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A música e o desenvolvimento da percepção


infantil: um estudo de suas relações e
implicações

Priscila Queiroz MESSIAS1


Andrade de Freitas MARTINS2
Resumo: Este artigo trata de discutir as atividades realizadas junto à comunidade
participante de um projeto de extensão universitária em parceria com uma escola
de música e uma escola de Educação Básica, cujo objetivo é contribuir, por meio
de práticas artísticas e musicais, com o processo de formação e socialização de
crianças em idade entre nove e doze anos, com dificuldades de convivência e
aprendizagem. Com base nas atividades de intervenção, sobressaltou-nos a
necessidade de se realizar pesquisa, de natureza qualitativa, de modo a pensar a
relação entre música e os processos perceptuais dos/as participantes, tomando-se
como principal referencial teórico o pensador francês Merleau-Ponty (2007, 1994),
num diálogo interdisciplinar entre Arte, Filosofia e Educação. Consideramos que
as práticas educativas desenvolvidas no referido projeto se desvelaram como
um campo fértil para estudos acerca das relações, das implicações e do papel da
música no desenvolvimento da percepção infantil.

Palavras-chave: Desenvolvimento Infantil. Percepção. Música.

1
Priscila Queiroz Messias. Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG), campus Ituiutaba (MG). E-mail: <priscila.queirozm@hotmail.com>.
2
Denise Andrade de Freitas Martins. Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Docente da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), campus Ituiutaba (MG).
E-mail: <denisemartins@netsite.com.br>.

Educação, Batatais, v. 7, n. 3, p. 47-61, jan./jun. 2017


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Music and the development of child


perception: a study about its relations and
implications

Priscila Queiroz MESSIAS


Denise Andrade de Freitas MARTINS
Abstract: This article aims to discuss some activities that were held together with
a community attending a university extension project in partnership with a music
school and a basic education school, which goal is to contribute, through artistic
and musical practices, to the socialization and formation process of children
between nine and twelve years old, that face learning and interaction difficulties.
Based on intervention activities, we could see the need of developing a research,
of qualitative nature, with the intention of thinking about the relationship
between music and the perceptual process of the participants, taking as the main
theoretical background the french thinker Merleau-Ponty (2007, 1994), in an
interdisciplinary dialogue between Art, Philosophy and Education. We consider
that the educational practices developed during the project mentioned above have
showed to be a fruitful field for researches on the relationship, the implications
and role of the music during the development of child perception.

Keywords: Child Development. Perception. Music.

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1.  INTRODUÇÃO

O presente artigo se refere ao projeto de extensão Projeto


Escrevendo o Futuro (PEF) – (Re) cortando papéis, criando pai-
néis, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – Uni-
dade Ituiutaba, em parceria com a escola de música Conservatório
Estadual de Música “Dr. José Zóccoli de Andrade” e com a es-
cola de educação básica Escola Estadual Governador Bias Fortes.
O objetivo é contribuir, por meio de práticas artísticas e musicais,
com o processo de formação e socialização de crianças em idade
entre nove e doze anos de idade com dificuldades de convivência
e aprendizagem, as quais são estudantes na Escola Estadual Go-
vernador Bias Fortes e integrantes do projeto Educação Integral.
As atividades foram realizadas tanto na escola de música como na
escola de Educação Básica, uma vez por semana, entre os meses
de abril a dezembro, no período matutino. As atividades envolve-
ram práticas artísticas e musicais, com ênfase em música, teatro
e literatura. A equipe executora foi composta por professores/as
e alunos/as da UEMG, unidade Ituiutaba, e do Conservatório Es-
tadual de Música de Ituiutaba. Durante nossas experiências como
participantes colaboradoras no PEF, sobressaltou-nos a necessida-
de de se realizar pesquisa com base nas atividades de intervenção,
de modo a pensar a relação entre música e os processos perceptuais
dos/as participantes, tomando-se como principal referencial teórico
o pensador francês Merleau-Ponty (2007, 1994), num diálogo in-
terdisciplinar entre Artes, Filosofia e Educação. Ainda, em concor-
dância com Granja (2013), nos parece de suma importância pensar
de que forma a música pode ser trabalhada, muito especificamente
em escolas, de modo a permitir um maior desenvolvimento da per-
cepção dos/as estudantes, e consequentemente, proporcionar uma
melhor aprendizagem nas diferentes áreas do conhecimento.

2.  REFERENCIAL TEÓRICO

A arte traz em si a possibilidade de fazer com que o indiví-


duo pense, crie e sinta o mundo em que vive de maneira particular,
possibilitando inúmeras formas de expressão em diferentes lingua-

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gens, como artes visuais, dança, música, teatro etc., bem como os
sentimentos/sensações/ideais suscitados, tornando-se pessoa ativa
na sociedade em que vive.
De acordo com Held (1980), o ato de se expressar permite
tanto à criança como ao adulto exprimir sua vivência atual, e não
apenas experiências passadas, de maneiras diferentes da linguagem
corrente interpessoal. De acordo com a autora, a leitura do real pas-
sa pelo imaginário, que bem pode ser expressa em forma de poe-
sia, contos, desenho, música, expressões corporais, o que implica a
descoberta dos diversos caminhos percorridos pelo imaginário na
pessoa, despertando a imaginação, a inteligência e a sensibilidade,
que, se não forem cultivadas, atrofiam-se.
Compartilhamos com Granja (2013) a ideia de que as artes,
em especial a música, já foi uma importante disciplina dentro do
currículo escolar. Hoje, contudo, mesmo que presente principal-
mente nas séries iniciais da Educação Infantil (quando presente), à
medida que as séries avançam, ela vai perdendo espaço dentro do
currículo escolar devido à maior importância que a instituição passa
a dedicar às disciplinas conceituais em detrimento das perceptivas.
A percepção, fundamento primeiro da produção artística e,
sobretudo, forma originária de apreensão da realidade (GRANJA,
2013), pode ser entendida como uma dimensão do conhecimento,
processo que confere significação às sensações e dentro do qual es-
tamos arbitrariamente inseridos. Trata-se, segundo Corrêa (1997),
de um dos princípios fundamentais da fenomenologia, a qual afir-
ma ser a intencionalidade intrínseca à consciência, ou seja, a cons-
ciência é sempre diretiva, “consciência de alguma coisa”, dirigida
para um objeto, que, por sua vez, só tem existência em relação a
uma consciência, enquanto “objeto-para-um-sujeito”, ambos se
constituindo a partir dessa correlação.
Para Dartigues (1973, p. 26): “Se a consciência é sempre
consciência de alguma coisa e se o objeto é sempre objeto para a
consciência, é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já
que, fora dela, não haveria nem consciência nem objeto”. Nesse
sentido, nosso poder de extensão nos permite nos instalar nos obje-
tos a ponto de fazê-los participar de nosso próprio corpo durante a

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experiência perceptiva, momento em que o fenômeno, isto é, aquilo


que se apresenta, se revela, nos é dado à consciência através dos
sentidos. Sombra (2006) reforça tais compreensões quando apre-
senta a ideia de que a relação proveniente da consciência com o
mundo não é uma relação de pensamento, mas vivida na própria
percepção, em razão da qual se pode admitir que a consciência vive
nas próprias coisas.
Dessa forma, a fenomenologia supera a tradição filosófi-
ca dicotômica, a qual concebia razão e experiência, idealismo e
empirismo, subjetividade e objetividade, sujeito e objeto, de for-
ma dissociada, preterindo um em relação ao outro. De acordo com
a perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty (2007), o corpo
é assumido como instrumento perceptivo, por meio do qual nos
relacionamos com o mundo por meio dos sentidos de que dispo-
mos. O sujeito da percepção passa a ser o próprio corpo, o corpo
da experiência do corpo, do corpo que sente, que se exprime in-
tencionalmente, entrelaçado e em interdependência com o meio,
um ser-no-mundo, não mais um espectador passivo dotado de uma
consciência desencarnada. Este é o corpo próprio de Merleau-Pon-
ty (2007, 1994).
Para o autor (2007, 1994), a relação com o mundo é corpo-
ral, o conhecimento emerge do saber que a priori surge no pró-
prio corpo, na carne, na experiência. Martins (2006) corrobora com
tais ideias, quando diz que o nosso corpo é o campo originário de
todas as nossas ações ou pretensas realizações, cujos movimentos
são sempre significativos e intencionais, configurando-se como um
espaço justaposto de órgãos emaranhados que nos situa no mundo,
não por uma fixação de posição, mas por uma situação na qual ele
se encontra envolvido, em interação fenomenológica, abarcando
em si o espaço e o tempo sempre em um “agora” que incorpora
o passado em um movimento fluido que inaugura tanto o agora
quanto o futuro.
Tal noção é compartilhada por Granja (2013, p. 3), quando
afirma:
[...] a percepção passa a ser pensada como um ato vincu-
lante entre um corpo e um objeto. Mais do que um mo-

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saico de sensações, a percepção de um corpo passa pela


relação dialética entre o organismo e o ambiente. O corpo
é o ponto de partida do conhecimento, e contém em si uma
intrínseca significação.
Para Granja (2013), tais posições nos levam a questionar so-
bre como é construído o conhecimento escolar e qual o lugar e a
importância dada à dimensão perceptiva nessa construção. De que
maneira a dimensão perceptiva do conhecimento é trabalhada nas
disciplinas no decorrer da Educação Básica? Em que medida as
artes, no sentido de explorar a percepção, podem ser trabalhadas de
forma a auxiliar a construir o conhecimento?
Nesse sentido, pensamos que a música, por ser uma das artes
que está mais presente no cotidiano das pessoas, apresenta uma in-
fluência peculiar sobre a sociedade em geral, assim como na forma
como as pessoas percebem a vida. A música, e a aprendizagem mu-
sical, entendida como fenômeno, dá uma maior visibilidade à di-
mensão perceptiva, afastando a ideia de que o aprendizado musical
está a cargo obrigatoriamente da teorização musical. Além disso,
para Granja (2013, p. 1), “[...] a música é uma linguagem que fala
diretamente aos sentidos e que, portanto, lida em várias dimensões
com o desenvolvimento da percepção”.
Assim, além dos aspectos teórico-conceptuais, a educação
musical deve levar em conta a percepção e suas relações com o
aprender e a corporeidade, a percepção como eixo dinamizador do
processo de aprendizagem, seja escolar ou musical. Dessa forma,
música e corpo também estão extremamente interligados, a expres-
são musical é também corporal, pois acontece em um corpo porta-
dor de certa vivência e elaboração da experiência pessoal:
[...] seja porque o ritmo está ligado ao pulso, à pulsação, à
respiração e, consequentemente, ao corpo, seja porque as
notas são frequências, e por isso também ritmos, mais ace-
lerados e percebidos como alturas, ligadas às frequências
cerebrais. Neste sentido, percepção e corpo, assim como
percepção e movimento seriam faces da mesma moeda
(GRANJA, 2013, p. 3).
Para Merleau-Ponty (1994), o corpo, visto em sua totalidade,
fonte de sentidos e da experiência perceptiva, nos oferece um saber

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sensível que antecede e possibilita o conhecimento reflexivo, de


onde surgem os significados da pessoa no mundo. Masini (2003)
compartilha das ideias de Merleau-Ponty, ao se referir que a uni-
dade de reflexão não é soma ou resultado, já que é preciso sentir
de alguma maneira para poder pensar. Por isso, a importância de
se pensar o “como” a música pode ser trabalhada, seja em escolas
e/ou outros espaços, de modo a permitir um desenvolvimento da
percepção dos/as estudantes e, consequentemente, contribuir com
os processos de aprendizagem.
Quando pensamos nas escolas, onde, em geral, se dá maior
importância às disciplinas conceituais em detrimento das percepti-
vas – as quais, de acordo com Masini (2003, p. 2), possibilitam que
o/a estudante trabalhe “[...] seu perceber e o uso dos sentidos de que
dispõe, bem como suas relações com pessoas e objetos no mundo
onde habita” –, podemos dizer que há relativa desconsideração em
relação à importância das disciplinas perceptuais no processo da
aquisição do conhecimento conceitual formal.
Assim, segundo Granja (2013, p. 3):
A escola deveria dar mais atenção ao corpo como ins-
trumento do conhecimento, estimulando atividades de
auto-conhecimento, percepção corporal, reeducação do
movimento, que possam contribuir para uma maior capa-
cidade de concentração e prontidão para a aprendizagem.
A proposta é a de uma educação musical voltada menos
para a formação de talentos musicais, e mais para a for-
mação do cidadão, redescobrindo uma forma musical de
estar no mundo. O objetivo é uma ampliação da percepção
em várias dimensões: sonora, visual, corporal, espacial,
interpessoal e intrapessoal. Isto pressupõe um conceito
ampliado de música, para além da concepção tradicional
da música ocidental.
A escola, por meio da exploração de atividades artísticas, per-
mite trocas culturais entre os próprios estudantes, tratando-se de
um espaço intercultural em que cada um contribui de acordo com
sua história pessoal, tendo como ponto de partida para a criação,
segundo Held (1980), aquilo que é e aquilo que vive, fortalecendo,
dessa forma, a identidade cultural e individual das pessoas, além
de ser uma forma de explorar a percepção e contribuir para o seu

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desenvolvimento, quando fala diretamente aos sentidos e ao corpo,


entendido subjetivamente como portador de uma experiência hu-
mana única e irreproduzível.
Para Granja (2013), a expressão musical é feita por um corpo
que percebe, possui um saber intrínseco e se movimenta em con-
formidade com uma intencionalidade e, dessa forma, uma proposta
de educação musical centrada na percepção deve levar em conside-
ração o papel desta, assim como da motricidade na construção do
conhecimento. Por isso é fundamental que exista articulação entre
os diferentes momentos de uma mesma experiência, tanto nos mo-
mentos de elaboração conceitual como nos da realização das ativi-
dades perceptivas. De tal forma que podemos dizer que a música
exerce papel fundamental na construção do conhecimento percep-
tivo, base para a exploração do mundo e para as outras formas de
conhecimento.

3.  RESULTADOS E DISCUSSÕES

Tendo em vista nossas experiências e conhecimentos – cons-


truídos coletivamente ao longo dos encontros e atividades re-
alizadas junto à comunidade participante do projeto de extensão
universitária PEF – observamos que esse projeto está alinhado às
atividades de implementação da Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003),
que trata da obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana
e afro-brasileira, complementada posteriormente pela Lei nº 11.645
(BRASIL, 2008a), que inclui a obrigatoriedade do ensino da histó-
ria e cultura indígena na escola, e, ainda, pela Lei n° 11.769 (BRA-
SIL, 2008b) que dá obrigatoriedade ao ensino de artes nas escolas.
Os encontros foram realizados semanalmente e as atividades
foram desenvolvidas com foco principalmente em dois eixos temá-
ticos: 1) a construção-reconstrução de uma performance inspirada
no conto moçambicano “A formiga Juju e o professor Moskito”,
de autoria de Cristiana Pereira e ilustração de Walter Zand; 2) as
Três lendas brasileiras (1 – Saci-Pererê; 2 – Yara mãe d’água; 3 –
O Curupira), de Marcos Vieira Lucas, escritas originalmente para

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piano solo e arranjadas para xilofones, teclados e galões por Leise


Garcia Sanches Muniz, além de texto, dança e encenação teatral.
De acordo com nossas observações, os/as estudantes se en-
volveram na realização das atividades com alegria e afinco, desen-
volvendo habilidades como: instrumentação musical, canto, dança,
leitura de textos e dramatização. Tocavam, dançavam e encenavam
tudo aquilo que lhes era solicitado e o que lhes vinha em forma
de insights nos momentos das vivências compartilhadas. Partici-
pando, sugerindo, assumindo responsabilidades, pouco a pouco se
foi construindo a prática artística e musical a que se propunha o
projeto.
Além dos movimentos físicos e habilidades motoras com-
plexas envolvidas nas performances artístico-musicais, há que se
ressaltar as experiências emocionais e, sobretudo sociais, as quais
foram vivenciadas conjuntamente, com interferência umas nas ou-
tras. De acordo com Liberman (2002), atividades artísticas, viven-
ciais, exercem papel importante na sensibilização de estudantes,
auxiliando-os a recuperar e refletir sobre os seus significados, sobre
a sua forma de ser-no-mundo por meio dos caminhos perceptuais
que possibilitam compor experiências e existências.
Para Straliotto (2001), o estímulo ao aprendizado da música
é algo necessário, já que a música para a criança funcionaria como
uma nova forma de exteriorização dos sentimentos, como um novo
idioma que servirá de veículo para as emoções. Isso nos permite
considerar que “[...] a arte tem seus modos próprios de realizar os
fins mais altos da socialização humana, como a autoconsciência,
a comunhão com o outro, a comunhão com a natureza, a busca da
transcendência no coração da imanência” (BOSI, 1992, p. 19).
Em conversas informais e depoimentos colhidos junto aos
estudantes que participaram deste projeto, o PEF, pôde-se compre-
ender que trabalhar em conjunto, tocar com o outro, ir à escola de
música, sentir satisfação e reconhecer-se capaz foram aspectos im-
portantes para as pessoas que participaram das práticas artísticas e
musicais propostas e realizadas.
Vejam-se algumas das falas dos/as estudantes:

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João (nome fictício): Eu entendi que o projeto entre o con-


servatório e o Bias não é só música, mas é também ouvir o
próximo e também a si mesmo;
Júlia (nome fictício): Eu gostei muito do ensaio da apresen-
tação eu achei que ia ser muito difícil, mas enfim foi muito
fácil tinha hora que eu tinha dificuldade, mas elas me aju-
daram. Na apresentação eu fiquei morrendo de vergonha,
mas deu tudo certo então eu adorei muito.
Tais falas nos remetem à compreensão que tem Merleau-
-Ponty (2007, 1994), de que a realidade vivida nos coloca em con-
tato com as “coisas mesmas”, via anterior a qualquer raciocínio,
podendo-se chegar a uma compreensão aproximada da vivência do
fenômeno por meio da descrição do mesmo. De tal forma que o re-
torno ao mundo vivido torna-se abstrato. A experiência se restringe
ao que foi vivido, lugar em que não cabem referências às teorias
psicológicas ou explicações causais.
Portanto, de acordo com Merleau-Ponty (2007, 1994), seria
preciso interrogar a consciência perceptiva a fim de nela encontrar
um esclarecimento definitivo. Por isso é que se diz que toda expe-
riência traz em si a inscrição do sujeito e de sua intencionalidade,
vivida por um sujeito-corpo subjetivo, em que se encontra a subje-
tividade dita radical de toda nossa experiência e, ainda, seu valor
de verdade.
Considerando-se tais compreensões, tomamos de empréstimo
a ideia de que cada criança percebe, vivencia, subjetiva, significa e
elabora suas experiências de maneiras diversas e desconhecidas até
para si mesmas, não sendo possível compreendê-las em sua totali-
dade fenomenal devido à limitação da linguagem, da imposição to-
talitária do significante que não abarca e não transmite toda a carga
afetiva, emotiva, sensações corporais e pensamentos embaraçados
entre si e vividos conjuntamente no momento que já foi um “aqui”
e um “agora”.
Dessa forma, confirmamos que, ao longo dos encontros, hou-
ve crescimento individual dos/as estudantes participantes no proje-
to, crescimento esse caracterizado pela melhor desenvoltura como
performer, aperfeiçoamento das diversas habilidades técnico-mu-
sicais, aumento da confiança, naturalidade e domínio na execução

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das músicas (melodias e ritmos), confirmando assim as ideias de


Merleau-Ponty (2007), de que o retorno às coisas, ao mundo da
experiência, é o solo de toda operação de conhecimento e deter-
minação científica. E esse fenômeno está em consonância com os
documentos legais brasileiros que regem a educação, que afirma
que a música “[...] é um excelente meio para o desenvolvimento da
expressão, do equilíbrio, da autoestima e autoconhecimento, além
de poderoso meio de integração social” (BRASIL, 1998, p. 47).
Cabe ressaltar, ainda, que, dentre os/as estudantes, dois deles
nos chamaram a atenção, pela criatividade nos momentos de per-
formance, agregando valores e saberes culturais já consolidados no
dia a dia de cada um, confirmando, assim, os propósitos do PEF, de
integrar e interagir diferentes culturas, fazendo emergir aquilo que
era espontâneo em cada participante, revelando novas formas de
convivência criativa e cooperativa na diferença, tratando-se, por-
tanto de interculturalidade.
Segundo Martins (2015, p. 98):
Na perspectiva da diversidade cultural e interação, as
pessoas que participam de práticas sociais podem fundir
ideias, habilidades e experiências, essas já realizadas ou
ainda por realizar, um verdadeiro caldeirão cultural. Prá-
ticas interculturais lidam com a diversidade de pessoas e
suas culturas, promovem diálogo entre essas pessoas numa
atitude de cooperação e solidariedade.
Convivendo com os/as estudantes no PEF, ficamos frente a
frente com as práticas artísticas e musicais– para eles tão habitu-
ais, ao contrário de nós – do funk e da capoeira, artes peculiares
de culturas distintas e integrantes de contextos sociais e históricos
específicos, parte da vida desses estudantes, assim como de muitos
jovens brasileiros, afeiçoados a tais estilos de música e de vida,
verdadeiros fenômenos.
Nesse contexto, diferentes vivências no campo das artes
podem contribuir para que o sujeito se perceba como tal,
identifique seus diferentes “modos de funcionamento”
para, em seguida, repensá-los e (re) construí-los. O corpo
constitui, assim, um indicador fundamental para o conhe-
cimento das histórias do sujeito, seus modos de funcionar,

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sua vida cotidiana, suas dores, tensões, anseios, etc. (LI-


BERMAN, 2002, p. 45, grifo do autor).
No que se refere à prática da capoeira, um dos estudantes do
PEF mostrou-se extremamente habilidoso, era João (nome fictício),
o qual manifestou forte disposição em contribuir com as atividades
propostas, além de se dedicar à execução instrumental, destacou-se
sobremaneira na leitura e dramatização de textos, e muito espe-
cialmente, na ginga da capoeira: jogando, dançando e cantando ao
mesmo tempo. No decorrer dos primeiros encontros, João inter-
rompia sua ginga quando se confundia entre os gestos e a cantoria.
Martins (2006, p. 2) observa:
Uma pessoa que está efetivamente numa situação, não vê
seus gestos e movimentos objetivamente. Seu corpo pró-
prio é o seu meio de inserção neste mundo, desde que esse
mundo lhe seja originalmente significativo. Saber-se em
um lugar é uma extensão de vários sentidos. Quando nos
colocamos diante de uma situação familiar não procura-
mos pelas partes do nosso corpo interrogando-as quantas
e quais são necessárias; simplesmente todas essas partes
se envolvem sem que tenhamos de ordená-las. [...] Mesmo
que pareça absurdo, o difícil é inaugurar o agora, é ini-
ciar uma peça musical, que, depois de iniciada, chega ao
fim, a não ser que outras aparências surjam nesta trajetó-
ria, como: falha de memória, desconcentração, incômodos
exteriores etc.
Tomando-se a citação anterior, João, incomodado entre acer-
tar e errar, já que se atrapalhava sempre no mesmo lugar de um
determinado verso, que dizia: “Eu aqui não sou querido, mas na
minha terra eu sou paraná”, foi orientado por uma das estudantes
universitárias, a qual observou que ele sempre errava na ginga,
desconcentrando-se, quando lhe faltava na memória a palavra “pa-
raná”. Feita essa observação, João passou a acertar cada vez mais,
jogando, saltando e gingando com grande desenvoltura e criativi-
dade. Ou seja, identificada a razão de tais erros, como lacuna de
gestos em função da falta de uma palavra, o resultado performático
surpreendeu a todas as pessoas presentes.
Ainda, em uma situação de diálogo espontâneo, João, de for-
ma muito natural, nos disse: “Eh professora, hoje foi muito bom,

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eu tô melhorando, acertei tudo e meu pai disse que em cada apre-


sentação eu melhoro mais”. Para Merleau-Ponty (2007), o mundo
não é aquilo que pensamos, mas aquilo que vivemos. Ao valorizar
o esforço pessoal, a subjetividade, o afloramento de emoções e sen-
timentos que possibilitam a compreensão do sujeito, valoriza-se ao
mesmo tempo a cultura cotidiana e as relações sociais, o mundo
vida de cada pessoa, as coisas com as quais vivemos no mundo,
em detrimento de um olhar que seja apenas sério e funcionalizador.
Assim, podemos dizer que muitas foram as descobertas em
meio à convivência cooperativa e criativa entre estudantes e profes-
soras, todos integrantes no PEF, espaço de educação em comunhão.
Lugar em que predomina a integração e o diálogo de diferentes cul-
turas, sem quaisquer formas de domínio ou subalternação, no qual
a liberdade de expressão é garantida, em contraponto aos ambientes
inibidores de possibilidades aos quais estamos todos acostumados,
em geral o escolar.
É preciso ressaltar, ainda, que:
Aprender é inventar um jeito de dar certo, dar certo naqui-
lo que se propõe a fazer com quem se dispõe a realizar. É
ver pela própria ótica, ver também pelas lentes do outro e
depois voltar-se à sua visão, agora ampliada naquilo que o
outro é, pensa, acredita, pode e deseja (MARTINS, 2015,
p. 99).

4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse modo, compreendemos, a partir de nossas experiências


como pessoas participantes no PEF e autoras neste trabalho, que
o fazer e o viver musical apresentou-se como “[...] um fenômeno
multidimensional, que envolve dimensões culturais, afetivas, so-
ciais e estruturais” (MARTINS, 2015, p. 99). Além disso, falar e
escrever sobre tais processos são formas vivas de respeito e reco-
nhecimento do outro com o qual vivemos e convivemos, condição
latente e esperançosa de toda construção em comunhão, com base
no respeito, no diálogo e na ajuda mútua; verdadeiros encontros
artísticos musicais, e por que não, “encontros amorosos”.

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Por ora, podemos dizer que as práticas educativas desenvol-


vidas no PEF se desvelaram um campo fértil para estudos aprofun-
dados em Psicologia (nossa área base de estudos), Arte e Educação,
o que nos leva a crer que é preciso dar continuidade aos trabalhos
de pesquisa para melhor compreender as relações, as implicações e
o papel da música no desenvolvimento da percepção infantil, tema
de estudo de nosso particular interesse, ao qual nos propomos a
aprofundar.

REFERÊNCIAS

BOSI, A. Cultura brasileira e culturas brasileiras. São Paulo: Companhia das


Letras, 1992. Disponível em: <http://libros-en-pdf.com/descargar/bosi-alfredo-
cultura-brasileira-4.html>. Acesso em: 5 jan. 2017.

BRASIL. Ministério da Educação e Desporto. Referencial Curricular Nacional


para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. v. 3. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2017.

______. Ministério da Educação. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera


a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF,
10 jan. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/
L10.639.htm>. Acesso em: 15 mar. 2017.

______. Ministério da Educação. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera


a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de
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para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
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