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O lugar da mulher: consequência da construção social das responsabilidades que nos violentam

Não acredito que seja apenas o meu pensamento, mas assim como eu, muitas se perguntam o
porquê...

Ao proporem o tema sobre as violências sofridas pelas mulheres como atividade escolar, esse
processo de leitura e procura do mais adequado para meus alunos eu, professora, empreendedora,
estudante, orientadora, mentora, palestrante e mãe, percebi o quanto me sentia culpada de não ter
o espaço que a sociedade considera ideal na vida das minhas filhas. Quantas vezes me senti uma
péssima mãe pelo fato de viajar em decorrência do trabalho ou passar o dia todo no consultório
sem ter tempo de ver minhas filhas e participar de todo o processo escolar delas, apesar de também
ser professora, eu mal pude exercer o meu papel de mãe. Às vezes, cabia ao meu marido essa
tarefa! Precisavam ver os olhares atentos e comentários das outras mães, nas reuniões escolares,
de verdadeira admiração, afinal que homem maravilhoso, ele troca fraldas, dá papinha e até vai
em reuniões escolares. Uau!

Apesar de, às vezes, me trancar em meu escritório, dei um jeito de adequar minha agenda,
equilibrar meu eu interior e tentar amenizar minha culpa. A pandemia tem me dado espaço e
condições de, talvez, remediar esse processo. Visto que até acrescentei mais uma tarefa das tantas
que como MULHER o mundo acha que sou obrigada a fazer. No entanto, eu cumpro esse papel!
Limpo a casa, lavo roupas, faço comida, e com orgulho admiti em uma entrevista que aprendi a
fazer bolo, e arrisco a fazer um pãozinho para o lanche das crianças que “de quebra” estão
estudando em casa. Ahhh! Esqueci de acrescentar que também virei professora particular,
orientadora, merendeira e diretora escolar de casa. Rsrsrs!

Rocha Coutinho, diz que, a mulher, tão responsável pelo seu lar e não tendo com quem dividir
seus medos e angústias, passou a incorporar atividades como amorosa, cuidadosa, do lar, do futuro
dos filhos, a tão sublime missão de cuidar dos filhos e da família. Sinceramente, entendo com
clareza o livro Estudos sobre a Histeria de Freud (1893-1895), e por que ele atribuía a histeria
como uma doença especificamente feminina. Com o reforço da igreja que considerava nossas
lamúrias como coisa de mulher, as funções femininas passaram a ser demarcadas por uma série de
características (abnegação, dedicação, identificação de “boa mãe” e “boa esposa”).

No filme Enola Holmes, original Netflix, Enola afirma para o Visconde Tewkesbury que “Ao
contrário das damas da sociedade, nunca aprendi a bordar, nunca moldei rosas de cera, fiz bainha
em lenços ou colares de conchas. Fui ensinada a observar e ouvir. A lutar. Foi para isso que minha
mãe me criou!”, ou seja, fala sobre não se encaixar naquilo que a sociedade diz que é para pessoa
do sexo feminino, as famigeradas damas. Além dessa, diversas outras cenas onde Enola e sua mãe,
Eudoria, são vistas como fora dos padrões, selvagens revolucionárias” e “feministas” é dito como
insulto.

A definição dessas características caminhou paralelamente a uma massiva discriminação da


mulher, levando muitas vezes a vinculação de feminilidade à maternidade, ou seja, se não sou uma
mãe presente a todo o tempo, não sou mãe e se não sou mãe, não sou mulher. Foram negadas a
nós, mulheres, todas as capacidades socialmente valorizadas pela sociedade e que garantem a
primazia dos homens na vida pública. Daí interesses profissionais, políticos, pensamento lógico,
perspicácia intelectual e dirigir, são vistos como antifemininos.

Claro que estou falando de alguns séculos atrás. Será? Bom... Estou sim falando de tempos em que
havia uma definição clara de papéis onde os homens saíam para produzir o sustento e a mulher
cuidava do ambiente familiar. Hoje em dia ambos são responsáveis pelo sustento e ainda assim os
sentimentos de culpa são bem presentes no nosso universo feminino.

Apesar de hoje, mulheres ocuparem postos de trabalho, serem provedoras em muitos lares e
assumirmos o papel de “power-girl”, ainda há a possibilidade de o fracasso familiar ser em
detrimento do sucesso profissional e muito se deixar do sucesso profissional para uma melhor
vivência do pessoal e matrimonial. O papel que desde os primórdios foi atribuído às mulheres de
cuidadora do lar, ainda é visto em muitas famílias, não só pelos homens, mas muitas mulheres
reforçam essa definição por acharem que são as únicas capazes de desempenhar esse papel.

Nossa sociedade vem mudando muito e já é possível ver outros pais cuidarem dos filhos, trocar
fraldas, participar das reuniões escolares, todavia a maioria continua sendo mães e principalmente,
hoje já existem inúmeras mulheres na cadeia de comando de suas próprias empresas, executivas
de grandes corporações, ou até mulheres motoristas de carga pesada. Quem diria mulher entender
de mecânica, automação e elétrica? Mas, de forma sutil, o fato de os homens apenas perguntarem
“viu que a casa/pia/cozinha está limpinha? O que eu mereço?”, deixa claro que a discriminação
ainda existe de forma intensificada, apesar de os próprios traumas e serem limitações autoimpostas
por nós mesmas serem maiores e muito mais severas.

Luciane Piloto

Vamos refletir?

1. Você conhece alguma mulher assoberbada de tarefas domésticas e que ainda trabalham
fora para o sustento da família? Relate.
2. Você vive isso no seu ambiente doméstico? O que tem a dizer sobre?
3. Como homem, o que você faz para atenuar esse preconceito e violência?
4. Como mulher, o que gostaria que fosse feito para atenuar esse preconceito e violência?
5. Você tem filhos? Gostaria de ter? O que está disposto(a) a realizar para a educação dessa
criança? Qual a sua responsabilidade com a criança como mãe, ou como pai?
6. Como homem, você acha que é obrigação da mulher ter filhos?
7. Como mulher, você se sente obrigada a ter filhos quando se casar?
*VOCÁBULO:

Feminilidade: substantivo feminino - qualidade ou caráter de mulher; atitude feminina; feminidade.


Remediar: transitivo direto - tornar mais suportável ou aceitável; atenuar, minorar.
Decorrência: substantivo feminino - ato ou efeito de decorrer ('suceder'); consequência.
Sublime: cujos méritos ultrapassam o normal.
Lamúrias: substantivo feminino - ato de falar de modo triste; lamentação interminável, que importuna e que a nada
leva; queixume, queixa.
Demarcar: transitivo direto - FIGURADO (SENTIDO)•FIGURADAMENTE - determinar a natureza de; definir,
precisar.
Abnegação: ação caracterizada pelo desprendimento e altruísmo, em que a superação das tendências egoísticas da
personalidade é conquistada em benefício de uma pessoa, causa ou princípio; dedicação extrema; altruísmo.
Famigeradas – Adjetivo – PEJORATIVO - tristemente afamado, que tem muita fama; célebre, notável, famígero.
Freud: Sigmund Scholmo Freud - um médico neurologista e psiquiatra criador da Psicanálise (investigação distúrbios
neurológicos).
Estudos sobre a Histeria: Livro de Freud que faz referência a uma hipotética condição neurótica e psicopatológica,
predominante essencialmente nas mulheres.

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