XX, por outro lado, nos
permite compreender as transformações pelas quais a forma romanesca passou desde o Dom Quixote
de Miguel de Cervantes, passando por Walter Scott e Balzac até chegarmos na obra magna de Gabo.

180173
Assim, através desse romance podemos perceber fundamentais transformações pelas quais a forma
romanesca passou através dos séculos, mais precisamente do romance histórico, como, por exemplo, a
figuração estética do tempo, a forma singular como os elementos mágicos e realistas se encontram
representados em sua unidade, a maneira como o progresso histórico é figurado por Gabo com todas as
suas contradições e violência perpetradas pelo e em nome do modo de produção de capitalista.
A forma como se dá a unidade entre realidade e magia na literatura mágica da América Latina
é a característica distintiva dessa tradição literária em relação a outras tradições da forma romanesca,
pois como apontamos anteriormente essa mescla entre realidade e magia não é uma novidade na
história do romance mas a forma como ocorre no realismo mágico latino-americanos é bem diferente
das experiências anteriores.
Em Cem Anos de Solidão em vários momentos da narrativa percebemos essa singularidade, ou
seja, a inversão na lógica entre os nexos causais e os elementos mágicos inerentes à própria realidade.
O ímã, a lupa, o gelo, a dentadura de Melquíades são todos inventos que há muito tempo fazem parte
do nosso cotidiano e não produzem impacto sobre nossa percepção. Mas para os habitantes de
Macondo, são estes artefatos que causam estupefação, à semelhança do que ocorreu com as populações
autóctones quando os colonizadores desembarcaram nas Américas. Os leitores da obra, talvez
perguntem: como pode inventos tão triviais causar tamanha espanto para os personagens do romance?
Para se entender essa inversão na lógica da própria realidade empírica devemos ter em mente
que a própria história da América Latina é recente, tendo em vista a sua inserção no desenvolvimento
global do modo de produção capitalista. A nossa realidade condensa tempos históricos distintos e são
essas variadas temporalidades que guiarão a trama do romance, desde o período das grandes
navegações até o período imperialista. Assim, compreende-se que todos esses elementos conjugados
possibilitaram a Gabo escrever essa narrativa em que não há uma contradição entre o realismo e o
discurso mágico.
Dessa maneira, estamos diante, como já havia afirmado Alejo Carpentier, de uma realidade
ontologicamente mágica, corroborada por Gabo em seu discurso de agradecimento ao receber o Prêmio
Nobel de Literatura em 1982, ao apontar a dimensão eminentemente mágica da América Latina.
Entende-se assim os assombros que o gelo causa em Aureliano Buendía ainda criança, o estado febril
que as lupas de Melquíades exercem sobre o patriarca de Macondo, José Arcádio Buendía, o espanto
que a dentadura de Melquíades provoca em alguns personagens e também a naturalidade com que
todos agem no momento em que Remédios, a Bela alça voo em direção aos céus, trecho esse belíssimo
dentro da narrativa do romance. De modo sensível Gabo visualiza o quanto a técnica e a ciência podem
aparecer como mito, enquanto o que se lhe opõe, aos olhos dos nativos pode ser visto como natural.
E essa peculiar formar de representação do tempo que perpassa todo o romance nos faz
relembrar de forma quase instantânea do cigano Melquíades. Então, há uma síntese praticada por Gabo
nesse processo de representação estética nesse personagem. Não há nele uma dicotomia entre os
conhecimentos seculares do mundo e a sua natureza intrinsecamente mágica. Tal unidade que

180174
encontramos nesse personagem é também a realidade ontológica de nosso continente. Dessa forma, no
decorrer da narrativa na medida em que essa unidade vai se perdendo até chegar ao auge da separação
entre ciência e magia com a chegada da companhia bananeira a Macondo vai concomitantemente se
aproximando a verdadeira derrocada de Macondo. Esse movimento vai de um forma de vida que alia
essas duas instâncias em direção ao conhecimento meramente utilitário subordinado ao
desenvolvimento do capitalismo.
Através de sucessivos atos honrosos o cigano Melquíades passa a contar com a amizade até da
matriarca de Macondo, Úrsula Iguarán, fazendo com que a antipatia da qual ela nutria com relação a
todos os ciganos se dissipasse. Porém, além dessa retidão moral Melquíades é um personagem de
importância central dentro da estrutura romanesca pois a partir da construção estética de Gabo é
possível que haja uma superação do tempo e do espaço graças as qualidades mágicas desse cigano.
Para ele é possível transitar entre períodos históricos tão distantes entre si, da Grécia antiga, passando
pelo oriente médio antigo, até chegar ao período no qual se passa a história de Cem Anos de Solidão,
entre os séculos XIX e XX.
Por isso, apontamos em alguns momentos desse estudo que Melquíades seria uma espécie de
autoconsciência da humanidade, pois detém variados conhecimentos técnicos que leva a Macondo,
assim como possui uma vasta experiência de vida o que possibilita transmitir essa sabedoria acumulada
para outros indivíduos. Assim como, não podemos nos esquecer que Melquíades é quem escreve os
pergaminhos nos quais estão contados de forma antecipada toda a história de Macondo durante seus
cem anos de existência.
Temos nessa complexa obra literária uma intricada articulação entre os cem anos de existência
de Macondo e os quatro séculos de história da América Latina da época de nosso “descobrimento” até
as primeiras décadas do século XX. A forma como o tempo está representado em Cem Anos de Solidão
não se caracteriza por uma linearidade, pelo contrário, as estratégias narrativas de Gabo para figurar o
tempo faz com que coexistem várias temporalidades históricas distintas, passado, presente e futuro se
imiscuem em uma mesma passagem do romance. Dessa forma peculiar em sua representação do tempo
é que se abre a possibilidade de Gabo narrar parte da história da América Latina em cem anos de
existência de Macondo.
Como sabemos Gabo era colombiano e sua Macondo foi inspirada em sua cidade natal,
Aracataca, porém a partir dessa especificidade geográfica o nosso autor constrói uma realidade literária
que transcende esse particularismo geográfico. A obra de Gabo parte de uma realidade específica, mas
incorpora personagens, tecnologias, questionamentos históricos e filosóficos que a torna universal.
Macondo é a América Latina que se forjou a partir das grandes navegações e do choque cultural entre
os ameríndios, os europeus e os negros africanos. Mas é também o lugar onde a razão científica e a
magia se encontram. Quando esta última é destruída pelo “progresso” ocorre a decadência e fim da
cidade.
Do relativo isolamento geográfico que as diversas províncias da Colômbia se encontram em

180175
todo o século XIX, Gabo a partir dessa realidade particular consegue erguer um universo literário na
qual a solidão adquire uma centralidade inconteste. Há, dessa forma, uma passagem desse isolamento
geográfico para um isolamento que se vincula a nossa condição tão diferente da dos nossos
colonizadores. Entendemos ao longo dessa tese que o sentido estético da solidão nesse romance não se
encontra vinculado ao entendimento que o senso comum emprega. Somos solitários pois temos nossa
própria história, nossa própria identidade, ou buscamos essa identidade. E ela é fundamentalmente
distinta das identidades europeias e estadunidense, tal como Gabo nos apontou de forma magistral em
seu discurso de agradecimento ao Nobel de Literatura.
Identidade essa que se forjou ao longo de intensas lutas, de uma violência extrema que marcou
e marca nossa realidade até hoje, mas que em toda a obra literária que ora analisamos estão lado a lado
com passagens tão belas e sublimes, além de muitas vezes de uma enorme comicidade, que nos aponta
para o fato de que apesar de tamanha desgraça e violência que predominou no período colonial e no
período de julgo imperialista, a magia, a ludicidade, e esperança na construção de um outro mundo,
disputaram com a realidade imposta pela colonização. Essa utopia tão real que orienta de forma febril
as “loucuras” de José Arcádio Buendía, de Aureliano Triste e de outros personagens, mesmo que
tivessem fracassado nos seus intentos.
Então, o aparente destino trágico pela qual os habitantes estão enredados e que a própria
cidade de Macondo experimenta não encontra explicação em uma espécie de inexorabilidade do
processo histórico. O destino que recai com um peso descomunal sobre todos os membros da família
Buendía não significa que essa solidão pela qual todos passam tem uma determinação irracional,
de cunho religiosa. Pelo contrário é consequência de nossas lutas históricas em busca de construirmos
nosso próprio itinerário, nossa própria história, repito fundamentalmente diferente dos caminhos
trilhados pelos nossos colonizadores e exploradores. Portanto, a solidão se identifica com força, com
luta, com utopia, com a busca por uma identidade própria e não uma identidade que se encontra
subordinada aos valores de outros povos.
O fim melancólico de Cem Anos de Solidão quando Macondo, a estirpe dos Buendía e todos
os seus habitantes são varridos da face da terra, não soa como fim, mas como advertência: todos somos
Macondo, não haverá uma segunda oportunidade sobre a terra, dentro dessa lógica de desenvolvimento
do capitalismo. Até esse momento não tivemos uma real chance nesse mundo, fomos explorados,
violentados e essa sina continua até hoje, porém como a história é aberta e nada nos impede de
construirmos outra realidade, pois em outro momento o mesmo Gabo nos abre essa possibilidade de
sonhar. Quem sabe as estirpes que por um momento estejam condenadas a cem anos de solidão possam
ter para sempre uma segunda oportunidade sobre a terra.

180176
Referências Bibliográficas.

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ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos
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