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nº 398
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mar/abr 2010
MILU LEITE
O fato de um dos primeiros homens a fazer isso ter sido Santos Dumont, em Paris,
em 1906, une historicamente dois países, França e Brasil, nas principais
conquistas aéreas, que aconteceram a partir de então ora lá, ora aqui. Afinal, não
muito tempo depois, pilotos franceses da Aéropostale desbravariam o espaço
aéreo brasileiro para formar, entre os anos 1920 e 1930, a Aeroposta Argentina, a
primeira linha de correio aéreo da América do Sul, pioneira também ao ligar
comercialmente os continentes europeu e sul-americano. E que estivesse entre
eles o francês Antoine de Saint-Exupéry, autor de O Pequeno Príncipe, um dos
romances mais conhecidos do mundo, torna ainda mais admiráveis e
apaixonantes as absurdas aventuras registradas por esses pilotos, rapazinhos
Antoine de Saint-Exupéry
Foto: Reprodução com pouco mais de 20 anos de idade, metidos em casacos e bonés de couro.
Antes, porém, de narrar os fatos dessa história, importa dizer que eles aguardaram muito tempo até receber o
merecido reconhecimento em terras brasileiras. As comemorações do Ano da França no Brasil, em 2009, serviram de
palco para que a memória desse momento específico da história de ambos os países fosse finalmente resgatada e
difundida em exposições ocorridas em várias capitais do país. Pipocaram matérias em revistas, jornais e redes de
televisão. Falou-se muito de Saint-Exupéry. Mas pouco se comentou o nome de outros que, como ele, arriscaram-se
nos céus dos continentes europeu, africano e sul-americano a serviço da Aéropostale.
No bojo das comemorações de 2009, a cidade de Florianópolis, por sua vez, ganhou destaque internacional e só
então a população local ficou sabendo que a ilha abriga o mais completo conjunto arquitetônico da Aéropostale na
América do Sul. É na praia do Campeche que se encontram o campo de pouso, o casarão e o hangar que entre 1927
e 1931 receberam os pilotos que viriam a se tornar grandes nomes da aviação mundial: Jean Mermoz, Henri
Guillaumet, Paul Vachet, Marcel Reine e Exupéry. Necessário dizer então que, passados quase 80 anos, algo singular
certamente ocorreu para que tudo isso chegasse a conhecimento público. Tal singularidade tem nome e sobrenome e
está personificada na figura da brasileira Mônica Cristina Corrêa, doutora em língua e literatura francesa pela
Universidade de São Paulo. “São histórias gloriosas, uma empreitada de malucos, também gloriosos”, resume.
Foi Mônica quem, em 2007, ao se deparar casualmente com a lenda de um certo Zeperri, aviador e escritor francês
que pousava na praia do Campeche para visitar um pescador conhecido como “seu” Deca, arregaçou as mangas e
resolveu ir fundo na história. Foi ela também que, depois de muita pesquisa, contatou o sobrinho-neto de Exupéry,
Marcel d’Agay, para juntar uma ponta do caso à outra.
Desde então, as relações se estreitaram e ganharam um colorido de afeto, estimulando trocas e iniciativas de
governos e entidades de ambos os países. Foi preciso tudo isso para que, finalmente, a lenda de Zeperri ganhasse
reconhecimento oficial e colocasse o nome de Exupéry definitivamente entre os de outros aviadores que se
apaixonaram pela ilha, elevando a uma categoria de distinção placas com nomes de ruas e estabelecimentos
comerciais em homenagem a ele que há muitos anos fazem parte da paisagem da praia do Campeche.
Memória
É em decorrência do novo status dado a esse período da história dos ases do céu que a população de Florianópolis
aguarda agora a criação do Memorial de Pilotos e Pescadores e a posterior montagem permanente da mostra
“Mémoire d’Aéropostale” (doada pela entidade francesa), na Avenida Pequeno Príncipe, onde a própria companhia
funcionou, enquanto acompanha as notícias sobre o documentário De Exupéry a Zeperri, projetos tocados por Mônica
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Paralelamente, franceses e brasileiros aguardam aqui e lá que o registro da passagem dos aviadores pelo sul da ilha
de Santa Catarina se torne patrimônio histórico universal com o tombamento da rota intercontinental, após a visita do
representante da comissão superior dos monumentos históricos e presidente do Colégio de Expertise do Patrimônio
Aeronáutico da França, Max Armanet, em dezembro último.
“Ao mesmo tempo em que aguardamos a concretização do projeto do Memorial [no prédio onde funcionou o escritório
da Aéropostale mora hoje uma senhora e o governo busca solucionar o problema], tocamos adiante o documentário.
Já captamos imagens digitalmente em algumas cidades francesas e entrevistamos parentes de Exupéry. Agora,
estamos terminando as entrevistas com pessoas da ilha que têm casos a contar ou porque estiveram presentes ou
porque os ouviram de outros”, diz Mônica. “Eu e a Branca [Branca Regina Rosa, da produtora We Do] queremos
trabalhar a oralidade e o que resta dessa memória”, completa. O documentário, com roteiro de Delmar Gularte, terá
cerca de 50 minutos e deverá ser exibido pela TV Sesc/SP, entre outras emissoras.
Contudo, se no Brasil se busca montar o quebra-cabeça por meio de depoimentos ainda não registrados, na França a
quantidade de literatura disponível sobre esses pilotos é enorme. Vários deles escreveram suas memórias. O próprio
Exupéry relata, de forma direta ou indireta, nas obras Voo Noturno, Terra dos Homens e Correio Sul, sua experiência
e a dos companheiros.
Em 2006, a neta de uma figura central na história da aviação mundial, Guillemette de Bure, lançou uma obra
fundamental sobre a saga de seu avô, Marcel Bouilloux-Lafont: Les Secrets de L’Aéropostale – Les Années Bouilloux-
Lafont 1926-1944, que revela segredos de alcova com o intuito de estabelecer a “verdade histórica”, segundo palavras
da autora.
Guillemette nasceu em Santiago do Chile, mas passou parte da infância no Rio de Janeiro com os pais e conheceu
bem o avô, à época um empresário falido. “Lembro-me muito bem dele e da profunda tristeza que emanava de sua
pessoa. Parecia acabado. Sempre me perguntei a razão. Somente depois de ter explorado sua vida e sua obra,
consigo compreender melhor o desespero daquele homem, arruinado quando havia tentado fazer tanto por seu país”,
conta ela em entrevista feita por e-mail.
E que injustiça terá sido cometida contra o homem que construiu “a mais importante linha aérea dos anos 1930”, como
recorda sua neta?
O começo
Em meados de 1926, enquanto pilotos como Mermoz e Vachet arriscavam a pele em voos entre a Europa e a África a
serviço da empresa aérea Latécoère, o homem que a comandava, Pierre-Georges Latécoère, farejava a desgraça que
iria se abater sobre o mundo ocidental poucos anos depois e, por essa razão, contatava um empresário francês que
vivia no Brasil e já se fazia notar graças a empreendimentos em áreas diversas, entre elas linhas de trem, portos e o
Banco Federal Brasileiro.
Foi assim que Latécoère vendeu 93% das ações a Lafont e ambos se tornaram sócios na Aéropostale, com a
perspectiva de subvenções do governo francês. Por razões evidentes e outras ainda obscuras, a França suspendeu
as subvenções, deixando Lafont em meio à crise mundial causada pelo crash da Bolsa Americana em 1929. Lafont
persistiu até 1931, quando a Aéropostale finalmente quebrou. Pierre-Georges Latécoère tornou-se um próspero
fabricante de aviões. Em 1933, a Aéropostale, falida, foi integrada a duas outras companhias e tornou-se a Air France.
Os pilotos foram reempregados. Os acontecimentos históricos que se sucederam, entre eles a 2ª Guerra Mundial,
selaram definitivamente o destino desses dois homens, condenando um ao fracasso e reservando ao outro o sucesso.
Nesse meio-tempo, contudo, a aviação mundial experimentou grandes saltos de desenvolvimento, e a coragem e a
audácia dos pilotos da Aéropostale impulsionaram muitos desses avanços.
Mermoz, por exemplo, lançava-se a distâncias cada vez maiores. São incontáveis os relatos de suas peripécias. Num
dos vários voos feitos para ampliar a linha até Dacar, em 1927, acabou caindo no deserto depois que seu avião foi
alvejado. Àquela época, esse era o maior temor dos pilotos, porque eram capturados pelos mouros dissidentes e
feitos reféns. Só eram soltos com o pagamento de resgate, em geral quantias astronômicas, somadas ainda ao envio
de armas. Aventuras assim eram empreendidas por vários pilotos (incluindo Saint-Exupéry). Elas, afinal, lhes
permitiam refazer cálculos sobre as aeronaves, detectar problemas para fazer melhorias técnicas, analisar de uma
perspectiva diferente os planos de voo. Tudo ganhava sentido e se transformava em avanço.
Ao mesmo tempo, havia a correspondência, que ia e vinha. Em 1920, a Latécoère transportou 200 mil cartas. Dez
anos depois, quando o serviço já havia se estendido à África e à América do Sul, esse número chegava a 30 milhões.
“A história da companhia Latécoère/Aéropostale é a de um estrondoso sucesso, ao menos no curto prazo. Em 1930,
ela já era a linha mais longa do mundo e, com seus 72 aviões, a maior frota comercial da Europa”, afirma Stacy de la
Bruyère em seu livro Saint-Exupéry: Une Vie à Contre-Courant.
Outro nome a brilhar na constelação da Latécoère/Aéropostale é o de Henri Guillaumet. Em 1926 é ele quem
assegurará o fluxo do correio na linha Toulouse-Casablanca-Dacar. Anos mais tarde esses mesmos pilotos serão os
principais responsáveis pelo transporte de correspondência nas linhas da companhia francesa no continente sul-
americano, ao lado de Exupéry, Vachet e Reine.
A Aéropostale sul-americana
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A chegada de Vachet a Florianópolis é um dos pontos altos das relações que se estabeleceram entre os pescadores e
os aviadores franceses. É o próprio Vachet quem conta em suas memórias como se deu a compra do terreno que
passaria a abrigar as estruturas da Aéropostale na praia do Campeche. De acordo com ele, a área de 324 mil metros
quadrados pertencia a várias famílias que não tinham qualquer tipo de registro dos imóveis. Para complicar ainda
mais a situação, parte dos donos tinham união estável com as esposas mas não eram legalmente casados, o que
impedia que as terras fossem vendidas. Para resolver a situação, Vachet e sua mulher promoveram os casamentos
necessários e se tornaram padrinhos de vários casais, estabelecendo relações de amizade com muitos deles no
decorrer dos anos.
Em meados de 1930, Mermoz foi encarregado de fazer a primeira travessia do Atlântico Sul, partindo da África para o
Brasil. Até então, os malotes do correio chegavam de navio a Natal e eram depois distribuídos nos aviões. Ele partiu
de Saint-Louis, no Senegal, e pousou com tranquilidade em Natal a bordo de um Laté transformado em hidroavião. A
volta, porém, depois de sucessivos adiamentos, não acabou tão bem, com um pouso forçado no mar, a quase 900
quilômetros da costa africana (foi socorrido por um barco, contatado pelo rádio).
Em carta endereçada à mãe, ele comenta a estada forçada em Natal por causa dos adiamentos: “Arrasto minha
tristeza e minha inatividade pelas ruas sujas e mórbidas de Natal [...] e os dias e horas transcorrem intermináveis [...]
Não há hotel [...] Sim, um único, ignóbil [...] Migramos para uma casa não mobiliada mas limpa, o quanto pode sê-lo
uma casa brasileira”. Mas Mermoz também sabia apreciar a paisagem brasileira e fala de modo minucioso dos perigos
das linhas que fazia ao lado de outros aviadores: “O percurso é duro. Ventos irregulares, tempestades frequentes e
calor imenso desde Porto Alegre. A partir do golfo de Santa Catarina, ponto inevitável de perturbações atmosféricas, é
floresta virgem até Natal. Em caso de pane, só nos restam pequenas praias para pousar. A etapa Rio-Santos é a mais
difícil. [...] São duas horas magníficas e angustiantes a passar. É maravilhosamente bonito, mas uma pane seria
desastrosa”, conta ele.
Em 1929, um ano antes do feito de Mermoz, o jovem Saint-Exupéry foi destacado para chefiar a Aeroposta Argentina
e abrir linhas para a Patagônia, depois de três anos de serviços prestados à companhia na França e na África.
Nascido em família rica, o escritor impressionou a todos por sua erudição e solidariedade.
Mermoz voltou para a França quatro meses depois da chegada de Saint-Exupéry e corre a lenda de que teria
afirmado que distribuiu aos amigos as chaves de seu reino: Victor Étienne ficou com o Brasil, Reine com o Paraguai,
Guillaumet com a linha Santiago-Buenos Aires e Saint-Exupéry com a Patagônia.
Além de abrir a linha da Patagônia, Exupéry tinha de supervisionar a exploração argentina, cuidar da administração de
pessoal, providenciar equipamentos e controlar de perto os aeródromos. Por essa razão, voava por todos os lados na
América do Sul.
Florianópolis, entretanto, teria despertado no escritor um sentimento especial, segundo dizia “seu” Deca, o pescador
de quem se tornou amigo. De acordo com o filho do pescador, Getúlio Manuel Araújo, seu pai lhe contou que Exupéry
algumas vezes vinha a passeio e, nessas ocasiões, não dispensava o peixe nem o biju.
Era comum que tanto Exupéry quanto outros pilotos pousassem na ilha à noite. Sempre que isso ocorria, eram acesos
lampiões para iluminar o aeródromo. A prática acabou dando nome à elevação que fica em um dos lados do campo,
hoje conhecida como morro do Lampião.
A saga da Aéropostale está registrada na exposição que brevemente chegará ao Campeche e que já passou por
cidades como Rio de Janeiro, Toulouse, Barcelona e Casablanca.
Desde o ano retrasado, porém, parte dessa história já pode ser vista no pequeno espaço reservado pela Pousada
Zeperri para contá-la aos hóspedes e curiosos que passam por Florianópolis.
A exuberância dessa saga, porém, exige muito mais e só encontrará um suporte à sua altura com a concretização do
projeto do Memorial de Pilotos e Pescadores. Aí sim estará se imprimindo definitivamente na história da aviação um
recorte no tempo marcado, sobretudo, pelas relações de amizade entre dois povos.
Um piloto ilustre
Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon em 1900. Passou a integrar a equipe da Latécoère em 1926. Era
considerado um dos pilotos mais seguros da linha, segundo Didier Daurat, diretor de operações da companhia.
Foi piloto da linha Toulouse-Casablanca e, depois, da Casablanca-Dacar. Fiel aos companheiros, era frequentemente
solicitado em missões de resgate ou socorro. Sua facilidade para aprender línguas, aliada ao temperamento
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equilibrado, o conduziu a missões diplomáticas entre os mouros dissidentes do deserto do Marrocos. Foi nesse
período que começou a escrever Correio Sul, lançado em 1929 com boa acolhida da crítica.
Em setembro de 1929 foi designado diretor da Aeroposta Argentina e passou a viver em Buenos Aires, cidade que
dizia não apreciar. Nessa fase, escreveu Voo Noturno.
Em 1934, Saint-Exupéry, após a quebra da Aéropostale, foi contratado pelo setor de propaganda da Air France e fez
inúmeras viagens como conferencista da empresa. Mesmo então continuou a voar por prazer e sofreu alguns
acidentes.
Em 1939, publicou Terra dos Homens, premiado na França e nos Estados Unidos. A obra narra as aventuras de
Guillaumet e Mermoz e lança luz sobre os feitos da Aéropostale. Um ano depois, Exupéry tornou-se piloto de guerra.
Quando a França foi ocupada pelos nazistas, exilou-se nos Estados Unidos, onde escreveu O Pequeno Príncipe, mas
a partir de 1943, baseado no norte africano, voltou a voar sobre o continente europeu.
O escritor tinha 44 anos quando sua aeronave desapareceu no mar Mediterrâneo durante uma viagem de inspeção e
reconhecimento. Seu corpo nunca foi encontrado. Um bracelete com seu nome foi achado ao largo de Marselha por
um pescador, meio século depois.
Em 2002, os destroços do P-38 Lightning que ele pilotava foram encontrados e identificados. No ano passado, um
alemão bastante idoso apresentou-se à imprensa, dizendo ser a pessoa que tinha abatido o avião de Exupéry.
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