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Centro de Ciências Jurídicas e políticas

Programa de Pós Graduação em Ciência Política


Tayná Lima Paolino

A dialética do conflito e a democracia

A democracia, por mais diversas que tenham sido suas experiências na


história, quer dizer governo do povo, e seja na participação direta ou no voto,
todos os indivíduos que compunham esse sistema político, tinham como base a
igualdade. Essa igualdade não significa homogeneidade, e por isso,
identificamos em alguns autores como Maquiavel, Marx e Carl Schmitt a
manifestação do conflito como um dos precursores da democracia.
Os partidos políticos são à base da democracia representativa, e podem
ser encarados como a manifestação da dualidade amigo-inimigo desenvolvida
por Carl Schmitt em seu livro “o conceito do político”, na disputa por cargos no
Estado, no atual grau de desenvolvimento da luta política no século XXI.
Em seu livro “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” Maquiavel
apresenta um conceito do ser humano enquanto um corpo insaciável e a
importância de as instituições construírem boas leis para canalizar esse
sentimento. Podemos relacionar esse movimento com a tendência dos
indivíduos a gerarem conflitos, assim como ser produtos dele.
A partir dessas ondas, é estruturado o aprimoramento das instituições,
que sustentam os sistemas políticos, e no interesse desse trabalho, a
democracia. A reflexão que eu gostaria de trazer nesse artigo unifica duas
linhas de pensamento para explicar por que o enfraquecimento dos partidos
políticos no atual momento da democracia é danoso a sobrevivência da
democracia que conhecemos hoje e os perigos que isso pode trazer para
nossa existência em sociedade.
A primeira linha é a identificação que os partidos políticos organizam a
dualidade amiga x inimigo do político e como isso é o que não possibilita a
guerra civil, guerra interna entre os indivíduos que colocam sua vida sob risco
de morte.
A segunda linha visa trazer uma reflexão a cerca da tarefa central das
instituições de canalizarem, através de regras que sejam consideradas justas e
conhecidas por todos, os conflitos que acontecem.
Seja na leitura de Marx, como os conflitos de classes sociais, seja na
leitura de Carl Schmitt com a dualidade amigo/inimigo, seja no que pauta o
próprio Maquiavel, os dois humores da cidade, independente de qual conflito
esteja lidando, todos os autores concordam que existe uma base contraditória,
com dois extremos, que disputam pelo poder na sociedade.
Assim como concordam, que essa contradição, é base de construção da
história. Enquanto Maquiavel demonstra isso na construção da teoria do
conhecimento, onde o conhecimento atual é a soma dos conhecimentos do
passado, Carl Schmitt demonstra na politização constante do Estado, da
soberania e da guerra.

A contradição

A história da democracia faz parte da natureza dos conceitos, conceitos


esses que se transformam a partir dos conflitos e das contradições inerentes a
existência em sociedade. Os marxistas identificam essa contradição que
movimento os sistemas econômicos e políticos no mundo, advindo da dialética,
como à luta de classes, e assim baseia-se nos modos de produção a base de
desenvolvimento da sociedade.
Essa contradição, com o formato da luta de classes, definiu a história da
humanidade, passando por ciclos que avançavam na complexidade da relação
dos indivíduos com relação à economia e também à política, comunismo
primitivo, escravidão, feudalismo e capitalismo.
Lenin simplifica um dos conceitos elementares para a
compreensão das obras de Marx, a “dialética, isto é, a doutrina do
desenvolvimento na sua forma mais completa, mais profunda e mais isenta de
unilateralidade, a doutrina da relatividade do conhecimento humano, que nos
dá um reflexo da matéria em constante desenvolvimento.”
A dialética é composta por três partes, a tese, a antítese e a
síntese. A tese é a afirmação, a antítese a negação, e a síntese o produto da
reação e relação entre as duas primeiras, que por si só já contem a próxima
tese e antítese que orienta a atuação do homem, advinda da observação da
natureza.
Carl Schmitt no seu livro o conceito do político apresenta a dualidade
amigo-inimigo como característica constituinte da política. Isto é, os seres
humanos se juntam para guerrear e defender seus interesses, senão houvesse
conflitos, os seres humanos não se unificariam.
Esses conflitos, se utilizarmos o viés aristotélico que o próprio Marx trás
para gente, não necessariamente dizem respeito à guerra de todos contra
todos, como defendido em Hobbes, mas um conflito do próprio
desenvolvimento das instituições na busca da sobrevivência pelos indivíduos.

“O homem é no sentido mais literal, o zoon politikon ( animal político de


Aristóteles ), não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em
sociedade. A produção do indivíduo isolado fora da sociedade (...) é uma
coisa tão absurda como o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos
que vivam juntos e falem entre si.” (Para a critica da economia política,
página 4)

Para explorar os ciclos políticos da democracia e fazer uma ligação com


o teórico que mais desenvolveu estudos sobre o que é política, vamos
relacionar Carl Schmitt com Maquiavel, que é conhecido por inaugurar novos
olhares sobre a política, um autor do renascimento e que inspira muito da base
da doutrina liberal e moderna da democracia. Ele busca olhar as coisas com
elas são e não como deveriam ser, separando o julgamento da moral cristã
sobre as ações dos governantes e do povo.
Assim como a luz é a propulsora das trevas, da escuridão, todos os
conceitos são marcados por suas dualidades, antagonismos ou contradições.
Um químico importante para a identificação do movimento da matéria física,
Antoine Lavoisier descreveu muito do mundo e do desenvolvimento dos
conceitos através da máxima: Nada se cria tudo se transforma. Essas
dualidades, a luta de classes e amigo/inimigo não são estáticas, na verdade
tem uma tendência a estarem sempre sendo modificadas no seu conteúdo,
mas sem perder a validade desses extremos.
Em relação aos sistemas políticos, existe um conceito chamado
“anaciclose polibiana”, onde as formas retas são seguidas de formas más de
governo. Contudo, cada uma dessas formas boas e ruins vai se aprimorando,
no processo dialético do antagonismo de cada uma das fases, onde o conceito
de democracia, por exemplo, persiste, mas o conteúdo de análise se modifica.
Carl Schmitt fala na página 27 de seu livro “no âmbito da moral as
estremas diferenciações sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no
econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável ou não rentável.”
No âmbito da moral, sabemos o quanto a sociedade evoluiu nos seus
conceitos, por exemplo, no campo do direito das mulheres. O que era bom ou
mal há 100 anos é diferente do que é hoje, mas também é fruto do processo
histórico dessa transformação.
Na política e na democracia não pode ser diferente, como é um produto
das relações de indivíduos, está inscrita também na dualidade que orienta a
conceituação do produto da ação humana, física ou teórica. Carl Schmitt
acredita que essa dualidade está baseada na relação amigo x inimigo público.
“A diferenciação especificamente política, à qual podem ser relacionadas
às ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo.”
(pagina 27)
Um mundo sem conflitos é um mundo sem política e conseqüentemente
sem a distinção amigo e inimigo. Contudo podemos observar na lógica de
funcionamento da humanidade, que o conflito, como Marx conceitua como luta
de classes, é o que organiza a sociedade. Não há de existir um mundo com
seres humanos se relacionando sem contradições, portanto não existe mundo
sem política e por isso não existe sociedade sem a unidade amigo-inimigo
organizando as relações. A política é portanto a arte do conflito.
“um mundo no qual a possibilidade de semelhante combate estivesse
completamente eliminada e desaparecida, um planeta definitivamente
pacificado, seria um mundo sem a distinção entre amigo e inimigo, por
conseguinte, um mundo sem política.” (Pagina 37)
Uma parte fundamental para compreender esse conceito do político na
teoria de Carl Schmitt é a possibilidade da morte física como um momento de
exceção e necessário de ser considerado na humanidade. Ele é um autor que
trabalha muito o estado de exceção, o confronto entre os povos e entre os
Estados, em momentos onde a negação do seu inimigo torna-se existencial
para o seu bloco amigo.
A possibilidade de guerra constante e o monopólio da força como a
competência de dar a última decisão em momentos de Estado de exceção são
fundamentais para compreender o conceito de soberania, e assim trazer
algumas bases desse conceito para o nosso estudo da democracia.
“O Estado enquanto unidade política normativa concentrou em si mesmo
uma imensa competência: a possibilidade de fazer guerra e, assim, de dispor
abertamente sobre a vida das pessoas” (O conceito do político, Página 49)
O poder soberano deve ser aquele que fundamenta a existência do
Estado e por isso assegura a vida dos indivíduos que vivem sob égide do
mesmo. Sem esse instrumento, a vida de cada um de nós pode ser a qualquer
momento finalizada pois não existiria um poder que impere à todos de forma
única. Portanto, a dualidade amigo/ inimigo só pode ser garantida em formato
de paz, ou ausência de guerra, com a garantia de um poder soberano no
gerenciamento da atuação política dos indivíduos.
“A real possibilidade do agrupamento do tipo amigo-inimigo basta para
criar uma unidade normativa para além do meramente social associativo, uma
unidade que é algo especificamente diferente e algo decisivo perante as
demais associações.” (O conceito do político, Página 47 e 48)
Em seu livro Discorsi, Maquiavel nos demonstra que o princípio
norteador de construção das cidades foi à busca dos homens para se unir no
intuito de se sentirem seguros, e embora algumas também tenham sido
construídas por forasteiros, esse sentimento é a motivação inicial da unificação
dos indivíduos nas cidades.
Com o surgimento das cidades, nascem as repúblicas, que são
compreendidas por três espécies e suas formas ruins: Monarquia/ Despotismo,
Aristocracia/Oligarquia, Democracia/anarquia. Maquiavel analisa a sociedade
de forma real e observa esse movimento circular, acreditando muitas vezes em
um ciclo vicioso dessa formas de governo. Os sistemas são corrompidos
principalmente por problemas com acontecimentos da história (fortuna), e com
falha dos indivíduos de lidar com os desafios e problemas da política (virtú).
Para ele, a liberdade na república significa a participação dos cidadãos
nos negócios públicos, a independência política e a segurança individual que
se organizam nesses dois conceitos: auto interesse, onde o individuo participa
para se proteger, o autogoverno, onde você pode votar em qualquer pessoa.
Portanto, as instituições deveriam canalizar o conflito, transformando o
desejo de liberdade e não opressão em desejo de participação na vida pública
e respeito pelos mecanismos legais. As instituições são construídas em cada
tempo histórico para conseguir dar conta da dualidade amigo x inimigo na
guerra de interesses de nossa existência social.
Maquiavel defende que na república existem dois humores no corpo
político, quando vamos pensar na relação com o poder político, e que esses
conflitos são necessários e devem estar dentro de um quadro institucional
reconhecido como legítimo para todos para que possam formar boas leis e
bons governos.
“em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos
grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da
desunião deles” (Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. Pagina, 22)
Assim como outros autores, como Aristóteles, que coloca no centro das
virtudes a prudência, e desenvolve no seu livro Ética a Nicômaco, que a virtude
reside no meio termo das ações, Maquiavel também defende uma composição
de interesses nas instituições para que elas possam persistir.
“. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder
ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que
ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses
rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destróem as
árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem
diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E,
se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de
calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que,
crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não
fosse tão desenfreado nem tão danoso.” (O Príncipe, capítulo XXV)

Democracia

Em relação a democracia, podemos observar na primeira parte do livro


de Robert Dahl, A poliarquia, que existiam conceituações bem diferentes sobre
o que definia um sistema como democracia e os seus processos democráticos,
nas primeiras experiências conhecidas mundialmente como Grécia, Roma,
Florença, Veneza, Escandinávia, entre outros. Esses sistemas políticos se
avaliados com as determinações sobre o que é democracia no século XXI,
seriam considerados insuficientes ou antidemocráticos.
Dentre os homens livres, existia muita desigualdade em status, fortuna,
trabalho e poder, as mulheres nem os escravos participavam, não existiam
mínimos padrões democráticos com experiências diversas e as ideias e
convicções não eram amplamente compartilhadas.
Além disso, as experiências democráticas não viveram em uma linha
crescente de expansão, como Charles Tilly coloca, a sociedade viveu
processos de democratização e desdemocratização conduzida tanto por
opções de suas elites como de desmantelamento e descrença de
agrupamentos de cidadãos das instituições que sustentavam a democracia.
Se compararmos algum desses fatores, como por exemplo, a inclusão
de adultos, e observamos o aumento do voto, até chegar ao sufrágio universal
em todos os países industrialmente avançados, podemos concordar com
Schattshneider que os partidos políticos criaram a democracia que vivemos
hoje, ou seja, o arcabouço institucional sob o qual paira a compreensão de que
vivemos em uma democracia é a existência de partidos políticos.
A disputa política da democracia atual baseia se na atuação dos
indivíduos por meio dos partidos políticos na disputa de cadeiras no legislativo
e no executivo. Temos observado nas pesquisas recentes, tendo como ponto
de mudança expressivo as jornadas de junho de 2013, uma constante queda
na crença nos partidos políticos e nas representações parlamentares. Desde
eleições com grandes números de abstenções, avaliação de desempenho de
governo muito baixa, os dados de todas as pesquisas recentes mostram uma
queda na crença da democracia e dos partidos.
Observando a história dos sistemas políticos, e principalmente a história
da democracia, que viveu os seus avanços e recuos na historia da
humanidade, a tendência é o aumento da violência entre as unidades
amigo/inimigo e uma solução autoritária e centralizadora para resolver.
É necessário um espaço, como Maquiavel cita, uma instituição, onde
possam ser canalizadas as diferenças entre o amigo x inimigo na sociedade. A
tendência, quando não há esse espaço, é a violência, a guerra civil, em termos
utilizados por Carl Schmit, mas na minha leitura, a sociedade da violência e
intolerância.
“como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e
principalmente, dos príncipes, o que conta por fim são os resultados” (Ética e
Política)
Essa instituição nos dias de hoje deve ser o sistema de competição
partidária, contudo observamos o avanço do seu desmonte subjetivo e objetivo,
com o aumento de movimentos suprapartidários que interferem na agenda
política do governo e da sociedade, com o avanço da grande mídia como
mobilizadora ou desmobilizadora, com a diminuição do engajamento eleitoral e
com o aumento expressivo de candidatos que não defendem os partidos
políticos e utilizam da intolerância e violência como sua prática política.

Conclusão

Nas duas idéias de justiça que levanta Maquiavel em seu livro discurso,
podemos observar o dano da crença nos partidos políticos como um dano ao
pleno funcionamento da democracia que estamos vivendo. A primeira idéia é
de que há de existir um consenso a cerca do que é justo, que é impedir outro
homem de prejudicar o outro. A segunda idéia é de que o corpo político deve
aceitar o poder das Leis e submeter seus interesses privados em prol do bem
público.
Essas duas idéias se relacionam com o conceito de soberania do
Estado de Carl Schmitt, pois os indivíduos precisam acreditar que o mesmo é
capaz de garantir a sua segurança e a manifestação, que não pelo meio da
guerra física, da violência, da natureza do político amigo/inimigo.
Na época da república romana, no momento que as instituições
deixaram de ser capazes de organizar a disputa pelo poder, e possibilitaram
que um dos dois humores políticos se sobressaísse nas ações do Estado, as
mesmas ruíram.
Ainda não observamos na história recente outra instituição que seja
capaz de organizar o conflito político na democracia representativa
parlamentar, e quando identificamos a queda da legitimidade dos partidos
políticos na organização da disputa, é de se relacionar o aumento da violência
e da intolerância como contrapartida dessa descrença.

Bibliografia

Carl Schmitt, o Conceito do Político


Charles Tilly, Democracia
Lenine, V.I. As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo.
Março de 1913. Visto em 05/08/2018:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm
Maquiavel, discursos sobre a primeira década de Tito Lívio
Maquiavel, O Príncipe
Marx, Karl. Para a crítica da econômica política
Quintana, ética e política
Robert Dahl, Poliarquia

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