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O elogio da anarquia em “O que é a propriedade?

” de
Proudhon: apontamentos para a discussão conceitual do
anarquismo
MUNÍS PEDRO ALVES*
15

Resumo
Este trabalho pretende fazer uma abordagem do conceito de anarquia no
livro “O que é a propriedade?” de Pierre-Joseph Proudhon para entender de
quais maneiras se deram a formação das racionalidades políticas anarquistas.
Propomos também um debate visando compreender os usos e as
apropriações feitas pelos pesquisadores do anarquismo quando estes
localizaram seu objeto como um conjunto de ideias e de práticas sociais
homogêneas.
Palavras-chave: Filosofia; História; racionalidades políticas; anarquismo.

The praise of anarchy in “What is property?” of Proudhon: Notes for


conceptual discussion of anarchism
Abstract: This paper intends to do approach the concept of anarchy in the
book “What is Property?” of Proudhon to understand in what ways it gave
the formation of anarchist political rationalities. We also propose a debate
seeking to understand the uses and appropriations made by the researchers of
anarchism when spotted his object as a set of ideas and social practices
homogeneous.
Key words: Philosophy; History; political rationalities; anarchism.

*
MUNÍS PEDRO ALVES é graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
16

Introdução Neste sentido, nosso trabalho pretende


A história do anarquismo possui investigar os limiares da terceira
grandes incertezas sobre o conjunto de questão apontada. Tentaremos entender
ideias e práticas sociais que a maneira como um dos principais
caracterizam essa estratégia política. pensadores, desse conjunto de teóricos,
Tais incertezas contribuíram para o relacionou-se discursivamente com o
surgimento de inúmeras confusões a conceito de anarquia, contribuindo para
respeito do pensamento filosófico e o surgimento de um novo significado
político anarquista. A polissemia em desse conceito.
torno do conceito de anarquismo se deu De início, para basearmos em uma
em grande medida em função de três metodologia condizente às nossas
principais acontecimentos: o primeiro questões, dialogaremos com o filósofo
está relacionado às práticas dos Michel Foucault e com o historiador
pesquisadores e dos historiadores que Pierre Rosanvallon. Foucault nos conta
reuniram diferentes pensadores em uma que não devemos tomar um objeto
espécie de “escola de pensamento” como verdade (VEYNE, 1998, p. 256-
inexistente; o segundo se refere à 257), que precisamos interrogá-lo,
historicidade do conceito de anarquismo entender sob quais práticas se deu a
nos movimentos sociais dos séculos 19 possibilidade de seu aparecimento. Por
e 20 e seus diferentes usos e isso, partiremos de Proudhon para fazer
apropriações; e o terceiro, ligado aos a história da maneira pela qual uma
dois primeiros, é referente à diferença pessoa ou um grupo social procuraram
com que os filósofos (considerados propor soluções para o que perceberam
teóricos do anarquismo) procuraram ser um problema de sua época.
argumentar em favor da anarquia. Queremos como isso, investigar a
formação das racionalidades políticas investigação da questão proposta,
como entende Rosanvallon1 (1995, p. procuraremos validar alguma
16). contribuição na possibilidade de desatar
os “nós” históricos, para responder
Mas por que Proudhon? Pois grande
minimamente as inquietações que
parte dos historiadores e estudiosos do
incomodam e causam grandes
anarquismo assume seu livro O que é a
discussões entre os estudiosos e
propriedade? como o primeiro a se
militantes anarquistas e libertários. Para
declarar anarquista. E sabemos o quanto
tal empreita, vamos nos deter
é problemático esse reconhecimento na
primeiramente no significado “comum”
medida em que não é especificado que 17
de anarquia (e de seus correlatos),
tipo de abordagem de “anarquismo” é
depois passaremos aos seus usos no
possível estabelecer com a obra de
âmbito político no fim do século 18 e
Proudhon.
início do século 19, para finalmente
Entendendo o campo do discurso precisar o papel especial desempenhado
político e filosófico como parte por Proudhon em O que é a
constituinte da História de um lugar propriedade?
social, a partir do caminho escolhido
pretendemos conhecer as condições Definir o indefinível
históricas que motivaram um tipo de
ligação e de relação do objeto – a
anarquia – com sua historicidade. A definição de anarquia é uma tarefa
Sobretudo, como os sujeitos históricos bastante ingrata e, de certa maneira,
se refizeram discursivamente para se insatisfatória. Haja vista que o
relacionarem historicamente através do dicionário nos diz que a palavra definir
objeto (CARVALHO, 2007, p. 95). vem do latim definire, e que é sinônimo
de limitar, demarcar, fixar etc. Pois com
Faremos ao longo do trabalho o esforço qual “autoridade” alguém pode limitar a
de estabelecer o contato com o passado, palavra anarquia se ela nos parece ser
mas sem sermos apagados por ele. Por seu oposto? Eis aqui a instalação de um
isso, pretendemos não cair nos dos paradoxos causadores de muitas
extremismos de determinada vertente da discussões sobre o conceito.
História Social que reduz o texto à sua
época de surgimento e, principalmente, O termo anarquia era frequentemente
a uma mentalidade geral abstrata, mencionado nos discursos das disputas
tampouco queremos utilizar o esquema políticas até meados do século 19 com
de alguns linguistas que tentam extrair o uma acepção “negativa” relacionada à
significado do texto sem dialogar com o desordem, ao caos e à ausência de
contexto histórico e social. Através da governo; geralmente utilizada pelos
1
atores políticos como arma discursiva
Rosanvallon diz que as racionalidades políticas para atacar e ofender seus adversários.
e os sistemas de representação não nascem na
superfície e sem vínculo algum com
Sobretudo, no processo da Revolução
determinadas situações históricas que aparecem Francesa, por exemplo, vemos o uso
como problemáticas para o grupo social: indiscriminado das palavras
“Partindo da ideia de que estas representações “anarquismo” e “anarquia” sob um viés
não são uma globalização exterior à consciência pejorativo que servia ao acusador.
dos atores – como o são, por exemplo, as
mentalidades – mas que elas resultam, ao
Seguindo esta linha, Woodcock (2007,
contrário, do trabalho permanente do trabalho p. 09) mostra como Brissot, o
de reflexão da sociedade sobre ela mesma”. girondino, definiu o termo ao acusar os
Enragés2 (enraivecidos) de anarquistas: advindos da Revolução Francesa, o grau
"Leis que não são cumpridas, de semântica pejorativa de
autoridades menosprezadas e sem força; determinados conceitos como anarquia,
crimes sem castigo, a propriedade democracia, partido, república e outros,
atacada, direitos individuais violados, era muito maior. No caso brasileiro, a
moral do povo corrompida, ausência de palavra anarquia era sinônima de
constituição, governo e justiça, tais são democracia, que queria dizer um tipo de
as características do anarquismo". despotismo do povo.
Interessante é perceber que muitas das
Voltando a nossa tentativa de
categorizações proferidas por Brissot,
investigação acerca do conceito de 18
naquele momento de luta política, foram
anarquia em âmbitos gerais, um pouco
mais tarde reassumidas pelos
distante dos usos habituais nos debates
anarquistas declarados como qualidades
políticos, em que ganhava toda uma
positivas.
significação própria, a palavra anarquia,
Em um artigo sobre a formação do de origem grega anarchos, comportava
vocabulário político brasileiro do século o peso de pelo menos duas dimensões
19, o historiador Samis (2002, p. 44-46) de entendimentos. Pois, ao significar
expõe uma utilização do conceito de “sem governante”, podia tanto se referir
anarquia bastante similar àquele já visto a uma desordem causada pela ausência
acima durante as disputas políticas da de direção, como também uma
Revolução Francesa. Houve um determinada ordem natural sem
processo no Brasil, principalmente a necessidade alguma de haver diretor
partir de 1820, que dispôs uma série de (WOODCOCK, 2007, p. 08). Portanto,
conceitos antinômicos (como a etimologia da palavra, no léxico
ordem/anarquia; reforma/guerra civil; grego, podendo carregar pelo menos
cidadão/jacobino, etc.) condicionados às outra possibilidade de sentido (além
táticas dos dirigentes ligados aos dois daquele que estava geralmente a serviço
grupos políticos do momento, coimbrã e dos políticos e pensadores
brasiliense. Esses dois grupos políticos conservadores que estabeleciam a
disputavam o poder entre si utilizando ligação entre anarquia e desordem), foi
os aparatos discursivos para o que tornou possível uma “nova”
desqualificar seus rivais, e que por sua acepção do conceito em meados do
vez demonstravam também interesses século 19. Ou seria, na verdade, apenas
de assegurar a governabilidade do um direcionamento diferente para a
vencedor. Tal léxico guardava uma anarquia, sendo essa um conceito neutro
significação própria relativa ao em relação à ordem ou à desordem?
Iluminismo de Portugal, e embora
tomassem de empréstimo vários termos Qu’est-ce que l’anarchie? À
“semântica” de Proudhon.
2
Os Enragés (Jacques Roux, Jean Varlet, Pierre-Joseph Proudhon é considerado,
Théophile Leclere, Claire Lacombe e Pauline
Leon) formavam um grupo radical na
pela maioria dos historiadores, o pai do
Revolução Francesa que pregavam uma anarquismo. Em sua obra O que é a
intervenção ativa e imediata do povo nas propriedade? de 1840, ele se tornou o
medidas políticas (incentivando jornadas primeiro pensador a se intitular
populares), como uma participação de soberania anarquista. Neste livro, o filósofo
popular no poder por via de uma espécie de
democracia direta “rousseauniana” decidindo
francês de Besançon, começa a traçar as
suas leis e deliberações em assembleias. Ver: bases do que viria a ser o anarquismo
OLIVEIRA, 2000. moderno. Em um trecho supracitado da
obra, o autor inventa um diálogo, em propriedade privada3. Mas eis que surge
que podemos ler o seguinte: no final de seu livro uma revelação! E
Proudhon se assume anarquista...
Que forma de governo vamos
preferir? – Eh! Podeis perguntá-lo,
Em seguida, ele trata de colocar a
responde, sem dúvida, um dos meus anarquia, se assim podemos dizer,
leitores mais novos: sois dentro de seus eixos. Certamente, foi
republicano. – Republicano sim; uma possibilidade de outro
mas essa palavra nada precisa. Res entendimento da palavra anarquia que
publica é a coisa pública; ora, tornou possível essa operação
quem quer que queira a coisa linguística feita pelo filósofo francês. 19
pública, sob qualquer forma de Tentando captar uma determinada
governo que seja, pode dizer-se naturalidade na maneira de organização
republicano. Os reis também são das coisas do mundo, fica em sua obra
republicanos. – Pois bem! Sois
exposta essa natureza anárquica, na qual
democrata? – Não! Quê? Sereis
monárquico? – Não. – a necessidade de chefes, de reis e de
Constitucionalista? – Deus me governantes para manter a ordem seria
livre. – Sois então aristocrata? – apenas um preconceito de nossa
Absolutamente nada. – Quereis um sociedade, passível de ser resolvido pela
governo misto? – Ainda menos. – faculdade da razão. Em Proudhon, a
Então quê sois? – Sois anarquista. anarquia deixa de ser a provocadora e o
sinônimo da desordem, para se tornar
- Estou a ouvir-vos: Estais a seu antônimo, ou seja, agora “a anarquia
brincar; dizeis isso ao governo. – é a ordem”:
De maneira nenhuma: acabais de
ouvir a minha profissão de fé séria Anarquia, ausência de mestre, de
e maduramente reflectida; se bem soberano, tal é a forma de governo
que muito amigo da ordem, sou, em de que todos os dias nos
toda acepção do termo, anarquista aproximamos e que o hábito
(PROUDHON, 1975, p. 234-235). inveterado de tomar o homem por
regra e a sua vontade por lei nos faz
Possivelmente, tendo consciência de olhar com o cúmulo da desordem e
a expressão do caos. Conta-se que
que o termo não significava nenhuma
tendo um burguês de Paris do
forma de governo específica até aquele século XVII ouvido dizer que em
momento, Proudhon espera o leitor Veneza não havia rei, esse bom
imaginário questionar sobre quase todas homem não podia crer e julgou
as formas de governo elencáveis e morrer a rir com a primeira notícia
possíveis no presente para, a partir de de uma coisa tão ridícula. Tal é o
determinada altura do diálogo, nosso preconceito: tantos quantos
esclarecer que se tratava de somos queremos um chefe ou
“absolutamente nada”. E depois ainda 3
brinca com o termo, na figura do Em uma das primeiras reflexões de seu livro,
Proudhon, declara que a propriedade é um
inocente leitor indagador que, pensando roubo, mas posteriormente deixa exposto que
na acepção pejorativa mais usual do essa crítica se refere a grande propriedade ou
termo e tão em voga no círculo político um poder organizado e constituído
do século 18 e 19, declarara que sistematicamente que garante a legitimidade de
Proudhon devia estar tripudiando tal. Outros pesquisadores preferem deste modo,
defender que Proudhon era contra a
ironicamente do governo. O autor propriedade, mas a favor da posse, pois seu
poderia ter parado por aí, pois não sonho era uma sociedade de pequenos
afetaria em muito sua crítica à proprietários mutualistas.
chefes (...). A propriedade e a o gênio social tem sempre em vista,
realeza estão em decadência desde girando no círculo das contradições
o principio, do mundo; como o econômicas. Por isso, toda a
homem procura a justiça na bagagem econômica do sr.
igualdade, a sociedade procura a Proudhon é melhor transportada
ordem na anarquia (PROUDHON, pela locomotiva da Providência que
1975, p. 239. Grifos do autor). pela sua razão pura e etérea. À
Providência ele consagra todo um
Sem querer julgar os acertos e os capítulo, o que se segue ao sobre os
equívocos da sistematização de impostos. Providência, fim
Proudhon sobre o conceito de anarquia, providencial – eis as grandes
nem muito menos procurar desmascarar palavras que se utilizam hoje para 20
ou desconstruir a consistência lógica de explicar a marcha da história
sua filosofia, como muitos fizeram, a (MARX, 2009, p. 135).
nossa proposta é analisar algumas de Marx critica Proudhon principalmente
suas características, para entender os por conta do último se aproximar de
desdobramentos provocados pelas Hegel e do uso otimista que faz da
mesmas. Por isso, de imediato, faz-se razão, como algo impessoal e universal.
necessário afirmar dois aspectos E, de certa maneira, por acreditar que o
importantes em torno dessa recriação acesso a esta garantiria a liberdade aos
semântica sob as mãos de Proudhon. homens, não se levando em conta à
Razão, progresso e flexibilidade submissão das consciências às relações
materiais de produção e às deformações
O primeiro deles é a respeito da provocadas pelos interesses de classes:
concepção presente em sua metodologia
filosófica que o faz enxergar uma Por que o sr. Proudhon fala de deus,
da razão universal, da razão
suposta causalidade metafísica e
impessoal da humanidade, razão
progressiva que empurra a ordem em que nunca falha, que é sempre igual
direção ininterrupta à anarquia. Por a si mesma e da qual basta ter clara
conta deste detalhe que atravessou consciência para ser dono da
futuros escritos do pensador francês, verdade? Por que o sr. Proudhon
Marx fizera uma crítica contundente, recorre a um hegelianismo
em Miséria da filosofia [de 1847], em superficial para dar-se ares de
direção às argumentações de economia pensador profundo? (MARX, 2009,
política proudhoniana concentradas na p. 244).
obra Sistema das contradições Marx ataca a filosofia proudhoniana
econômicas ou Filosofia da miséria [de com as mesmas armas que usou contra a
1846]. Existe um trecho específico no filosofia hegeliana, sobretudo, no ponto
qual Marx vincula o pensamento de em que Hegel utiliza o conceito de
Proudhon à expressão da Providência: “astúcia da razão” para tornar possível
[...] o lado bom de uma relação uma sociedade fundada sob a ideia de
econômica é o que afirma a mercado e a transformação da sociedade
igualdade; o mau é o que nega e civil em Estado moderno4
afirma a desigualdade. Toda
categoria é uma hipótese do gênio 4
Servimos aqui da explicação de Rosanvallon
social para eliminar a desigualdade que faz uma leitura da obra “Primeira filosofia
engendrada pela hipótese do espírito” e “Fenomenologia do espírito” de
precedente. Em resumo, a igualdade Hegel. Num primeiro momento, Hegel parece
é a intenção primitiva, a tendência retomar ao seu modo o conceito de ‘mão
mística, o objetivo providencial que invisível’, transformando-a em ‘astúcia da
(ROSANVALLON, 2002, p. 191). dão margem para inúmeras
Portanto, é possível entender que interpretações, às vezes, aparentemente
Proudhon, por mais que filosoficamente inconciliáveis para uma pessoa só.
tenha abolido o poder político Acusado de antissemita, misógino e
centralizado e a propriedade privada que pequeno-burguês, foi considerado pelos
não fosse fruto do próprio trabalho, não críticos de “pai do socialismo
rompeu totalmente com a tradição científico” a mais um do socialismo
filosófica liberal e se serviu de uma utópico em um curto espaço de tempo.
mesma categoria, a razão universal, para Inspirou desde os mutualistas das
lançar as bases da anarquia como sociedades autogeridas nos Estados
filosofia da história. Unidos em meados do século 19 até os 21
pequenos burgueses republicanos e
Queremos chamar a atenção para este
federalistas sob as traduções de seus
tipo de análise que permite vincular
Proudhon à filosofia do liberalismo não escritos feitas por Pi y Margal em 1871
na Espanha. A permissão de uma leitura
para filiá-lo à outra escola imaginária de
pensamento político, mas simplesmente positiva e atual do pensamento de
Proudhon, como anarquismo mutualista,
pela possibilidade de embaraçar a visão
sugere que “necessidade e liberdade se
consagrada da literatura de que o autor
confundem, pois como para Spinoza, é
era socialista ou anarquista como algo
dita livre a coisa que existe apenas pela
pronto e acabado. Esses rótulos pouco
necessidade de sua natureza, e obrigada,
clarificam a compreensão quando são
tomados como doutrinas fechadas, pois a coisa que é determinada por outra a
serão as seleções e as interpretações dos existir e a agir segundo lei particular e
acontecimentos tratados como determinada” (COLSON, 2006, p. 28).
documentos pelos pesquisadores do Ademais, Proudhon se chamou de
passado que mais tardiamente vão socialista e ao mesmo tempo atacou
homogeneizar um conjunto de todos os socialistas de seu tempo,
pensadores em torno de um mesmo especialmente porque ele entendia que
quadro. São, na verdade, as sucessões e os projetos societários dos socialistas
as relações de acontecimentos contemporâneos seus representavam o
escolhidos e fabricados deliberadamente apagamento do indivíduo em favor de
que vão permitir aos atores sociais se uma autoridade suprema do
posicionarem e posicionarem os outros comunismo. Como se não bastasse, se
em relação a um dado objeto. Neste referindo aos revolucionários liberais
sentido, Proudhon nos parece conter franceses de 1789 como “nossos pais”,
uma flexibilidade particular para essas Proudhon atacou veementemente as
possíveis inserções e/ou afastamentos. concepções do liberalismo em torno da
As características cambaleantes e propriedade privada, alvo principal de
equilibristas dos escritos de Proudhon seu livro. Ele entendia que o primeiro
“sistema” – palavra que ele odiava –
razão’. A universalidade da riqueza, descrita na representava a opressão dos fortes pelos
Fenomenologia do Espírito provem, a seus fracos e o segundo dos fracos pelos
olhos, de um tipo de astúcia da razão dialética: fortes.
‘cada entidade singular acredita
verdadeiramente no exterior desse momento (da O momento de surgimento do manifesto
riqueza) agir em vista do seu interesse egoísta
[...] mas, considerado ainda somente do exterior,
político de Proudhon vai ao encontro à
esse momento se mostra tal que o desfrute de desilusão do sonho de liberdade e
cada um leva ao desfrute de todos’. igualdade (exaltado durante a
Revolução Francesa) demonstrada pelas 335). Portanto, existe uma fronteira bem
sucessivas crises políticas e sociais demarcada que separa as concepções
enfrentadas desde esse período na dos dois principais pensadores da
França. Do despotismo de Bonaparte ao anarquia a respeito da revolução.
reinado serviçal em favor da burguesia
Postas as considerações necessárias
com Luís Felipe. Somando-se a isso a
referentes às particularidades mais
fome que desolava a população pobre, o
nítidas da filosofia proudhoniana, agora,
cerceamento da liberdade de imprensa e
vamos nos deter na segunda
de outras liberdades de expressão.
característica construída a partir da
Nossa defesa é de que Proudhon tentou
operação linguística desenvolvida por 22
encontrar a sua maneira uma solução
Proudhon, que deu a possibilidade de
para tantos problemas sociais que
dizerem mais tarde que o autor
enxergava em seu meio. Por isso,
inaugurou o anarquismo.
procurou divulgar um modo de
organização social que se distanciasse A anarquia é a ordem!
do que enxergava como liberalismo
egoísta, como também das propostas A segunda proposição sugerida talvez
socialistas autoritárias as quais guarde uma relação indireta com a
considerava insuficientes para resolver primeira. Quando Proudhon se intitula
os problemas de sua época. O projeto anarquista e descreve o que é a
societário de Proudhon é único neste anarquia, ele não assume o teor
sentido. E nem pode ser igualado às pejorativo que a palavra carregava até
outras propostas dos pensadores então. Talvez pudesse fazer uma
anarquistas. ressignificação, assumindo uma
identidade como quem dissesse,
A concepção de progresso para hipoteticamente, que era desordeiro e
Proudhon estava intimamente ligada à desejoso da dissolução completa de
ideia de revolução como causa. Até aqui todos os valores e modelos
nada de anormal vindo de um pensador governamentais porque era amigo da
anarquista. Entretanto, a noção de baderna e agente do caos. Ou de outra
revolução em Proudhon é totalmente forma, caso preferisse defender o
diferente à de outros pensadores conceito com certa conotação “neutra”,
anarquistas, como Bakunin, por ele poderia ter sugerido que anarquia
exemplo. Enquanto Bakunin era tivesse somente o sentido de “sem
conhecido como o “rei das barricadas”, governantes” e tudo que dissessem a
um exímio agitador político e um mais do que isso seria servindo aos
revolucionário por vezes incentivador propósitos políticos de mando ou
da ação agressiva na busca da completa desmando do anunciante. Nada disso! A
destruição do Estado e do poder político maneira como ele engendrou a
vinculado a tal, Proudhon, por sua vez, significação do conceito de anarquia foi,
acreditava na revolução como uma em certa medida, assimilando
lenta, pacífica e progressiva escalada determinados valores morais
rumo ao progresso. Mais do que isto, a hegemônicos que o teor pejorativo
tomada abrupta do poder através da dispunha como opostos à anarquia. O
força era sinal de retrocesso em vez de que significa dizer que ao fazer o elogio
avanço, nesse caso, era preciso que da anarquia, ele a “limpou” de toda
todos reconhecessem a importância da sujeira em que a encontravam como
anarquia e querê-la como princípio ambiente natural. E, se não bastasse,
organizativo (AVELINO, 2003, p. 234- jogou na “lama” a autoridade, o
governo e o mando; como se esses ordem. Acreditamos que esta verdadeira
últimos, sim, fossem os verdadeiros cirurgia semântica feita pelo autor foi
fatores de desordem e de caos que se possivelmente uma estratégia para
encontrava a sociedade naquele tornar o anarquismo aceitável e
momento. Como Foucault explica, digerível a um dado público específico,
entendemos que a formação dessa como para o próprio escritor. O que, por
racionalidade política em Proudhon não sua vez, causou mais tarde (e ainda
é apenas um “princípio de teoria [...] causa) uma série de confusões, críticas,
que simplesmente produz formas de polêmicas e possibilidades em torno do
conhecimento ou tipos de pensamento, conceito. Inclusive, as que vão
mas que está ligada por laços reverberar nos escritos de Max Stirner5 23
complexos e circulares a formas de quatro anos depois (2009, p. 63).
poder” (2006, p. 130).
Do mesmo modo, Proudhon fez com a
A respeito de seu laço na moral teísta propriedade, porque quando dissera que
cristã, os escritos de Proudhon não essa era nada menos que um roubo, no
deixam dúvidas, pois, se de um lado início de seu livro, procedeu de
acusava a autoridade dos sacerdotes e semelhante maneira para deslegitimar a
da Igreja, por outro os identificavam existência de tal. O roubo aparece na
como errantes por não seguirem os qualidade de um mal, por isso, se insere
verdadeiros preceitos: sobre um valor de juízo moral. O que
para Proudhon era uma afronta à
...não acusemos o Evangelho que os natureza do social, um preconceito
padres, tão mal inspirados como os universal assim como a necessidade da
legistas, nunca souberam explicar
nem entender. A ignorância dos
autoridade para garantir a ordem. Algo
concílios e dos pontífices sobre que a humanidade através do uso da
tudo o que diz respeito a moral razão não demoraria a superar; assim,
igualou a do foro e dos pretores; e assinala Proudhon:
essa ignorância profunda do direito, Sim, todos os homens acreditam e
da justiça, da sociedade é que mata repetem que a igualdade de
a Igreja e desacredita para sempre o condições é idêntica a igualdade de
seu ensinamento. A infidelidade da direitos; que a propriedade e o
Igreja romana e das outras Igrejas roubo são termos sinônimos; que
cristãs é flagrante; todas toda a proeminência social,
desconheceram o preceito de Jesus atribuída ou, melhor dizendo,
Cristo; todas erraram na moral e na usurpada sob o pretexto de
doutrina; todas são culpadas de superioridade de talento ou de
falsas proposições, absurdas, cheias serviço é iniquidade e usurpação:
de iniquidade e homicídio. Que todos os homens, repito, confirmam
peça perdão a Deus e aos homens, estas verdades em sua alma; não se
essa Igreja que se dizia infalível e
que corrompeu a sua moral; que as
5
suas irmãs reformadas se O pensador alemão Max Stirner é considerado
humilhem... e o povo, desiludido por alguns pesquisadores o principal expoente
mas religioso e clemente, perceberá de uma corrente do anarquismo, chamado
anarquismo individualista. Antes de o
(PROUDHON, 1975, p. 233-234).
anarquismo ser reconhecido como uma escola
Se for verdade que Proudhon é o pai do de pensamento, Stirner em 1844 criticará
fortemente Proudhon. Stirner não aceita
anarquismo, também é correto afirmar qualquer tipo de moralidade, por isso vai dizer
que, como filho de Proudhon, o que Proudhon é um homem moral que ataca o
anarquismo se tornou o amigo da “ser supremo” em nome de outro ser supremo.
trata senão de fazê-los perceber isto O mais irônico foi que mesmo tendo
mesmo (PROUDHON, 1975, p. sido o primeiro a se declarar anarquista
14). e proposto uma visão criativa para o
É desta maneira que Proudhon filosofa. conceito de anarquia, Proudhon não foi
Sob o crivo de sua operação reconhecido durante sua vida como
“semântica”, os conceitos anarquista. Talvez porque a anarquia
imprescindíveis à sua filosofia da não tivesse um fim em si mesmo nesse
história, sejam eles participantes ou momento, nem se constituísse
excluídos, constituem-se na medida em simplesmente através da busca de sua
que determinada naturalidade de retorno realização imediata, mas que fosse um
fundo visualizado a ser atingido pelas 24
ao progresso, possam voltar a fazer
parte deste movimento. Assim, a bases mutualistas com o término da
mudança para o autor não é algo novo, propriedade liberal e da autoridade. Ou
ou uma invenção genial, mas apenas talvez porque se recusasse a fundar um
aquilo que já estava dentro do “curso partido ou uma seita que pudesse ser
natural” das coisas e que por algum identificada como anarquista. Uma
motivo, como o preconceito difundido questão que fica sem resposta é por que
através dos costumes e da tradição, foi Proudhon não deu maior atenção e
abandonado e esquecido, cabendo por propaganda ao conceito de anarquia em
isso, à razão e à ciência realocá-los. O suas obras posteriores. Teria ele, como a
processo filosófico proudhoniano espécie de uma tática de luta política,
acontece na medida em que assimila os deixado à anarquia suspensa como
valores e os pensamentos já existentes e condição inevitável do que viria a
através deles consegue retirar as realizar-se junto às suas propostas
proposições mais originais. Proudhon políticas? Infelizmente, não sabemos,
identifica-se e constitui seus objetos na pois seus projetos não foram colocados
relação que com eles estabelece com os em prática. Tudo o que sabemos é que
“outros” objetos. em curto prazo os seguidores de
Proudhon serão chamados de
Considerações finais proudhonianos ou mutualistas. E ele só
Embora Proudhon tenha ficado bastante será denominado como anarquista e
conhecido na Europa e também nos como “pai do anarquismo” muito tempo
Estados Unidos, depois de ter escrito O depois de sua morte ocorrida em janeiro
que é a propriedade?, seus escritos não de 1865. Seu espírito controverso
lhe trouxeram mais do que muitas marcará para sempre os usos, os
polêmicas, alguns admiradores e aparecimentos e as transformações
inúmeros adversários. Ao longo de sua eruptivas do significado de anarquia.
vida, foi preso duas vezes por incitar Proudhon detestava a ideia de conceber
revolta com seus títulos políticos,
um sistema. Daqui podemos ver o sério
elegeu-se deputado, e logo depois se problema provocado pela historiografia
mostrou muito frustrado com tal
quando fez dos pensadores políticos –
experiência. Através do acontecido,
Godwin, Proudhon, Bakunin, Stirner,
talvez tenha percebido que nem sempre Tolstoi, Kropotkin e Malatesta; às vezes
é possível assimilar valores
tirando um colocando outro – uma
hegemônicos e condicionamentos
“escola de pensamento”, uma doutrina
vigentes para tentar mudá-los a partir de ou uma seita em torno da anarquia e
dentro deles, como fazia com suas
assim inventou mais um “ismo”, o
operações filosóficas.
anarquismo. Contudo, é preciso
ressaltar que tal empreendimento se Referências
deveu também pelos escritos de alguns AVELINO, N. Errico Malatesta – revolta e ética
pensadores/ativistas mencionados nesse anarquista. Verve. PUC-SP, n°4, São Paulo:
grupo de teóricos, sobretudo, referentes out., p. 228-263, 2003.
aos dois últimos citados. A partir do CARVALHO, A. F. de. História e
momento em que sabermos de que subjetividade no pensamento de Michel
maneira e sob quais práticas discursivas Foucault. 2007. 242 f. Tese (doutorado) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
foram possíveis construir o domínio e a Humanas. Departamento de Filosofia,
invenção de objetos, poderemos Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
desfazer as objetivações que criam a
COLSON, D. A filiação de Proudhon. Verve. 25
ilusão de naturalidade e de unidade que PUC-SP, n°9, São Paulo: maio, p. 23-29, 2006.
mascara as diferenças e as
FOUCAULT, M. A poeira e a nuvem.
descontinuidades de tais objetos
In:______. Estratégia, saber-poder: Ditos e
(VEYNE, 1998). escritos – vol. IV. Rio de Janeiro: Forense
Neste sentido, é possível afirmar que o Universitária, 2006, p. 323-334.
estudo do pensamento proudhoniano MARX, K. H. Miséria da filosofia: resposta à
acerca da anarquia elimina o Filosofia da miséria, do Sr. Proudhon. São
Paulo: Expressão Popular, 2009.
reducionismo ligado aos entendimentos
vulgares, às aproximações acadêmicas OLIVEIRA, J. M. Diferenças e aproximações
contemporâneas e aos entre as lideranças radicais francesas a respeito
da democracia revolucionária (1792-1796).
redimensionamentos pelas apropriações Dimensões - Universidade Federal do Espírito
dos ativistas políticos que compreendem Santo, Vol.11, jul/dez, p. 283-291, 2000.
o anarquismo como um objeto
PROUDHON. O que é a propriedade?
relacionado à baderna, à violência Tradução: Marília Caeiro. 2ª edição. Lisboa:
política, ao choque com a moralidade Editorial Estampa, 1975.
instituída e à concepção de revolução ROSANVALLON, P. O liberalismo
compreendida como uma ruptura econômico: história da ideia de mercado.
abrupta e absoluta. Portanto, o maior Bauru, SP: EDUSC, 2002.
problema existente no estudo do ROSANVALLON, P. Por uma história
anarquismo é tomá-lo como um corpo conceitual do político. Revista Brasileira de
coeso de ideias e um conjunto abstrato História. São Paulo, v. 15, n° 10, p. 09-22,
de determinadas práticas políticas 1995.
justificáveis por uma doutrina filosófica SAMIS, A. Os matizes do sentido –
ou por uma ideologia política fictícia. anarquismo, anarquia e a formação do
Entendemos que a invenção de tal vocabulário político no século XIX. Verve.
PUC-SP, n°2, São Paulo: out., p. 40-64, 2002.
doutrina filosófica (batizada pelo nome
de “escola de pensamento”) e de tal STIRNER, M. O único e sua propriedade. São
ideologia política só pôde ser Paulo: Martins Fontes, 2009.
condensada e identificada pela mão dos VEYNE, P. Como se escreve a história e
próprios pesquisadores que recorreram a Foucault revoluciona a história. Brasília:
determinados recursos discursivos de Editora UnB, 1998.
homogeneização para facilitarem seus WOODCOCK, G. História das ideias e dos
trabalhos. movimentos anarquistas - v.1: A ideia. Porto
Alegre: L&PM, 2007.
Recebido: 04.03.2012
Publicado: 12.12.2012

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