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organização
Eliane Cantarino O’Dwyer

Processos identitários
e a produção da etnicidade

Rio de Janeiro, 2013


© Eliane Cantarino O’Dwyer/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2013.
Todos os direitos reservados a Eliane Cantarino O’Dwyer/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida
a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização
dos editores.
Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-373-6

Projeto gráfico e capa Conselho Editorial


Andréia Resende Beatriz Maria Alasia de Heredia João Pacheco de Oliveira
Eliane Cantarino O’Dwyer Laura Moutinho
Diagramação Carla Costa Teixeira Luiz Fernando Dias Duarte
Juliana Jesus Carlos Guilherme Octaviano do Valle Maria Filomena Gregori
Revisão Cláudia Lee Willians Fonseca Mariano Baez Landa
Helô Castro Cristiana Bastos Mario Pecheny
Gustavo Blazquez Patricia Ponce
Produção Editorial Jane Araújo Russo Sérgio Luís Carrara
Thaís Garcez Jane Felipe Beltrão Stefania Capone

Este livro foi viabilizado por recursos do projeto Diverso – Políticas para a Diversidade e os Novos
Sujeitos de Direitos: estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e organizações de governo,
realizado com financiamento da Finep através do Edital de Ciências Sociais 2006 (Convênio Finep/FUJB
nº 01.06.0740.00, REF: 2173/06), coordenado por Antonio Carlos de Souza Lima, Adriana Vianna e Eliane
Cantarino O’Dwyer. Contou também com apoio do projeto “Etnicidade, práticas culturais e formas de
organização social em um contexto regional do baixo Amazonas” (Proc. CNPq:309611/2009-1, Bolsa de
produtividade em Pesquisa), sob a responsabilidade de Eliane Cantarino O’Dwyer.

Esta publicação encontra-se à venda no site da


E-papers Serviços Editoriais.
http://www.e-papers.com.br
E-papers Serviços Editoriais Ltda.
Rua Mariz e Barros, 72, sala 202
Praça da Bandeira – Rio de Janeiro
CEP: 20.270-006
Rio de Janeiro – Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

P956

Processos identitários e a produção da etnicidade / organização Eliane Cantarino


O’Dwyer. - 1. ed. - Rio de Janeiro : E-papers, 2013.
290 p. : il. ; 23 cm. (Antropologias; 12)

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-373-6

1. Etnologia. 2. Etnologia - Brasil. 3. Etnocentrismo. 4. Antropologia. I. O’Dwyer,


Eliane Cantarino. II. Série.

13-05829 CDD: 306


CDU: 316
Às irmãs Cantarino: Ruth, Gilda e Lygia (in memoriam),
uma homenagem da herdeira,
extensiva as minhas tias O’Dwyer.
Lista de ilustrações

Figura 1. Croqui da Terra da pobreza em Alcântara – MA. 50

Figura 2. Desenho do mapa feito pelos militares da Aeronáutica da


área referente às Terras da Pobreza em Alcântara – MA. 51

Figura 3. Foto de uma barraca de mandjácus da Guiné Bissau e Senegal,


na Ilha do Sal, para a venda de produtos artesanais destinados a turistas. 157

Figura 4. Foto da reportagem do jornal A semana : confronto polícias e


mandjácus. 177

Figura 5. Mapa localizando o município de Oriximiná, no Pará, e suas


fronteiras. 208

Figura 6. Navegação de rabeta no Rio Erepecuru. 230

Figura 7. Navegação de rebeta no Rio Erepecuru em Oriximiná – PA. 230

Figura 8. Vida cotidiana em comunidade do Rio Erepecuru, em


Oriximiná – PA. 231

Figura 9. Fabrico da farinha de mandioca. 232

Figura 10. Sede da ARQMO. 232


Sumário

Nota Introdutória
Construções identitárias: nada vem do nada 11
Eliane Cantarino O’Dwyer

Capítulo 1
Nossa Senhora da Conceição e sua proteção à “tapera de preto”
designada “terra da pobreza”: instâncias de afirmação de uma
territorialidade específica 15
Patrícia Portela Nunes
Introdução 15
Terra da pobreza: conflitos, relações e territorialidade 22
Relações, crenças e práticas religiosas: instâncias de delimitação
do “território de parentesco” 45
Bibliografia 52

Capítulo 2
O ritual de iniciação do danhono e faccionalismo entre os Xavante
da T. I. São Marcos 53
Paulo S. Delgado
A casa dos solteiros 55
Estratégias adotadas na produção do ritual 73
Bibliografia 81

Capítulo 3
Tradição, Práticas rituais e afirmação étnica entre os Tuxá de Rodelas:
uma abordagem da cultura enquanto processo 83
Ricardo Dantas Borges Salomão
Uma breve etno-história dos índios Tuxá de Rodelas 84
Práticas rituais e a busca por direitos territoriais 94
O impacto da construção das hidroelétricas de Paulo Afonso e Itaparica 98
Bibliografia 109
Capítulo 4
Dilemas e construções identitárias dos Camba no Brasil: exclusão e
interação em Corumbá 113
Ruth Henrique
Da reorganização das “feirinhas bolivianas” à participação em eventos
públicos como o “Festival América do Sul” 124
Devoção à Nuestra Señora de Urkupiña: fé e festa nos dois lados da
fronteira e a “união” entre Camba e Colla em Corumbá 130
Considerações finais: Camba brasileiros, indígenas, bolivianos e demais
construções identitárias 145
Bibliografia 148

Capítulo 5
Relações interétnicas: cabo-verdianos & mandjácus 151
João Silvestre Varela
Introdução 151
Emigração/imigração e relações interétnicas 151
Duas categorias contrastivas: cabo-verdianos e mandjácus 153
Histórico do afluxo dos mandjácus a Cabo Verde 156
A relação entre os cabo-verdianos e os mandjácus do ponto de vista
dos atores sociais 158
O que designa o termo mandjácu 162
O contexto de interação social 166
As acusações mútuas e as relações com as instituições públicas e
privadas 173
Explicação sobre a discriminação 178
Conclusão 184
Bibliografia 185

Capítulo 6
Erepecuru-Oriximiná: uma rota em movimento 187
Andreia Franco Luz
“Novos Agregados Sociais”: os “remanescentes de quilombos” na
cidade de Oriximiná 194
A Cidade e os Bairros: a dinâmica dos encontros 200
Considerações finais 203
Bibliografia 205
Capítulo 7
Castanheiros, remanescentes
de quilombo, filhos do Erepecuru 207
Joyce Silva dos Santos Drumond Linhares
Entrada no campo 207
O interior é fartura 212
Castanheiros: filhos do rio Erepecuru 218
Considerações finais 228
Bibliografia 233

Capítulo 8
Identidade étnica em situação de fluxo: o caso dos remanescentes de
quilombo em contexto urbano de Oriximiná-Pará 235
Nathalia S. Klein
Bibliografia 243

Capítulo 9
Identidades em movimento: questionamentos acerca de construção
de identidades culturais e étnicas em condições contextuais de
deslocamentos 244
Erick Delgado Ribeiro
Linguagens 246
Identidades 249
Ações Socialmente Implicadas 249
Culturas 250
Identidades 252
Deslocamentos 255
Etnografia 259
Trabalho de campo: condições de entrada 263
Entrada em campo 264
Dinâmicas socioecológicas e ambientais 267
Deslocamentos do Ituqui: as terras caídas 268
Vida em movimento: estratégias e sustentabilidade 270
Preservação, depredação: agências diacríticas 275
Conclusões e considerações finais 279
Bibliografia 284
Nota Introdutória

Construções identitárias: nada vem do nada


Eliane Cantarino O’Dwyer

Esta publicação reune textos de alunos, ex-alunos e atuais colegas, com


os quais convivo academicamente e mantenho interlocução intelectual de
cunho antropológico através do Departamento e Programa de Pós-Gradu-
ação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
Os capítulos desta coletânea são o resultado de trabalhos produzidos
como parte da formação acadêmica para obtenção dos graus de mestre
e/ou doutor em antropologia, assim como monografias de conclusão de
curso de graduação e, ainda, relatórios de pesquisa. A grande diversidade
de situações etnográficas se encontram articuladas por uma agenda de
ensino e pesquisa em antropologia que privilegia a realização do trabalho
de campo, segundo métodos e técnicas da disciplina, e a construção dos
dados empíricos mediante um diálogo estabelecido com a teoria antropo-
lógica na abordagem de temas como identidade, etnicidade, organização
social e cultura, compreendida como formas de significação e modos de
conhecimento.
As pesquisas de campo em contextos socioculturais variados – como
nos casos da comunidade de Canelatiua em Alcântara (MA), dos Xavante
da terra indígena de São Marcos (MT), dos Tuxá de Rodelas (BA), dos
Camba em Corumbá (MT), dos caboverdianos e mandjácus (Cabo Ver-
de), dos remanescentes de quilombo de Oriximiná (PA) e das comunida-
des remanescentes de quilombo do rio Ituqui em Santarém (PA) – foram
acompanhadas de cursos e trabalhos práticos realizados em condições de
elaboração de relatórios e laudos antropológicos completados por leituras
obrigatórias. Gostaríamos de assinalar, principalmente, a contribuição da
literatura antropológica sobre os estudos de etnicidade à compreensão da
questão identitária, presente nas diversas situações sociais investigadas.
Mas a formação dos pesquisadores foi obtida principalmente no campo,
no contato com minhas experiências de pesquisa, inclusive mais pessoal-
mente na introdução de estudantes em condições de trabalho etnográfico.

Processos identitários e a produção da etnicidade 11


Os diversos contextos socioculturais abordados são objeto de análise
e interpretação etnográfica a partir da problemática teórica dos estudos
de etnicidade. A literatura sobre essa temática, centrada nos trabalhos de
Barth, Eriksen, Mitchell, Ulf Hannerz, Cardoso de Oliveira, entre outros,
foi estratégica para a compreensão dos processos de construção de iden-
tidades étnicas e sociais prevalentes nas situações sociais de pesquisa. O
conceito de etnicidade é utilizado como uma propriedade relacional de
sistemas sociais nos quais ocorrem processos de distinção e diferenciação
entre aqueles considerados “de dentro” e “de fora”. As fronteiras entre
grupos e/ou sociedades podem mudar e ser atravessadas, o que permi-
te desconstruir visões essencialistas de cultura como marcador de grupos
étnicos e nacionais. Este conceito é considerado, assim, uma construção
analítica que, igualmente, opera nas situações sociais a partir de processos
de transformação e contextos de interação, nos quais a etnicidade emerge
e torna-se relevante, sendo as noções de distintividade cultural produzidas
e reproduzidas pelos atores sociais (ERIKSEN, 1993).1
Alguns outros pontos devem ser destacados para orientar a leitura e
compreensão destes trabalhos publicados na forma de um livro. As diver-
sas situações etnográficas podem ser relacionadas de modo contrastivo ao
projeto modernizador do “nation building” e às lutas pelo reconhecimento
de direitos territoriais de povos indígenas, quilombolas e populações ditas
tradicionais que têm configurado novas formas de fazer história e se colo-
cam como parte dos dados a serem construídos pelo esforço analítico. As-
sim, as diferentes condições de pesquisa etnográfica descritas nos capítulos
desta coletânea fazem parte de um contexto histórico e social defi nido a
partir dos processos de construção moderna do Brasil como estado-nação,
isto é, os processos do chamado “nation building”, que se fazem presentes
também em outros contextos ditos periféricos, como no caso de Cabo Ver-
de. Nos projetos modernizador e desenvolvimentista do “nation building”,
tanto os empreendimentos capitalistas, quanto o estado e seu aparato ins-
titucional, constituem os dois mais importantes poderes que organizam o
espaço hoje. Porém, se o projeto de construção do estado-nação brasileiro
é considerado “modernizador”, nele estão implicados não apenas os go-
vernantes que tentam implementá-lo, mas aqueles que a ele se opõem em
espaços políticos legais estabelecidos (ASAD, 1993). 2

1 ERIKSEN, T. H. The epistemological status of the concept of ethnicity. Conference paper.


The Anthropological of Etnicity, 1993.
2 ASAD, Talal. Introdução. Genealogies of religion. Discipline and reasons of Power in Cris-
tianity and Islam. Baltmore. USA: The Johns Hopkins University Press, 1993.

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Deste modo, o poder hegemônico não elimina ambiguidades, nem ho-
mogeniza, mas diferencia e classifica práticas, ao defi nir como parte do
projeto modernizador formas de “fazer história”, principalmente após a
Constituinte de 1988, que, segundo estudiosos do direito, institui uma
nova ordem jurídica diversa das anteriores, e inaugura um novo Estado
no Brasil.
Os direitos culturais protegidos pelo Estado brasileiro, no caso dos
“indígenas” e “afro-brasileiros”, e de outros “grupos” (...), com a “valori-
zação da diversidade étnica e regional” (artigos 215 e 216 da Constituição
Federal) têm sido interpretados em conexão com os direitos sobre as terras
indígenas e o reconhecimento a propriedade das terras ocupadas pelos “re-
manescentes das comunidades de quilombos”, neste último caso por meio
das disposições constitucionais transitórias, artigo 68 do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias (ADCT), que disciplinam “situações
concretas”, consideradas “analógas”, porém “distintas”, as quais passam a
fazer parte integrante da Constituição (Decreto 6.040 de 2007).
Essas identidades políticas construídas na relação com o estado na rei-
vindicação de direitos territoriais costumam ainda acionar noções nativas
de cultura e, neste caso, as fronteiras entre os grupos podem parecer arbi-
trárias. Contudo, autores como Eriksen chamam atenção que grupos ét-
nicos e identidades nacionais costumam estar inseridos em redes locais,
baseados no parentesco e na interação social, como também podem ser
culturalmente fundados em crenças religiosas, mitos coletivos ou memórias
de resistência e de humilhações historicamente vividas (ERIKSEN, 2001).3
Sobre a formação consciente ou não dessas identidades coletivas na
atualidade, como a dos remanescentes de quilombo ou quilombolas, que
reivindicam a titulação das suas terras de uso comum, podemos dizer, se-
gundo Eriksen, que “nada vem do nada” e “fortes identidades coletivas são
sempre imersas em experiências pessoais” (idem, p. 50). Assim, de nada
adianta situar essas identidades políticas em um constructo universalista,
pois elas mudam historicamente e variam geograficamente; nem adianta
situá-las na soberania do estado pela imposição de categorias étnicas para
fi ns de governabilidade, mas na vida social, na qual indivíduos e grupos
atribuem significados ao mundo.

3 ERIKSEN, T. H. Ethnic identity, national identity and intergroup conflict. Oxford: Ox-
ford University Press, 2001.

Processos identitários e a produção da etnicidade 13


Por fi m, os textos reunidos nesta publicação pretendem contribuir para
o conhecimento de situações etnográficas nas quais os pesquisadores esti-
veram envolvidos com outras formas de representação e ações sociais de
indivíduos e grupos constituídos não como exemplares de culturas especí-
ficas, mas pelos seus “insights” na vida (BARTH, 1995).4

4 Barth, Fredrik. Other Knowledge and Other Ways of Knowing. Journal of Anthropological
Research, v. 51, n. 1 (Spring, 1995), p. 65-68.

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Capítulo 1

Nossa Senhora da Conceição e sua proteção à “tapera


de preto” designada “terra da pobreza”: instâncias
de afirmação de uma territorialidade específica5
Patrícia Portela Nunes 6

Introdução
Localizadas na área desapropriada pelo governo do Estado do Maranhão em
1980 para implantação do designado Centro de Lançamento de Alcântara
(C.L.A.) e dentro da área estipulada pelos militares da Aeronáutica como “fai-
xa de segurança”7, quatro comunidades, as quais me reporto no presente

5 O presente artigo foi apresentado no GT “Confl itos Ambientais, Processos de Territoria-


lização e Identidades Sociais”, coordenado por Eliane Cantarino O’Dwyer e Flávia Maria
Galizoni, do 33º Encontro Anual da ANPOCS, realizado em Caxambu em outubro de 2009.
Trata-se de um fragmento do segundo capítulo de meu trabalho de tese, da introdução a
este capítulo, no qual busco descrever e discutir o que signifi ca dizer-se morador da terra
da pobreza numa situação de confl ito social intenso que ameaça a reprodução física e social
de uma coletividade de parentes, amigos e vizinhos. Acrescentei-lhe um tópico Relações,
crenças e práticas religiosas: instâncias de delimitação do “território de parentesco” no qual
discuto a pertinência de critérios religiosos na construção do território. Busco destrinçar o
quê constitui a designada terra da pobreza e como ela se constituiu na visão dos agentes que,
implicados em determinado confl ito, são instados a sustentar uma determinada concepção de
direito e levados a se apresentarem como comunidade remanescente de quilombo. Tese esta
intitulada “Canelatiua, terra dos pobres, terra da pobreza: uma territorialidade ameaçada,
entre a recusa de virar Terra da Base e a titulação como Terra de Quilombo”, apresentada
em maio de 2011 ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense.
O ato de tomar um trecho de um trabalho mais extenso e detido e convertê-lo em um artigo
não é nada fácil e traz limites ao texto já que temas e problemas desenvolvidos em outros
capítulos são, no presente artigo, mencionados descolados de uma reflexão mais detida. Bus-
quei, entretanto, referendá-los ao longo do texto mencionando os capítulos da tese dedicados
à discussão de certos temas.
6 Doutora em Antropologia.
7 O Decreto Estadual n. 7.320 de setembro de 1980 desapropriou 52.000 hectares do mu-
nicípio de Alcântara para implantação do dito C.L.A. Ao passar para a instância de decisão
federal são acrescidos mais 10.000 hectares: o decreto presidencial datado de 8 de agosto
de 1991 em seu Art. 1º declara de utilidade pública, para fi ns de desapropriação pela União,

Processos identitários e a produção da etnicidade 15


artigo, foram oficialmente reconhecidas como comunidades remanescentes
de quilombo pela Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura em
2004: Canelatiua, Bom Viver, Retiro e Vila do Meio. Na ocasião a FCP/
MinC reconhece por certificação quase duas centenas de comunidades do
município de Alcântara, no Estado do Maranhão, que se “declaram” e
“autorreconhecem” quilombos8. Dentre estas, as quatro comunidades cita-
das estão localizadas a nordeste do município de Alcântara e fazem parte
de uma localidade designada “terra da pobreza” (ver croqui da área em
Anexo 1).
Tal ato administrativo perpetrado pela FCP/MinC é resultado da ação
de agentes sociais que, objetivados em movimento social, vêm lutando por
seus direitos desde que o governo brasileiro decidiu investir na implan-
tação de uma base de lançamento de foguetes em Alcântara que ficara
inicialmente sob a responsabilidade dos militares da Aeronáutica. Decorri-
dos, no entanto, mais de 30 anos, desde o primeiro decreto de desapropria-
ção, o projeto do governo de investimento em tecnologia aeroespacial foi
modificado em seus propósitos, diretrizes e estratégias de implementação
por inúmeras vezes. Isto traz como consequência certa dificuldade para se
entender, de modo coeso, o conflito no processo de negociação política ao
longo do tempo: apesar de tratar-se de um projeto criado durante o regime
militar, tendo sido implantado pelos militares da Aeronáutica, com a cria-
ção da Agência Espacial Brasileira, em 1994, as ações do governo passam
a ser orientadas por civis.
De outra parte, confrontados ao conjunto dos atos de intervenção gover-
namental direcionado à implantação da base de foguetes, os agentes sociais
passam a organizar-se de forma coletiva e a reivindicar medidas que asse-
gurem sua reprodução física e social. É neste contexto de confronto com os
militares da Aeronáutica que os agentes sociais passam a explicitar as diferen-
tes formas de acesso à terra como estratégia para assegurar os domínios ter-
ritoriais historicamente estabelecidos. Situações referidas a casos de doação,
aquisição, herança, com ou sem formal de partilha, concessão, ocupação ou
apossamento são expressos através de diferentes nomenclaturas relativas aos
domínios territoriais, sugerindo diferentes formas de classificação dos agentes

62.000 hectares deste município; o que corresponde a mais da metade da área deste e atinge
a mais de 2.000 famílias de trabalhadores rurais.
8 Conforme dispõe a Portaria n. 35 registrada no Livro de Cadastro-Geral n. 001 da Fundação
Cultural Palmares, sob o n. 6, em 1º de março de 2004 e publicada no Diário Oficial da União
n. 43 de 4 de março de 2004, Seção 1, f. 7. De acordo com o registro n. 96, f. 100 desta Por-
taria 165 comunidades deste município são beneficiadas pelo Art. 1° da Lei n. 7.668 de 22 de
agosto de 1988, art. 2°, §§ 1° e 2°, art. 3°, § 4° do Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003.

16 Eliane Cantarino O’Dwyer


sobre sua base territorial, tais como: terra da pobreza; terras de herança, terras
de preto e terras de caboclo, terras de santo, terras de santa e terras de santís-
sima (cf. ALMEIDA, 2002).
As ações dos agentes coletivamente organizados convergem para a
criação do Movimento dos Atingidos pela Base Aérea (MABE) em 19999.
Alguns anos depois da criação do MABE, em abril de 2002, dei início
às minhas pesquisas no município de Alcântara. Na ocasião, lideranças
sindicais e ligadas ao MABE estavam mobilizadas com o processo de reco-
nhecimento jurídico-formal dessas comunidades para fi ns de titulação das
terras que lhes correspondem. Tais lideranças recepcionavam o perito de-
signado pela Procuradoria Geral da República e o grupo de pesquisadores
que o auxiliava, agindo como se fossem guias da pesquisa e orientando,
com isso, a perícia antropológica – peça do processo jurídico que assegura
às comunidades quilombolas a titulação defi nitiva das terras, conforme
dispõe o Art. 68 do ADCT da Constituição Federal10. Como integrante
deste grupo de pesquisadores pude conhecer lideranças e agentes adstritos
a causa dos que se colocam como atingidos pela Base11, assim como conhe-
cer diferentes localidades do município – dentre povoados e as designadas
taperas, como são chamados os antigos lugares de residência. Inclinada a
desenvolver uma pesquisa etnográfica em comunidades quilombolas deci-
di, então, concentrar meus estudos na designada terra da pobreza – ao que
me dediquei, ao retornar dois anos depois, ao povoado de Canelatiua. Di-
vidindo meu tempo principalmente entre o povoado de Canelatiua, a sede
de Alcântara e a cidade de São Luís, permaneci por um ano em atividades
de pesquisa de campo.
Como mencionado, os povoados que integram a terra da pobreza estão
situados dentro dos limites fi xados pelos militares da Aeronáutica como

9 Reflexões mais detidas a respeito do confl ito com a base de lançamento de foguetes através
de atos de intervenção perpetrados pelos aparatos de Estado ou das ações dos agentes sociais
organizados em movimento social estão explicitadas na introdução de meu trabalho de tese.
10 O Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal,
promulgada em 5 de outubro de 1988 institui como direito constitucional a propriedade de-
fi nitiva das terras das referidas comunidades nos seguintes termos: “Aos remanescentes das
comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
11 O uso do itálico tem em vista chamar a atenção que tais palavras são usadas como ca-
tegorias de classificação acionadas em determinado domínio de ação: Base, em referência a
Base Aérea, e atingidos, em referência àqueles que se percebem como tendo sido afetados
pelas ações do governo federal relacionadas ao Programa Espacial Brasileiro são usadas como
categorias políticas, referidas ao domínio das relações de enfrentamento e luta por direitos
assegurados por lei.

Processos identitários e a produção da etnicidade 17


“faixa de segurança” da área desapropriada e localizados na área de am-
pliação do CLA12 de modo que o conjunto das famílias, que lá reside, vive
desde 1997 a ameaça de ser deslocado das terras que ocupa há cerca de
dois séculos. Trata-se, pois, de uma situação de conflito social intenso que
ameaça a reprodução física e social desse grupo de famílias.
Nesta situação de confl ito, aqueles que são reconhecidos como por-
tadores da história do grupo e capazes de proceder à narrativa da expec-
tativa de direito dessas famílias recorrem ao que consideram o ponto de
inflexão da história do grupo: a clivagem referida ao acesso do grupo à
terra e a afi rmação da condição de “libertos” em um território que é perce-
bido pelos agentes como livre das grandes plantações – ao que me dedico
a deslindar no presente artigo.
Conforme fui informada pelos agentes sociais, que lá residem, a terra
da pobreza é constituída por cinco povoados e algumas taperas: além das
quatro comunidades indicadas pela Portaria da FCP/MinC, a localidade
de Porto de Aru é também percebida como uma unidade social distinta
das demais sendo considerado um povoado à parte por aqueles agentes
sociais que lá residem e por seus vizinhos mais próximos. Além disso, as
designadas taperas não deixam de ser indicadas pelos agentes sociais como
localidades referidas à terra da pobreza, porquanto sejam por eles conside-
rados como lugares de referência no domínio de suas relações cotidianas.
É o caso de Aru-Grande e Aru-Mirim, Rio de Inácia, Santo Antônio, Janã
e Araraí. Mesmo estando esvaziados de moradores, os agentes não deixam
de manter vínculos com estes lugares, uma vez que seguem utilizando seus
portos como lugar de pesca ou fazendo uso dos recursos naturais disponí-
veis, seja das áreas de babaçuais, juçarais ou de guarimãs ou das árvores
frutíferas aí localizadas. Algumas destas localidades, a exemplo de Santo
Antônio e Rio de Inácia, se colocam na fala dos agentes como referências
de um passado longínquo e distante. Mencionam esses lugares ao falarem
dos designados “velhos”, correlacionando pessoas, lugares e eventos. A
velha Inácia, cujo nome denomina o lugar, fora uma escrava, mas “li-
berta” estabelecera residência nas proximidades de um rio. Zé Medado
símbolo do enfrentamento a quaisquer tentativas de aprisionamento, seja
direcionada ao trabalho escravo ou a formas de recrutamento obrigatório
para prestação de serviço militar, também é originário dessa localidade.
Ninguém jamais conseguiu aprisioná-lo. Narrativas épicas referidas a fu-
gas extraordinárias são atualizadas pelos agentes no presente, como se o

12 O Programa Nacional de Atividades Espaciais prevê a construção de mais 15 bases de


lançamento de foguetes no CLA.

18 Eliane Cantarino O’Dwyer


ato de relatar implicasse em afi rmação da liberdade para os forasteiros e
ensinamento dos chamados “velhos” aos seus descendentes.
Posso adiantar que, resultado da decadência dos senhores de engenho
ou, antes disso, da própria dificuldade de se estabelecer no comércio do
açúcar, a liberdade dos escravos referidos a designada terra da pobreza é
resultado da desestruturação de determinado estabelecimento agrícola que
ocorrera bem antes da Abolição da Escravatura. A esse respeito os histo-
riadores da região registram a dificuldade de inserção no mercado externo
da produção local, descrevendo uma situação que sugere o abandono das
terras pelos então chamados “lavradores”, senhores de engenho e produ-
tores de algodão. Tal dificuldade foi inclusive substantivada e reproduzida
acriticamente pela produção intelectual através da expressão erudita “de-
cadência da lavoura”13.
Em minhas atividades de pesquisa ouvi, repetidas vezes, a expressão
“tapera de branco” em menção a antigos lugares de residência dos desig-
nados “brancos”, fazendeiros do período colonial. Lugares estes que, em
muitas situações, dão lugar no presente às unidades residenciais dos atuais
moradores – a exemplo do povoado de Itapuaua localizado no local da
antiga fazenda Esperança. O qualitativo aqui – “de branco” – especifica
o tipo de tapera a que se referem. Disto, bem poderíamos deduzir, que a
ausência do qualitativo designa lugares de predominância dos designados
“pretos”, e “caboclos”, que secularmente residem e trabalham nesses do-
mínios. Ou seja, quando os entrevistados mencionam as “taperas” eles
fazem alusão a antigos lugares de residência daqueles que secularmente
residem nestes domínios. De acordo com os relatos, a área referente aos
domínios territoriais da designada terra da pobreza nunca fora lugar de
moradia dos brancos propriamente, mas lugar de plantação de cana-de-
-açúcar. A ausência de moradia dos brancos nestes domínios é uma carac-
terística deste lugar. Todavia, o engenho designado Mato Grosso, que se
abastecia da cana-de-açúcar plantada nos domínios da terra da pobreza, é
apresentado no contexto do confl ito com a base de lançamento de foguetes
como evidência da doação cartorial efetuada por seus antigos proprietá-
rios – da qual trato adiante. Trata-se, assim, de um antigo lugar de planta-
ção de escravos e não de um antigo lugar de moradia dos brancos. Nesse
sentido, as taperas citadas pelos entrevistados, referentes aos domínios da

13 A esse respeito consultar: ALMEIDA, A.W.B. A Ideologia da Decadência: leitura antro-


pológica a uma história da agricultura no Maranhão. Rio de Janeiro: Editora Casa 8/ Funda-
ção Universidade do Amazonas, 2008.

Processos identitários e a produção da etnicidade 19


terra da pobreza, bem poderiam ser qualificadas como taperas de preto –
embora tal expressão possa soar para os que lá residem como pleonasmo.
Por ora, ressalto que a relação que os agentes sociais mantêm com as
designadas taperas, no cotidiano das relações ou no âmbito da construção
de uma história própria, sugere que critérios de classificação fundamen-
tados em elementos da ordem física não são suficientes para explicar a
relação que os agentes mantêm com seu território. Isso é, ao incluírem as
taperas no espaço territorial tido como referente à terra da pobreza, os
agentes contrariam a ideia, corrente entre os geógrafos, sociólogos, dentre
outros cientistas sociais, ou mesmo prevalecente no âmbito das decisões
burocráticas que associa a existência de um lugar a dados de fisicalidade,
como se a existência de uma localidade estivesse atrelada à permanência
de certa “população” em certo lugar. As designadas taperas permitem,
assim, colocar em suspenso critérios de análise que orientam aqueles es-
quemas explicativos que, baseados em dados de fisicalidade, atrelam popu-
lações a territórios ao se disporem a discutir e/ou atualizar noções como a
de “terra” ou a de “território”.
A ideia de tapera me pareceu, portanto, deslocar o critério físico de de-
fi nição do conceito de “território” – território defi nido como espaço situá-
vel e delimitável fisicamente – em favor de critérios imputáveis ao domínio
das relações sociais, fazendo lembrar que para além do espaço físico, que
corre o risco de substancializar relações sociais, há outros planos de análi-
se que podem ser acionados como elementos heurísticos para compreender
o processo de territorialização em jogo que autoriza o grupo a acionar a
identidade de morador da terra da pobreza. Ou, mais que isso, que permi-
te ao grupo estabelecer os critérios de defi nição de uma “territorialidade
específica” num contexto de conflito social: a história, a política, a reli-
gião, o parentesco ou os confl itos sociais, dentre outros planos de análise,
são acionados pelos agentes e nos autorizam a compreender o processo de
construção identitária em jogo. O que significa dizer-se morador da terra
da pobreza ou o quê e como ela se constituiu são instâncias de um mesmo
processo e indicativas da elaboração de uma concepção de direito, confor-
me procurarei indicar.
Parte integrante do 2° capítulo de minha tese, proponho-me a apresen-
tar no presente artigo minha compreensão do significado da categoria ter-
ra da pobreza explicitando como se constituiu na versão dos agentes essa
unidade social designada terra da pobreza que tem como referência uma
área delimitada por marcos, as designadas pedras de rumo ou por limites
naturais, facilmente localizáveis pelos agentes através de um antigo povo-

20 Eliane Cantarino O’Dwyer


ado ou de uma velha árvore frutífera, de um porto designado Cajueiro ou
de igarapés (com suas sugestivas designações Rio do Engenho e Pica-Pau),
ou ainda através de limites naturais a exemplo de uma barreira localizável
em um determinado caminho de uso cotidiano dos agentes.
Ao fazê-lo tenho em mente tomar a noção de terrritorialidade como
instrumento de análise que me permite focalizar as interrelações estabe-
lecidas pelos agentes com seus respectivos territórios, considerando os di-
ferentes processos históricos em jogo que autorizam a consolidação dos
diferentes domínios em uma base territorial fi xa. Nesse sentido, a relação
estabelecida por diferentes grupos sociais com uma base territorial fi xa
poderia ser pensada não como algo dado, fruto de uma relação naturali-
zada entre grupos distintos e a apropriação dos recursos ecológicos, mas
como uma construção social relacionada a contextos históricos e proces-
sos sociais distintos. Não se trata, no entanto, de recuperar os diferentes
processos históricos que teriam levado à constituição das diferentes ter-
ritorialidades, mas investigar no presente como o passado é construído,
processado e integrado à trajetória do grupo, seja através das narrativas
dos agentes a respeito da origem dos grupos, seja através do sentido que
conferem no presente à vigência de uma base territorial fi xa como elemen-
to essencial para sua reprodução física e social. De outra parte, tomar a
noção de territorialidade como instrumento de análise não significa cris-
talizar os agentes em seus respectivos domínios territoriais, haja vista que
os distintos planos organizativos autorizam sejam aproximações, sejam
afastamentos, sejam interpenetrações entre as diferentes comunidades. Ou
seja, o que os agentes designam como “comunidade” é estruturado a par-
tir de distintos planos organizativos, conforme pude observar em minha
pesquisa de campo. Assim, por exemplo, Bom Viver em termos do acesso
a serviços médicos ambulatoriais ou formação escolar tem como referência
Canelatiua. Em termos de recinto cemiterial, também tem como referên-
cia Canelatiua, pois é aí que enterram seus mortos. Em termos religiosos
prevalece certa divisão: ou podem servir aos adeptos da chamada cura no
terreiro ou barracão lá localizado; ou no caso dos católicos frequentam
a capela de Canelatiua; ou ainda no caso dos evangélicos a referência é
imputada a Santa Maria. No tocante à construção dos barcos apontam
São João de Cortes como referência. A descrição destes diferentes planos
organizativos me permite colocar em suspenso os limites tradicionais reco-
nhecidos como pertinentes às fronteiras físicas de cada um dos povoados.
Isto posto, meu desafio nesse artigo será o de expor como se constituiu
essa unidade social designada terra da pobreza, explicitando por essa via

Processos identitários e a produção da etnicidade 21


de análise, o que significa em termos identitários dizer-se morador da terra
da pobreza. Isso implica em considerar que, como instrumento de análi-
se, a noção de territorialidade permite colocar em suspenso a coesão de
unidades socais pré-construídas, fundamentadas nas fronteiras físicas dos
agrupamentos sociais, indicando feixes de relações que se estabelecem e se
diluem conforme a circunstância e a época, mas que dão lugar a um sistema
de relações sociais que historicamente legitimou o território de determinada
coletividade. Para além de sua conotação conceitual, a noção de territo-
rialidade é também objeto de investigação e de descrição: como objeto de
investigação irá me importar os elementos de identitários implicados no ato
de se afirmar morador da terra da pobreza num contexto de conflito social;
e como objeto de descrição meu desafio será o de descrever as vicissitudes
do processo de constituição de uma territorialidade específica.
Em desdobramento, busco dialogar com autores referidos a estudos
etnológicos clássicos, que estabelecem uma relação parentesco e territó-
rio. Minha intenção é a de sustentar que a clássica oposição entre ethos
e demos não se presta como instrumento que me permita compreender o
processo de construção dessa territorialidade designada terra da pobreza
ou da identidade de proprietários acionada pelos agentes sociais em face
da situação de conflito enfocada.

Terra da pobreza: conflitos, relações e territorialidade


Ao iniciar minhas atividades de pesquisa em Canelatiua pude notar
que aquele que se coloca como detentor da memória desta coletividade,
o senhor Domingos Ribeiro, costuma apresentar-se na presença daqueles
estranhos que especulam sobre os meios de acesso à terra sempre de posse
de um documento cartorial, datado de 1915. O documento em suas mãos,
neste contexto, simboliza uma forma ritualizada que o Sr. Domingos en-
contra para proceder à expectativa de direitos que sua coletividade guarda
sobre as terras onde residem e trabalham há tantas gerações. O referido
documento faz menção a uma tentativa de usurpação de domínios territo-
riais referidos à chamada “terra da pobreza” pelo então proprietário das
terras denominadas Mato Grosso que fora contestada por um morador do
povoado Retiro em 1915.
Ele parte, assim, de um litígio do passado para dirimir um litígio do
presente. Em sua narrativa apresenta, no entanto, amplo domínio sobre
pessoas e lugares, relações e acontecimentos. Para além do litígio contido
no documento em suas mãos, precisa os lugares de origem de cada mora-
dor antigo e/ou família mencionados, seus sucessivos deslocamentos pelas

22 Eliane Cantarino O’Dwyer


terras do município, seus laços de parentesco – seja através da consangui-
nidade, da afi nidade ou do compadrio –, assim como apresenta controle
sobre a dominialidade dos povoados citados, suas extensões territoriais
correspondentes, precisando inclusive os lugares conhecidos como “terras
de dono”, que lhes são limítrofes e dos quais se distinguem. De sua fala
é possível se depreender a representação dos agentes sobre o processo de
constituição desta unidade social ou sobre os critérios de pertencimento
das famílias que a integram.
Além deste documento o Sr. Domingos Ribeiro conserva em sua re-
sidência o memorial da demarcação solicitada por Virgílio Esterlino de
Azevedo, o pretenso proprietário em questão, a um agrimensor da época.
O acesso a estes documentos se dera em razão do contato que passara a
estabelecer com os dirigentes sindicais a partir de 1972, ano de sua fi liação
ao STTR de Alcântara. Guarda ainda o mapa feito por oficiais da Aero-
náutica no qual a área referente é seccionada em quatro: terras da pobreza
1, 2, 3 e 4 (cf. Anexo 2). A participação em reuniões seja com dirigentes
sindicais, seja com militares da Aeronáutica propiciaram as condições para
que este senhor pudesse ir montando seu “arquivo”; mediadas, ao que me
parece, pela autoridade que dispõe no âmbito de sua própria comunidade
para reivindicar, das autoridades competentes, a posse destes documentos.
Isto é, dentre os moradores desta coletividade ele detém os atributos per-
tinentes à construção dessa posição de porta-voz do grupo em defesa dos
interesses dos moradores destas terras14.
O documento em suas mãos simboliza uma forma de se relacionar
com os “de fora”, os forasteiros que lhe procuram em busca de esclareci-
mentos sobre o acesso destas famílias a este lugar, um meio de comprovar
em termos legais a história contada pelos velhos antigos. Sua explanação
deixa entrever, assim, que dentre os atributos necessários à construção da
posição de narrador da história de sua coletividade, saber ouvir os mais
velhos é elemento indispensável. Eles constituem o arquivo desta coletivi-
dade de parentes, amigos e vizinhos suprimindo as lacunas contidas nos
documentos que conserva. A memória sobre estes velhos, sobre o que con-
tavam, evidencia ademais a extensão de tempo da qual decorre a perma-
nência destas famílias neste lugar.
Este documento faz referência explícita a uma situação de doação de
terras pelo antigo proprietário das terras, Teófi lo José de Barros, que, con-

14 A esse respeito consultar o quarto capítulo da tese, já referida, intitulado “Benzedor,


consertador de ossos, festeiro e padrinho: pontos da rede de relações sociais construída pela
trajetória de um agente.”

Processos identitários e a produção da etnicidade 23


forme complementa o narrador, era “sócio” de um engenho com Fuao
Troça. Consta no referido documento:

“Há tempos immemoriaes que o fi nado Teóphilo José de Barros, que em


uma das cláusulas de seu testamento, generosamente legou à gente pobre
de São João de Cortes uma legua de terra quadrada, que desde então ficou
denominada “Terra da pobresa”, para nela se estabelecerem os pobres e
suas famílias, cultivarem-na, goza-la e tirarem d’ella os fructos para seu
sustento e manutenção. E ste trecho de terra é o que se acham hoje situados
os povoados Retiro, Canelatiua, Araray, Urú, Urú Mirim, Rio de Ignacia
e Santo Antônio, com 65 casas, habitadas por uma população pobre, a
qual com suas famílias se occupa no serviço de pequena na lavoura; sendo
que alli se acham domiciliados, vindos de seus antepassados, há mais de
cem (100) annos. Místicas à terra da “Pobresa” jazem as denominadas de
“Matto Grôsso” outrora de um Fuao Troça, já há muito fallecido e hoje
divididas em cinco quinhões, dos quaes é Virgílio Esterlino Azevêdo pos-
suidor de um, por compra feita a D. Urraca Prado.” (sic).

Complementando o conteúdo do documento o narrador procede ao


relato detalhando acontecimentos, relações de parentesco entre os envolvi-
dos e relações de conflito. Em verdade, ele extrapola seu conteúdo, recuan-
do no tempo ao se referir a um período anterior à instituição do mercado
de terras: “essa terra era dos índios, quando teve a liberação, que liberou
as terras, para os pobres comparem suas posses de terra”. Além disso,
ele especifica as relações de produção e de comércio, referidas a tempos
pretéritos, que nos indicam o tipo e a envergadura do empreendimento
comercial em foco. Isto é, segundo seu relato o engenho de Teófilo e Troça
produzia açúcar, cachaça, rapadura, dentre outros derivados da cana para
abastecer o comércio interno, notadamente Bequimão e Guimarães. Além
disso, o controle do narrador sobre a dominialidade da designada terra da
pobreza não dispensa critérios de competência e saber relacionados ao uso
dos recursos ecológicos. Nesse sentido é que ele parece proceder a um nível
de detalhamento que nada tem de casual, a meu ver: “pra passar o rumo
bem no Rio de Inácia, abaixo de um cajueiro velho que tinha” ou “demar-
cou do cajueiro, no rumo certo, e aqui para baixo foi no rumo do igarapé
por nome pica-pau, igarapé do Retiro, desceu ali rumo adentro foi na beira
de um roçado novo, atrás do Rio do Arú-Mirim, tirou e botou na Barreira
Grande do caminho da ponte, tem uma cruz, pela gruta abaixo, [?], é que
desceu, passou pelo Porto do Aru”. Isto é, ao detalhar os limites físicos da

24 Eliane Cantarino O’Dwyer


terra da pobreza, através de marcos naturais e das intervenções e usos dos
recursos naturais, ele insinua, demarca e especifica um tipo de saber des-
conhecido de agrimensores e engenheiros, e por extensão de autoridades
públicas dentre outros forasteiros. Eis um trecho de seu relato:

Olha, essa terra era dos índios, quando teve a liberação, que liberou as
terras, para os pobres comparem suas posses de terra, uns compraram e
outros tiraram. Então, o Teófi lo José de Barros mais o velho Trocci eram
dois cidadãos, que não eram daqui, mas vieram e compraram essas terras
do Mato Grosso e do Canelatiua. Então, o Teófi lo, como era mais pobre
um pouco, ficou com essa parte do Calobico pra cá. E o Trocci, como era
mais pesado, ficou com a mata do Mato Grosso, uma mata grande. E lá
formaram um engenho de cana. Para fazer garapa, pra fazer cachaça, pra
fazer tiquira, pra fazer o que tivesse que fazer. (...)

E eles compraram essa terra pra eles fazerem aqui o canavial. E tinha os
empregados que cortavam a cana e levavam pro Mato Grosso no carro
de boi, para fazerem lá o trabalho, né? Agora eles preparavam a cachaça,
o açúcar, rapadura, o mel, o que eles podiam fazer. E levavam para o
cajueiro, um igarapé que tem perto da Mãe Eugênia, lá tem um porto, e
tinha um armazém, uma casa g rande, que eles garravam e botavam lá. Aí
iam tran spor tar para o Bequimão, pra Guimarães, pra onde eles encon-
trasse m de vender.

E então, o velho Trocci, dono do Mato Grosso, morreu. Com tempo do


serviço, morreu. Tinha maquinário, motores de fazer. Mas, nesse tempo
os motores não e ram de ferro, era tipo uma e ngenhoca, era de madeira ,
né? (...) Então, quando o velho Trocci morreu, ficou a viúva com os em-
pregados, muitos empregados que faziam o se rviço. E aí ela esmoreceu,
ela ficou com medo. (...) E ela ficou no meio do mato com os empregados,
aí ela botou anúncio que ela queria vender, a parte que era dela, né? En-
tão, a Matilde Azevedo Correia, que era mulher do Manoel dos Passos
Correia, comprou as terras. Aí, ela voltou a palavra, eu vou vender aonde
o meu sócio, se ele botar em venda, eu aceito a venda. Aí ela veio aqui
aonde o Teófi lo, aí chegou e conversou com ele. Ele foi disse: — Olha,
eu não tenho como vender porque não tenho para quem. Eu não tenho
pra quem vender. E tu achou? — Eu achei. — Pra quem tu vai vender
essas terras? — Eu vou vender para D. Matilde. — Ela compra mesmo?
— Compra. — Então, eu não tenho como vender porque aqui, todos do

Processos identitários e a produção da etnicidade 25


meu lugar, são pobres, é um povo vale nte, trabalhador, mas são pobres.
E eu não tenho para quem vender. E se vier outra pessoa, estrangeiro, eu
não vou vender. Então, o que eu posso fazer é ir ao c artório de Alcânt ara
e tirar um a petiç ão e doar para o meu povo, o meu povo trabalhador, d a
minha ter ra . (...)

Aí e foi no cartório, mais a Uraca e a Matilde e vendeu do Calobico pro


de São João para Matilde de Azevedo Correia mais o Inácio Azevedo
Correia, que era fi lho dela. E deixou, do Calobico, no Rio do Engenho,
e na Cruz do caminho da ponte, do Aru Mirim, ele deu para o povo do
lugar dele, adoou, deixando de lembrança que tinha dado pra esse povo,
sofredores, do mesmo lugar dele. (...)

Então, nesse período, tinham cidadão, lá no Retiro, por nome José Ma-
noel A zevedo, ele tinha 52 anos, ele soube bem dessa situação. Aí, foram
indo, foram indo, foram indo, o Virgílio não tinha terra, era irmão da
Matilde, eram dois irmãos, mas ele não tinha terra. Aí ele disse: — Me
vende um pedaço de terra. Ela disse: — Eu não mando as terras, eu tenho
marido, quem pode saber isso é Manoel. Aí ele foi falou com ele: — Olha,
eu não vendo as terras pra ele, mas se ele me der uma ponta, nós faz negó-
cio. Aí ela voltou, veio e disse pra ele: — Olha, Virgílio, Manoel disse que
se tu der uma ponta para ele, ele faz negócio contigo. Aí ele deu, ele deu
uma ponta pra ele, do caminho de São João Velho pro [?] pra Virgílio, e
ficando do caminho de São João pro rumo da Ponta da Areia pra ele. Ele
não vendeu, ele deu o recibo da troca da ponta, mas não deu papel gran-
de. Então, aí, passados os tempos, o Manoel morre, o velho, marido da
Matilde. Como morreu, ele como irmão, ficou como fosse o proprietário
das terras. Aí ele entendeu, o que ele entendeu de fazer? Tomar as terras
toda, essa terra aqui que era do Teófilo e bota sse dentro da que e ra de
seu Manoel Cor reia, pra passar o rumo bem no Rio de Inácia, abaixo de
um cajueiro velho que tinha.

Aí, José Manoel que era do Retiro, cidadão morador, nascido e criado
com 52 anos, aí ele protestou, que ele não aceitava aquela demarcação.
Aí, brigaram, brigaram, brigaram e chamaram um engenheiro pra ir de-
marcar a terra. Aí ele veio, botou a máquina dele, demarcou do cajueiro,
no rumo certo, e aqui para baixo foi no rumo do igarapé por nome pica -
-pau, igarapé do Retiro, desceu ali rumo adentro foi na beira de u m ro-
çado novo, atrás do Rio do A rú-Mirim, tirou e botou na Barreira Grande

26 Eliane Cantarino O’Dwyer


do caminho da ponte, tem uma cruz , pela gruta abaixo, [?], é que desceu,
passou pelo porto do Aru, e ficou as terras, aqui para nós e de lá para
D. Matilde. A í terminou essa questão. Então, nesse tempo eles brigaram
muito. E aí ficaram as terras dos Cor reia e a te rra da pobreza. Elas eram
irmães.

(DOMI NGOS RAMOS RIBE IRO;


Entrevista: 2 de julho de 2002)
(grifos meus)

Ter-se-ia, assim, certa especificidade na designada “terra da pobreza”,


em relação ao conjunto dos povoados circundantes, que me interessou estu-
dar mais detidamente. Ao ressaltar os termos da doação cartorial o senhor
Domingos explicita a condição de proprietários das terras para aqueles be-
neficiados pelo testamento de Teófi lo José de Barros. É a construção desta
condição de proprietários em oposição seja às chamadas terras de dono ou
terras dos Correias, limítrofes à terra da pobreza, seja ao modo como são
classificados por diferentes instâncias de poder que me interessou analisar.
Segundo o documento citado, a doação das terras teria ocorrido em
“tempos immemoriais”. A indicação precisa da data ninguém sabe ao cer-
to, mas na memória do narrador as moendas de cana, movidas a tração
animal, constituem uma boa indicação apresentada aos forasteiros.
O documento do registro de terras, datado de 1856, que localizei no
Arquivo Público em São Luís também fornece uma pista: se as terras foram
registradas há esse tempo, em cumprimento à Lei de Terras de 1850, então
o engenho do qual falavam os velhos é anterior a esta data, ao menos as-
sim poderia ser especulado – documento este hoje incorporado ao arquivo
que o narrador mantém em sua casa. Apesar dos documentos que lhe che-
gam às mãos fornecerem algumas informações novas, para o narrador o
estatuto do documento está subordinado ao saber transmitido pelos mais
velhos, à memória da coletividade; sua função é simplesmente a de atestar
sua narrativa para aqueles forasteiros que buscam comprovações a respeito
de uma história que não lhes pertence, a história de seus ascendentes e dos
ascendentes de seus amigos e vizinhos.
Por essa via explicativa, o narrador prossegue seu relato fornecendo
laços de parentesco, relações de afinidade ou compadrio entre as famílias
beneficiadas com a doação. A referência a cada nome de família é sempre
imputada ou imputável a um lugar. Assim, além de correlacionar os nomes
das famílias com os povoados que o forasteiro em questão viu pelo cami-

Processos identitários e a produção da etnicidade 27


nho, ele ainda faz referência aos designados moradores antigos, os velhos
referidos às taperas da terra da pobreza – aos antigos lugares de residência,
como mencionado anteriormente.
O parentesco pareceu-me representar, assim, uma forma de interlocu-
ção que o grupo através da figura do narrador encontra para dialogar com
aqueles interessados nos meios através dos quais o grupo teve acesso ao
seu território. Ou seja, é através das relações de parentesco que o narra-
dor expressa o pertencimento das famílias àquela comunidade. E ao assim
proceder revela a expectativa de direito do grupo em relação à terra. Não
acredito ter sido outra a razão para a disponibilidade deste senhor dedicar
tantas horas do seu dia a me fornecer relações de parentesco que recupera-
vam, por vezes, sete gerações de uma mesma família.
Os diagramas que estruturei relativos a tais relações eram uma forma
de documentar, através da prodigiosa memória deste narrador, os intrica-
dos laços de parentesco que unem os moradores da terra da pobreza15. E,
através deste trabalho em parceria, o narrador, que não deixa de ser um
arquivista, teria mais um documento a acrescentar ao seu arquivo: um do-
cumento referido à relação entre um determinado grupo de famílias e uma
propriedade, que traduz uma determinada expectativa de direito.
De minha parte, com meu propósito de organizar em diagramas aque-
las relações de parentesco tive a oportunidade de ter acesso a narrativas
pertinentes do ponto de vista das histórias locais. Ao largo de qualquer

15 Não é tão fácil, para mim, precisar os critérios de seleção que utilizei para organização
destes diagramas em razão da quantidade de material e do tempo que levei para organizá-los.
Iniciei-os em 2002. Mas somente em função do alargamento de meu tempo de permanência
em campo, em 2004, pude realmente estruturá-los. Para tanto foram necessárias muitas idas
e vindas, isto é coletava os dados, levava-os para São Luís, organizava-os, sempre com a aju-
da de um designer gráfico (muitos percalços também para encontrá-lo) e retornava a fi m de
verificá-los. Nisto fui acrescentando outros tipos de dados de forma a estruturar diagramas
que transcenderam as relações de parentesco. Acrescentei, sempre que possível, dados referi-
dos a “lugar de procedência” e “lugar de residência” o que autorizava a entrever os desloca-
mentos sucessivos de um mesmo agente dentro e fora da terra da pobreza e ainda, quando a
referência me era feita, dados sobre a ocupação profi ssional: os marinheiros, os carpinteiros,
os músicos e as parteiras foram referências constantes, posto que as ocupações de trabalha-
dor rural ou pescador figuravam como pré-dados. Ao realizar estes diagramas pude perceber
o fluxo dos agentes pelos povoados da terra da pobreza e também para fora dela. Passei então
a observar e a me interessar sobre os diferentes sentidos que os agentes atribuem à mudança
de lugar físico – que trato no capítulo 3 da tese. No âmbito das relações de parentesco, inclui
e distingue as relações entre pais e fi lhos de criação, discernindo o tipo de vínculo entre estes,
se baseados em laços de sangue ou não. Os diagramas que organizei dispondo e expondo
estes dados são apresentados na segunda parte do segundo capítulo da tese intitulada “Terra
da pobreza como território de parentesco”. Ao todo, organizei 57 diagramas, agrupáveis em
três conjuntos distintos conforme tratei neste capítulo.

28 Eliane Cantarino O’Dwyer


interesse historiográfico, a referência constante a acontecimentos e pes-
soas me pareceu se constituir em uma instância de afi rmação identitá-
ria daqueles agentes. Assim é que através da lembrança sobre os confl itos
do passado os agentes afi rmavam sua condição de “libertos” e a recusa
à escravidão manifesta na imagem de comerciantes ativos, marinheiros
experientes, carpinteiros navais renomados, pescadores e, notadamente,
trabalhadores agrícolas.
Uma primeira aproximação que eu poderia sugerir em relação ao sig-
nificado atribuído ao parentesco é a de que através dele os agentes sociais
articulam dois operadores. Em primeiro lugar, a afi rmação dessa identida-
de de morador da terra da pobreza não implica num problema de direitos
originários. Isto é, os agentes pontuam que originalmente as terras teriam
pertencido aos índios, mas não afi rmam se tratar de terra de índio, nem
tampouco que sejam descendentes dos índios. Conforme tratarei mais à
frente os índios aparecem nas narrativas como tendo se deslocado para
outros municípios da baixada maranhense, sempre em direção ao oeste.
Este tipo de colocação sugere uma dimensão de construção dos vínculos
de parentesco indicados pelo porta-voz do grupo, não se tratando assim da
atualização de critérios primordiais relacionados a tribo, religião, casta ou
parentesco. Nesse sentido, os agentes apresentam laços de parentesco que
são construídos a partir desta identidade de proprietários da designada
terra da pobreza conforme se apresentam em face do confl ito com a Base
e em face da relação com o Estado brasileiro; ou dito de outro modo, que
está em processo de construção especialmente para aqueles que passam a
representar os interesses da comunidade em fóruns e debates fora de seu
povoado de origem.
Em segundo lugar, o parentesco traduz a relação que os agentes estabe-
lecem com os dispositivos legais, indicando, com isso, a prevalência de uma
relação “para fora” – a posse e a conservação dos referidos documentos
indicam a manutenção desta relação. Poder-se-ia considerar que a relação
com os dispositivos legais já está dada desde o registro paroquial de 1856:
pelo registro se estabelece a relação entre um determinado grupo de famí-
lias e uma terra registrada. A legislação colonial os defi nia, no entanto,
como “pobres”. Hoje, ao acionarem essa identidade de morador da terra
da pobreza não se autodefi nem através da categoria “pobre”. Apropriam-
-se dela para fazer valer a doação que lhes fora concedida no passado, mas
se colocam como comunidade remanescente de quilombo.
Em termos teóricos isso implica em desconsiderar o “isolamento social
e geográfico” como elemento pertinente para a manutenção das fronteiras

Processos identitários e a produção da etnicidade 29


do grupo. A noção de “isolamento” atualizada no campo da antropologia
para pensar o problema da diversidade cultural é, no entanto, proveniente
de outros domínios da produção do conhecimento. Como coloca Tornay,
a noção de isolamento é tomada de empréstimo do conceito de isolats
consoante a defi nição da genética humana. O conceito foi também utili-
zado por geógrafos e demógrafos em referência ou a uma dada situação
geográfica (ilha, vale de montanha, dentre outras situações correlatas) ou
a uma especificidade técnica e econômica (referida a ausência de ligação
com o mundo exterior). Os chamados isolats constituíam uma espécie de
laboratório onde poderiam ser realizados experimentos com “populações
humanas”. A ideia de isolados humanos atraiu ainda o interesse também
da etnologia orientando os estudos sobre “parentesco”16. Barth indicou
ainda seu uso na conceituação tradicional de grupo étnico: o isolamento
foi considerado como fator de preservação cultural consoante os esquemas
interpretativos que estabeleciam uma relação de equivalência entre “raça”,
“cultura” e “língua” (BARTH, 2000, p. 28). Tratar-se, portanto, de uma
categoria pré-construída que reproduzida acriticamente por diferentes es-
quemas interpretativos apresenta-se como autoevidência.
Em referência ao campo da produção intelectual regional essa ideia
de isolados humanos foi endossada por historiadores, geógrafos, médicos
e linguistas. A esse exemplo poderiam ser citadas as pesquisas realizadas
na década de 1980 pelo médico Olavo Correia Lima e o linguista Ramiro
Azevedo em municípios do interior do Estado onde identificaram os cha-
mados “isolados negros maranhenses”. Correia Lima empregava, à época,
inclusive técnicas de medições cranianas, mas os resultados obtidos nun-
ca coincidiram com o que esperava para uma “etnia com uma negritude
dérmica praticamente igual à que existia nas senzalas do século XIX”.
(LIMA, 1986, p. 7). Ele dialoga com Nina Rodrigues ao estabelecer uma
distinção entre “quilombos voluntários”, em referência ao que este de-
signou metaforicamente como Tróia Negra e “quilombos involuntários”,
foco de suas pesquisas. Estes últimos corresponderiam a “aqueles agrupa-
mentos formados espontaneamente por ex-escravos pós-abolição que fica-
ram isolados por muito tempo, mantendo-se porem pacíficos e ignorados
pelo governo”. (LIMA, 1986, p. 3). Correia Lima congrega, no entanto, a
antropologia física à antropologia cultural de forma a conceber os grupos
que pesquisa como “isolados negros” porquanto “...tiveram a oportuni-

16 Sobre a noção de isolats e sua apropriação por estas diferentes disciplinas consultar:
TORNAY, Serge. 1980. O estudo do parentesco. In: COPANS, J. et al. Antropologia: ciência
das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70, 1980.

30 Eliane Cantarino O’Dwyer


dade de melhor conservar a cultura” (LIMA e AZEVEDO, 1980, p. 7).
Os critérios de ordem cultural eram somados aos de natureza lingüística,
consoante as pesquisas realizadas por Ramiro Correia com o objetivo de
avaliar o grau das modificações semântico-fonêmicas das “populações”
estudadas. O isolamento é assim concebido como fator de preservação cul-
tural e a cultura como elemento de definição destes “isolados negros”, em
conformidade com a conceituação tradicional de grupo étnico.
Do que pude observar e reunir de informações em meu trabalho de
campo não me pareceu que essa ideia de isolamento seja acolhida pelos
agentes sociais. Muito pelo contrário: seja por meio das relações que man-
tém, ou já mantiveram, com a cidade e a sede, relações de comércio ou
de relações de parentesco, seja por meio daquelas mantidas com o código
legal os agentes parecem estar sempre sinalizando para as relações estabe-
lecidas com o mundo exterior. E é por meio destas relações que afi rmam
sua identidade de morador da terra da pobreza e que constroem a ideia
de uma territorialidade própria distinta daquelas que lhe são limítrofes: o
contexto referido à doação cartorial que facultara o acesso destes agentes
a uma base territorial fi xa e delimitada; as relações de conflito em dife-
rentes contextos históricos que suscitara ora avanços ora retrocessos com
relação a essa base territorial; as relações com os povoados vizinhos sejam
de parentesco e afi nidade, sejam de comércio, sejam com relação ao uso
dos recursos ecológicos; tudo isto corroborou para a consolidação e reco-
nhecimento perante os povoados vizinhos de seus domínios territoriais. As
próprias crenças e práticas religiosas reafi rmam simbolicamente os domí-
nios territoriais posto reforçarem relações entre os Santos protetores e as
distintas comunidades, assim como reforçam laços de parentesco, amizade
e vizinhança intercomunitários. Não me pareceu, portanto, que o territó-
rio, que os agentes tomam como referência, seja percebido como resultado
de certo grau de isolamento mantido com relação à sociedade envolvente.
Mas da narrativa dos agentes sociais depreende-se que ele se afi rma atra-
vés de diferentes domínios de relações sociais que os agentes são levados a
estabelecer para “fora”.
O documento da doação pareceu-me, portanto, se constituir em um
dos elementos tomados para marcar a diferença desta territorialidade. Isto
é, é através dos termos da doação que os agentes constroem sua posição de
proprietários. Situações similares a esta podem ser observadas no municí-
pio de Alcântara. Os atuais moradores do povoado de Itapuaua, por exem-
plo, estão referidos ao avô do Sr. Antônio Tó, o Sr. Antero, que herdou
as terras, por doação dos proprietários da Fazenda Esperança referidos à

Processos identitários e a produção da etnicidade 31


família Araújo. Além disto, de acordo com os entrevistados o pai da Sra.
Andreza, irmã do Sr. Antônio Tó, comprou uma parcela de terras após a
abolição. Trata-se, no entanto, de uma situação em que a doação das terras
não fora registrada em cartório levando os agentes ao pagamento de foro
a pretensos herdeiros, o que nunca ocorrera com relação aos moradores da
chamada terra da pobreza. O trabalho de campo realizado por Cynthia
Martins em Itapuaua evidenciou uma situação de disputa entre aqueles
que se consideram herdeiros de direito e aqueles que se apresentam como
herdeiros legais, isto é que se apresentam como parentes da pessoa que é
identificada como herdeira da família Araújo: a Sra. Glades Silveira Sena.
Disputa esta que se plasma no problema referido ao pagamento de foro a
estes pretensos herdeiros: segundo os agentes, em períodos de grande pro-
dução agrícola eles foram obrigados a pagar foros elevados, em períodos
de queda da produção este tributo era reduzido e atualmente os agentes
recusam-se a pagá-lo, afi rmando sua condição de herdeiros legítimos das
terras (MARTINS,1998, p. 18). Em outras situações os agentes aparecem
como adquirindo terras por compra a exemplo do Sr. Eloy Antônio Sá
cuja aquisição se refere a terras que integram o povoado de Baixa Grande
e deixadas como herança aos fi lhos. Nesse sentido, as situações referidas
a casos de doação, casos de herança e casos de aquisição convergem para
a construção da posição de proprietários contrastando com situações de
usufruto.
Compulsando o livro de registro de terras referentes à freguesia de São
João de Cortes o que se observa é que o registro da doação aos “pobres”,
datado de 1856, não é feito em nome de uma única pessoa, mas atrela
o nome da pessoa beneficiada à sua família. Um total de 51 famílias é
arrolado neste registro como beneficiadas pelo testamento do antigo pro-
prietário. Isto sugere que a concepção de proprietário aparece aqui con-
dicionada pela família: trata-se, no entanto, de uma situação em que um
grupo de famílias foi beneficiado com a doação em distinção às situações,
mencionadas acima, em que os laços de parentesco são estabelecidos em
referência ou a um herdeiro ou àquele que adquiriu terras por compra.
Nesse sentido, a propriedade, objeto da doação, registrada em nome dos
“pobres do lugar”, pertence na visão dos agentes aos descendentes desse
grupo de famílias beneficiadas pela doação; pertence pois a comunidade de
parentes, amigos e vizinhos referidos à designada terra da pobreza. Acio-
nam, para tanto, os princípios jurídicos referidos à legislação colonial para
a construção da ideia de propriedade ou para a afi rmação da identidade
de proprietários.

32 Eliane Cantarino O’Dwyer


O sentido de propriedade aí atualizado é distinto do sentido de pro-
priedade privada que tem lugar com a instituição do mercado de terras no
sistema capitalista (BOHANNAN, 1967, p. 51-60). A propriedade deste
grupo de famílias não se constitui num bem passível de ser comercializado
ou dividido em parcelas de terras que possam ser distribuídas para cada
grupo familiar. A área delimitada por marcos constitui, na visão dos agen-
tes, uma propriedade pertencente ao conjunto das famílias beneficiadas
com a doação. A terra é percebida como comum, já a roça e o quintal
pertencem a cada unidade de trabalho familiar. Os agentes estabeleceram
regras de uso comum dos recursos naturais que autoriza cada unidade
de trabalho familiar a fazer uso das designadas capoeiras livremente: a
cada ano estas procedem à escolha da área de plantio botando picada nos
terrenos usualmente nos meses de setembro e outubro para as designadas
roças de inverno e em julho para as designadas roças de verão. Evitam
roçar por dois anos consecutivos num mesmo terreno e o roçado novo é
plantado usualmente em frente do roçado velho seguindo sempre deter-
minado rumo, em direção noroeste. Os entrevistados afi rmam que assim
procedem a fi m de garantir a preservação do solo. O período de pousio em
Canelatiua já chegou a 16 anos, hoje no entanto este período já se reduziu
para algo em torno de 10 anos. A percepção de que os recursos ecológicos
estão se contraindo com os anos leva os agentes a recusarem qualquer
iniciativa voltada a divisão da área correspondente à terra da pobreza em
lotes individuais. Eles consideram que com os recursos que dispõem para
o plantio e a quantidade de famílias de cada um dos povoados não seria
possível manter o mesmo nível de produção. Assim procedem com relação
ao uso dos recursos ecológicos, já a construção das moradias é submetida
a uma outra lógica: todos aqueles referidos às famílias beneficiadas com a
doação tem direito de construir suas casas em qualquer terreno livre dos sí-
tios dos diferentes povoados mesmo que dele se ausente por algum tempo,
mas, uma vez construídas, as casas podem ser negociadas, compradas e
vendidas, entre aqueles tidos como herdeiros ou que já aderiram ao grupo
de alguma forma – seja por relações de afinidade ou de parentesco, seja
obtendo a autorização dos mais velhos para lá viverem. Ou seja, o que é
percebido como passível de negociação são as benfeitorias, os investimen-
tos dispensados à construção das edificações demais benfeitorias relativas
ao quintal (que fazem parte das moradias) e não a terra propriamente dita.
Combinam assim o uso comum dos recursos ecológicos e a apropriação
privada de bens.

Processos identitários e a produção da etnicidade 33


Além disso, no contexto de oposição com a Base essa identidade de
proprietários das terras onde residem e trabalham também está posta ao se
dizerem referidos a um mesmo território étnico e se apresentarem como co-
munidade remanescente de quilombo, haja vista que o art. 68 do A.D.C.T
prescreve como direito a “propriedade defi nitiva” da comunidade para as
terras de quilombo. A resignificação da identidade de morador da terra da
pobreza para a identidade de comunidade remanescente de quilombo que
passam a adotar encontra na identidade de proprietário um denominador
comum. Isto difere de outras situações em referência ao território étnico de
Alcântara caracterizadas pelo usufruto da terra a exemplo do que se ob-
serva no povoado Samucangaua17. O Sr. Gonzaga, liderança do povoado,
e tido como um dos mais velhos de sua comunidade, com 77 anos à época
da entrevista, ressalta a condição de usufruto para as designadas terras do
santíssimo:

Entonces, aí esses portugueses quando chegaram, eles tinham condição,


eles foram matando várias áreas de terra para eles, porque tinham con-
dição, eram forte, tinham poder de fazer isso. E agora, essas terras que
eles não desmataram, então foi ficando aqui assim como é esta, terra do
estado. Entonces, os caboclos e os índios foram se afastando, mas foi fi-
cando descendência. E aqui este Samucangaua aqui, justamente é em des-
cendência dos índios. A maior parte quando saíram dos caboclos foram
descendo para o Itauaú, Pacuri, São João de Cortes, tudo mais, aí as fa-
mílias negras foram encostando também aqui. Somente com a escravidão

17 Em 31 maio de 2004 estive em Samucangaua, Iririzal e Ladeira atendendo a um convite


do Sr. Servulo Borges. Este, como liderança do MABE, havia recebido a época um questio-
nário da Fundação Cultural Palmares a ser aplicado nas comunidades que se autodefi niam
como “comunidade remanescente de quilombo”. A aplicação deste questionário apresentou-
-se às lideranças como um instrumento de aplicação do conjunto das regras normativas fi xa-
das em cumprimento ao Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamentava o
“procedimento para a identificação, reconhecimento, delimitação, de marcação e a titulação
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo
68 do ato das disposições constitucionais transitórias”. Em menos de uma semana, por oca-
sião da visita da procurada desta Fundação a Alcântara, as lideranças políticas e sindicais
se recusam a submeter o questionário às comunidades, entendendo que ele desconsiderava
o conjunto das comunidades que já haviam se colocado como remanescentes de quilombo,
inclusas no laudo pericial, concluído no ano anterior. Ademais, ao ser aplicado comunidade
a comunidade a aplicação do questionário poderia resultar na exclusão das comunidades que
não estivessem devidamente enquadradas nos quesitos que o questionário encerrava. De todo
modo, pego de surpresa e pela urgência em ter que entregar os formulários para a procurado-
ra que chegaria em 5 de junho para participar da audiência pública com o relator da ONU, o
Sr. Borges chegou a aplicar os questionários nestes três povoados. Ao fi m do dia percebera a
impossibilidade de o fazer para as 133 comunidades restantes e já inclusas na perícia.

34 Eliane Cantarino O’Dwyer


em Jerijó, tinha escravatura de Esperança, tinha escravatura de Flórida,
tinha escravatura de Santa Rita, tinha escravatura de Mutiti. Entonces, os
portugueses foram se acabando, foram morrendo. Então os negros foram
se aproximando. As famílias dos portugueses acabando tudo, entonces
aqueles povos que eram escravos foram ficando, tomando de conta como
dono. E sem nunca ninguém ter comprado essa s terras. As terras eles
chegaram, marcaram para ali. Agora se tem de herança, os que vão mor-
rendo na frente, vai deixando para os que ficam. É assim que é a história.
E aqui o negro todo o tempo sofrendo. Todo o tempo sofrendo. Entonces,
nós era para ter o quê? Por que não é só aqui no Maranhão. E hoje nós
estamos todo mundo liberto, entonces diziam: ah! foi a princesa Isabel
que liberou os negros, alforriou os negros e tudo isso. Mas não, pelo me-
nos para cá, não é assim como vejo contar. Porque o negro teve de sair
de uma fazenda e procurou um mocambo e ali foi chamando os outros.
Nas horas mortas ele ia e roubava numa fazenda. Então, ele já tava com
uma maioria de negro. Entonces, ele ameaçou guerra. E a princesa, que
já estava um tanto comovida, então ela resolveu liberar os negros. E é por
isso que os negros se acham hoje cada qual fazendo sua agriculturazinha
para si e vivendo da maneira que pode.
(...)
Depois que só de, quando chega lá debaixo do mangueiral, lá fazia um
rumo da terra do Samucangaua, chamavam Santíssimo aqui. Terra do
santíssimo. Hoje é terra do estado, declara como terra do estado. Mas,
antigamente, eles vinham com esse negócio de Santíssimo.
(...)
Agora pra aí, é terra do Mutiti, é terra do Jarucaia e é terra do Jerijó.
Justamente, onde tinha mais fazendas sentadas dos portugueses, quando
vieram, marcando aqueles quarteirões de terra para eles e essas terras
nunca ninguém comprou. Entonces, chegaram e cercaram o tanto que
entenderam. Então é assim, esse povo ninguém comprou nada. Agora de
lá para cá muitos já vem comprando, né? Comprando deles, da mão deles,
muitos já foram comprando. Porque essa terra aqui ninguém comprou de
Deus. Deus preparou e deixou para nós. E como ela pode ter dono?

(GONZAGA; Entrevista: 31 maio de 2004)


(grifos meus)

O território referente ao povoado de Samucangaua é considerado, por


aqueles que lá residem e trabalham, como relativo a terras que nunca fo-

Processos identitários e a produção da etnicidade 35


ram passíveis de compra e venda. Na interpretação destes agentes nem
mesmo as terras referidas às fazendas dos chamados portugueses teriam
sido por eles compradas. Estes ao chegarem simplesmente puseram cercas
delimitando a área de suas fazendas; sendo apenas com saída destes por-
tugueses que as terras de suas fazendas entram para o mercado. As terras
de Samucangaua, no entanto, jamais deram lugar a estabelecimentos agrí-
colas como os engenhos ou as fazendas de algodão, comuns em Alcântara
durante algumas décadas dos séculos XVIII e XIX. Segundo nosso infor-
mante, antes das famílias negras para lá se dirigirem ela havia sido ocupa-
da por índios e caboclos, os quais as teriam deixado como herança tendo
partido em outras direções. A terra fora deixada como descendência, na
visão dos agentes, muito embora não se percebam como descendentes des-
tes. Os laços de parentesco são estabelecidos com as famílias de escravos
referidas às fazendas daquela região. A entrevista como deste senhor deixa
entrever, assim, que em situações de usufruto o conceito de propriedade
é posto em cheque, sendo deslegitimado como instrumento que assevere
direitos aos agentes.
Em contrapartida, ao localizar o “registro da declaração de terras per-
tencentes aos pobres” no Arquivo Público, em São Luís, tive a possibili-
dade não apenas de disponibilizá-lo aos moradores da designada terra da
pobreza, como pude contar com a interpretação do Sr. Domingos sobre o
teor deste documento. Tão logo retornei a Canelatiua, em uma pequena
reunião na sala de sua casa na presença de sua esposa, de seu fi lho mais
velho, o delegado sindical do povoado, e de Neta procedemos à leitura des-
te documento. Compulsando o documento percebemos que as 51 famílias
beneficiadas estão referidas a 24 títulos ou sobrenomes.
Utilizando-se de expressões como gente daqui, famílias daqui ou fi-
lho do lugar, o Sr. Domingos procedeu à separação entre os sobrenomes
que efetivamente pertencem a esse lugar e os que são por ele identificados
como referidos a outras localidades; precisou nome por nome, família por
família quem daquela lista que eu lia para ele foi beneficiada pelo testa-
mento do S. Teófi lo José de Barros. Para tanto, o critério por ele acionado
é remetido aos atuais moradores: são estes que em sua visão autorizam a
interpretação adequada daquele documento. Sugere, deste modo, que o
parentesco é construído do presente, isto é, são os laços de parentesco que
entrelaçam as famílias desta comunidade no tempo presente que informam
sobre o pertencimento destas famílias a este lugar ou que informam sobre
as famílias beneficiadas com a doação. Enquanto eu citava um determina-
do nome referido a certa família ele procedia às correlações: “era gente de

36 Eliane Cantarino O’Dwyer


Romana” ou “era gente do velhão Raimundo Serejo, era dessa família” ou,
de forma mais pontual “era gente daqui”. Para certos títulos sua fala era
taxativa: “não era gente daqui”; para outras a exemplo da família Araújo
que consta referida na relação deste documento sua fala é explicativa, con-
forme o trecho da entrevista abaixo:

Domingos: antes que teve isso. Porque olha, a senhora me deu ontem
aquele papel que fala famílias, que eu me lembrei hoje na roça, essa famí-
lia era dos pretos de Itapuaua, lá, o pessoal de lá é só desse título.
Patrícia: qual é? Araújo?
Domingos: Araújo! É, é só esse título. Eu acho que nessa mistura, eles
vieram, né? Aí quando a pegação terminou, eles ficaram por ali, pelo Aru,
pelo mato, porque que aí tudo era mato.
Patrícia: mas a D. Maria dos Remédios, mulher de seu Hilton, tem Araú-
jo. Mário tem Araújo.
Domingos: sim, mas é de lá.
Delina; veio de lá
Patrícia: como é que é? É Bento Araújo?
Domingos: não, Bento é Diniz.
Patrícia: B ento é Diniz? E de onde vem o A raújo de Mário?
Domingos: a Raimunda.
Patrícia: a Raimunda era a avó dele?
Domingos: avó dele, mãe de Helena. E Helena é Araújo e teve Maria,
Maria Araújo teve esse A raújo.
Patrícia: e Mário foi criado pela Helena, pela avó. E a mãe dela é que
chamava Raimunda?
Domingos: Raimunda Araújo.
Patrícia: e essa Raimunda era de lá?
Domingos: era de lá, de lá veio pra Pepitiua, da Pepitiu a veio pra cá.
Araújo é só de lá. Para cá não tem Araújo. Agora, a Maria de seu Hilton,
ela é A raújo, mas ela foi dada para uma família que é Sá e Azevedo.
Patrícia: mas, a Dionísia, a mãe dela é Araújo?
Domingos: é Araújo. É fi lha da Raimunda Araújo. Eram três fi lhas, Dio-
nísia, Maria e Helena, da Raimunda mais Bento. Agora Bento era Diniz,
era irmão de Raimundo Camum, pai de A lfredo que chamava Bizagal. O
Bento era tio de Alfredo, irmão do pai de Alfredo. Era Bento, era Manuel,
que era Manuel Velho, era Camum, João Cação e Francisca.
Patrícia: Diniz.
Domingos: Diniz.

Processos identitários e a produção da etnicidade 37


Patrícia: mas eles não eram do Cajueiro, não? A família Diniz?
Domingos: não, não, não. Eles eram do Araraí, da família Diniz A zevedo,
que lá tinha uma família Diniz e uma Azevedo, lá no Araraí. A família de
A ntônio Cândido era Diniz e a família de D. Matilde era Azevedo, Aze-
vedo e Correia, ela era Azevedo e casou com um Correia, ficou Matilde
Azevedo Correia, tá vendo?

(ENTREVISTA: 29/01/2004).
(grifos meus)

Intrigado com a referência da família A raújo no registro de terras de


1856, o Sr. Domingos é capaz de desenredar a colocação de membros desta
família na designada terra da pobreza, seja através dos laços de afi nidade
ou parentesco, seja através das situações de conflito que constituem uma
história particular a exemplo da chamada “pegação”.
A explicação oferecida à presença da família Araújo nestas terras evi-
dencia o domínio do narrador sobre as interrelações suscetíveis de serem
observadas entre famílias e povoados: a despeito dos laços de afi nidade
autorizarem o estabelecimento de relações de reciprocidade positiva entre
agentes referidos a diferentes domínios territoriais, permitindo o trânsito
dos agentes entre os diferentes povoados, os nomes de família são imputá-
veis a determinados lugares e atrelados ao acesso das famílias a determi-
nadas terras.
Nesse sentido, a doação é percebida como limite que torna legítima a
propriedade de certo número de famílias sobre a chamada terra da pobre-
za, mas ela não inibe a presença de membros de famílias referidas a outras
unidades de ocupação e residência. As relações de parentesco ou de afini-
dade, tanto quanto o controle que elas suscitam, podem ser consideradas
como instâncias de construção dessa territorialidade específica: a terra da
pobreza. Isto é, a construção desta territoridade não inibe os vínculos da-
dos pelo casamento, por exemplo, mas também não dispensa o controle
sobre eles de forma a permitir aos agentes proceder à distinção entre as
diferentes famílias tidas como “de dentro” ou “de fora”, insinuando com
isso que a designada terra da pobreza é percebida como uma modalidade
específica de territorialidade. Modalidade esta que bem pode ser traduzida
através da noção de “território de parentesco” 18, na medida em que seja

18 Tomo aqui a expressão utilizada por: COMERFORD, J. C. Como uma família: sociabi-
lidade, reputações e territórios de parentesco na construção do sindicalismo rural na Zona
da Mata de Minas Gerais. Tese (Doutorado em Antropologia) – PPGAS – Museu Nacional

38 Eliane Cantarino O’Dwyer


no âmbito de suas relações cotidianas, seja no âmbito das relações com o
dispositivo legal, os agentes acionam critérios de percepção e discernimen-
to que os permite traduzir as ligações de parentesco em representações es-
paciais. Em se tratando das relações que mantém com o código legal, este
controle sobre a distribuição espacial das diferentes famílias nos diferentes
lugares evidencia, ao que me pareceu, a atualização de um discurso de
direito que é acionado pelos agentes através das relações que eles mantém
“para fora”.
Este discurso é acionado em face da situação de confl ito e sinaliza para
o entendimento que dispõem das expectativas de direito do grupo. Neste
contexto os agentes são levados a acionarem elementos de discernimento
que hierarquiza a comunidade, cindindo-a em dois blocos: aqueles tidos
como “de dentro”, os designados filhos do lugar e aqueles tidos como “de
fora”, que aderiram ao grupo. Trata-se de um discurso acionado no âmbito
das relações que os agentes mantêm com o código legal e que traduz uma
determinada expectativa de direito. O discurso “para dentro”, no entanto,
me pareceu ser mais inclusivo porquanto não exclua as famílias provenien-
tes de outros lugares; incorporando todos os que lá residem, seja por laços
de parentesco, afi nidade ou adesão, assim como aqueles que, a despeito
de residirem fora, têm a terra da pobreza como referência. Ou seja, tal
discurso soa como inclusivo porquanto não exclua as famílias provenien-
tes de outros lugares, assim como pode incluir inclusive não-residentes, a
exemplo dos parentes que residem fora.
O papel em punho sempre que instado a dirigir-se a forasteiros indica,
ainda, que o narrador ao dirigir-se àqueles que consultam a sua memória
não apenas seleciona nos acontecimentos do passado os elementos perti-
nentes para proceder à sua narrativa, mas dentre estes privilegia situações
de confl ito referidas há tempos pretéritos. A história e o confl ito – ou a his-
tória dos conflitos – são elementos tidos como pertinentes para falar sobre
si, isto é, sobre o grupo que ele representa. O narrador incorpora, assim, às
narrativas a descrição das relações de confl ito com aqueles tidos como an-
tagonistas históricos do grupo. Sugere, por essa via de interpretação, que a
identidade do grupo de parentes é indissociável da situação de confl ito face

– UFRJ. Rio de Janeiro, 2001. Na presente pesquisa privilegiaremos um possível enfoque su-
gerido por essa expressão com referência a um padrão de ocupação observado: residências e
locais de trabalho daqueles que se consideram parentes autorizam a associação pelos agentes
sociais dos nomes de família a determinados lugares, delimitando um território de parentes-
co, independentemente da existência de laços de consanguinidade. Estes territórios incluem
além de parentes (consanguíneos e afi ns), amigos, vizinhos e aqueles que aderiam ao grupo
que mantém entre si laços de reciprocidade positiva.

Processos identitários e a produção da etnicidade 39


aos dispositivos legais, seja no contexto atual em face da desapropriação
das terras onde residem e cultivam, seja no contexto referido ao litígio de
1915. O confl ito evidencia assim uma relação “para fora” sugerindo que
as identidades, seja de morador da terra da pobreza, seja de comunidade
remanescente de quilombo são construídas no âmbito de uma relação.
A construção dos laços de parentesco também não dispensa os víncu-
los (consanguíneos ou de vizinhança) com aqueles que viveram no tempo
da chamada pegação, como nomeiam as formas de recrutamento obriga-
tório em cumprimento às exigências das legislações coloniais que impu-
nham a prestação de serviços militares. Conforme os relatos os filhos dos
moradores eram procurados por soldados para servir à guerra. Para se
esquivarem do recrutamento, eles se escondiam no mato ou metiam-se por
baixo das saias das mães. O tempo de duração da guerra não se sabe ao
certo, mas há uma indicação através destes fi lhos que ainda jovens eram
escondidos nas matas por seus pais e só deixavam seus esconderijos em
idade avançada. A despeito de possíveis imprecisões, a expressão “pegado
a cachorro no mato” atualizada para descrever o contexto referido a pe-
gação sugere a vigência de atos de imobilização da força de trabalho que
bem poderiam estar dispersos no tempo histórico mas referidos a uma
mesma posição de subordinação. Expressão esta também atualizada no
contexto referido às chamadas “reduções” de forma a denotar os atos de
aprisionamento de índios para a constituição dos aldeamentos dos jesuítas
na região. O mais significativo nos relatos sobre a pegação pareceu-me
ser o seu reverso: a afi rmação da liberdade numa sociedade escravocrata.
Figuras heróicas não se ausentam destas narrativas, sempre há aquele que
como Raimundo Torres escapava a todas as tentativas de aprisionamento.
Sob certa perspectiva, essas narrativas podem ser lidas como uma afi rma-
ção simbólica da condição de “libertos” em um território autônomo, livre
das grandes plantações, como sugeriu Laís Mourão em Pão da Terra ao
se dispor a estudar, como assinalou mais recentemente Eliane O’Dwyer, o
“campesinato livre comunal”19.

19 Apesar de realizada na década de 1970, a pesquisa de Laís Mourão só foi publicada mais
recentemente, em 2007. O prefácio da antropóloga Eliane O’Dwyer chama atenção para a
atualização do conceito antropológico e objeto da pesquisa da autora: “campesinato livre
comunal”, de forma a nos indicar a especificidade do material etnográfico que essa mono-
grafi a apresenta: “Em o Pão da Terra o leitor poderá reconstituir a problemática teórica dos
estudos do campesinato e questões relevantes de análise sobre a economia familiar campo-
nesa, diferenciação interna do campesinato e ricas informações etnográficas relacionadas às
situações de terras de santo” (O’DWYER, 2007, p. 17). Mourão registra assim um contexto
histórico anterior ao confl ito social referido à implantação da base de lançamento de foguetes
em Alcântara que sugeria a prevalência de um “campesinato livre” (MOURÃO, 1975, p. 45),

40 Eliane Cantarino O’Dwyer


A esse respeito vale observar que as iniciativas da coroa portuguesa
e dos governadores provinciais para consolidar as lavouras de algodão
e cana-de-açúcar no município de Alcântara sugerem o estabelecimento
de empreendimentos agrícolas que tiveram dificuldade para manter sua
produção no mercado externo. O incremento às atividades agrícolas, sub-
vencionado pela mencionada Companhia Geral de Comércio, somado às
condições propícias do mercado externo, em razão do curto período em
que os Estados Unidos deixa de exportar algodão, durante as lutas pela
Independência (1783) corroboram, certamente, para tornar o Maranhão
o segundo maior centro exportador deste produto na colônia, em fi ns do
século XVIII. Os proprietários das fazendas de algodão localizadas em
Itapecuru e em Alcântara foram os principais beneficiados neste processo.
Não obstante, o início do declínio destas ocorra tão logo cessem os sub-
sídios desta Companhia, em função de sua falência em 1778, e tão logo
retome os Estados Unidos seu lugar no mercado internacional. Ademais
os preços do algodão no mercado externo tendem a declinar, atingindo
em 1819 a sua mais baixa cotação de mercado. A conjuntura do mercado
externo impede os produtores maranhenses de manter a posição de segun-
do maior exportador de algodão da colônia. A ameaça de falência leva-
-os, inclusive, a adotar como estratégia a venda de escravos para o sul do
país, decretada a extinção do tráfico de escravos em 1846. O mercado do
algodão só volta a apresentar condições mais favoráveis com a Guerra de
Sessão (1861-1865), pois a ausência da produção norte-americana elevou
os preços no mercado externo.
O mesmo poderia ser pensado em relação ao designado “ciclo do açú-
car” durante o Império. No caso deste produto, os comentadores regionais
são levados a eleger como “período áureo” o fi m do século XIX, entre 1873
e 1882, quando a indústria açucareira maranhense teria adotado o modelo
da plantation em conformidade à costa nordestina. Tem-se, no entanto,
o registro de apenas um único engenho central no Maranhão: o engenho
São Pedro localizado nas margens do rio Pindaré; que, segundo Viveiros,
só começa realmente a funcionar em 1884 (VIVEIROS, 1954, p. 535). E,
no fi nal da década de 1880, segundo o historiador Jerônimo de Viveiros a
desvalorização da “fazenda agrícola maranhense” chega a 90% levando os
proprietários a venderem 70% dos engenhos de cana (VIVEIROS, 1954,
p. 557- 558), evidenciando assim que os lavradores não mantiveram por
muito tempo esse engenho central. As iniciativas no sentido de retomar

caracterizado pela ausência de controle ostensivo por aqueles que foram seus antagonistas
históricos no contexto das grandes plantações.

Processos identitários e a produção da etnicidade 41


a lavoura canavieira na província de Alcântara remetem, no entanto, à
administração do governador Joaquim Franco de Sá: filho do sesmeiro
Romualdo Franco de Sá, defi ne como política de governo a implantação
de engenhos de açúcar. Os incentivos creditícios facultaram à instalação
de 12 engenhos nas duas décadas seguintes que inclusive substituíram a
tração animal pela máquina a vapor como incremento à produção. Para
tanto, com o fi m da guerra da balaiada (1841), o governo provincial teve
como objetivo retomar a disciplina de trabalho nas fazendas. Esta política
de governo implicara num conjunto de medidas de repressão aos quilom-
bos cuja implementação ficara a cargo dos Guardas Campestres, Juízes
de Paz e Capitães do Mato. A baixa do preço do produto no mercado
internacional não permitiu aos produtores de açúcar do Maranhão susten-
tarem minimamente a concorrência no mercado externo, dominado pelas
Antilhas 20.
As narrativas sobre a pegação e os heróis eleitos pela lembrança de fei-
tos memoráveis constituem, a meu ver, atos de afi rmação da percepção que
o grupo guarda de si: seja em relação às políticas de governo da sociedade
colonial para retomar a disciplina do trabalho, seja em relação às atuais
medidas de desapropriação das terras, os agentes afi rmam uma situação
de construção de um “campesinato livre” (MOURÃO, 1975, p. 45) 21. Por
essa razão, é que ter um parente na designada terra da pobreza implica na
afi rmação da ideia de um território autônomo livre das grandes plantações
que na prática sempre eximiu os agentes de pagar foro a pretensos donos.

20 Segundo Celso Furtado, a lei de 1739 reserva o mercado inglês para o açúcar produzido
pelas colônias da coroa britânica. Para este autor, justamente pelo fato desta lei ter garantido
o monopólio do mercado inglês aos produtores de açúcar das Antilhas, que foi possível aos
produtores brasileiros recuperarem alguns mercados. A retroação do mercado de açúcar no
decorrer do século XIX, no entanto, coloca a produção brasileira em desvantagem face à
concorrência com as Antilhas (FURTADO, 1970, p. 89).
21 Não se trata, contudo, simplesmente de considerar a formação do protocampesinato es-
cravo referido à plantation, conforme as considerações de Sidney Mintz (1992), isto é, a
situação social enfocada não remete àqueles núcleos de produção agrícola, observados dentro
da plantation, que possibilitavam a produção autônoma dos escravos em parcelas de terras,
seja para a própria subsistência, seja para a comercialização. Em referência ao processo de
constituição dos povoados de Alcântara, pode-se aventar a ocorrência desta autonomia fora
dos limites estritos das fazendas de algodão e cana baseadas na monocultura e no trabalho
escravo, uma vez que a capacidade coercitiva dos mecanismos repressores da força de tra-
balho variando de intensidade na colônia ou no império e o processo, lento e gradual, de
desagregação destas unidades de produção econômica facultaram situações de acesso à terra
e de autonomia produtiva que se deram em épocas diferentes; há áreas de colonização antiga
e áreas de colonização mais recente.

42 Eliane Cantarino O’Dwyer


Ao detalhar a expectativa de direito da coletividade a qual pertence,
o Sr. Domingos Ribeiro explicita, portanto, a correlação entre dois argu-
mentos distintos: o argumento jurídico não dispensa as relações de pa-
rentesco que entrelaçam as famílias beneficiadas pela doação. Conforme
exposto, o plano jurídico é acionado pelos agentes sociais como dimensão
constitutiva dessa unidade social designada terra da pobreza. Ele é perce-
bido como uma forma de legitimar a dominialidade sobre a qual se tem o
registro cartorial da doação do antigo proprietário aos então designados
“pobres”. Sob esta ótica, a doação informa e conforma o território que os
agentes têm como referência, tanto quanto delimita o universo daqueles re-
conhecidos como herdeiros. Se o critério jurídico é acionado para explicar
o que constitui essa unidade social, as relações de parentesco ao revelarem
o pertencimento das famílias herdeiras àquele lugar informam sobre como
se constitui essa unidade social.
Considerando tais argumentos como instâncias centrais no discurso do
narrador desta coletividade de parentes, amigos e vizinhos, tanto quanto
condição sine qua non para a compreensão da construção da identidade
de morador da terra da pobreza, busco desenvolver de forma mais detida
estes argumentos em outro texto (na sequência do segundo capítulo da tese
já mencionada) relacionando-os a construção de uma percepção de direito
num contexto de conflito que autoriza os agentes a se afi rmarem como
comunidade remanescente de quilombo. De outra parte, ainda me detenho
nas relações de parentesco que me autorizam a pensar a designada terra
da pobreza como um “território de parentesco”, intencionando com isso
tratar estes dois argumentos como instâncias de análise que me permitam
descrever as vicissitudes da terra da pobreza enquanto uma territorialidade
específica, cujo território é bem circunstanciado, defi nido e determinado e
não “distribuído, fragmentado ou partilhado” como quis sugerir o mapa
da terra da pobreza produzido pelos militares no qual ela aparece cindida
em quatro áreas: terras da pobreza 1, 2, 3 e 4 (ver Anexo 2).
Busco, por ora, me concentrar no significado que me parece estar sub-
jacente na atualização destes argumentos pelo porta-voz dos interesses
desse grupo de parentes beneficiados com a doação, significado esse que
sustenta e legitima a própria ideia de terra da pobreza: isto é, como se
dizer morador da terra da pobreza significasse dizer-se proprietário de
terras que foram doadas num passado longínquo. Trata-se da afi rmação
da identidade de proprietário muito mais que a simples reprodução do mo-
delo de propriedade privada dominante haja vista que nas práticas e nas
representações a concepção de propriedade em jogo em tudo difere deste

Processos identitários e a produção da etnicidade 43


modelo: conforme expus, trata-se de uma apropriação coletiva das terras
que foram doadas que, mediada pelo conceito de “família”, autoriza inclu-
sive situações de adesão de membros ou famílias não reconhecidas como
beneficiadas pela doação.
Assim é que diante de uma situação de conflito na qual os agentes
sociais se veem implicados e são instados a sustentar uma concepção de
direito, eles negam e rejeitam a classificação de posseiros que lhes é atri-
buída pelas autoridades militares: “a terra é da pobreza” – pertencendo
às famílias beneficiadas pela doação cartorial. Acionam por essa via um
sentimento de pertencimento que se distingue da posse e se aproxima da
ideia de propriedade. Nesse sentido, opõem-se à classificação como pos-
seiros, utilizada pelas autoridades militares responsáveis inclusive por des-
locamentos compulsórios de “população” em fi ns da década de 1980. Po-
voados inteiros, situados no litoral, foram deslocados para as designadas
“agrovilas”, sem acesso ao mar. De acordo com a ação dos militares na
área desapropriada aqueles por eles considerados “posseiros” teriam direi-
to apenas e unicamente a indenizações das benfeitorias. Mas para aqueles
que se percebem como beneficiados pela mencionada doação o direito em
jogo é o da “propriedade da terra” e ao acionarem o direito constitucional
assegurado pelo artigo 68 do ADCT negam inclusive a obrigatoriedade de
sair das terras em face da desapropriação estatal. Pareceu-me, pois, que
nessa situação de confl ito eles acionam categorias da dominação, como
“proprietários” e “propriedade”, como estratégia para sustentar uma con-
cepção de direito.
Além disso, ao organizar em diagramas os laços de parentesco das
famílias beneficiadas pela doação registrada em cartório, fornecidos pela
memória daquele que detém a competência e a autoridade para exercer
a função de narrador da história desta coletividade, era como se estivés-
semos, eu e meu informante, organizando os laços de parentesco, e por
extensão de afi nidade, entre aqueles que detêm o direito de propriedade as-
segurado pelo termo da doação porquanto listávamos aqueles tidos como
beneficiados pela doação – ou, mais precisamente e de modo inverso, a
partir da referência às famílias tidas como “de dentro” e que lá residem no
presente, meu informante fornecia os laços com a geração que se beneficiou
com a doação. Sob certa perspectiva, era como se listássemos os herdeiros,
aqueles com direitos de proprietários assegurados pela doação das terras.
Um trabalho em parceria, mas com divisões de tarefas estabelecidas, e que
me autorizava a pensar em termos de um território de parentesco.

44 Eliane Cantarino O’Dwyer


Isto posto, não creio que a leitura dos diagramas que organizei possa
ser feita a partir de uma análise que se utilize de prenoções cristalizadas
pelos esquemas interpretativos através da oposição entre ethnos e demos.
Uma plêiade de autores poderia ser elencada como referidos a certa tra-
dição teórica que operando com estas prenoções atualiza pares de opo-
sição conceituais que demarcam a oposição entre etnia e território como
“solidariedade orgânica” e “solidariedade mecânica” de Durkheim (1893),
“comunidade” e “sociedade” de Tönnies (1947) ou “societas” e “civitas”
de Morgan (1877).
Nesse sentido, poder-se-ia considerar que dentre os agentes sociais que
se percebem como atingidos pela Base, aqueles que se dispõe a recapitular
os contextos referidos à doação, herança e aquisição como meio de equa-
cionar o conflito em que se veem implicados, são levados a acionarem um
sentimento de pertencimento que os aproxima da identidade de proprietá-
rios e os afasta da identidade de posseiro.
Inscrito no contexto da doação a um grupo de famílias o conceito de
proprietário subjacente à ideia de terra da pobreza é, no entanto, condi-
cionado pelo de família de forma a indicar que a oposição entre família e
território, ou entre o ethnos e demos, não se sustenta aqui, já que os laços
de parentesco são construídos a partir da identidade de proprietário. Por
essa via de análise, a situação empírica descrita sugere uma dimensão de
construção dos laços de sangue que deslegitima abordagens fundamenta-
das em concepções essencialistas ou primordiais: o sangue em si e por si
só ou critérios de origens que sustentam argumentos primordialistas não
são suficientes para entender o processo de territorialização que autoriza
uma coletividade de parentes, amigos e vizinhos a legitimar uma doação
cartorial.
Pelo exposto entende-se que o ethnos aqui acionado transcende à opo-
sição ethnos e demos e assumi uma conotação situacional já que há uma
dimensão de construção que se opõe ao “sangue” como elemento dado
pela natureza e associa-o ao demos, indicando, portanto, que a construção
dos laços de parentesco é indissociável do território.

Relações, crenças e práticas religiosas: instâncias


de delimitação do “território de parentesco”
Pensar a designada terra da pobreza como território de parentesco me
permitiu tratar a unidade social ora descrita sem reduzi-la ao critério do
território ou, por oposição, ao critério do sangue, conforme tratado por
autores clássicos do pensamento social, acima referendados. As relações

Processos identitários e a produção da etnicidade 45


de parentesco, aliança e amizade que entrelaçam as famílias tidas como
beneficiadas pela doação cartorial, que assegura no presente o direito des-
tas famílias sobre as terras onde residem e trabalham, permite-nos colocar
em suspenso limites rigidamente demarcados que estabelecem fronteiras
intransitivas entre os territórios historicamente constituídos. A própria
concepção de tapera, acima tratada, relativiza uma concepção de fronteira
tão rigorosamente fi xável quanto as que delimitam as cercas de uma fa-
zenda. Ou seja, quando pensamos em termos de territórios de parentesco
os limites entre eles são bem mais fluídos, porosos e tênues, sugerindo que
a unidade social dada a priori tanto apresenta uma dimensão situacional
já que os laços de sangue são construídos no presente, quanto as frontei-
ras sociais dessa unidade social se constituem, se dissolvem e se refazem,
incessantemente.
Estamos, sob este prisma, referidos à análise das relações sociais co-
tidianas. As relações de parentesco e aliança dão forma a este território,
conforme argumentei acima – e busco aprofundar em minha tese. Entre-
tanto, se buscamos compreender os critérios que defi nem as fronteiras
sociais entre as territorialidades específicas atingidas pelo conflito com a
base de lançamento de foguetes de Alcântara, somos levados a considerar
outros elementos, para além dos imputáveis a dados de fisicalidade, que
condensam populações a territórios.
As relações mantidas com os Santos e/ou com a realização das fes-
tas consagradas aos santos bem denotam os vínculos estabelecidos entre
comunidades e santos, povoados e santos, famílias e santos, festeiros e
encarregados e santos, ou ainda fiéis e santos. Nesse sentido, os laços ce-
lebrados com os Santos por comunidade ou por povoado bem podem ser
considerados como estratégias de manutenção das fronteiras sociais do
grupo posto que eles reforçam e dão visibilidade a estas fronteiras. Em Ca-
nelatiua, povoado central da terra da pobreza, a festa celebrada anualmen-
te é dedicada a Nossa Senhora da Conceição. No povoado Retiro Santo
Antônio é o santo de referência para as famílias que organizam a festa. Em
Marudá, povoado localizado fora das terras da pobreza, a festa celebrada
anualmente é a de São Sebastião. No Peru Velho, povoado hoje deslocado
para uma agrovila, muito se celebrou a festa de Nossa Senhora da Con-
ceição. Cada povoado possui um santo de referência e a ele dedica uma
festa anual, de acordo com o dia do santo, contribuindo para a vigência
de um calendário de festas de santo que reúne fiéis e famílias de diferentes
localidades. A fama de uma festa corrobora com a fama do povoado, tanto
quanto com a reputação da família e/ou festeiro que se responsabilizou

46 Eliane Cantarino O’Dwyer


pela realização da festa em dado ano. Assim, as famílias que possuem a
obrigação de fazer acontecer a festa de Nossa Senhora da Conceição são
aquelas imputadas pelo narrador da história do grupo como famílias “de
dentro”, isto é, aquelas que beneficiadas pela doação cartorial são reco-
nhecidas como pertencentes a este lugar. Nesse sentido, ano após ano os
Serejo, os Ribeiros, os Saraiva, os Ferreiras, vinculados a famílias antigas
dessa localidade, alternam-se no comando dos festejos dedicados a Nossa
Senhora da Conceição.
Inversamente, a reputação de um encarregado se constitui conforme
a sua capacidade de gerir e fazer acontecer diferentes festas em diferentes
localidades. Cada povoado estabelece suas próprias regras para a realiza-
ção anual das festas, mas o saber portado por um encarregado de festas é
coextensivo aos povoados considerados como vizinhos. Isto habilita que a
reputação de um encarregado se fi rme através do exercício de suas funções
em outras festas de sua região.
Na comunidade de Canelatiua, por exemplo, tem sido constituída uma
comunidade voltada exclusivamente para organização desta festa e integra-
da por certas famílias do povoado, membros destas famílias ou por parentes
residentes em outras localidades, notadamente em São Luís. Apesar de seu
caráter interino e da natureza descontínua de sua composição, a comunidade
da festa se coloca como uma instância de interação entre os designados juízes,
encarregados, mordomos e tesoureiros e demais membros que dá lugar a um
conjunto de práticas e crenças religiosas específicas. Para além destes vínculos
e funções desempenhadas por estes funcionários religiosos durante eventos
extraordinários como os festejos de Nossa Senhora da Conceição, há na prá-
tica cotidiana competências religiosas distintas que validam a autoridade dos
designados pajés, feiticeiros, benzedores, consertadores de ossos habilitados a
tratar de males físicos e espirituais. Estes funcionários religiosos são capacita-
dos a realizar a mediação entre os homens e o universo de seres sobrenaturais,
caracterizado por uma dispersão de seres: espíritos de mortos, distinguíveis
entre espírito de luz e “encosto” (espírito mal), encantados, distinguíveis
entre entidades que circulam por matas, poços, rios e igarapés a exemplo
da Mãe D’água e outros, que habitam a Pedra de Itacolomi, e são incor-
porados pelos pajés durante as designadas sessões de cura, ocorridas nos
terreiros ou barracões em dias de festa de tambor de mina, dentre outros.
A designada comunidade da festa não comporta, portanto, a totalidade
dos vínculos referidos ao domínio religioso, mas em minhas práticas de pes-
quisa colocou-se como uma via de acesso para perceber que crenças e práticas
religiosas podem se constituir em uma dimensão significativa e estratégica

Processos identitários e a produção da etnicidade 47


da etnicidade, como no caso dos sacacas nas comunidades remanescentes
de quilombo de Oriximiná (O’DWYER, 2002). Assim, de minha parti-
cipação na Festa de Nossa Senhora da Conceição só tive de acesso à versão
oficial dos agentes: seja pela observação direta, seja pelas conversas informais
e posteriores entrevistas, os agentes se dispunham a me narrar a versão cató-
lica da festa ou a me explicar sua logística. A despeito disto, pude perceber
crenças e práticas relacionadas ao universo de pajés, feiticeiros e benzedores.
Inadvertidamente, vim a saber que a limpeza da Capela, que receberia a visita
do padre da paróquia de Alcântara, era instruída por um benzedor da região;
assim como não pude deixar de participar dos comentários feitos sobre uma
mulher que, por influência de maus espíritos, teria desacatado sua mãe du-
rante os festejos – eventos extraordinários como as festas de santo parecem
ser percebidos como palco privilegiado para atos, desavisados como este, que
sugerem a atualização de certas crenças religiosas. Pareceu-me que, do ponto
de vista dos fiéis, são tênues os limites que separam a religião ortodoxa destas
outras crenças e práticas, conforme sugeriu Ginzburg ao tratar da repressão à
feitiçaria pela Inquisição mondenense (GINZBURG, 1989, p. 33); trata-se de
uma espécie de cadinho de crenças religiosas, conforme sugere este autor, que
me pareceu importante investigar.
Haveria, no entanto, uma distinção a ser estabelecida entre o silêncio man-
tido a forasteiros e os segredos mantidos entre àqueles que se tem como iguais
– neste domínio, do ponto de vista de um pajé ou de um benzedor certos se-
gredos podem ser lidos como gerenciamento de um tipo de conhecimento que
confere poder e autoridade àqueles que dele são portadores; à semelhança dos
sacerdotes de culto de mistérios da Nova Guiné, observados por Barth (2000,
p. 144).
Em minha pesquisa de campo percebi, contudo, que não é nada fácil pe-
netrar nesse universo. Nas entrevistas que realizei, as falas referidas à expec-
tativa de direito do grupo face ao conflito ou sobre os aspectos relacionados à
organização social, econômica ou cultural pareceram-me sempre mais diretas
e fluentes do que aquelas referidas a certas crenças e práticas. Cedo percebi
que há coisas sobre as quais não se fala, especialmente a forasteiros. Antes de
considerar esta minha dificuldade com algum tipo de desaprovação à minha
presença na área, creio ser necessário questionar-me sobre as razões para este
silêncio. Pergunto-me até que ponto esta recusa em tratar de certos assuntos
religiosos não estaria relacionada ao fato de que todas as práticas religiosas
não ajustadas àquelas dos colonizadores europeus tiveram que ser silenciadas
por mecanismos de repressão seja do poder clerical, seja dos poderes institu-
ídos; ou, inversamente, até que ponto o silêncio mantido sobre o exercício de

48 Eliane Cantarino O’Dwyer


tais práticas não se constituiu num artifício para a sua manutenção e preser-
vação. Antes de interpretar este silêncio como espécie de conformismo ou pas-
sividade, creio que podemos considerar que através dele encontra-se todo um
jogo paciente coalhado por sortilégios, subterfúgios, magias e encantados –
como bem registraram os resultados das pesquisas realizadas pelo Movimento
Negro do Maranhão, em Alcântara22. Aqui também Ginzburg me serviu de
inspiração, ao atentar para uma dimensão ainda pouco estudada a respeito
da feitiçaria, considerando-a como uma arma de defesa e ataque nas lutas
sociais (GINZBURG, 1989, p. 21). Posso adiantar, a esse respeito, que no
embate com os militares os agentes afirmam que não se eximem em recorrer a
conhecimentos de natureza religiosa. Ressaltam que em dias de lançamento de
foguetes pode ouvir-se em certas comunidades o som dos tambores. Não pos-
so afirmar que eventos extraordinários desta natureza de fato ocorram, mas
creio que posso inferir de momento que, como figura de retórica, tal assertiva
evidencia a percepção de um tipo de poder que é percebido pelos agentes como
instrumento de luta política. De outra parte, as histórias épicas relativas àque-
les que invariavelmente escapavam a todas as tentativas de aprisionamento no
período colonial corroboram com esta perspectiva de análise: através delas, os
agentes são levados a caracterizar estes heróis do passado como feiticeiros ou
mondogueiros, portadores de atributos tidos como mágicos.
Nesse sentido, para além dos marcos físicos constituídos pelas cha-
madas “pedras de rumo” que fi xaram em passado distante os limites fí-
sicos desta territorialidade específica conhecida como terra da pobreza,
podemos perceber que critérios religiosos também ajudam a construir o
território. Nesse sentido, seja no âmbito das relações cotidianas e interco-
munitárias que demarcam as relações com os santos – notadamente com
Nossa Senhora da Conceição – seja no contexto das relações de confl ito
do grupo critérios religiosos que fundamentam determinadas crenças e
práticas reforçam elementos identitários e a especificidade da designada
terra da pobreza.

22 A esse respeito consultar: SDMDH-PVN/CCN-MA. Terras de Preto no Maranhão: que-


brando o mito do isolamento. São Luís: SDMDH-PVN/CCN-MA, 2002. (Coleção Negro
Cosme – v. III).

Processos identitários e a produção da etnicidade 49


Anexo 1

q
Porto doRetiro
Igarapé Do Picapau Retiro
Araraí
Janã

Rio de Homem Rio de mulher


Sto.Antonio
Pedra de
Itacolomi

OCEANO ATLÂNTICO
Povoado Bom Viver
Mato Grosso Vila do Meio Canelatiua

Ponte do Calobico
Porto do Aru
Rio de Inácia
Aru-Grande
Porto de Canelatiua
Porto de Itapera

Barreira da Ponte Porto do Arú


Igarapé do Canelatiua
Povoado
São Francisco
BABAÇUTIUA
Aru-Mirim

Povoado
Itapera
N
Povoado
Brito

Legenda

Limite de terra
Casa de forno Barracão ou terreiro
da pobreza

Pedra de rumo Cemitério Tribuna

Caminho Igreja Igarapé

Estrada carroçável Poço artesiano Mangue

Tapera (povoado) Casino Guarimã

Povoado Escola Murici

Porto Posto de saúde Buriti

Pedra de Itacolomi Telefone público Babaçu

Campo de futebol Juçara

Figura 1. Croqui da Terra da pobreza em Alcântara – MA.


Anexo 2

Bom Viver
Canelatiua
Terra da Pobreza 3

Terra da Pobreza 4

N
Terra de Marinha
Uru-Grande

Porto de Canelatiua
Terra da Pobreza 2

tiua
Fazenda Mato Grosso

Canela
Igarape de Canelatiua

Rio de
Fazenda São Francisco da Ponte Fazenda Itapera
Uru-Mirim

Terra da Pobreza 1

Povoação

Terras da Pobreza em Alcântara – MA.


Via principal
Ponto digitalizado
Limite das terras da marinha
Fazenda Brito
Rede hidrográfica
Divisa de propriedade
Porto

Figura 2. Desenho do mapa feito pelos militares da Aeronáutica da área referente às


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52 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 2

O ritual de iniciação do danhono e faccionalismo


entre os Xavante da T. I. São Marcos
Paulo S. Delgado

O danhono (sonho) é um conjunto de rituais que os Xavante realizam de


tempos em tempos e está voltado à constituição da casa dos solteiros, a
hö, bem como para iniciação de seus moradores incluindo-os em uma das
oito classes de idade. Isto ocorre através de um processo que passa por
um período de exclusão/reclusão do meio social para, posteriormente, (re)
integrar-se na sociedade. O auge deste processo se dá nos preparativos e
execução dos rituais que produzirão a iniciação, ou a passagem, que cha-
mamos de o ano da excelência, que ocorre no último ano de reclusão dos
neófitos na casa dos solteiros. Quando consideramos o ritual a partir de
uma dinâmica processual queremos igualmente apontar os bastidores e
suas estratégias de sua produção. Neste sentido, propomos uma descrição
do ritual que incorpore não só (...) o comportamento formal prescrito para
ocasiões não devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência a cren-
ça em seres ou poderes místicos (TURNER, 2005, p. 49), mas também as
vésperas deste comportamento e as ações dos atores sociais para que este
momento seja efetivado. Aqui além das performances rituais, quero igual-
mente tratar das ações faccionalistas que perpassam o processo ritual, por
vezes se apropriando dele, em vários sentidos. Os dados etnográficos que
disponho são de minha dissertação de mestrado e tese de doutorado (DEL-
GADO, 2003; 2008), além de uma convivência de vários anos com os Xa-
vante da Terra Indígena São Marcos, sobretudo nas aldeias Nossa Senhora
de Guadalupe e São Marcos.
O danhono, conforme já mencionado, objetiva inserir os neófitos em
uma das oito classes de idade existente entre os Xavante (1 – abare’u; 3 –
anarowa; 5 – ai’rere; 7 – tirowa; 2 – nodzö’u; 4 – tsada’ro; 6 – hötörã;
8 – ˜etepa ˜). Estas oito classes de idade são distribuídas em duas metades
e alterna-se ciclicamente na ocupação da casa dos solteiros, a hö. Consi-
derando que o tempo de permanência de uma classe de idade na casa dos
solteiros é de cinco anos, quando se conclui sua iniciação, a renovação do

Processos identitários e a produção da etnicidade 53


ciclo fica em torno de 40 a 50 anos. A variação deste tempo de renovação
está condicionada, entre outros fatores, ao contexto político de cada al-
deia. O contexto político deve igualmente ser tratado enquanto processo e
como tal está sujeito à sua situação histórica (OLIVEIRA FILHO, 1988, p.
57). A noção de situação histórica instiga-nos a pensar o danhono situado
a partir de um conjunto de eventos e relações que não estão circunscritos,
ou limitados à uma aldeia específica. Neste sentido, situações de conflitos
e cooperação tornam-se evidentes e devem ser incluídas na descrição da
performance ritual e sua análise. Ademais, como nos processos rituais do
pós-contato, com a sociedade nacional e seus segmentos, novos elementos
devem igualmente ser considerados quando se avalia o contexto político.
Aqui tenho em mente a inclusão de outros agentes de interação que são/es-
tão envolvidos, direta ou indiretamente, no danhono: Funai, Funasa, Pre-
feituras, Governo de Estado, ONGs, Missão etc. Estes agentes de intera-
ção não atuam no danhono, mas são usados como fonte de recursos para
que o danhono aconteça. Portanto, não é possível pensar o processo de
iniciação do danhono isolado do contexto histórico e político que os atores
sociais estão imersos, uma vez que seu uso e dependência são constantes.
Um aspecto marcante da noção de situação histórica, e por isso a con-
sidero importante para pensar o caso Xavante, é que ela “não estimula
qualquer dualismo” (moderno x tradicional ou sociedade nacional x grupo
indígena) (OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 58), ou ainda: aldeia x cidade, mo-
mento ritual x momento da vida política Xavante. Como veremos adiante,
a cidade pode ser considerada pelos Xavante como uma extensão da aldeia
e fonte de recursos, não só material mas também simbólico. Igualmente o
momento ritual é tomado pelos atores sociais como palco para suas mani-
festações políticas e procuram utilizar suas performances para este fi m. De
mais a mais, ainda dentro da concepção de “situação histórica” o contato
interétnico precisa ser pensado como uma situação, isto é, como um con-
junto de relações entre atores sociais vinculados a diferentes grupos étni-
cos (OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 58). No cenário atual temos assim a et-
nia Xavante realizando o ritual de iniciação, não de maneira isolada, mas
interagindo com outros atores distribuídos nos centros urbanos, ou fora
dele, tais como: os índios Bororo e fazendeiros vizinhos de seu território.
E ainda a presença de outros atores sociais em território demarcado, tais
como: os agentes de governo – funcionários da Funai e Funasa, missioná-
rios e até mesmo o pesquisador que é incluído no processo, e ainda sendo
inserido nas performances rituais com todos os direitos e deveres que isto
implica. Neste cenário posto a partir da teoria processualista (TURNER,

54 Eliane Cantarino O’Dwyer


2005, p. 159s) podemos visualizar como os Xavante operam sua produção
e manutenção das práticas culturais entre elas os rituais danhono e seus
usos políticos, uma vez que enquanto instrumento analítico ela (...) envol-
ve um vocabulário de “devir” bem como de “ser”, admite a pluralidade,
a disparidade, o conflito entre grupos, papéis, ideais e ideias, e, já que ela
está preocupada com seres humanos, considera variáveis como “objetivo”,
“motivações”, “intenção”, “racionalidade”, e “significado”. Além disso,
ela enfatiza a biologia humana, o ciclo individual de vida, a saúde pública
e a patologia. Incorpora na sua teoria processos ecológicos e econômicos
tanto repetitivos quanto mutáveis (TURNER, 2005, p. 159s).
Não tenho aqui espaço para tratar em minúcias todos os rituais que
compõem o danhono. Diante disso, opto por elencar algumas situações
do processo ritual apontando casos em que as manifestações de disputas
faccionais e confl itos interétnicos tornaram-se mais intensos.

A casa dos solteiros


A casa dos solteiros, hö, é considerada por Maybury-Lewis como a (...)
pedra fundamental do sistema de classes de idade. É lá que um menino
Xavante sente pela primeira vez o que significa pertencer a uma classe de
idade (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 153).
Ao término do danhono de qualquer que seja a classe de idade, os fu-
turos moradores da próxima casa dos solteiros são formalmente apresen-
tados à comunidade aldeã. Desta forma, não seria redundante afi rmar que
o danhono começa pelo fi nal.
Naquela ocasião os meninos Xavante que estão vivenciando o ciclo de
vida ai’repudu, o que ocorre com idade biológica de oito para nove anos,
participam de um ritual que anuncia formalmente o nome da próxima
classe de idade para instauração de uma nova casa dos solteiros. Este ri-
tual, “apresentação da nova classe de idade”23, possui duplo valor socio-
lógico. Revela-nos no nome da classe de idade que estará ocupando a casa
dos solteiros, bem como nos deixa ver, considerando o ciclo das classes
de idade, quais são os homens, hoje ˜ ihire – anciãos, que sobreviveram ao
tempo para presenciar a renovação da classe de idade a qual foram inseri-
dos no passado.
Para os ai’repudu o momento é de grande alegria, uma vez que nesta
condição boa parte de seu tempo “livre” está relacionada informalmente
com a casa dos solteiros, a hö. Pelo menos em três momentos do dia um

23 Falta-nos a categoria nativa para este ritual.

Processos identitários e a produção da etnicidade 55


ai’repudu pode estar na casa dos solteiros: comumente são eles que levam
alimentação aos membros de seu grupo doméstico que moram ali. Afora
destes momentos de “trabalho” os ai’repudu estão sempre bem próximos
dos moradores da casa dos solteiros participando de tudo que seus mora-
dores tomam parte. Os banhos de rio, expedições nos arredores da aldeia,
partidas de futebol, dentre outros, são momentos que permitem grande
interação entre os moradores da casa dos solteiros e ai’repudu. Isto cria
uma expectativa muito grande entre os ai’repudu para logo poderem fa-
zer parte da casa dos solteiros. Neste sentido, a apresentação formal dos
futuros membros da casa dos solteiros não só atende estas expectativas,
mas também informa a sociedade sobre a nova condição social do futuro
morador da casa dos solteiros. Aqui podemos relativizar a afi rmação de
Maybury-Lewis de que os ai’repudu, a quem o autor chama de crianças,
não seriam (...) considerados realmente como membros da sociedade Xa-
vante: eles ainda não têm uma posição defi nida em uma sociedade cujas
atividades sociais e cerimoniais são desempenhadas, em grande parte, pe-
las classes de idade (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 153).
A apresentação dos futuros moradores da casa dos solteiros não só os
reconhece como membros da sociedade, como também os insere na dinâ-
mica ritual das classes de idade. Portanto, mesmo não fazendo parte for-
malmente de uma classe de idade um ai’repudu pode ser considerado como
a ela pertencente. Ademais, eles podem já ter passado por outro processo
de iniciação, como o darini 24 , que não estaremos tratando aqui.
Para os ˜ ihire, além do fato de estarem presenciando historicamente
a renovação de sua classe de idade na ocupação da casa dos solteiros é
também o momento de ganho na vida política e nos ordenamentos do pro-
cesso ritual. Mais do que nunca uma autoridade política (chefe ou cabeça
da facção) e autoridade ritual (capacidade de gerir plenamente o ritual) se
fundem numa pessoa.
Aqui convém detalhar melhor o que considero como autoridade políti-
ca e autoridade ritual mostrando em que momento elas passam a se coin-
cidirem. A iniciação do danhono é o primeiro passo a conduzir os homens
a adquirirem o status de ˜ iprédu25 (homem maduro) tornando-os aptos a

24 Iniciação religiosa.
25 A categoria ˜ iprédu está relacionada duplamente à maturidade biológica do homem e
mulher, por isso a consideramos como uma das fases do ciclo de vida e a uma condição
pós-vivência do processo ritual. Embora não existam rituais de passagem específicos para
ela, pode-se dizer que é consequência do processo ritual. Homem e mulher são considerados
˜ iprédu somente após terem atuado como danhohui’wa, padrinhos. Danhohui’wa é uma ca-
tegoria usada no processo ritual do danhono, sempre estando a ele referenciada.

56 Eliane Cantarino O’Dwyer


participarem efetivamente das reuniões do warã, centro da aldeia – assem-
bleia, palco das decisões políticas. Entretanto, um homem adquire status
de ˜ iprédu somente após ter atuado como danhohui’wa, padrinhos de uma
classe de idade, o que ocorre depois de três iniciações, incluindo a sua, ou
seja, após pelo menos 15 anos. O status de ˜ iprédu, dependendo do tempo
de admissão nesta categoria, permite que ele exerça sua capacidade de
oratória no warã e que opine sobre os diversos assuntos ali tratados. Con-
tudo, ele não tem autoridade absoluta na tomada de decisões, embora seus
argumentos possam ter certo peso dependendo da facção que ele apóia
e é apoiado. Na medida em que o tempo avança o status de ˜ iprédu, ho-
mem maduro, permite que ele acumule mais capital político que será usado
constantemente em suas ambições pessoais. Em outros termos, tomando
como referência o conceito usado por Bourdieu (2003, p. 187), paulatina-
mente o ˜ iprédu irá adquirindo crédito e reconhecimento como ator polí-
tico para agir neste sentido. Contudo, adquirir crédito e reconhecimento
não é suficiente para que o ˜ prédu ponha em grau máximo o potencial de
suas ambições políticas e rituais. É preciso que ele atinja o ciclo de vida
˜ ihire, ancião, que irá lhe garantir uma distinção social e política, ainda
mais depois que sua classe de idade receba o sufixo b’rada, o que acontece
quando ocorre a renovação do ciclo das classes de idade.
Com base em nosso material etnográfico, observamos que a etapa do
ciclo de vida, ou status, de ˜ ihire, ancião, é a plenitude ritual e social/polí-
tica da pessoa. Dentro do processo ritual e político os ˜ ihire, em sua maio-
ria, efetivamente já atingiram o status de terem em suas respectivas classes
de idade o sufi xo b’rada, e, portanto, adquirem autoridade neste processo.
No processo ritual os membros das classes de idade ou dos grupos cerimo-
niais que adquiriam o sufi xo b’rada conquistam autoridade sobre o ritual
e detém o poder de tomada de decisões e escolhas. No campo das relações
políticas as ambições dos ˜ ihire, anciãos, estão em pleno vapor. Politica-
mente o ˜ ihire é bastante influente, podendo inclusive ser o cabeça de sua
facção e recebendo dela apoio para ser chefe da aldeia. Isso não significa
que somente o ˜ ihire possa ser reconhecido como chefe. O ˜ iprédu, sim,
pode ser reconhecido enquanto chefe. Entretanto, ele terá que buscar apoio
político, sobretudo entre os ˜ ihire. Uma pessoa ˜ ihire possui um grupo do-
méstico extenso na etapa fi nal de sua vida. Neste sentido, o apoio político
recebido de um ˜ ihire, teoricamente, é (deveria ser) seguido por todo seu
grupo doméstico.
É com base nestes extremos sociais (ai’repudu – menino; e, o ˜ ihire –
ancião) e rituais (hö’wa – morador da casa dos solteiros; e, quem adquire o

Processos identitários e a produção da etnicidade 57


sufi xo em sua classe de idade b’rada) que o processo ritual e manifestação
do faccionalismo devem ser investigados.
Retomando a descrição sobre a admissão na casa dos solteiros. Ao fi nal
da apresentação da nova classe de idade aqueles que formalmente foram
apresentados não serão de imediato inseridos na casa dos solteiros. Um a
dois anos após a conclusão da iniciação da última classe de idade é que
ocorre o início de um novo processo ritual do danhono.
O ritual do oi’o é a primeira manifestação para dar início do processo
do danhono. Na performance deste ritual os meninos de dois a sete anos
de clãs26 opostos devem lutar entre si portando uma raiz análoga a uma
clava. A raiz oi’o, que dá nome ao ritual, é extraída de uma planta seme-
lhante a uma bananeira que cresce em áreas alagadas.
Durante a luta os combatentes seguram a raiz oi’o com a mão direita
tendo como apoio nesta mão a esquerda, que segura o punho da mão
direita. No combate os oponentes se posicionam frente a frente com os
joelhos flexionados e procuram golpear o antebraço esquerdo do outro.
Quem rebaixar a guarda por primeiro reconhece que “perdeu” a luta e
imediatamente o outro deve parar de deferir golpes, ambos retornam para
seus lugares. O ritual é realizado sempre que os ˜ ihire – anciãos, decidirem
que haverá a admissão de novos moradores na casa dos solteiros. Contu-
do, nem todos os que tomam parte do ritual são admitidos de imediato.
Muitos meninos são pequenos demais para de imediato serem inseridos na
hö. Até mesmo os que apresentam idade para serem admitidos podem não
ser admitidos por falta de adornos corporais, os quais demandam grande
quantidade de matéria-prima e tempo no preparo.
Normalmente este ritual possui um caráter lúdico. Neste sentido, sua
realização mobiliza praticamente toda a comunidade. O caráter lúdico que
deste ritual parece muito mais evidente do que a afi rmação de Giaccaria
(1990, p. 61) segundo a qual ele visa dirimir tensões entre as metades, haja
vista os confl itos faccionais que eclodem constantemente nos dias atuais e
no passado. Nos momentos que antecedem a cerimônia, praticamente toda
a comunidade está a postos nos arredores da arena, construída no centro
da aldeia, buscando os melhores lugares para assistir aos combates. As
primeiras lutas são travadas entre os ‘watébrémi, ciclo de vida que compre-
ende meninos de dois a cinco anos. A performance dos pequenos lutadores

26 A sociedade Xavante é composta por três clãs: öwawe˜, tob’ratato e po’redaza’õno. Em


diversos rituais estes clãs se agrupam em metades e executam cerimônias próprias. Neste
sentido, durante o ritual do oi’o os “times” são na verdade metades compostas, de um lado,
pelo clã po’redaza’õno e, de outro, pela aliança entre os clãs öwawe˜ e tob’ratato.

58 Eliane Cantarino O’Dwyer


provoca muitas gargalhadas entre os expectadores, além de comentários
sobre a coragem e destreza de cada um deles. A duração destas primeiras
lutas não ultrapassa 40 segundos. Os pequenos não suportam mais do que
três golpes desferidos e recebidos mutuamente e retornam, quase sempre
chorando, para seus lugares.
Os combates travados pelos ai’repudu, meninos maiores, são mais
agressivos do que aqueles realizados pelos ‘watébrémi. Os golpes são defe-
ridos com mais força e intensidade ocasionando por vezes a quebra da raiz
oi’o. Neste caso, os parentes masculinos que ali estão tratam de substituir
imediatamente o oi’o quebrado por outro, sem que para isso a luta tenha
que ser interrompida. Os combates entre membros deste ciclo de vida têm
um tempo de duração maior, ultrapassando minutos. Quando há duração
excessiva de um combate, sem que nenhum dos combatentes baixe a guar-
da, os espectadores e parentes masculinos que assessoram a luta começam
a pedir que haja uma intervenção e que o duelo seja interrompido.
Até o início de 2009 acreditava mais no caráter lúdico do ritual do que
seu potencial de dirimir tensões. No entanto, durante a realização deste ri-
tual na aldeia N. S. de Guadalupe passei a relativizar esta posição. Naque-
la ocasião os ‘watébrémi, meninos pequenos, lutaram entre si divertindo a
comunidade com suas performances. O combate dos ai’repudu, meninos
maiores, transcorria de forma tranquila, para os padrões Xavante, até que
um dos duelos estava perdurando para além do tempo normal. Um dos
homens recém-admitido na categoria do ciclo de vida ˜ iprédu interveio
separando os combatentes, pois um deles era seu sobrinho. A ação de in-
tervenção deste ˜ iprédu foi interpretada como violenta pelos parentes do
outro combatente, fi liados ao clã oposto. O resultado foi o envolvimento
de um grande número de homens que chegaram às vias de fato. Imediata-
mente houve ingerência da “turma do deixa disso” e aos poucos os ânimos
foram se acalmando. Este fato provocou a interrupção da performance
ritual do oi’o e os participantes e plateia retornaram às suas casas para
prepararem-se para o ritual de admissão à casa dos solteiros.
Haveria aqui uma grande perda se o episódio do conflito acima fosse
considerado per si. Tendo como referência a análise processualista e o es-
tudo do caso desdobrado (TURNER, 1974, p. 43; VAN VELSEN, 1987,
p. 345) é preciso recuar um pouco mais no tempo para melhor interpretar
este fato. Neste sentido, buscando uma sequência de unidades processuais
teremos mais elementos que tornarão inteligíveis os fenômenos do presente.
O episódio acima está diretamente relacionado com situações de con-
fl itos que ocorreram na aldeia São Marcos desde a segunda metade da

Processos identitários e a produção da etnicidade 59


década de 1970 que tiveram como estopim disputas faccionais. Depois
de muitas crises, segundo a noção de drama social (TURNER, 197227,
p. 91), houve uma cisão na aldeia São Marcos que resultou na criação de
várias aldeias, entre elas Nossa Senhora de Guadalupe em 2002. Estas
crises eram provocadas pela disputa de duas facções pelo reconhecimento
do “cabeça de uma facção” como cacique da aldeia. Após a cisão de 2002
as relações entre aldeias, antigas e recém-criadas, tornaram-se tensas e
polarizadas. A expressão mais aparente desta polarização podia ser vista e
acompanhada nas formas de deslocamento e circulação na terra indígena
e fora dela. As duas facções que adotaram caminhos diferentes para se
deslocarem na terra indígena São Marcos e para os centros urbanos são:
Barra do Garças e General Carneiro, ambas em Mato Grosso. Do mesmo
modo a cidade foi dividida entre as facções como pontos específicos para
chegada e partida de seus correligionários (DELGADO, 2003).
Pouco a pouco, um processo de reaproximação começou a ser cons-
truído entre os moradores das duas aldeias. A iniciação do danhono em
2005 foi o ponto máximo desta reaproximação visivelmente traduzido na
cooperação entre grupos domésticos das duas aldeias na produção do pro-
cesso ritual. Contudo, as hostilidades do passado não são totalmente apa-
gadas. Elas estão sujeitas a outra instituição, ainda pouco explorada, entre
os Xavante: a vingança. Grosso modo, pode se dizer que a vingança é um
dos combustíveis que mantém as chamas do faccionalismo Xavante. Ela
pode ser usada para justificar várias situações sociais que irrompem em
contendas que vão desde uma morte por feitiçaria, passando por retalia-
ções de conflitos políticos que resultaram em confronto com desvantagens
para uma das facções, cruzando até mesmo pelo processo ritual.
Retomando o confl ito descrito acima que ocorreu durante o ritual do
oi’o, podemos afi rmar que os atores sociais partiram para vias de fato não
porque o combate entre os dois ai’repudu teve duração além do normal
ou porque o ˜ iprédu usou de violência contra o oponente de seu sobrinho.
Além das tensões rituais existentes quando os ritos envolvem metades clâ-
nicas havia algo mais além do cenário da performance. A intervenção do
˜ iprédu foi o estopim de uma situação social que ainda não está de todo
modo resolvida: a cisão de 2002.
Com a interrupção da performance ritual os moradores da aldeia re-
tornaram para suas casas. Contudo, no centro da aldeia permaneceram

27 Publicado originalmente em 1957.

60 Eliane Cantarino O’Dwyer


alguns ˜ ihire (anciãos) discutindo sofre o fato. O episódio renderia ainda
muitas discussões no centro da aldeia, warã.
Retomando a descrição do processo de instauração da casa dos sol-
teiros e admissão de seus moradores podemos dizer que o ritual do oi’o
habilita o ai’repudu, a assumir uma nova condição social: hö’wa, morador
da casa dos solteiros. Considerando uma das metades composta por qua-
tro classes de idade, o ritual de admissão envolve diretamente duas delas:
aquela cujos membros foram danhohui’wa daqueles que no presente ocu-
parão este mesmo papel ritual e os membros da classe de idade que será
admitida como moradores da casa dos solteiros.
Para que o momento da admissão de fato se efetive o grupo domésti-
co do neófito deve previamente confeccionar um grande colar de algodão
chamado waptépnhõnhiã, o que demanda muito tempo. Ademais cordi-
nhas, wedenhorõ, usadas nos pulsos e tornozelos devem igualmente ser
confeccionadas para uso neste e nos demais rituais que virão.
Em situações normais, ou seja, sem conflitos, após a luta no oi’o os
ai’repudu vão ao rio para tomarem banho e retornam a seus grupos do-
mésticos. Ali recebem o colar de algodão waptépnhõnhiã, arco e flechas de
seu pai. Giaccaria & Heide (1984, p. 143, 150ss) dizem ainda que eles re-
cebiam também um cestinho contendo amêndoas de babaçu, usadas como
alimento e para pintura corporal da qual se extrai o óleo mastigando-as
e cuspindo a saliva na mão para untar o corpo e o bö, urucum. Em 1997
presenciei várias vezes este ritual e observei que os ai’repudu haviam rece-
bido somente o colar de algodão. Em 2009, participei efetivamente da per-
formance ritual na qualidade de itsimhö-nhiwimhã te te tiwi´re tsanidza´ra
itsonhiãhã, ou tsimnhõhu – ou seja, aqueles que foram danhohui’wa, pa-
drinhos, dos que serão danhohui’wa, padrinhos, dos novos moradores da
casa dos solteiros. Nesta ocasião os meninos portavam, além do colar de
algodão, um arco e algumas flechas. Na performance ritual, depois de
receberem os adornos acima mencionados, os ai’repudu aguardam a che-
gada de um tsimnhõhu que os conduzirá até o warã, centro da aldeia. Ali,
outros tsimnhõhu esperam a chegada dos ai’repudu. Chamo atenção aqui
para a referência ao pertencimento clânico tanto dos ai’repudu quanto dos
tsimnhõhu. Assim, quando o futuro wapté, morador da casa dos soltei-
ros, chega ao warã, se pertencente ao clã po´redza´ õno terá seu waptép-
nhõnhiã, colar de algodão, retirado por um tsimnhõhu pertencente ao clã
oposto, öwawe˜ ou tob´ratato. Do contrário, se o candidato pertence ao clã
öwawe˜ ou tob´ratato terá seu waptépnhõnhiã, tsimnhõhu pertencente ao
clã po´redza´ õno. Após a retirada dos waptépnhõnhiã, colar de algodão,

Processos identitários e a produção da etnicidade 61


de todos os candidatos, estes se dirigem sozinhos a hö e se tornam wapté,
moradores da casa dos solteiros. No passado, depois da chegada do todos
os ai’repudu na casa dos solteiros, estes receberiam dos danhohui’wa, pa-
drinhos, os estojos penianos, darõ.
Após o contato, os Xavante passaram a usar roupas ocidentais. Isto
provocou uma transformação no processo ritual Xavante. Como aponta-
mos acima, após a retirada do ornamento waptépnhõnhiã, colar de algo-
dão, os danhohui’wa, padrinhos, entregavam aos wapté o estojo peniano,
que revela a nova situação social do morador da casa dos solteiros, deven-
do ser usado durante toda sua vida. Este momento não mais acontece. O
darõ, estojo peniano depois do contato entrou em desuso. Vez ou outra
calções vermelhos28 podem ser distribuídos aos moradores da casa dos
solteiros.
Este ritual de admissão na casa dos solteiros repete-se ainda em outros
momentos. Conforme já mencionamos, isto se deve às diferenças de idade
e estatura entre os candidatos ou o despreparo dos grupos domésticos para
esta ocasião, quando deixam de confeccionar os adornos corporais.
No curso do processo ritual a admissão envolve ainda o ritual do uiwe-
de, corrida de toras de buriti. Embora sigam um mesmo protocolo ritual,
as cerimônias do uiwede recebem denominações diversas, dependendo da
etapa em que acontece dentro do processo ritual do danhono. Imediata-
mente após a abertura da casa dos solteiros e admissão de seus moradores,
ocorre uma corrida de buriti que recebe o nome de ubdö’warã – corrida
do dente branco de capivara. O nome advém do uso de um dos colares que
os moradores da casa dos solteiros portam neste momento do danhono.
Na performance das corridas de buriti temos uma disputa entre meta-
des cerimoniais. Considerando o cenário do danhono, quando elas acon-
tecem, esta disputa se dá entre membros das classes de idade que estão
vivenciando os ciclos de vida que compreende, de um lado, os wapté, mo-
radores da casa dos solteiros, ajudados pelos dos danhohui’wa, e de outro,
os dahi’wa, ou seja, a última classe de idade que foi iniciada através do
danhono, igualmente ajudada pelos membros da classe de idade que foram
seus danhohui’wa, na ocasião de sua iniciação. Na prática as oito classes
de idade distribuídas em duas metades participam do uiwede, corrida de
buriti. Quando posicionamos os membros do ciclo de vida vivido, de um
lado, pelos wapté e seus danhohui’wa, e de outro, pelos dahi’wa e também

28 Presenciei certa vez o cacique da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe fazendo esta distri-
buição, após ter conseguido uma grande quantidade de calções com uma secretaria de estado
de Mato Grosso.

62 Eliane Cantarino O’Dwyer


seus danhohui’wa queremos informar que são estes os atores principais da
cerimônia do uiwede, corrida de buriti. Isto se torna claro quando obser-
vamos os preparativos para execução da cerimônia. O corte das toras de
buriti é feito alternando-se, dependendo da fase em que se encontra o pro-
cesso ritual do danhono, entre os dahi’wa e os danhohui’wa dos wapté.
Durante o uiwede, corrida de buriti, observa-se que somente os dahi’wa e
seus danhohui’wa, de um lado, e os wapté também com seus danhohui’wa,
de outro, apresentam por excelência pintura corporal e ornamentos. En-
tretanto, alguns ˜ ihire costumam pintar a franja dos cabelos com urucum
e amarram cordinhas, wedenhorõ, nos pulsos e tornozelos. Usam ainda no
pescoço o colar de algodão chamado danho´rebdzu´a também chamado de
itsõ´rebdzu´a. Isto não constitui uma exigência para os ˜ ihire no processo
ritual, se eles o fazem é para ficarem “bonitos”, como dizem.
Como atores principais do ritual os wapté e dahi’wa se preparam em
locais distintos. Enquanto os wapté e os danhohui’wa se “concentram”
para pintar e defi nir as estratégias para corrida dentro da hö, a casa dos
solteiros, enquanto que os dahi’wa fazem isso no marã, literalmente som-
bra, mata, floresta. No entorno da aldeia existem vários marã que são na
realidade clareiras, próxima da aldeia, abertas na mata onde, secretamen-
te, os Xavante se preparam para executarem vários rituais, entre eles o
uiwede, corrida de buriti. De mais a mais, o marã funciona tanto como
um lugar de preparo para executar certos rituais, quanto um lugar para
sua realização. É o caso, por exemplo, do wai’a – ritual religioso, em suas
quatro modalidades, que tem seus preparativos em pelos menos três marã
diferentes para depois ser executado no warã – centro da aldeia.
Quando os dois grupos de competidores estão prontos, o que acontece
normalmente entre 12h e 13h, eles partem formalmente em fi la para o
local de início do uiwede, corrida de buriti. A saída com destino ao local
de início é marcada por grande descontração que toma conta dos grupos.
Em tom de provocação ao oponente eles emitem gritos que são pronta-
mente respondidos com outros gritos. Todavia, a partida dos grupos não é
simultânea. Via de regra, parte primeiro um dos grupos seguindo por um
caminho enquanto o outro segue depois, ou segue por caminhos paralelos.
Observamos em várias ocasiões, nas aldeias São Marcos e N. S. de Gua-
dalupe, que não são todos os componentes de um grupo que partem em
fi la. Muitos, depois de estarem prontos, seguem de bicicleta ou a pé para o
local combinado para início da corrida antes dos demais, se posicionando
em pontos estratégicos ao longo do trajeto.

Processos identitários e a produção da etnicidade 63


As táticas defi nidas tanto na hö quanto no marã são postas em prática
ao longo do caminho. Estas dizem respeito ao posicionamento dos corre-
dores ao longo do caminho, ou seja, quem deverá carregar a tora de buriti
no início, nas subidas e descidas do percurso. As metades sabem quem são
os corredores que possuem maior resistência e força. Na prática isso torna
a corrida em seu início muito competitiva, pois se busca abrir, de imedia-
to, uma grande vantagem de um grupo em relação ao outro, e depois se
espera que os corredores mais fracos mantenham essa distância ao longo
do percurso.
No passado a corrida era iniciada no local onde a tora era cortada,
ou seja, a partir das cabeceiras onde crescem os buritizais. Atualmente, a
cerimônia do uiwede, corrida de buriti, acontece utilizando-se das várias
estradas que cortam a Terra Indígena e dão acesso às aldeias. Para tanto as
toras são levadas até o local combinado para o início da corrida. O ponto
de partida da cerimônia é defi nido previamente no warã – centro da aldeia.
Quando estão todos posicionados e as toras se encontram em local
defi nido para início da corrida elas recebem ainda um último acabamen-
to. Os Xavante utilizam folhas de lixeira29 para deixar o tronco sem as
farpas que possam ferir os corredores. No início da corrida membros das
principais classes de idade que estão disputando se posicionam ao lado das
toras e ao grito emitido por um ˜ ihire – ancião, que acompanha o início
da corrida, uníssonos erguem a tora pondo-a nos ombros e partem para o
warã – centro da aldeia.
O percurso defi nido para a uiwede varia de acordo com o número de
participantes. Em média, os percursos são de cerca de oito quilômetros.
Sendo a uiwede uma cerimônia de revezamento os participantes adotam
como estratégias, além das mencionadas acima, o uso de diversos meca-
nismos que potencializam as equipes. A situação de contato proporcionou
o acesso a meios de deslocamento, como bicicleta, caminhões, automó-
veis e tratores, que se tornaram de uso recorrentes em várias situações
do processo ritual. Neste sentido, depois de iniciada a corrida é comum
os participantes das duas metades, após terem carregado a tora de buriti,
utilizarem bicicletas para se posicionarem à frente da tora e novamente
carregá-la. Em alguns trechos da corrida a existência de estradas paralelas
à principal permite ao caminhão, que transporta corredores que já tiveram
seu momento na corrida, se posicionar novamente à frente das duas toras e

29 A Lixeira do Cerrado, (Curatella americana) família Dilleniaceae, é uma árvore de baixo


porte com folhas duras e ásperas – semelhante a lixa. Os Xavante também a utilizam para afiar
pontas de flecha, dar acabamento em arcos e nos botoques auriculares, dentre outros usos.

64 Eliane Cantarino O’Dwyer


deixar aqueles que estejam dispostos a participar outra vez do transporte.
Como num exercício militar, estes corredores sobem e descem do cami-
nhão quando este ainda está em movimento.
Nesta modalidade de corrida de buriti, o ubdö’warã, os wapté – mo-
radores da casa dos solteiros não participam do transporte da tora. Um
dos tsimnhõhu representando os moradores da casa dos solteiros inicia a
corrida em desafio ao dahi’wa, membro da última classe de idade iniciada
e pertencente à metade cerimonial oposta. O tsimnhõhu, que além deste
status cerimonial é também um ˜ iprédu, homem maduro, considerando
sua metade cerimonial pertence à terceira classe de idade desta metade,
contando inclusive a recém-admitida na casa dos solteiros. Neste senti-
do, ele coopera para que sua metade vença a corrida de buriti. Contudo,
existe algo mais que precisa ser elencado para melhor entender a atuação
do tsimnhõhu no ritual. Todos os colares waptépnhõnhiã30 que ele retira
no momento do ritual de admissão serão seus. Neste sentido, não é exage-
ro dizer que o tsimnhõhu acaba contraindo uma “dívida” quando recebe
os colares de algodão waptépnhõnhiã. O pagamento desta “dívida” dá-se
quando ele carrega a tora de buriti no início da corrida, com a obrigação
de abrir vantagem de seus oponentes para que sua metade vença.
Ao fi nal da corrida de buriti, quando todos chegam à aldeia, as duas
metades cerimoniais executam um canto dançando ao redor da aldeia. Os
wapté, moradores da casa dos solteiros, juntamente com os danhonhui’wa,
padrinhos, ensaiam este canto dentro da casa dos solteiros. Os dahi’wa,
por seu turno, ensaiam outro canto nos arredores da aldeia. Cada metade
possui um itinerário próprio para executar o canto. Este itinerário pode
ser em sentido anti-horário ou horário. Ao fi nal do canto, que pode ser re-
petido por duas ou três vezes como forma de demonstração de virilidade e
provocação à metade oponente, encerra-se o processo de admissão e aber-
tura da casa dos solteiros. Contudo, encerramento do conjunto de rituais
que marcam a admissão de novos moradores da hö, casa dos solteiros,
não limita a entrada de outros ‘watébrémi e ai’repudu, menino, noutros
momentos do processo ritual quando as lutas do oi’ó forem repetidas. Nas
futuras admissões não haverá repetição da corrida de buriti na modalidade
ubdö’warã – corrida do dente branco de capivara.
Nesta fase do processo ritual a existência de confl itos é rara, mas po-
dem ocorrer, conforme descrevemos anteriormente. Nos próximos quatro

30 Os colares de algodão são desmanchados e com a matéria-prima confeccionam-se outros


adornos corporais como o colar i˜tsõ’rebdzu’a – gravata, usado em todos os rituais. Ademais,
o algodão é um dos bens mais preciosos na tradição xavante.

Processos identitários e a produção da etnicidade 65


anos ocorrerão diversos rituais que podem gerar confl itos. Entre as moti-
vações do confl ito está o uso inapropriado de alguns adornos corporais.
Linhagens e clãs são detentoras da propriedade de vários ornamentos e
objetos rituais. Segundo os informantes, as famílias nunca estão contentes
com os seus adornos corporais, pois acham os dos outros mais bonitos.
Isto é ponto nevrálgico no processo ritual e gera fortes tensões quando os
usos indevidos são descobertos. Um destes ornamentos é o cinto chamado
ipredzumapro. Considerando que seu uso obedece a prerrogativas indivi-
duais, herdadas de uma patrilinhagem, este ornamento concede status a
quem o usa. Todos querem usar o ipredzumapro, nos disse um dos infor-
mantes. O mesmo havia solicitado que seu pai confeccionasse o ornamento
para seu filho. Ao ser indagado se não haveria confl itos por causa disso, o
mesmo revelou que sua família estava autorizada a usá-lo.
Os Xavante estão conscientes da usurpação de adornos corporais e
buscam mecanismos para evitar que os conflitos ocorram. Uma das for-
mas encontradas é a autorização para que outra linhagem use o adorno
cobiçado. Certa vez, na costumeira reunião do warã – centro da aldeia,
após a celebração do wai’a – ritual religioso, onde a conversa girava em
torno do desempenho do pesquisador como da’ãmawai’a’wa – polícia ou
fiscal no ritual, um dos homens mais velhos da aldeia levantou-se e come-
çou a discursar sobre o ritual da corrida do noni que estava por aconte-
cer. Em seu discurso ele dizia que o ritual da corrida do noni já poderia
começar no dia seguinte e que não houvesse provocações, nem respostas
a estas, entre as famílias. O cunho das provocações que o ˜ ihire se referia
estava relacionado ao uso indevido de determinados ornamentos corporais
durante as cerimônias sem a devida autorização de seus donos. Um destes
ornamentos corporais a qual se referia era o abadzipré, literalmente algo-
dão vermelho, usado também como cinto. O mesmo é confeccionado sob a
medida exata da cintura de quem o usará. Na parte de trás pendem-se dois
casulos, feitos de algodão e recobertos com resina branca. Estes casulos
são unidos em uma das extremidades e presos ao cinto, de modo a formar
um V invertido. As outras pontas dos casulos terminam com fios de algo-
dão desfiado e correntinhas de sementes de capim navalha, a’é.
Ainda sobre o abadzipré, um de nossos informantes disse não saber
quem eram os seus donos. Entretanto, por gostar muito dele pediu a seu
pai que o fi zesse para que seu fi lho usasse numa das cerimônias fi nais do
processo ritual. Não apuramos o sentido mítico deste ornamento corporal.
Nas tentativas que fi zemos nossos informantes se limitavam a dizer que
gostavam de usar por serem bonitos.

66 Eliane Cantarino O’Dwyer


Em continuidade ao seu discurso o ˜ ihire disse uma vez que já havia
acontecido o wai’a – ritual religioso, o wedetede – local onde acontece o
ritual da corrida do noni, poderia ser montado e que tivesse início à corri-
da de mesmo nome. Esta foi a primeira vez que presenciamos ˜ ihire exercer
seu direito de oratória assembleia do warã. Ele levantou-se da cadeira, que
sempre levava consigo, e ao começar a falar o burburinho que havia logo
deu lugar ao silêncio. Em tom baixo e extremamente tranquilo ele pedia
que a cerimônia do noni tivesse início. O discurso deste ˜ ihire nos sugere
que o danhono está intrinsecamente relacionado com outro rito de inicia-
ção e celebração religiosa o darini e seu resultado, as celebrações do wai’a.
Contudo, esta relação não está condicionada a dicotomia entre sagrado e
profano sugerida por Van Gennep (1978, p. 26). Segundo este autor “toda
alteração na situação de indivíduo implica ai ações e reações entre o profa-
no e o sagrado, ações e reações que devem ser regularmente vigiadas a fi m
de a sociedade geral não sofrer nenhum constrangimento ou dano” (VAN
GENNEP, 1978, p. 26). O danhono provoca transformações importantes
na vida das pessoas. Todavia, ao invés de gerar danos ou constrangimento
pelas ações e reações entre sagrado e profano, ele promove uma junção
entre as duas esferas ao ponto de não ser necessário uma atitude de vigilân-
cia sugerida pelo autor, mas sim um convívio complementar entre as duas
esferas. O uso das pinturas e adornos corporais comuns aos dois tipos de
iniciação, darini e danonho corrobora nossa hipótese.
Além do uso inapropriado de adornos corporais de outras linhagens,
os confl itos durante o processo ritual podem advir das escolhas para o
desempenho de cargos cerimoniais. Aqui quero me referir aos cargos ce-
rimoniais dos tébé e dos pahöri’wa que são propriedades dos clãs öwawe˜
e po’redza’õno, respectivamente. Estes cargos cerimoniais são escolhidos
entre os moradores da casa dos solteiros pelo menos um ano antes da
conclusão do danhono. A escolha dos ocupantes destes cargos acontece
preliminarmente durante a iniciação anterior. Quando se executam os ri-
tuais que recebem os nomes de seus oficiantes, tébé e pahöri’wa, indica-se
dois watébremi, meninos, que poderão ou não ser confi rmados como os
próximos a desempenharem estes papeis cerimoniais. Idealmente, cabe aos
antigos oficiantes destes dois rituais, os tébé’rada e os pahöria’wa’rada,
procederem esta escolha. Entretanto, os informantes fi zeram questão de
ressaltar que embora os candidatos sejam escolhidos com antecedência
isto não dá garantias que serão os mesmos a desempenharem os papéis ri-
tuais no futuro. Estes meninos terão todo seu comportamento vigiado pela
comunidade aldeã durante a fase do ciclo de vida ai’repudu. Este acompa-

Processos identitários e a produção da etnicidade 67


nhamento diz respeito não só ao comportamento social como também so-
bre o desenvolvimento físico dos meninos até o momento de se efetivarem
enquanto detentores do cargo cerimonial. Referências como corpo esguio
e cabelos longos são atributos considerados para os candidatos aos cargos
cerimoniais. Além disso, a conjuntura política na aldeia pode ser o princi-
pal condicionante na escolha e efetivação dos candidatos.
Em 2001 a aldeia São Marcos estava dividida pela disputa entre as
duas facções que lutavam pelo reconhecimento de uma delas como cacique
da aldeia. Diante deste impasse cada facção constituiu uma casa dos soltei-
ros. Com a cisão que ocorreu em 2002, que resultou na criação da aldeia
Nossa Senhora de Guadalupe, nada obstante cada qual deu procedimento
ao processo ritual escolhendo os atores rituais que desempenhariam estes
e outros papéis rituais. Contudo, em 2004 um novo confl ito se instaurou
na aldeia N. S. de Guadalupe tendo como principal questão uma disputa
pela eleição do novo diretor da escola. A família do candidato que perdeu
a eleição decidiu fundar uma nova aldeia, Jesus de Nazaré. Tal fato engen-
drou uma nova questão em relação aos cargos cerimoniais que estamos
considerando.
Esta cisão provocou uma lacuna nos cargos cerimoniais que compõem
o danhono. Cerca de 20 hö’wa, moradores da casa dos solteiros, acompa-
nharam seus grupos domésticos mudando-se para a aldeia recém-fundada.
Entre eles, dois haviam sido escolhidos para desempenharem, respectiva-
mente, os cargos cerimoniais de aihö’ubuni, líder do grupo, e pahöri’wa.
No caso do aihö’ubuni a escolha de um dos ocupantes deste cargo cerimo-
nial se deu ainda quando seu grupo doméstico ainda vivia na aldeia São
Marcos, apoiando a facção que saiu para fundar a Aldeia Nossa Senhora
de Guadalupe. Tanto nesta aldeia quanto em Jesus de Nazaré foi neces-
sário escolher outros ocupantes para os cargos cerimoniais desfalcados.
Assim, a aldeia N. S. Senhora de Guadalupe ficou desfalcada de um dos
Pahöri’wa e de um dos aihö’ubuni.
A escolha deste Pahöri’wa foi tensa. Numa reunião que aconteceu no
marã, clareira perto da aldeia onde se realizam diversos rituais, quando
começavam as primeiras discussões sobre a proposta de um nome que
viesse a ocupar o cargo de pahöri’wa desfalcado, o pai de um dos meni-
nos interveio e impôs o mesmo como candidato. Houve algumas ponde-
rações sobre o físico de seu filho e a proposta de outro nome. Entretanto,
o pai que se impôs mostrava-se irredutível e seu fi lho, já morador da casa
dos solteiros, tornou-se oficialmente pahöri’wa. O embate não se estendeu
muito visto que o proponente era genro do cacique, sendo seu filho neto do

68 Eliane Cantarino O’Dwyer


mesmo. Um dos informantes nos disse que a atitude do pai do pahöri’wa
escolhido contrariava o processo oficial de seleção dos ocupantes do cargo
cerimonial. Como afi rmamos acima, a escolha dos ocupantes do cargo
cerimonial pahöri’wa deveria ser feita pelos pahöri’wa’rada, os antigos
pahöri’wa.
No caso do cargo vacante de aihö’ubuni a escolha foi menos tensa.
O cargo foi ocupado por um morador da casa dos solteiros que vivia na
aldeia Hö Hi, Nossa Senhora da Guia. Sabendo da vacância para o car-
go de aihö’ubuni em Nossa Senhora de Guadalupe, um grupo doméstico,
que tinha um de seus membros escolhido para este cargo, daquela aldeia
transferiu-se para Guadalupe. Este rapaz já havia sido escolhido em sua
aldeia de origem para desempenhar ali o papel de aihö’ubuni. Portanto,
não sendo necessário passar por outro processo de escolha e assumiu de
imediato o cargo vago.
A aldeia Jesus de Nazaré teve que escolher mais dois ocupantes do
cargo de aihö’ubuni, os dois tébé, um dos pahöri’wa bem como os dois
a’ãma31 – advogados. Aqui não houve a realização dos rituais que prece-
dem a entrada dos moradores na casa dos solteiros. Embora Jesus de Na-
zaré fosse uma aldeia nova os hö’wa, moradores da casa dos solteiros, que
deixaram a aldeia Guadalupe já haviam passado por estes rituais quando
ainda moravam na aldeia São Marcos e não houve um novo ritual para sua
instauração.
Vimos nas páginas precedentes que a escolha daqueles que irão compor
o quadro de atores rituais não se resume apenas a questões estruturais que
indicariam as posições que os atores sociais ocupariam no processo ritual.
Antes de tudo é preciso considerar o contexto de ações dos atores sociais,
bem como os interesses subjacentes no processo ritual. Neste sentido, afi r-
mar que os cargos cerimoniais de aihö’ubuni, tébé e pahöri’wa pertencem
respectivamente aos clãs po’redza’õno, öwawe˜ e po’redza’õno presta ape-
nas para dizer o óbvio. Entretanto, quando procuramos investigar de que
modos se dão tais escolhas injetamos sangue no processo ritual. Desta
forma, não menosprezamos o modo organizacional da sociedade Xavante,
muito menos como ela classifica os atores sociais. Porém, numa situação
processual é importante ver não somente a organização social, mas como
os atores sociais se apropriam e manipulam esta organização em benefício
de seus interesses. Para tanto, somos lançados a acompanhar o contexto

31 Os Xavante traduzem esta categoria como advogado pelo fato deste ator ritual atuar em
defesa dos moradores da casa dos solteiros. Não estaremos tratando em detalhes da escolha
do a’ãma, muito menos de sua atuação no processo ritual.

Processos identitários e a produção da etnicidade 69


social e político do ritual onde acontece a escolha dos atores sociais que
desempenharão os cargos rituais mencionados.
O contexto social e político do ritual de iniciação da classe de idade
abare’u, concluído em 2005, deve ser visto a partir da constituição da casa
dos solteiros que se deu em 2000, ou seja, antes da primeira grande cisão
na aldeia São Marcos. Neste sentido, o primeiro fato a ser considerado é a
divisão política da aldeia. Diante disso foram instauradas duas casas dos
solteiros. Os meninos que estavam vivenciando o ciclo de vida ‘watébrémi
foram distribuídos nestas duas casas dos solteiros segundo os alinhamen-
tos políticos de seus pais. Naquele contexto a crise política que pairava so-
bre a aldeia São Marcos já havia se estendido pelas demais aldeias da terra
indígena homônima. Isto provocou um realinhamento de forças entre as
aldeias que se posicionaram em apoio às duas facções que disputavam pelo
reconhecimento enquanto caciques da aldeia São Marcos. Quando ocorre
de fato a cisão física na aldeia São Marcos o apoio político dado a facção
que deixou aquela aldeia manteve-se.
Com a fundação da aldeia N. S. de Guadalupe a escolha daqueles que
ocupariam os cargos cerimoniais de aihö’ubuni, tébé e pahöri’wa esteve
diretamente relacionada à coalizão de facções que apoiaram a facção ma-
joritária. De modo semelhante ao que acontece no cenário político nacio-
nal, dada as devidas singularidades, onde os vencedores de uma eleição
tendem a repartir entre os aliados os cargos mais expressivos politicamen-
te, na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe os cargos cerimoniais supraci-
tados foram escolhidos entre aqueles que apoiaram politicamente a facção
majoritária. Desta forma, como já afi rmamos um dos cargos de pahöri’wa
e outro de aihö’ubuni ficaram para uma subfacção que posteriormente veio
a deixar Guadalupe e fundar a aldeia Jesus de Nazaré levando consigo os
escolhidos, provocando uma nova disputa pelo cargo vacante. Conforme
já dissemos, o mesmo veio a ser ocupado pelo neto do cacique. O cargo
de segundo pahöri’wa foi dado à Tib32 , fi lho de Br, que por seu turno era
cunhado do cacique. O cargo de primeiro tébé foi dado ao fi lho do sobri-
nho classificatório do cacique, da classe de idade airere, que goza de certo
prestígio político a ponto de demonstrar fortes pretensões de fundar outra
aldeia. O segundo cargo de tébé foi dado ao fi lho de outro irmão do caci-
que. Entretanto, este irmão goza de ampla autonomia política em relação
ao cacique da aldeia N. S. de Guadalupe. O mesmo é cacique de outra al-
deia. Os cargos de aihö’ubuni, cerca de três no total, foram dados respec-

32 Altero o nome dos atores sociais para preservar suas identidades.

70 Eliane Cantarino O’Dwyer


tivamente: ao rapaz que veio da aldeia Hö Hi, sobrinho do pai do segundo
tébé; ao fi lho de Z. Ma que mora na aldeia São Marcos; e, ao fi lho de Ub.
O caso da escolha do segundo aihö’ubuni, o fi lho de Z. Ma que mora
na aldeia São Marcos, merece destaque pelo fato de pertencer à Aldeia São
Marcos – havia o clima de tensão que resultou na cisão daquela aldeia. O
pai deste aihö’ubuni sempre procurou colocar-se neutro nas rixas entre as
facções que disputavam a chefia daquela aldeia. Como já descrito acima, a
escolha dos cargos de aihö’ubuni acontece previamente, antes da instaura-
ção de uma nova casa dos solteiros, e torna-se oficial depois da admissão
formal de seus moradores. Digo isto para mostrar que a escolha do fi lho
de Z. Ma como aihö’ubuni parece indicar que a posição de neutralidade
nas disputas políticas permanece apenas no discurso, havendo momentos
em que uma posição deve ser tomada.
O processo ritual pode ser igualmente visto como um fator decisivo
para tomada de posicionamentos. De outro modo, o fato de a facção que
saiu de São Marcos aceitar que o fi lho de Z. Ma assuma o cargo cerimo-
nial de aihö’ubuni pode ser visto como uma estratégia de conquista de
partidários para sua facção. Em verdade, o fato de o fi lho de Z. Ma ter
se tornado aihö’ubuni fez com que o mesmo fosse tomado como membro
de uma facção. Isto se tornou claro num dos confl itos que levaram a vias
de fato, ocorrido na aldeia São Marcos, onde Z. Ma teve o crânio partido
por um golpe de borduna. Entretanto, Z. Ma continuou morando em São
Marcos depois que a facção que dera o cargo de aihö’ubuni a seu fi lho
deixou aquela aldeia para fundar outra. O filho de Z. Ma seguiu para a
nova aldeia onde teve continuidade seu processo de iniciação. Durante os
vários rituais que compõem o danhono Z. Ma sempre esteve presente em
Guadalupe acompanhando o desempenho de seu filho.
Lopes da Silva (1986, p. 76) e Maybury-Lewis (1984, p. 119) sinalizam
que os cargos ritual de aihö’ubuni, tébé e pahöri’wa são herdados patri-
linearmente. Lopes da Silva, entretanto, evita investigar a fundo as possi-
bilidades de manipulação política das “posições” expressas por estes três
nomes, linhas antes de afi rmar a herança patrilinear destes papéis rituais
(idem), justificando-se que esta opção desviaria do objetivo principal de
seu trabalho e ainda pelo fato de Maybury-Lewis ter já tratado da ques-
tão. De fato Maybury-Lewis procura relacionar a distribuição de papéis
rituais entre as facções na aldeia São Domingos, onde efetuou seu traba-
lho de campo. Segundo ele a tarefa de carregar uma capa ritual chamada
no’oni33, que dá o mesmo nome a uma corrida ritual, deveria ser privilégio

33 Não trataremos do ritual da corrida do No’oni neste texto. De antemão, informamos que

Processos identitários e a produção da etnicidade 71


de uma determinada linhagem, enquanto que os nomes de Pahöri’wa e
Tébé deveriam ser dados a membros de uma facção diferente daquela à
qual pertencem os que carregam a capa (MAYBURY-LEWIS, 1984, p.
317). Isto possibilitaria a manutenção de uma relação típica de pessoas
que são watsire’wa, (idem), que se opõem aqueles que são aos tsire’wa34.
Entretanto, diz o autor, na prática, essa cláusula (como a maior parte das
demais) pode ser violada por uma facção particularmente forte, que consi-
ga tomar para si os cargos cerimoniais que, de direito, pertencem à oposi-
ção (idem). Os dados etnográficos apresentados por David Maybury-Lewis
mostram que a prática de distribuição dos cargos cerimoniais entre facções
na aldeia São Domingos estava bem consolidada. Os cargos de Pahöri’wa
e Tébé estavam sob domínio da facção chefiada por Apöwe˜, pertencente
ao clã po’redza’õno, enquanto que os carregadores do noni foram escolhi-
dos entre os membros da linhagem Dzutsi, pertencentes ao clã öwawe˜.
Estamos de acordo com Maybury-Lewis quanto à manipulação políti-
ca durante a distribuição dos cargos cerimoniais entre facções. Contudo,
divergimos quanto à apresentação dos dados para explicar esta assertiva.
O modo como o autor apresenta os dados etnográficos sugere-nos a en-
tender que de um lado temos a facção de Apöwe˜, do clã po’redza’õno,
em oposição à linhagem Dzutsi, do clã öwawe˜. À facção de Apöwe˜ cabe
os cargos rituais de Pahöri’wa e Tébé, enquanto que à linhagem Dzutsi o
privilégio de carregar a capa do noni. Isto garante o que o autor chama de
“relação típica” aquela entre watsire’wa, que se opõem aqueles que são aos
tsire’wa. No entanto, como apresentamos acima, os cargos de pahöri’wa e
tébé pertencem, respectivamente, aos clãs po’redza’õno e öwawe˜. O cargo
de carregador do noni é prerrogativa do clã öwawe˜. Dito isso, podemos
afi rmar que a relação watsire’wa (nós) X tsire’wa (os outros) dá-se em
conformidade com a filiação clânica exclusivamente, não sendo necessário
qualquer referência à constituição de facções. Uma facção Xavante é com-
posta por vários grupos domésticos oriundos dos três clãs (po’redza’õno,
öwawe˜ e tob’ratato). Assim, se a facção de Apöwe˜ detém os cargos de
pahöri’wa e tébé certamente ele deve ter, entre seus correligionários, mem-

trata-se de um ritual onde os neófitos, após terem os lóbulos auriculares já perfurados ritual-
mente, desafi am uns aos outros e aos membros da última classe de idade iniciada para uma
corrida de aproximadamente 400 metros rasos. Todas as classes de idade podem participar
desta corrida competindo entre si ou desafi ando membros de outras classes. O carregador
da capa do no’oni dá a largada das baterias que acontecem no amanhecer e ao entardecer.
34 A categoria watsire’wa significa os do meu lado, da mesma metade, conjunto de pessoas
do mesmo clã a qual o ego pertence. Enquanto que os Tsire’wa são aqueles que pertencem
ao clã oposto de ego.

72 Eliane Cantarino O’Dwyer


bros dos clãs po’redza’õno, a qual pertence o chefe da facção, e öwawe˜.
Do outro lado, a linhagem Dzutsi, do clã öwawe˜, por deter o cargo de
carregador da capa do noni marca posição no contexto ritual e político. A
facção de Apöwe˜ poderia ter para si o cargo de carregador do noni. Entre-
tanto, ela renuncia esta possibilidade para manter o equilíbrio político na
aldeia. De outro modo, a facção de Apöwe˜ estaria ameaçada caso forçasse
deter exclusividade sobre o processo ritual.
Os dados etnográficos mostram que a distribuição de cargos cerimo-
niais acontece tomando por base o contexto político local. Entretanto,
não podemos descartar a posição estrutural destes cargos, pois sem ela o
processo ritual estaria ameaçado.

Estratégias adotadas na produção do ritual


No ano que antecede a realização dos rituais que promoverão a iniciação
dos moradores da casa dos solteiros, dos hö’wa, os grupos domésticos ide-
almente deveriam aumentar o plantio de milho, o nodzö ou nodzö’u35 . O
milho é o ingrediente principal na confecção de alimentos rituais (bolos) a
serem trocados e oferecidos durante os rituais. Neste tempo, durante as ca-
çadas é dada uma atenção especial a busca de araras que fornecerão penas
a serem utilizadas nos ornamentos corporais (GIACCARIA & HEIDE,
1984, p. 162). Não obstante, embora os autores afi rmem que todos vão à
caça de araras, observamos que quando se trata de caçadas não há uma
presa particular a ser alcançada. Durante as expedições de caça em que
acompanhamos os Xavante, todas as presas eram alvos em potencial. Até
mesmo animais que implicassem algum tabu alimentar ao caçador eram
abatidos.
O processo de territorialização (OLIVEIRA FILHO, 1998, p. 9; 1999,
p. 21) a qual os Xavante foram submetidos tem provocado grandes trans-
formações na reprodução de suas práticas culturais. Animais e aves ne-
cessários à confecção de ornamentos corporais estão se tornando cada
vez mais escassos nas Terras Indígenas (TIs) reconhecidas. O avanço de
grandes plantações, atreladas ao agronegócio tem provocado um aumento
no desmatamento de áreas próximas às Terras Indígenas. Isto tem contri-
buído significativamente para uma redução na oferta de animais a serem
caçados. Some-se a isto também o crescimento da população Xavante que

35 Nodzö’u é também o nome de uma classe de idade. Este tipo de milho caracteriza-se pelo
colorido de seus grãos na espiga. Normalmente alternam-se as cores vermelho e preto. Em
relação ao milho convencional o nodzö’u é mais macio.

Processos identitários e a produção da etnicidade 73


tem gerado um aumento na pressão sobre o estoque de caça disponível nas
TIs. No caso das araras, da qual se extraem penas utilizadas em diversos
ornamentos, estão cada vez mais difíceis de serem encontradas nos territó-
rios reconhecidos e demarcados.
Diante desta realidade uma alternativa encontrada para garantir o
abastecimento de matéria-prima na confecção de ornamentos vem sendo
buscada através de um intercâmbio entre etnias que vivem em outros terri-
tórios. Conversando com alguns informantes, cujos fi lhos estariam desen-
volvendo cargos especiais durante o danhono, sobre as alternativas, diante
da escassez, encontradas para garantir o fornecimento de penas e algodão
utilizados na confecção de ornamentos corporais, tomamos conhecimento
da existência de uma rede de cooperação que envolve parentes que moram
em outras aldeias da Terra Indígena São Marcos, bem como, em outras
Terras Indígenas Xavante. Tal rede garante a circulação de vários produtos
essenciais na produção de objetos de uso ritual.
Quando a rede local de cooperação não é suficiente para atender a
demanda por matéria-prima, os Xavante se deslocam para outras regiões.
O Parque do Xingu tem sido um destes locais. Ali um dos informantes
negociou monetariamente e através de trocas, na qual oferecia um tipo de
caracol encontrado no cerrado e escasso no Parque, uma quantidade de pe-
nas suficiente para confecção dos ornamentos. A capital federal, Brasília,
tem sido outro local possível de se obter penas de aves para confecção de
ornamentos. A interação com grupos étnicos de diferentes pontos do ter-
ritório nacional favorece a circulação e comercialização de bens culturais.
A preocupação em garantir o fornecimento dos principais materiais
utilizados na confecção dos ornamentos não se deve apenas ao capricho
dos parentes do ator ritual. Socialmente espera-se que o grupo doméstico,
da qual provém aquele que está em processo de iniciação, seja capaz de
oferecer ornamentos com certa perfeição estética, segundo a concepção
Xavante. Esta perfeição estética está relacionada à qualidade e quantidade
dos materiais utilizados nos ornamentos corporais. Ornamentos que apre-
sentam materiais danificados ou em pouca quantidade geram comentários
depreciativos em relação à capacidade de produção do grupo doméstico
em questão. Do mesmo modo, a organização da matéria-prima, penas,
por exemplo, devem combinar-se segundo as tonalidades de cores e tama-
nhos, de modo que ao fi nal o ornamento esteja em harmonia. Ornamentos
confeccionados em palha, como as capas wamnhorõ, por exemplo, devem
apresentar uma defi nição muito clara, mediante pintura, dos clãs.

74 Eliane Cantarino O’Dwyer


Além da busca por matéria-prima em quantidade e qualidade suficiente
para momentos únicos no processo ritual, para os quais se confeccionam
os adornos corporais específicos, os grupos domésticos daqueles que serão
iniciados se põem a fabricar outros ornamentos que serão de uso contínuo
durante o processo ritual. É o caso, por exemplo, da borduna cerimonial
ub’ra. Esta borduna, em formato cilíndrico com cerca de um metro de
comprimento, é confeccionada com madeira aroeira ou pau-brasil36. Sua
confecção demanda tempo e habilidade do artesão. Diante disto, alguns
pais que vivem e trabalham na cidade de Barra do Garças e não dispu-
nham de tempo necessário para confecção das bordunas ub’ra para seus
fi lhos que estavam sendo iniciados apresentaram o modelo da borduna a
um marceneiro na cidade que as confeccionou numa máquina tipo torno.
Na aldeia São Marcos, onde observei este fato, as bordunas confecciona-
das na cidade se tornaram alvo de admiração pelos demais moradores.
Dissemos acima que o aumento populacional tem gerado forte pressão
sobre o estoque de caça disponível na terra indígena demarcada. Conse-
quentemente isto afeta a produção do ritual. Em 2005, na Terra Indígena
São Marcos, seis aldeias de um total de 28 realizaram o danhono: São
Marcos, Namunkurá, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de
Fátima, Jesus de Nazaré e Nossa Senhora da Guia. As demais enviaram
seus neófitos às aldeias que realizavam o danhono, seguindo os critérios
de apoio faccional, onde foram iniciados. Dado o tamanho da população
xavante na Terra Indígena não havia espaço suficiente para que todas as
aldeias que realizavam uma caçada para fi ns rituais danhono. Nesta ca-
çada, chamada imandö – caçada com fogo cujo produto é destinado aos
rituais do tébé e pahöri’wa, todas as classes de idade procuram abater
o máximo possível de caça para serem usadas nos rituais mencionados.
Dado as instabilidades políticas que paira na Terra Indígena, bem como o
temor de escaramuças motivadas por vinganças, cada aldeia que realizava
o danhono buscou locais alternativos para realizarem as caçadas.
A aldeia São Marcos se deslocou para uma região conhecida como Ita-
querê, fora dos limites da Terra Indígena. Este local fora igualmente usado
como região de caça em 1997. Naquela época, a região era considerada
como terra devoluta. Contudo, em 2005 boa parte daquela região já havia
sido desmatada para o plantio de soja e milho. Ainda assim, o resultado

36 Esta espécie de madeira é escolhida por serem avermelhadas. Na falta de uma destas es-
pécies de madeira os grupos domésticos costumam confeccionar as bordunas com outro tipo
de madeira e aplicam-lhes uma pintura vermelha extraída do urucum.

Processos identitários e a produção da etnicidade 75


da caçada ali foi maior do que aquele obtido nas demais aldeias que reali-
zaram o danhono.
O local escolhido pela aldeia Namunkurá para realização da caçada
imanadö foi o norte e centro oeste da Terra Indígena. A aldeia Nossa Se-
nhora da Guia, por seu turno, se deslocou para o lado sudeste da Terra
Indígena.
As aldeias Nossa Senhora de Guadalupe, Jesus de Nazaré e Nossa Se-
nhora de Fátima ficaram sem alternativas de caça na Terra Indígena. Isto
porque as áreas exploradas por Namunkurá e Nossa Senhora da Guia pra-
ticamente abrangia todo o centro-norte da Terra Indígena e no centro sul
o número de aldeias e a densidade populacional inviabilizava caçadas de
longos dias, além de oferecer um baixo estoque de animais. Diante disso
os moradores da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de
Fátima e Jesus de Nazaré se deslocaram para a Terra Indígena Merure –
da etnia Bororo, limítrofe à Terra Indígena São Marcos, para realizarem
esta caçada. Entretanto, mais do que uma questão de busca de uma alter-
nativa de espaço para realização da caçada ritual, estas três aldeias bus-
cavam também manter distância das demais. No realinhamento político
que ocorreu quando se instaurou a crise na aldeia São Marcos em 1997 e
posterior cisão desta em 2002, as três aldeias (São Marcos, Nossa Senhora
da Guia e Namunkurá) constituíram um bloco faccionário de autoapoio
em oposição à facção que fundaria a aldeia Nossa Senhora de Guadalupe.
Esta aldeia também compôs um bloco faccionário. Contudo, mais instável.
As aldeias Jesus de Nazaré e Nossa Senhora de Fátima se constituíram
a partir de dissidências da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe. Apesar
disso, ainda estavam mais próximas politicamente do que em relação às
demais.
Por estarem mais adiantados do que as demais aldeias (Jesus de Nazaré
e Nossa Senhora de Fátima) na execução do processo ritual, os moradores
da aldeia Nossa Senhora de Guadalupe se instalaram primeiro no territó-
rio Bororo ocupando a região oeste. A aldeia Jesus de Nazaré, a segunda
a iniciar a caçada, começou a explorar a região no sentido norte/centro do
território Bororo. Por seu turno os moradores de Nossa Senhora de Fáti-
ma, últimos a iniciarem a caçada, começaram a explorar a região centro/
sul e sudeste do território Bororo.
Uma semana após o início da caçada os caçadores da aldeia Nossa
Senhora de Guadalupe, grupo que acompanhei nas caçadas e todo o pro-
cesso ritual, planejaram explorar a área leste da terra dos Bororo. Antes
de embarcar no caminhão, que levaria os caçadores até o local programa-

76 Eliane Cantarino O’Dwyer


do, o cacique me chamou e recomendou para que estivéssemos prevenidos
contra possíveis encontros com os caçadores das aldeias Nossa Senhora de
Fátima e Jesus de Nazaré ou ainda com os próprios Bororo. Não obstante,
este encontro não só aconteceu como também foi marcado por muita cor-
dialidade entre os caçadores. No encontro, que aconteceu logo após dois
caçadores de Nossa Senhora de Guadalupe terem abatido duas antas em
locais bem próximos, apareceram Lo., um dos líderes de Nossa Senhora de
Fátima e Ant., de Jesus de Nazaré. Estes caçadores permaneceram no local
por algum tempo conversando sobre como as antas haviam sido abatidas
e depois de ganharem pedaços de vísceras moqueadas seguiram caçando.
Constatamos que o temor de encontrar caçadores de outras aldeias era
mais um problema para o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe do que
para os demais caçadores.
Acima mencionei as preocupações do cacique de Guadalupe sobre nos
precavermos de algum encontro com os Bororo. Sua preocupação não era
de todo infundada. O fato de os Xavante estarem caçando em territó-
rio dos Bororo gera também problemas nas relações entre as duas etnias.
Contudo, o cacique de Nossa Senhora de Guadalupe disse que os Xavante
havia conquistado o direito de caçar e explorar o território Bororo de-
pois que ele, Mario Juruna37 e outros ˜ ihire que estavam no acampamento
de caça, expulsaram os fazendeiros que ocupavam a região na década de
1970 quando ocorreram as demarcações das duas terras indígenas. Segun-
do o cacique os Bororo não querem agradecer o apoio recebido. Uma for-
ma de agradecer, segundo o cacique, seria deixar os Xavante executarem
suas caçadas ali. Eles (os Xavante) poderiam até tirar madeira ali, mas não
tinham interesse em fazer.
Apesar de os Xavante sentirem-se no direito de caçar nas terras dos
Bororo, havia sempre a preocupação de encontrá-los. No retorno de um
dia de caçada que se deu na direção da aldeia dos Bororo chamada Gar-
ças, passando pela aldeia do Bororo Paulinho, famosa por ter recebido a
visita do ministro da Cultura Gilberto Gil em abril de 2004, os caçadores
Xavante tinham receio de andar pela estrada que dá acesso àquelas aldeias
carregando as presas abatidas. Ao retornarmos para o ponto de encontro
onde o caminhão aguardava os caçadores, fomos orientados por um dos
caçadores a não andar na estrada com o queixada que ajudávamos a car-
regar para que os Bororo não nos visse. Segundo o caçador, se o Bororo
estivesse embriagado o mesmo poderia criar problemas.

37 Xavante que ocupou o cargo de deputado federal. Foi o primeiro indígena eleito para
ocupar este cargo e exerceu o mandato de 1983 a 1987. Faleceu em 2002.

Processos identitários e a produção da etnicidade 77


Embora não haja consentimento formal e reconhecimento de um di-
reito todos os anos os Xavante caçam no território Bororo. No cenário
do danhono de 2005, por pouco as tensões já existentes entre as duas
etnias não tomam dimensões de um confl ito de maior gravidade. Em mais
um dia de caçada ao encontrar o cacique tomamos conhecimento que um
Bororo havia tentado balear um caçador Xavante. Segundo a versão de
M., cunhado do pai do segundo tébé, o mesmo estava caçando sozinho
quando ouviu tiros vindos das proximidades. De acordo com M., o caça-
dor vítima, os tiros eram dados em sua direção e passavam perto de sua
cabeça a ponto de ouvir o som das balas. Pensando serem companheiros
que estivessem atirando em alguma queixada (porco do mato), o mesmo
ficou abaixado. Entretanto, os disparos não cessavam. Teriam sido dados
cinco tiros. Quando ele se levantou viu que o atirador era um Bororo que
estava montado a cavalo. M. teria ficado escondido e o Bororo foi embora.
Posteriormente, outro caçador, U., encontrou com um Bororo, que estava
armado com uma espingarda semiautomática, a quem disse estar procu-
rando uma vaca perdida.
Ao encontrar os companheiros de caçada M. narrou o episódio que
foi avolumado com a confirmação de U., de ter igualmente encontrado o
Bororo. A cada narrativa crescia o discurso de pedidos de esclarecimentos
e ameaças de represálias ao Bororo. Ao fi nal do dia quase todos os caça-
dores Xavante, já cientes do fato, aguardavam o caminhão nas margens
da BR-070 que os levaria de volta ao acampamento de caça. Neste ínterim
os caçadores avistaram uma viatura dos Bororo que estava retornando da
aldeia Merure para uma outra. A viatura foi obrigada a parar e o cacique
procurou saber quem era o vaqueiro Bororo da aldeia Merure. Após relatar
o fato que havia acontecido com M., o cacique falou que se fosse noutros
tempos teria ido à Merure e matado o vaqueiro como vingança. Em tom
de conciliação pediu que transmitissem o recado ao vaqueiro para que não
fi zesse isso novamente. Caso algum tiro tivesse acertado M., ele (o cacique)
teria vingado. Contudo, pediu que avisassem o Bororo que não haveria
vingança, e concluiu: “Deus é grande e não queremos fazer isso com nossos
irmãos, mas se ele (o bororo) quer fazer... não pode fazer mais isso”.
De volta ao acampamento, quando os outros caçadores retornaram e
tomaram conhecimento do fato, decidiram que no dia seguinte iriam até
Merure para se vingar. O acampamento estava dividido sobre a questão. A
sede de vingança crescia porque dias antes havia chegado a notícia de que
os Bororo tinham tomado as ferramentas usadas por parte do grupo dos
dahi’wa, status da classe de idade que fiscaliza a conduta dos neófitos, que

78 Eliane Cantarino O’Dwyer


tinham ficado na aldeia Guadalupe e estava preparando um local, dentro
da Terra Indígena Merure, no qual iniciar-se-ia uma corrida cerimonial, o
tsauri’wa – soprador, no fi nal do processo de iniciação. Parece-nos que os
Bororo, ao encontrar a clareira aberta dentro de suas terras, imaginaram
que os Xavante estariam planejando construir ali outra aldeia, como já
havia acontecido38. As ferramentas usadas pelos dahi’wa estavam escon-
didas nas proximidades e foram levadas. Entretanto, prevaleceu a palavra
do cacique de que não haveria vingança e noutro dia os Xavante seguiram
caçando. Não obstante, foi decidido que uma parte dos caçadores ficaria
no acampamento de caça, caso os Bororo aparecessem.
Uma última consideração a ser feita sobre o processo ritual e confl itos
é que o fenômeno não pode ser considerado como algo decorrente ou que
passou a acontecer após o contato e/ou do processo de territorialização,
embora neste caso tenha contribuído significativamente ao colocar em
convivência vários grupos que no passado mantinham hostilidades mú-
tuas. Ao longo deste capítulo chamamos atenção aos confl itos entre os
próprios Xavante e com membros de outra etnia, os Bororo. Não obstan-
te, os dados etnográficos que dispomos sinalizam que situações como as
que foram apresentadas há muito ocorrem entre os Xavante. Durante o
trabalho de campo levantamos o caso de Rin., membro da classe de ida-
de ˜etepa˜ b’rada. Rin. é um dos poucos Xavante que passou pelo ritual
de iniciação do danhono antes que sua etnia aceitasse o contato com a
sociedade não indígena. Sua iniciação teve início numa aldeia chamada
Pawadzara’dzé 39 situada na região conhecida como Couto Magalhães40,
tendo como referência o rio homônimo, e foi abruptamente interrompida
pelo ataque de outro grupo Xavante, segundo um informante, proveniente
da região do rio Kuluene, rio principal que forma o Xingu. Em decorrên-
cia deste ataque sua aldeia interrompeu o danhono, que estava na fase
do ritual da corrida do noni, por conta da dispersão de seus moradores
que depois de reagruparem-se buscaram ajuda junto à Missão Salesiana

38 A aldeia Jesus de Nazaré foi construída em um local que os Bororo reivindicam como
sendo parte de sua terra indígena. Os Xavante, por seu turno, contestam alegando que houve
equívocos no momento da demarcação das duas terras indígenas, que são limítrofes, e uma
faixa de 10 quilômetros ficou para os Bororo.
39 Sobre esta aldeia veja Lopes da Silva (2002, p. 370). Segundo esta autora, os moradores
de Parawadzara’dzé se formaram a partir de reagrupamentos de Xavante oriundos de outros
grupos que entraram em confl ito entre si e com regionais e se dispersaram.
40 Parte do território Xavante que estava localizado na região do rio Couto Magalhães foi
demarcado e reconhecido como Terra Indígena Parabubure – Municípios de Campinápolis,
Água Boa, Canarana e Nova Xavantina.

Processos identitários e a produção da etnicidade 79


de Merure, em 1956. Os conflitos desta natureza (entre aldeias) estão di-
retamente relacionados ao faccionalismo xavante. Maybury-Lewis (1984,
p. 250) destaca que “a facciosidade é um fato básico na vida Xavante”.
Este autor acentua que as diversas facções estão em constante competição
por prestígio e poder, tendo como maior prêmio a chefia. Contudo, o fac-
cionalismo Xavante não deve ser tomado como uma endemia que de tempo
em tempo atinge os Xavante. Para evitar um tipo de análise que caminhe
nesta direção é preciso esquivar-se da dicotomia do antes e o pós-contato.
Neste sentido, tomamos por base de análise um caminho já trilhado por
Oliveira Filho (1977), para o exame da organização política emergente
entre os Tikuna. Este autor evita separar (...) uma ordem política “imposta
pelo contacto” de outra “nativa”, dedicando a essa última toda a atenção
(...). A elaboração de novos padrões de organizativos da vida política foi
vista então como produzida pelos Tukuna a partir de um ponto de apoio –
a organização política articulada à situação histórica precedente – e de um
fator dinâmico – as determinações da nova situação histórica (OLIVEIRA
FILHO, 1977, p. 77).
Assim como o danhono não é mera repetição cíclica de uma organi-
zação social, o sistema de classes de idade, o faccionalismo Xavante não
pode ser igualmente pensado como uma simples continuidade de lutas po-
líticas do passado. Nos dois casos a situação histórica vivida em diferen-
tes contextos de interação social impele os atores sociais a repensarem e
redefi nirem não só a dinâmica do processo ritual, como também os rear-
ranjos dos grupos políticos, as facções. Desta forma, é preciso ter claro
que o faccionalismo não pode ser considerado uma epidemia que atinge
os Xavante, ou outras etnias, de tempos em tempos. O modo de alocar e
distribuir os atores políticos Xavante no seio de sua organização social,
bem como a formação de grupos antagônicos, deve ser pensado como “um
tipo de forma organizacional” (BARTH, 2002). Neste sentido, vemos que
os processos rituais e políticos são constantemente repensados dentro dos
novos contextos de interações, alavancados pelas novas possibilidades da
situação histórica, que permitem acesso a bens materiais e simbólicos.
Por fi m, é preciso salientar que a produção do ritual não está inerte às
dinâmicas do processo social. Mesmo aceitando a defi nição de ritual de
Turner (2005, p. 49) como sendo o (...) comportamento formal prescrito
para ocasiões não devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência
a crença em seres ou poderes místicos, ou de Peirano (2003, p. 11), segun-
do a qual: O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica (...)
constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em

80 Eliane Cantarino O’Dwyer


geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e ar-
ranjos caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalida-
de), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição),
não podemos deixar de situá-lo no contexto social de sua produção. Neste
sentido, o jogo político das facções, os confl itos, as alternativas buscadas
para suprirem as carências materiais impostas pela nova situação social – a
territorialização –, não devem ficar à margem das descrições e análises do
processo ritual.

Bibliografia
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Processos identitários e a produção da etnicidade 81


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82 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 3

Tradição, Práticas rituais e afirmação étnica entre os Tuxá


de Rodelas: uma abordagem da cultura enquanto processo
Ricardo Dantas Borges Salomão

Nesse texto procuro analisar a relação e os processos de transformação


das práticas rituais do povo indígena Tuxá durante o processo de sua
afi rmação étnica perante o estado brasileiro. O texto tem como objetivo
refletir esses processos de resignificações e redimensionamentos culturais
através de uma perspectiva histórica dos processos sociais, sem entretanto
essencializá-los. Nesse sentido, ao invés de focar na construção de uma es-
trutura do ritual praticado pelos índios Tuxá, focarei nos contextos de ree-
laboração das suas práticas rituais, pensando a cultura enquanto processo,
problematizando a relação entre estrutura e evento. Portanto, as práticas
rituais serão analisadas como um processo cultural que está sempre sendo
atualizado e interrelacionado com aspectos econômicos, políticos e sociais.
Neste sentido, não pretendo classificar ou defi nir elementos de autenti-
cidade cultural, reduzindo-se a uma visão dicotômica entre “verdadeiro”
ou “falso”, cultura “tradicional” ou “inventada”. Também não procuro
compreender a identidade Tuxá a partir da perspectiva segundo a qual a
“cada povo, uma cultura”, tentando criar conexões com algum passado
cultural específico de um povo indígena, e traçar uma história linear, com
o intuito de estabelecer comparações que legitimem ou não sua identida-
de indígena. Ao contrário, apresentarei a cultura do povo indígena Tuxá
construída e reproduzida num contexto de interação de e entre diversos
povos indígenas e não indígenas.
Nesse sentido, não abordo a diferença cultural como descontinuidade,
mas como um produto de processos interativos entre diferentes grupos e
da forma como as pessoas estabelecem suas relações, como se classificam
e comunicam diferenças identitárias, criando critérios de pertencimento.
Como sugere Barth (2000) não é o isolamento o fator principal que consti-
tuirá a diferença identitária e cultural, mas a interação que envolve tantos
aspectos confl itantes como de interdependências, podendo ocorrer em si-

Processos identitários e a produção da etnicidade 83


tuações e contextos variados de complementariedade econômica e política.
Segundo Barth (2000, p. 35):

“a persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas a exis-


tência de critérios e sinais de identificação, mas também uma estrutu-
ração das interações que permita a persistência de diferenças culturais.
Considero que a característica organizacional que deve ser geral em todas
as relações interétnicas é um conjunto sistemático de regras que gover-
nam os encontros sociais interétnicos. Em toda a vida social organizada,
aquilo que pode ser tomado como relevante para a interação em qualquer
situação social particular é prescrito”.

Portanto abordo a tradição, baseando-me nos argumentos de Linnekin


(1983), como um produto histórico, sendo seu conteúdo sempre construído
situcionalmente e modificado ao longo dos anos. Para Linnekin (1983, p.
241): “tradition is a conscious model of the past lifeways that people use
in the construction of their indentity”.
Deste modo, ao invés de pensar o conceito de tradição, como um todo
coerente que se legitima a partir da sua conexão com o passado, abordo a
tradição, sem negar a existência de uma herança cultural compartilhada,
como uma seleção de aspectos culturais que é constituída e formada sem-
pre no presente, ou seja, o conteúdo do passado é modificado e redefi nido
de acordo com sua importância no cotidiano da vida social de indivíduos
e grupos.
A análise se inicia com o movimento de reivindicação e afi rmação étni-
ca na década de 1920 e termina refletindo sobre os impactos criados pelo
deslocamento compulsório dessa população indígena devido a inundação
de seu território tradicional e imemorial pelo lago de Itaparica, formado
pela construção das hidroelétricas de Paulo Afonso e Itaparica.

Uma breve etno-história dos índios Tuxá de Rodelas


A antiga população indígena ou cabocla41 que habitava a área do an-
tigo aldeamento missionário de Rodelas, foi pouco a pouco perdendo a

41 Ao contrário do caso apresentado por Roberto Cardoso de Oliveira (2006) no qual a cate-
goria “caboclo” tinha uma conotação pejorativa e insultante da identidade Terena em Mato
Grosso, tanto para índios como para os não índios em Rodelas, tanto a categoria “caboclo”
ou “índio” eram usadas para se referir as mesmas famílias que habitavam o antigo aldeamen-
to de Rodelas. O termo “caboclo” não tinha conotação desvalorativa, e ao contrário, os Tuxá
mais antigos, quando se referem a algum membro da sua comunidade com orgulho, dizem

84 Eliane Cantarino O’Dwyer


posse de suas terras durante a reestruturação fundiária ocorrida no século
XIX, que tinha como objetivo modernizar o país e estabelecer um ordena-
mento jurídico determinando e regularizando as propriedades territoriais,
buscando integrar as diferentes províncias em um todo e a consolidação do
Estado Nacional (OSÓRIO SILVA, 1996). A lei procurava defi nir as terras
devolutas e o meio pelo qual elas poderiam ser vendidas e possuídas, resol-
ver a questão das posses irregulares dos sesmeiros, estabelecer ao Estado o
direito de reservar terras para a colonização indígena, para a fundação de
povoamentos, para aberturas de estradas, para a fundação de estabeleci-
mentos públicos e para a construção naval. De uma forma geral, se tratava
de uma lei que buscava assegurar o controle da terra pelo poder público.
No nordeste esse processo ocorreu em meio a conflitos políticos desen-
cadeados pelo confronto de interesses dos diferentes grupos sociais como
os donos de sesmarias, rendeiros e indígenas no caso de Rodelas. Na práti-
ca os sesmeiros que possuíam as maiores extensões de terras e maior poder
político de influência na sociedade conseguiam efetivar suas propriedades,
enquanto os rendeiros e posseiros, e ainda em pior situação os indígenas,
permaneciam em posição desfavorável e muitas vezes subordinados a eles.
Todo o decorrer do processo de medição das terras devolutas se realiza
articulado aos interesses de poderes locais.
É durante esse período que se começa a falar em “índios misturados”
(DANTAS, 1992, p. 451). Os regionais, seguindo convenientemente seus
interesses, começam a caracterizar os índios como “misturados” e “mesti-
ços”, lhe dando uma série de atributos que os desqualificariam como indí-
genas, que mais tarde acarretaria a negação da existência de índios nessas
províncias. O Império baseando-se nessas informações, começa a extin-
guir os aldeamentos indígenas no nordeste. Desde então, se acirra ainda
mais a disputa pela posse das terras das aldeias extintas entre municípios,
províncias e o Império. Os relatos do último missionário presente em Ro-
delas, Frei Luíz de Gúbio (REGNI, 1988) e de Halfeld (1860) em meados
do século XIX informam que nesse período havia aproximadamente 140
índios no antigo aldeamento.
Um documento de 1908 encontrado no Arquivo Público de Pernambu-
co, em Recife, registra o primeiro protesto formal dos índios localizados
no povoado de Rodelas no século XX, contra a usurpação de suas terras.
O índio se apresenta pertencendo a “tribo Tuchá”. O documento foi redi-

“fulano era caboclo de verdade, autêntico”. O confl ito do uso das duas categorias só ocorre
após o processo de reivindicação de direitos territoriais ao estado brasileiro pelos índios Tuxá
em meados do século XX.

Processos identitários e a produção da etnicidade 85


gido pelo Tabelião Público Vitalício Francisco Alves de Carvalho, uma vez
que o índio Jacintho Baptista dos Santos atesta que não sabia escrever. Um
mês depois, o mesmo índio “Tuchá” elabora outra petição agora endereça-
da ao governador de Pernambuco Herculano Bandeira de Mello.
Os confl itos entre os não índios proprietários de terras e a popula-
ção indígena do antigo aldeamento vai se intensificando principalmente
a partir da década de 1920, quando por medo do cangaço, a população
que vivia nas fazendas começa a se aglomerar no antigo aldeamento em
torno da igreja que era uma referência para a região, constituindo o povo-
ado de Rodelas, que ficava sobre a jurisdição do município de Glória. As
famílias brancas proprietárias de terras e que detinham o poder local iam
ocupando as ilhas do rio São Francisco e as áreas de várzeas que eram os
terrenos férteis dessa região semiárida, expulsando os índios de suas casas
e dos terrenos onde praticavam uma agricultura de subsistência. Fonseca42
(1996, p. 179) escreve que nesse período, o povoado era constituído por
aproximadamente “40 casas de não índios e um pouco menos de índios”,
formando uma única povoação, se distinguindo porque os índios mora-
vam na área que ficava rio acima a partir da Igreja, morando em casas de
taipa, enquanto os brancos, “descendentes dos colonizadores”, moravam
na área que ficava rio abaixo a partir da mesma Igreja, sendo suas casas
“de alvenaria e caiadas, algumas de beira-bica trabalhada. Uma ou outra
com um floral na fachada”. Se a igreja no passado era um símbolo, e uma
instituição que teria como objetivo “instruir” os índios para sua integra-
ção na sociedade não indígena, agora era o marco e símbolo da divisão
entre a aldeia indígena e a casa dos “brancos” e “morenos”.
A categoria “moreno” designava a população de ex-escravos, não pro-
prietários de terras e empregados dos proprietários de terras locais que
também foram se agrupando atrás da rua principal onde moravam os
“brancos”, que seria chamada “Rua dos Morenos” ou dos “Raposos”,

42 João Justiano da Fonseca é um escritor bahiano nascido em 1920 no povoado de Rodelas.


Morou e se criou em Rodelas tendo se mudado para Salvador quando idoso. Fonseca pertence
a uma família “branca”, antiga proprietária de terras na freguesia de Rodelas, da classe do-
minante economicamente e politicamente na região. Escreveu nove livros, sendo seis de poe-
mas, dois romances e um sobre a história de Rodelas chamado Rodelas, Curraleiros, Índios e
Missionários. Fonseca escreveu esse livro a partir de fontes documentais e da memória social
do grupo dominante de Rodelas a qual pertence. O autor faz parte da Academia Goianiense
de Letras, Academia Petropolitana de Letras, Academia Anapolina de Filosofi a Ciências e
Letras, Academia Petropolitana de Poesia Raul de Leoni, União Brasileira de Trovadores,
FEBETE – Federação Brasileira de Entidades Trovistas, Centro Cultural Literário e Artístico
Gazeta de Felgueiras – Felgueiras/Portugal, CAPORI – Casa do Poeta Rio-Grandense, CBT
– Clube Baiano de Trova, OBRAPPS – Ordem Brasileira dos Poetas e Poetisas Sonetistas.

86 Eliane Cantarino O’Dwyer


nome pejorativo e discriminatório pelo qual eram chamados. Os “mo-
renos”, que vieram se estabelecer no povoado tanto devido ao medo do
cangaço como a desestruturação da economia local, que era centrada nas
fazendas, procediam de diferentes lugares. Sobre essa população Fonseca
(1996, p. 62) observava que “quase não havia negros ‘puros’ e sim cafu-
zos e mulatos, que eram chamados de escuro, moreno, às vezes raposo e
nos primeiros tempos dizia-se ‘cabra’”. Não formavam um grupo coeso, e
muitos prestavam serviços domésticos na casa dos brancos. Essa divisão
espacial na ocupação urbana pelos índios, morenos e brancos perdurará
durante toda a existência do povoado e cidade de Rodelas, e se reproduz
ainda hoje na Nova Rodelas43.
Diante dessa situação muitos índios se mudavam para a cidade de Jua-
zeiro ou Cabrobó a procura de alternativas para sobreviver. Nesse período,
ocorre o assassinato de um índio Tuxá que reivindicava direito às terras na
porta da igreja da cidade. Outras lideranças Tuxá viajavam para Salvador,
Recife e até para o Rio de Janeiro procurando os órgãos responsáveis para
reivindicar o seu reconhecimento étnico e direito territorial. Entre essas
lideranças se destaca o índio Tuxá João Gomes Apaco Caramuru como a
principal liderança que persistiu, mesmo sofrendo diversas perseguições,
na realização de viagens e peregrinações para reivindicar a propriedade de
terras junto às instituições governamentais de defesa de direitos indígenas
da época. Os índios, de uma maneira geral, tinham medo de se organi-
zarem para suas reivindicações pois trabalhavam como diaristas para os
proprietários de terras, e temiam perder o único trabalho remunerado na
região assim como uma reação violenta dos brancos.
Após ser agredido fisicamente ao ponto de quase perder a vida na déca-
da de 1930, João Gomes resolve ficar um tempo fora de Rodelas e é hospe-
dado por quase um ano pelos índios Pankararu em Brejo dos Padres. Após
consultar uma “conhecedora da ciência do índio” Pankararu, que lhe diz
que ele tinha chances de conseguir seu objetivo mas precisava de ajuda de
pessoas que estavam fora da aldeia, resolve viajar para a cidade de Juazei-
ro para encontrar com Tuxás que tinham sido expulsos de Rodelas, para
convencê-los a retornar para a aldeia. Volta para Rodelas de Juazeiro junto
com vários “caboclos” que faziam parte do “regime dos índios”, como Si-
nhá Alta, Manoel Dias, Janoca, Antonia, Maria Inácia, Luiza, Martinha,

43 O centro urbano de Rodelas foi completamente inundado pela construção da barragem de


Itaparica em 1987. A Companhia Hidroelétrica do São Francisco construiu outra cidade para
assentar os seus moradores, que foi denominada Nova Rodelas.

Processos identitários e a produção da etnicidade 87


D. Cordolina e Maria Clara que se juntaram a uma mestra Tuxá conheci-
da como Cabocla Pequena e intensificaram a prática dos rituais na aldeia.
Com o retorno desses índios a Rodela, se estabelecem dois centros
principais de prática ritual da “ciência do índio”. Um, sob a liderança da
Cabocla Pequena, e outra da Sinhá Alta. Dizem que chegaram a fazer uma
eleição com feijão e milho, cada semente representando uma das mestras,
para votarem em quem era a grande “mestra da aldeia”44, e segundo os
Tuxá, a Cabocla Pequena ganhou a eleição. Apesar dessa disputa, os ín-
dios que frequentavam o centro da Cabocla Pequena, também frequenta-
vam o da Sinhá Alta e vice-versa. O Pajé Armando conta que:

“Aí foi, quando meu avô foi buscar essas caboclas lá em Juazeiro, aí
quando chegou aqui ficou com duas tribas. Pequena com uma triba, e
Sinhá Alta com outra. Aí fi xou elas duas. Aí foi uma coisa só. Tudo era
Tuxá. Elas eram a cabeceira45 , ‘vamos trabalhar hoje!’, aí todo mundo
sabia... A diferença é que a Sinhá Alta, veio para levantar a aldeia, e a
Pequena estava aqui toda uma vida dentro da aldeia. Aí quando a Sinhá
Alta chegou para levantar a aldeia, fez aquele rebanho de gente, para tra-
balharem, e aí ficou... Não eram brigadas, as duas eram cunhadas. Mas
sobre o trabalho, você sabe que em aldeia, tem caboclo que quer ser mais
inteligente que o outro, mais sabido né, aí acha que aquele outro é mais
tolo... Mas não era inimigo, tudo era uma coisa só mesmo.”

Praticamente todos os antigos Tuxá desse período eram ligados por


laços de parentesco. Por exemplo, a Cabocla Pequena era esposa do mestre
Taviano, até hoje reverenciado como um grande mestre nos rituais. Já Ma-
noel Dias, esposo de Sinhá Alta, era irmão de Cabocla Pequena. Portanto,
Cabocla Pequena e Sinhá Alta eram cunhadas. A prevalência de mulheres
em destaque no conhecimento e nas práticas da “ciência dos índios” foi
devido, segundo os Tuxá, ao longo tempo em que os homens ficavam au-

44 Mestre e mestra eram os nomes pelos quais chamavam os índios com grande conhecimen-
to da “ciência do índio”, e do mundo espiritual. Muitas vezes, os Tuxá referem como “mes-
tres” tanto espíritos de índios que “trabalhavam no regime dos índios”, e que foram grandes
curandeiros e pajés, como os índios vivos, que são os que comandam o ritual e recebem as
orientações dos espíritos de outros “mestres” durante as práticas mágico-religiosas. Para dis-
tinguir no texto as duas categorias de “mestres”, vou usar a palavra “mestre encantado” para
me referir aos mestres enquanto entidades espirituais, e somente a palavra “mestre” quando
for para o segundo caso.
45 Mestre de Cabeceira é o termo que se usa hoje para as pessoas, que tem um conhecimento
maior da cultura Tuxá, e que ficam sentadas de frente as fi las dos dançarinos de Toré.

88 Eliane Cantarino O’Dwyer


sentes no passado participando de guerras, tendo as mulheres que assumir
as “obrigações”, em outras palavras, a prática dos rituais e de sua religião.
O processo de ocupação da Ilha da Viúva, se inicia em 1942, quando
uma comissão de índios Tuxá de Rodelas visita o Posto Indígena Pancarus,
no Brejo dos Padres, com o apoio do cabo Euclides Cavalcante Novais,
para solicitar a posse das ilhas situadas entre Sorobabel e a Barra do Tar-
rachil. A inspetoria envia o interventor federal Agamenon Magalhães para
verificar e encaminhar a restituição das ilhas reivindicadas pelos indíge-
nas. Os prefeitos de Belém e Jatinã, e o secretário do interior de Pernam-
buco não cumprem a solicitação do chefe da inspetoria de reconhecimento
do direito de posse dos indígenas. Com isso, em 1945, o próprio chefe da
inspetoria, Raimundo Carneiro Dantas, numa visita ao Posto Indígena
Felipe Camarão em Rodelas, conversa com o prefeito de Jatinã, Alcides
Roriz, sobre a posse dessas terras. O prefeito resiste a doação das terras
para os índios, pois não pretendia abrir mão dos pagamentos de foro feitos
ao governo municipal pelos sitiantes que ocupavam a área.
O chefe da inspetoria solicita a intervenção do gal. Rondon junto ao
interventor federal de Pernambuco, e para vencer a resistência das autori-
dades estaduais e municipais envolvidas na questão, sugere “aproveitar a
gestão do gal. Demerval Peixoto a frente da interventoria, pois após sua
saída quaisquer providências para solucionar o caso dos índios Tuchá cai-
ria na apreciação da burocracia reacionária”. (PERES, 1996, p. 164). O
gal. Rondon intercede, desse modo o SPI e o CNPI – Conselho Nacional
de Proteção aos Índios – atuam conjuntamente no sentido de garantir a
ocupação da Ilha da Viúva pelos índios Tuxá.
Em 1944, o serviço de Proteção ao Índio cria o “Posto Indígena de
Alfabetização e Tratamento Felipe Camarão”, no povoado de Rodelas. O
relatório anual de 1945, da 4ª Inspetoria Regional do SPI, registra:

“Este nóvel P.I.T., fundado no ano passado, está situado à margem direita
do Rio São Francisco, junto à vila do mesmo nome, no Estado da Bahia,
com uma população de 212 indígenas”.

No relatório a área da Ilha da Viúva é descrita com 3km de compri-


mento por 150 metros de largura. Cabral Nasser já descreve a área da
ilha da Viúva com 3,5 km de comprimento e uma largura que variava
entre 200 e 400 metros, com 2.200 m 2 de área para cultivo (CABRAL
NASSER, 1975, p. 86). O Posto Indígena, apesar de não ter implementado
nenhuma política consistente, fortaleceu a coesão dos índios e aumentou

Processos identitários e a produção da etnicidade 89


a esperança de tomarem posse das terras reivindicadas, ameaçando o do-
mínio do poder local formado pelos brancos proprietários de terra. Esses
reagiram tanto pela política como pelas armas, como revela um expediente
transcrito por Nasser (1975, p. 41) de 16 de agosto de 1945, remetido para
Recife pelo encarregado, auxiliar sertão do P.I., Euclides Cavalcanti de
Novaes, sobre a tentativa de extinguir o Posto Indígena:

“Levo vosso conhecimento dia 14 fui surpreendido pelo Exmo. General


Pinto Aleixo vg Interventor Federal Bahia pt sua visita se prende povo
descontente empreende extinção posto Indígena pt Nessa ocasião propos-
-me acabasse com isso ou se tratava invenções mins pt Ao que respondi
estar cumprindo ordem superior pt Peço vossenhoria entendimento aque-
la autoridade também Exmo. General Rondon pt Os índios estão verda-
deiro pânico pt Permanecerei esta cidade aguardando resposta pt (a).”

O abandono do trabalho como diarista para os brancos, com a expec-


tativa de ganharem a posse de outras ilhas, levará os Tuxá a uma condição
econômica muito precária, pois essa era a única atividade remunerada na
região. Muitos pais de família migram para outras cidades, inclusive para
São Paulo, em busca de emprego. Todos os relatórios feitos pelo chefe da 4ª
Inspetoria Regional, Raimundo Dantas Carneiro, e por inspetores e inter-
ventores do SPI na década de 1940 e 1950, mencionam o estado de pobreza
que se encontravam as famílias indígenas Tuxá, assim como sua reivindi-
cação de posse das ilhas Jatobá, Coitezinha, Cupim, Camboiba, Cabaços,
Cobra, Ingazeira, Formiga, Caraibeiras e Chico. Os principais adversários
políticos dos indígenas nessa época, segundo Hohenthal (1952):

“...parecem ser concentrados na cidade de Jatinã (antiga Belém), e segun-


do não só os Tushá, mas também o Agente, incluem o delegado, o juiz de
direito, o promotor, o prefeito, e outros guarda-chuvas. Todos membros
de grandes famílias latifundiárias da região que em em parte resistirão
qualquer tentativa da parte do governo federal de dar aos índios mais
terras...”

Em 1946, o funcionário do SPI, auxiliar sertão, Manoel Olimpio No-


vaes, escreve uma relação com 23 nomes de índios Tuxá onde aparece
junto com o nome em português um nome indígena:
1) João Gomes – Apaco Caramuru
2) Cordolina Batista – Tuchá Zumbi

90 Eliane Cantarino O’Dwyer


3) Maria Clara – Tuchá Tenni
4) José Luiz da Cruz – Cá Arfer
5) Manoel Dias – Cá Quatix
6) Aguida Dias – Cá Quatix
7) Joâna Dias – Cá Cangati
8) Eduardo Luiz da Cruz – Jurum
9) Antonio Brune de Assis – Arquia
10) José Brune de Assis – Flechiá
11) Maria Maciana (Maria Inácia?) – Quaquicá
12) Luiza de Souza – Jurutumpan
13) Martins Maciano – Pripirí
14) Maria Pequena – Quaqui
15) Manoel Umbá – Cunca Aribá
16) Leocadia da Conceição – Juncá
17) Leodoria Barbosa – Ataimá
18) Augusto Manoel – Araçá
19) Rufi no de Araújo – Cataá
20) Adalfo (Acalfo?) Misael – Tupacaí
21) Bernaraina Maria – Travan Chuá
22) Virginia Gomes – Parrater
23) Carmina Gomes – Carraté

O povoado de Rodelas se torna cidade pela Lei n. 1.768 de 30 de julho


de 1962. Nesse mesmo ano ocorrem as eleições para prefeito e vereado-
res do município. Se inicia assim, o que regionalmente é conhecido como
“tempo da política”. Os interesses eleitorais e políticos dos brancos, se
sobrepõe aos confl itos gerados pela disputa de terras com os índios, e a dis-
criminação com os morenos. Durante as eleições ocorre um fato até hoje
lembrado pelos antigos moradores de Rodelas, pois pela primeira vez, uma
pessoa branca dança com uma pessoa “morena”. Num baile de campanha,
a esposa do futuro prefeito Manoel Moura dança uma “parte” com um
“moreno” do povoado. Os brancos começam também a se aproximar dos
índios dentro de uma estratégia de garantir votos. Em 7 de abril de 1963,
toma posse o prefeito Manoel Moura, que fora candidato único, em conse-
quência do acordo entre os dois partidos existentes, o PSD e a UDN. Dos

Processos identitários e a produção da etnicidade 91


sete vereadores empossados um deles é uma índia Tuxá, que também era
agente de saúde e professora, chamada Carmelita Cruz. Nessa primeira
gestão da administração municipal foi ampliada a rede elétrica da cidade e
feito o aterramento em área de várzea inundável localizada em plena área
urbana, o que permitiu a construção de mais duas ruas, que em grande
parte serão ocupadas pelos “morenos”.
Também é nesse período que são estabelecidas as divisas da área da
aldeia em terra fi rme, que diferente das ilhas pertencem ao território baia-
no. No acordo fi rmado no dia 22 de abril de 1963, entre o encarregado do
Posto Indígena Manoel Novais e o recém-empossado prefeito da cidade,
Manoel Moura, diminuem cerca de 50 braças (PERES, 1992, p. 165), ou
4.000 m 2 (NASSER, 1975, p. 41) a área original da aldeia. Peres (1992, p.
167) sugere que:

“tal procedimento fazia parte da estratégia da inspetoria de aproveitar as


circunstâncias propícias para regularização das terras indígenas, mesmo
que isso acarretasse alguma redução territorial.”

Em 1964, segundo o relatório do agente Roberto Floriano de Albu-


querque, o posto era composto de:

“336 almas aldeadas, de ambos os sexos: maiores, masculinos 74; fe-


mininos 89; menores, masculinos 86; femininos 87; residentes em casas
construídas de tijolos, cobertas de telhas e parte de taipa, num total de
54 casas, todas construídas pelos índios com seus próprios esforços, for-
mando uma vila alinhada com o plano da cidade de Rodelas, iluminada
com energia da Hidrelétrica do S. Francisco – CHESF – numa área de 336
metros lineares de frente, à margem do rio São Francisco, localizada no
Estado da Bahia”.

Na primeira metade da década de 1960 morrem as duas principais


lideranças do Povo Tuxá, João Gomes Apaco Caramuru, que ainda era
conhecido como capitão da aldeia e o Eduardo Luiz da Cruz, conhecido
como Mestre Eduardo. Até então, o “capitão” e o “mestre” eram as cate-
gorias de liderança reconhecidas pelos Tuxá, as duas dependendo do pres-
tígio religioso dentro da comunidade. No lugar deles assume a liderança o
índio Manoel de Souza, escolhido pela comunidade por ser o mais velho
na aldeia e por ter o respeito de todos. Logo depois Manoel Souza se muda
para Juazeiro, deixando a aldeia novamente sem uma “liderança oficial”.

92 Eliane Cantarino O’Dwyer


Em 1971, chega na aldeia uma equipe de saúde da Funai, sob a direção
do Dr Pires. O médico junto com sua equipe, passa a orientar e organizar
a comunidade para a escolha de um pajé, termo até então nunca utilizado
entre os Tuxá. A comunidade num ato público, na presença do médico e
de sua equipe elegem como pajé o índio Armando Gomes, que é neto de
João Gomes Apaco Caramuru e genro do Mestre Eduardo. Ele ocupa essa
função até os dias de hoje. Dois anos depois, o pajé escolhe João Honório
dos Santos para cacique. Importante notar que nesse período prevalecia a
importância da autoridade religiosa sobre a autoridade política. Segundo
o próprio pajé, ele precisava de alguém para auxiliá-lo, pois já não tinha
mais tempo para se dedicar ao trabalho agrícola, e o João Honório era
uma pessoa que sempre estava presente nas discussões do grupo e nos
trabalhos religiosos. Silva (1997, p. 53) diz que o cacique era a pessoa que
atuava mais diretamente com os agentes e instituições externas, enquanto
o pajé ficava responsável pela esfera mágico-religiosa. Quando começam
as negociações com a CHESF, no fi nal dos anos 1970, sobre a construção
da barragem de Itaparica e a futura inundação de suas terras e da aldeia,
o cacique João pede para ser substituído pois era analfabeto, e se sentia
inseguro para conversar com as diversas autoridades envolvidas na ques-
tão. Assim, o pajé Armando escolhe como o novo cacique o índio Manoel
Eduardo Cruz, fi lho do Mestre Eduardo, conhecido como cacique Bidu.
Segundo Cabral Nasser (1975), no início da década de 1970, a aldeia
como foi descrito também por Hohenthal (1952), se constituía numa única
rua sem calçamento, parecendo uma extensão da cidade, tendo passado a
se chamar rua Felipe Camarão. A única rua calçada na cidade era a rua da
“frente”, onde ficavam as residências dos brancos. Apesar da energia elé-
trica ser fornecida para toda a aldeia, a maioria não a utilizava, ou porque
não podiam devido a falta de recursos ou porque não faziam questão de
tê-la e preferiam não pagar o custo da taxa mínima de CR$ 11, 50 por mês
(CABRAL NASSER, 1975). Na aldeia haviam 55 casas e:

“na sua maioria conjugadas e construídas variadamente com tijolos, com


tijolos e taipa combinados ou apenas taipa. Todas estão cobertas com
telhas. Poucas têm sanitário e menor ainda é o número das que tem ba-
nheiro. A maior parte da população banha-se no rio e serve-se de um
terreno baldio que se estende nos fundos da aldeia, para suas necessidades
fisiológicas”. (CABRAL NASSER, 1975, p. 20).

Processos identitários e a produção da etnicidade 93


As práticas rituais Tuxá e seus conhecimentos espirituais, que serão
tratados mais adiante, parecem ter sido um dos espaços e meios mais im-
portantes pelos quais essa população indígena se mobilizou coletivamen-
te para obtenção de direitos territoriais, sendo também catalizadores de
sentimentos, emoções e ações dessa população. Proponho pensar esses
processos de resignificações culturais e simbólicas durante o processo de
afi rmação étnica e reivindicação de direitos territoriais além de uma dis-
cussão que fique entre a dicotomia de uma análise construtivista ou essen-
cialista. Nesse sentido tentarei mostrar que práticas rituais, mesmo quan-
do reelaboradas ou mesmo criadas durante o movimento de reivindicação
territorial, não foram motivadas somente com um propósito instrumental
dessas populações de expressar para um observador externo sua identida-
de étnica, mas que elas são um espaço específico pelo qual essa população
expressa e elabora seus valores culturais e identitários e suas normas so-
ciais. Nesse sentido estou de acordo com Turner (1974) que a compreensão
dos ritos se torna fundamental uma vez que são o local onde se revelam e
se expressam os valores mais profundos dos grupos e dos homens, sendo
fundamentais para a compreensão do pensamento e sentimento das pesso-
as e os ambientes naturais e sociais em que operam. A seguir, continuarei
apresentando uma etno-história dos índios Tuxá de Rodelas articulando
o seu processo de afi rmação étnica dos índios Tuxá de Rodelas e sua luta
para adquirir a posse de suas terras tradicionais com as suas práticas ritu-
ais e suas reelaborações, assim como os espaços de interação com outros
índios e não índios.

Práticas rituais e a busca por direitos territoriais


De uma maneira geral as práticas rituais Tuxá tem como objetivo pedir
orientação e proteção aos mestres encantados, que acreditam serem seus
ancestrais, tanto para realizarem curas de doenças e feitiços como para
conseguirem atingir seus objetivos e empreendimentos materiais. Para os
Tuxá, os “mestres encantados” são índios que habitaram no passado a re-
gião do São Francisco considerada pelos Tuxá como seu antigo território,
e que foram enterrados nos antigos cemitérios encontrados nas ilhas e al-
deias dessa região. Para os Tuxá “os mestres encantados” podem ser tanto
índios bravios, de tempos remotos, como de “mestres” mais recentes como
a Mestra Pequena, Mestre Otaviano, Mestre Eduardo, que tem laços de
parentesco com as famílias Tuxá, que retornam ao mundo dos índios vivos
para auxiliar, trazer orientações, predizer acontecimentos futuros, realizar
e recitar fórmulas de cura ou para retirar feitiços.

94 Eliane Cantarino O’Dwyer


Segundo informação dos Tuxá mais velhos, antes do movimento de
reivindicação étnica do grupo que se iniciou na primeira década do sécu-
lo XX, os rituais eram praticados de forma mais individual, ou reunin-
do membros do mesmo grupo familiar, sempre comandados por mestres.
Somente algumas vezes se reuniam em maior número e realizavam um
ritual reunindo diferentes grupos familiares ou facções internas da aldeia.
Os mestres realizavam principalmente práticas rituais para obtenção de
curas e realização de previsões, sendo que cobravam alguma espécie de
remuneração quando o solicitante era não indígena. Já nesse período havia
disputas entre mestres Tuxá, e como indica Tambiah (1985), a prática e
conhecimento das práticas rituais estavam relacionados com disputas por
prestígio interno e processos de indexação de posição social. Toda a lide-
rança Tuxá no âmbito político também é uma liderança ou desempenha
um papel importante no âmbito religioso.
Durante o processo de afi rmação étnica e reivindicação territorial tan-
to mestres Tuxá como um conjunto de conhecimentos “mágicos e espiritu-
ais” que eram praticados de forma mais individual, com fi ns terapêuticos e
para predizer acontecimentos futuros, começam a ser praticados de forma
mais coletiva, e o espaço ritual se transforma num local para reunião,
mobilização e planejamento de ações futuras do grupo, direcionando esse
corpo de conhecimentos espirituais para a proteção das lideranças que lu-
tavam pela conquista da terra bem como para “abrir caminhos” para sua
obtenção. São nesses espaços que assuntos de ordem social, econômica,
política e cultural relacionados a aldeia são discutidos e onde planejam e
organizam atividades futuras. As práticas rituais estabelecem uma comu-
nhão em torno de uma crença, de uma força mística, que tem como central
a comunicação e o contato com os “ancestrais indígenas” como escreve
Grünewald (2005, p. 13):

“União fundamental para a instrumentalidade do grupo étnico em suas


lutas por recursos diante das adversidades colocadas pela sociedade na-
cional, ou pelas vizinhanças pública e privada.”

Não faz parte dos costumes Tuxá a realização de assembleias para


decidir questões de interesses do grupo, sendo os locais ritualísticos o es-
paço onde a vida é “dramatizada e rotinizada”, como afi rma Victor Tur-
ner. Nesse sentido, Turner propõe a análise do ritual como um drama
social, chamando (1974b) atenção para o caráter e a forma dramática dos
processos de interação social. Desse modo, sugere que através da análise

Processos identitários e a produção da etnicidade 95


de processos de interação social enquanto dramas sociais, seja possível
constituir unidades do processo social isoláveis e passíveis de uma descri-
ção pormenorizada, analisando o fluxo e a variabilidade da vida social
humana no tempo, construindo uma visão processual dos eventos sociais.
Como escreve Turner (1974b, p. 37) os rituais: “are units of harmonic or
disharmonic process, arising in conflict situations”.
Embora o ritual Tuxá possa ser visto como um espaço de mobilização
do grupo também é um espaço onde ocorre constantes disputas e ten-
sões, que podem inclusive desencadear faccionalismos no grupo. Os rituais
Tuxá, portanto, podem ser pensados através das quatro fases descritas por
Turner (1974b, p. 41) “breach”, “norm-governed”, “crisis” and “regressi-
ve action”, ou seja, os ritos podem desencadear ao seu fi nal momentos e
situações com sentimentos de paz, confraternização e solidariedade, como
pode gerar confl itos, segmentações e dissensões do grupo.
Existem diversos relatos que demonstram que mestres Tuxá estabele-
ciam contatos com uma rede mais ampla de cultos de jurema. Existem rela-
tos que mostram que os Tuxá eram convidados a participarem de cultos de
jurema não indígenas devido a fama que tinham na região de conhecedo-
res da “ciência”. Outros relatos mostram, por outro lado, que juremeiros e
curandeiros não indígenas desafiavam os Tuxá para verificarem quem era
mais forte nas práticas rituais com a jurema. Nesses encontros, segundo
a história oral Tuxá, o poder espiritual dos desafiantes se verificava pela
manifestação e evocação de suas entidades espirituais durante o confronto.
A pessoa que dominava ou “trabalhava” com entidades espirituais mais
fortes derrubava, e literalmente fazia “rolar no chão”, sem ocorrer nenhum
contato físico, o outro desafiante. São diversos os relatos nesse sentido.
Esses desafios às vezes estavam relacionados com disputas por “clientes”
entre curandeiros não indígenas e “mestres” Tuxá.
Apesar dos “mestres” Tuxá estarem inseridos numa rede maior de cul-
tos de jurema que envolvia índios e não índios, e dos possíveis e prováveis
fluxos e refluxos culturais (HANNERZ, 1997), os Tuxá elaboram limites
para esses intercâmbios culturais partindo do princípio do que consideram
como sua cultura tradicional, como no caso de sua relação com os Panka-
raru do Brejo dos Padres. Segundo a história oral dos Tuxá, os Pankara-
ru do Brejo dos Padres os visitavam com uma certa constância tanto em
datas religiosas comemorativas, como simplesmente só para dançar toré
e “trabalhar”. Alguns nomes de índios Pankararu são sempre lembrados
como “Gardolimpo”, “Manoel Dé”, “João Quirino” e o capitão João Mo-
reno que prestou um importante auxílio para o reconhecimento étnico e a

96 Eliane Cantarino O’Dwyer


demarcação de suas terras. Apesar disso, os Tuxá sempre diferenciaram e
diferenciam sua forma de dançar o toré e os seus mestres encantados, as-
sim como nunca incorporaram os praiás dos Pankararu nas suas práticas
rituais, afi rmando sempre que eles não fazem parte da tradição dos seus
antigos. Durante esse período havia uma circulação e articulação entre
diversos povos indígenas naquela região do sertão nordestino. Lideranças
do povo Truká, da ilha de Assunção, que eram perseguidas e ameaça-
das se refugiavam por uns tempos em Rodelas, junto aos índios Tuxá,
assim como os Tuxá, mantinham relações com os índios da Serra do Umã,
hoje conhecidos como povo indígena Atikum, e índios Kiriri do sertão da
Bahia, ensinando-os a dançar toré, praticar rituais e a “ciência do índio”.
Embora os Tuxá reverenciem algumas entidades espirituais em comum
que chamam de “gentio”, cada mestre trabalha com um conjunto de en-
tidades específicas que se “manisfestam” para ele ao longo de sua vida.
Ao que perece, embora não seja expressado pelos Tuxá, esse aspecto do
seu ritual de certa forma dificultava uma união entre os mestres, pois o
poder de um mestre estava relacionado com o saber que tinha e as entida-
des espirituais que “trabalhava”, e que guardava em segredo e repassava
somente para um parente próximo que era escolhido como seu sucessor. A
questão de “guardar segredo” ainda é considerado fundamental entre os
Tuxá, pois está relacionado com a ideia de poder e de um conhecimento
mágico-religioso que os protege de malefícios. Nesse sentido, “o segredo”
está tanto relacionado com disputas de poder internas e externas ao grupo.
A própria casa de oração, local onde é realizado o “ritual dos ocultos” ou
“particular”, foi elaborada na medida que as tensões regionais foram se in-
tensificando, que brancos tentavam impedir que realizassem seus rituais, e
que sentiram a necessidade de esconder suas práticas rituais de não índios
que iam investigar o ritual.
Antes de criarem um local onde é praticado o ritual coletivo Tuxá,
chamado “casa de oração”, o ritual era praticado no meio da mata ou num
local que chamam de “quartinho”, espaço localizado nos fundos da casa
reservado para as práticas rituais, ou em locais onde estavam enterrados
antigos mestres da comunidade. O local que chamam de “quartinho” era
onde os mestres realizavam seus trabalhos de cura e hoje é um espaço
para práticas rituais de um determinado “tronco” familiar indígena, que
se localiza na casa da pessoa mais idosa pertencente desse “tronco”. Como
já foi citado acima, somente a partir da luta pelo reconhecimento da sua
identidade étnica perante o estado brasileiro, e do gradual acirramento e
confl ito com não índios devido a disputa pela propriedade da terra, é que

Processos identitários e a produção da etnicidade 97


vai sendo criado uma estrutura ritual mais coletiva envolvendo os diversos
segmentos da “sociedade indígena Tuxá”. Nesse sentido acredito que as
práticas rituais Tuxá não são meramente um instrumento para expressar e
comunicar sua identidade étnica para um observador externo, mas práti-
cas que contém e expressam elementos importantes da forma Tuxá de ser
e pensar o mundo e de valores culturais e normativos desse povo indígena,
bem como um local onde seus conceitos e normas são constantemente re-
elaborados e atualizados.

O impacto da construção das hidroelétricas


de Paulo Afonso e Itaparica
Se na primeira parte do texto foi analisado reelaborações culturais Tuxá
no seu processo de afi rmação étnica e reivindicação territorial, nessa se-
gunda parte do texto será analisado as transformações e impactos cultu-
rais gerados após a conclusão da construção da Usina Hidroelétrica de
Itaparica, e a formação do lago que inundou a antiga cidade de Rodelas
e sua antiga terra indígena chamada de Ilha da Viúva onde desenvolviam
suas atividades econômicas como religiosas. Para entender as mudanças
das práticas rituais é necessário também ter o conhecimento e a compreen-
são das mudanças nas outras esferas da vida social, política e econômica
dos índios Tuxá, uma vez que são todas interdependentes. Nesse sentido
começarei explicando as transformações nos aspectos mais gerais da vida
Tuxá, para depois refletir sobre as mudanças nas suas práticas rituais nesse
novo contexto.
O deslocamento compulsório, devido a inundação de suas terras pelo
lago formado pela construção da barragem de Itaparica, e a indefi nição
e a demora na escolha do novo território abriu espaços para despertar
interesses diversos entre as lideranças Tuxá gerando muitas desavenças.
Nesse processo, como Brasileiro (2000) observa, foram tomados alguns
procedimentos irregulares como a ausência de um decreto presidencial e
da identificação de um território, que segundo a legislação vigente que
trata da questão da remoção dos povos indígenas de suas terras, teria que
ter sido anteriormente defi nido. Nas primeiras reuniões se cogitou a trans-
ferência para fora de Rodelas, pois os terrenos que ficariam disponíveis no
município não eram apropriados para a agricultura. Se cogitou, em pri-
meiro, a transferência para a Ilha do Bananal, que logo foi desconsiderada,
e em seguida, o deslocamento para uma área no Projeto Massangano, no
município de Petrolina, em Pernambuco. A CODEVASF, responsável pelo

98 Eliane Cantarino O’Dwyer


projeto, privilegiou em detrimento dos Tuxá o assentamento de médios e
grandes proprietários de terra da região.
Outra proposta era criar uma aldeia junto à sede municipal e tomar
posse de um terreno à beira do futuro lago, conhecido por “Riacho do
Bento”, cerca de 20 km a oeste da Nova Rodelas. O “Riacho do Bento” se
caracterizava como área de caatinga, de solo pedregoso e vegetação rala, e
entre seus 4.000 hectares, continha uma faixa de terra fértil com cerca de
100 hectares (MELO, 1988, p. 237). De uma maneira geral essa proposta
reproduzia o mesmo tipo de ocupação da antiga Rodelas, ou seja, um nú-
cleo urbano que seria uma extensão da cidade e um terreno distante onde
pudessem trabalhar na agricultura e com a atividade pastoril.
A indefi nição e demora na escolha do novo território, abriu espaços
para despertar conflitos e interesses diversos entre as lideranças Tuxá. Um
grupo liderado pelo Cacique Manoel Eduardo Cruz, conhecido como Ca-
cique Bidu e o pajé Armando Gomes Tuxá, decidiu permanecer na Nova
Rodelas esperando e acreditando que a CHESF resolveria o problema da
aquisição das terras. A decisão foi motivada principalmente devido à sua
ligação afetiva, emocional e histórica com a região e o antigo território
indígena, como aparece num depoimento do Cacique Bidu:

“Fizeram questão para todo mundo sair daqui. Fizeram questão de pes-
soas incentivarem de ir embora daqui. Nós tivemos balançado para ir
embora daqui. Fomos em dois municípios procurar local. Não agradou.
Ficava uma coisa por trás, dizendo para a gente, não faça isso. Na outra
viagem, o pajé veio e disse:
— ‘sabe de uma coisa, vamos ficar lá mesmo. Terra ali é memorada’, como
dizia uma cabocla velha que tinha ali.
— ‘a lei não é morada. Lá está o que é nosso, os brancos é que vão usu-
fruir, e nós é que vamos ficar jogados. Não, isso não está certo. Isso não
está certo, nós vamos é ficar.’
... O povo fez aquele reboliço, foi embora para aqui, para lá, para acolá.
Eu disse:
— ‘Eu não vou não.’
‘Ah! Vai se acabar porque ficou tudo debaixo d’água.’
Aí ficaram incentivando uns aos outros. Veio os próprios políticos no
meio da gente. E família contra família. Família que ia, ia viver. Quem
ficava era para morrer. É que eles iam viver, nós íamos morrer. Se um dia
chegasse lá não tinha apoio. Porque não quis acompanhá-los.”

Processos identitários e a produção da etnicidade 99


Outro grupo, liderado pelos índios Manoel Novaes e Raul Valério,
questionou a qualidade e produtividade das terras do “Riacho do Bento”,
formadas por terreno de “tabuleiro”, e reivindicou terras preservadas lo-
calizadas na margem do rio São Francisco, sendo assentados nas fazendas
“Morrinhos” e “Oiteiros”, próximos ao núcleo urbano da cidade de Iboti-
rama, no estado da Bahia. Um terceiro grupo, bem menor do que os outros
dois, e que residiam em Itacuruba, se instalaram provisoriamente no mu-
nicípio de Inajá, e decidiram continuar nesse mesmo município e esperar
a CHESF adquirir uma terra para assentá-los. As desavenças e confl itos
entre esses diferentes grupos foi tão grave que as famílias Tuxá que com
alguns anos, ou até meses, não se adaptaram viver em Ibotirama e resol-
veram retornar para Nova Rodelas, não foram aceitas dentro da aldeia
independente do grau de parentesco. Devido a essas desavenças e confl itos
criados pela desestruturação social Tuxá, os índios deixaram de praticar
os “Ritual dos Ocultos” ou o “particular” por quase 10 anos. Quase dei-
xaram também de realizar a festa em homenagem ao São João Batista,
chamada de Alvorada, no dia 15 de junho, dia de abertura das Festas Juni-
nas da cidade de Rodelas. No amanhecer do dia 15 de junho, soltam fogos
de artifício e fazem uma procissão pela cidade de Rodelas ao som de uma
banda de pífano, hoje realizada por índios Geripankó, até chegarem na
Igreja. Após entrarem na igreja e cantarem linhas de toré, retornam até a
aldeia com um carro de som tocando músicas de forró, junto com os toca-
dores de pífano. Durante toda manhã até o início da tarde acendem fogos
de artifício, e servem refrigerantes, bebidas alcoólicas e caldo de carne. À
noite é celebrada uma missa em homenagem aos índios Tuxá, sendo que no
fi nal os índios realizam vestidos de catayoba, roupa tradicional Tuxá, um
toré na igreja e dançam em volta da imagem de São João Batista.
O deslocamento compulsório do povo indígena Tuxá foi realizado em
1988, e até agora, 21 anos depois, a CHESF não viabilizou os 4.000 ha es-
tabelecidos no convênio de 1987. Nesse Convênio estabelecido entre a Fu-
nai e a CHESF, consta das obrigações da companhia o reassentamento das
famílias até o dia 30/12/1987. E distingue o acordo para os dois grupos:

“2.1 – No município de Ibotirama:


Aproximadamente 2.050 ha (dois mil e cinquenta hectares) das Fazendas
“Morrinhos” e Oiteiros, situadas a cerca de 15 (quinze) quilômetros ao
norte da sede municipal, já adquiridos pela CHESF, conforme escritu-
ras públicas de compra e venda lavradas em 18 de fevereiro de 1986 e

100 Eliane Cantarino O’Dwyer


registradas no ofício imobiliário da respectiva Comarca e destinadas ao
reassentamento de 96 famílias.

2.2 – No município de Rodelas para reassentamento das 82 famílias restantes:


a) aproximadamente 4.000 ha (quatro mil hectares) destinados à Reserva
Indígena, situados no lugar Riacho do Bento, 20 Km a montante da nova
sede municipal;
b) quadras 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 e 47 do Plano Urbanístico da nova
cidade de Rodelas, compreendendo uma área aproximada de 78.660 m2
(setenta e oito mil, seiscentos e sessenta metros quadrados) destinados à
Aldeia, e mais 30 (trinta) hectares de áreas adjacentes.”

Numa cláusula seguinte, a CHESF garantia a construção de:

“Na Reserva Indígena de Ibotirama:


Posto de saúde /Escola Rural/Casa de Religião/Cemitério/Poço Artesia-
no/Casa de Farinha

Na Aldeia ou Reserva ou Reserva Indígena de Rodelas:


Posto Indígena/Posto de Saúde/Casa de Religião/Casa de Farinha/Prédio
para beneficiamento de arroz/Cemitério.”

Na implementação dos projetos agrícolas, a CHESF, assegurava a

“construção de estrada de acesso; infraestrutura de energia elétrica; cap-


tação, adutora e distribuição de água para irrigação e consumo humano;
implementação das áreas de cultivo mediante a limpeza e deslocamento,
de acordo com a orientação técnica a ser indicada pelos projetos em ela-
boração; infraestrutura necessária à irrigação, canais, valetas, bombas,
equipamentos etc. de acordo com o que for defi nido nos projetos; Elabo-
rar e implementar projeto integrado de pecuária e pesca para a comuni-
dade de Rodelas”.

À FUNAI seriam ainda destinados

“recursos para assegurar a continuidade dos projetos de irrigação, com-


preendendo a orientação técnica, de acordo com o programa a ser apre-
sentado pela Funai e aprovado pela CHESF, necessários à consolidação

Processos identitários e a produção da etnicidade 101


do reassentamento da comunidade, pelo prazo de 5 (cinco) anos, a partir
da implantação dos projetos agropecuários”.

Após 20 anos do reassentamento para a nova aldeia na nova cidade de


Rodelas, o povo Tuxá encontra-se em condições de produção e reprodu-
ção social em patamares inferiores à encontrada antes da construção da
barragem de Itaparica, sobrevivendo exclusivamente da Verba de Manu-
tenção Temporária (VMT) que tem que ser paga pela empresa enquanto
não recebem a terra, e que hoje se transformou na Provisão Temporária de
Subsistência (PTS). Há uma grande “ociosidade” entre os Tuxá, devido a
falta de terra para desenvolverem atividades econômicas, e a falta de oferta
de empregos que atinge todo o município de Rodelas, que vive basicamente
dos recursos pagos pela CHESF à prefeitura devido a inundação de seu
território.
As alterações do meio ambiente após a formação do lago de Itaparica
intensificou ainda mais o impacto nos costumes socioculturais e econômi-
cos do povo Tuxá. Se extinguiram animais de caça como as capivaras, que
caçavam de arco e flecha, saracuras e jacarés assim como diversas espécies
de peixes que costumavam pescar. O conhecimento que tinham sobre as
águas do rio São Francisco, de como, onde e quando pescar nas corrente-
zas desse rio não funciona mais devido as alterações no meio ambiente e no
habitat dos peixes. Também foram extinguidas diversas plantas medicinais
do conhecimento tradicional Tuxá que eram encontradas tanto em terra
fi rme como na várzea e nas ilhas do rio São Francisco.
Tanto as atividades de pesca como as de caça ou mesmo a produção
de farinha eram feitas coletivamente. O povo Tuxá que era conhecido pela
sua autonomia e dedicação ao trabalho agrícola, qualidades que os mais
velhos sempre falam com orgulho, após a mudança ficaram sem terra para
desenvolver suas atividades agrícolas. Toda essa desestruturação de anti-
gas práticas econômicas dos Tuxá, também desestruturaram o sistema de
educação informal, onde os índios jovens começam a acompanhar os pais
desde de criança, aprendendo práticas, costumes tradicionais (CABRAL
NASSER, 1975, p. 97).
Acompanhando seus pais quando meninos, aprendiam não só as téc-
nicas referentes às atividades econômicas como pesca, caça e agricultura,
mas também as histórias orais sobre o povo Tuxá, os seus conhecimentos
específicos como por exemplo sobre o rio São Francisco, e de sua rela-
ção mágico-religiosa com a natureza de uma maneira geral. Enfi m, nesse
processo eram transmitidos conhecimentos específicos que os distinguiam

102 Eliane Cantarino O’Dwyer


enquanto um grupo étnico diferenciado, e que estavam relacionados com
a identidade Tuxá.
Aumentou também, segundo os Tuxá, o número de casamentos interé-
tnicos devido ao interesse dos não índios nas indenizações que receberam.
Através do levantamento que realizei durante o trabalho de campo, e do
levantamento realizado na década de 1970 por Cabral Nasser (1975), se
constata que casamentos exogâmicos já vinham acontecendo em números
significativos há muitas gerações no povo Tuxá, mas talvez por começarem
a ter uma vida social mais próxima dos não-índios após a construção da
barragem, esses casamentos são agora percebidos como um impacto social
e cultural, como comenta o cacique Bidu como um fator desagregador da
união dos índios Tuxá, e do “seu amor” a sua cultura:

“Começou depois daqui, depois da convivência com o branco, da ligação


desses jovens índios, com jovens brancos, jovens brancas, com namora-
dos brancos tanto do índio, como da índia. Na hora que tem um toré,
elas vem por aí, se acanham, de mostrar o que ele é. E lá não tinha isso.
Lá todo o casamento era mais de índio, com índio. Lá tinha o precon-
ceito ainda, quando chegou aqui acabou o preconceito porque, tomando
o conhecimento que o índio ia ser beneficiado, corria o casamento aqui
de todo o lado. Todo mundo louco para casar. Tanto o branco, como a
branca. E que vinha para fazer isso. E nunca mais fez isso. É difícil casar
um índio com uma índia. É sempre um branco com uma índia, ou o ín-
dio com uma branca. Vem sempre assim. Depois disso, se acostumaram,
meu amigo branco lá, e foram perdendo aquele costume. Mais aconteceu
devido a divisão da aldeia, aonde o grupo A, não vai no grupo B, não vai
no grupo C. Mesmo com grupos nós somos um grupo só. E lá quando
começava o toré mesmo, todo mundo entrava e pisava mesmo.”

Esse sentimento de uma maior “mistura” dos Tuxá com não índios
após a construção da Hidroelétrica é também corroborada pelos habitan-
tes antigos da velha Rodelas. É importante destacar que apesar dos casa-
mentos exogâmicos, tanto as lideranças mais velhas como as lideranças
jovens são formadas por casais endogâmicos. Na minha opinião, essa im-
pressão de ambos os grupos, índios e não índios, se dá principalmente por
dois motivos:
 Após a barragem os não índios que casaram com índios tem na sua
maioria famílias residentes na cidade, ao contrário de antes, em que
a maioria tinha família estabelecida em outro município ou povoado.

Processos identitários e a produção da etnicidade 103


 Os Tuxá antigamente, diferentes de hoje, viviam uma vida mais isolada
dos moradores da cidade, tanto por se restringirem conscientemente à
convivência na Ilha da Viúva e na aldeia, bem como também porque
estavam sempre ocupados com as atividades econômicas, diferente de
hoje, onde existe uma proximidade maior entre índios e não índios
devido ao tempo ocioso.

Todos esses fatores implicam na construção e no uso pelos índios da


noção de “enfraquecimento da força Tuxá”, para expressar todas essas
mudanças sociais, econômicas e culturais que sofreram com o reassenta-
mento. Esse processo também foi sentido na esfera religiosa, onde existe
uma relação profunda entre a crença no contato com os espíritos ances-
trais indígenas e a ancestralidade da terra que ocupavam. Pajé Armando
comenta sobre a relação mágico-religiosa que os Tuxá tinham com o rio
São Francisco:

“Era uma vida sadia. Colocava a esteira na porta da casa, e ficava olhan-
do as estrelas. Porque as águas são vivas até a meia-noite. Meia-noite em
ponto ela dorme. Quando dá 1246 horas da noite, aí você vê as cachoeiras
tornar a começar a chiar. Aí quando chegava meia-noite em ponto, você
via ficar silêncio, não via zoada de cachoeira nenhuma. Mas quando dava
12 horas da noite, da madrugada, você via começar aqueles estrondos,
aquelas coisas... Era bonito demais, rapaz. Meia-noite é meia-noite em
ponto. Na hora que se diz, ‘o que está bom está parado, e o que é ruim
começa’. Aí quando é madrugada, a primeira cantada do galo, que já é
outro dia, aí o mal se arretira, e o bem chega. Aí nesse rio, a gente via
muita coisa, muita coisa aí nesse rio, que era da gente né, dos antepassa-
dos. Já hoje não tem mais, ninguém encontra mais. Porque aquele lugar
que eles viviam, terminaram tudo. Por isso às vezes eu fico pensando,
está existindo uma fraqueza assim, em certas coisas no meio da gente por
causa disso aí. Porque acabou-se. Aquele lugar sagrado acabou-se. Aquele
cruzeiro ali, aquele serrote ali, eu alcancei um tempo, que os índios fa-
ziam festa lá, mas festa assim, da religião deles né. Não é festa de dançar,
não. Festa da religião deles, faziam lá no serrote. Hoje em dia ninguém
faz mais. E também não tem mais aonde, está tudo alagado. Isso tudo já
é uma coisa, que quebra uma parte da força da gente, né. No mato, nesse

46 Doze horas para o Pajé – quer dizer a hora que do primeiro canto do galo na madrugada
–, e quando as águas do rio São Francisco “voltavam a chiar” na cachoeira, era por volta de
umas 3h da manhã.

104 Eliane Cantarino O’Dwyer


tempo era uma mata virgem. Também já está tudo destroçado, né. Isso
tudo é fraqueza para gente hoje em dia.”

Esse impacto na relação, sempre presente na sua crença religiosa, entre


a terra e o contato com uma força originária e mística dos seus ancestrais
que habitavam o lugar, tendo como consequência o “enfraquecimento” da
identidade cultural Tuxá está sempre presente nos depoimentos como o do
cacique Bidu:

“Disse em reuniões passadas que isso foi, isso faz parte dos danos que
ela causou. Que deveria ser compensado, muito bem compensado, pe-
los danos morais que ela causou, não foram só danos pessoais, danos
morais aonde envolve a religião do nosso povo. O morro mestre aonde
era o reinado, está submerso. Acredito que não saíram de lá, porque ele
não desapareceu todo, está pela metade. Mas os pertences que eram dos
antigos, os restos mortais que eram dos antigos que estavam ali, que eles
frequentavam, os espíritos mortais que frequentavam, os restos mortais
que estavam ali, os seus pertences que estavam ali. Que quando o índio
morria os seus pertences eram todos enterrados, que ele usava. A sua
sabedoria, sua crença, a sua religião. E foi retirado a parte que não se en-
contra mais aqui, está no museu por aí, e o que não foi encontrado ficou
submerso por debaixo das águas, aí enfraqueceu a religião. Mas o que
resta ainda, a gente está preservando, tá continuando, e estamos fazendo
para dar continuidade ao futuro desses jovens, essa religião.”

O contato maior com a vida urbana dos não índios de Rodelas, e de


seus atrativos como festas e serestas, assim como a o clima de tensão na
aldeia gerado pelas desavenças internas ajudou na desestruturação interna
dos aspectos sociais, econômicos e culturais Tuxá, causando um afasta-
mento dos jovens das práticas de seus rituais. A índia D. do Carmo, de 72
anos, conhecedora da ciência dos índios, associa à “vaidade”, que seria
consequência do contato com o branco como causa do afastamento dos
jovens das práticas rituais:

“E mesmo de primeiro não tinha a vaidade que tem hoje. De primeiro não
tinha discoteca, não tinha televisão, não tinha nada. Quando era um toré,
para a gente dá, era mesmo que uma festa. Era tudo ansioso, dançando
e tudo. Mas hoje em dia, meu bem, chega de noite toma um banho vão
para discoteca, outros vão para aqui, outros vão para acolá, aí pronto.”

Processos identitários e a produção da etnicidade 105


De certo modo, todas essas falas expressam um desencontro existente
entre uma geração Tuxá mais velha, quase todos analfabetos ou semi-anal-
fabetos, que exerciam atividades agrícolas, de pesca e de caça de subsis-
tência e que mantinham um “isolamento consciente” dos não índios, com
uma geração Tuxá mais nova que cresceu em escolas junto com não índios,
ociosa devido a falta de terra e de oportunidades de trabalho, tendo acesso
a diferentes fontes de informação que antes eram inexistentes.
O toré foi um dos aspectos que sofreu um grande impacto nesses últi-
mos 20 anos. O toré é uma manifestação religiosa e cultural dos Tuxá que
envolve dança e canto, e se tornou um símbolo e uma das principais for-
mas de comunicar e expressar sua diferenciação étnica. A palavra “toré”
pode ser derivada da palavra “torá”, do dialeto Kipea do tronco linguístico
Kiriri coletado pelo Pe. Luís Vincêncio Mamiami no século XVII (RO-
DRIGUES, 1948, p. 194), que quer dizer segundo o autor “cortezia com
o pé”. Sempre que vão iniciar um toré, principalmente quando for reali-
zado fora da aldeia, dizem a frase que consideram como sendo parte do
seu idioma: “Tribo Tuxá, nação procá, bragadá, de arco e flecha, maracá,
malakutinga tuá.”
Diferente do “Ritual dos Ocultos” ou “particular” o toré tem um ca-
ráter mais de divertimento, brincadeira, de comemoração e confraterniza-
ção, embora também possa ser feito como pagamento de uma promessa
bem-sucedida. Pode ou não ser realizado e exibido em algum lugar público
e aberto. Não há um número certo para os mestres de cabeceira e nem
para os participantes do toré, que poderá variar dependendo da ocasião.
Índios de todas as faixas etárias podem participar, entretanto continua
sendo proibido a participação de não índios, dependendo da permissão
para sua participação do consentimento e do tipo de relações que tiver com
os indígenas. No toré não se cantam todas as linhas que são cantadas no
“particular” ou “ritual dos ocultos”, pois algumas são consideradas mais
importantes e mais fortes, desse modo, cantam linhas de toré consideradas
mais “leves”. Mesmo assim pode acontecer durante o toré algum caso de
incorporação ou transe. No toré também pode ser servido a jurema, mas
nesse caso, a bebida será mais fraca do que no particular, sendo mais co-
mum o uso da “cura” ou currumati, bebida feita de ervas e cachaça que é
sacramentada como fogo, ou bebidas alcoólicas como vinho de jurubeba
que é muito apreciado pelos Tuxá, e considerado uma bebida que era feita
pelos “antigos” da aldeia. O maracá também é considerado um instru-
mento indispensável para dançar o toré, bem como podem ser usados os
cachimbos cuneiformes.

106 Eliane Cantarino O’Dwyer


Para se realizar um toré tem que se ter em primeiro lugar, a permissão
do pajé da aldeia, seu Armando. O toré pode ser feito como forma de
pagamento por uma promessa atendida, em comemoração à alguém que
chega na aldeia ou para uma despedida, ou para comemorar alguma data
específica como o dia do índio. Antes da construção da barragem, o toré
acontecia de 15 em 15 dias, sempre aos sábados, intercalados com o parti-
cular. Portanto num sábado se realizava o “particular” e no outro sábado
faziam um toré. Os índios Tuxá que eram crianças naquela época, contam
que as famílias na medida que iam passando uma nas casas das outras no
início da noite, no caminho para onde se realizaria o toré, iam forman-
do uma longa fi la indiana até chegarem no local onde seria realizado o
“folguedo”. Dançar toré e cantar as toadas era um momento e um espaço
de sociabilidade onde toda a aldeia se reunia para conversar, se divertir,
festejar, ao mesmo tempo que estreitava os laços afetivos, emocionais e
de solidariedade, fortalecendo o sentimento étnico da identidade indígena
Tuxá, como relata seu Vieira, o conselheiro da aldeia Tuxá:

“... era a brincadeira, não tinha discoteca, não tinha boate, não tinha
nada, era o canto da gente, era se divertir, dançando toré, rei rei rei.
Rodeio, pegava na mão do outro e cantando, dizendo verso e cantando.
Aquilo ali se pudesse passava a noite todinha. Tinha uma namorada pe-
gava na mão. Naquele tempo quando a gente pegava na mão já era muita
coisa, compreendeu? Cantava aquilo para viver, ajudar a sobreviver. Tudo
que a gente funciona por crença, ajuda a viver.”

Diferente de grande parte dos índios do nordeste, que dançam o toré


em círculo, os Tuxá realizam essa dança formando duas fi las paralelas,
uma só de homens, e outra de mulheres, sendo que o primeiro da fila tam-
bém é um homem. As duas fi las ficam de frente para os mestres de cabecei-
ra, que são os mais velhos da aldeia, ou pessoas que tem um conhecimento
maior da “ciência do índio”, que orientam o ritmo e as linhas a serem
cantadas. À medida que são cantadas as linhas de toré, as duas fi las come-
çam a se mover comandadas pelos dois líderes que estão na frente de cada
uma. Todos de acordo com o ritmo do canto e junto com a marcação do
maracá, vão dançando e caminhando intercalando uma pisada forte tanto
com o pé direito como o esquerdo. As duas fi las abrem para o lado de fora,
e dançando, se direcionam para o fundo, até todos ficarem de costas para
os mestres de cabeceira. Então, independente de quantas pessoas tiverem
em cada fi la, os dois que lideram cada uma delas, saem ao mesmo tempo

Processos identitários e a produção da etnicidade 107


e na mesma linha para o lado de dentro, e retornam dançando toré até
chegarem novamente em frente dos mestres de cabeceira. Esse movimento
cíclico se mantém por todo o toré.
Durante esses 20 anos na nova Rodelas, devido a proximidade com os
não índios e a atração gerada pelas opções de divertimentos que a cidade
oferece, os Tuxá não dançam tanto toré como antigamente. São poucos
os mais jovens, mesmo os que participam do particular, que se dispõe
a dançar o toré. Os Tuxá também reclamam que quando dançavam o
toré, logo que se mudaram para a nova Rodelas, os jovens não índios da
cidade ficavam “mangando”, fazendo bagunça, deitando no chão para ver
por debaixo das saias das índias, e tomando outras atitudes desrespeito-
sas em relação ao toré, criando um constrangimento por parte deles em
realizar sua manifestação cultural. Devido a esses fatores, atualmente os
Tuxá dificilmente fazem um toré na cidade, só realizando dentro da aldeia,
por motivos e interesses próprios. Só realizam fora da aldeia por alguma
razão muito especial para eles. Além disso, os atuais confl itos faccionais
do grupo, dificultam a união da aldeia para realização da dança, geran-
do desânimo nos jovens quanto a sua participação. Outras mudanças são
percebidas como o fato do pajé, e dos “mestres” e “mestras” Tuxá não
atenderem mais pessoas não indígenas para tratamentos terapêuticos pela
prática de rituais mágico-religiosos, a não ser que tenham uma relação de
confiança e de amizade.
Crenças antigas estão também desaparecendo como a crença no Nego
D’água, que segurava as canoas por debaixo da água no rio São Francisco,
e na entidade espiritual Mãe D’água. A Mãe D’água é uma lenda que existe
e se ouve falar por todo o rio São Francisco, e está relacionada a força das
águas desse rio. Os não índios dizem que foi uma história trazida pelos
barqueiros que navegavam pelo rio São Francisco e contavam histórias a
respeito dessas entidades, e para eles a Mãe D’Água não passa de “coisa de
índio” ou uma lenda. Para os índios ela é um “encanto”, ou seja, uma enti-
dade espiritual para quem sempre fazem promessas e pedidos de proteção
assim como para ter sorte na pescaria, oferecendo a entidade perfumes,
sabonetes e velas. Na cidade velha de Rodelas tais oferendas eram feitas no
pé do antigo cruzeiro da cidade velha, que se localizava num mirante na
beira do rio São Francisco.
A Mãe D’Água pode também resolver se apoderar do espírito de uma
criança, deixando ela muito doente, sendo os mestres os únicos capazes
de diagnosticar se de fato isso está ocorrendo. Esse encanto pode carregar
o espírito da criança até a morte, sendo necessário a realização de rituais

108 Eliane Cantarino O’Dwyer


e o uso de plantas medicinais específicas para livra-la desse mal. Não se
tem registro e nem ouvi algum relato na cidade do fato de alguma criança
não índia ter ficado doente ou mesmo ter morrido devido a ação da Mãe
D’Água. A morada da Mãe D’água para os índios Tuxá, se encontra debai-
xo da Ilha do Serrote, hoje quase totalmente coberta pelas águas, ficando
acima dela somente o seu cume. Essa ilha é um local sagrado para os Tuxá,
onde se faziam rituais especiais, e sempre se referem a ele, principalmente
os mais velhos, com muita reverência e parcimônia. Desde da formação
do lago de Itaparica e de seu deslocamento os casos de possessão da Mãe
D’água foram se tornando raríssimos enquanto antes eram comuns.
Nesse sentido é fácil constatar que as relações psicoafetivas e mítico-
-simbólicas dos Tuxá com o local que habitavam, e que estão intimamente
relacionadas com seu modo de ser e de viver, foram completamente des-
consideradas no planejamento do reassentamento por parte da CHESF.
Juntamente com os aspetos econômicos, esses fatores foram negligencia-
dos no momento de elaborar os estudos dos impactos das mudanças geoe-
cológicas e suas implicações nos domínios socioculturais do deslocamento
do povo Tuxá, que focaram somente os aspectos práticos dessa mudança
orientados por uma lógica específica da sociedade empresarial capitalista.
Para concluir tentei mostrar a tradição e cultura como um processo,
focando na relação das reelaborações das práticas rituais Tuxá com o con-
texto histórico, socioeconômico e ambiental que estão inseridas. Nesse
sentido, a identidade étnica e os processos de resignificação cultural são
abordados como um processo em constante produção e constituídos a par-
tir da e na interação social, sempre articuladas com as experiências históri-
cas de intercâmbios culturais vivenciados através de uma rede de relações
interétnica e intraétnica regional.

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112 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 4

Dilemas e construções identitárias dos Camba


no Brasil: exclusão e interação em Corumbá
Ruth Henrique 47

Living in communication, in a place where people come and go and min-


gle and mix with a considerable degree of cultural pluralism is the nor-
mal condition of humankind. It is not the result of modernization; all the
great civilizations throughout the ages have certainly been characterized
by this kind of pluralism. (BARTH, 1995, p. 2)

Refletir sobre os Camba na cidade de Corumbá de hoje, localizada no Pan-


tanal sul mato-grossense, em específico no caso dos integrantes do sub-
-bairro São Francisco, é também refletir sobre suas formas de articulação,
interação, construção identitária em processo a cerca de 30 anos, quando
o Sr. Nazário, até então um “migrante boliviano” participou de seu pri-
meiro encontro do movimento social indígena na região em fi ns dos anos
de 1970 e passou a reivindicar uma “indianidade” que até então era nega-
da por diversos fatores, que iam da vergonha de ser um indígena ao receio
de ser deportado por “não ser brasileiro”, passando pela necessidade de
ter um trabalho. O que se tem em jogo, parafraseando Bourdieu (1989, p.
125) não é a “conquista ou reconquista de uma identidade, mas o poder
de se apropriar (...) de uma identidade legítima, quer dizer, suscetível de ser
publicamente e oficialmente afi rmada e reconhecida”.
Neste contexto, ser Camba em Corumbá, em especial os de São Fran-
cisco, implica em transformar um termo ainda pejorativo na Bolívia, em
uma identidade étnica, indígena, e ultrapassar preconceitos regionais e até
do nosso órgão indigenista oficial: a Fundação Nacional do Índio (FU-

47 Este artigo é uma adaptação/releitura de um dos capítulos de minha Tese de Doutorado


em Antropologia Social intitulada “Brasileiros, bolivianos ou indígenas? Construções identi-
tárias dos Camba no Brasil”, apresentada em fevereiro de 2009 ao PPGA/UFF – Programa de
Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.

Processos identitários e a produção da etnicidade 113


NAI), que não dispõe de uma política pública de atuação junto a grupos
autodeclarados indígenas em contexto citadino. Nessa esfera de interação,
seja com a FUNAI ou com os corumbaenses e demais atores sociais da
cidade, os Camba desenvolveram “técnicas” não só para “evitar” o con-
fronto como também para “tolerar” as “intolerâncias” locais (EIDHEIM,
1969, p. 40) e assim poderem transitar entre a vida pública e a vida secreta/
privada (Ibid, 53), acionando as identidades pertinentes (ou necessárias)
para o diálogo em cada uma dessas esferas. Ou seja, uma coisa são os
Camba no São Francisco, entre os seus; outra coisa são os Camba dialo-
gando com outros atores sociais, em outros locais ou contextos.
Ademais, ser Camba também significa, em uma alusão extrema, reno-
mear os povos indígenas do interior do oriente boliviano (principalmente
das províncias de Chiquitos, Velasco e Ñuflo de Chavez do Departamiento
de Santa Cruz de La Sierra) que foram arregimentados pelos missionários
jesuítas espanhóis entre os séculos XVII e meados do XVIII, tiveram suas
particularidades diluídas para serem moldados e inseridos como mão de
obra na sociedade boliviana; tal qual a instituição antecessora da Funai, o
Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais
(SPILTN, criado em 1910 e posteriormente renomeado apenas como SPI),
fi zera no Brasil.
No entanto, antes de continuarmos com nossas análises, sobre o pro-
cesso de construção de uma identidade Camba no Brasil, se faz necessário
especificarmos o significado, parafraseando Peña Hasbún (2003), do “que
é ser Camba”, tanto aqui quanto na Bolívia. Há uma defi nição geral, com-
partilhada por vários dos interlocutores com os quais conversei em Co-
rumbá, do Sr. Nazário à D. Augustina, do jornalista do “Nación Camba”
ao Sr. Menacho, da D. Candinha à D. Petrona, que descrevem como Cam-
ba todos os nascidos e/ou habitantes do Oriente boliviano. Ainda segundo
nossos interlocutores em Corumbá, os Camba que nascem na cidade do
Departamiento de Santa Cruz de la Sierra são os cruceños; os que nascem
no interior podem ser Camba indígena (se da região das missões onde exis-
tiam os pueblos) ou campesino (Camba rural). De acordo com Silva (2005,
p. 138), pueblo é o nome dado, na Bolívia, para as antigas reduções jesuíti-
cas, originalmente moradia dos Chiquitanos e dos outros povos aldeados.
Mas, pueblo também é uma denominação atribuída, segundo relataram os
antigos moradores Camba do São Francisco em Corumbá, aos pequenos
lugarejos rurais do interior do Oriente boliviano; que no caso dos nossos
interlocutores, corresponde aos locais onde se instauraram as missões jesu-
íticas espanholas. Temos, então, variações de Camba que vão do cruceño

114 Eliane Cantarino O’Dwyer


(o “camba urbano”, “branco”), ao Camba do interior, podendo este ser
indígena ou campesino.
Ser, ou se identificar como Camba indígena (ou não) também envolve
posicionar-se socialmente na sociedade, seja ela brasileira ou boliviana. Os
cruceños (nascidos e/ou residentes no âmbito urbano de Santa Cruz de la
Sierra, na Bolívia) se dizem “descendentes” apenas de europeus (espanhóis,
principalmente) sem cogitar qualquer vinculação indígena. Estes Camba
são, como disse um jornalista do movimento nación Camba que entrevis-
tei em Corumbá, la población más blanca, la elite.
Nesta perspectiva, Xavier Albó (1989, p. 166) descreve o que deno-
mina de “Camba não indígena” como sendo un sector importante (que)
se considera descendiente de los españoles establecidos en el “Oriente”
quizás desde tiempos coloniales. (...) e más recientes: árabes, “turcos” ne-
gociantes, japoneses que llegaron con el “boom” de la goma, alemanes
escapados de las guerras mundiales, brasileños del contorno, etc. Diante
dessa nova conjuntura, o significado para o termo Camba não indígena
se amplia para além dos descendentes dos colonizadores espanhóis do sé-
culo XVI no Oriente boliviano, atualizando-se com os fluxos migratórios
mais recentes da história boliviana. Estas migrações, por sua vez, estão
aparentemente vinculadas a alguns ciclos econômicos e/ou históricos que
afetaram o país, tais como o período da borracha (no início do século XX,
no caso de migrantes japoneses), o afluxo de alemães no período das duas
grandes guerras mundiais (o Sr. Menacho ressaltou que en la ciudad de
Santa Cruz hay muchos descendientes alemanes de la guerra y calles con
su nombres) e o incremento considerável de brasileiros em solo boliviano
com a construção da estrada de ferro Corumbá – Santa Cruz de la Sierra.
Neste último caso, foi uma via de mão dupla, pois aumentou e facilitou o
acesso tanto de brasileiros quanto de bolivianos nos dois lados da fronteira
dos países.
Entre os “Camba não indígenas”, ainda seguindo a distinção apresen-
tada por Albó (1989, p. 166-169), no âmbito rural estão os pequenos e
médios campesinos e os que chama de patrones ou grandes fazendeiros,
ressaltando que os que diferencia é o tipo e o volume das atividades que
desenvolvem. Além disso, Albó cita também entre os “Camba não indíge-
nas” do mundo rural os agroindustriais da soja, os madeireiros e “gome-
ros” (seringalistas). Já os “Camba indígenas” na Bolívia seriam, de acordo
com Albó (1989, p. 171), um último grupo formado pelos “antigos donos”
de todas as terras baixas. De acordo com Gustafson (2002, p. 271) o censo
boliviano de 1995 aponta a existência de 40 a 60 mil indígenas Moxeño,

Processos identitários e a produção da etnicidade 115


Chiquitano e Guarani na região das terras baixas, em um universo total
de 260 mil indígenas nesta região. Ressalte-se ainda que, o Oriente boli-
viano apresenta uma grande variedade étnica, onde los Moxo resultan ser
parientes de los Arawak del Caribe; los Guarayo, Chiriguano e incluso los
escurridizos Yuki, de los Tupi de la Costa Atlántica; los Movima e Itona-
ma, según algunos, se relacionan com los Cubeo y los Chibcha de Colôm-
bia. El origen de otros, como los Chiquitano, sigue siendo um mistério.
(...) sólo tres grupos – chiriguano, chiquitano y moxo – passan de 10.000
personas cada uno. (ALBO, 1989, p. 197-198).
Na Bolívia, segundo Riester (1974, p. 121), os Chiquitano concentram-
-se no Departamiento de Santa Cruz de la Sierra, mais especificamente
nas províncias de Ñuflo de Chavez, Velasco e Chiquitos (são nessas três
províncias que se localizavam a maioria das missões jesuíticas, que agru-
pavam os indígenas da região), além das províncias de Angel Sandoval e
Germán Busch (que fazem divisa com Corumbá. A primeira por via flu-
vial, através do rio Paraguai; e a segunda, além da via fluvial, acessa-se
pela fronteira terrestre.). É na provincia de Germán Busch que estão as
localidades de Puerto Quijarro e Puerto Suárez.
Há também menções da presença Chiquitana na província de Guarayo
(ao norte da província de Andrés Ibañez, onde está a capital do Departa-
miento de Santa Cruz de la Sierra). Vivem em “ranchos” dispersos por es-
tes locais, próximos aos “estabelecimientos” (agrícolas) ou das “estancias”
(de gado), onde em ambos são aproveitados como mão de obra. E, mais ao
sul boliviano encontramos os Ajoréu que, segundo informações obtidas
junto aos Terena em Campo Grande (que trabalham na Funai local), têm
contato com os Kadiwéu, que vivem em uma área indígena na serra da Bo-
doquena, no sudoeste de Mato Grosso do Sul. De acordo com Silva (2005,
p. 139), uma parte dos Chiquitano também podem ser encontrados em
San Matias (Bolívia), chegando a um total de 400 comunidades naquele
país e, no Brasil, nas periferias dos municípios mato-grossenses de Cáceres
e Porto Esperidião, espalhados em 7 (sete) núcleos: Limão, Fortuna, Osbi,
São Sebastião, Roça Velha, Palmarito e San Fabiano.
Segundo Peña Hasbún (2003), em seu estudo sobre os cruceño na Bolí-
via, também há controvérsias em torno da denominação Camba e dos sen-
tidos que vem sendo atribuídos e modificados no decorrer da construção
da identidade dos moradores de Santa Cruz de la Sierra. Plácido Molina
(1936a, p. 225 apud PEÑA HASBÚN, 2003, p. 117) aponta que eram os
cruceños que denominavam os Chiriguano de Camba, que significa “Ami-
go”, cuja denominação os Chiriguano solo la usan entre los de la tribu:

116 Eliane Cantarino O’Dwyer


es como el Don en los españoles. Já Gabriel René Moreno (op cit PENA
HASBÚN, ibid) defi ne os Camba como castas guaranies de la provincias
departamentales y del Beni (1960, p. 7), enquanto Eduardo Cortés (op cit
PEÑA HASBÚN, 2003, p. 118) sugere que Camba seja uma deformación
de la palabra guaraní Cuimbae e que en Santa Cruz de la Sierra el nombre
camba se le dio a la persona de clase inferior, sobre todo al de color y en
menor medida al pobre, siendo blanco(.) e hoy día, sin embargo todos los
cruceños sin distinción de clase social aceptan con orgullo el gentilicio
(1995, p. 19-20).
A partir desta perspectiva, Peña Hasbún mostra que com o passar do
tempo o termo Camba passou a referir-se aos nascidos em el Oriente,
como adjetivo gentilicio, mas ainda persiste todavía su uso peyorativo
(2003, p. 119). E Stearman (1987, p. 40) amplia as possibilidades de com-
preensão sobre os Camba, ao descrever que el camba tiende a ser un pot-
pourri de indígenas de las tierras altas (quéchua y aymara), de indigenas
de las tierras bajas (guarani, guarayo, chiquitano y muchos más), de euro-
peos (sobretodo del sur de España) y quizá de herencia africana. Parece-
-me que uma parte desse pot-pourri encontra-se em Corumbá, onde uns
se identificam como Camba indígena ou Camba Chiquitano (como o Sr.
Nazario, D. Petrona, Sr. Menacho), como cruceño ou simplesmente Cam-
ba (como D. Augustina e seus fi lhos).
No entanto, Stearman (1987) ao abordar sobre os processos de mi-
gração interna na Bolívia, traz ao palco do seu (nosso) debate os Colla,
que tem se deslocado mais intensamente a partir dos anos de 1980 em
direção à Santa Cruz de la Sierra, demonstrando que as dissensões entre
Colla e Camba persistem; embora no Brasil eles se unam de certa forma,
seja através da língua espanhola, da nacionalidade boliviana ou dos, não
raros, preconceitos de que são alvo, conforme veremos no decorrer deste
artigo. Essa aproximação entre Camba e Colla em Corumbá vem resultan-
do, inclusive, na incorporação por àqueles de devoções a santos católicos
cultuados por estes últimos, haja vista as novenas e fi estas que ocorrem no
mês de agosto em intenção à Nuestra Señora de Urkupiña, padroeira de
Cochabamba e as raras manifestações religiosas feitas à Nuestra Señora
de Cotoca em dezembro (mês em que se homenageia a padroeira de Santa
Cruz de la Sierra).
Mas, agora nos deparamos com outra indagação: quem são os Colla.
Os Colla advém e vivem, majoritariamente, na região do Altiplano boli-
viano, geograficamente de difícil acesso, com altas altitudes, margeando a
Cordilheira dos Andes ou serraria, como chamam. Segundo Peña Hasbún

Processos identitários e a produção da etnicidade 117


(2003, p. 119), nesta região também chamada de Ocidente, se utiliza o
termo Colla para designar os que daí seja proveniente. Ou seja, Colla é
habitante do Collasuyo ou do Collao. El nombre proviene de un señorío
aymara (pre-inca) ubicado a orillas del lago Titicaca. Os Colla são consi-
derados pelos Camba como indígenas à priori, como o presidente bolivia-
no Evo Morales, cuja origem aponta para o povo Aymara, língua também
falada na parte alta do Departamiento de Oruro e em Cochabamba. Nas
conversas informais pelas ruas de Santa Cruz de la Sierra, os cruceños me
diziam que os Colla são os indígenas do Altiplano, assim como o dissera
o “jornalista” X, Camba cruceño residente em Corumbá que pediu para
não ser identificado.
Segundo Libermann, Godínez e Albó (1989, p. 18-9), a maioria da po-
pulação rural Colla es de lengua quechua o aymara, aparte de que tambi-
én en las principales ciudades del área el 50% a 60% de su población sabe
alguna de estas dos lenguas. (...) la lengua aymara es hablada actualmente
por cerca de dos millones de bolivianos (...)sin contar otras decenas de
miles en el norte de Chile.
No Brasil os Colla são identificados pelos Camba aqui residentes como
bons negociantes; e esteticamente as mulheres diferenciam-se pelo uso
de longos cabelos (em média na altura da cintura) divididos ao meio e
trançados, além de camadas de coloridas saias rodadas sobrepostas. Os
Colla também ocupam a maioria das bancas nas feiras de bairro (cerca de
90%, segundo informações do presidente dos feirantes, Sr. Francisco) e na
“feirinha boliviana” regularizada pela prefeitura de Corumbá, vendendo
artigos que vão de roupas a pequenos objetos eletrônicos, como veremos
adiante. Já na Bolívia, a partir das relações observadas entre Colla e Cam-
ba em Santa Cruz de la Sierra, Stearman (1987, p. 234) aponta que ambos
têm descrições próprias um do outro:

La mayoría de los camba posee una serie de imágenes estereotipadas del


colla “típico” y los collas también están seguros de que tienen una preci-
sa percepción del camba promedio. La mayoría de los cambas sostienen
que los collas son buenos trabajadores pero sucios, algo tontos y des-
confi ables. Por su parte, los collas describen a los cambas como fl ojos,
borrachos, infi eles a sus esposas, pero alegres y fi esteros. La intensidad
de los contactos directos comienza a erosionar estos estereotipos, pero
todavía el prejuicio se mantiene fuerte.

118 Eliane Cantarino O’Dwyer


Esta animosidade, que persistiria entre Camba e Colla, ainda segundo
Stearman (1987, p. 235) teria se construído no decorrer da própria história
do estado boliviano, onde

La animosidad de los cambas contra los collas es un viejo problema en


la integración nacional. La mayoría de los cruceños insiste en que son
“racialmente superiores” a los andinos debido a su más fuerte herencia
europea. Aun así, los odios contra los collas se han desarrollado debido
a una larga historia de problemas políticos tanto a nivel local como in-
ternacional.

Ressalte-se, porém, que os Camba aos quais Stearman se refere são os


cruceños, ou Camba urbanos de Santa Cruz de la Sierra. Já em Corumbá,
no contexto urbano brasileiro em uma área de fronteira, essas dissensões
que funcionam na Bolívia como o que poderíamos chamar de identifica-
dores étnicos, ou sinais diacríticos, entre Camba e Colla, reconfiguram-se.
No Brasil, Camba e Colla diante de contextos onde são discriminados
(como nos litígios com taxistas brasileiros por passageiros) ou em momen-
tos de expressões religiosas (como nas novenas e festividades à Nuestra
Señora de Urkupiña, Cotoca etc.), por exemplo, mantêm uma certa uni-
cidade, mas agora construídas mediante a nacionalidade, a devoção aos
mesmos santos católicos e no falar castelhano entre si.
Há também mais uma abordagem sobre os Camba que os remete aos
Colla como contraponto. Ao discorrer sobre o mundo rural Camba, Xa-
vier Albó (1989, p. 159-160) evidencia dois sentidos para o termo Cam-
ba, que nos ajuda a compreender melhor suas variações. Em uma leitura
mais genérica, Camba se refi ere a toda la población no-andina estableci-
da tradicionalmente en las tierras bajas, tendo assim como contraponto
o “mundo colla”. Já a outra conotação dos Camba refere-se ao fato de
que, internamente entre orientales “camba” equivale a “indio”, es decir a
aquel sector de la población que culturalmente mantiene su identidad con
los grupos étnicos que originariamente poblaban las tierras bajas del país.
Pero en esta segunda acepción el término “camba” – como su equivalente
“indio” – tiene una connotación despectiva y discriminatoria.
Esta descrição dos Camba nos leva a refletir que etnônimos surgem,
muitas vezes, a partir de designações pejorativas atribuídas por outros a
um grupo e são assumidos, com novos significados, pelo mesmo processo
de emergência étnica diante do pleiteamento de direitos. Este parece ser
o caso dos Camba, que na Bolívia são considerados de campesinos po-

Processos identitários e a produção da etnicidade 119


bres a cruceños brancos, passando pelos indígenas; e no Brasil, na maioria
dos casos descritos em São Francisco/Corumbá, se veem como indígenas.
Diante deste quadro, os próprios estigmas podem se transformar em sinais
diacríticos de etnicidade para o grupo e serem revertidos em motivo de
autoestima e referência para a reivindicação de direitos. Deste modo, o es-
tigma se reconfigura e torna-se uma postura de afi rmação e diferenciação
cultural, mesmo que vinculada ao racismo e à discriminação.
Ainda refletindo no campo dos etnônimos, podemos perceber que os
atores sociais passam a utilizá-los dando um sentido específico a cada si-
tuação, fazendo com que o uso da categoria seja contextual e, portanto,
flexível e pertencente a um determinado período de tempo, podendo se
alterar no decorrer deste. Amselle e M’Bokolo (1999), em seu Au coeur
de l’ethnie: ethnie, tribalism et État en Afrique, diante do exemplo de
confl itos tribais na Libéria do fi m do século XX (como em tantos outros
países africanos agitados aparentemente por lutas tribais), o confl ito entre
o governo de Samuel Doe de um lado e as forças de Charles Taylor e de
Prince Johnson de outro parecia se reduzir a um afrontamento entre as
etnias krahn e mandingo de um lado, e de outras etnias de outro lado. E, o
que nos interessa em termos de análise comparativa para pensarmos sobre
as estratégias e os usos contextuais do termo Camba no Brasil, por seus
integrantes, diz respeito ao fato que na Libéria (tal qual podemos pensar
para o caso do termo Camba), o termo mandingo não leva a uma etnia
particular, mas designa (no caso liberiano) a semelhança dos comerciantes
muçulmanos.

Si l’on se refere au champ sémantique des termes mandingo, mandingue


ou malinké, il est clair que l’acception du terme mandingo au Liberia
n’est que l’um des sens possibles de cette catégorie, laquelle, de ce fait,
possède une vertu performative. (...) En montrant qu’on ne pouvait assi-
gner un seul sens à un ethnonyme donné, nous mettions l’accent sur la
relativité des appurtenances ethniques san pour autant denier aux indi-
vidus le droit de revendiquer l’identité de leur choix. (1999, p. II).

Com isso, podemos perceber que Camba no Brasil é um termo perfor-


mativo com múltiplas construções identitárias, interpretações e possibi-
lidades, onde para os atores sociais o uso (e o sentido) do etnônimo está
referenciado a uma determinada época e circunstância. De forma análoga,
seguindo com a nossa reflexão, a “separação” Colla e Camba, Altiplano e
Oriente, não necessariamente é seguida à risca e nem é dicotômica como

120 Eliane Cantarino O’Dwyer


pode aparentar. Ela perpassa por limiares que se entrecruzam, principal-
mente quando há interesses em comum dos povos indígenas de cada uma
dessas regiões bolivianas. No espaço brasileiro, e mais especificamente
para os moradores do São Francisco, ser Camba significa ter o reconheci-
mento de uma identidade indígena, dentre outras tantas que são acionadas
contextualmente, que se processa internamente nas formas de interação
com seus pares, e externamente com todos aqueles que precisam dialogar
neste processo.
Com isso, o próprio estigma de ser indígena se transforma em sinal
diacrítico de etnicidade para o grupo, e é revertido em motivo de autoesti-
ma e referência para a reivindicação de direitos. Deste modo o estigma se
reconfigura e torna-se uma postura de afi rmação e diferenciação cultural
dos Camba (mesmo que sua origem tenha sido pejorativa e/ou discrimina-
tória), ao inverterem o sentido e o valor das características estigmatizadas
(BOURDIEU, 1989, p. 126-7).
Nesse sentido, os Camba estabeleceram formas de interatividade de
acordo com suas necessidades de interlocução e o contexto em que elas se
processaram. As mudanças ocorridas, no caso dos moradores mais anti-
gos do São Francisco, como D. Petrona e Sr. Nazario envolvem a língua,
por exemplo, onde na Bolívia foram ensinados por seus pais a “não falar
o dialeto” para que (segundo eles) com o domínio da língua espanhola
(e depois a portuguesa, já no Brasil) pudessem ter melhores perspectivas
de trabalho. Diante de seus pleitos por reconhecimento do grupo como
indígenas no Brasil, os Camba também estabeleceram tentativas de arti-
culação com a esfera pública (aqui entendido como os órgãos de governo
brasileiros) seja através do Sr. Nazario ou do Sr. Menacho e com outros
grupos que compartilharam do mesmo processo de luta ampliando, por-
tanto, as alianças com o grupo indígena Guató.
Estas mudanças, e negociações, já estão incorporadas aos Camba e
fazem parte do processo de construção identitária do grupo em Corumbá,
que não destoa de quaisquer outras sociedades humanas que em algum
momento elaboram critérios de inclusão/pertencimento e exclusão do seu
grupo étnico, que servem para organizar socialmente a interação entre
as pessoas, gerando significados compartilhados (HANNERZ, [1980, p.
287] apud BARTH, 2000, p. 127), pautando-se inclusive nos sinais diacrí-
ticos, ou seja, nas diferenças que os próprios atores sociais consideram sig-
nificativas, fazendo com que o ‘nós’ e ‘eles’ permaneça, sob determinados
critérios estabelecidos pelo e por cada grupo.

Processos identitários e a produção da etnicidade 121


Como disse cada qual do seu modo, seja o Sr. Nazario, D. Petrona, Sr.
Menacho ou o Sr. Arturo, entre outros Camba que conheci em Corumbá,
não é qualquer um que se autoidentifica como Camba. E não basta ser/ou
ter vindo do Oriente boliviano, da região da Chiquitania onde se instala-
ram as missões, mas como dissera o Sr. Nazario, “tem que ter sentimento,
saber a história do seu povo, ajudar os que chegam, porque todos são
Camba, são índio”.
Os Camba também se constituem, como vimos com Albó (1989) e Ste-
arman (1987) em contraposição aos Colla, aos que provém do Altiplano
boliviano. Deste modo, estamos refletindo também acerca da etnicidade,
que nesta linha de discussão pode ser entendida como the application of
systematic distinctions between insiders and outsiders; between Us and
Them, sendo constituted through social contact (ERIKSEN, 1993, p. 19).
Por conseguinte, sendo a etnicidade constituída através da interação so-
cial, ela não é uma condição estável, mas uma relação negociada entre um
grupo e outros e entre estes grupos e o estado (MAYBURY-LEWIS, 19XX,
p. 14), adquirindo assim uma dimensão temporal, situacional, que nos leva
a compreender a cultura como um processo, em constante estado de fluxo
(BARTH, 1995, p. 1).
Portanto, e independente das mudanças inerentes à vida social em cons-
tante processo de interatividade, que envolve relações tanto de atratividade
quanto de repulsividade, sem deixar de ter a distintividade entre “nós” e os
“outros”, nos reportemos também a Hannerz (1997, p. 12), atento ao fato
que (...) para manter a cultura em movimento as pessoas, enquanto atores
e redes de atores, têm de inventar cultura, refletir sobre ela, fazer experi-
ência com elas, recordá-la (ou armazená-la de alguma maneira), discuti-la
e transmiti-la.
Desse modo, a “construção” de uma identidade étnica Camba indíge-
na, em Corumbá, se esta for a trajetória que o grupo vai traçar (ou pelo
menos parte dele), possibilita não apenas o debate interno (entre os inte-
grantes do grupo), como também com outros grupos como os Guató que
apresentam um histórico de “sucesso regional”, tanto pelo reconhecimen-
to de sua “indianidade” (já que eram considerados extintos pela Funai)
quanto pela identificação de seu território, assim como abriu flancos para
a interlocução com o Estado, em especial no que tange à possibilidade de
reconhecimento do grupo e, quiçá a regularização fundiária pela Funai, de
uma área indígena em âmbito urbano.
Por outro lado, há também aqueles que apenas se constituem como bo-
livianos independentes se Camba (indígena ou não) ou Colla e que também

122 Eliane Cantarino O’Dwyer


nos auxiliam a compreender a dinâmica social que se processa em Corum-
bá. Um exemplo das relações que se estabelecem entre os corumbaenses e
os migrantes bolivianos na cidade brasileira são os taxistas. O serviço de
transporte coletivo em Corumbá é precário, não atende a todas as locali-
dades e/ou são escassos, os táxis são caros e os taxímetros (que deveriam
contabilizar a corrida proporcionalmente à distância efetuada) são mero
acessório e não funcionam, onde as tarifas (preço) são previamente combi-
nadas com o motorista, tal qual na Bolívia (a diferença é apenas cambial,
de reais para bolivianos) e varia com a “aparência” (se abastada ou não)
do passageiro.
Por sua vez, na Bolívia as corridas de táxi tinham valores diferencia-
dos para brasileiros e bolivianos. Como geralmente em Puerto Quijarro
estava acompanhada de algum interlocutor Camba, seja o Sr. Menacho ou
a D. Augustina, por exemplo, eu deixava as negociações por conta deles
(sempre mais favorável que quando eu tentava) e só pagava a conta, em
reais ou bolivianos. Já em Santa Cruz de la Sierra, sozinha, meu canhestro
“portunhol” denotava minha “estrangeirice” e apesar de negociar o valor
das corridas, não obtinha muito êxito na diminuição significativa do valor
das mesmas.
Segundo os taxistas brasileiros com os quais conversei em Corumbá,
há uma espécie de acordo tácito entre os profissionais dos dois países na
região de fronteira, para que um não pegue a clientela do outro, ou me-
lhor, para que só atue como motorista profissional em seu próprio país.
A briga em solo brasileiro envolve o preço da gasolina brasileira (mais
cara que a boliviana48) e os encargos inerentes ao licenciamento de taxista
cobrado no Brasil, que faz aumentar o preço das corridas em Corumbá e
consequentemente, a diferença de preços cobrados entre taxistas brasilei-
ros e bolivianos. E, essa concorrência por passageiros acirra ainda mais o
preconceito de brasileiros a bolivianos, como pude presenciar junto com o
Sr. Menacho, Camba.

48 Na fronteira, logo na entrada de Puerto Quijarro, em Arroyo Concepción, há inúmeros


vendedores ambulantes de gasolina parados logo depois da imigración, circulando pelas ruas
de terra do local, transportando-as em carrinhos de mão, carroças e/ou carros antigos. À
época do meu segundo campo, entre janeiro e março de 2007, a garrafa pet de 2 litros de ga-
solina era vendida por cerca de R$ 1,80. Além da falta de um acondicionamento apropriado
para um produto infl amável e extremamente volátil, não havia fi scalização que impedisse a
venda da gasolina pelos ambulantes (inclusive de mães acompanhadas de crianças pequenas),
mesmo estando praticamente à entrada de um posto do exército boliviano. Ao que me parece,
este pode ter sido um dos motivos pelos quais não obtive autorização de um soldado, que
estava a postos, de fotografar na fronteira.

Processos identitários e a produção da etnicidade 123


Ao entrar em um “táxi brasileiro” no centro de Corumbá, acompanha-
da do Sr. Menacho para irmos até à Frontera, o nosso motorista avistou
um “táxi boliviano” pegando passageiros (o sistema de “lotação” é ado-
tado por taxistas brasileiros e bolivianos, e os trajetos pré-combinados
com os passageiros). Eis que, de repente, nos vimos em uma perseguição
pelas ruas de Corumbá, onde o “nosso” taxista, aos gritos, xingamentos
e “fechadas”, tentava atingir o “táxi boliviano”. Ao compreender o que
estava acontecendo, dei um ultimato ao taxista para que parasse o veículo
para saltarmos ou esquecesse a perseguição. A segunda opção foi a esco-
lhida pelo motorista brasileiro, mas tivemos que ouvi-lo se queixar sobre
o quanto os bolivianos eram traiçoeiros, entre outros adjetivos impubli-
cáveis. Mas, quando saímos do carro e, fi nalmente o motorista percebeu
que entre seus passageiros havia um boliviano, Camba, o mesmo pediu
desculpas e disse que nem todos os bolivianos eram iguais àquele que havia
desrespeitado o acordo implícito pelos profissionais de sua categoria. O sr.
Menacho apenas esboçou um sorriso e saímos em direção à Frontera.

Da reorganização das “feirinhas bolivianas” à participação


em eventos públicos como o “Festival América do Sul”
No debate com os interlocutores contatados nos dois lados da Frontera,
pudemos visualizar que uma nova cartografia social desenhava-se em Co-
rumbá, com a intensificação do fluxo de pessoas advindas principalmente
do Oriente boliviano. A partir de meados do século XX o Brasil, compa-
rativamente à Bolívia, apresentava-se para os Camba como um lugar com
maiores e melhores perspectivas de trabalho e, posteriormente, de políticas
indigenistas, apesar de serem discriminados ou vistos como ameaça pela
população regional brasileira. Um exemplo da época foi o término da “fei-
ra boliviana” em 1964, em pleno período da ditadura militar brasileira,
onde o então prefeito de Corumbá, Sr. Edmir Rodrigues, a extinguiu com
a argumentação de que era “o favelamento mais deprimente para quem
chegava a Corumbá”, onde “a sujeira, a promiscuidade e o alto índice de
criminalidade punham em sobressalto a população de Corumbá” (PEN-
TEADO, 1980, p. 64-65).
Anos se passaram, fi ndo o regime militar brasileiro, hoje a “feira bo-
liviana” (BRASBOL)49 é um ponto turístico. Entretanto, entre os corum-
baenses, ao perguntar pela BRASBOL ninguém soube me dizer nem o que
era. Mas, quando perguntava pela “feirinha boliviana”, todos sabiam do

49 Feira BRASBOL é o nome oficial da feira, cuja sigla é uma abreviação de Brasil-Bolívia.

124 Eliane Cantarino O’Dwyer


que se tratava e onde se localizava. Esta também se difere das “feiras de
rua”, e cada qual tem um presidente que as organiza. A BRASBOL é o Sr.
Mario (boliviano) e o presidente das “feiras de rua” é o Sr. Francisco (bra-
sileiro), mas em ambas, a presença dos Colla é cada vez maior. Além disso,
os corumbaenses também chamam de “feirinha boliviana” o comércio de
rua existente na Frontera, em Puerto Quijarro, na Bolívia; denominação
esta já incorporada pelos comerciantes bolivianos de lá.
A fronteira boliviana, no limite com Corumbá, se descortina a par-
tir de uma localidade chamada Arroyo Concepción. É nesta localidade,
que tanto brasileiros quanto bolivianos da região chamam de Frontera,
que está a “feirinha boliviana”, um conjunto de lojinhas em uma rua de
terra batida que vende de quase tudo: aparelhos eletrônicos (aparelhagem
de som, câmeras digitais e de vídeo, celulares etc.), material de pescaria
e acampamento, DVD’s e CD’s (em sua maioria piratas, em espanhol e
português), bebidas importadas, roupas e alguns artigos típicos da cultura
boliviana. Quando a atravessamos, os bolivianos locais prontamente nos
oferecem “cambio” (de reais para bolivianos ou dólares) e diante de uma
negativa, indagam se estamos dispostos a ir à “feirinha boliviana”. Ao me-
near a cabeça positivamente, o caminho é prontamente mostrado.
Em meados dos anos 1990, segundo o Sr. Menacho, houve uma inten-
sificação da circulação de feirantes bolivianos em Corumbá, principalmen-
te de origem Colla, tanto nas feirinhas de rua quanto na reinauguração da
“feirinha boliviana BRASBOL”, com barracas estruturadas de madeira,
de forma permanente, em uma área semicoberta (como um galpão aberto)
cedida pela prefeitura de Corumbá, ao lado do cemitério da cidade. Esta,
segundo o Sr. João Hellensberger, da Pastoral dos Migrantes, ressurgira
em 2003, inclusive com estatuto de diretrizes internas. Tornou-se um point
popular, onde se adquire roupas novas a preços convidativos em relação ao
comércio local. Já nas “feirinhas de rua”, itinerantes, com dias da semana
alternados, a maioria das barracas de vestimentas é de roupas usadas, ven-
didas entre 1 e 5 reais.
Segundo o Sr. Francisco Ferreira Ormond Filho, “presidente dos traba-
lhadores autônomos de feiras livres em Corumbá e Ladário”, ao contrário
da “feirinha boliviana BRASBOL”, as feiras de rua ainda não estão regula-
mentadas pela prefeitura, dada a dificuldade de atuar em uma área de fron-
teira. Isto porque, segundo o levantamento que o Sr. Francisco fez junto aos
feirantes para organizá-la melhor, 95% das mercadorias comercializadas é
contrabandeada da Bolívia e o processo de regularização das feiras estava
a mais de um ano e meio entre os Ministérios Públicos Estadual e Federal.

Processos identitários e a produção da etnicidade 125


As maiores feiras livres de Corumbá são a de domingo, localizada en-
tre as ruas Ladário e a 13 de junho e a de sexta-feira, à margem da linha do
trem, na entrada do bairro do Cristo Redentor (onde fica o sub-bairro São
Francisco), em média com 200 feirantes cada uma. Ainda de acordo com o
Sr. Francisco, cerca de 80% dos feirantes que atuam hoje em Corumbá são
bolivianos, e os Colla predominam. Sendo que, ao contrário dos Camba,
que se fi xaram em Corumbá a pelo menos 50 anos atrás, os Colla retor-
nam às suas localidades na Bolívia com o encerramento das feiras, que por
determinação da prefeitura termina às 13h, pontualmente.
Os Colla vem majoritariamente da Frontera (como chamam localmen-
te, ou seja, do entorno de Puerto Quijarro) apenas para trabalhar e retor-
nam em seguida para a Bolívia50. Vêm, em sua maioria, acompanhados de
mulher e fi lho/a(s), que permanecem na feira até o seu término, quando
todos arrumam os caixotes dos produtos que foram expostos e voltam
para a Bolívia. Poucos, pelo que foi possível observar, optam por residir
em Corumbá. Segundo o Sr. Menacho, assim como nos indica a antropó-
loga Stearman (1987) no que tange ao fluxo migratório Colla em Santa
Cruz de la Sierra; a presença Colla é recente em Corumbá também em
virtude da recente migração que estes têm feito de regiões do Altiplano em
direção ao Departamiento de Santa Cruz de la Sierra, cada vez mais rumo
à fronteira brasileira em busca de trabalho. Mas este panorama pode vir
a mudar e variar de acordo com o contexto sociopolítico e econômico do
país vizinho.
Em última instância, tanto os Colla quanto os Camba, pelo que pu-
demos perceber, migraram para Corumbá em momentos distintos, mas
com propósitos semelhantes: a busca por trabalho, embora em diferentes
contextos e atuações.
Enquanto os Camba, ao migrarem em busca de trabalho se fi xaram no
Brasil, estabeleceram/construíram relações sociais com os regionais e, no
caso de todos os interlocutores que conversamos em Corumbá, tanto os
do São Francisco quanto os residentes antes da “linha do trem”, não pre-
tendem voltar para a Bolívia; os Colla só se fazem presentes em Corumbá,
quantitativamente de forma mais expressiva, nos períodos das já citadas
feiras ou de eventos com maior potencial de comercialização de seus pro-
dutos, onde há um fluxo maior de turistas como o carnaval, a época da
liberação da pesca esportiva no Pantanal, o festival América do Sul etc.

50 Há um processo recente também de migração Colla no interior da própria Bolívia, que


Stearman (1987) ressalta quando discorre sobre o processo de migração e desenvolvimento
no Departamiento de Santa Cruz de la Sierra.

126 Eliane Cantarino O’Dwyer


Ou seja, os Colla têm uma relação aparentemente comercial com a
cidade de Corumbá, como feirantes/negociantes autônomos com tempo
pré-objetivado enquanto houver consumidores para os produtos que ofe-
recem, não tencionando estabelecer laços ou se fi xarem no local para isso.
Esse processo de idas e vindas torna-se, pois, um trajeto cotidiano para
os Colla, principalmente dos que trabalham nas feiras livres de Corumbá
comercializando produtos alimentícios. Já entre os Colla que atuam na
“feirinha boliviana” em Corumbá (a BRASBOL, que tem uma estrutura
fi xa), há de se ressaltar que alguns (poucos) têm residência tanto na cidade
quanto em Puerto Quijarro, na Bolívia, alternando-se entre uma e outra.
Pelo que disseram informalmente alguns desses Colla na feira BRASBOL,
pra ter casa aqui (em Corumbá) tem que juntar mais “plata”, é caro, tor-
nando-se um símbolo de status aquele que a possui.
Mas, existe um outro fator que não devemos menosprezar e também
considerá-lo em nossa análise. A variação cambial entre as moedas brasi-
leira e boliviana torna-se também um incentivo para os Colla comerciali-
zarem seus produtos no Brasil (com ganhos em reais) e fi xarem residência
na Bolívia (com despesas em boliviano), facilitado pela proximidade de
trânsito entre os dois países. No período de janeiro a março de 2007, a
moeda brasileira equivalia de 3,30 a 3,40 bolivianos na Frontera e em
Santa Cruz de la Sierra; e em janeiro de 2010 a cotação do real subiu para
cerca de 3,70 bolivianos, variando de acordo com o mercado local. Diante
dessa atual conjuntura brasileira, o panorama migratório de Colla e Cam-
ba parece estar se reconfigurando novamente em Corumbá, mas agora
apresentando outras facetas em sua relação com a Bolívia.
De um lado, temos um processo de migração interna à Bolívia que
reverbera no Brasil. Tendo como referência a análise de Stearman (1987),
que em meados dos anos 1980 do século XX já apontava o fluxo migrató-
rio dos Colla do Altiplano para Santa Cruz de la Sierra (gerando embates
internos que acirravam as dissensões destes com os Cruceños51 , principal-
mente no que tange às disputas pelo mercado de comércio local, que in-
corriam em discriminações de ambas as partes) e os aproximava cada vez
mais da fronteira com o Brasil, atraídos pela possibilidade de novos merca-
dos. Por outro lado, se juntarmos a esta perspectiva os relatos do Sr. Fran-
cisco (presidente dos feirantes de Corumbá e Ladário) e do Sr. Menacho
que apontam o aumento do fluxo de sua presença na cidade a partir dos
anos 1990, podemos entender a presença dos Colla em Corumbá como

51 Aqui entendamos como os Camba não indígenas de Albó (1989) e que chamamos de
Camba urbanos.

Processos identitários e a produção da etnicidade 127


sendo conjuntural, circunstancial, formando uma “população flutuante”,
cujo contingente oscila de acordo com a demanda dos negócios, seja em
solo brasileiro ou boliviano.
Deste modo, os Colla raramente se estabelecem, ou melhor, fi xam resi-
dência em Corumbá, retornando à Bolívia sempre que fi ndam seus atos de
comércio. E não é apenas o fator econômico, que já citamos, que os impul-
sionam. Um outro motivo, pelo que pudemos perceber, é que os feirantes
Colla sempre vem à Corumbá para negociar seus produtos acompanhados
de sua família nuclear, ao contrário dos Camba (em São Francisco) que
chegaram desacompanhados, em meados dos anos 1950, majoritariamente
para trabalhar como empregados na construção da ferrovia, para só então
trazerem suas famílias. Ferrovia esta cujo traçado “cortava” toda a região
das missões jesuíticas, já extintas, onde se formaram os pueblos do qual
advieram e que eram o grosso da mão de obra para a sua construção.
Hoje a ferrovia brasileira (não apenas em Corumbá) está em franca
decadência, o sindicato dos ferroviários de Corumbá encontra-se à beira
de fechar as portas (segundo o sindicalista Anísio Guató e outros funcio-
nários não indígenas com os quais conversei) e não há mais trabalho neste
ramo na região. Em compensação, cresce a mineração e os investimentos
brasileiros na extração de gás (o gasoduto Brasil-Bolívia atravessa parte
do Pantanal sul-mato-grossense, passando sob a cidade de Corumbá), ge-
rando um grande atrativo para os feirantes (em maioria Colla) atuarem no
Brasil e retornarem à Bolívia (onde produzem ou adquirem os produtos e
residem).
Inclusive a “feirinha boliviana” na Bolívia (na Frontera, em Puerto
Quijarro), tem entre seus maiores clientes não a população local, mas os
corumbaenses e demais turistas em visitação ao Pantanal, que se dirigem
em massa para adquirir de produtos eletrônicos a material de pescaria. Isso
acarreta, no Brasil, um grande descontentamento com relação ao comércio
vizinho e a entrada de produtos com preços muito mais competitivos que
o mercado corumbaense consegue oferecer, pois depende do longo e caro
transporte de mercadorias vindas principalmente de São Paulo, encare-
cendo o preço fi nal. Ou seja, não são apenas os taxistas brasileiros, que
comentamos neste artigo, que têm dificuldades de convivência (ou seria
melhor dizer concorrência) com os bolivianos em Corumbá.
Mas, se por um lado os Camba, os Colla e demais bolivianos conti-
nuam sendo discriminados em algumas situações da vida cotidiana em
Corumbá, por outro lado, é inegável a influência exercida nos hábitos e no
dia a dia desta cidade brasileira. Os corumbaenses, tal como nas cidades

128 Eliane Cantarino O’Dwyer


praianas, têm o hábito de utilizarem a orla do rio Paraguai (chamada de
Porto Geral) como espaço de socialização, onde se toma água de coco ou
bebe-se cerveja nos fi ns de tarde após o trabalho. Nos fi nais de semana,
famílias inteiras vem se banhar nas águas do rio, pescar, passear de cha-
lana e até tentar ver as sucuris entre os baceiros flutuantes ou os jacarés
nos barrancos do rio. Este hábito, no entanto, tem um senão que são os
mosquitos que surgem no entardecer. Para minimizar este problema, os
corumbaenses utilizam um unguento mentolado no local das picadas dos
insetos, que chamam de “Vick boliviano” (que os feirantes bolivianos di-
vulgam com essa denominação, e como sendo mejor que lo brasileño; além
de custar de duas a três vezes menos). A presença boliviana em Corumbá
também se faz presente na língua espanhola aprendida nas escolas e falada
nas procissões e missas realizadas nas igrejas católicas brasileiras em inten-
ção às santas bolivianas em seu período comemorativo (Nuestra Senhora
de Urkupiña, Nuestra Señora de Cotoca). E está presente também nas
salteñarias existentes nas ruas de Corumbá, nas paceñas (cerveja) bebidas
nas intermináveis noites calorentas da cidade ou nas cúmbias tocadas nas
rádios locais e que animam qualquer festa, mesmo que não se aprecie o
ritmo.
É de fato, uma via de mão dupla, ou de fluxos e contrafluxos. Tanto
que a comemoração dos 182 anos de independência da Bolívia foi feste-
jada, civicamente, não apenas na Bolívia, mas também em Corumbá. O
Consulado da Bolívia, juntamente com o Centro Boliviano-Brasileiro e o
cerimonial da prefeitura de Corumbá fi zeram um ato solene em plena pra-
ça principal da cidade, com a presença de autoridades de ambos os países.
Mesmo com o lapso da bandeira boliviana ter sido erguida no mastro pelo
lado errado, por desconhecimento do cerimonial brasileiro (a sequência
de cores é vermelho, amarelo e verde, mas foi posta ao contrário), existem
esforços de dinamizar e/ou estreitar as relações com o país vizinho.
Um outro exemplo de interatividade na fronteira foi a escolha de uma
dança boliviana (La Diablada), como atração de abertura do “4. Festival
América do Sul”, com dançarinos provenientes da Bolívia especialmente
para o evento; que ocorreu em agosto de 2007, mesmo mês em que são
realizadas as novenas e fiestas à Nuestra Señora de Urkupiña. O “Festival
América do Sul”, organizado para divulgar as produções de arte, dança,
música, literatura e cinema dos países sul-americanos, é um evento que
envolve toda a cidade de Corumbá, tornando-se um atrativo turístico de
relevância no estado de Mato Grosso do Sul. O mais interessante é que a
cidade de Corumbá não tem cinema e os filmes, curtas e médias-metra-

Processos identitários e a produção da etnicidade 129


gens, eram exibidos em um telão em locais variados como praças públicas,
quadras de escolas e clubes locais. E, como todos na cidade estavam mo-
bilizados em torno deste evento, os filhos jovens dos Camba52 que partici-
pavam das novenas na casa de D. Augustina (sobre a qual discorreremos
na sequência) que se encerravam por volta das 20h, desciam até o Porto
Geral, na parte baixa de Corumbá, margeando o rio Paraguai para, como
diziam, “ver o movimento”.
A La Diablada, apresentada na abertura do evento, surgiu a partir
da aparição da Virgen de Candelaria (em Socovón, no Departamiento de
Oruro), considerada a padroeira dos mineradores do Altiplano. Segundo
informações de alguns bolivianos com os quais conversei, dentre os quais
estava o Sr. Juan Carlos53, La Diablada simula através da dança, a luta do
arcanjo Miguel e da Virgen contra o “mal”. Os dançarinos que dela parti-
cipam, o fazem por estar atrelados a uma promessa feita à santa, e têm que
cumprir este ritual por um período de três anos seguidos, após o qual estão
liberados. Mas, se o participante quiser continuar a dançar a La Diablada,
deve renovar sua promessa, e assim ad infinitum54. La Diablada é, pois,
uma expressão da fé dos devotos da Virgen, que por intermédio da dança,
“pagam” suas promessas.

Devoção à Nuestra Señora de Urkupiña: fé e festa nos dois lados


da fronteira e a “união” entre Camba e Colla em Corumbá
Isto posto, podemos vislumbrar os Camba em meio a um emaranhado de
tensões e negociações, onde não podemos ignorar os contextos das cons-
truções identitárias do grupo na cidade de Corumbá, que por sua vez ge-
ram não só confl itos, mas também novas formas e normas de interativida-
de entre eles e deles com os brasileiros nesta região de fronteira. Eis que em

52 Neste caso, seguindo a divisão social dos espaços da cidade, estamos nos referindo aos
Camba residentes “antes da linha do trem”, que são em sua maioria os cruceños, tal qual a
família da D. Augustina, e não aos Camba do São Francisco, “depois da linha do trem”. No
entanto, em eventos que mobilizam toda a cidade, como foi o “Festival América do Sul” e o
carnaval (considerado, e divulgado pela mídia de Mato Grosso do Sul, como o “melhor do
estado”, com apresentação de escolas de samba nas ruas do centro de Corumbá), alguns jo-
vens Camba de São Francisco também se motivam a descer para o centro da cidade, embora
sejam minoria.
53 O Sr. Juan Carlos é filho da D. Augustina, organizadora da novena e da fiesta à Nuestra Seño-
ra de Urkupiña que acompanhei em agosto de 2007 e sobre a qual discorreremos neste artigo.
54 Este vínculo entre dançarino da La Diablada e a Virgen é semelhante ao que se estabelece
entre os dançarinos que participam dos festejos à Nuestra Señora de Urkupiña, pois ambos
dançam para “pagar” uma promessa feita à santa.

130 Eliane Cantarino O’Dwyer


ocasiões específicas a identidade que “emerge” é a boliviana, e não a indí-
gena ou a cruceña, por exemplo. Deste modo, no que tange às expressões
de religiosidade dos Camba em Corumbá estes, em contato estreitado com
os Colla, acabam por acionar a identidade nacional (boliviana) em solo
estrangeiro (aonde a distinção Colla/Camba é indiferente) e incorporaram
a devoção a Nuestra Señora de Urkupiña (que na Bolívia é considerada
padroeira dos Colla).
Esta devoção à Urkupiña, inclusive, espalhou-se pela cidade brasileira,
fazendo com que os corumbaenses católicos também inserissem em seu
calendário religioso a participação nas novenas e nos festejos a esta santa,
realizadas nas casas das famílias advindas da Bolívia e residentes em Co-
rumbá. Portanto, uma festa religiosa, antes cara ao catolicismo boliviano
(se tomarmos como perspectiva analítica a “nacionalidade da santa”), pas-
sa a congregar devotos Camba, Colla e corumbaenses ultrapassando não
só as identidades étnicas, mas também nacionais, neste contexto religioso.
É o momento em que todos se tornam devotos desta santa venerada antes
no Altiplano boliviano, quer sejam brasileiros, Colla, Camba, indígenas
ou não.
No mês de agosto, em Corumbá, muitas dessas famílias de ascendência
boliviana realizam, quase que simultaneamente, as novenas e os festejos
à Nuestra Señora de Urkupiña, dificultando a escolha de uma delas para
acompanhar. As pessoas locais optam por acompanhar as novenas e par-
ticipar da fi esta da família com a qual tem uma relação de afi nidade, de
amizade e que geralmente é a que se localiza mais próxima à sua residên-
cia, ou seja, são vizinhos. De acordo com o Sr. João Hellensberger, da Pas-
toral do Migrante, existem cerca de 10 famílias que promovem todos os
anos novenas e festas à Nuestra Señora de Urkupiña, localizadas entre os
bairros do Cristo Redentor, Popular Velha, Popular Nova, Nossa Senhora
de Fátima e até em Ladário, distrito de Corumbá.
Diante dessa multiplicidade de alternativas, optei por acompanhar as
realizadas na casa de D. Augustina por três motivos: por já tê-la contatado
no início do ano de 2007 (quando fi z a segunda etapa de campo); por se
localizar próximo ao local onde estava hospedada, facilitando o desloca-
mento já que as novenas eram noturnas e; a mais importante, por ter sido
apontada pelo Sr. Menacho e por alguns corumbaenses que a conhecia e
frequentavam as novenas a vários anos (como a D. Telma e a D. Vivalda,
vizinhas do Sr. Anísio Guató), como a família que as realizava a mais
tempo em Corumbá (cerca de 20 anos, pelos cálculos do Sr. Juan Carlos,
um dos fi lhos de D. Agustina). Decisão tomada comecei a acompanhar

Processos identitários e a produção da etnicidade 131


as novenas realizadas entre 10 e 19 de agosto de 2007 pela família da D.
Augustina. E, foi ela também que nos ajudou a ter uma noção das home-
nagens prestadas à santa na Bolívia, ao conduzir-me à fi esta noturna rea-
lizada na Frontera, na localidade de Arroyo Concepción, pertencente ao
distrito boliviano de Puerto Quijarro. Além dessas duas fi estas à Nuestra
Señora de Urkupiña, assistimos uma outra fi esta realizada e organizada
pelos feirantes da (e na) “feirinha boliviana” (a BRASBOL). Comecemos
pela D. Augustina.
D. Augustina Límpias Urquide, Camba cruceña, moradora “antes da
linha do trem”, mas já na parte alta de Corumbá (e viúva de um Colla, o
Sr. Carlos) tornou-se devota de Nuestra Señora de Urkupiña depois que
seu marido adoeceu e teria que amputar a perna a cerca de 20 anos atrás.
Ele, andino e devoto da Nuestra Señora de Urkupiña, prometeu realizar a
novena e festejos todos os anos em intenção à santa, caso não perdesse sua
perna. E, no fi nal dos anos 1980 o Sr. Carlos organizou a primeira novena
e não precisou amputar uma das pernas, embora tenha morrido alguns
anos depois, debilitado pela mesma doença que o abatera. Porém, a tradi-
ção de cultuar a Nuestra Señora de Urkupiña já estava instaurada na famí-
lia de D. Augustina, e o dever de continuar a devoção à santa foi repassado
a seus descendentes, estando a cargo do fi lho mais velho (Sr. Juan Carlos)
organizar e presidir as novenas na casa de D. Augustina todos os anos.
Mas, antes de continuarmos, é interessante esclarecermos que o culto à
Nuestra Señora de Urkupiña é oriundo do Departamiento de Cochabam-
ba, no Altiplano boliviano sendo, portanto, considerada padroeira dos
Colla e não dos Camba. Estes têm como padroeira a Nuestra Señora de
Cotoca (comemorada no dia 8 de dezembro, mesmo dia de Nossa Senhora
da Conceição no Brasil e de Nuestra Señora de Caacupê no Paraguai) que,
embora conhecida até entre os corumbaenses católicos que estavam nas
novenas na casa de D. Augustina, é pouco reverenciada pelos residentes
em Corumbá.
Segundo o Sr. João Hellensberguer, da Pastoral dos Migrantes, o termo
Urkupiña em quéchua significa “moça bonita”. Esta “moça bonita” teria
aparecido a uma criança indígena em Cerro Kota, Cochabamba, entre os
anos de 1950 e 1960. Em virtude do milagre da aparição, os cochabam-
binos da região começaram a fazer romarias e, como resultado, as plan-
tações começaram a ter um retorno abundante. Com isso eles passaram
a oferecer parte de sua produção para agradecer a fartura e os milagres
realizados. E, como o morro em Cerro Kota, é uma jazida de ametista,
esta é extraída em pequenos fragmentos pelos devotos e romeiros que para

132 Eliane Cantarino O’Dwyer


lá peregrinam todos os anos; e as pedras extraídas tornam-se um símbolo
palpável de barganha de graças materiais a serem pedidas à santa.
De acordo com D. Augustina, no último dia da novena as pessoas fa-
zem os “pedidos materiais” à santa, pegam uma pedra de ametista (cujo
tamanho é simbolicamente proporcional ao custo do pedido) e levam para
suas casas. Passado um ano, caso o pedido seja atendido, deve-se retornar
ao local onde se pegou a ametista (no Cerro Kota ou na casa de um dos
realizadores da novena que esteja participando) e devolvê-la, juntamente
com uma quantia em dinheiro também proporcional ao bem conquistado
por intervenção da atuação divina da santa. A relação entre os devotos e
a santa é, então, uma relação de pedidos e ofertas, que se processam de
forma cíclica. Um devoto, ao fazer um pedido à santa atrela-se a uma pro-
messa, que por sua vez só é paga quando o pedido se concretiza, fechando
o ciclo pelo agradecimento e devoção à santa.
Este ciclo de promessas, onde um pedido atendido deve ser “pago” à
santa, pode sê-lo de diversas formas. Se material, há a opção de “tomar
emprestado” a pedra de ametista por um ano e depois realizar todo o
périplo já descrito. Se o pedido for além da aquisição de bens ou ques-
tões materiais (adquirir casa, carro e emprego), pode-se: comprometer a
(caso disponha de uma imagem da santa em casa55) organizar novenas
e a fi esta em intenção à Urkupiña; ser um dos padriños ou madriñas da
fi esta da santa; ou ser um dos dançarinos (caporales, tôbas e tincus)56 do
cortejo realizado após o velório da santa (que caracteriza o fi m da novena)
e que antecede a fi esta. Os dançarinos, por sua vez de acordo com o Sr.
João Hellensberger, são majoritariamente jovens que estão “pagando uma
promessa” relacionada aos estudos (foram aprovados em universidades,
concluíram os estudos etc.), assemelhando-se aos dançarinos integrantes
da Diablada no que tange ao fato de dançarem como “pagamento” após
terem conseguido obter uma graça pedida, cumprindo sua promessa.

55 Segundo os nossos interlocutores, a imagem da santa não deve ser comprada pelo devoto,
mas sim ganha por outro. O que geralmente acontece entre os mais devotos da santa, que
se disponibilizam a fazer as novenas anualmente, é a “troca de imagens”, onde um dá uma
imagem e recebe outra, respeitando assim o fato de “não ter comprado a santa”.
56 Cada um deles, de acordo com o Sr. João Hellensberger, vestidos com roupas brilhantes e
coloridas, representariam os habitantes de várias regiões da Bolívia, do Altiplano ao Oriente.
Mas, no cortejo da santa organizado por D. Augustina não houve a presença dos dançarinos
que viriam de Puerto Quijarro, pois os mesmos cobraram 200 dólares para se apresentarem.
Diante do aumento considerável no valor das apresentações (que segundo informaram girava
em torno de 50 dólares) a família de D. Augustina não conseguiu arrecadar o montante
necessário para tal.

Processos identitários e a produção da etnicidade 133


Já as novenas realizadas na casa da D. Augustina se tornaram, de pro-
messa paga por um devoto (o falecido Sr. Carlos) diante de um problema
de saúde a uma “tradição da família” (perpetuada por seus filhos), como
dissera o Sr. Juan Carlos57, o fi lho mais velho e responsável por iniciar
as novenas todas as noites. Estas, lidas/rezadas em espanhol, iniciavam
entre 18 e 19horas em função da presença do Sr. Juan Carlos, sem o qual
a liturgia não começava. Na ausência dele, o segundo fi lho mais velho
é que “presidiria” a novena. Em última instância, as novenas à Nuestra
Señora de Urkupiña estreitam, reforçam os laços familiares e os ampliam
aos outros devotos que delas participam para agradecer, prometer e feste-
jar a santa. Além disso, projetam, dão status às famílias que as organiza.
Tanto que não foi difícil descobrirmos a família que promovia as novenas
mais antigas na cidade: é a festa da D. Augustina, dissera de pronto uma
corumbaense católica.
Nas noites de novenas o portão da casa de D. Augustina ficava aberto
para que o passante, que fosse adepto da santa pudesse entrar, assistir e
participar da novena. Como a sala da casa de D. Augustina é toda aberta,
formando com a garagem um único grande cômodo de “estar” ou de so-
cialização, é justo nele que se montou um pequeno altar com duas imagens
da santa, flores e velas. E diante das imagens ficam postados longos bancos
de madeira, juntamente com seus sofás, nos quais os devotos se acomodam
conforme vão chegando. O Sr. Juan Carlos abria a noite agradecendo, em
nome do pai falecido, a presença de todos os devotos da santa, rezava um
Pai-Nosso e uma Ave-Maria e começava a leitura da novena em espanhol.
Para cada dia é lida uma atuação e uma virtude da santa, em pequenos
livretos fotocopiados e redigidos em espanhol, que são distribuídos entre
os presentes que queiram participar da liturgia. Mas, havia uma oracion
preparatória para todos los dias, reproduzida a cada início da novena:

Todo poderoso Señor y Dios eterno, que invisiblemente estás em todo


este mundo visible; confi eso que vos Señor y Dios Altísimo por vues-
tra graciosa piedad me hicisteis criatura racional domando mi alma con
vuestra Nobilísima imagen, confi eso también que vos Señor Altísimo por
solo vuestro querer me distéis en tiempo a entender los preceptos de
vuestra divina ley para que guardándolos cumplidamente en el valle de
mi destierro, cumpliera con el fi n de serviros y amaros en esta vida para
después gozaros eternamente en la otra.

57 O Sr. Juan Carlos (Camba cruceño, como ele mesmo disse, nascido em Santa Cruz de La
Sierra) é professor e atualmente diretor de uma escola técnica no Centro de Corumbá.

134 Eliane Cantarino O’Dwyer


Estos preceptos, que vuestra eterna sabiduría me dio para salvarme, los
he quebrantado como criatura ingrata y gusano vil de la tierra; de lo cual
me pesa, me pesa, me pesa y arrepentido de haber pecado: os pido por
vuestra divina clemencia y por el glorioso tránsito de la Santísima Virgen
María uséis conmigo de misericordia. Perdonadme Dios mío, perdonad-
me y dadme una pequeña centella de vuestra gracia, para con ella servi-
ros e amaros con toda mi alma y daros continuamente rendidas gracias
por los beneficios que me habéis hecho y muy en particular para amaros
como debo, por el que vuestra Majestad me hizo, dándome por abogada
y mediadora a la Soberana Reina de los cielos, a quien vos Señor y Dios
Altísimo la coronasteis en el cielo después de su gloriosos tránsito con
tres coronas de inmarcesible gloria, correspondiendo a sus altísimos mé-
ritos adquiridos con una perfección en cada estado de los tres que tuvo
siendo viadora como fueran de Hija, Madre y Esposa. Esto Señor os su-
plico, como también me deis especialísima gracia para hacer esta novena
sagrada: de suerte que sea para mayor honra y gloria vuestra de la San-
tísima humanidad del verbo eterno y de su Santísima madre. Amén 58 .

Como desconhecia o processo litúrgico, aceitei o livreto distribuído


sem saber que teria que lê-lo e expus meu sofrível espanhol a uma plateia
majoritariamente de bolivianos ou fi lhos de bolivianos, que complacente-
mente me ouviam. Foram tão benévolos com meus esforços de melhorar a
pronúncia em espanhol, que no 9º dia da novena disseram que eu já estava
“hablando muy bien”.
As novenas na casa de D. Augustina deveriam ter começado no dia 4
de agosto para que o “velório” da santa ocorresse no dia 13 e a fi esta no
dia 14. Porém, por motivos fi nanceiros (a família, padriños e madriñas da
santa ainda não tinham angariado recursos fi nanceiros o suficiente para
fazer a fi esta e ornamentá-la) e operacionais (havia outras novenas na mes-
ma época, cujos dias e horários coincidiam), D. Augustina só conseguiu
realizá-la a partir do dia 10.
Mas, embora o culto à Nuestra Señora de Urkupiña seja um evento
religioso organizado pela família devota à santa, que por sua vez é em
função de uma promessa ou graça recebida, ele envolve a participação de
todos os adeptos da santa no que se refere à infraestrutura das novenas
e, principalmente, da fi esta realizada após o “velório” da santa. O altar
erguido na parte nobre da casa, neste caso a sala, é ornado de flores, co-

58 Prece lida do livreto Novena a La Gloriosísima Virgen de Urkupiña. 5. ed. Cochabamba: 1998.

Processos identitários e a produção da etnicidade 135


berto por tecidos e rendados, que por vezes são contribuições dos devotos
da santa que participam das novenas à “dona da santa”, ou seja, a pessoa
que abre as portas de sua casa para a realização das novenas e que tem a
imagem da santa.
Os devotos quando chegam para reverenciar a santa, trazem pacotes
de velas brancas, que são colocados próximos à imagem da santa e são
compartilhados também aos que não as trouxeram, para que possam fazer
suas orações pessoais, em voz baixa diante da imagem da santa, antes do
começo da novena. Geralmente os que não levaram pacotes de velas e se
utilizaram das que estavam disponíveis, as repunha no início da novena do
dia seguinte, onde neste ciclo de usos e reposições, as velas nunca faltavam
aos devotos que chegassem desprevenidos. No fi m de cada dia da novena,
a família que a organiza em casa serve café com biscoitos aos devotos, que
após o lanche se retiram. Mas, o custo desse lanche, das velas e demais
adereços necessários ao palco religioso que se monta na casa da família
que organiza as novenas não recai somente sobre ela. É minimizado, e
compartilhado, com a participação dos padriños e madriñas da santa. Es-
tes tornam-se, também, uma das formas de se “pagar uma promessa” ou
agradecer à santa.
Os padriños e madriñas são os copatrocinadores da fi esta junto com
a(o) “dona(o) da santa”, que por sua vez o fazem não apenas pela devoção,
mas também pelo pagamento de graças recebidas através do que julgam
ter sido a sua interseção divina. Há padriños e madriñas para cada parte
do culto à Urkupiña, que são pré-designados ao fi m da novena realizada
no ano anterior. Com isso, as famílias se programam durante um ano in-
teiro para poder custear a parte da novena ou da fi esta que lhe coube por
um compromisso fi rmado verbal e diretamente com o “dono da santa” e,
indiretamente, com a própria santa, já que é uma forma de promessa, a
qual se atrela. Tanto que era comum as pessoas chegarem ao primeiro dia
da novena como que se desculpando, dizendo que estavam “devendo” algo
para a santa e “precisavam pagar” assim que tivessem angariado condi-
ções fi nanceiras para tal. E os “pagamentos” eram feitos sempre a tempo
de não prejudicar o andamento ou a concretização da fi esta. Houve um
caso que D. Augustina relatou de uma devota que deu um anel de ouro
para a santa e que fora posto em seu dedo em retribuição a uma grande
graça que houvera recebido. Mas, o anel fora roubado anos depois sem que
se identificasse o autor do ato sacrílego.
Para a realização da novena, temos padriños e madriñas que se com-
prometem a fi nanciar os artefatos necessários às liturgias de orações e ao

136 Eliane Cantarino O’Dwyer


velório da santa, como velas (que permanecem ininterruptamente acesas)
e fósforos; enquanto outros se dividem para custear as flores para a orna-
mentação do altar e do andor da santa (que é conduzida num andor em
procissão após o velório, que antecede a fi esta) ou a decoração do ambiente
onde a santa se encontra, com papéis, balões e tecidos coloridos.
Já para a realização da fi esta tem-se padriños e madriñas que, agracia-
dos pelos milagres da santa, se responsabilizam por fi nanciar as bebidas
alcoólicas (cerveja, onde predomina a paceña, pois as “marcas brasileiras”
são mais caras) e não alcoólicas (refrigerantes e cafezinho), aperitivos e co-
mida do festejo, recuerdos (lembrancinhas), vestido da santa, flores, balões
etc. Por sua vez, cada um dos itens acima pode ter mais de um “patrocina-
dor” tais como os recuerdos, por exemplo, ofertados no dia da fi esta e que
foram feitos pelas famílias da D. Zuleida Rivero e da D. Viviana Mendez
Pareja.
Além desses, tem também os padriños e madriñas de última hora (que
poderíamos chamar de “extraoficiais”) que se oferecem para ajudar na lo-
gística da fi esta, conduzindo carro de bebidas, comidas e o que (ou quem)
for preciso transportar para o bom andamento da fi esta.
No entanto, esse “papel” das madriñas e padriños não são exclusivos
dos Camba, seja em Corumbá ou na Bolívia. Em festejos religiosos cató-
licos incorporados por indígenas no norte do Brasil como, por exemplo,
a festa do Divino entre os Karipuna no Amapá (fronteira com a Guiana
Francesa), essa relação de “apadrinhamento” para a feitura do evento tam-
bém se faz presente (TASSINARI, 2003). A festa do Divino é planejada
pelos Karipuna um ano antes de sua comemoração, efetivando uma pro-
messa feita no término da festa realizada no ano anterior. É nesse momen-
to que são escolhidos os padrinhos, ou melhor, no caso dos Karipuna os
“festeiros”.
Os “festeiros” são aqueles que deverão fornecer as provisões para a
festa do ano seguinte. (...)comprometendo-se a si e a sua família a realizar
tal tarefa. A partir dessa decisão, essas famílias passarão o ano inteiro
armazenando alimentos, bebidas e material para a capela, no intuito de
fi nanciar a festa (TASSINARI, 2003, p. 305). E, essas famílias assumem
a incumbência de realizar a festa quase sempre no intuito de pagar uma
promessa feita ao Divino (Ibid, p. 307). Isto porque entre os Karipuna as
promessas são usadas como um recurso para a cura de doenças; tal qual
fi zera o Sr. Carlos (marido de D. Augustina) ao prometer realizar novenas
e a fi esta à Nuestra Señora de Urkupiña caso não precisasse amputar sua
perna. Em ambos os casos, a promessa é o elo entre os devotos e seus res-

Processos identitários e a produção da etnicidade 137


pectivos santos, onde a festa representa o momento legítimo de oferecer ao
santo a retribuição das graças alcançadas (...). (Ibid, p. 308).
Durante o “velório” da Nuestra Señora de Urkupiña, realizado no
último dia da novena, os devotos após a liturgia de praxe permanecem
acordados a noite inteira, “velando” a santa, mantendo as velas acesas e
rezando individualmente, num momento de respeitosa introspecção que
antecede a fi esta por vir. O dia noveno das novenas à Urkupiña é o mais
longo em termos de orações feitas, até então. Além da oração pertinente
às qualidades da santa, onde se exalta sua ressurreição, são lidos 15 gozos
que enaltecem sua pureza, devoção e divindade, cada qual intercalado por
ave-marias proferidas em voz alta por todos os presentes. Por fi m, é feita
uma última oração para todos los días que se dirá después de pedir favor
particular:

Virgen benditísima, clementísima Señora, piadosísima Madre y dulcísi-


ma Reina de los Angeles; bien conocéis Señora la necesidad en que me
hallo, no me dejéis desconsolado, que no es proprio de tus compasivas
entrañas despedir sin limosna al pobre que se llega a las puertas de la
Misericordia. ¡Oh Madre de mi corazón! ¿A quién iré se tu me desam-
paras? Vuelve hacia mi esos piadosísimos ojos, sin mirar que me hacen
indigno de las piedades mis culpas; logre ya mi confi anza de tu favor lo
que humilde y resignado te pido. Protégeme con tu clemencia; gobiér-
name con tu piedad; consuélame con tu dulzura. Atiende a las acciones
de la Iglesia Católica en la persona del Sumo Pontífi ce, mira como Ma-
dre a todos los Príncipes Cristianos y Ministros Eclesiásticos adorna de
virtud al Clero principalmente a los que logran la dicha de ser vuestros
particulares hijos; socorre a las Benditas Animas del Purgatorio, a los
enfermos y agonizantes. Compadécete de las necesidades de este país y
fi nalmente, a todos tus devotos alcánzanos la gracia para alabaros en la
gloria. Amén. 59

Durante o “velório” da santa o público que assistia às novenas (entre


20 e 30 pessoas) diminui bastante e poucos são os que permanecem acor-
dados e rezando, restringindo-se aos devotos que ou pediram uma graça
ou a estão agradecendo (no caso de terem sido “atendidos”), além dos
organizadores das novenas, que são os donos da casa em que a mesma se

59 Ibid.

138 Eliane Cantarino O’Dwyer


realiza. O dia seguinte ao velório é o dia da fi esta, onde o público, por sua
vez, aumenta consideravelmente.
Na manhã da fi esta, por volta das 8h sai o cortejo da casa da D. Au-
gustina em direção à Igreja matriz de Corumbá, no Centro da cidade (na
parte baixa) para a realização da missa em homenagem à santa. O trajeto
foi feito a pé, com os padriños e madriñas se revezando para carregar
o andor onde estava a imagem da santa, ornada com flores artificiais e
acompanhada pela entonação de Ave-Marias e Pai-Nossos, feitas em tom
cerimonioso.
O andor com a imagem da santa, vestida com roupas coloridas e novas,
ofertadas por uma das madriñas, é posto no altar da igreja para o início
da missa. Ao terminar a santa é reconduzida ao seu andor e o trajeto de
retorno à casa de D. Augustina é feito não mais ao som das ladainhas de
rezas, mas acompanhado de uma banda boliviana tocando cúmbia, já em
clima de festa; embora não contasse com a presença dos dançarinos para
reverenciar a santa, que cobraram um valor além do orçamento previsto
por D. Augustina para virem de Puerto Quijarro à Corumbá. Ao chegar
à entrada da casa da D. Augustina, o cortejo com o andor da santa (que
a propósito eram duas imagens pertencentes à família) parou para que
recebesse uma “chuva” de confetes das pessoas que a aguardavam na rua
com incensos de mirra acesos para festejar, agradecer e atrair mais fartura
para o próximo ano. Só então a santa é conduzida para a sala da casa de
D. Augustina e começa a fi esta.
Para a fi esta, a casa de D. Augustina foi toda ornamentada com balões
com as cores da bandeira boliviana, o portão ficou aberto, e todos os de-
votos, passantes, bolivianos e brasileiros, atraídos pela música (teve até o
forró brasileiro cantado em castelhano) e pelo aroma das comidas, quem
quisesse poderia entrar e participar. Porém, ressalto que o “todos” a que
me refi ro acima há de ser relativizado, pois só efetivamente participam, e
são muito bem recebidos, os conhecidos da família, e por extensão, os “co-
nhecidos dos conhecidos”, quando são apresentados por estes. Mas, como
a cidade é relativamente pequena, em última instância quase todos se co-
nhecem e vem pessoas dos bairros próximos, principalmente do Cristo
Redentor. Entretanto, o Sr. Nazario não estava presente (embora o Sr. Juan
Carlos tenha dito que o conhecia “do São Francisco”), pois é evangélico. A
fi esta que começara após a missa e o cortejo seguiu até a noite, sustentada
pela música (agora não mais dos músicos, mas de uma aparelhagem de
som), abastecida pelos sarrabulhos e salteñas, e regada a paceña; estes, a
propósito, presentes tanto nas fi estas quanto no cotidiano corumbaense.

Processos identitários e a produção da etnicidade 139


A salteña é o carro-chefe no quesito aperitivo. E, durante eventos tão
tradicionais e caros aos bolivianos residentes em Corumbá (sejam Colla ou
Camba, indígenas ou não) como a fi esta à Nuestra Señora de Urkupiña, a
salteña é imprescindível. Ela é servida como aperitivo inicial, que prepara
o paladar picante para o que está por vir. É uma espécie de pastel, tran-
çado no meio e recheado com uma mistura de batata e frango em meio a
um molho picante, cujo recheio varia do pastoso (para agradar ao paladar
brasileiro, comumentemente encontrado nas salteñarias e padarias de Co-
rumbá) ao praticamente líquido (de acordo com gosto o boliviano).
Sobre essas variações da salteña (em suas versões “brasileira” e “bo-
liviana”), não posso me furtar de contar um “incidente” de campo, sem
maiores conseqüências a não ser o embaraço que senti quando estava em
Santa Cruz de la Sierra para realizar o levantamento bibliográfico, que fez
minha tentativa de passar como uma “quase nativa” ir por água abaixo
com a falta de intimidade com uma iguaria tão comum entre os bolivianos
dos dois lados da fronteira. Em Corumbá adquiri o costume de comer as
salteñas que se encontram à venda nos mais diversos lugares, de padarias a
supermercados. Ao pedir uma salteña no centro de Santa Cruz de la Sierra,
deparei-me com a mesma em um prato acompanhada de uma colher, para
a qual não via utilidade. Para sintetizar, tomei um banho quente ao mor-
der o salgado com seu recheio em calda e extremamente picante, e aí sim
fui entender o porquê da colher que acompanha a salteña em Santa Cruz
(para se comer o recheio) e inexiste em Corumbá, onde o recheio é pastoso
e com bem menos pimenta, para atender ao paladar brasileiro.
E, assim como um petisco pede uma bebida, a salteña se faz acom-
panhar da paceña. Não apenas a fi esta (aqui usada no sentido do festejo
pós-novena) é geralmente regada a muita paceña, como também outros
encontros festivos não religiosos, como aniversários e casamentos. A pa-
ceña é uma cerveja boliviana que faz sucesso em Corumbá devido ao seu
preço baixo; mas também há espaço para a tradicional chicha de amido
saborizada com canela, que D. Augustina sorvia com grande prazer (e
eu nem tanto), quando fomos juntas à Puerto Quijarro e vimos a fi esta à
Nuestra Señora de Urkupiña realizada à noite na Frontera. Mas, o inter-
câmbio culinário, como o próprio nome diz, é uma via de mão dupla, e
estamos tratando de pessoas que vivem em uma área de fronteira, onde
se imbricam bolivianos e Camba “daqui” e de “lá”, além dos brasileiros e
indígenas.
Este pout-pourri, parafraseando Stearman (1987), se amplia com a
existência em Corumbá de um refrigerante regional de erva-mate, comer-

140 Eliane Cantarino O’Dwyer


cializado também na Bolívia, mas não muito popular, sendo vendido na
Frontera para agradar/atender os consumidores brasileiros que a frequen-
tam. O refrigerante corumbaense é feito a partir da erva que faz o tere-
ré (bebida de erva-mate verde picada grosseiramente, na qual se adiciona
água fria e ingere-se através de uma bomba60, muito apreciada pelos Gua-
rani Ñandeva e Kaiowa do sul do estado de Mato Grosso do Sul), difun-
dida não só entre os pantaneiros, mas também entre os demais regionais,
principalmente na fronteira com o norte do Paraguai, mas observei que
não é muito apreciado pelos Camba de Corumbá. Já o cafezinho aparece
como um acompanhamento comum a Camba, “bolivianos” e brasileiros
que atravessam a noite velando a santa ou em momentos de recepção a um
convidado em casa. Sempre que chegava à casa dos meus interlocutores
Camba, do Sr. Nazario à D. Augustina, não importa se “antes” ou “depois
da linha do trem”, o aroma do café logo se espalhava pelo ambiente e era
servido sem mais delongas, mas com a pergunta: “aceita um cafezinho?”,
como na melhor tradição brasileira.
Mas, em uma fi esta, cujos devotos passaram a noite anterior em claro
“velando” a imagem da santa em jejum, não é apenas a salteña (mes-
mo acompanhada da paceña) que dará ânimo para que os convivas re-
verenciem a santa com a devida alegria, pré-requisito para participar da
fi esta. Então, são servidas comidas, digamos, bem substanciosas como o
majadito. Este prato se assemelha ao “arroz carreteiro” brasileiro, muito
comum entre os pantaneiros que tocam boiada por entre os alagados e
até entre caminhoneiros (como pude ver algumas vezes nas estradas de
Mato Grosso do Sul a partir de 2002, quando comecei a ir a este Estado
em decorrência dos estudos que realizava, então, pela Funai), sendo que
mais incrementado. O majadito é feito com carne seca moída, misturada a
ovos cozidos e esmagados, além de banana e mandioca fritos, misturados
ao arroz branco. Esta comida é tão comum na Bolívia que até no trem que
faz o percurso Puerto Quijarro – Santa Cruz de la Sierra é apresentado e
vendido por ambulantes que circulam pelos vagões do trem à noite, como
alternativa (única) para quem se habilitar a jantar no meio do percurso de
cerca de 16 horas de viagem por entre as serrarias.

60 Bomba, de acordo com o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, é um canudo de


metal com que se toma o mate em cuia. Porém, entre os indígenas e regionais tanto do Pan-
tanal quanto do sul do estado de Mato Grosso do Sul, o tereré é bebido em qualquer copo,
pois as cuias, principalmente as de madeira e/ou chifre de boi, tornaram-se objeto de venda
aos turistas e, portanto, artigos mais caros e menos usuais no cotidiano.

Processos identitários e a produção da etnicidade 141


Como relatara o Sr. Nazario, a D. Petrona, D. Augustina entre outros
Camba com os quais conversei (principalmente as mulheres do São Fran-
cisco na última etapa de campo, em 2008), a dieta alimentar boliviana,
de um modo geral, varia numa combinação entre frango, porco e batatas
(são muitos os tipos de batata, brancas, rosadas, amareladas, mas infeliz-
mente nas feiras do lado brasileiro são cada vez mais raras, por exigência
da vigilância sanitária), acrescidos de arroz. O chamado picante de pollo
é outro prato que frequentemente é lembrado e citado pelos Camba, carac-
terizando-se por ser uma mistura de arroz, batata e frango em um molho
apimentado. Há também o chicharrón de chancho, feito com pedaços de
porco (fritos como torresmo) aos quais são acrescidos banana, batata e
mandioca (também fritos) e todos misturados. Já a patasca, que é um cozi-
do de milho saboró acrescido de bochecha de porco e de boi, é uma iguaria
que além de ser apreciada pelos Camba e “bolivianos” teria, segundo eles,
a propriedade de combater a ressaca, por isso é servida geralmente no dia
seguinte à fi esta de Nuestra Señora de Urkupiña, como “café da manhã”.
E já que estamos em uma via de mão dupla, o sarrabulho, que faz
parte da culinária corumbaense, dá sua contribuição no cardápio das fes-
tas religiosas, e já foi até incorporado ao cotidiano boliviano (pelo menos
na fronteira), seja Camba ou não. O sarrabulho é servido principalmente
quando há a reunião de um número considerável de pessoas que precisam
ser alimentadas, independente do evento que se suceda, seja religioso ou
um encontro de parentes e amigos. Esta iguaria é feita a partir da mistura
de vísceras de boi e porco, picados e cozidos com pedaços de batata, e
servido com arroz como acompanhamento. O sarrabulho foi o prato que
se seguiu à salteña, ambos servidos na festa à Urkupiña feita pela famí-
lia de D. Augustina, cujas noras são brasileiras. Mas, neste caso o arroz
não é misturado às carnes, como nos pratos bolivianos. Entretanto, esse
detalhe da comida corumbaense é logo equacionado pelos Camba e Colla
presentes na fi esta, que misturam tudo, logo à primeira garfada, adaptan-
do visualmente a refeição aos pratos “bolivianos”. E, inspirados no país
vizinho, os corumbaenses criaram a sua versão do majadito, chamado de
“arroz boliviano”, preparado com ervilha, banana da terra frita, pedaços
de galinha, ovos cozidos e milho verde, mas sem molho.
Mas, em meio às novenas organizadas por D. Augustina, que começara
depois do prazo previsto devido a problemas fi nanceiros para organizá-la,
mas que foram sanados a tempo de sua realização no mês de agosto, hou-
ve um outro festejo na localidade conhecida como Frontera, em Arroyo
Concepción, distrito de Puerto Quijarro. Apesar do receio de atravessar a

142 Eliane Cantarino O’Dwyer


fronteira, pois no dia anterior haviam-na fechado em mais um dos protes-
tos oriundos de Santa Cruz de la Sierra pela autonomia do Departamiento,
desloquei-me juntamente com a D. Augustina até lá, em 14 de agosto de
2007, para acompanhar o cortejo noturno da santa, que antecederia a
fi esta que ocorreria na sequência.
Em Puerto Quijarro o cortejo é semelhante ao realizado posteriormente
em Corumbá pela D. Augustina. É realizada uma missa e na sequência um
desfi le pelas ruas da cidade, tendo a imagem da santa, posta num andor, à
frente do cortejo, acompanhada de seus padriños e madriñas, que por sua
vez são seguidos pelos caporales, tôbas e tincus, acompanhados de uma
banda militar. O público se espalhou pela entrada da Frontera para assistir
o cortejo à Urkupiña, que se seguiu de uma fi esta na rua. Esta teve entre
os seus convivas os residentes de ambos os lados da fronteira, com uma
ambientação musical que ia da cúmbia ao sertanejo brasileiro, além da
degustação das já citadas iguarias. E a fi esta só terminou no dia seguinte.
E, quando achava que os festejos à Nuestra Senhora de Urkupiña ha-
viam terminado, ao visitar a “feirinha boliviana” BRASBOL, descobri
junto aos bolivianos com os quais estava conversando que havia mais uma
festa em homenagem à santa, a ser realizada no último domingo de agosto
de 2007 (dia 26).
Agora a fi esta ocorreria não na casa de uma família, mas no espaço
da feira dos feirantes da BRASBOL. Sob a organização dos integrantes da
“feirinha boliviana”, este outro festejo à Urkupiña seguiu o mesmo padrão
descrito tanto na fi esta em Puerto Quijarro, quanta na organizada pela
família de D. Augustina. E, foi justamente durante os preparativos para a
missa, que antecede o cortejo da imagem da santa pelas ruas de Corumbá
que circundam a BRASBOL, que conheci o Sr. João Hellensberger, coor-
denador da Pastoral dos Migrantes em Corumbá, sobre o qual já falamos.
O espaço da feira, um galpão aberto, com pé direito alto, foi o palco
para a realização da missa, em castelhano e da fi esta subsequente. A mis-
sa foi rezada em um altar improvisado, erguido próximo a uma pequena
capela erigida a cerca de dois anos no espaço da feira, que tem em seu
interior as imagens da Nossa Senhora de Aparecida (com brasões repre-
sentando o Brasil e a Bolívia, um de cada lado do manto da Santa) e da
Nuestra Señora de Caacupê (esta é paraguaia, e tem inclusive uma igreja
na rua Antônio Maria, em Corumbá), além da imagem maior, da Nuestra
Señora de Urkupiña, que se posicionava no meio, entre as imagens das
outras duas santas.

Processos identitários e a produção da etnicidade 143


Os lugares para o público devoto assistir a missa, no entanto, era previa-
mente determinado. As primeiras fileiras eram destinadas à “diretoria”, com
cadeiras marcadas à tinta assim as identificando. Essa “diretoria” era com-
posta pelos organizadores da fiesta, neste caso os principais patrocinadores
do evento, a saber, a família de feirantes que pedira uma graça e capitaneava
o evento e os demais padriños e madriñas que contribuíram nos gastos. Isto
deixava implícito que na primeira fileira os lugares já estavam destinados a
pessoas específicas e, portanto, os devotos que vinham chegando aos pou-
cos, ao verem escrito “diretoria”, se acomodavam nas cadeiras seguintes. Os
que não viam e sentavam-se displicentemente, eram alertados pelos outros
que aquele lugar já estava marcado. Sem maiores indagações, o incauto de-
voto simplesmente levantava-se e procurava outro lugar.
Após a missa seguiu-se também o cortejo da imagem da santa, acom-
panhado pelos dançarinos que vieram de Puerto Quijarro (e que não es-
tiveram presentes no evento organizado por D. Augustina por motivos
fi nanceiros, como dissemos anteriormente). O andor onde fica a imagem
da Nuestra Señora de Urkupiña foi carregado a pé pelos organizadores do
cortejo, numa postura de humildade perante a santa, e seguido de perto
por dois carros enfeitados com tecidos coloridos e com vários adereços
pregados. Os adereços estão presentes tanto nos carros, quanto na orna-
mentação do local que abriga a fi esta à Nuestra Señora de Urkupiña.
Nos carros, os tecidos feitos com lã de lhama, tingidos com cores for-
tes, recobrem todo o veículo, como uma camuflagem, servindo de base
para se colocar os adereços, que simbolicamente representam tanto os de-
sejos de graça quanto os pedidos atendidos pela santa. Neste sentido, há
desde notas de dinheiro falsas61, (tanto para agradecer os ganhos auferidos
durante o ano, quanto pedir mais) a miniaturas de casa (o casal dono do
carro estava agradecendo a compra de sua residência). Há também os que
parecem ser puro enfeite (como um leão de pelúcia sobre um dos carros,
animal que nem é nativo das Américas), mas que são usados como repre-
sentações analógicas. Ao indagar sobre o que aquele animal acompanhado
de um lhama, me foi respondido que assim como o lhama representava
o Altiplano, o leão representava o agradecimento pela riqueza dos bichos
do pantanal (que fica no Oriente boliviano), e como não havia anta nem
capivara, o leão ocupou o posto.
Na ornamentação do local da fi esta, há de coloridas flores artificiais
a frutos (literalmente) da produção do trabalho dos seus organizadores.

61 Esclareço que ao falar de notas de “dinheiro falso”, não estou me referindo a nenhum ato
ilícito, mas a fotocópias das notas de dinheiro boliviano, usadas para simbolizar o mesmo.

144 Eliane Cantarino O’Dwyer


Estes, por sua vez são apenas representativos da fartura dos devotos (que
agradecem à santa prestando estas oferendas), pois (ao menos em Corum-
bá) não são produtores agrícolas como o eram os primeiros devotos à épo-
ca da aparição da santa, em Cerro Kota. Os frutos são comprados e pen-
durados em meio a cordões de milho colorido (pipoca) e notas de dinheiro
falso. A fartura é, então, alusiva não apenas aos alimentos, mas também
a bens materiais.
Findo o cortejo, todos retornam ao ponto de partida inicial, a “fei-
rinha boliviana” BRASBOL, dando início fi nalmente à fi esta, que teve
a presença de um grupo musical popular em Puerto Quijarro, chamado
Potência Tropical, tocando de cúmbia ao sertanejo brasileiro, mas tudo
em castelhano.
As novenas e a fi esta, deste modo, tem a capacidade de arregimen-
tar esses migrantes como um todo, mesmo em um evento esporádico e
religioso, fazendo com que através da manifestação pública de uma das
facetas de sua religiosidade, acionem orgulhosamente a identidade nacio-
nal boliviana em solo estrangeiro, a despeito da origem dos devotos que a
organizam. Em Corumbá, durante o período da realização dos festejos à
Urkupiña, não importa se são indígenas ou cruceños, do Altiplano ou do
Oriente, Colla ou Camba, unificam-se todos, mesmo que momentanea-
mente, em bolivianos, com exceção dos Camba de São Francisco.

Considerações finais: Camba brasileiros, indígenas,


bolivianos e demais construções identitárias
Como vimos brevemente, dispomos de uma multiplicidade de entendimen-
tos do que vem a ser Camba, para os Camba, principalmente para os que
vivem e atuam em Corumbá. Temos o Camba indígena, que assim se au-
toidentifica como a já falecida D. Petrona e o Sr. Nazario, com sua longa
tentativa de diálogo com a FUNAI para o reconhecimento do grupo como
indígena, agora adicionada de novos mediadores para este papel (mesmo
que não morem no São Francisco) no campo intersocietário, sejam Camba
como o Sr. Menacho ou de outros grupos indígenas, como o Sr. Anísio
Guató. É o “capitão chiquitano”, como se identificou o Sr. Nazario em
1978 no encontro da pastoral indígena ocorrida em Aquidauana/MS, e ao
mesmo tempo é o Camba que migrou da Bolívia para o Brasil em busca
de trabalho, se constituindo assim em um ferroviário, sobre o qual pouco
abordamos em função da delimitação da proposta do artigo. A propósi-
to, a extensão da ferrovia noroeste, partindo de Corumbá à Santa Cruz
de la Sierra, atravessando toda a região das missões Chiquitano, foi um

Processos identitários e a produção da etnicidade 145


fator fundamental para o incremento do afluxo de migrantes bolivianos e
indígenas que trabalharam em sua construção. Tanto que a maioria dos
Camba que se estabeleceram em Corumbá eram funcionários da ferrovia.
A linha do trem também funciona como uma demarcação física dos
espaços sociais na cidade de Corumbá, onde quanto mais afastado do rio
Paraguai (depois da “linha do trem”), menor o status do seu morador. E
essa distinção social do espaço é estendida aos Camba que se diferenciam
entre indígenas e não indígenas, onde cada qual teceu redes de relações
diferenciadas. O Sr. Nazario (autodenominado indígena) e a D. Augustina
(cruceña), apesar de viverem relativamente próximos têm, como vimos,
trajetórias sociais distintas, onde o bairro em que vive o Sr. Nazario (o São
Francisco) era um antigo “lixão”, resignificado agora como Alameda São
Francisco e representado por todos como uma imagem dos antigos pueblo
do lugar de origem e o de D. Augustina, é “antes da linha do trem”, faz
parte do plano urbanístico da cidade de Corumbá, enfi m está dentro do
“tabuleiro de xadrez”, imagem que se assemelha esteticamente à estrutura
física das ruas da cidade em questão.
Em algumas situações específicas, a identidade Camba, construída
pelo grupo interagindo com diversos atores sociais na cidade de Corumbá,
também está relacionada à nacionalidade boliviana, que se manifesta mais
explicitamente na comemoração da independência boliviana na praça da
cidade brasileira, com todos os formalismos de cada um dos países e du-
rante os festejos à Urkupiña, nos comes e bebes servidos por esta ocasião.
Nestes momentos e contextos sociais, o Camba é caracterizado apenas
como o migrante boliviano, católico, que habla en español entre os seus
pares e cultua a Nuestra Señora de Urkupiña, que por sua vez é a santa pa-
droeira do Altiplano e não do Oriente boliviano, região da qual advieram
os Camba para o Brasil. Mas, como buscamos demonstrar, as dissensões
entre Colla e Camba só adquirem peso, enquanto uma identidade afi rma-
tiva, no bojo dos debates políticos, na Bolívia. Ao atravessarem a fronteira,
estão submetidos a outros esquemas de significação, onde os grupos se
realocam de acordo com as situações apresentadas na interação social em
Corumbá.
Nessa perspectiva, os momentos de festa (ou fi esta), transformam-se
em momentos de encontro e de reencontro de famílias bolivianas católicas
residentes em Corumbá, onde os laços sociais e/ou de parentesco são recu-
perados ou reforçados (TASSINARI, 2003, p. 304), além dos da naciona-
lidade expressos na leitura da novena em castelhano, e que compartilham
com os “de fora” (corumbaenses), na abertura dos portões para que os

146 Eliane Cantarino O’Dwyer


demais devotos possam participar das novenas. Quando acompanhamos
as novenas e a fi esta à Nuestra Señora de Urkupiña, vimos não apenas o
ato litúrgico, mas, e principalmente, a capacidade de reunião das famílias
Camba em torno da devoção de uma santa considerada padroeira dos
Colla, que são do Altiplano boliviano, com o qual têm dissensões histó-
ricas e políticas, mas que acima de tudo os identifica e os une (Camba e
Colla) em torno da nacionalidade boliviana em solo estrangeiro.
Os laços entre as famílias não apenas são “reforçados, como também
escolhidos e reativados de acordo com as vontades de seus membros” (Ibid,
p. 304). Padriños e madriñas, independente se Colla ou Camba, estão
focados em um propósito comum: pagar (e fazer) promessas, onde a santa
boliviana é considerada o canal das suas realizações. Nestes interstícios, a
identidade nacional sobrepuja as outras, e adquire uma conotação regio-
nal, a de “bolivianos” em Corumbá.
Por outro lado, é justo em solo estrangeiro que os Camba “acima da
linha do trem”, localizados no antigo lixão da cidade de Corumbá, refor-
çam sua identidade para o pleito de direitos diferenciados, no caso dos
que se auto-identificam como indígenas no Brasil, como os moradores do
São Francisco, que não fazem questão de participar dos festejos religiosos
organizados pelos Camba cruceño que estão “abaixo da linha do trem”
e dissociam sua imagem de quaisquer ascendência indígena. E, não nos
esqueçamos dos Camba ribeirinhos, que ainda vivem na antiga “Peixe-
rada”, atual “Beira-rio”, (con)vivendo com as oscilações das cheias do rio
Paraguai, e que não nos detivemos a estudar na tese na qual baseamos este
artigo.
Portanto, em suas várias construções identitárias em Corumbá, os
Camba podem ser indígenas, campesinos, ferroviários, ribeirinhos, católi-
cos, evangélicos, urbanos, bolivianos e brasileiros, dependendo do ângulo
que os observamos, em que contexto se encontram, que pleitos objetivam,
com quem dialogam e como desejam ser observados pelos seus olhos, ten-
do os nossos como reflexo. Enfi m, todos “esses Camba” parece constituir
os Camba que se fazem presentes em Corumbá, cujas relações que engen-
dram internamente, com outros grupos como os Guató e com a esfera
pública, como a Funai (no caso dos de São Francisco), que me esforcei em
compreender e compartilhar junto ao leitor.
Se vieram inicialmente ao Brasil em busca de trabalho e acabaram se
estabelecendo em Corumbá, os Camba hoje querem o reconhecimento de
sua cidadania como indígenas no Brasil, como cidadãos brasileiros que
se tornaram ao ajudarem a construir uma estrada de ferro, estabelecerem

Processos identitários e a produção da etnicidade 147


família e formarem um pueblito (o São Francisco) no antigo “lixão” de
Corumbá, independente se regionalmente ainda os vêem como “morado-
res do bugreiro”. E, como Cardoso de Oliveira (2006, p. 55) não nos deixa
esquecer “o índio urbano, na proporção em que invoca sua identidade
étnica, é tão índio quanto o morador do território indígena”. Agora, ser
Camba, e no caso dos reivindicantes de São Francisco, indígena no Brasil,
não está mais atrelado exclusivamente aos oriundos do Oriente boliviano.
Este se torna uma espécie de mito de origem, ao qual fazem referência
quando explicam o termo Camba de autodesignação.
Enfi m, transcrevendo o que Barth (1995, p. 2) muito apropriadamente
relata de um seminário em que David Maybury-Lewis participara sobre
sanções não violentas e sobrevivência cultural, Being an indigenous person
does not mean that you carry a separate, indigenous culture. Instead, it
probably means that at some times, at some occasions, you say, “This is
my ethnic identity. This is the group to which I wish to belong”.

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150 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 5

Relações interétnicas: cabo-verdianos & mandjácus


João Silvestre Varela

Introdução
Neste texto vou abordar as relações sociais entre os cabo-verdianos (os que
são da “terra62”) e os mandjácus (imigrantes provenientes da costa oci-
dental africana, que não são considerados, nem se autoidentificam como
da “terra” destacando a configuração e a afi rmação destas identidades no
contexto das interações sociais. Apresento a composição e a distribuição
demográfica dos grupos, as atividades econômicas e sociais a que se dedi-
cam, a caracterização dos contextos de interação e as etnomias utilizadas,
o depoimento dos envolvidos e a minha análise e interpretação dos dados.
Por fi m, concluo sobre o tipo de relações sociais observadas decorren-
tes dos dados colhidos e análises realizadas sobre as configurações identi-
tárias que caracterizam os cabo-verdianos e os mandjácus.

Emigração/imigração e relações interétnicas


Sociedades constituídas por diferentes grupos socioculturais em contato
mostraram que, diferentemente do que se acreditava, não é o isolamento
o fator da manutenção da diversidade cultural “as distinções étnicas não
dependem da ausência de interação e aceitação sociais, mas, ao contrário,
é a própria base sobre a qual sistemas sociais abrangentes são construí-
dos” (BARTH, 2000, p. 26). As fronteiras étnicas permanecem apesar do
fluxo de pessoas que as atravessam e muitas relações sociais são baseadas
na existência de status dicotomizados. Para Amselle (1979, p. 13), igual-

62 A “terra” tem significados muito particulares para o cabo-verdiano, representa, às vezes,


a prisão das ilhas no meio do oceano, outras vezes a liberdade, tomando as ilhas como “na-
vios” no meio do mar podendo se ir para qualquer lugar; representa o dilema existencial do
cabo-verdiano de “querer ir e ter que ficar”, o desejo profundo de partir mas ter que voltar
antes de morrer para rever os montes, vales, achadas, a terra seca ou os campos floridos, os
familiares e os amigos e conhecidos.

Processos identitários e a produção da etnicidade 151


mente, os grupos nesses contextos plurais de interação usam categorias
auto-atribuitivas. E sinais diacríticos como critérios de pertencimento para
identificar e diferenciar aqueles que estão “dentro” dos que estão “fora”
do grupo (BARTH, 1969).
Estudos sobre sociedades insulares, como Cabo Verde, mostraram que
ao contrário do que se imaginava que fossem “isoladas” e alheias ao que
se passava no resto do mundo e que a abertura ao “desenvolvimento” para
elas acabaria por aniquilar as formas tradicionais de produção cultural
e social mostraram-se redondamente enganados. Segundo o depoimento
de um morador de uma das ilhas da polinésia “Não vivemos hoje, e não
vivemos nunca aprisionados (...) em nossas ilhotas perdidas em um mar
distante (...) o mar é nosso lar, como era para nossos ancestrais” sempre
viveram em grandes associações de ilhas espalhadas pelo mar (SAHLINS,
1997b, p. 107).
Em oposição às concepções ocidentais sobre sua pequenez, os ilhéus do
Pacífico embarcaram em um processo inédito de “ampliação do mundo”
pelo processo de emigração, “seus lares alhures estão unidos por laços de
parentesco e por intercâmbio pessoal – sem esquecer a comunicação por
telefone, fax, correio eletrônico – à ilha natal que ainda é a base da sua
identidade e de seu destino” (SAHLINS, 1997b, p. 108).

“(...) os emigrantes são parte de uma sociedade transcultural dispersa,


mas centrada na terra natal e unida por uma contínua circulação de pes-
soas, idéias, objetos e dinheiro. Deslocando-se entre pólos culturais es-
trangeiros e indígenas, adaptando-se àqueles enquanto mantêm o com-
promisso com estes” a ponto dos “imigrantes samoanos considerarem-se
mais samoanos que os samoanos de Samoa” (JANES, 1990, p. 62, apud
SAHLINS, 1997b, p. 110).

Algo semelhante, pode-se dizer em Cabo Verde que tem a maioria da


sua população dispersa pela diáspora e há um fluxo constante e intenso de
relações entre esta e a terra-mãe expresso pelas remessas de dinheiro, ma-
trimônios, comunicação eletrônica, participação em cerimônias fúnebres
– stera, entre outras evidências etnográficas.
Em geral, a estrutura desses sistemas translocais (transculturais ou
não) focalizada na terra natal, e estrategicamente dependente dos lares pe-
riféricos no estrangeiro se caracteriza pela identificação de seus imigrantes
com seus parentes na região de origem e permanecem ligados aos seus pa-
rentes na terra natal, especialmente por entenderem que seu próprio futuro

152 Eliane Cantarino O’Dwyer


depende dos direitos que mantêm em seu lugar de origem. Assim, o fluxo
de bens materiais favorece os que ficaram em casa. As sociedades trans-
culturais têm seu foco na terra natal que possui um caráter espacialmente
centrado em contraposição à ideia de “desterritorialização” e em uma liga-
ção “meramente simbólica” ou “imaginária” dos povos da diáspora com
seus lugares de origem (SAHLINS, 1997b, p. 116).
Esse ponto é importante porque mostra que a ida do emigrante para o
estrangeiro por si só não o “desterritorializa63” em termos de identidade
porque ele continua daí do estrangeiro com fortes ligações à sua terra de
origem.

“A terra natal, deste modo. Permanece como um dos mais poderosos sím-
bolos unificadores para pessoas móveis e deslocadas (...). Precisamos abrir
mão das idéias ingênuas da comunidade entendida como uma entidade
literal, mas continuar sensíveis à profunda ‘bifocalidade’ que caracteriza
as vidas vividas localmente em um mundo globalmente interconectado”
(SAHLINS, 1997b, p. 117).

As contribuições dos emigrantes têm efeitos poderosos sobre as rela-


ções locais. “Funções-chave tradicionais, tais como trocas matrimoniais e
mortuárias, festas e rituais de vários tipos, transmissões de descendência
e de títulos são subsidiadas pelos rendimentos obtidos no setor externo”
(SAHLINS, 1997b, p. 118).

Duas categorias contrastivas: cabo-verdianos e mandjácus


Os cabo-verdianos residentes somam-se hoje, cerca de 450.000 habi-
tantes distribuídos pelas nove ilhas habitadas, sendo a ilha de Santiago,
onde se situa a capital do país, o local onde se concentra em torno da meta-
de dessa população. Os emigrantes cabo-verdianos residentes na diáspora
(Estados Unidos, Europa, África e outros locais) somam mais de 550.000
pessoas. “Os cabo-verdianos poderão adquirir a nacionalidade de outro
país sem perder a sua nacionalidade de origem”64. Falarei dos emigrantes

63 Desterritorializar – ficar sem território. Considerando que a hipótese de que a identidade


necessariamente estaria presa a um território.
64 Cf. Constituição da Republica de Cabo Verde de 1992, art. 5º, n. 3. Segundo a Lei de
Nacionalidade (Lei n. 80/III/90), os indivíduos nascidos no estrangeiro, fi lhos ou netos de
cabo-verdianos só tomam a nacionalidade cabo-verdiana, se fi zerem uma declaração expressa
nesse sentido.

Processos identitários e a produção da etnicidade 153


cabo-verdianos mais adiante, após o item sobre os mandjácus. Vou falar
sobre os cabo-verdianos residentes em Cabo Verde.
O cabo-verdiano é o termo que os próprios nativos usam para se iden-
tificar referindo-se à própria nacionalidade – ao fato de ter nascido em
Cabo Verde ou ser fi lho de um dos pais cabo-verdiano ou possuir a na-
cionalidade cabo-verdiana por adoção65 mas, também se refere, segundo
os mesmos, a uma identidade sui generis: ser uma síntese do encontro de
povos africanos e europeus em termos raciais e culturais – ser mestiço. O
cabo-verdiano sente orgulho e felicidade de ser cabo-verdiano: “(...) N’ ta
chinti feliz de ter nascid cabo-verdiano 66” (Sinto-me feliz de ter nascido
cabo-verdiano). O termo “crioulo” que significa a língua nacional cabo-
-verdiana também pode ser usada como sinônimo de cabo-verdiano. Os
mandjácus também chamam-nos por cabo-verdianos para nos identificar
(por esse etnômio). Nas relações interétnicas, a dimensão “mestiçagem” se
destaca às vezes, de forma clara, outras vezes, de forma sutil, mas raras
vezes de forma neutra.
O mandjácu é um termo que se refere à etnomia (o nome) pelo qual
os imigrantes africanos são denominados pelos cabo-verdianos em Cabo
Verde e em alguns países no estrangeiro onde os dois grupos se relacionam.
Trata-se de um nome genérico para todos independentemente do país de
origem. Ao contrário do termo cabo-verdiano, o mandjácu é um termo
pejorativo, detestável por todos os que recebem esse nome em Cabo Ver-
de e muitos cabo-verdianos afi rmam que têm consciência disso. Trata-se
de um estigma. A reação ao desacordo pela etnomia por parte do deno-
minado pode ir de uma apatia ou indiferença por não poder fazer nada
para evitar, até uma reação violenta, ofensa verbal ou briga. Os mandjácus
devem representar em torno de 4 a 5% da população de cabo-verdianos
residentes (entre 16 a 20.000 pessoas), na sua grande maioria são homens
com idade entre 20 a 35 anos; as mulheres e as crianças representam uma
parcela proporcionalmente menor no grupo. Em termos de coloração da
pele, os assim chamados, mandjácus são, em geral, considerados mais es-
curos do que os cabo-verdianos, embora haja na prática mandjácus mais
claros (mestiços) e cabo-verdianos tão escuros quanto o comum dos mand-
jácus. O primeiro critério para a identificação dos mandjácus pelos cabo-
-verdianos é a aparência física, expressa pela cor da pele ou pelo vestuário
ou pelo “jeito de ser”; o segundo critério é a língua – o mandjácu apresenta

65 Cf. a Constituição da República de Cabo Verde de 1992, art. 5º, n. 1.


66 Trecho de uma música interpretada por um cantor cabo-verdiano famoso, Ildo Lobo.

154 Eliane Cantarino O’Dwyer


um sotaque identificável como “não cabo-verdiano” ao falar o crioulo; se
esses critérios anteriores falharem, perguntam: bó ê di li de Cabo Verdi?67
(você é daqui de Cabo Verde?). Mas, usando os dois critérios anteriores se
consegue identificar mais de 90% deles. Também, por sua vez, os mandjá-
cus identificam os cabo-verdianos pelos mesmos critérios.
Perguntei a uma cabo-verdiana de nome Edna68 se conseguiria diferen-
ciar um cabo-verdiano de um mandjácu só pela aparência e, se sim, como
conseguiria. Ela respondeu prontamente que sim, e deu um exemplo con-
creto: “aqueles ali são mandjácus” (referindo-se a dois rapazes que passa-
ram à nossa frente e confi rmei positivamente depois quando falei com eles
e perguntei qual era a nacionalidade deles). Diz que dá para reconhecer
pelo jeito de ser e que quando falam não dá para confundir porque falam
um crioulo diferente mesmo que estejam em Cabo Verde há muito tempo.
Esclarece que os “mandjácus” também são chamados de “amigos”. Para
ela, “amigo” ou “amiga” é melhor quando não se sabe o nome. Segundo
ela, eles não gostam de serem chamados de mandjácus mas que gostam
de serem chamados de “amigos”. Acrescentou que já presenciou casos de
brigas por causa do nome (mandjácu).
Existem dois tipos principais de conteúdos culturais dicotômicos: si-
nais e signos manifestos que constituem as características diacríticas que
as pessoas buscam e exibem para mostrar sua identidade (vestimenta, lín-
gua, forma das casas, estilo de vida) e, orientações valorativas básicas, isto
é, os padrões de moralidade e de excelência pelos quais as performances
são julgadas (BARTH, 1994, p. 26-32). A manutenção das fronteiras éticas
“implica não apenas a existência de critérios e sinais de identifi cação, mas
também uma estruturação das interações” que permita o reconhecimento
dessas diferenciações (BARTH, 2000, p. 35). Tais características demar-
cam fronteiras mas podem mudar sem afetar a continuidade da existência
do grupo. O mais importante é que haja “uma contínua dicotomização
entre os membros e não-membros (...). Apenas os fatores socialmente rele-
vantes tornam-se importantes para diagnosticar o pertencimento, e não as
diferenças explícitas e ‘objetivas’” (idem, p. 33).
Assim, uma forte redução das diferenças culturais entre os grupos ét-
nicos não se correlaciona diretamente com a redução na relevância das

67 Foi-me feita essa pergunta no mercado popular de Sucupira (Praia) por uma das minhas
entrevistadas que achou o meu sotaque diferente em crioulo, achando que eu era um mand-
jácu. Eu já estou há 15 anos fora de Cabo Verde.
68 Edna, 30 anos, trabalha há um mês num restaurante no interior do Sucupira que serve
prato feito, natural da ilha de Santiago, entrevista em janeiro de 2008.

Processos identitários e a produção da etnicidade 155


identidades étnicas em termos organizacionais ou com uma ruptura dos
processos de manutenção de fronteiras (BARTH, 2000, p. 59).
Por exemplo, o estudo empreendido por Mitchell sobre a identidade
dos trabalhadores das minas de cobre na África austral revelou que a dan-
ça denominada kalela não é a representação tribal no contexto urbano
mas sim, a utilização de símbolos e nomes tribais como categorias sociais
nas interações urbanas por grupos que desejam comunicar entre si as suas
procedências identitárias (MITCHELL, 1999).
Por conseguinte, deve ser priorizado na análise a “fronteira étnica e
não no conteúdo cultural por ela delimitado. (...)” (BARTH, 2000, p. 33-
34). A estabilidade das relações interétnicas pressupõe um conjunto de
prescrições que governam as situações de contato e permitem uma articu-
lação em alguns setores e interdições em relação a determinadas situações
sociais, protegendo partes da cultura da confrontação e da modificação.

Histórico do afluxo dos mandjácus a Cabo Verde


Após a Independência Nacional em 1975, devido às enormes carências in-
fraestruturais e de recursos humanos, os sucessivos governos com o apoio
da Comunidade Internacional recrutaram quadros69 africanos para o de-
senvolvimento dos programas da educação (professores70) e infraestrutu-
ras (engenheiros, geólogos); com a Unidade Guiné Bissau-Cabo Verde71
(até 1980), os guineenses poderiam circular entre os dois países sem pro-
blemas; em meados dos anos 1980, a visibilidade dos imigrantes africanos
começou a ser notada muito marginalmente nos mercados populares; nas
décadas seguintes, o número deles aumentou exponencialmente devido,
em parte, ao Acordo da Comunidade Econômica dos Estados da África
Ocidental (CEDEAO) que liberalizou a circulação de pessoas entre os pa-
íses signatários como era o caso de Cabo Verde, sem a exigência de visto
de entrada.

69 Os quadros não africanos (europeus na sua maioria) eram designados por cooperantes pe-
los cabo-verdianos. José Vicente Lopes, relata bem o panorama geral cabo-verdiano na pré-
-independência e nos seus momentos iniciais no seu livro, Os Bastidores da Independência,
caracterizado pela carência de quase tudo.
70 Professores de Educação Física, Ciências, Matemática, Físico-Química, Francês, Inglês e
História.
71 Cabo Verde e Guiné Bissau foram governados pelo mesmo partido, o PAIGC, da indepen-
dência até 1980, altura em que ocorreu um golpe de estado na Guiné Bissau que teve como
uma das consequências a separação política dos dois países, até então, considerados irmãos:
“dois corpos, um coração”.

156 Eliane Cantarino O’Dwyer


Figura 3. Foto de uma barraca de mandjácus da Guiné Bissau e Senegal, na Ilha do Sal,
para a venda de produtos artesanais destinados a turistas.

Hoje, os chamados mandjácus na sua grande maioria trabalham na


construção civil, como pedreiros, serventes, guardas, técnicos em hidráu-
lica e eletricidade; no comércio ambulante, como rabidantis (vendedores
informais); na confecção de roupas e assessórios como brincos, cordões,
colares; nas artes plásticas, pintura, escultura, artesanato. Uma minoria
é constituída por técnicos superiores (professores de ensino secundário,
enfermeiros, médicos, engenheiros e outros).
A maioria desses imigrantes aportam Cabo Verde via meios legais, mas
alguns chegam de forma clandestina (ilegal) na tentativa de alcançar as
ilhas espanholas das Canárias que representariam a materialização do so-
nho da entrada na Europa e a possibilidade de alcançar uma vida melhor
para si e para os familiares deixados nos países de origem.
As autoridades cabo-verdianas podem interceptá-los tanto na sua ten-
tativa de passagem pelo espaço marítimo nacional para a Europa quanto
quando são repatriados,

“A última vaga de clandestinos aconteceu em Novembro do ano passado


(2006), quando uma piroga com 130 imigrantes foi localizada no Porto
Novo, ilha de Santo Antão. Em Fevereiro último, Cabo Verde aceitou re-
ceber, alegadamente, por razões humanitárias, um grupo de 37 indivídu-

Processos identitários e a produção da etnicidade 157


os repatriados pela Espanha, enviando-os de seguida para os respectivos
países – Senegal, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri”72 .

Desde o fi nal de 2005, as autoridades cabo-verdianas já registraram


a chegada de centenas de imigrantes clandestinos ao arquipélago, na sua
esmagadora maioria em trânsito para as Canárias. A vulnerabilidade das
costas cabo-verdianas, dada a falta de meios para uma vigilância eficaz, e
a sua extensa Zona Econômica Exclusiva, tornaram Cabo Verde bastante
atrativo para os traficantes e os candidatos a imigrantes clandestinos.
Com a assinatura do Acordo de Parceria Especial entre Cabo Verde
e a União Europeia (2007) e subsequentes acordos bilaterais (2008) com
países membros desse Bloco Europeu (nomeadamente, Espanha, França,
Luxemburgo e Portugal) para a facilitação na obtenção de vistos de entra-
da de cabo-verdianos para trabalharem nesses países, Cabo Verde passou
a ser considerado a “última fronteira” entre a Europa e a África.

A relação entre os cabo-verdianos e os mandjácus


do ponto de vista dos atores sociais
Os dramas ocorrem quando relacionamentos sociais forem desconfortá-
veis para, pelo menos, uma das partes. Mitchell identificou três tipos prin-
cipais de relacionamentos nas sociedades urbanas africanas que estudou:
O primeiro, os “relacionamentos categoriais” – são aqueles que pela
natureza das coisas, os contatos precisam ser superficiais e performatórios.
São situações do cotidiano de uma grande cidade frequentada por vários
grupos e cujos naturais da cidade mudam constantemente de composição.
São situações que ocorrem nos corredores de bares, mercados e outros lu-
gares. Os moradores da cidade tendem a caracterizar as pessoas em termos
de algumas características visíveis e se comportam de acordo com isso.
Essa categorização está fortemente aliada ao “esteriótipo” (BANTON,
1969, p. 52).
Trata-se de uma categorização genérica que ignora as divisões internas
dentro do grupo, e mais, é uma categorização mais externa do que autoi-
dentificação. O autor aponta como exemplo de relacionamento categorial
aquela baseada na raça. O padrão de comportamento entre as raças ex-
pressa a estandardização da expectativa de distanciamento que uma raça
tem em relação a outra (idem).

72 Disponível em: http://www.inforpress.cv/index.php?option=com_content&task=view&id=


29&Itemid=118 Acesso em: 27 fev. 2008.

158 Eliane Cantarino O’Dwyer


Esse tipo de classificação ajuda a identificar o papel de cada grupo
na situação urbana onde convive uma multiplicidade de grupos étnicos e
tribais agora reduzidos num número pequeno de categorias por suas cate-
gorias representativas.
As sociedades relacionam algumas identidades que consideram rele-
vantes tornando-as como básicas. Da Matta (1976), classifica as identi-
dades sociais em dois grupos: (1) as identidades encaixadas – quando os
atores seguem as expectativas de status e papéis idealizados a cada um e
(2) identidades desencaixadas – quando isso não ocorre. Para esse autor,
a gramaticalidade das identidades corresponde às relações possíveis entre
domínios que dependem em última análise, da divisão social do trabalho.
Como consequência, ele denomina isso de “mapa de navegação social en-
tre os domínios” (idem, p. 34-37).
O segundo tipo de relacionamentos sociais são as “relações estrutu-
rais” – são aqueles relacionados a padrões permanentes de interação que
estão estruturados em termos de expectativas de condutas de uns e de
outros nas relações sociais. Trata-se de relacionamentos sociais urbanos
fechados no sentido em que os estatutos e papéis entre os trabalhadores
são rigidamente defi nidos em termos de atividade produtiva na qual estão
engajados (BANTON, 1969, p. 51). Mitchel considera que existem poucos
estudos com esse enfoque sobre a interação do cotidiano africano no meio
ambiente comercial e industrial, diferentemente do que existe na Europa
e nos Estados Unidos. O autor argumenta que teoricamente é importante
testar se fatores como o tribalismo e o parentesco desempenham um papel
mais importante nas relações informais na situação de trabalho na África
do que nos Estados Unidos ou na Europa.
Estudos dão conta da existência de vários tipos de associações e ins-
tituições nas cidades africanas que implicam relacionamentos estruturais.
Por exemplo, sociedades funerárias73, clubes de empréstimos, instituições
como Cortes (tribunais), casamentos, entre outras (idem, p. 52).
Por fi m, o terceiro tipo de relacionamento é através de “redes de tra-
balhos pessoais” – trata-se de um tipo de relacionamento social baseado
nas ligações pessoais que os indivíduos têm construído nas redes de tra-
balho nas cidades em torno de si mesmos. É uma rede efetiva de relações

73 Em Cabo Verde existem associações funerárias de dois tipos principais: uma em que os
membros participam com uma cota em função de cada morte de um associado e outra em
que os membros pagam uma cota mensal. No primeiro caso, o retorno é variável em função
do número de associados no momento de cada morte e dos adimplentes; o segundo caso, o
retorno é fi xo e predeterminado. As pessoas preferem o primeiro tipo.

Processos identitários e a produção da etnicidade 159


de trabalho que permite que os migrantes rurais permaneçam ruralmente
orientados nos meios urbanos porque conseguem se encapsular numa rede
“impermeável” de relações de trabalho baseado em ligações pessoais (ib-
dem, p. 53-54).
Estudar as relações sociais apenas pelo lado da caracterização externa
dos grupos sem levar em conta a perspectiva dos próprios atores visados in-
duz a achar que esses grupos são atores passivos de suas próprias histórias.
Contra essa perspectiva de passividade dos grupos em relação à pro-
dução de suas próprias histórias posicionam Sahlins (1997, p. 2-5) que
defende um protagonismo de povos considerados “passivos” devido à co-
lonização em relação à produção de suas próprias narrativas e Asad (1993,
p. 4) que entende, no entanto, que não ser sujeito “passivo” da própria his-
tória não significa ser o seu autor. Trata-se de uma questão de perspectiva
de quem elabora a narrativa. Com isso, ele amplia a legitimidade de quem
pode contar essas histórias para além dos “nativos”. Também reconhece
que ninguém é autor plenamente autônomo de sua própria história, sempre
existem contribuições, ainda que marginais, provenientes de outras fontes.
Para Hannerz (1992, p. 3-14), a cultura que é objeto de estudo da An-
tropologia, está localizada em formas públicas que podem ser escutadas,
tocadas, cheiradas, testadas e pelas formas internalizadas que dizem res-
peito aos mitos, crenças, opiniões, fantasias, sensibilidades, inteligência.
Existe um fluxo de transporte desses elementos da forma pública para fora
e vice-versa através da exteriorização de significados que os indivíduos
produzem por meio das formas abertas de interpretações que eles fazem
de tais manifestações.
Os mandjácus tentam participar da cultura e instituições sociais cabo-
-verdianas bem como se mostram receptivos a aceitar a participação dos
cabo-verdianos nas suas atividades culturais e sociais específicas como,
por exemplo, as religiosas, as festas típicas entre outras, mas, da parte dos
cabo-verdianos não ocorre o mesmo nível de abertura. Na prática, as suas
tentativas de participação encontram muitas barreiras sociais impostas
pelo preconceito, discriminação e estigma.
A legislação cabo-verdiana, como as outras consideradas democráti-
cas, determina abstratamente a igualdade entre todos os cidadãos e podia-
-se presumir o que tal fato supostamente poderia colocar os mandjácus em
pé de igualdade para com os cabo-verdianos só que a prática social é bem
diferente apesar da legislação em vigor,

160 Eliane Cantarino O’Dwyer


Com exceção dos direitos políticos e dos direitos e deveres reservados
constitucional ou legalmente aos cidadãos nacionais, os estrangeiros e
apátrias que residam ou se encontrem no território nacional gozam dos
mesmos direitos, liberdades e garantias e estão sujeitos aos mesmos deve-
res que os cidadãos cabo-verdianos 74.

A lei acrescenta, esclarecendo a qualidade do conteúdo dessa igualdade:

Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei,
ninguém podendo ser privilegiado, beneficiado ou prejudicado, privado
de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da raça, sexo,
ascendência, língua, origem religião, condições sociais e econômicas ou
condições políticas ou ideológicas75.

Apesar de estar assegurada a igualdade na legislação vigente, quando se


trata de contextos plurais em termos étnicos, a crença na vida em comum
constrói-se a partir da diferença. “A atração entre aqueles que se sentem
como de uma mesma espécie é indissociável da repulsa diante daqueles que
são percebidos como estrangeiros” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART,
1998, p. 40). A consciência da diferença é criada não no contexto do iso-
lamento, mas, ao contrário, quando os grupos estão em presença e procu-
ram criar mecanismos fronteiriços para demarcar e comunicar as unidades
de pertencimento.
A prática do racismo tornou-se, na sociedade moderna, não apenas
mais abrangente como também mais diversificada em suas formas de negar
a dignidade, a igualdade e o respeito à pessoa humana. Naquelas popu-
lações caracterizadas por secular mistura racial (Brasil, Havaí, México
etc.), as formas de racismo adquiriram a peculiaridade de uma existência
conscientemente camuflada e institucionalmente negada.
Na África do Sul, o racismo institucionalizado (Apartheid) teve início
com a chegada dos colonizadores holandeses no século XVII, seguidos pe-
los britânicos e franceses. Ao longo dos séculos, os colonizadores criaram
aí todas as formas possíveis de despojar e oprimir os habitantes negros em
proveito de seus interesses (AZEVEDO, 1987, p. 27).
Assim, o racismo no mundo atual persiste, sendo uma forma de escra-
vidão moderna que fere as pessoas na essência de sua dignidade, impedin-

74 Cf. art. 22º, n. 1, da Constituição da República de Cabo Verde de 1992 (os grifos são meus).
75 Cf. art. 23º, n. 1, da Constituição da República de Cabo Verde de 1992 (os grifos são meus).

Processos identitários e a produção da etnicidade 161


do-as de compartilhar dos bens sociais para o desenvolvimento pessoal e
coletivo (idem, 27-28).
No Brasil, passados mais de 90 anos desde a abolição da escravidão,
“a população negra continua localizada nos níveis mais baixos da hierar-
quia social, comparativamente à população branca, parte majoritária da
população negra localiza-se nas regiões menos desenvolvidas do país, sem
acesso aos bens e serviços básicos” (HASENBALG E GONZALEZ, 1982,
p. 98).
O retrato dessa desigualdade não pode ser atribuído apenas do pas-
sado, se “deve a uma estrutura desigual de oportunidades sociais a que
brancos e negros estão sujeitos. Os negros sofrem uma desvantagem com-
parativa a todas as etapas do percurso de mobilidade social individual”.
Suas possibilidades de escapar às limitações de uma posição mais baixa
são menores do que a dos brancos da mesma origem social assim como são
as dificuldades de manter as posições já conquistadas (idem, 98-99).
Em Cabo Verde a relação entre cabo-verdianos e mandjácus é marcada
por diferentes formas de discriminação cujos depoimentos de integrantes
dos dois grupos ilustram.

O que designa o termo mandjácu


A identidade étnica se afi rma negando a outra identidade, “etnocentrica-
mente” por ela visualizada. Portanto, há que haver uma autoapreensão de
si em situação de forma consciente, especialmente quando ocorre fricção
interétnica. Os grupos étnicos quando usam suas identidades estão toman-
do posições em sistemas de relações intergrupais culturalmente defi nidos
com status – direitos e deveres e papéis (OLIVEIRA, 1976, p. 9).
Por causa de estigmas, status e papéis, os indivíduos dispõem de alter-
nativas delimitadas pelas estruturas sociais onde possam estabelecer suas
relações sociais mais desejáveis. Desta forma, a identidade pode ser usada
para manipulação de regras sociais estabelecidas.
As etnomias são, com efeito, as etiquetas, bandeiras, emblemas ono-
máticos que estão “lá” e que os atores sociais se apropriam em função das
conjunturas políticas que surgem para eles. O lado “camaleão” da iden-
tidade não é certo extensível ao infi nito, assim como, a plasticidade dos
status sociais não é absoluta. (AMSELLE, op. cit. 1999).
Para Da Matta, (1976), identidades sociais são meios através dos quais
as sociedades humanas implementam um conjunto de regras sociais; são
mediadoras entre os códigos e os indivíduos que compõem a sociedade.
Identidades permitem atualizar numa prática social valores grupais e

162 Eliane Cantarino O’Dwyer


assim transformar uma população de indivíduos num conjunto relativa-
mente coerente, seres altamente diferenciados em termos de variedade de
atributos. Cada sociedade elege um conjunto de identidades consideradas
básicas, mas nem sempre a seleção de identidades pode seguir as regras da
identidade atribuída.
Fiz a seguinte pergunta a imigrantes africanos e a cabo-verdianos –
como é que os cabo-verdianos chamam os imigrantes da costa ocidental
africana?

Migrantes nigerianos
—“Mandjácu”, “amigo”. Eu não me identifico por esses nomes. Quando
dizemos (aos cabo-verdianos) que somos da Nigéria, dizem – “He! Mand-
jácu da Nigéria” – é um abuso essa forma de tratamento, é discriminação,
é racismo! Nós não gostamos de ser chamados de “mandjácus”, temos o
nosso nome. Nós não lhes chamamos de escravos (referindo-se à história
dos cabo-verdianos), por que nos chamam de “mandjácus”? É um despre-
zo! Isso magoa muito76.
— Nos chamam “mandjácus de merda, por que não vão para a vossa
terra?”77
Estes dois nigerianos identificaram os dois etnônimos utilizados pelos
cabo-verdianos para designá-los e avaliam que ser chamado de “mand-
jácu” ou “amigo” é a mesma coisa em termos depreciativos.

Migrante cabo-verdiana-suíça
— Mandjácus 78 .

76 Angel, nigeriano, 37 anos, rabidanti no Sucupira, entrevistado na Cidade da Praia, em


janeiro de 2008.
77 Big, nigeriano, 35 anos, rabidanti no Sucupira, entrevistado na Cidade da Praia, em
janeiro de 2008.
Essa rejeição ao imigrante africano é tão generalizada que conta-se popularmente um
episódio em que um comerciante chinês numa situação de disputa concorrencial com um
desses imigrantes vendedores ambulantes que expunha e vendia mercadorias (ilegalmente) à
frente da loja dele, o chinês sai e diz “mandjácu ba bu terra”.
— BA BU TELA MANDJACO BLANCO – (vai para a tua terra mandjácu branco). Tratou-se
de um comentário feito no jornal “asemanaonline” referente à crítica à gestão considerada
danosa da TACV (transportadora área nacional) empreendida por um canadiano, parodeando
o comerciante chinês (Disponível em: http://www.asemana.cv/article.php3?id_article=30878
Acesso em: 26 mar. 2008).
78 Misá, 41 anos, nascida em Cabo Verde, emigrou para a Suíça com 11 anos e regressou a
Cabo Verde com 30 anos e reside aí desde então, fi lha de pais cabo-verdianos, adquiriu a nacio-

Processos identitários e a produção da etnicidade 163


Migrantes guineenses (de G. Conacri)
— Eles (cabo-verdianos) nos chamam de “amigo” e nós lhes chamamos de
“amigo”, mas tem cabo-verdiano que se lhe chamarmos de “amigo” fica
aborrecido conosco e adverte, “não me chame mais de “amigo”, eu não
sou mandjácu, eu sou daqui (da terra). Nunca mais me chame de “amigo”.
Se não souberes o meu nome, me pergunte”. Se nós chamarmos algumas
pessoas daqui de “amigo”, elas reclamam, dizem que se deve chamar “ami-
go” somente àquelas pessoas que vieram de fora. (...) nos chamam “mand-
jácus”, todos nós, aqueles que vieram do Senegal, Guiné Conacri, Nigéria
ou de outro local, algumas chamam de “amigo”. (...) mandjácu é diferente
de amigo. Amigo é melhor porque mandjácu é uma raça (etnia). Aqui em
Cabo Verde só existe uma distinção entre badius 79 e sampadjudus80 mas
nesses outros países existem muitas raças (etnias). – Nesse instante, pre-
sencio uma cena de ofensa verbal de uma cabo-verdiana a um imigrante
africano (meu anterior entrevistado a este que nos fala), chamando-o de
“mandjácu de merda, não preciso de seu favor, eu tenho os meus próprios
meios”. – Alguém lhe chamar de “mandjácu de merda” é falta de respeito.
Mandjácu é uma das várias raças (etnias) existentes na Guiné Bissau, mas
os cabo-verdianos nos chamam assim, independentemente de nossa origem
nacional ou racial (étnica) de mandjácus81.

Cabo-verdianos
Duca, (22 anos, rabidanti há dois anos no Sucupira, natural da ilha de
Santiago) diz que os cabo-verdianos designam os imigrantes da costa oci-
dental africana por “amigos” ou “mandjácus”. Ela Acha que “amigo” é
melhor porque “mandjácu”, segundo ouviu falar, “mandjácu” se refere a
pessoas de uma tribo (etnia) da Guiné Bissau, por isso, “amigo” é mais
correto.
Djunha, (43 anos, rabidanti há vários anos no Sucupira, natural da
ilha do Fogo) afi rma que os cabo-verdianos chamam os imigrantes africa-
nos de “mandjácus” ou “amigos”. Para ele mandjácu é mais depreciativo:
“é um desprezo, é para inferiorizar, e amigo é mais suave. (…) mandjácu é
uma forma de discriminação que está errada, mas que existe (…) é compa-

nalidade suíça por adoção, artista plástica, entrevistada na Cidade da Praia, janeiro de 2008.
79 Badius são os naturais da ilha de Santiago.
80 Sampadjudus são os naturais das outras ilhas diferente de Santiago.
81 Suleimane, 24 anos, natural da Guiné Conacri, há quatro anos em Cabo Verde, rabidanti,
entrevista, janeiro, 2008.

164 Eliane Cantarino O’Dwyer


rável a sermos (nós cabo-verdianos) chamados de “pretos” (ele tem a pele
clara e os cabelos lisos).
Suzana e Luzia82 (vendedoras de comida, prato feito, no Sucupira,
idades entre 25 a 35 anos, naturais da ilha de Santiago) confi rmam que
os cabo-verdianos chamam os imigrantes africanos de “mandjácus” ou
“amigos” mas que elas não acham isso correto. Para elas, as duas deno-
minações são sinônimas. Já presenciaram brigas por causa desses nomes e
discriminação por parte da polícia vitimando os mandjácus. Segundo elas,
todos nós somos iguais e ninguém deveria tratar nem ser tratado de forma
diferenciada.

Migrantes da Guiné Conacri


Hady e Irain (nacionais da Guiné Conacri, 24 e 26 anos, rabidantis no
Sucupira, há oito meses em Cabo Verde) dizem que os cabo-verdianos os
chamam por mandjácus ou amigos. Reclamam que quando têm suas mer-
cadorias roubadas e vão à Polícia, não recebem a menor atenção por parte
das autoridades ou estas sempre dão razão aos cabo-verdianos em se tra-
tando de confl ito entre eles e os cabo-verdianos. Acusam que sofrem dis-
criminação por parte dos cabo-verdianos, mas que as autoridades acham
normal porque eles é que estão na nossa terra.

Migrante Senegalês
Usumane (28 anos, rabidanti no Sucupira, senegalês, há dois anos em
Cabo Verde), fala que são chamados de “amigos” ou “mandjácus” e que
chamam os cabo-verdianos por “amigos” mas não percebe qualquer tipo
de discriminação nem da parte dos cabo-verdianos em geral, e nem das
autoridades policiais.
Nota-se que o termo mandjácu é depreciativo, sinônimo ao amigo e
serve para demarcar os limites identitários entre “os da terra” e “os que
vieram de fora”. Trata-se de “um estigma (…) um atributo profundamente
depreciativo” (GOFFMAN, 1980, p. 13). Para Big e Angel, mandjácu e
amigo são sinônimos em termos de carga pejorativa, “não têm diferença,
são iguais, amigo não é melhor do que mandjácu. É tão ruim quanto”83.

82 Acharam que eu era um mandjácu por causa do sotaque no falar crioulo que perceberam.
83 Big (35 anos), Angel (37 anos), nigerianos ambos rabidantis no Sucupira, residentes em
Cabo Verde há mais de 8 anos, entrevista, janeiro de 2008.

Processos identitários e a produção da etnicidade 165


Esses etnônimos são usados como sinais diacríticos com valor discri-
minatório para se referir ao grupo numérico e socialmente desfavorecido,
os mandjácus. A sua enunciação significa lembrar ao visado o seu lugar de
inferioridade na hierarquia social. Faço a seguinte pergunta para certificar
se a minha suspeita de discriminação se verificava mesmo ou não:
Como é a relação entre os cabo-verdianos e os africanos da costa oci-
dental africana (mandjacus)?
— É péssimo! Alguns poucos não são iguais, mas 80% (dos cabo-ver-
dianos) são racistas (ele fica mais exaltado e gesticula muito). A minha mãe
é cabo-verdiana e veio para Cabo Verde e em menos de um mês regressou
para a Guiné Bissau. Ela sentiu o racismo na pele (ele bate no braço). 80%
são racistas: polícia, hospital, restaurante, em qualquer lugar que você vá,
você sente aquele racismo na pele (ele bate no braço). Mas pronto, nós não
temos nada que fazer. Nós estamos aqui ... (Guineense-cabo-verdiano84).
— Aqui as pessoas se relacionam muito mal. Há muito racismo: cabo-
-verdiano com africano e, cabo-verdiano com cabo-verdiano (Angolano-
-cabo-verdiano85).

O contexto de interação social


— Eles (mandjácus) moram sempre sozinhos. Eles fazem orações e ou-
tras coisas à noite. (..) Eles são muçulmanos mas existem outras religiões
misturadas. (...) nós (cabo-verdianos) somos africanos, mas independentes
deles. Nós somos diferentes deles. Nós somos de outro tipo. A nossa cor
da pele é diferente (somos mais claros) do que eles. Nós temos outra men-
talidade (“civilização”) 86.
Os imigrantes africanos reclamam que enfrentam enormes dificulda-
des para encontrar uma casa para alugar em função de serem considerados
mandjácus pelos cabo-verdianos.
Sobre a interação social entre os cabo-verdianos e imigrantes africanos
em Cabo Verde, segundo os interlocutores:
— Eu sinto-me guineense (...) mesmo tendo a mãe cabo-verdiana. (...)
eu não posso sentir-me aqui cabo-verdiano se não sou aceito na sociedade.

84 Seku Kabé, 28 anos, sendo oito em Cabo Verde, fi lho de mãe cabo-verdiana e pai guine-
ense, vendedor no mercado de artesanato na ilha do Sal, entrevista, janeiro de 2008.
85 Igor, 24 anos, há um ano em Cabo Verde, fi lho de mãe cabo-verdiana e pai angolano,
estudante, entrevista na ilha do Sal, janeiro de 2008.
86 Joel, 34 anos, nascido e criado em Cabo Verde, fi lho de pais cabo-verdianos, segurança de
um hotel, entrevista na ilha do Sal, janeiro de 2008.

166 Eliane Cantarino O’Dwyer


Você não pode ser (existir, aparecer aqui). Não consegue se integrar aqui (...)
mesmo com oito anos aqui (apresenta um semblante de que não tem jeito).87
— Já assisti a muitas brigas em hiaces (vans) com senegaleses que as
pessoas (cabo-verdianas) dizem, “mandjácu entre”. Eles respondem: “eu
não sou mandjácu. Mandjácu é uma etnia da Guiné. Eu sou senegalense.
Eu sou Wolof”. Eles (cabo-verdianos) fazem isso com convicção e franca-
mente... cabo-verdianos são racistas nesse sentido aqui: consideram que
não são iguais a esses “pretos” 88 (...).
— Todos nós (os cabo-verdianos) os chamamos de mandjácus. Nós não
os diferenciamos. Tem uns (mandjácus) que sabem que maltas (as pessoas
cabo-verdianas) não os diferenciam e uns ficam chateados outros não89.
— Eu falo com eles (mandjácus), como falo francês (...) eles dizem que
“cabo-verdianos não têm nenhum respeito!”. Aqui é uma sociedade onde
eles têm muitas dificuldades para se adaptarem e por mais que queiram
se adaptar encontram tantas barreiras que não conseguem ultrapassá-las
todas. Vou contar-te uma história: eu tenho um amigo nigeriano que me
contou o seguinte: — Eu vim aqui com toda a minha simplicidade. Eu
sou príncipe na minha terra! Queria perguntar para uma garota que eu
queria conquistar o nome dela. Os meus amigos me avisaram que não
iria conseguir nada porque eles (cabo-verdianos) não tratam (namoram)
com mandjácus. Se eu não sabia o que era mandjácu, mas eu perguntei
para aquela garota o nome dela e ela me respondeu: “Catota”90. Noutro
dia encontrei-a numa loja e chamei-a, “Catota”, fui ao encontro dela e
perguntei-a, “como estás?”. Ela não me respondeu e várias pessoas que
estavam naquela loja passaram a olhar na minha direção, estranhamente.
Fui ter com os meus amigos e contei-lhes o sucedido que, encontrei a ga-
rota que queria convidar para um almoço, chamei-a, e não me respondeu
e todos ali ficaram me olhando estranhamente e, quando os meus amigos

87 Seku Kabé, 28 anos, sendo oito em Cabo Verde, fi lho de mãe cabo-verdiana e pai guineen-
se, vendedor no mercado de artesanato na ilha do Sal, entrevista, janeiro de 2008.
88 Misá, 41 anos, nascida em Cabo Verde, emigrou para a Suíça com 11 anos e regressou a
Cabo Verde com 30 anos e reside aí desde então, fi lha de pais cabo-verdianos, adquiriu a nacio-
nalidade suíça por adoção, artista plástica, entrevistada na Cidade da Praia, janeiro de 2008.
89 Joel, 34 anos, nascido e criado em Cabo Verde, fi lho de pais cabo-verdianos, segurança de
um hotel, entrevista na ilha do Sal, janeiro de 2008.
90 Catota é o nome crioulo obsceno para o órgão sexual da mulher. Usa-se esse nome na
expressão “catota bu mái (catota da tua mãe) para se ofender verbalmente uma pessoa numa
situação de confl ito, é o superlativo máximo em ofensas verbais em Cabo Verde, o correspon-
dente brasileiro ao “vai tomar …”.

Processos identitários e a produção da etnicidade 167


me explicaram o que era “catota” eu fiquei admirado!” – Só para veres a
situação entre nós e os estrangeiros91.
— As mulheres aqui (na ilha do Sal) gostam de estrangeiros (brancos
turistas ou residentes). Se sabem que és um africano (mandjácu), pensam
logo que não tens dinheiro e que não tens nada. Elas ficam com o estran-
geiro. Escolhem pela cor (...) estão a discriminar muito a raça africana.
Estão a dar muito mais valor aos estrangeiros do que a si próprias92 .
Dois nigerianos relataram uma série de situações em que se sentiram
discriminados na relação com os cabo-verdianos:
Big93 contou que tomou um táxi entre Ponta d’Água e o Aeroporto
da Praia mas que o taxista não ligou o taxímetro. Quando chegaram ao
destino, resolveu cobrar-lhe 1.000,00 escudos. Ele perguntou-lhe “por que
não ligara o taxímetro?” O motorista lhe respondeu exaltado – Mandjácu
de merda, pague o que deve. – Argumentou que já fi zera o mesmo percur-
so outras vezes e nunca pagara mais do que 300,00 escudos. – Não, tem
que pagar. – Replicou o taxista. Big tentou fazer uma conciliação: “vou
pagar 500,00 para acabar com o problema”. – Não vou aceitar. Tem que
pagar 1.000,00. – O Big pediu-lhe então para chamar a polícia. Quando
a polícia chegou, apenas quis ouvir a versão do taxista que lhe pergunta:
“Por que não quer pagar o táxi?” Explicou ao policial que não combina-
ram aquele preço e que o taxista não havia ligado o taxímetro. O policial
resolveu levá-los para a Esquadra (Delegacia de Polícia). Chegados lá, um
policial o manda pagar o valor exigido pelo taxista, mas um outro policial
que estava presente interveio para saber as suas razões. Acabou pagando
500,00 escudos.
Segundo Angel94, quando o aluguel da casa onde moram há mais de
cinco anos atrasa três ou quatro dias, a proprietária chega e diz: “mand-
jácu, se não podes pagar o aluguel, vá para sua terra”. Lamenta: “Mas eu
pago o aluguel todos os meses certinho, durante anos, qualquer atraso de
dias é suficiente para esse tipo de ofensa”.

91 Misá, 41 anos, nascida em Cabo Verde, emigrou para a Suíça com 11 anos e regressou a Cabo
Verde com 30 anos e reside aí desde então, filha de pais cabo-verdianos, adquiriu a nacionalidade
suíça por adoção, artista plástica, entrevistada na Cidade da Praia, janeiro de 2008.
92 Igor, 24 anos, há um ano em Cabo Verde, fi lho de mãe cabo-verdiana e pai angolano,
estudante, entrevista na ilha do Sal, janeiro de 2008.
93 Big, 35 anos, nigeriano, vendedor no Sucupira, residente em Cabo Verde há mais de oito
anos, entrevista, janeiro de 2008.
94 Angel, 37 anos, nigeriano, vendedor no Sucupira, residente em Cabo Verde há mais de
oito anos, entrevista, janeiro de 2008.

168 Eliane Cantarino O’Dwyer


“Na discoteca, se estiver dançando com uma cabo-verdiana, os ho-
mens cabo-verdianos chegam e me empurram dizendo para a dama “ca bu
badja col. Bu ca ôdja ma el ê mandjácu? (não dances com ele. Você não viu
que ele é mandjácu?) Isso dói!” 95
“Se um homem cabo-verdiano perceber que estou conversando com
uma moça cabo-verdiana, chegam e perguntam para ela: “o que é que um
mandjácu tem para lhe dar?”96
“Quando acontece um problema entre um cabo-verdiano e nós (mand-
jácus), a autoridade policial dá sempre razão à parte cabo-verdiana e nem
escuta a outra parte”.97
Big98 e Angel99 consideram que existe uma diferença no padrão de trata-
mento dos diferentes tipos de cabo-verdianos para com eles (os mandjácus):
“aqueles que já saíram para fora (aqueles que viajaram para o exterior,
como, emigrantes, estudantes) são mais compreensivos, são muito melho-
res; os do interior também nos tratam bem. Mas o pior tratamento nos é
dispensado pelos nativos da Praia (capital) que nunca saíram para fora. São
os principais ofensores. (…) Agora, o mais triste não é o tratamento dis-
pensado pelo povo mais comum mas sim, aquele dado pelas autoridades de
fronteira (Polícia de Fronteira). Quando chegamos para fazermos a renova-
ção da permanência. Após várias insistências para alertarmos que o prazo
de validade da permanência vai caducar (vencer), respondem: “mandjácu,
bá bu terra (mandjácu, vá para tua terra), assim o prazo não vence”.
Big relatou que estava numa fi la de espera para atendimento bancário,
eis que surge um cabo-verdiano que passou na frente de todos (“furou a
fi la”) e foi falar com a atendente. “Saí da fila e me dirigi até ele perguntan-
do se não tinha visto a fi la, que todos aí estavam à espera de atendimento.
Ele respondeu: “mandjácu, bó bu crê manda li? Bá manda na bu terra.”
(mandjácu, tu queres mandar aqui? Vá mandar na sua terra).”
Angel contou que já foi atleta de futebol e já jogou em diversos clubes
da praia. Que os colegas o chamavam pelo nome próprio, mas que os fãs,
os próprios fãs, o chamavam de “amigo” e às vezes, “mandjácu”, e que isso

95 Big, 35 anos, nigeriano, vendedor no Sucupira, residente em Cabo Verde há mais de oito
anos, entrevista, janeiro de 2008.
96 Big, 35 anos, nigeriano, rabidanti no Sucupira, residente em Cabo Verde há mais de oito
anos, entrevista, janeiro de 2008.
97 Idem.
98 Idem.
99 Angel, 37 anos, nigeriano, rabidanti no Sucupira, residente em Cabo Verde há mais de
oito anos, entrevista, janeiro de 2008.

Processos identitários e a produção da etnicidade 169


o deixava triste e decepcionado porque sabiam o nome dele porque saía na
imprensa e mesmo assim não o respeitavam.
Quando souberam que entendia inglês (língua nativa deles) resolveram
repetir tudo o que já me haviam dito em crioulo, agora em inglês com
muito mais ênfase e emoção e se colocaram à disposição para contar mais
coisas quando desejasse.
Na cidade de Assomada, interior da ilha de Santiago, presenciei na via
pública, num dia de feira, um confl ito entre uma cabo-verdiana, rabidanti
e um mandjácu. A rabidanti estava passando com uma banheira de maçãs
em cima da cabeça pelo passeio (calçada) da rua e do lado oposto havia
uma casa onde estava um imigrante africano na altura do 2º andar que,
pela janela, falou alguma coisa para a rabidanti que não consegui escutar.
Ela respondeu: “Mandjácu di merda” e falou outras coisas mais que não
deu para entender. O mandjácu lá do alto falava e gesticulava rispidamen-
te, mas não dava para entender.
Embora a legislação eleitoral cabo-verdiana venha a garantir o direito
de voto nas eleições municipais a estrangeiros residentes com mais de três
anos (e se for originário de país lusófono o prazo cai para um ano) no país
e algumas outras condições, o que alcançaria muitos imigrantes africanos
no país, mas eles têm que lutar com os distribuidores de panfletos, folders
e matérias de divulgação e propaganda política para terem acesso aos mes-
mos. Estava no Sucupira da Praia, quando passou um distribuidor de ma-
terial de divulgação de um dos potenciais candidatos à eleição da Câmara
Municipal da Praia do mês de maio de 2008. Ele escolhia as pessoas para
oferecer esses materiais com base na aparência de ser cabo-verdiano; os
mandjácus estavam excluídos, até que um deles resolveu correr atrás des-
se distribuidor de panfletos e lhe arrebatou das mãos parte do material e
levou para os outros colegas reclamando: “vocês não dão-nos esses papéis
só porque dizem que mandjácu não vota, vocês são abusados”. Os colegas
tomaram os panfletos e começaram a examiná-los.

ROSE, (28 anos, moçambicano-cabo-verdiano – 20 anos em Cabo Ver-


de , filho de pai cabo-verdiano e mãe moçambicana, viveu em Moçambi-
que até os 11 anos).
— Você é policial da Polícia Nacional?
Entrevistado: Sim.
— Você é cabo-verdiano?

170 Eliane Cantarino O’Dwyer


E: Não. Eu sou moçambicano com nacionalidade cabo-verdiana. Sinto-
-me, sem dúvida alguma, mais moçambicano do que cabo-verdiano (ape-
sar de ter vivido 20 dos seus 28 anos em Cabo Verde).
— Estrangeiros (imigrantes da costa ocidental africana) são tratados
de forma diferente (discriminados) pela Polícia?
E: Não. Eu até os trato melhor do que os próprios cabo-verdianos por-
que eles não estão na terra deles. Mas eu não sei como comportam os meus
colegas. Não é que eu esteja querendo me defender, é assim que acontece,
porém, lá fora, na Praia (aqui na capital) inteira todos sabem que os mand-
jácus são discriminados, humilhados. Eu tento falar com as pessoas que
isso é errado mas nem sempre consigo sucesso. Quando chega um caso de
confl ito para mim entre um cabo-verdiano e um mandjácu, procuro ouvir
as duas partes e só depois é que tomo a decisão que considerar mais justa.
— Em situação de confl ito entre cabo-verdianos e imigrantes como é
que a Polícia reage?
E: Nós damos razão àquele que tiver direito sem protecionismos nem
privilégios, mas eu sei que nesse nosso Cabo Verde tudo pode acontecer:
privilégio de um ou outro lado.
— Em relação ao tratamento, como é que os cabo-verdianos lhes chamam?
E: Tem uns que chamam “amigo”, outros “mandjácus”. Eu não con-
cordo com isso. Eu mesmo já fui chamado assim. Vim pequeno, com oito
anos, para Cabo Verde (de Moçambique) e os meus vizinhos me chama-
vam de mandjácu … tem uns que aceitam mas tem outros que reagem
contra… aqui na Praia essa forma de tratar os imigrantes é generalizada.

Touré, da Guiné Conacri, um ano em Cabo Verde – Ele vive com a


esposa (de Serra Leoa) que está grávida.
— Como é que os cabo-verdianos chamam os imigrantes da costa oci-
dental africana?
Entrevistado: Eles (cabo-verdianos) nos chamam de mandjácus, mas
nós da Guiné Conacri somos Fula. Existem outros grupos (etnias) por
exemplo, mandinga e outros.
— Como é que você se sente (com essa forma de ser chamado)?
E: Para mim não tem problema ser chamado de mandjácu, mas prefi-
ro amigo. Eu gosto mais. Outros meus colegas quando são chamados de
mandjácus eles brigam, mas amigo eles não brigam.
— Já presenciou situações em que imigrantes foram chamados de
mandjácus e ficaram aborrecidos, chateados e até brigaram?

Processos identitários e a produção da etnicidade 171


E: Eu não brigo porque eu saí da Guiné Conacri para “busca vida” (à
procura de sobrevivência).
— Como é a relação com a Polícia e os fiscais (da Câmara Municipal
– Prefeitura)?
E: Nunca fui roubado. O fiscal quando passa e diz para não ficar aqui,
ele tem razão porque também em Dakar (Senegal) e Guiné Bissau é assim.
— Tem alguma dificuldade para conseguir moradia ou no relaciona-
mento com o senhorio?
E: A reclamação do senhorio em relação ao atraso no pagamento do
aluguel é normal, é igual a todo o lado.

Suleymane, 25 anos, Guiné Conacri – três anos em Cabo Verde.


Fez várias críticas à forma como são tratados os estrangeiros prove-
nientes da costa ocidental africana (mandjácus ou amigos).
Segundo ele, “a forma de tratamento é ofensiva e generalizada e muitos
(mandjácus) brigam por causa disso. Houve uma campanha de sensibili-
zação na TV que mostrou que se alguém chamar outrem de mandjácu e
for levado à Polícia (Delegacia) por causa disso, vai perder a razão. Então,
passaram a nos chamar mais de “amigos” do que “mandjácus”. Mas tem
cabo-verdiano que não nos chamam mandjácu na nossa frente, mas se
quiser dar um sinal de localização de algo dizem, por exemplo: vai levar-
-me isso lá na casa daquele mandjácu lá, ou então, quando perguntados
onde compraram algo respondem: foi (comprado) naquele mandjácu lá.
Na frente não falam (algumas vezes).
Quanto ao relacionamento com a Polícia, segundo ele, é justo: tratam a
todos (cabo-verdianos e imigrantes) da mesma forma, escuta os dois lados
e dá razão para quem tem razão.
As pessoas daqui dão preferência ao aluguel de casa aos cabo-verdianos
em detrimento dos imigrantes (mandjácus) e tem outras que nem alugam.
Por exemplo, se formos (você e eu) tentar alugar uma casa você pode con-
seguir e eu não. Eles (cabo-verdianos) perguntam: você é daqui (de Cabo
Verde)? Respondo que não, eles dizem que não têm nada para alugar. Na
(ilha da) Boavista a dificuldade para alugar é maior ainda. Se você atrasar
o pagamento de aluguel um dia, começam a ameaçar com a expulsão (des-
pejo), seguem as ofensas verbais – “mandjácu, si bu ca podi paga renda,
bai bu terra” (mandjácu, se não podes pagar a renda (aluguel) vá para sua
terra)”.

172 Eliane Cantarino O’Dwyer


As acusações mútuas e as relações com as instituições públicas e privadas
Os dados que apresentarei a seguir foram obtidos por intermédio de entre-
vistas aos mandjácus e sensatos e também por meio da recolha de material
em jornais.
Quem pratica delinquências na Ilha do Sal?

1ª ACUSAÇÃO: Mandjácus perturbam o sossego dos turistas.


Acusado: mandjácus.
Acusador: Joel, cabo-verdiano, segurança de um hotel na ilha do Sal.
— “Maltas” (pessoas) de rua, muitos mandjácus que ficam pressionan-
do os turistas para comprar seus produtos de artesanato (pinturas, cola-
res). Alguns turistas recusam, mas eles insistem. Às vezes, exigem dinheiro
do turista à força. (...) fazem isso quando não tem polícia (...) na frente da
polícia eles escondem e saem correndo porque a polícia lhes apreende as
mercadorias. (...) é proibido vender nas ruas porque existem lojas que pa-
gam impostos ao Estado (...) eles não pagam impostos, só precisam vender
suas mercadorias e guardar o dinheiro arrecadado nos bolsos. O nosso
dinheiro tem muito valor na terra deles, por isso é que fazem isso.100
A abordagem a turistas é incessante na ilha do Sal por parte dos imi-
grantes africanos. Eles chegam com ou sem mercadorias e começam a con-
versar, se não houver oposição, caminham ao lado do turista conversando,
gesticulando, mostrando direções.

2ª ACUSAÇÃO: mandjácus são desordeiros.


Acusado: mandjácus.
Acusador: policial, cabo-verdiano, na Ilha do Sal.
Um policial (na Ilha do Sal) acusa os senegaleses (mandjácus) de serem
os mais desordeiros e violadores da lei, especialmente, no que se refere às
vendas de mercadorias pelas ruas, mas que a Polícia não pode fazer muita
coisa porque só podem prender alguém em caso de flagrante delito ou me-
diante ordem judicial.

100 Joel, 34 anos, nascido e criado em Cabo Verde, fi lho de pais cabo-verdianos, segurança
de um hotel, entrevista na ilha do Sal, janeiro de 2008.

Processos identitários e a produção da etnicidade 173


3ª ACUSAÇÃO: Mandjácus são traficantes
de droga e falsificadores de dinheiro.
Acusado: mandjácus.
Acusador: Comandante de Polícia (Delegado de Polícia), Cidade da Praia,
cabo-verdiano.
A imprensa cabo-verdiana reporta a atuação das autoridades na cidade
da Praia:

“A polícia está ainda preocupada e atenta, refere o comandante da Acha-


da de Santo António, à questão da droga e falsificação de dinheiro, que
também tem aumentado nos últimos tempos, “por causa dos imigrantes
clandestinos provenientes da costa de África”101.

4ª ACUSAÇÃO: A polícia espancou


e fez pressão psicológica a mandjácu.
Acusada: Polícia de Santa Catarina, ilha de Santiago.
Acusador: Mandjácu, trabalhador de construção civil, guineense.
Segundo o jornal “a semana”, os imigrantes também acusam a polícia
de abusos e arbitrariedades: Um cidadão da Guiné-Bissau, imigrante em
Cabo Verde, acusa a Polícia de Santa Catarina de o ter agredido física e
moralmente. Honesto Hatna Tchuda, de 24 anos, afi rma ter sido espan-
cado por um dos agentes da Polícia de Assomada, a mando dum oficial
da Polícia Nacional com “pontapés nas pernas e inúmeras bastonadas nas
palmas das mãos”. conta que sofreu pressões psicológicas e o fato de ter
sido atirado “para dentro de uma das celas como se de um porco se tra-
tasse” são outras acusações feitas pelo guineense. Tudo isso, segundo o
imigrante, para o obrigar a assumir um crime que garante não ter come-
tido. Honesto Tchuda é acusado de ter comprado um telemóvel (celular)
roubado por uma menor, de nome Cuca. Tchuda conta, ainda, que depois
de algumas horas encarcerado foi libertado, mas sob a condição de pagar
12 contos (cerca de R$ 270,00) à proprietária do telemóvel. “Caso contrá-
rio seria torturado”, acrescenta, para realçar que não cedeu à “chantagem”
da Polícia. (...) diz-se “inconformado e profundamente magoado” com a
atitude das autoridades policiais já que acreditava estar num “país amigo

101 Jornal A semana, sexta-feira, 8 de junho de 2007, p. 14 (Os grifos são meus).

174 Eliane Cantarino O’Dwyer


da Guiné-Bissau”, onde os guineenses “deveriam receber a melhor atenção
possível, como os cabo-verdianos recebem na Guiné-Bissau”102 .

5ª ACUSAÇÃO: mandjácus entram em choque com a Polícia.


Acusador: Polícia da ilha do Sal.
Acusado: mandjácus, vendedores ambulantes, senegaleses. Senegaleses
revoltam-se com a polícia. Vendedores ambulantes, oriundos do Senegal
e residentes na ilha do Sal, entraram em choque com a polícia nessa ilha,
causando o maior reboliço público num final de semana. O balanço foi
uma viatura da POP (Polícia de Ordem Pública) com vidros partidos, a es-
quadra (Delegacia de Polícia) apedrejada, e 28 imigrantes detidos. O caso
suscitou preocupações e chamou atenção para o problema da livre circula-
ção de pessoas e bens, no espaço Comunidade Econômica dos Estados da
África Ocidental (CEDEAO), em Cabo Verde103.
A história começou quando um guarda hoteleiro chamou a polícia para
denunciar a venda irregular de mercadorias no hotel. Um policial atendeu
e foi até o local e apreendeu as mercadorias do vendedor ambulante sene-
galês que estava vendendo nas imediações do hotel. Este, inconformado,
chamou outros (oito) seus colegas que foram até o local e agrediram o
guarda em atitude de revanche. A polícia voltou para prender os agresso-
res do guarda. Um deles apedrejou o policial e fez um gesto obsceno com
os braços e desatou a correr, outros foram colocados na viatura – “Eles
apareciam em cada esquina, se agruparam aqui na Rua da Igreja, a rua
principal, munidos de pedras. Eram homens e mulheres e foram em di-
reção à esquadra, apedrejaram a esquadra e a viatura policial”, segundo
uma testemunha104.
As autoridades reagiram contra a atitude desses imigrantes: o presi-
dente da Câmara Municipal do Sal (prefeito) Jorge Figueiredo critica a
forma como vem decorrendo a livre circulação de pessoas e bens, defende
que medidas devem ser tomadas no sentido de se controlar tanto a entrada
de pessoas e bens nos portos e aeroportos do país, como nas ruas do país
quanto à razão da estada, meios de subsistência etc. Esta não é a primeira
vez que os imigrantes entram em choque com as autoridades, “num total
desrespeito à instituição policial e às leis vigentes no país”. E, se necessá-

102 Jornal A semana, sexta-feira, 13 de outubro de 2006, p. 11, n. 773. O comandante da


Polícia, desmente as acusações do imigrante no mesmo jornal.
103 Jornal A semana, sexta-feira, 15 de outubro de 2004 p. 8-9 n. 683.
104 Idem.

Processos identitários e a produção da etnicidade 175


rio, os mecanismos de extradição devem ser acionados em relação a todos
aqueles que se encontram de forma irregular no país105.
O ministro da Administração Interna, Júlio Correa, disse à imprensa
que: “Cabo Verde não pode compactuar com fenômenos que perturbem
a ordem interna”. – E quanto ao livre trânsito, a nível da CPLP106 e da
CEDEAO, pelos cidadãos desses espaços geográficos? Responde que serão
respeitados, normalmente, os compromissos de Cabo Verde a este nível.
Os acordos internacionais a esse nível não põem em crise a legislação na-
cional, que será rigorosamente aplicada de ora em diante. – Perguntado
sobre em que pé se encontravam o processo dos envolvidos no motim de
Santa Maria, no Sal? Esclarece que os que se encontravam ilegalmente no
território nacional, naturalmente foram expulsos do país. Os que estão em
situação normal respondem perante a justiça nos temos da legislação cabo-
-verdiana. Aqui a tolerância é zero. Este é um Estado aberto e de direito
e as leis são para cumprir. – Indagado sobre Como estão sendo acompa-
nhados e tratados os casos de cabo-verdianos repatriados do estrangeiro,
que vêm aumentando consideravelmente no país? – “Tenta desdramatizar
a situação dizendo que hoje, mais do que nunca, estamos a acompanhar
de perto esta questão. Mas também aqui não vale a pena dramatizar. Es-
tamos a intensificar a colaboração policial que temos com os países im-
plicados, o que nos permite, hoje, ter uma visão clara desta problemática.
As instituições estão a trabalhar nos planos de reintegração e reinserção
social e faz-se o competente acompanhamento”107.
Num segundo episódio de confronto entre os mandjácus e autoridades
policiais cabo-verdianas ocorrido agora na Praia, ilha de Santiago, repor-
tado pela mídia, as autoridades reagiram com mais vigor. Pode-se notar
pelo título da matéria de reportagem e o aparato policial empregado que
ilustram o confronto: “GOVERNO REAGE À MANIFESTAÇÃO DOS
GUINEENSES E AVISA: “Não vamos tolerar desacato às autoridades”,
ministro da Adm. Interna, Júlio Correa”108.

105 Jornal A semana, sexta-feira, 15 de outubro de 2004 p. 9 n. 683.


106 CPLP (Comunidade do Países de Língua Oficial Portuguesa).
107 Cf. Jornal A semana, sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005, n. 702, 1ª parte p. 2-4.
108 Cf. Jornal A semana, sexta-feira, 18 de março de 2005, n. 705, 2ª parte, p. 7.

176 Eliane Cantarino O’Dwyer


Figura 4. Foto da reportagem do jornal A semana 109: confronto polícias e mandjácus.

O executivo cabo-verdiano promete punir e repatriar os emigrantes


guineenses que se manifestaram de forma ilegal, na Praia, e apedrejaram o
Palácio do governo. Três dos envolvidos no motim já estão presos e deviam
ser expulsos do país até essa data. Tanto o primeiro-ministro como o mi-
nistro da Administração Interna avisam que em Cabo Verde as instituições
funcionam e a cidade da Praia não iria aceitar o desacato às autoridades e
incumprimento das leis nacionais por quem quer que fosse110.
A resposta envolveu agentes políticos do mais alto nível (ministro e
primeiro-ministro), desta vez a reação mais forte do governo sobre o refe-
rido motim surgiu desde S. Vicente, através do primeiro-ministro, que se
encontrava em vista de trabalho àquela ilha. Em declaração à imprensa,
José Maria Neves, adverte os manifestantes da Guiné- Bissau que em Cabo
Verde as instituições funcionam e que o presumível assassino (de um dos
guineenses que seria o móbil da manifestação) já tinha sido preso e entre-
gue à justiça, pelo que o governo iria ser fi rme com aqueles que realizassem
a manifestação ilegal, desrespeitaram as leis cabo-verdianas e perturbaram
a ordem pública na Cidade da Praia. O chefe do executivo anunciou que,
na sequência do acorrido, a Cidade da Praia puniria e repatriaria todos
aqueles que prevaricaram face à lei seriam “necessariamente punidos e
os ilegais serão imediatamente repatriados do país. Em Cabo Verde há
ordem, há tolerância, há democracia, mas é preciso que todos respeitem
escrupulosamente as instituições da República”. O ministro da Adminis-

109 Idem.
110 Idem.

Processos identitários e a produção da etnicidade 177


tração Interna garante que três dos envolvidos na manifestação já estavam
presos e que deveriam ser expulsos de Cabo Verde. O ministro acrescenta
que a Polícia iria continuar com as rusgas para identificar os outros cabe-
cilhas e ilegais que participariam no mencionado motim. Esse dirigente
lembra que Cabo Verde é um Estado de direito democrático, onde todas
as instituições trabalham normalmente. “Estando o homicida preso, não
percebo porquê a realização de uma manifestação de forma ilegal, que
perturbou a ordem pública na cidade da Praia e em Cabo Verde”. O gover-
nante garante que, logo depois da manifestação, se reuniu com as chefias
da Polícia da Ordem Pública e deu instruções claras para serem cumpridas.
“Dei instruções claras para que os responsáveis pela realização da mani-
festação sejam punidos exemplarmente”. E se as pessoas que cometeram o
crime estiverem ilegais seriam imediatamente expulsas do país, lembra que
“Cabo Verde é um Estado de direito democrático e não vamos tolerar a
perturbação da ordem pública”, acrescentado que o governo está a tomar
um conjunto de medidas com vista a reforçar a segurança no país e na
capital, em particular.

(…) o ministro da Administração Interna realçou que os emigrantes da


Guiné-Bissau radicados no território nacional são cidadãos estrangeiros
que trabalham com honestidade em Cabo Verde.111

Pelos relatos apresentados e notícias de jornal, posso concluir que os


mandjácus, termo utilizado pelos cabo-verdianos nos contextos de intera-
ção com migrantes estrangeiros, enfrentam situações sociais dramáticas
no relacionamento com instituições públicas do estado e se sentem discri-
minados por indivíduos e grupos como vítimas de racismo. Nestes casos,
o uso dos etnômios mandjácu ou amigo para designá-los representam um
estigma para eles.

Explicação sobre a discriminação


A maioria dos cabo-verdianos não tem consciência do desgosto que o tra-
tamento discriminatório provoca nos imigrantes africanos e, por isso, nem
pensam em motivos que levariam a esse tipo de tratamento. Para esse gru-
po, esse padrão de relacionamento já se encontra tão naturalizado que
nem provoca estranhamento. Mas tem um outro grupo menor que percebe

111 Idem.

178 Eliane Cantarino O’Dwyer


claramente o tratamento discriminatório dispensado a esses imigrantes e
apresenta explicações.
“Fomos programados a sentirmos superiores” (estudante de Psicologia
Uni Piaget)112 . Esse estudante está se referindo ao processo de colonização
portuguesa que incutia nos cabo-verdianos a ideia de que éramos superio-
res aos outros africanos, como instrumento ideológico de manipulação e
dominação política, uma vez, assim pensando, os cabo-verdianos passa-
riam a ser mais “colaborativos” com os colonizadores portugueses nos
seus empreendimentos exploratórios nas outras colônias, servindo como
auxiliares do colonizador embora sendo colonizado.
A perspectiva da Misá, uma observadora que apresenta um duplo olhar
sobre a realidade cabo-verdiana pela sua vivência enquanto emigrante e
atualmente residente em Cabo Verde aponta a deficiência na comunicação
ou a sua manipulação pela escolha seletiva de temas e fatos como principal
fator de desconhecimento e deturpação da realidade africana que leva os
cabo-verdianos a se demarcarem do continente. Diz que conhece o conti-
nente europeu e o africano e acha que há muita falta de informação em
Cabo Verde em relação aos países do continente africano. Segundo ela,
o continente africano para os cabo-verdianos se resume a Guiné Bissau,
Angola, Moçambique (países lusófonos). Já que existe uma separação lin-
guística entre Cabo Verde outros antigos colonos (dos países do continente
africano), os ingleses, franceses, e portugueses cada um fica falando só
com as respectivas ex-colônias. Considera essa situação uma pena porque,
um continente de 57 países com diversidade racial, não se disponibiliza in-
formação. Critica a mídia dizendo que o que aparece na imprensa é distan-
te de ser a imagem do continente africano “com todo o seu valor, com toda
a sua riqueza cultural, com todo o seu bem-estar na vida comunitária”.
Argumenta que quando se fala de um país de 30 milhões de habitantes
e se focaliza informações daquela terra durante anos só em cima de dois
milhões de habitantes, não se mostra como vivem os outros 28 milhões,
então, esse país fica estigmatizado em Cabo Verde como se existissem lá
apenas pobres propensos a guerras e lutas étnicas e tribais. Lamenta que
é uma pena que se focalize em uma etnia e se esqueça as outras 50 ou 60
e se desconsidere toda essa riqueza cultural. Sugere que os cabo-verdianos
deveriam procurar formas de melhorar as nossas comunicações não só
com o continente africano, mas também com o europeu, asiático (...) e o

112 Jorge, Entrevista, janeiro 2008.

Processos identitários e a produção da etnicidade 179


americano. E faz votos de que a nova geração seja um cultivador de cultu-
ras e não consumidores de materiais113.
Ao longo da história de Cabo Verde, as elites governantes coloniais
portuguesas criaram e alimentaram um tipo de relação complexa entre
os cabo-verdianos e os outros colonizados africanos. Os cabo-verdianos
foram usados tanto como escravos quanto como intermediários dos por-
tugueses no aparelho colonial nas diferentes colônias africanas em África.
Em Cabo Verde, a mestiçagem racial (africanos e europeus) foi consi-
derada maior comparativamente às outras colônias africanas; o nível de
assimilação cultural foi considerado também maior; o nível educacional
alcançado, apesar de toda a penúria existente, foi dito igualmente maior e
teve como uma das consequências, segundo essa perspectiva do senso co-
mum savant, o envio de cabo-verdianos para ocuparem cargos de chefias
nas repartições públicas das outras colônias.
Em 1892, fora implementada uma lei designada de Estatuto do Indi-
genato em todas as colônias portuguesas em África com exceção de Cabo
Verde. Tal lei estabelecia diferenças nos direitos e deveres de portugueses e
africanos residentes nas colônias. Em Cabo Verde, em tese, os dois seriam
tratados igualmente pela lei.
Essa forma dúbia de tratar os cabo-verdianos comparativamente aos
outros africanos começa na perspectiva dos colonizadores, pelo elemento
racial e se estende para outros campos. Veja a perspectiva portuguesa so-
bre os casamentos inter-raciais, em Cabo Verde, numa publicação de 1916:

“a mistura d’esses elementos foi o traço de união de duas raças. Os bran-


cos cruzaram-se com os africanos e de seleção em seleção se foi favore-
cendo o crusamento dos menos escuros com os mais claros, até que pela
sucessão das gerações se aproximaram do typo branco. Os caboverdeanos
têm, em geral, traços physionomicos regulares, nariz direito e saliente, ca-
belos ligeiramente crespos e o ângulo facial muito aberto. Os homens são
altos, as mulheres são elegantes, bonitas e de uma significativa morbidez
no olhar. (…) Segundo as raças, podemos contar 4.799 brancos, 51.509
pretos e 87.621 mixtos (mestiços) que representam a influência do elemen-
to colonisador europeu sobre o africano, constituindo a grande maioria
da população caboverdeana, com as características acima apontadas”.114

113 Misá, 41 anos, nascida em Cabo Verde, emigrou para a Suíça com 11 anos e regressou a Cabo
Verde com 30 anos e reside aí desde então, filha de pais cabo-verdianos, adquiriu a nacionalidade
suíça por adoção, artista plástica, entrevistada na Cidade da Praia, fevereiro de 2008.
114 VASCONCELLOS, 1916, p. 99-100.

180 Eliane Cantarino O’Dwyer


Além do aspecto racial, na perspectiva portuguesa, estaríamos mais
próximos dos europeus culturalmente do que dos africanos. Num con-
texto de administração colonial em que uma das marcas dominantes seja
a diferenciação hierarquizada por raças, culturas, esse tipo de discurso
da mestiçagem e da “ocidentalização” pode ser incorporado pelos nativos
cabo-verdianos como significando ser também superior aos africanos. Um
jornal português de 1975 reporta o seguinte,

(…) foi surgindo ali (em Cabo Verde) uma cultura sui-generis no Mundo,
marcadamente lusíada. Com características muito próximas (a literatura
e a música), este povo constituído na sua grande maioria por mulatos,
pouco reteve da África, nos seus hábitos e costumes, individualizou-se
numa amálgama de influências, cujas origens os especialistas localizam
no continente europeu, nas Américas e na Ásia, havendo mesmo que as
tenha detectado ali na Oceania” (Diário de Lisboa).

Considerando que Cabo Verde possa ser classificado como uma socie-
dade plural, segundo Hutchinson e Smith (1996, p. 238), o pluralismo é
uma condição na qual os membros de uma mesma sociedade são inteira-
mente distinguidos por diferenças fundamentais nas suas práticas institu-
cionais. Tais diferenças não são distribuídas aleatoriamente. Normalmente
se agrupam e estabelecem divisões sociais profundas entre os distintos gru-
pos. A prevalência de tais dissociações entre os membros de coletividades
institucionalizadas dentro de uma única sociedade constitui o pluralismo.
Esse pluralismo simultaneamente conota uma estrutura social caracteriza-
da por descontinuidades fundamentais e clivagens e é baseado num com-
plexo cultural sistematizado.
O pluriculturalismo depende de um esforço tremendo para “entender
a diversidade cultural tanto no país no qual vivemos como no mundo em
que vivemos” (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 14-5).
O fato é que a maioria das nações do mundo já está ficando pluriétni-
ca. O que distingue uma das outras é que algumas reconhecem esse fato
e tenta incorporá-lo na cultura e nas instituições nacionais, ao passo que
outras tentam negar a pluriculturalidade e suprimi-la. Estas últimas estão
então, na opinião do autor, a fazer o que os psicanalistas chamam de “um
estado de negação” e vão descobrir que “é impossível funcionar no mundo
moderno sem ser afetado pela globalização e pelas migrações populacio-
nais” (MAYBURY-LEWIS,1984, p. 17).

Processos identitários e a produção da etnicidade 181


As divisões básicas dentro dessas sociedades coincidem normalmente
com as linhas de clivagens institucionais reforçadas e geralmente converti-
das em profundas desigualdades na vida política e social. O estabelecimen-
to e manutenção dessas divisões corporativas e desigualdades são então
identificadas com a preservação da ordem e estabilidade social. Qualquer
modificação na prática e nas relações sociais entre essas divisões corpora-
tivas envolve mudanças correspondentes nas condições da estrutura social
(HUTCHINSON E SMITH, 1996, p. 238).
Para analisar as condições políticas e institucionais do pluralismo é
primeiramente necessário distinguir a sua forma plural e as respectivas
alternativas e indicar como é que tais conjuntos de variáveis governam a
sua significância estrutural. Muitas sociedades, incluindo as mais altamen-
te desenvolvidas e industrializadas parecem se localizar entre dois extre-
mos: a convivência com instituições partilhadas pela maioria da popula-
ção e um nível secundário de diferenciações, por exemplo, ocupacionais,
política, religiosa, étnica predominando nessas subestruturas. Sociedades
com essas combinações de afi liações institucionais exclusivas e comuns
são propriamente distinguidas por suas heterogeneidades transpassadas
pelas condições de diferenciações e pluralismo já descritos. Esses tipos de
sociedades diferem significativamente na estrutura, complexidade, modos
de integração e nas suas capacidades de autogeração de desenvolvimento
(idem, 239).
Na sua fase colonial, todos os recentes estados africanos independentes
foram sociedades plurais. Apesar da independência, muitas dessas ex-co-
lônias retiveram seus caracteres plurais com alterações marginais. Conse-
quentemente, pluralismo e colonialismo não são homólogos. Colonialismo
é simplesmente um modo de pluralismo caracteristicamente instituído na
forma de uma sociedade plural (idem, 240).
Um dos principais problemas incidentes sobre as nações recém-desco-
lonizadas consiste em efetuar a transição de um pluralismo para a hetero-
geneidade requerida para a transformação numa unidade nacional coesiva
(idem, 240).
A sociedade é uma estrutura de relações através da qual os membros da
população estão inteiramente organizados como ocupantes articulados de
uma dada área. Mudanças na população ou na sua composição ou no terri-
tório não constituem diretamente mudanças substantivas no sistema social
embora possam afetar a sociedade de diferentes maneiras. O conjunto de
condições que governam as relações opcionais em ambos os níveis indivi-
dual e coletivo são institucionalmente prescritos e regulados (idem, 240-1).

182 Eliane Cantarino O’Dwyer


Sintetizando, pode-se dizer que o pluriculturalismo não é o problema
que se pensava tradicionalmente, não desmobiliza o estado, nem desnor-
teia o indivíduo. Ao mesmo tempo não é uma solução fácil. Nesse ponto
é parecido com a democracia que é um sistema frágil e pouco eficaz, mas
que fazemos questão de escolher não porque é eficiente mas porque o acha-
mos moralmente mais preferível (MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 18).
Maurícias é frequentemente citada como uma história de sucesso mul-
tiétnico que evitou habilmente a repressão de minorias e criou uma cultura
política baseada na promoção da importância da diversidade étnica e no
equilíbrio do poder. A sua Constituição reconhece a existência de quatro
grupos étnicos, a saber, hindus, muçulmanos, sino-maurício e a popula-
ção geral; a população pratica as religiões hinduísta, islâmica, budista e
católica, falam cinco línguas e as diferentes comunidades étnicas celebram
as suas festas folclóricas e todos têm a representação política parlamentar
(ERIKSEN, 1994, p. 552-3).
No lado oposto desta perspectiva mauriciana, hoje em dia, depois dos
genocídios em várias regiões do mundo, quando a “limpeza étnica” se
tornou uma política usual, verifica-se uma espécie de pânico entre os es-
tudiosos. Estes escrevem em jornais, revistas advertindo que o mundo está
voltando ao “tribalismo”, isto é ao pesadelo de Hobbes. Só que (numa
visão hobbesiana atual) não voltamos para uma guerra de todos contra
todos, mas sim “uma guerra de todos os grupos étnicos contra os outros”
(MAYBURY-LEWIS, 1984, p. 14-5).
Para esse autor, contudo, a etnicidade é uma espécie de sentimento
latente e difícil de capturar. Cada indivíduo no mundo possuiria as quali-
dades latentes para ser membro de um grupo étnico por falar determinada
língua, ter certa cor da pele, residir em determinado lugar, ter uma inser-
ção no fluxo dos acontecimentos que denominamos história. Porém, essa
potencialidade só se tornaria características étnicas quando algumas entre
elas sejam escolhidas e apontadas como defi nidoras de um grupo étnico.
Portanto, não se trata de uma condição primordial, ela é maleável, é algo
constantemente negociado e construído: “a lição dos confl itos e genocí-
dios na antiga Iugoslávia, Ruanda, Burundi e na ex-União Soviética é que
foram insuflados por pessoas que podem ser chamadas de empresários
étnicos (idem, 14-15).
Da mesma forma, uma análise histórica mostra que os tutsi e os hutus
de Ruanda e Burundi não foram grupos distintos e inimigos. Muito pelo
contrário, foram os colonialistas europeus alemães e belgas que inventa-

Processos identitários e a produção da etnicidade 183


ram a história da diferença racial entre os tutsis altos e de pele clara e os
hutus baixos e de pele escura (idem).
Amselle (2001, cap. VII) faz um inventário dos principais genocídios
verificados do séc. XX a esta parte: dos horrores nazistas em Auschwitz
que dizimou milhões de judeus durante o período da Segunda Grande
Guerra Mundial, do extermínio de armênios durante a Primeira Gran-
de Guerra Mundial pelo governo turco, o assassinato de mais de 20%
da população cambodjana pelo regime de Pol Pot entre 1975 a 1979, os
genocídios africanos contemporâneos em Ruanda, Burundi e Congo, as
“limpezas étnicas” na ex-Iugoslávia para mostrar o quanto importa a ro-
tulação identitária nas relações interétnicas: o genocídio empreendido con-
tra grupos nacionais embora as ações sejam direcionadas aos indivíduos
mas “não em razão de suas qualidades individuais, mas sim porque são
membros do grupo nacional” (idem, 211).
A situação dos mandjácus em Cabo Verde pode ser vista também em
comparação a de outros grupos nos contextos atrás referenciados.

Conclusão
As relações entre cabo-verdianos e mandjácus são caracterizadas na discri-
minação e preconceito racial da parte dos cabo-verdianos em relação aos
mandjácus. Estes imigrantes africanos se dedicam majoritariamente a ati-
vidades de comércio informal ou na indústria de construção civil. Alguns
veem Cabo Verde como se fosse uma “porta” de entrada para a Europa
que seria uma espécie de el dourado. Dizem que nos seus países é difícil,
quase impossível conseguir visto de entrada para qualquer país europeu
devido a redes mafiosas e de corrupção que cercam as embaixadas aí nes-
ses países, e que a solução é Cabo Verde como ponto de passagem ou de
residência para trabalhar.
A utilização do etnônimo mandjácu é considerada um estigma para
indivíduos e grupos assim designados. Trata-se de uma identidade “oni-
presente” que não pode ser suprimida por defi nições mais favoráveis nos
contextos de interação. No entanto, os emigrantes cabo-verdianos depor-
tados da diáspora também dizem sofrer do mesmo tipo de problema de
discriminação.

184 Eliane Cantarino O’Dwyer


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186 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 6

Erepecuru-Oriximiná: uma rota em movimento


Andreia Franco Luz

Oriximiná é o nome de um dos 143 municípios pertencentes ao Estado do


Pará que ocupa 26% da área correspondente à região amazônica. O muni-
cípio de Oriximiná está situado na região do chamado Baixo Amazonas,
limitado ao norte pela Guiana Francesa e o Suriname, a leste pelo municí-
pio de Óbidos, ao sul pelos municípios de Faro e Juriti, e a oeste também
pelo município de Faro e o Estado de Roraima. O município apresenta
uma quantidade grande de rios, lagos, ilhas e cachoeiras, com destaque
para o rio Trombetas115 – nasce ao norte do município, corre para o sul,
inclina-se para sudeste na direção do município de Óbidos e vai desaguar
no rio Amazonas –, que domina a rede hidrográfica local. Os afluentes do
rio Trombetas são os rios Turuna, Inambu (ou Cachorro) e o rio Mapuera,
na margem direita; e o rio Erepecuru (ou Cuminá ou Paru do Oeste), na
margem esquerda, que é o seu afluente mais importante e serve de limite
natural entre os municípios de Oriximiná e Óbidos.
A cidade de Oriximiná funciona como um núcleo urbano localizado no
Baixo Amazônia, lugar de vários encontros de segmentos sociais distintos.
Até o fim da década de 1980, o município de Oriximiná estava voltado
economicamente para o extrativismo vegetal da castanha-do-Pará, e o mu-
nicípio vizinho, Óbidos, era quem detinha uma certa hegemonia no co-
mércio deste produto. Com o advento da exploração da bauxita no vale do
Trombetas, feita através da empresa Mineração Rio do Norte (MRN)116 –

115 A cidade de Oriximiná está situada à margem esquerda do rio Trombetas, afluente do
rio Amazonas, a uma distância de 880 km da cidade de Belém, capital do Estado do Pará, e
a 400 km de distância da cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas.
116 A Mineração Rio do Norte (MRN) é uma associação de empresas que envolve capitais
nacionais e estrangeiros oriundos da Companhia Vale do Rio Doce e Companhia Brasileira
de Alumínio (Brasil), da Alcan e da Alcoa (Canadá), da Billiton (Holanda), da Reynolds
(USA), e da Norsk Hydro (Noruega). Cada empresa, durante a vigência da joint-venture, fica
responsável pelo desenvolvimento e execução dos projetos, que tem como atividade econômi-
ca principal a extração da bauxita no vale do Trombetas.

Processos identitários e a produção da etnicidade 187


que se instalou em Porto Trombetas117, distrito do referido município – essa
nova atividade econômica estimulou um crescimento no desenvolvimento
comercial, assim como proporcionou um aumento do número de habitantes
no município. De forma direta ou indiretamente, a MRN incrementou um
deslocamento humano entre as cidades vizinhas e também entre as áreas
rurais e a cidade. Houve, também, um aumento dos recursos econômicos
no município de Oriximiná provenientes do repasse da alíquota da Com-
pensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), pois conforme pre-
visto pela Constituição Federal de 1988, o município de Oriximiná tem
direito a arrecadar 3% sobre o valor do faturamento líquido da venda do
produto mineral118.
Uma das consequências trazidas pelo aumento da extração e beneficia-
mento da bauxita no município foi a intensificação de um fluxo migratório
de pessoas em direção à cidade de Oriximiná, formado, principalmente,
por trabalhadores da MRN e suas famílias que vinham de áreas ribeiri-
nhas situadas dentro do próprio município, de municípios próximos, de
outras cidades do Pará, de alguns estados do Nordeste e Centro-Oeste.
Cabe ressaltar, no entanto que o porto da cidade de Oriximiná parece ter
funcionado sempre como um local “chave” para as transações sociais e
econômicas da região do Baixo Amazonas. Este porto pode ser conside-
rado como um dos principais fatores responsáveis pela dinâmica da vida
urbana, pois é a navegação fluvial que movimenta as entradas e as saídas
das pessoas e dos recursos econômicos na cidade. Barcos de pequeno e
médio porte atravessam, diariamente, o rio Trombetas lotados de pas-
sageiros e de mercadorias que são comercializadas na cidade, como, por
exemplo, a farinha de mandioca, a banana, a castanha-do-pará entre os
demais produtos agrícolas. Além dessas embarcações, também é frequente
ver deslizar pelas águas desse rio alguns navios que fazem o carregamento
de bauxita proveniente da empresa de Mineração Rio do Norte, em Porto
Trombetas.
É possível observar uma diversidade de moradores e frequentadores da
cidade de Oriximiná tais como, alguns membros das chamadas comunida-
des “remanescentes de quilombos” que vivem ao longo dos rios Trombetas

117 Porto Trombetas é uma cidade que está situada na circunscrição do município de Orixi-
miná – fica a uma distância de cerca de 80 km da cidade de Oriximiná – e é nela que funcio-
na a Mineração Rio do Norte (MRN).
118 Dessa arrecadação, 65% deve ser repassada para a administração local e, de acordo com
a legislação constitucional, os recursos provenientes deste repasse, os royalties devidos pela
MRN, só podem ser utilizados em projetos que direta ou indiretamente estejam direcionados
ao bem-estar da população local.

188 Eliane Cantarino O’Dwyer


e Erepecuru; os trabalhadores agrícolas ribeirinhos do Médio Trombetas,
do rio Nhamundá e do Igarapé dos Currais; alguns funcionários da empre-
sa Mineração Rio do Norte, indústria de extração de bauxita localizada
em Porto Trombetas, no município de Oriximiná; pequenos produtores
que vivem ao longo das margens da estrada do BEC que une os municípios
de Oriximiná e Óbidos; e os índios do Mapuera, os wai-wai, que vivem
no norte do município de Oriximiná, na fronteira com o Suriname, entre
outros atores sociais.
Neste cenário urbano, onde a obtenção de trabalho e de recursos ma-
teriais se torna um fator decisivo para a sobrevivência das pessoas, a coe-
xistência de padrões culturais em um ambiente de múltiplos eventos e en-
contros sociais se torna um fator determinante na organização do espaço
físico da cidade de Oriximiná. O modo de interação entre as pessoas nesta
cidade, por vezes, manifesta-se pela busca de aproximação por semelhança
ou familiaridade cultural de seus integrantes. Assim, os membros perten-
centes a um determinado grupo étnico, quando se deslocam para a cidade
de Oriximiná, mesmo que temporariamente, reconhecem os seus pares
por meio da contrastividade com os demais indivíduos. Desses diferentes
integrantes de grupos étnicos e sociais que habitam e/ou se movimentam
pela cidade de Oriximiná, são os representantes do chamado grupo étnico
“remanescentes de quilombos” do alto do rio Erepecuru que constituem o
interesse da pesquisa de campo etnográfica por mim realizada durante o
curso de mestrado em Antropologia119.
Este grupo étnico considerado de exclusividade negra, que atualmente
se autoidentifica por meio da categoria jurídica “remanescente de quilom-
bo”, vive basicamente do extrativismo vegetal (em especial, o da coleta sa-
zonal da castanha-do-pará), do cultivo do roçado, da pesca e da caça, es-
tabelece uma rede de relações familiares que se estende e se intercomunica
em áreas próximas, identificadas por denominações toponímicas distintas,
tais como Jauari, Espírito Santo e Cachoeira Pancada, todas localizadas no
alto do rio Erepecuru, afluente do rio Trombetas.
O modo de ocupação do território feito por essa população revela o
uso comum da terra, onde os espaços destinados à moradia, à conservação
ambiental, à exploração econômica, e às atividades voltadas para as práti-

119 A interação social entre alguns membros do chamado grupo de “remanescentes de qui-
lombos” do alto do rio Erepecuru na cidade de Oriximiná, a partir de uma situação etno-
gráfica, serviu de base para a elaboração da dissertação “Do alto do rio Erepecuru à cidade
de Oriximiná: A constituição de um espaço social em um núcleo urbano da Amazônia”,
apresentada em março de 2002, na Universidade Federal Fluminense.

Processos identitários e a produção da etnicidade 189


cas religiosas e de lazer são compartilhados por todos que ali habitam e se
consideram ligados entre si através de laços de parentesco referidos a uma
ancestralidade comum. Lembranças de histórias vividas por seus antepas-
sados em antigos “mocambos” ou “quilombos”120, constituem a origem
da crença subjetiva de possuírem antepassados comuns, de se sentirem em
“comunhão étnica” (WEBER, 2000, p. 270). A experiência etnográfica
vivenciada por O’Dwyer121, em 1993, ilustra bem essa memória social que
se refere a uma descendência genealógica comum a partir de antigos mora-
dores de mocambos existentes na região dos rios Trombetas e Erepecuru-
Cuminá. Baseada nos relatórios de viagem dos Coudreau, casal francês
que explorou durante os anos de 1898 e 1900 as regiões encachoeiradas
do rio Erepecuru, O’Dwyer e alguns moradores das localidades do Jauari,
do Espírito Santo e da Cachoeira Pancada, situadas nas áreas próximas
ao alto do rio Erepecuru, como resultado da relação de pequisa refazem
o trajeto outrora percorrido por aqueles europeus. Durante o percurso, à
medida que lia as anotações feitas pelos Coudreau aos seus acompanhan-
tes de expedição, estes, pouco a pouco, correlacionavam os relatos men-
cionados às histórias contadas e vividas por seus antepassados. Assim, a
memória social, os laços de consanguinidade e de parentesco, conjugados
a uma identificação com o território ocupado, entendido como um espaço
que possibilita a preservação e reprodução do grupo, e as experiências por
eles compartilhadas socialmente estabelecem critérios de pertencimento
étnico apropriados na atualidade e expressos no espaço público pela ca-
tegoria jurídica “remanescentes de quilombos” do alto do rio Erepecuru.
Além de ser uma fonte de recurso natural e simbólica para esse grupo
de “negros ribeirinhos” reconhecidos atualmente como “remanescentes de
quilombos”, o rio Trombetas e seus afluentes servem também como prin-
cipal meio de transporte para conduzir por meio de seus cursos navegáveis

120 A história da ocupação por escravos em fuga das áreas banhadas pelo rio Trombetas e
seus afluentes é descrita por escritores e viajantes desde o início do século XIX, como a rela-
tada em “O Negro no Pará”, cujo autor, Vicente Salles, comenta sobre “os negros dispersos,
vivendo em palhoças humildes, conhecidos sob a designação de mocambeiros, constituem
porém a grande maioria da população rural do Trombetas e seus afluentes” (SALLES, 1971,
p. 232). Tavares Bastos, em 1866, também observava que “perto de Óbidos entra no Amazo-
nas o rio Trombetas; nas suas florestas existem muitas centenas de escravos fugidos. Os mo-
cambos do Trombetas são diversos; dizem que todos contêm, com os criminosos e desertores
foragidos, mais de 2.000 almas” (BASTOS, 1866, p. 201) e ainda arrisca uma projeção, “os
mocambos tem sido perseguidos periodicamente, mas nunca destruídos. Eu acredito que elles
hão de prosperar e augmentar” (1866, p. 202).
121 O’DWYER, Eliane Cantarino. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá. In:
Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002.

190 Eliane Cantarino O’Dwyer


esses moradores. Convém destacar que este trajeto fluvial entre o alto do
rio Erepecuru e a cidade de Oriximiná é parte integrante da dinâmica do ir
e vir realizada pelos moradores do alto do rio Erepecuru, como se constata
pelas afi rmações do tipo “baixava uma pessoa de lá pra cá” ou “baixava
pra fazer compra aqui”. O emprego do verbo “baixar” que sobressai nas
conversas sobre os deslocamentos entre o alto do rio Erepecuru e a cidade
de Oriximiná é, justamente, utilizado na acepção de proporcionar uma
ideia da movimentação deles através dos cursos dos rios, o que pode ser
constatado pelos exemplos das falas acima transcritas onde os advérbios
de lugar “lá” e “cá” reforçam a descrição de uma descida de um ponto
mais elevado para outro mais plano, a saber: “lá” é a região do alto do rio
Erepecuru e “cá” é a foz do rio Trombetas, em especial, o porto da cidade
de Oriximiná.
O aumento do fluxo migratório em direção à cidade de Oriximiná de-
sencadeou um processo de ampliação de seus bairros que, pouco a pouco,
foram sendo povoados por uma quantidade de pessoas provenientes de
diferentes locais – vinham de áreas ribeirinhas situadas dentro do próprio
município, de municípios próximos, de outras cidades do Pará, de alguns
estados do Nordeste e Centro-Oeste – entre elas, alguns membros dos gru-
pos dos chamados “remanescentes de quilombos” do alto do rio Erepecu-
ru, mais especificamente aqueles habitantes das localidades do Jauari e da
Cachoeira Pancada, que de frequentadores esporádicos, alguns deles, se
tornaram moradores efetivos da cidade de Oriximiná.
Pelo traçado arquitetônico urbano de Oriximiná – uma área de 1.008
ha composta por várias e extensas ruas paralelas ao rio Trombetas e ou-
tras ruas perpendiculares – observa-se que a cidade está dividida adminis-
trativamente em 10 bairros identificados por Centro, Santa Terezinha (ou
Barreirinha), Nossa Senhora de Fátima, Santa Luzia, Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, Cidade Nova, São Pedro, Nossa Senhora das Graças,
Santíssimo Sacramento e a Área Pastoral. Geograficamente, o bairro da
Cidade Nova se localiza no extremo sul da cidade de Oriximiná e tem por
limite natural uma região rural, banhada pelo lago do Iripixi. Nos últimos
anos, é, preferencialmente, nesta parte da cidade que habitam vários mem-
bros dos chamados “remanescentes de quilombos” do alto do rio Erepecu-
ru, embora uma boa parte daqueles que vêm da Cachoeira Pancada conti-
nuem a morar bem próximos à Cidade Nova, nos bairros vizinhos de Santa
Terezinha (Barreirinha) e de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Contíguo
ao bairro da Cidade Nova formou-se um no bairro denominado São José
Operário, localizado na direção onde está situado o lago do Iripixi. Tanto

Processos identitários e a produção da etnicidade 191


o bairro da Cidade Nova quanto o bairro de São José Operário, de acordo
com informações locais, ocupam áreas de antigas propriedades particulares
que foram destinadas em promessas de campanha eleitoral a uma parcela
mais carente da população e, posteriormente, após a construção de algu-
mas casas foi reconhecido legalmente pela Prefeitura de Oriximiná122.
Ao se deslocarem do território que ocupam originalmente em dire-
ção à cidade de Oriximiná, por vezes com a intenção de fi xar residência
ou apenas de passar um determinado período de tempo necessário para
atender algumas demandas pessoais, esses chamados “remanescentes de
quilombos” vão interagir com os demais atores sociais como uma “comu-
nidade” ou um “grupo étnico” específico, como parte de uma categoria
contrastiva expressa pelos termos de autodesignação “remanescentes de
quilombo” e/ou “fi lhos do rio”. O modo como a interação social entre os
membros do chamado grupo “remanescentes de quilombos” do alto do
rio Erepecuru e os demais habitantes e/ou frequentadores da cidade de
Oriximiná se processa está associado, sobretudo, à preferência que aqueles
revelam em estar próximos aos que compartilham formas organizacionais
e práticas culturais.
Por meio dos dados do trabalho de campo etnográfico realizado duran-
te dois períodos distintos, entre os meses de setembro e outubro de 1999
e março e abril de 2000, observou-se que uma vez instalados na cidade
de Oriximiná, principalmente, nos bairros da Cidade Nova, de Nossa Se-
nhora do Perpétuo Socorro e de Santa Terezinha, alguns desses membros
dos grupos dos chamados “remanescente de quilombos” do alto do rio
Erepecuru vão constituir os seus espaços sociais e novos agregados sociais
dentro da cena urbana orientados por suas próprias estratégias de vida.
Uma das razões principais apontadas para a permanência dos chama-
dos “remanescentes de quilombos” na cidade de Oriximiná, anteriormente,
estava mais relacionada a um tipo de afluxo sazonal, que ocorria durante
o período letivo, quando, em geral, os homens permaneciam no interior123,
dedicados ao trabalho extrativista, enquanto as mulheres, juntamente com

122 Segundo os comentários de alguns moradores do bairro da Cidade Nova, as terras desse
novo bairro eram de “propriedade do vice-prefeito, e na época da campanha ele prometeu
dar aquelas terras se ganhasse a eleição. Ele ganhou, mas não cumpriu o prometido, e aí, o
pessoal passou a invadir”. Obs.: As eleições as quais ela se refere são as de outubro de 1996.
123 A denominação interior é utilizada pelos informantes para designar as localidades ru-
rais em oposição à cidade. Entende-se, pois, como interior tanto as áreas habitadas pelas
populações ribeirinhas do município de Oriximiná, como também àquelas pertencentes às
chamadas comunidades “remanescentes de quilombos” situadas ao longo dos rios Trombetas
e Erepecuru.

192 Eliane Cantarino O’Dwyer


as crianças, “baixavam” (do alto do rio Erepecuru) para a cidade, para que
estas pudessem frequentar as aulas124. As casas, que ficavam fechadas no
tempo das férias escolares, voltavam a receber seus moradores que serviam
também como ponto de referência para os demais parentes que moravam
no interior e que, vez por outra, precisavam vir à cidade para receber apo-
sentadoria, vender algum produto agrícola, fazer compras, consultar um
médico, entre outras diferentes razões.
Não é que este tipo de prática tenha sido abolida, acontece, no entanto
que, cada vez mais, aumenta o número de moradores provenientes do alto
do rio Erepecuru que possuem residências fi xas na cidade de Oriximiná. Se
antes havia pouquíssimas alternativas para se hospedar, por vezes, como
lembram alguns deles, a solução era pernoitar no barco atracado na beira
do rio Trombetas ou conforme relata um informante que “de primeira,
quando não tinha muitas pessoas do interior na cidade, a gente ficava mais
é nos barcos, lá na beira” – hoje em dia, são muitos os parentes e amigos
que permanecem em suas casas o ano todo.
Além da preocupação com a continuidade dos estudos dos filhos (as
escolas que existem no interior só lecionam até a 4ª série do Ensino Fun-
damental), um outro motivo que estimula a vinda para a cidade é a “pro-
cura de trabalho”, e neste contexto o termo “trabalho” ganha um novo
significado. No interior o processo de trabalho é fundamentado no esforço
conjunto da família que desenvolve tarefas basicamente relacionadas ao
cultivo da terra e à atividade extrativista da castanha-do-pará, de onde
retiram o sustento necessário para o consumo próprio e algum excedente
para a venda. Já na cidade, “trabalho” recebe uma conotação diferente
pois passa a depender também do empregador, aquele sujeito social que
contrata a mão de obra em troca de uma remuneração estipulada. Alguns
depoimentos de “remanescentes de quilombos” exemplificam os tipos de
“trabalhos” desenvolvidos na cidade: “é trabalho assim que presta serviço
para a Prefeitura, trabalho por empreitada, na limpeza do terreno da pre-
feitura, do hospital, o CESP, de colégios... para asfaltar as ruas do bairro”,
além de alguns integrantes dessas comunidades também se empregarem na
Mineração Rio do Norte.

124 Conforme analisa a antropóloga Joan Vincent, nos estudos sobre a sociedade agrária, é
muito comum a hospedagem de crianças provenientes do interior para a cidade “em casa de
parentes que residem próximos a escolas” e “como os mecanismos estabelecidos de parentes-
co se adaptam às necessidades em mudança; as reciprocidades envolvidas podem transcender
gerações” (1987, p. 385).

Processos identitários e a produção da etnicidade 193


O fluxo migratório para obtenção de “trabalho” na cidade de Orixi-
miná , em geral, corresponde aos ciclos do trabalho agrícola e extrativista
que, por não atender totalmente às atuais demandas dos chamados “rema-
nescentes de quilombos”, acaba por impulsionar a mudança de alguns de-
les para à cidade, mesmo reconhecendo que “emprego pra gente é difícil”.
Ao longo de toda a cidade de Oriximiná, os chamados “remanescen-
tes de quilombos” do alto do rio Erepecuru transitam pelas ruas da ci-
dade interagindo com uma variedade de pessoas distintas. A proposta é
compreender como são formados os processos identitários que se estabe-
lecem a partir de contextos de interação social e que, por vezes, são tam-
bém percebidos como atos políticos. Aqui, os chamados “remanescentes
de quilombos” do alto do rio Erepecuru aparecem atuando diretamente
nos processos sociais, delimitando “novas” fronteiras frente às mudanças
sociais. A situação de contato, que em áreas urbanas tende a ser mais co-
mum e constante se comparada às áreas rurais, muitas vezes, pode dar a
impressão de provocar uma espécie de “desordem” (EPSTEIN, 1969, p.
81) na forma organizacional do grupo. À medida que alguns membros do
grupo autoidentificado como “remanescentes de quilombos” provenien-
tes do Jauari e da Cachoeira Pancada, localidades situadas no alto do rio
Erepecuru, fi xam moradias na cidade de Oriximiná, surgem novas formas
de interação social. Neste contexto urbano, a questão relativa à identida-
de étnica se acentua mais fortemente como uma das várias dimensões do
comportamento e das práticas sociais de um indivíduo. Os valores cultu-
rais e sociais incorporados na autoatribuição da identidade étnica desse
grupo como “remanescentes de quilombos” do alto do rio Erepecuru são
transpostos e reorganizados na cidade de Oriximiná por meio de fluxos
físico e social contínuos.

“Novos Agregados Sociais”: os “remanescentes


de quilombos” na cidade de Oriximiná
A metodologia desenvolvida à época do curso de pós-graduação procurou
privilegiar a ideia de “rede social”, mais especificamente a sugerida pelos
estudos de J. A. Barnes. Nesta abordagem, um ator social relevante, ou
seja, uma figura de destaque dentro do grupo estudado, é eleito como o
ponto de referência dentro do contexto pretendido para a análise e, a par-
tir desta escolha faz-se um acompanhamento sistemático de suas relações
interpessoais, das situações sociais, da circulação de informações e das
transações comerciais das quais ele participa.

194 Eliane Cantarino O’Dwyer


Assim, o modelo de “rede social” adotado por Barnes, para compreen-
der o comportamento social dos parishioners, em Bremen, inicia-se através
da escolha de uma pessoa qualquer como ponto de referência a pessoa Alfa
e, a partir do ponto de vista desta pessoa, ele procura seguir as indicações
sugeridas por ela. É por intermédio de Alfa que se pode ter acesso a no-
vas pessoas e estas, por sua vez, também possuem seus próprios contatos
o que, de maneira indireta, acaba por pertencer também ao universo de
relacionamento de Alfa. A direção desse esquema conduz à propagação
ilimitada de contatos pessoais a partir da pessoa Alfa, pois de acordo com
Barnes “qualquer um que fi zesse parte do universo social de Bremnes po-
deria ser alcançado a partir de qualquer outra pessoa, através de uma
linha suficientemente longa através da rede” (BARNES, 1987, p. 179).
Quando se trabalha com o conceito de “rede social”, há a possibilidade
de se analisar a variedade de contextos nos quais o informante principal
atua com as outras pessoas dentro de uma malha social formada pelos vín-
culos criados entre elas, as associações que ele e essas pessoas produzem e a
regularidade desses contatos. Barnes ressalta que o uso da análise de “rede
social” é preferível quando o trabalho a ser realizado está concentrado em
áreas urbanas, cuja população é maior do que, por exemplo, a existente
em uma sociedade tribal ou, como no nosso caso aqui, em comunidades
“negras rurais”, onde todos se conhecem e mantêm entre si algum tipo de
relacionamento. A noção de “rede social” nos estudos antropológicos pri-
vilegia um certo tipo de observação e descrição dos processos sociais que
promovem conexões interpessoais que vão além das fronteiras dos grupos
e de suas categorias, e demonstra que pode ser bem empregada no exame
de diversos tipos de situações sociais, principalmente no contexto urbano.
No caso dos chamados “remanescentes de quilombos” do alto do rio
Erepecuru na cidade de Oriximiná, a rede social foi iniciada por D. Maria
Roberta, uma senhora sexagenária, integrante de um grupo doméstico ex-
tenso, que inclui quatro gerações de parentesco sucessivas a partir do casal
formador da comunidade do Jauari, no alto do rio Erepecuru. D. Maria
Roberta é fi lha de D. Aristotelina Régis de Souza e de José Agostinho de
Souza, e conta que ainda era uma criança quando sua mãe faleceu e o pai
a enviou para estudar na cidade de Oriximiná, época na qual ficou mo-
rando com uma de suas primas, na Travessa Antônio Bentes, no bairro de
Nossa Senhora das Graças. Anos mais tarde, após o falecimento do pai de
D. Maria Roberta, um dos seus irmãos veio buscá-la para ficar no Jauari.
Neste retorno ela conheceu o seu futuro marido, seu Chico Melo, filho de
Raimunda Eleutéria e de Ricardo Melo, “todos negros, lá do Jauari”. De-

Processos identitários e a produção da etnicidade 195


pois de casados e já com filhos maiores, seu Chico Melo resolveu vir morar
na cidade, para que os “meninos pudessem estudar”, lembra D. Maria
Roberta. A primeira residência foi fi xada no bairro de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, e a família ali ficou até que seu Chico Melo ficou muito
doente e, então, mudaram-se para uma casa no mesmo bairro, em frente à
praça Centenário, mais próximo do bairro de Santa Terezinha e da Cidade
Nova, aonde continuou morando, mesmo após o falecimento de seu mari-
do. Esta residência funciona como ponto de referência para a manutenção
do fluxo de ida e vinda do alto do rio à cidade de Oriximiná.
Os contatos interpessoais de D. Maria Roberta na cidade de Oriximi-
ná se constituem, preferencialmente, por meio das relações de parentesco
e afi nidade que ela mantém com àqueles que são originários do alto do
rio Erepecuru. As interações sociais de D. Maria Roberta neste contexto
urbano, por vezes, explicitam situações cujos indivíduos se encontram em
posição de “tomada de decisão”, onde precisam fazer escolhas do tipo:
“com quem prefi ro ou posso trabalhar?”, “em qual bairro, próximo a
que pessoas devo morar?”, “em caso de necessidade, buscar auxílio com
quem?”, “com quem é ‘possível’ que meus filhos se casem?”, “de quem ser
amigo regular?”, “quem eleger para líder ou representante do grupo?”. A
tomada de decisão diante dessas situações estão baseadas em critérios de
parentesco, amizade e reciprocidade, cujo grau de proximidade ou afasta-
mento social se estabelece, basicamente, por dois critérios: “a semelhança
cultural e a familiaridade” (MITCHELL, 1974, p. 38), que, na prática,
tendem a se fundir um no outro. Também Barth (1966) salienta que deve-
mos analisar como os atores sociais se agregam na sequência dos eventos
aos quais estão envolvidos e os resultados efetivos desses encontros. Na ci-
dade, a formação de agregados sociais vão muito além da dimensão social
pensada exclusivamente através da etnicidade.
As indicações para a pesquisa feitas por D. Maria Roberta, que prin-
cipiam o traçado da rede social, englobam, em especial, àquelas pessoas
que são provenientes do alto do rio Erepecuru, e os eventos nos quais
elas estão inseridas indicam como a análise de “uma série de incidentes
específicos ligados às mesmas pessoas ou grupos, no decorrer de um pe-
ríodo (pode ajudar) a demonstrar como esses incidentes, esses casos, se
relacionam com o desenvolvimento e a mudança das relações sociais entre
essas pessoas e grupos, agindo no quadro de sua cultura e de seu sistema
social” (GLUCKMAN, 1990, p. 68). É assim que sou levada a conhecer o
Sr. Jorge, genro de D. Maria Roberta, membro da comunidade de Cacho-

196 Eliane Cantarino O’Dwyer


eira Pancada, localidade também situada no alto Erepecuru, e morador do
bairro da Cidade Nova125.
As relações sociais tanto de D. Maria Roberta quanto do Sr. Jorge, na
cidade de Oriximiná, baseadas em amizade, afi nidade e interesse, abrem
fluxos de interações sociais mais amplos que os delimitados apenas pelo
critério de pertencimento de grupo. Observa-se, nas entrevistas e nos re-
latos do Sr. Jorge uma conduta urbana direcionada por uma lógica que
privilegia trocas solidárias recíprocas de favores e de bens, ressaltando-se
a importância de se ser alguém bem relacionado, que saiba cultivar conhe-
cimentos e amizades com pessoas influentes, de “prestígio”.
No trabalho de campo etnográfico, percebe-se uma aproximação entre
os chamados “remanescentes de quilombos” e os demais habitantes das
outras regiões ribeirinhas situadas ao longo do município de Oriximiná
que também se encontram na situação de moradores da cidade. Há uma
forte identificação do Sr. Jorge com a comunidade de São Benedito, no
bairro da Cidade Nova, cujos membros desta “comunidade” são, majori-
tariamente, pessoas provenientes de áreas rurais – como eles mesmo de-
nominam, do “interior” –, e compartilham experiências comuns de vida.
Pela avaliação feita pelos próprios participantes dessa comunidade há dois
motivos principais que explicam a imigração para a cidade, a saber: 1º) o
desejo de proporcionar aos fi lhos um grau de escolaridade que supere a 4ª
série do ensino fundamental; e, 2º) a procura de oportunidades de traba-
lho na cidade, já que é crescente a falta de emprego no interior.
A Cidade Nova, segundo informações do Sr. Jorge, é um “bairro de
gente do interior”, isto é, de pessoas provenientes de diversas comunidades
rurais, mas não exclusivamente de membros dos grupos dos chamados
“remanescentes de quilombos”. O vínculo com o interior é mantido por
meio de parentes que ficaram por lá e, uma grande maioria nem chegou a
se desfazer de suas antigas moradias, às quais retornam periodicamente.
Mesmo quando acontece a migração completa de alguma família ou de um
integrante de uma determinada unidade doméstica, este ato não implica
na desvinculação total com a terra126, a manutenção da área ocupada é
garantida seja por parentes, vizinhos ou amigos.

125 É neste ponto que a pesquisa tende a divergir metodologicamente do esquema utilizado
por Barnes, visto que em seu trabalho o modelo de “rede social” construído era ilimitado,
aleatório e não considerava nenhuma pessoa que estivesse fora da rede de indicações geradas
através dos informantes. Aqui, no entanto, é o integrante do grupo eleito para ser o ponto
de partida da pesquisa quem vai conduzir o pesquisador para os “contextos dos encontros
sociais” (BARTH, 1966, p. 83), ou seja, para os espaços nos quais a ação social acontece.
126 O objetivo aqui é mais demonstrar o movimento de migração do que analisar suas cau-

Processos identitários e a produção da etnicidade 197


O bairro da Cidade Nova se localiza no extremo sul da cidade de Ori-
ximiná e tem por limite natural uma região rural, banhada pelo lago do
Iripixi. É nesta parte da cidade que se encontram vários membros dos “re-
manescentes de quilombos” do Jauari, da Cachoeira Pancada e também de
outras localidades ribeirinhas. Cabe ressaltar que a cidade de Oriximiná
está marcada pela ação da Igreja Católica: cada bairro possui a sua cor-
respondente “comunidade” pastoral. Assim, no bairro da Cidade Nova
encontra-se a comunidade de São Benedito; na Área Pastoral, a de Santa
Bárbara; no Centro, a de São Sebastião, e nos bairros de Santíssimo Sacra-
mento, Santa Terezinha, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, São Pedro,
Santa Luzia, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora das Graças e São
José Operário as comunidades recebem a mesma denominação dos respec-
tivos bairros. Além dessas “comunidades” espalhadas pela cidade, há ain-
da uma outra situada na zona urbana de Porto Trombetas, que juntamente
com as demais estão subordinadas ao Conselho Pastoral Urbano (CPU),
sob o controle da Igreja Católica. Aqui o termo “comunidade” se refere a
um conjunto de fiéis reunidos através de um modelo de ação pensado pela
Igreja que pretende ser, na ausência de instituições políticas e sociais efeti-
vas, a diretriz não apenas moral, mas também socioeconômica desses fiéis.
A fi xação e mobilidade urbana dos membros do grupo proveniente do
alto do rio Erepecuru ao longo da cidade de Oriximiná tende a se esta-
belecer segundo a preferência por uma vizinhança formada por pessoas
ligadas entre si pelos laços de parentesco e afi nidade. Essa proximidade
tem por objetivo a ajuda mútua, baseada na crença de se compartilhar com
os vizinhos uma “mesma visão” de modo de vida que é experimentada no
“interior”, e o fortalecimento para enfrentar situações discriminatórias,
relativas a questões raciais vivenciadas na cidade, que são apontadas por
alguns deles. Assim, de acordo com o comentário do Sr. Jorge, na escolha
por moradia os “bairros mais calmos” são os mais procurados.
O sentimento de discriminação em relação aos “remanescentes de qui-
lombos” aparece no depoimento de moradores da cidade de Oriximiná
como, por exemplo, o de um representante sindical da cidade, que atua
de forma efetiva junto aos trabalhadores rurais. Assim, ao ser perguntado
sobre a existência ou não de discriminação em relação aos chamados “re-
manescentes de quilombos”, ele afi rma que embora digam que não existe

sas, mas como afi rma a pesquisadora Elisa M. Pereira Reis quanto aos processos de migração
rural-urbana “é importante observar também que, embora percebida como uma decisão in-
dividual, a migração é frequentemente uma resposta societal na medida em que ela se torna
localmente o meio mais legítimo, senão o único, de mobilidade social” (1976, p. 81-82).

198 Eliane Cantarino O’Dwyer


“todo mundo sabe que existe discriminação contra o negro. Pra você ter
uma ideia, os negros daqui de cima do alto Trombetas, ninguém, nenhum
dono de barco, quer dar o barco pra fazer linha pra comunidade”. E con-
clui: “eles mesmos, pela discriminação que eles sofrem da sociedade, eles
preferem se aglomerar, continuam unidos”. Neste contexto urbano o ele-
mento étnico adquire relevância para esses atores sociais, e as “diferen-
ças culturais costumam ser comunicadas ainda por meio de estereótipos,
que, por sua vez, podem ser relacionados ao racismo e à discriminação”
(O’DWYER, 2007, p. 95).
Para enfrentar este tipo de discriminação vivenciada na cidade de Ori-
ximiná, e reapropriada como identidade afi rmativa mediante a categoria
de remanescente de quilombo, o Sr. Jorge além de reforçar um padrão de
sociabilidade que se refere ao modo de vida experimentado no “interior”,
procura participar daquilo que Mitchell (1953)127 denomina de “sistema de
prestígio”, no qual os relacionamentos efetivos com pessoas influentes no
cenário urbano (o padre da paróquia local, o secretário de agricultura, o
cabo da polícia municipal, o “empreendedor” político, a esposa do prefei-
to, a juíza, entre outros) são privilegiados. A competição por recursos e a
preocupação em “ajudar as pessoas” no meio à diversidade urbana estimu-
la a formação de novas relações e interações sociais em diferentes esferas
organizacionais, a despeito de escolhas ou preferências pessoais.
Como um dos membros do grupo dos “remanescentes de quilombos”
do alto do rio Erepecuru, que vivem atualmente na cidade de Oriximiná,
o Sr. Jorge busca interagir com àquelas pessoas com as quais estabelece
laços de amizade e de mútua confiança, mas, por vezes, não é possível evi-
tar determinados convívios sociais confl ituosos, seja por necessidade de se
trabalhar junto e/ou compartilhar áreas de vizinhanças comuns. Verifica-
-se que, em algumas situações adversas no momento da interação social, a

127 No decorrer da década de 1950, vários trabalhos coordenados por um grupo de antro-
pólogos reunidos no Rhodes-Livingstone Institute, em Lusaka (Zâmbia), afi liados à Univer-
sidade de Manchester, como J. Clyde Mitchell (1956), Arnold L. Epstein (1958), Max Gluck-
man (1961), entre outros, desenvolveram análises voltadas para a questão da heterogeneidade
étnica e as interações sociais vivenciadas nas cidades industriais da Rodésia do Norte (atual
Zâmbia), localizada no centro da África. Essas cidades, situadas próximas às minas de co-
bre, constituíram o chamado Copperbelt (Cinturão do Cobre), que acolhia um fluxo grande
de migrantes de diferentes tribos africanas à procura de trabalho nas minas. Tais pesquisas
abordaram, sobretudo, situações sociais que envolviam diferentes pessoas de padrões cultu-
rais em um contexto urbano de múltiplos eventos e encontros. Aqui, a etnicidade funcionava
como uma categoria que permitia aos membros dos diversos grupos étnicos espalhados em
um contexto de larga interação social, fora de um sistema de grupo corporado, um reconhe-
cimento de seus pares através da contrastividade com os demais indivíduos.

Processos identitários e a produção da etnicidade 199


categoria étnica “remanescente de quilombo” surge como marca de distin-
tividade reivindicando direitos de cidadania.
Aqui a etnicidade passa a privilegiar uma dimensão política específica
que vai além de uma simples transposição de uma suposta etnicidade ori-
ginária deslocada do interior para a cidade: esta nova etnicidade está agora
articulada com novas normas reguladoras de organização socioeconômica
além de resultar das relações estabelecidas com os grupos e os atores so-
ciais pertencentes a universos distintos na cidade de Oriximiná.

A Cidade e os Bairros: a dinâmica dos encontros


Na cidade de Oriximiná, verifica-se que no bairro da Cidade Nova há um
conjunto relativamente denso de pessoas, das quais muitas se encontram li-
gadas por laços de parentesco e de afi nidade, e mantêm entre si uma orga-
nização baseada na ajuda mútua. A Igreja Católica desempenha um papel
decisivo na composição das comunidades urbanas que estão distribuídas
pelos bairros da cidade de Oriximiná. No caso do bairro da Cidade Nova,
embora nem todos os moradores sejam membros efetivos da comunidade
de São Benedito, o que se pode verificar é que a religiosidade se configura
como o fator determinante da existência da cooperação e da união desta
comunidade. É em torno da capela, consagrada sempre a São Benedito,
que se organiza toda a vida da comunidade. Por meio de um núcleo de
liderança religiosa, os moradores do bairro são recrutados para assumir
encargos de interesses mais gerais da coletividade.
As interações sociais que envolvem os membros da “comunidade”
de São Benedito são permeadas pela participação desses moradores nas
cerimônias, nos festejos, nos encontros e nos trabalhos ligados à Igreja.
Conforme o depoimento das pessoas que participam da “comunidade” de
São Benedito, elas reconhecem que precisam de muito tempo e muita dis-
posição para acompanhar todas as atividades que compõem o calendário
religioso.
Os integrantes da “comunidade” de São Benedito também comparti-
lham um determinado padrão de interação socioeconômico fundamentado
na origem no interior, onde se destaca a preferência e a procura por formas
de trabalho que valorizam a cooperação vicinal e a ajuda mútua baseadas
no princípio da solidariedade e da reciprocidade. Esta disposição solidária
que impulsiona o “trabalho em comunidade” está permeada pela lógica
da reciprocidade cujo “caráter voluntário, por assim dizer, aparentemen-
te livre e gratuito” (MAUSS, 1988, p. 53) é, na realidade, mais do que
uma troca de favores, é uma relação de compromissos fundamentada nas

200 Eliane Cantarino O’Dwyer


prestações e respectivas obrigações de contraprestações desses favores. A
convocação de parentes, vizinhos e amigos para juntos efetuarem uma de-
terminada empreitada para alguém a ser beneficiado constitui, de um lado,
um favor para esta pessoa, mas por outro também, uma obrigação para
ela que, como forma de gratidão e reconhecimento, fica comprometida a
corresponder aos eventuais chamados de ajuda daqueles que o auxiliaram.
Os membros da “comunidade” de São Benedito, que moram no bairro
da Cidade Nova, estabelecem laços de afi nidade e de amizade, assim como
sinais de distintividade dos demais moradores da cidade. A rede de rela-
ções sociais que são mediatizadas por ele se expande além das fronteiras
do seu grupo identificado como “remanescentes de quilombos” do alto do
rio Erepecuru, e seus novos arranjos social e residencial na cidade de Ori-
ximiná se baseiam mais nas afi nidades concernentes a um estilo de vida
do que ao fato dele ser um “quilombola”. Da mesma forma que o Sr. Jorge
organiza suas ações em função de ser membro do grupo dos chamados
“remanescentes de quilombos”, ele também desempenha determinados pa-
péis sociais no seu dia-a-dia que ultrapassam os limites de pertencimento
àquele grupo e está diretamente relacionado ao fato dele, no momento, ser
um morador da cidade de Oriximiná e ter acesso a diferentes esferas de
poder existentes na sociedade – política, jurídica, econômica e religiosa –
por meio do “conhecimento pessoal”.
Há outras “comunidades ” urbanas que se aproximam do modo de
vida da “comunidade” de São Benedito, como ressalta o Sr. Jorge, desta-
cando aquelas situadas no bairro de São Pedro, Nossa Senhora das Graças
e a Área Pastoral, que é o Santíssimo Sacramento, bairros mais afasta-
dos da centro da cidade de Oriximiná. Pelos relatos dos moradores desses
bairros e também pela observação etnográfica é possível constatar que um
número expressivo de integrantes das “comunidades negras” localizadas
no alto dos rios Trombeta e Erepecuru-Cuminá possuem moradias pró-
prias dentro da cidade de Oriximiná. A maior parte dessas moradias estão
situadas nos bairros de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Barreirinha
(bairro de Santa Terezinha), Cidade Nova e, mais recentemente, começam
a surgir casas em um novo bairro, o São José Operário, considerado uma
“área de invasão”, como dito anteriormente e seus moradores, em geral,
são provenientes das áreas do Jauari e da Cachoeira Pancada.
Vale destacar que esses bairros são próximos uns dos outros e seus
limites geográficos não se apresentam fortemente demarcados: o desenho
arquitetônico da cidade é composto por largas e extensas ruas paralelas
cortadas por ruas perpendiculares, sendo que uma mesma avenida, por

Processos identitários e a produção da etnicidade 201


vezes, pertence a dois ou três bairros diferentes conforme determinado
pela divisão administrativa pública.
No contexto urbano, a necessidade de circulação entre diferentes di-
mensões socioinstitucionais conduzem a novas interações sociais. O agre-
gado social que o Sr. Jorge forma dentro da cidade de Oriximiná engloba
os moradores das comunidades dos bairros da Cidade Nova e de outros
bairros, estendendo-se além dos limites da identidade étnica de “rema-
nescentes de quilombos”. Assim, alguns membros do grupo proveniente
do alto do rio Erepecuru, moradores da cidade de Oriximiná, compõem,
juntamente com outros atores sociais, agregados sociais mais amplos, que
vão além dos limites demarcados pela dimensão étnica, pois se encontram
inseridos em um meio social repleto de entrecruzamentos pessoais.
As “escolhas” que surgem para o Sr. Jorge dentro desse processo de
“viver na cidade” podem estar referidas a uma decisão individual ou do
grupo. O fato de que os membros do chamado grupo dos “remanescen-
tes de quilombos” compartilham alguns interesses comuns não significa
que eles sempre atuarão segundo os interesses do grupo. Em determinadas
ocasiões podem surgir conflitos latentes entre os interesses do indivíduo e
do seu grupo em relação a direitos e deveres, principalmente em contextos
urbanos onde a interação social é mais intensa. Na cidade, em razão de
estilos de vida divergentes, é possível que “alianças instáveis” e “arranjos
temporários” (GEERTZ, 1991, p. 37) se estabeleçam a partir de uma von-
tade ou decisão individual. Contudo, em certos momentos são as “lealda-
des familiares”, que atravessam as fronteiras dos bairros, que determinam
certas escolhas.
Os contatos de primeira ordem a que fui remetida, quando iniciei o
trabalho de campo etnográfico na cidade de Oriximiná, conduziram-me
à relação de parentesco de D. Maria Roberta. O encontro com o Sr. Jorge
me levou a uma outra ramificação, ultrapassando os relacionamentos dire-
tos de D. Maria Roberta. Os acessos a tais contatos passaram a constituir
novas relações sociais, delineando o traçado de uma outra possível rede
social.
Ao se tentar mapear a distribuição social de alguns membros do grupo
de “remanescente de quilombo” do alto do rio Erepecuru na cidade de
Oriximiná, observa-se a formação de agregados que “resultam do espaço
de experiência social de cada um e desenham o seu horizonte. A identifica-
ção (desses agregados) permite recuperar as formas de agrupamento social
a partir da multiplicidade das práticas individuais”(LEPETIT, 1998, p.
88). O que interessa aqui não são os atributos pessoais, mas sim, procura-

202 Eliane Cantarino O’Dwyer


-se identificar as características inerentes às relações que se estabelecem
entre as pessoas, com o intuito de se compreender o comportamento que
elas assumem.
Na cidade de Oriximiná, os relacionamentos e as ações sociais dos in-
tegrantes do grupo originário do alto do rio Erepecuru demonstram, por
vezes, aparentes incongruências e contradições, pois o contexto urbano
favorece a coexistência em “sistemas de crenças bastante discrepantes po-
dem coexistir e ser ativados em diferentes situações sociais” (MITCHELL.
1969). A cidade é, então, um local que propicia o estabelecimento de vín-
culos pessoais em diferentes esferas da sociedade. A solidariedade dissemi-
nada nas atividades concretas do dia-a-dia dos membros da comunidade
de São Benedito funciona como um vetor que direciona as ações sociais em
observância às experiências anteriores de vida em comunidade. Na preo-
cupação latente em “ajudar os mais carentes”, a fala do Sr. Jorge salienta a
reprodução de uma unidade cultural característica que está mais próxima
ao seu modo de vida experimentado na Cachoeira Pancada e no Jauari,
localidades do alto do rio Erepecuru.
D. Maria Roberta também participa de certas associações próprias do
contexto urbano como, por exemplo, a sociedade de ajuda mútua, forma-
da na sua maioria por moradores da cidade do bairro da Cidade Nova,
mas que também têm associados de outros bairros. Uma das fi nalidades
de tal sociedade é arrecadar mensalmente uma determinada quantia em
dinheiro de seus associados destinada a socorrê-los em momentos de di-
ficuldades. Na cidade de Oriximiná, os eventos nos quais participam D.
Maria Roberta e o Sr. Jorge, compõem novos agregados sociais a partir da
interseção de vários planos organizacionais dados pelas lealdades de lugar,
pela ação das comunidades de base eclesiais (ajuda mútua), por meio da in-
tervenção da administração municipal (grupos de 3ª idade, “trabalho por
empreitada” na pavimentação de ruas e “trabalho voluntário” no plantio
de hortas comunitárias) e pelas associações voluntárias (caixa de socorro
mútuo). Neste contexto, a etnicidade constitui uma das diferentes faces da
realidade frente aos demais “padrões de compartilhamento de caracterís-
ticas culturais, (pois ela passa a ser) um pequeno setor da herança cultural
de uma determinada pessoa” (BARTH, 2000, p. 217).

Considerações finais
Uma vez instalados na cidade de Oriximiná, principalmente, nos bairros
de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de Santa Terezinha e da Cidade
Nova, alguns desses membros do grupo étnico “remanescente de quilom-

Processos identitários e a produção da etnicidade 203


bos” do alto do rio Erepecuru vão constituir os seus espaços sociais e no-
vos agregados sociais dentro da cena urbana orientados por suas próprias
estratégias de vida. A despeito do contínuo ir e vir das pessoas ao longo
de toda a cidade de Oriximiná, é com relativa facilidade que esses “rema-
nescentes de quilombos” transitam pelas ruas da cidade e encontram seus
amigos e parentes. Alguns integrantes desse grupo estão envolvidos em
uma rede de laços sociais que se ramifica por entre os bairros, como é o
caso aqui analisado de D. Maria Roberta e de seu genro, o Sr. Jorge, que
interagem com uma variedade de pessoas em esferas socioinstitucionais
distintas. Os agregados sociais que eles compõem dentro do núcleo urbano
de Oriximiná ultrapassam as relações fi rmadas apenas pelo pertencimen-
to ao grupo dos chamados “remanescentes de quilombos” do alto do rio
Erepecuru.
Contextualmente, no âmbito do cenário da cidade de Oriximiná,
observa-se que “as coisas acontecem” (HANNERZ, 1997, p. 8) com um
fluxo de interação social intenso, que atravessa as diferentes esferas da vida
urbana. A fronteira cultural se configura e se amolda dentro de um espaço
social cujas sequências de eventos compõem novos agregados sociais. Alguns
desses agregados são compostos pela identificação cultural, como ocorre
com o Sr. Jorge quando se torna membro da comunidade de São Benedito,
no bairro da Cidade Nova, porque é ali que ele encontra um “trabalho de
comunidade mais parecido com o lá da (Cachoeira) Pancada, do Jauari”.
Neste bairro também moram pessoas provenientes de diferentes localidades
dali mesmo do município de Oriximiná e de outras cidades que apresentam
um modo de vida semelhante àquele do interior. Há outras comunidades
urbanas e rurais, ao longo do município de Oriximiná, que são apontadas
pelo Sr. Jorge como “parecidas com a realidade deles, mais carentes” que
trocam favores entre si em uma rede de solidariedade mútua. Percebe-se
a partir dessas relações de solidariedade e reciprocidade que o agregado
social do Sr. Jorge na cidade de Oriximiná abrange além dos moradores
das comunidades dos bairros da Cidade Nova, de Santa Terezinha e Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, a do lago do Iripixi, na área rural. O Sr.
Jorge reconhece que para morar na cidade de Oriximiná, é preciso ser
uma pessoa com “bons conhecimentos (...) porque quando você é pobre,
mas você tem o conhecimento, você tem mais sorte”. Esse conhecimento
permeia diferentes planos organizacionais da vida da cidade de Oriximiná,
baseado nos relacionamentos com pessoas influentes no cenário urbano.
Deste modo, tal agregado se estende além dos limites da identidade étnica

204 Eliane Cantarino O’Dwyer


do grupo “remanescente de quilombos” ao qual ele pertence, e constitui um
tipo de “comunidade de intercâmbio social” (WEBER, 1989, p.271).
Diante do modo como alguns desses membros do grupo “remanescen-
te de quilombos” do alto rio Erepecuru vivem na cidade de Oriximiná,
observa-se que “aquela cultura que a gente tem e deixou um pouco de
lado” (comentário do Sr. Jorge) no meio à diversidade urbana, além de se
reproduzir, tem sido capaz, também de formar novos agregados sociais a
partir das relações e interações com outros atores baseados na troca como
“denominador comum de um grande número de atividades sociais aparen-
temente heterogêneas entre si” (MAUSS, 1988, p. 33), em que ela compre-
ende “três obrigações: dar, receber, retribuir”(Idem). A etnicidade aqui é,
portanto, apenas uma das dimensões de “compartilhamento de caracterís-
ticas culturais” (BARTH, 2000, p. 217), pois existem outros aspectos da
cultura, como as formas de vida em que o econômico se encontra “sub-
merso em relações sociais” (POLANYI, 2000, p. 65) e os atores sociais
agem para salvaguardar não “seus interesses individuais na posse de bens
materiais, eles agem assim para salvaguardar sua situação social, suas exi-
gências sociais, seu patrimônio social” (Idem). Dentro do contexto urbano
de Oriximiná, o compartilhamento dessas obrigações mútuas (dar, receber
e retribuir) tem resultado em novos agregados sociais que compõem outras
“comunidades de cultura que não podem ser descritas (puramente) como
étnicas” (BARTH, 2000, p. 217).

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206 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 7

Castanheiros, remanescentes
de quilombo, filhos do Erepecuru
Joyce Silva dos Santos Drumond Linhares

Entrada no campo
O destino é Oriximiná, o último grande município do oeste paraense que
faz fronteira com a Guiana Francesa e o Suriname, situado à margem do
rio Trombetas. A área urbana propriamente é pequena, mas o município
envolve também toda a área chamada de interior, onde estão localizadas
as comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, chegando a ter um
território de mais de 100 mil quilômetros quadrados, com pouca densida-
de (0,4) demográfica por quilometro quadrado·. A presença da Mineração
Rio do Norte (MRN) – empresa de extração mineral da bauxita – insta-
lada, no fi m da década de 1970, no porto Trombetas, distrito do muni-
cípio de Oriximiná, incentivou um crescimento tanto comercial quanto
populacional na área urbana de Oriximiná. Observa-se uma diversidade
de moradores e frequentadores da cidade de Oriximiná, tais como: rema-
nescentes de quilombos, trabalhadores agrícolas ribeirinhos, funcionários
da empresa MRN, pequenos produtores que vivem na ‘estrada do BEC’,
que une o município de Oriximiná ao de Óbidos, e os índios wai-wai do
Mapuera, entre outros atores sociais.
Através do Grupo de Estudos Amazônicos (GEAM), constituído por
discentes e docentes pesquisadores da UFF, foi apresentado o projeto “Ca-
tegorias Sociais, Formas de Organização e Fluxos Culturais – uma análise
do contexto urbano em Oriximiná” à Pró-Reitoria de Extensão (PROEX)
da UFF que viabilizou a viagem e permanência na cidade de Oriximiná,
onde funciona a Unidade Avançada José Veríssimo (UAJV), que integra
o Campus Avançado da UFF. A UFF mantém as instalações da UAJV
em Oriximiná desde 1973, com objetivo principal de desenvolver ativi-
dades tanto extensionistas como de ensino e pesquisa. Assim, a Unidade
Avançada foi criada para oferecer um subsídio e um estímulo aos estu-

Processos identitários e a produção da etnicidade 207


dantes da UFF interessados em desenvolver projetos de pesquisa e estágios
profissionalizantes. Para o deslocamento dos estudantes até Oriximiná,
a UFF mantinha na época um acordo com a Força Aérea Brasileira, que
disponibilizava certo número de lugares em seus voos destinados à Belém
e Manaus para atender aos alunos dessa instituição. A Unidade Avançada
possui alojamentos e refeições.

Figura 5. Mapa localizando o município de Oriximiná, no Pará, e suas fronteiras.

O projeto apresentado pelo grupo à Pró-Reitoria de Extensão foi ela-


borado de forma bem ampla, abarcando as relações sociais dos diferentes
segmentos da população que circulam pela cidade de Oriximiná. O propó-
sito era alcançar vários interesses dos membros do GEAM. A diversidade
cultural vivenciada, corroborando com a proximidade ao tema somado
aos caminhos percorridos em campo, levou-me aos grupos dos quilombo-
las, especificamente as comunidades do Erepecuru, pela experiência ante-
rior de pesquisadores do GEAM. O termo comunidades é usado ao longo
do trabalho no seu sentido empírico, segundo denominação dos próprios
quilombolas.
Durante 45 dias, convivi com famílias quilombolas que estavam na ci-
dade e também visitei, com estadia de alguns dias, famílias no alto do rio

208 Eliane Cantarino O’Dwyer


Erepecuru. Penso que uma pesquisa é sempre, de alguma forma, um relato
de longa viagem empreendida por um sujeito cujo olhar vasculha lugares
muitas vezes já visitados. Nada de absolutamente original, portanto, mas
um modo diferente de olhar e pensar determinada situação social a partir
de uma experiência etnográfica e de uma produção do conhecimento em
diálogo com os atores sociais.
Como Malinowski em “Argonautas do Pacífico Ocidental”, para a rea-
lização do trabalho de campo utilizei o método etnográfico da observação
participante e considero, como Becker (1993), que o pesquisador deve ade-
quar o método de pesquisa aos problemas e desafios do campo no qual se
encontra inserido. Sendo assim, pretendi realizar o mesmo, porém, devido
ao período curto no campo por ora, apresento nesta monografia apenas
um estudo etnográfico preliminar da vida das comunidades remanescentes
de quilombo do rio Erepecuru. Tratei aqui de assuntos que eram pulsantes
nas comunidades no período do campo.
Ao situar o objeto de estudo no tempo e no espaço, podemos compre-
ender o quanto uma cultura é dinâmica e sempre se atualiza revelando-se
em constante mudança. Baseando-me nas afi rmações de Leach (1996, p.
71), ao criticar a não localização da sociedade pesquisada em determinado
ponto no tempo, ao ressaltar que esta atitude acarreta a interpretação do
material pesquisado em termos de equilíbrio e estabilidade, como se tal
sociedade fosse o que se supõe que ela é para todo o sempre. Desta forma,
na verdade, toda sociedade é um processo no tempo e suas estruturas estão
em constante mudança; e também nos dados circunstanciais, eu realizo
alguns recortes, privilegiando o estudo etnográfico das comunidades do
interior – as formas de organização social, com a configuração dos grupos
domésticos e a organização econômica da cooperativa de castanheiros por
eles gerida.
Acredito que a reflexão sobre a entrada em campo seja determinante
na etnografia, uma vez que um de seus objetivos centrais, como método
interpretativo, é procurar auferir status de membro, possibilitando pers-
pectiva ou ponto de vista de dentro. Minha entrada a campo começou com
um primeiro encontro com Ana Júlia, que já conhecia os pesquisadores do
projeto em situações etnográficas anteriores. Recebi sua visita na UAJV,
encontro este já programado antes da minha chegada. Ana Júlia é uma
jovem quilombola do rio Erepecuru, que veio criança com sua família para
a cidade de Oriximiná. Na cidade casou-se e, na ocasião, ainda estudava
e criava seus dois fi lhos João e Fábio. Conversando com ela sobre sua co-
munidade, Jauari, Ana Júlia conta dos seus planos de voltar para lá e ser

Processos identitários e a produção da etnicidade 209


agente de saúde, visto que estava fazendo curso técnico de enfermagem, o
qual na sua visão seria importante para a comunidade. Naquele primeiro
momento de apreciação, conversamos de tudo que nos aproximasse, fa-
lamos das festas de carnaval em Oriximiná e também sobre forró, ritmo
segundo ela muito apreciado na cidade.
Já era noite e a cidade estava em festa. Era a semana de comemoração
do Santo Antônio. Ana Júlia me convidou para dar uma volta na cidade.
Oriximiná comemora no mês de agosto, há mais de meio século, sua festa
maior: as festividades de Santo Antônio. Caminhando pela cidade, ela me
apresentou as ruas que passávamos e a praça principal situada em frente à
Igreja de Santo Antônio, padroeiro da cidade. Passávamos por ruas enfei-
tadas de bandeirolas e cheias de barraquinhas de bebidas, comidas e jogos.
Posteriormente, após uma semana convivendo com os quilombolas,
participei de um cortejo para o santo, preparado por eles. Os próprios me
informaram que este era um dia que a Igreja se destinava às homenagens
das comunidades ribeirinhas e quilombolas ao Santo. Cortejo orientado
por um barco que conduz a berlinda com a imagem de Santo Antônio,
especialmente ornamentada para a ocasião. Umas embarcações estavam
decoradas com bandeirolas coloridas e muitos efeitos luminosos e partici-
pavam do cortejo; enquanto outras, que não acompanhavam a procissão,
aguardavam no cais para saudar com buzinas a chegada do cortejo. Simi-
lar ao cortejo do Círio, que abre as festividades de Santo Antônio realiza-
das em agosto na cidade de Oriximiná, o cortejo das comunidades revela
proporções bem menores.
Ainda que as comunidades quilombolas visitadas se reconheçam, a
maioria, como católica na ocasião do cortejo, não notei grande adesão a
essa celebração. Quando indaguei a eles (os quilombolas) sobre a parti-
cipação nessas festividades da cidade, demonstraram desinteresse dando
variadas justificativas. Ao longo do tempo, percebi que a falta de parti-
cipação dos quilombolas nesse cortejo contrapõe-se à empolgação e en-
volvimento nas suas próprias festividades. Cada comunidade quilombola
possui seu santo, prestando-lhe suas homenagens em uma cerimônia onde
é perceptível o envolvimento maior dos quilombolas com seus festejos.
Passando pelo centro, eu e Ana seguimos para sua casa, onde sua mãe
Maria Helena aguardava, pois queria muito me conhecer. Posso dizer que a
vontade era recíproca. D. Maria Helena, conhecida também como D. Maria
da Silva, é uma personagem importante dos quilombolas daquela região. Vi-

210 Eliane Cantarino O’Dwyer


úva de seu João Melo, sacaca128 da comunidade do Jauarí, veio do interior,
mas vive já há muitos anos na cidade. Como disse: “O interior é lembrança
de comida, casa cheia. Todas as crianças vinham lá para casa tomar min-
gau. Nossa casa ficava no centro da comunidade, na época ainda morava lá
muitas famílias” recorda D. Maria Helena. Ela emenda citando que parte
da família ainda mora no interior, três filhos de D. Maria retornaram para
lá com suas famílias. São eles: Miguel, Lucas e Irineu, que foram e ainda
são importantes lideranças do movimento quilombola. Hoje D. Maria vive
na cidade com seus filhos Rafael e Ana Júlia e sua casa é referência para os
quilombolas que estão e/ou vivem na cidade. D. Maria é a benzedeira e uma
das mais antigas quilombolas que vive na cidade da Oriximiná.
Através de D. Maria da Silva, tive as primeiras referências de onde
poderia encontrar as famílias quilombolas que viviam na cidade e, quando
demonstrei interesse em conhecer as comunidades no interior, Ana Júlia
se propôs a me apresentar seus irmãos na Associação dos Quilombolas do
Município de Oriximiná (ARQMO). Assim estabeleci meu primeiro con-
tato com os moradores das comunidades.
Após minha apresentação à Associação, intermediada por Ana Júlia,
realizei várias visitas à casa da Associação e lá conheci alguns dos coorde-
nadores das comunidades e outros quilombolas que por ali passavam para
ter notícias do interior ou que passavam apenas para um café e uma prosa
na varanda. A Associação foi um importante ponto de partida. Foi através
dessas visitas que obtive mais informações não só sobre as comunidades do
interior, como também de famílias que estavam ali pela cidade morando
ou só de passagem.
A criação da Associação das Comunidades Remanescentes Quilombos
do Município de Oriximiná em 1989 foi motivada para se fazer valer o
direito à propriedade de terra, assegurada pela Constituição Federal de
1988. A ARQMO é uma entidade de representação que reúne as ‘popu-
lações negras’ do Trombetas e Erepecuru-Cuminã e realiza o trabalho de
mobilização na luta pela garantia das terras em que vivem, com base no
artigo 68 do ADCT da Constituição Federal:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade defi nitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

128 É como os quilombolas se referem aos curandeiros, sendo o Chico Melo até a presente
data, o último sacaca daquela região. Os sacacas possuem um domínio sobre ervas medici-
nais, rezas etc.

Processos identitários e a produção da etnicidade 211


No período que estive na cidade participei também de reuniões que
aconteciam na sede da ARQMO relacionadas à cooperativa dos castanhei-
ros (CORQ). Os coordenadores estavam se organizando para a realização
de um evento que teria participação da Cooperação Técnica Alemã (GTZ).
A GTZ é uma empresa pública de direito privado criada em 1974 com o
objetivo de gerenciar os projetos de cooperação técnica. Essa empresa diz
oferecer um instrumento de aprendizagem conjunta, a partir do apoio a
iniciativas inovadoras de desenvolvimento, empreendidas por instituições
e organizações brasileiras, enquanto a contribuição alemã visa fortalecer
essas iniciativas por tempo limitado, até que os beneficiados alcancem uma
situação que lhes permita prescindir do aporte externo. Os quilombolas
me diziam que a GTZ participaria desse encontro com o objetivo de ajudá-
-los para melhor organização de uma cooperativa. Tal projeto consiste
em regras de produção e gerenciamento da cooperativa dos castanheiros,
regras que fazem parte das relações e bens do sistema maior. Cabe então
aos quilombolas ajustar conscientemente essas forças e dar um significado
a esse ajustamento, porque a resistência às relações e aos bens do sistema
maior pressupõe a formulação de significados constituídos de esquemas
locais dos bens e das coisas.
A minha participação no evento, realizado pela cooperativa, aconte-
ceu na comunidade da Serrinha descendo o rio de volta para a cidade de
Oriximiná. E este foi o momento de minha despedida das comunidades
quilombolas, após 45 dias de convívio. Havia chegado ao fi m minha esta-
dia no município de Oriximiná.

O interior é fartura
A população dos quilombos ou mocambos do Trombetas, como também
são conhecidos nos relatos dos viajantes e em referências historiográficas,
foi em 1866 contabilizada por Tavares Bastos em mais de 2.000 indivíduos.
Atualmente, com uma população de cerca de 6.000 pessoas, os quilombo-
las de Oriximiná estão organizados em 32 comunidades rurais, distribuídas
por oito territórios constituídos por grandes extensões da Floresta Amazô-
nica ainda muito preservadas, que somam mais de 665 mil hectares129.
A Floresta Amazônica está longe de ser um vazio demográfico, visto
que abriga diversas comunidades ribeirinhas, quilombolas e/ou indígenas.
Quando fugiram para a floresta, no século XIX, das fazendas e das pro-

129 Dados divulgados pela Associação de Remanescentes de Quilombo do Município de


Oriximiná (ARQMO).

212 Eliane Cantarino O’Dwyer


priedades dos senhores de Óbidos, Santarém, Alenquer e mesmo Belém,
os quilombolas aprenderam com os índios alguns “segredos das matas”,
permitindo-lhes não só fugir como também vencer os obstáculos com mais
êxito. Hoje, as famílias quilombolas retiram grande parte do seu sustento e
garantem sua sobrevivência a partir do uso comum de recursos oferecidos
pelo território que ocupam na floresta.
Sobre a localização espacial dessas comunidades, O’Dwyer (2002) propõe:

“(...) a configuração espacial desses grupos do alto curso dos rios, cujo
relativo isolamento é mantido e atualizado de forma consciente, não
deve conduzir à reificação de qualquer imagem de um “mundo fechado
e autosuficiente”. Do nosso ponto de vista, a naturalização das ideias de
“isolado social” e/ou “isolado cultural” deixa de fora e à margem das
descrições etnográficas, diferentes processos históricos e sociais que re-
sultam na construção de um “isolamento consciente”, baseado na me-
mória histórica e genealógica desses grupos sobre sua origem comum,
recuperando-se, assim, a noção de Weber sobre a construção de “frontei-
ras rigorosas... que se fi xam em pequenas diferenças de hábitos cultivados
e aprofundados... em virtude de um isolamento monopolista consciente”
(Quilombos Identidade Étnica e Territorialidade, 2002).

O deslocamento nas áreas ocupadas pelos quilombolas é realizado


principalmente por barcos e rabetas – que são canoas acopladas de um
motor pequeno – sendo que para se chegar a alguma comunidade vizinha
demora-se horas. Visitas são mais frequentes no fi m de semana, principal-
mente para a celebração de alguma paróquia ou uma partida de futebol
marcada. Um complemento à comunicação foi a instalação de rádios em
muitas dessas comunidades, ainda que seja necessário levar em conta a
dificuldade de manutenção. Além dos pontos de rádio de comunicação dis-
tribuídos pelas comunidades, a sede da ARQMO, na cidade de Oriximiná,
comunica-se levando as notícias, através dos quilombolas que usam os
rádios de comunicação, da cidade ao interior e vice-versa. A relação com a
cidade está muito presente no cotidiano e na vida dessas comunidades. Se
as “novidades” não chegam pelo rádio de comunicação, chegam ao fi nal
do mês130, quando os quilombolas descem para a cidade afi m de receber os
benefícios como Bolsa Família, Aposentadoria, Salários e outros.

130 Entende-se aqui que o “fi nal do mês” se estende até o início do outro mês.

Processos identitários e a produção da etnicidade 213


Nessa época, aumenta a movimentação na cidade, enquanto o interior
fica esvaziado pelos barcos que descem o rio, abarrotados de membros
tanto das comunidades ribeirinhas como quilombolas, além dos produtos
que levam, com a fi nalidade de vender na feira ou em alguma mercearia da
cidade ou ainda que levam para presentear algum parente da cidade. Uma
prática comum dos quilombolas que “baixam” do interior para cidade é
de se hospedarem na casa de algum parente ou amigo da cidade presen-
teando sempre com alguma coisa do interior, principalmente a farinha de
mandioca que é muito apreciada na região. Essas práticas reafi rmam a
teoria da reciprocidade, fundamentada na tríade – dar, receber e retribuir
– apresentada por Mauss (1974) em seu clássico Ensaio sobre o Dom e a
Dádiva. Sabe-se que a dádiva não é um ato isolado e essa foi a grande des-
coberta, pois o processo compreende os três deveres que se repetem indefi-
nidamente. Como Caillé (2002, p. 142) reafi rma, dádiva é “toda prestação
de serviços ou de bens efetuada sem garantia de retribuição, com o intuito
de criar, manter ou reconstituir o vínculo social”. Mauss (1974) observa
também que o contato humano não se estabelece como uma troca, como
em um contrato; considera-o como uma “lei não-escrita” que começa com
uma dádiva que parte de alguém, gerando a retribuição e envolvendo um
novo receber e retribuir, num processo sem fi m. Os quilombolas, os esta-
belecidos no interior ou aqueles na cidade, estão inseridos nesse processo
renovável de dádiva. Eles têm o costume de ‘presentear’ com produtos mais
acessíveis à localidade que estão – exemplo: farinhas, peixes, caças, quan-
do vem do interior; e roupas, material agrícola, como sementes, quando
vem da cidade. E também o costume de se hospedarem, até mesmo por me-
ses, em casas de parentes. Os motivos variados, indo desde as questões de
saúde, estudo, trabalho e até passeio. São essas práticas de reciprocidade
que alimentam o vínculo comunitário dos quilombolas, independentemen-
te se estão na cidade ou no interior.
Uma vez na cidade, os quilombolas que ‘baixaram’ aproveitam tam-
bém para fazer as compras possíveis, ir ao médico se necessário. Destaco
que eles só buscam ajuda médica quando os remédios caseiros não funcio-
nam, isto é, quando é ultrapassado o prazo comum, de uma semana, dado
para o remédio caseiro fazer efeito. O recorrer ao hospital em detrimento
da medicina local não é bem visto na concepção de saúde dos moradores
dessas comunidades, como parte de um sistema de crenças, ela funciona
na medida em que seus membros nela depositem sua fé. Conto aqui uma
experiência própria vivenciada em campo: certo dia, eu acordei com tor-

214 Eliane Cantarino O’Dwyer


cicolo fortíssimo e uma jovem quilombola se ofereceu para puxar131, mas
previamente insistiu em perguntar se eu confiava nela pois, só assim teria
efeito sobre mim. Todos possuem algum conhecimento sobre os remédios
caseiros, mas existem também os benzedores que são possuidores do se-
gredo das orações para cura, orações que são ensinadas pelos antigos e
passadas em segredo a alguns.
Na cidade, os quilombolas também realizam suas visitas a amigos/pa-
rentes e resolvem os problemas burocráticos (como certidão de titulação,
participação em projetos e outros) na ARQMO. O porto da cidade, segun-
do eles, fica em “festa” com os barcos e bares cheios pelos reencontros que
ali se sucedem. Os quilombolas que não têm onde ficar dormem no barco
que viajaram.
No porto encontrei várias famílias quilombolas que chegavam do in-
terior e também quilombolas moradores da cidade que ali estavam com o
intuito de encontrar com familiares e amigos. Esses encontros aconteciam
tanto em algum barco como em algum bar da orla do porto e estendiam
madrugadas regadas a bebidas e comidas. Em conversas com os que por
ali ficam transitando no porto e mesmo em visitas às casas de quilombolas
na cidade, escuta-se falar do interior como sinônimo de fartura, tanto de
comida como de amigos. Para os quilombolas da cidade, o interior é refe-
rência de lugar e história que os unem e cria um sentimento de participa-
ção comunitária e identidade étnica no presente; mesmo porque, apesar de
morarem na cidade, esses se fazem presentes nas principais manifestações
culturais da comunidade, como nas festas religiosas. Todas essas experiên-
cias podem ser melhor compreendidas pelas elaborações apresentadas por
Sahlins (1997) para compreender comportamentos coletivos:

“As pessoas organizam suas experiências segundo suas tradições, suas


visões de mundo, as quais carregam consigo também a moralidade e as
emoções inerentes ao seu próprio processo de transmissão. As pessoas
não descobrem simplesmente o mundo: ele lhes é ensinado.”

Ao se deslocarem do território originalmente ocupado em direção à ci-


dade de Oriximiná, com a intenção de fi xar residência ou apenas de passar
um determinado período, os princípios que orientam a interação social en-
tre os membros das comunidades se reafi rmam no contexto urbano, posto
que compartilhem de significados e representações sociais, comungam do

131 Pratica que encontrei tanto no interior como na cidade, seria como uma reza que o ben-
zedeiro (a) puxa com as próprias mãos o mal, a doença da pessoa necessitada.

Processos identitários e a produção da etnicidade 215


mesmo repertório de tradições, mas, não necessariamente reproduzem a
mesma vida levada no interior. Na cidade, os jovens quilombolas já mais
ambientados à vida urbana que seus pais, participam vivamente das festas
que aí ocorrem. Mesmo neste contexto urbano, esses jovens compartilham
de uma origem em comum, dando preferência a estarem juntos na maioria
de suas atividades, seja nos bailes de forró, num passeio na orla ou mesmo
numa conversa na praça. Dessa forma, esses jovens fortalecem seus laços
de pertencimento.
Sobre os olhares das “pessoas da cidade, os brancos” defi nidos assim
pelos quilombolas, os coordenadores das comunidades, que são lideran-
ças escolhidas em assembleia, são bem claros em dizer que eles mudaram
seus olhares para com a comunidade depois da visibilidade obtida com os
processos de titulação. Lucas, coordenador da cooperativa de castanheiros
CORQ, me disse certa vez que “As pessoas da cidade tinham medo de
subir para o interior por causa da malária. Agora veem pessoas de fora
subindo (referindo aos pesquisadores e agentes do governo), perderam o
medo”. Outro coordenador, Caio, me disse “A cidade passou a respeitar
mais as pessoas da comunidade. Perceberam que a cidade não é nada sem
as comunidades”. Observações como essas quanto ao respeito adquirido
na cidade com a visibilidade social que as titulações deram a essas comu-
nidades foram variadas e recorrentes ao longo trabalho de campo.
A época anterior à titulação das terras, segundo os porta-vozes da
ARQMO é representada por um sentimento de “invisibilidade social”.
Os quilombolas recordam com pesar da exploração de seu trabalho
e das baixas quantias que recebiam como pagamento pelos produtos
extraídos. Após as titulações, a presença dessas comunidades no sentido
social e político, tornaram-se visíveis; e a forma de vida de seus habitantes
valorizada como “tradicional”. Hoje, essa forma de vida é codificada pelos
mediadores, ambientalistas titulares das organizações não governamentais,
cujo discurso se pretende antropológico, aportes valorizados para reafi rmar
a defesa da “diversidade cultural”, igualmente a Comissão Pró-índio de
São Paulo. Assim, essas comunidades passaram a estar na pauta de órgãos
governamentais nos âmbitos federal e estadual, como o Ibama, o Incra e o
Interpa. Além disso, a titulação das terras mudou também a relação com
essas instituições. Antes existiam relatos, por parte dos quilombolas, de
racismo de seus funcionários diante de alguns membros dessas comunidades.
O fi m do mês também é quando as lideranças comunitárias costumam
se reunir, aproveitando a facilidade para que a maior parte dos coorde-
nadores esteja presente. Encaminham então resoluções sobre questões de

216 Eliane Cantarino O’Dwyer


“políticas comunitárias” como projetos de órgãos governamentais, ou não
governamentais; ou planos de ação fi nanciados pela Mineração Rio do
Norte (MRN) – empresa de extração mineral da bauxita, todos voltados
para as comunidades quilombolas.132
A mudança na relação das comunidades com a mineradora MRN é
relatada por Miguel, importante liderança do movimento quilombola que,
na época do trabalho de campo, assumia a coordenação da Malungo (Co-
ordenação das Associações Quilombolas do Pará). Segundo ele, essa mu-
dança aconteceu quando os quilombolas tornaram público, no Tribunal
dos Povos da Floresta – se referindo ao Tribunal Permanente dos Povos,
Paris, os problemas enfrentados pelas políticas adotadas pela mineradora.
Miguel diz que é nesse momento que a MRN reconhece a necessidade de
ajudá-los. E uma das formas buscadas pela empresa foi o fi nanciamento
das estradas na Cachoeira do Chuvisco, onde ficam localizados os casta-
nhais, facilitando o escoamento da castanha coletada. Na época do traba-
lho de campo, como estavam terminando a construção da estrada, as reais
melhorias ainda não tinham sido experimentadas.
A CPI-SP trabalha em parceria com os quilombolas há algum tempo.
Um dos seus principais projetos em parceria com a ARQMO é o Proje-
to Manejo dos Territórios Quilombolas, que revela como uma de suas
ações prioritárias a organização do sistema comunitário de exploração da
castanha-do-pará. Desse projeto, nasceu a cooperativa dos castanheiros
quilombolas (CORQ) que será comentada mais à frente.
As reuniões das lideranças no fi m do mês acontecem numa casa onde
funciona o setor burocrático. Definida por eles mesmos, as atividades co-
brem as titulações ou qualquer documentação de vinculação em projetos
governamentais ou não, da associação ARQMO. Os quilombolas preci-
sam lidar com uma infi nidade de órgãos e documentos de interesses varia-
dos, o que os deixa confusos sobre os reais interesses desses para com as
comunidades. Durante as entrevistas, relataram inúmeros projetos gover-
namentais ou não, que envolviam as comunidades, mas não foram conclu-
ídos, apontando diferentes justificativas. Porém, sempre estava presente a
reclamação de que, na maior parte desses projetos, os beneficiados – nesse
caso, os próprios quilombolas – não eram consultados sobre seus reais
interesses. A associação, como defi niu O’Dwyer, surge como “(...)órgão

132 Destaco aqui que a mineradora hoje vive uma relação “amigável” com as comunidades,
bem diferente do passado confl ituoso, com ações de despejo e restrições do exercício das
atividades extrativistas por parte da MRN para com as comunidades. Ver O’Dwyer (2005).

Processos identitários e a produção da etnicidade 217


representativo em oposição aos interesses políticos e econômicos que não
lhes reconhecem o direito às terras que ocupam por várias gerações”.
Hoje, a sede da associação serve também como ponto de encontro dos
quilombolas que estão na cidade. A qualquer hora do dia, há sempre um
grupo jogando conversa fora na varanda, conversas que trazem notícias
das outras comunidades, ou vendo TV na sala. A casa é de uso comum
com algumas restrições justificadas pela presença de coisas defi nidas por
eles como burocráticas; e é também referência para quem quiser conhecer
ou entrar em contato com as comunidades quilombolas de Oriximiná, lo-
calizadas no alto dos rios.
Foi através de visitas à ARQMO que recebi um convite para viajar às
comunidades do interior. Viagem esta iniciada com Lucas, sua esposa Ma-
riana e seus fi lhos Eduardo e Leandro em um barco que tinham acabado
de conseguir com a prefeitura para as crianças mais velhas poderem ir
para a escola-polo, localizada a algumas horas de sua comunidade. Via-
jamos pelo rio Erepecuru durante 10 horas até a comunidade do Jauari,
onde fiquei hospedada na casa de D. Teresinha, conhecida como tia Terê.
Do Jauari, fi z várias visitas a outras comunidades do Erepecuru, sendo
que visitei a Serrinha apenas quando retornei ao interior a convite para
um evento da cooperativa. Por essa oportunidade, conheci moradores de
outras comunidades (não só do Erepecuru como também do Trombetas)
mediante conversas com os quilombolas que estavam ali para o evento.

Castanheiros: filhos do rio Erepecuru

Rio Erepecuru berço de belas cachoeiras


A terra santa dos negros escravos
Parque das grandes castanheiras
Tuas águas cristalinas refletem o passado sofrido
Riachos buscam em teu leito divino
Em tuas margens o verde tem mais vida
[...]
(Boi Garantido133, O Rio e os Castanheiros)

O Erepecuru é um importante afluente pela margem esquerda do rio


Trombetas. As comunidades quilombolas estão distribuídas nas suas mar-
gens, na seguinte ordem a montante do rio: Serrinha, Terra Preta, Terra

133 Agremiação folclórica que compete anualmente no Festival Folclórico de Parintins.

218 Eliane Cantarino O’Dwyer


Preta Dois, Água Fria, Arancuã de Baixo, Arancuã de Cima, Arancuã
do Meio, Jarauacá, Boa Vista do Cuminã, Varre Vento, Jauari, Espírito
Santo, Araçá, Araçá de Dentro e Cachoeira da Pancada. Formados por
grupos familiares entrelaçados, que compartilham não só da terra, mas
também de práticas culturais, além de uma memória comum, esses grupos
se afi rmam por meio de uma existência considerada por eles coletiva, re-
forçada quando dizem, com orgulho, que são todos parentes. Os laços de
parentesco que, na perspectiva de um observador externo e sem o conheci-
mento das teorias antropológicas de parentesco, parecem um emaranhado
aparentemente difícil de delimitar, atuam como uma “linha de costura”
que aproxima as comunidades ao longo do rio. Reforçam assim relações
de solidariedade e reciprocidade. Tais comunidades são formadas através
do entrelaçamento entre grupos domésticos que permitem a troca e mobi-
lidade dos seus membros.
Os grupos domésticos do Erepecuru compreendem a família nuclear
que consiste no homem, sua esposa e os seus fi lhos, mas pode agregar
outros membros como sobrinhos, tios, irmãos, mãe, pai, sogro e sogra.
Segundo Fortes (1974), o grupo doméstico corresponde uma unidade que
detém a propriedade da casa e assume sua manutenção e organização, vi-
sando prover os recursos necessários à reprodução social e cultural de seus
membros. O conceito de grupo doméstico permite analisar as atividades
concebidas com a produção de comida, proteção e meios não materiais que
asseguram a continuidade com a sociedade maior. A casa revela-se como
uma unidade do processo de distribuição, segundo regras de reciprocidade
que possibilitam a um grupo doméstico acionar estratégias de reprodu-
ção social baseadas num jogo de obrigações mútuas dos membros. Nesse
sentido, também assegura a reprodução do status do grupo. As relações
internas ao grupo doméstico são orientadas por princípios de hierarquia e
de gênero. Elas defi nem o processo de trabalho na unidade de produção e
consumo, direcionando a ação de cada um de seus membros.
Para esclarecer a influência das concepções de gênero na hierarquia in-
terna das famílias, é importante ressaltar que as comunidades quilombolas
são patrilineares, ou seja, após união, a mulher costuma se mudar para a
comunidade do marido, que constrói sua casa próximo aos seus irmãos
homens. Porém, a casa da família é gerida pela mulher, que tem a preocu-
pação e responsabilidade maior com os membros da casa. Ela cuida não
só das atividades da casa, que consistem no preparo dos alimentos e sua
repartição entre os membros do grupo, como também dá ordens às filhas
e fi lhos, além de cuidar da saúde da família.

Processos identitários e a produção da etnicidade 219


Esses conceitos, associados à perspectiva das observações em campo,
permitiram entender a combinação das diversas estratégias adotadas pelos
grupos domésticos do Erepecuru, baseadas principalmente na ocupação,
concepção e usos específicos da terra. O conjunto de bens, pessoas e sabe-
res, para Fortes (1974), são o capital transmissível ao longo dos ciclos de
desenvolvimento desses grupos domésticos.
Como referência de grupo doméstico na situação etnográfica descre-
verei o núcleo familiar de seu Omar, considerado um dos mais antigos
quilombolas da comunidade do Jauari, apontado pelos próprios membros
desta comunidade como o núcleo familiar mais “estruturado” de todos.
Isso significa que os recursos materiais do seu Omar são considerados mais
estáveis, pois produz continuamente no roçado, tem um pouco de gado e
um barco próprio, logo, sua contribuição familiar à vida comunitária tem
sido maior. Exemplo disso é o que ocorre com o diesel, combustível usado
para gerar eletricidade nas comunidades, para o qual seu Omar acaba por
contribuir mais que as outras famílias.
Seu Omar se diz o fi lho homem mais novo do antigo tronco familiar
dos Melo e assim como seus pais se intitula “fi lho do Erepecuru”, não sabe
dizer exatamente a localidade do rio onde nasceu.

“Desde que me entendo já moramos em vários pontos do rio. Você pode


ver que temos parentes até lá na Pancada (última comunidade, localizada
no alto do rio Erepecuru)”, explica seu Omar.

Seu Omar casou-se com D. Manuela (Manu), nascida em outra comu-


nidade na cidade de Juriti e, junto com seus irmãos e cônjuges, eles forma-
ram a comunidade do Jauari.
As casas normalmente são espalhadas, distantes umas das outras, ex-
ceção do Jauari, que se concentra em um núcleo em volta da antiga casa
do falecido sacaca João Melo, irmão do Seu Omar. A viúva de João Melo,
D. Maria Helena da Silva, que atualmente mora na cidade com os fi lhos
mais novos e os netos, que frequentam a escola em Oriximiná, me disse
que, na época que seu marido vivia lá no interior, todos queriam morar
perto dele, pois como sacaca representava uma segurança mítica para os
quilombolas. Afi nal os sacacas sempre conheceram os segredos da flores-
ta, prescrevendo remédios e fazendo profetismos sobre o futuro.
O único indicado como herdeiro do “saber” de sacaca que João Melo
dominava é Rafael, seu fi lho mais novo, hoje fora da comunidade, mas

220 Eliane Cantarino O’Dwyer


segundo telefonema da sua irmã, encontra-se morando na boca do rio
Cuminá. Sobre Rafael, seu irmão Lucas134 diz:

“Rafael foge do seu destino de sacaca. Mas ele mesmo tem noção que a
vida dele está direcionada para isso” e completa dizendo, como se confor-
masse: “Não surgiu ainda nenhum sacaca porque a natureza mudou mui-
to. Anda muito movimentada por causa das televisões, motores, barcos.”

Além da autoridade religiosa dos sacacas, as comunidades contam com


os chamados benzedeiros, representados pelos mais velhos, que acumula-
ram mais conhecimento e cuidam de todos na comunidade fazendo remé-
dios caseiros e “puxando” . Os sacacas e os benzedeiros são vistos tanto
como pessoas capazes de curar doenças como também pessoas que têm
poderes de provocá-las. Antes de buscar ajuda médica na cidade, os ben-
zedeiros são os primeiros a serem procurados. Como dito anteriormente,
passada uma semana ou mais, se o paciente ainda não estiver melhor, aí
sim, será levado para o hospital.
Seu Omar conta que, quando os fi lhos eram mais novos, Manu mudou-
-se para cidade para que eles estudassem, enquanto ele permaneceu no
interior trabalhando. Essa é uma prática comum aos quilombolas, onde os
homens permaneciam no interior, dedicados ao trabalho extrativista, en-
quanto as mulheres, juntamente com as crianças, “baixavam” (do alto do
rio Erepecuru) para a cidade, no intuito de frequentar as aulas. Também
era costume algumas crianças “baixarem” sozinhas para cidade ficando
em casas de parentes.
Como cita Vicent (1987) em seus estudos, na sociedade agrária é muito
comum hospedagem de crianças provenientes do interior para cidade em
casa de parentes que residam próximos a escolas. E como os mecanismos
estabelecidos de parentesco se adaptam às necessidades de mudança, as
reciprocidades envolvidas podem transcender gerações. Hoje, a casa onde
D. Manu morou com seus fi lhos para estudar, abriga os fi lhos de D. Maria
José, Adelina e Diego, sobrinhas do seu marido Omar.
Parte dos fi lhos de D. Manu e seu Omar permaneceram na cidade de
Oriximiná, outros foram para Manaus e Belém e dois voltaram para o
interior para ajudar os pais. A volta do fi lho Luciano era significativa e
foi articulada por seu Omar junto com as lideranças da comunidade, vis-
to que além de ajudar o pai a cuidar da roça e na extração da castanha,

134 É uma liderança importante dos quilombolas, na época do campo ele assumia a coorde-
nação da cooperativa.

Processos identitários e a produção da etnicidade 221


assumiu o posto de saúde da comunidade, visto que já havia recebido for-
mação da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Luciano e sua esposa
Sueli “fortaleciam” a composição do núcleo familiar ajudando nas tarefas
do roçado, na extração da castanha e nos afazeres domésticos, mas am-
bos conciliavam ainda essas atividades com outra função: Luciano, como
agente do posto de saúde da comunidade de Jauari; e Sueli como professo-
ra na comunidade Boa Vista, a jusante de onde mora.
Ao observar os roçados familiares em visita a essas comunidades, notei
que os terrenos não eram demarcados fisicamente e sim defi nidos de acor-
do com quem trabalhou e plantou naquela terra. Assim, “a terra não tem
dono”, mas os roçados sim. Como foi dito anteriormente, é comum duas
famílias compartilharem o produto do roçado, dividindo-o como descrito
a seguir: no caso da mandioca, constatei que quando uma família plantava
e colhia e outra fazia o fabrico, ao fi nal dividiam a farinha meio a meio.
As frutas plantadas, como as melancias, eram para uso próprio, repartidas
ou vendidas na cidade dependendo da quantidade da produção. Outro
exemplo de meação entre as famílias: quando estava em campo, era época
de plantar melancia. A família de D. Terê dividia o roçado com seu Omar
que provia as sementes, indicadas como de difícil acesso por eles. O ma-
rido de D. Terê, conhecido como Preto, ficou então na função de preparar
o terreno, abrindo com fogo uma capoeira, trabalhar a terra e plantar.
Entraram em acordo que as duas famílias dividiriam a colheita. Após a co-
lheita, o excedente da produção serviria para realizar trocas com produtos
de outras comunidades vizinhas, ou levariam para a cidade afi m de “fazer
algum dinheirinho na feira”, como diziam.
Na época do campo estava também um sobrinho de Sueli ajudando
no roçado. Este não morava com eles, só “reforçava” a mão de obra fami-
liar. Isso é comum e funciona como um empréstimo de mão de obra: um
membro de uma família passa temporadas na casa de parentes ajudando
no trabalho. Ao fi nal, o trabalho pode ser trocado por produtos do roçado
que ajudou a plantar ou mesmo uma quantia em dinheiro.
Os roçados plantados pelos quilombolas dessa região já eram de ta-
manho menor quando comparados aos roçados feitos pelas demais po-
pulações ribeirinhas de Oriximiná. O’Dwyer (2002) ressalta que o fato
pode estar relacionado à predominância de atividades extrativistas nessas
comunidades. Confi rmando tal afi rmação, percebi em conversas que os
quilombolas mostravam maior interesse em trabalhar na colheita da casta-
nha (sua principal atividade extrativista destinada à venda) a cuidar de um
roçado, mesmo que fosse da mandioca, principal produto de subsistência

222 Eliane Cantarino O’Dwyer


consumido por eles. Os grupos domésticos estudados são, assim, constitu-
ídos por relações familiares que organizam as atividades no extrativismo
da castanha.
Além do roçado e da coleta sazonal da castanha, as famílias viviam da
caça e da pesca que diziam não faltar porque o rio é “encantado” e por isso
sempre farto. Essas atividades relacionadas eram base da vida produtiva e,
mais do que isso, eram as atividades que os homens desempenhavam com
muito gosto. Vistas como lazer e trabalho, afi rmavam que era para isso
que cada menino se preparava desde a infância. A caça era realizada pelos
homens, que geralmente saiam na madrugada em pequenos grupos muni-
dos de espingardas e terçados135, embrenhando-se mata adentro.
Os elementos que constituem o espaço físico das comunidades variam
de acordo com as particularidades de cada lugar. Era comum encontrar-
mos uma capela católica; as casas construídas em sua maioria de pau a
pique; um barracão onde realizam festas e celebrações; um campinho (de
futebol), importante espaço de integração social de todas as idades e pes-
soas hoje na comunidade, e uma escolinha que normalmente funciona até
a quarta série. Para continuidade dos estudos, os quilombolas precisam
optar entre a escola-polo na comunidade Boa Vista ou ir para a cidade
estudar e trabalhar. Destaco que a opção por continuar os estudos e per-
manecer no interior era recente, pois, antes da construção dessas escolas-
-polo, a única forma para continuar os estudos era ir para cidade de Ori-
ximiná. Anteriormente continuar os estudos não era possível para muitos.
E quando o era, mudava a dinâmica do trabalho do grupo doméstico com
as crianças, trocando a lida no roçado familiar por trabalhos diversos na
cidade, como empregados em lojas comerciais, restaurantes, oficinas e ser-
viços domésticos.
O movimento de retorno dos jovens para as comunidades estava se
fortalecendo na época do trabalho de campo. Isso se devia em parte aos
barcos disponibilizados pela prefeitura de Oriximiná para transportar as
crianças à escola-polo da comunidade de Boa Vista, o que serviu como
incentivo utilizado pelas lideranças para “encher novamente as comuni-
dades que estavam tristes” (e esvaziadas). Sobre a “tristeza”, durante o
trabalho de campo, ouvi o relato de uma situação dramática por eles vivi-
da no Jauari. A “triste história” ainda pulsante de um membro antigo da
comunidade morto pelo genro que, segundo dizem, o “confundiu” com
um animal da mata durante uma caçada. O acontecido foi tomado pelos

135 Tipo de facão para usos diversos.

Processos identitários e a produção da etnicidade 223


quilombolas como “mau presságio” e para combatê-lo, era preciso unir a
comunidade e incentivar o retorno dos jovens à vida no alto dos rios.
Os quilombolas não só valorizavam o “coletivo”, como o território
titulado, mas o que chamavam de “ser coletivo”, isto é, a reprodução por
parte de todas as gerações de respeito pela “coletividade”. Acreditavam
que sua sobrevivência e reprodução social dependiam disso. Até o uso da
energia elétrica era para eles um exemplo do “ser coletivo”, pois era gerada
por motor alimentado por diesel, com uso restrito, visto que o combustí-
vel ficava caro para os membros da comunidade. Mesmo que a prefeitura
contribuísse com 50 litros de diesel para cada comunidade, o restante pre-
cisava ser “rateado” entre as famílias conforme acordo entre as partes. A
energia elétrica era usada nas atividades de lazer que reunissem a maioria.
Por exemplo: para a novela e o futebol assistido na casa de algum morador
ou no barracão que tivesse TV, como para a dança que os jovens agitavam
para acontecer no barracão. Os dias e horários de funcionamento do mo-
tor eram acordados preferencialmente de segunda a sábado no horário da
novela. E prolongados às vezes para o futebol ou quando ocorria dança no
barracão. Essas eram atividades de importante integração e compartilha-
mento entre os membros dos grupos.
Tanto a caça como a pesca são tratados como recursos de consumo
livre, também oferecidas como presente a alguém que não conseguiu su-
cesso. O rio é fundamental para as comunidades além de ser usado como o
principal meio de locomoção e ser uma fonte imprescindível de alimento.
É na beira dele que todos tomam banho, lavam roupas, louças e retiram a
água usada nas pequenas tarefas de casa e para beber. Importante ressaltar
que a participação do rio na vida das comunidades ia além da utilidade.
O rio é também lugar de histórias e um personagem de destaque é o “bo-
to-cor-de-rosa”. Para os quilombolas, quando uma mulher em seu ciclo
menstrual lava-se no rio, atrai o boto com o cheiro, abrindo caminho para
os encantamentos do boto, que são associados a maldades, como engra-
vidar uma mulher ou causar doenças. Em conversas, sempre era alertada
sobre os perigos do boto e de uma mulher menstruada entrar no rio. Seu
Caio, morador de uma comunidade do rio Trombetas, certa vez me descre-
veu, em visita à sede da ARQMO, a forma que o boto assumia:

“Ele toma forma de um homem vestido todo de branco e usa sempre


chapéu para esconder o buraco da cabeça. Assim ele passeia pelas comu-
nidades enganando as mulheres, dançando com elas.”

224 Eliane Cantarino O’Dwyer


Da floresta, além da caça, os quilombolas aprenderam e acumularam
conhecimentos sobre sua flora, o que lhes permite extrair, além de remé-
dios, como óleos naturais, a castanha, hoje principal fonte de renda.
O extrativismo da castanha assume uma importância que vai além da
econômica. A “lida” com a castanha remonta o século XIX, quando os
escravos fugitivos das fazendas de Óbidos, Santarém e Alenquer formaram
seus quilombos nas matas do rio Trombetas e seus afluentes. Mesmo no pe-
ríodo da fuga para os quilombos, a coleta da castanha-do-pará visava não
apenas ao consumo, mas também à comercialização no mercado regional,
confi rmando não serem de um mundo social fechado e intransponível. Os
quilombolas vendiam gêneros agrícolas e extrativistas nas cidades de Óbi-
dos e Oriximiná ou para os regatões, tendo seus produtos alcançado certa
importância nesses mercados. Este sistema produtivo, com grande ênfase
no extrativismo, vinha sendo perpetuado de geração em geração.
Segundo o zoneamento agroecológico realizado pela Embrapa Ama-
zônia Oriental, na cobertura vegetal das terras de quilombo tinha des-
taque a floresta densa dos platôs. Considerando que era nessa classe de
floresta onde se concentravam as ocorrências espontâneas de castanheiras,
constata-se, segundo eles, “a vocação das terras de quilombo para o extra-
tivismo”, visão que valoriza hoje o fabrico e comercialização da castanha
mediante projetos de fi nanciamento a esse considerado principal “produto
quilombola”.
Os castanhais se concentram na cachoeira Chuvisco, que fica depois da
cachoeira Pancada, última comunidade quilombola do mesmo nome, su-
bindo o rio Erepecuru. A distância das comunidades leva algumas famílias
a irem para os castanhais, morar por lá na época da colheita e se dedicar
exclusivamente à colheita, ao contrário das famílias que moram mais pró-
ximas e fazem “turno no dia” para colher ao longo de um maior período.
As famílias que ficam pelos castanhais na época da colheita moram em ca-
sas provisórias, menores que as que costumam habitar, se alimentam pre-
ferencialmente de caça, pescaria, castanha e da farinha por elas levadas.
Entendendo como José César Gnaccarini e Margarida Maria Moura
(1983), a produção das famílias quilombolas pode ser considerada como
“uma produção camponesa, que se mantém ou se recria na estrutura agrá-
ria como uma forma de luta por sua permanência; ao mesmo tempo em
que dela se vale o sistema dominante para extração e captação de seu
sobretrabalho”. Correspondem assim a processos de ajustamento e ressig-
nificação local às forças econômicas e políticas hegemônicas. O tempo das
relações comerciais têm duração anual, muito diverso do calendário da

Processos identitários e a produção da etnicidade 225


produção extrativista da castanha realizada pelos quilombolas na primei-
ra parte do ano, época em que, como eles próprios relatam, todos ajudam
na colheita, até crianças de oito anos. A segunda parte do ano é dedicada
ao roçado associado às outras atividades de caça e pescaria.
German Castelli e Wikinson (2002) identificam vários tipos de com-
portamento econômico que obedecem a lógicas diferentes e têm diferentes
formas de validação. Para estes autores, cada um desses mundos tem uma
dinâmica de criatividade própria que se submete a modalidades diversas de
proteção, apropriadas à sua forma e “natureza”, o mesmo devendo ocorrer
com o chamado saber tradicional.
Principal produtor brasileiro de castanha, o Pará contava com a cidade
de Oriximiná como um importante polo de produção que, contudo, sofreu
significativa diminuição nas vendas e exportações deste produto, devido
principalmente à expansão da fronteira agrícola e ao desmatamento de
castanhais, para dar lugar à pecuária e à agricultura, ameaçando também
o “território quilombola”. Os mais extensos castanhais do estado, após as
frentes de ocupação do sudoeste do Pará, se concentravam na maior parte
no rio Trombetas, isto é, a que corresponde à área de ocupação tradicional
dos quilombos. Os quilombolas relataram vários confl itos com latifundi-
ários na tentativa de ocuparem, até mesmo à força, seus territórios. Tais
confl itos podem representar uma ameaça a um modo de vida camponês,
como Wanderley (1997) afi rma:

“A agricultura camponesa tradicional é profundamente inserida em um


território, lugar de vida e de trabalho, onde o camponês convive com ou-
tras categorias sociais e onde se desenvolve uma forma de sociabilidade
específica, que ultrapassa os laços familiares e de parentesco.”

Para Wanderley,

“O território é também percebido como um espaço de vida de uma socie-


dade local, que tem uma história, uma dinâmica social interna e redes de
integração com o conjunto da sociedade na qual está inserida. Trata-se,
neste caso, de perceber o território como inscrição espacial da memória
coletiva e como uma referência identitária forte.”

Um dos problemas enfrentados são as “fronteiras” do território demar-


cado, pois que esbarram com os “individuais”, como designam aqueles
que, durante o processo de demarcação e titulação do território quilombo-

226 Eliane Cantarino O’Dwyer


la, recusaram a titulação “coletiva”, preferindo receber títulos “individu-
ais”. Dizem que a maior parte deles não são “filhos do Erepecuru”, muitos
chegaram de outros municípios e até de outros estados. As fronteiras entre
eles referidas pelos quilombolas e demarcadas por este conflito atingem
principalmente os castanhais, que se encontram nas áreas de uso comum,
tituladas como coletivas, e continuam sendo usados com certo “abuso” pe-
los “individuais”, como dizem os “coletivos”, ao redefi nir os “de dentro” e
os “de fora” da comunidade.
Após conseguirem a titulação das terras, os quilombolas de Oriximiná
tornaram-se foco de políticas governamentais e ações não governamentais.
Exemplos disso é a Mineração Rio do Norte, prefeitura de Oriximiná e
a Comissão Pró-Índio de São Paulo, entre outros, que contribuem para
inovações sociais e políticas significativas, visando um projeto político-
-econômico defi nido como de luta pela sustentabilidade econômica e de
preservação ambiental e reprodução social. Assim, um dos desafios enfren-
tados pelas comunidades quilombolas de Oriximiná, consiste nas possibi-
lidades existentes de inserção social, política e econômica, e em ajustar as
exigências dos poderes constituídos em relação às práticas anteriormente
utilizadas de sustentabilidade dos grupos domésticos.
Como resultado do Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas (proje-
to estruturado pela ARQMO juntamente com a Comissão Pró-Indio de São
Paulo), a cooperativa dos castanheiros pode ser pensada como um desdobra-
mento decorrente da relação com o mercado regional e integração e sobrevi-
vência dessas comunidades nas estruturas econômicas e sociais mais amplas.
A cooperativa de castanheiros é resultado do Projeto Manejo dos Territórios
Quilombolas, surgindo como um novo ator político que tinha como objetivo
tornar a exploração da castanha uma atividade “mais rentável”.
Os quilombolas justificam a formação da cooperativa dizendo ser ela
uma forma de utilizar as “boas práticas”136 e ao mesmo tempo concentrar
a produção de castanha das comunidades e conseguir compradores que
possam pagar preços considerados justos pela produção. Antes do projeto
de manejo, o que mais acontecia era a venda da castanha bruta para os
atravessadores da região, que normalmente pagavam por ela um preço

136 Programa idealizado pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, vin-
culada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) as boas práticas no manejo
da castanha-do-brasil são cuidados simples que devem ser seguidos desde a coleta do produto
até a fase de ensacamento e industrialização. Evitar que o ouriço permaneça por muito tem-
po no chão, não misturar ouriços velhos com ouriços novos, separar as castanhas chochas,
mofadas ou machucadas daquelas em boas condições, não deixar as castanhas na mata por
longo período e secar o produto antes do armazenamento são alguns destes cuidados.

Processos identitários e a produção da etnicidade 227


muito baixo. Estes atravessadores normalmente faziam um primeiro bene-
ficiamento da castanha-do-Brasil, que incluía a secagem e polimento em
secadores rotativos, e a vendiam no mercado de Óbidos, Santarém ou para
empresas beneficiadoras, podendo assim ganhar até quatro vezes o valor
pago às comunidades produtoras. A cooperativa buscava atender esses pa-
drões de qualidade exigidos pelo mercado e, assim, acabar com a relação
de exploração dos atravessadores. Com o objetivo de dialogar com valo-
res, princípios e expectativas de outros segmentos e se apropriar deles de
diferentes maneiras, os quilombolas que fazem parte da cooperativa tem
igualmente a possibilidade de atualizar e reinterpretar valores, saberes,
técnicas, virtudes e qualidades próprias do que consideram “ser extrativis-
ta” inserido no “ser coletivo quilombola”.

Considerações finais
Ao realizar o estudo etnográfico nas comunidades remanescentes de qui-
lombo do rio Erepecuru, parto da ideia de que a cultura é nas pessoas por
meio de experiências. Assim, a minha experiência etnográfica do trabalho
de campo permitiu o acesso a essas formas de experiências vivenciadas
pelos quilombolas, que constituem modos de produzir e reproduzir suas
práticas culturais. Como Barth (2005) coloca: “(...) devemos pensar a cul-
tura como algo distribuído por intermédio das pessoas, entre as pessoas,
como resultado das suas experiências. Ao terem experiências semelhantes
e se engajarem mutuamente em reflexões, instruções e interações, as pesso-
as são induzidas a conceitualizar e, em parte, compartilhar vários modelos
culturais. Sugiro que um aspecto crucial das coisas culturais é a forma
pela qual elas se tornaram diferencialmente distribuídas entre pessoas e
entre círculos e grupos de pessoas”. Segundo o entendimento do grupo, ser
quilombola envolve não só a titulação coletiva do território como também
estar inserido nas redes de relações próprias das comunidades do rio Ere-
pecuru. É também ter um modo de ser considerado distinto, que defi ne os
de dentro em relação aos de fora.
Procurei investigar a multiplicidade de relações e significados envol-
vidos no cotidiano das pessoas interligadas, seja por laços de parentesco,
vizinhança e/ou redes sociais que integram as comunidades remanescentes
de quilombos do alto dos rios. Esses laços configuram o sentimento de
pertencimento aos grupos, entendendo estes como abertos, não fechados e
intransponíveis. Esse sentimento de pertencimento ultrapassa a localidade
das comunidades no interior. Como observei, ao se deslocarem do terri-
tório ocupado originalmente em direção à cidade de Oriximiná, o modo

228 Eliane Cantarino O’Dwyer


como a interação social entre os membros das comunidades acontece no
contexto urbano está associado ao compartilhamento de significados e re-
presentações sociais, reafi rmando repertórios históricos, sem necessaria-
mente reproduzir a mesma vida levada no interior.
No trabalho etnográfico, pude perceber que essas comunidades respon-
dem atualmente a novos desafios colocados pela inserção considerada “au-
tônoma”, mediante formação de uma cooperativa, no mercado regional da
castanha. Esta estratégia surge como uma tentativa de ajuste às exigências
externas de produção comercial da castanha, aos modos de vida e práticas
culturais que sempre garantiram a sustentabilidade dos grupos domésti-
cos quilombolas. Tais exigências externas, ao impor-lhes formas diversas
de extração e acondicionamento da castanha e de organização e uso do
espaço, inclusive interferindo no modelo de construção das casas de mora-
dia, encontram-se relacionadas ao exercício de poder e gestão dos poderes
hegemônicos sobre o território por eles ocupado, principalmente após a
titulação. É importante ressaltar os paradoxos e desafios presentes nesta
situação, uma vez que as comunidades quilombolas estudadas reivindicam
o reconhecimento de direitos territoriais sobre as áreas que ocupam como
meio de proteção e redução das pressões econômicas e políticas, garantin-
do a reprodução de práticas sociais e culturais.
Após investigar a multiplicidade de relações e significados, os quais
envolvem o cotidiano dos quilombolas autodesignados fi lhos do Erepe-
curu, foi possível perceber que eles constituem espaços de sociabilidade
orientados por estratégias de vida e destinos compartilhados como grupo
étnico. Também pude observar, através da concepção deles sobre interior
– considerado lugar de referência de práticas comuns e histórias comparti-
lhadas – que esse modo de vida transforma-se em um projeto a ser seguido,
inclusive nas condições consideradas temporárias de moradia no contexto
urbano. Ele corresponde a sinal diacrítico que defi ne os “fi lhos do rio”,
designados “pretos” pelos segmentos dominantes “brancos” da cidade.

Processos identitários e a produção da etnicidade 229


Anexo
Fotos cedidas por Diego Dacal

Figura 6. Navegação de rabeta no Rio Erepecuru

Figura 7. Navegação de rebeta no Rio Erepecuru em Oriximiná – PA.

230 Eliane Cantarino O’Dwyer


Figura 8. Vida cotidiana em comunidade do Rio Erepecuru, em Oriximiná – PA.
Figura 9. Fabrico da farinha de mandioca

Figura 10. Sede da ARQMO


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234 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 8

Identidade étnica em situação de fluxo:


o caso dos remanescentes de quilombo
em contexto urbano de Oriximiná-Pará
Nathalia S. Klein

Esse artigo é resultado de pesquisa de campo realizada no município de


Oriximiná no Pará entre os meses de fevereiro e março de 2009. A pes-
quisa fazia parte do projeto “Categorias sociais, formas de organização
e fluxos culturais (Uma análise do contexto urbano em Oriximiná)” que
recebeu apoio da Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal Flu-
minense (PROEX-UFF). O projeto foi coordenado pela professora Eliane
Cantarino O’Dwyer e possuía uma equipe formada por três alunos da
graduação de Ciências Sociais, entre eles a autora do presente artigo.
Os territórios quilombolas do município de Oriximiná, no Pará, foram
os primeiros a terem seus territórios demarcados e seus títulos de posse
expedidos pelo Incra entre os anos de 1995 e 1998, sendo as comunida-
des: Boa Vista em 20/11/1995; Água Fria em 20/11/1996; Trombetas (1º
título, concedido pelo Interpa) em 20/11/1997; Trombetas (2º título) em
20/11/1997; Erepecuru em 08/12/1998137. A luta das comunidades negras
de Oriximiná vem de muitos anos, mas foi em 1988 com a fundação a
Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná
(ARQMO) que a luta se intensificou, e em meados dos anos 1990 sua luta
teve frutos.
Em 1988, ano em que se comemorou a abolição da escravidão no Brasil
e a nova constituição foi promulgada, a Igreja Católica realizou a campa-
nha da fraternidade com o tema “Ouvi o clamor deste povo” tendo como
objetivo discutir a questão do negro na política e na vida social brasileira.
As comunidades negras do alto do rio possuíam dirigentes ligados a Igreja
Católica, com sede no centro urbano de Oriximiná, que eram responsáveis
por manter as capelas nas comunidades mais distantes. Esses dirigentes,

137 ALMEIDA, Alfredo Wagner (Orgs.). Cadernos de debates Nova Cartografi a Social: Ter-
ritórios quilombolas e confl itos. UEA, 2010, p.336/7.

Processos identitários e a produção da etnicidade 235


geralmente, também eram líderes comunitários locais. Anualmente os di-
rigentes vinham do interior para o “Encontro dos dirigentes” na cidade de
Oriximiná138, em janeiro de 1988 durante essa reunião a Igreja promoveu
um encontro entre os negros do Trombetas com quilombolas do Baixo
Amazonas que eles não conheciam e “nem sabiam que existiam”139. Mar-
cou-se então, para 26 de junho do mesmo ano, um novo encontro entre as
lideranças, dessa vez na comunidade do Pacoval no município de Alenquer.
No Pacoval se discutiu a constituição que seria promulgada em outubro e o
artigo que tratava das terras de remanescentes de quilombo, assegurando
a esses grupos a posse da terra onde viviam.
É preciso entender o contexto no qual os grupos negros do alto do rio
Trombetas e Erepecuru estavam vivendo. A criação da Reserva Biológica
do Rio Trombetas em 1979 (Decreto Federal n. 84.018) e o início da im-
plantação da Mineração Rio do Norte (MRN) em 1976 impediram o aces-
so às terras tradicionalmente ocupadas por várias dessas comunidades. É
então diante dessa situação de ameaça à manutenção de seu modo de vida
que, em 25 de julho de 1988, a ARQMO é fundada140.
Assim fica claro que a diferenciação étnica desse grupo nasce da rela-
ção com o Estado brasileiro frente à promulgação da Constituição de 1988
que em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) confere direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que
estejam ocupando suas terras, sendo-lhes garantida a titulação defi nitiva
pelo estado brasileiro. E do confl ito com os novos atores sociais e insti-
tuições que se inserem na região no fi m dos anos 1970, como a MRN e o
Ibama.
As análises de etnicidade demonstram que as diferenças culturais exis-
tentes entre um ou mais grupos, que interagem entre si, servem como de-
marcadores de identidade. É na interação com outros grupos que se cria
a diferença. Barth em um artigo intitulado “Etnicidade e o conceito de
cultura” afi rma que os grupos étnicos não são formados com base em
uma cultura comum, mas sim que a formação desses grupos ocorre com
base nas diferenças culturais comunicadas. Além disso, a etnicidade é
contextualmente significada, ou seja, em diferentes momentos, diferentes

138 Utilizo o termo “município” para me referir a toda extensão territorial de Oriximiná,
incluindo a zona rural e urbana. E utilizo o termo “cidade” para me referir apenas ao centro
urbano.
139 Fala de um informante do quilombo do Trombetas presente no encontro de 1988 grava-
da em entrevista durante o trabalho de campo em fevereiro de 2009.
140 É possível que a ARQMO tenha sido fundada no ano seguinte (1989), essa data de fun-
dação foi dada em entrevista por um dos fundadores da associação.

236 Eliane Cantarino O’Dwyer


diacríticos podem ser evocados. Dessa forma antes do início da luta pelo
reconhecimento como uma comunidade remanescente de quilombo, essas
comunidades do rio Trombetas eram conhecidos e referidos como “os ne-
gros do rio” ou “fi lhos do rio”, porém a partir da luta pelo reconhecimento
de sua identidade como remanescentes de quilombo pelo Estado brasilei-
ro eles passaram a se identificar e serem identificados como quilombolas.
Essa nova identificação “é utilizada por eles no presente para ação coletiva
em defesa do território que ocupam e na garantia da reprodução de seu
modo de vida” (O’DWYER, 1995, p. 125).
No entanto, diante dessa situação foi preciso para o pesquisador com-
preender os critérios de pertencimento por eles acionados a partir da rela-
ção com ribeirinhos e outros grupos. Uma memória ligada à experiência
da escravidão141 que era tida como um estigma pelo grupo, ao ponto em
que se evitava falar sobre o período, é recuperada de forma positiva e passa
a ser um sinal diacrítico para formação dessa identidade, “No caso das
chamadas comunidades negras rurais no Brasil, [as] diferenças culturais
costumam ser comunicadas ainda por meio de estereótipos, que por sua
vez podem ser relacionados com racismo e discriminação”. (O’DWYER,
2010, p. 23)
Mesmo após a abolição, como mostra o trabalho da antropóloga Elia-
ne O’Dwyer, a experiência na relação com os brancos ainda podia ser
vista quando ao barulho do motor de um barco as mães gritavam para
seus fi lhos, “olha o pega-pega” que então se escondiam longe das margens.
Apesar daqueles indivíduos nunca terem sido de fato escravos, eles ainda
possuem uma memória da escravidão que lhes foi transmitida por seus
antepassados. Essa transmissão cultural serve para moldar a subjetividade
do indivíduo através de sua experiência. As identidades sociais emergem
também das experiências pessoais dos indivíduos e não apenas de simples
construções ideológico-políticas. “Nada vem do nada, e fortes identidades
coletivas – [...] – estão sempre incorporadas em experiências pessoais”142 .
Outro importante aspecto dessa identidade quilombola é a figura do
sacaca, um curador que aprendeu com a natureza e, segundo contam os
quilombolas, passou dias debaixo do rio aprendendo sobre ervas e cura.
Além da cura os sacacas eram conhecidos por adivinhar o futuro, como o

141 O’DWYER, Eliane C. “Remanescentes de Quilombos” na fronteira amazônica: a et-


nicidade como instrumento de luta pela terra. Caderno Terra de Quilombo da Associação
Brasileira de Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, p. 6, 1995.
142 ERIKSEN, Thomas Hylland. Ethnic Identity, and Intergroup Confl ict: the significance
of personal experience. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 50 (tradução da autora).

Processos identitários e a produção da etnicidade 237


sacaca Balduíno que dizia ter visto uma cidade muito grande e com muitas
luzes que seria construída no meio da floresta e grandes navios cruzando o
rio, acredita-se que ele descrevia o que hoje é o complexo construído pela
MRN e seus navios cheios de bauxita que cruzam o Trombetas. Para os
quilombolas de Oriximiná a presença de um curandeiro na comunidade é
uma das marcas da legitimidade da identidade quilombola:

“Mas um quilombo quando é puro e verdadeiro sempre tem uma pessoa


que cura, que trata da gente, que concerta, que faz um remedinho, que dá
uma benzida. Isso é crença nossa do quilombo” (Um dos fi lhos de Chico
Melo, último sacaca das comunidades do Trombetas)143 .

No alto do rio as comunidades sobrevivem do plantio de seus roçados


familiares nas áreas comuns destinadas ao uso de todos os membros da
comunidade, da pesca e caça sazonal, e também da coleta de castanha.
Essas atividades que em grande parte são responsáveis pelo sustento das
famílias quilombolas ficaram prejudicadas pelas limitações e diminuições
territoriais impostas pela implantação da MRN e da reserva biológica144.
Essa mudança forçada no modo de vida dos quilombolas também provo-
cou a realocação de alguns de seus membros.
Um número cada vez maior de moradores das comunidades quilombo-
las têm deixado o interior para irem morar no centro urbano do município
de Oriximiná. A maioria das famílias se mudou para que os fi lhos pudes-
sem continuar os estudos que não são oferecidos no interior, onde o ensino
só vai até, no máximo, ao 9º ano do Ensino Fundamental. Outro fator que
motiva a mudança e a permanência no centro urbano são as oportunida-
des de emprego, na maioria das vezes como contratados temporários da
prefeitura, ou na MRN e, mais recentemente, na mineradora de Juruti. A
distancia do local de origem trouxe consequências para a identidade dessas
pessoas, ser quilombola sempre esteve ligado a um modo de vida específico
e, de certa forma, também ao local.
A ligação com o local de origem é mantida por visitas esporádicas en-
tre duas à três vezes por ano e pelas recorrentes referências a ele. O local
de origem é relatado de forma idealizada e com um forte sentimento de
nostalgia, fala-se de um passado idealizado onde a comunidade existia
em perfeita harmonia, até que algo externo ao grupo e ao local passou

143 Chico Melo foi o último sacaca de que se tinha notícia até a data em que a entrevista foi
feita, em fevereiro de 2009. Hoje, dizem que um novo sacaca está surgindo no Trombetas.
144 Idem a 142.

238 Eliane Cantarino O’Dwyer


a exercer uma influência negativa e a harmonia até então dominante foi
desfeita. A nostalgia estrutural145 representa uma imagem de um passado
ideal e irrecuperável. Essa ideia de um passado mítico, de um tempo antes
do tempo, acaba funcionando, para quem esta longe da comunidade do
interior, como um novo modo de afi rmar a identidade quilombola.
O racismo é outro sinal diacrítico de pertencimento evocado por esse
grupo, tanto pelos moradores do interior (quando se referem, por exemplo,
ao encontro com fiscais do Ibama146), quanto entre os membros que moram
no centro urbano de Oriximiná. Durante trabalho etnográfico pudemos
constatar que a experiência do racismo é constantemente evocada quando
se fala do que significa ser quilombola. Ouvimos histórias como a da D.
Maria Roberta, que ainda criança ouvia comentários racistas sempre que
chegava de barco ao porto de Oriximiná juntamente com sua família. Pes-
soas da geração mais nova que entrevistamos, como dois dos fi lhos da D.
Maria, também apontaram o racismo como algo vivenciado por eles com
uma certa frequência, porém apontam a fundação e o trabalho realizado
pela ARQMO como um marco para mudança do comportamento racista
do qual eram e são vítimas. Podemos perceber isso na fala de Clóvis, qui-
lombola originário do Jauari no alto do rio, que mudou para cidade para
terminar o Ensino Médio e na época da entrevista estava terminando um
curso sobre Segurança do Trabalho para tentar um emprego em alguma
mineradora da região:

“Os outros às vezes ainda querem tirar brincadeira. ‘A tu é remanescente


de quilombo’, ‘Eu digo, eu sou mesmo, sou remanescente de quilombo
sim’. E assumo que sou. Inclusive as pessoas já conhecem a história um
pouco porque a ARQMO já levou uma história muito longa. [...] Antes as
pessoas desdenhavam muito do negro, hoje eles têm até um respeito. Até
pelas pessoas terem um conhecimento maior da história, eles levam mais
a sério isso. A gente ainda encontra muita dificuldade, as pessoas ainda
têm muito preconceito, mas mesmo que eles tenham preconceito, eles pro-
curam respeitar também.” (Quilombola do Jauari, entrevista realizada
em fevereiro de 2009)

O relato de experiências similares, como o racismo, auxilia a forma-


ção de uma memória e de uma identidade coletiva de reconhecimento. No

145 HERZFELD, Michael. Cultural intimacy: social poetics in the nation-state. Routledge,
2005, p. 147.
146 Idem a 142.

Processos identitários e a produção da etnicidade 239


entanto, para que esse discurso tenha um efeito unificador é preciso que
haja uma forma de autenticação dessas experiências, algo que permita que
experiências pessoais sejam identificadas como características coletivas.
Formam-se assim visões idealizadas da ordem social, que por sua vez irão
mediar e autenticar essas experiências. Para que isso ocorra é necessá-
rio que se crie uma linguagem simbólica comum entre todos os membros
permitindo que diferentes experiências sejam comunicadas e, ainda mais
importante, fazendo com que elas funcionem como características unifica-
doras. Para os remanescentes de quilombo em Oriximiná, nos parece que
esse papel é exercido pela Associação dos Remanescentes de Quilombo de
Oriximiná (ARQMO), que por ser a representante frente ao Estado pela
luta dos direitos do grupo, se tornou a instituição autenticadora desses
significados. Porém, essas visões idealizadas só conseguem agir sobre os
membros do grupo porque se articula de alguma forma com a experiência
prévia dos indivíduos através de um idioma comum, no caso dos remanes-
centes de quilombo em Oriximiná, o racismo. No entanto, não devemos
crer que essa experiência do indivíduo ocorre livremente, ela está sempre
sujeita a processos de controle, silenciamento e apagamento de memória147,
pois são esses processos que auxiliam na formação de um discurso oficial
sobre a experiência capaz de dar sentido as diferenças produzidas pelos
vários indivíduos.
Um dos fundadores e ex-presidente da ARQMO, Daniel, exemplificou
o papel da associação com o caso de dois quilombolas que haviam sidos
detidos pela polícia em Oriximiná “por estarem bêbados e fazendo bagun-
ça” na cidade. No momento que um integrante da direção da ARQMO
soube da prisão foi até a delegacia ver o que poderia ser feito para soltar os
quilombolas, após conversar com os policiais e se comprometerem a evitar
que o fato voltasse a ocorrer. Segundo o entrevistado, quando algo desse
tipo acontece não é um reflexo apenas nos indivíduos que foram presos,
mas em toda comunidade quilombola. Por ser uma cidade pequena a notí-
cia logo se espalhou e as pessoas se referiam aos dois como “aqueles qui-
lombolas desocupados” (visão que era comum ao se referirem aos negros
do rio antes da titulação). Assim é papel da ARQMO lidar com a situação
da melhor forma possível para preservar a imagem de todo o grupo. O
estigma da cor é levantado pelos outros quilombolas quando acusam in-
formalmente os policiais de racismo, alegando que na cidade todo mundo

147 BARTH, Fredrik. Etnicidade e o conceito de cultura. Antropolítica, n. 19. EDUFF, 2005.

240 Eliane Cantarino O’Dwyer


bebe e só os negros são presos. Esse exemplo deixa clara a participação e o
papel da ARQMO como instituição modeladora de experiências do grupo.
Na mudança para cidade algumas tradições se mantêm como é o caso
da reza. D. Maria Roberta é a viúva de Chico Melo, último sacaca de Ori-
ximiná e vive na cidade a mais de uma década e é uma famosa rezadeira.
Ela aprendeu a rezar com o pai e diz que os antigos todos sabiam rezar,
mas que hoje em dia rezador que cura e conhece remédios são poucos. No
entanto não são apenas os quilombolas que moram na cidade ou que estão
de passagem pelo centro urbano que procuram a ajuda de D. Maria, ela
conta que até a mulher do atual prefeito aparece na casa dela para “curar
rasgadura” e rezar.

“Rasga a carne da pessoa aí ela vem aqui dizendo que tá doendo. Aí se


não for ‘desmedidura’ é rasgadura. Aí eu costuro e emplastro e a pessoa
fica boa. Facada148 eu curo com ‘diabinho’ que tem lá perto de casa, a gen-
te soca ele, tira o sumo do ‘diabinho’ espreme onde tá a furada, queima a
folha, pega um algodão e ‘empoa’. Aí sara.” (D. Maria Roberta, entrevis-
ta realizada em fevereiro de 2009)

Isso demonstra que o contexto de interação dos quilombolas com


membros de diferentes grupos é ampliado no contexto urbano graças ao
grande fluxo de pessoas. A MRN atrai muitas pessoas de outros lugares,
especialmente do nordeste, em busca de emprego. Enquanto os homens
moram dentro do complexo da mineradora as mulheres e os fi lhos residem
na cidade. Existe uma forte presença indígena no centro urbano, onde os
índios Wai Wai possuem uma casa que abriga os índios que estão termi-
nando seus estudos ou estão apenas de passagem pela cidade. Além desses
grupos há também os descendentes dos imigrantes italianos, pessoas que
migraram de outras partes do interior do próprio município, entre outros.
Essas novas interações com os recém chegados afetam a forma como a
identidade quilombola é acionada no meio urbano.
A etnicidade é constituída na interação social149 entre diferentes gru-
pos. Assim enquanto a identidade do grupo no interior era uma resposta
e forma de lidar com a interação conflituosa com a MRN e o Ibama, e o
resultado de relações de solidariedade específicas entre o próprio grupo,
na cidade essas relações se transformam, mas não desaparecem. Essas in-

148 Brigas com o uso de facas são muito comuns na cidade.


149 ERIKSEN, Thomas Hylland. Ethnicity and Nationalism. Pluto Press, 1993, p. 18.

Processos identitários e a produção da etnicidade 241


terações étnicas tanto na cidade quanto no interior possuem significados
políticos, organizacionais e simbólicos na criação e manutenção dessas
identidades.
Dessa forma torna-se claro que ter uma identidade quilombola no cen-
tro urbano é diferente de ter essa mesma identidade no interior. Diferentes
diacríticos, memórias e experiência são evocados dependendo da posição
em que o indivíduo se encontra. O pertencimento a um grupo não de-
pende exclusivamente de traços culturais igualmente distribuídos150, mas
sobretudo, da interação com outros indivíduos e grupos. Como no caso de
Oriximiná, o que forma a identidade do grupo é uma comunidade imagi-
nada151 a partir de significados compartilhados, que permitem uma com-
preensão e identificação mútua.
A cultura é induzida nas pessoas através da experiência por meio das
quais se dá o aprendizado, demonstrando que ela não é internamente ho-
mogênea e é constantemente produzida e reproduzida. A cultura ou tra-
dição de conhecimento é distribuída de forma diferente entre pessoas e
grupos de pessoas dentro do mesmo grupo, pois ela depende dos processos
de experiência pessoal, aprendizado e da interação interna e externa dos
membros152 . Um tipo particular de organização social produz e reproduz
um padrão de distribuição de conhecimento e elementos culturais que
motiva a interação entre pessoas e grupos. Por sua vez essas interações
e trocas são responsáveis por motivar uma organização social particu-
lar preenchendo-a de sentido. No entanto, esse “mito de homogeneidade”
cultural compartilhada é um dos fatores básicos para formação de uma
comunidade imaginada que permite a construção de identidades sociais e
étnicas de pertencimento.
Quando falamos dessas identidades não estamos nos referindo a algo
fi xo e imutável, pelo contrário, elas estão em constante fluxo e redefi ni-
ção. O que gera uma identidade étnica, não é uma cultura igualmente
compartilhada, mas sim a relação estabelecida entre diferentes grupos em
contexto de interação. Por isso as análises de grupos étnicos devem ser
contextuais, tendo em vista, que mudanças de ordem externa podem ter
impacto na forma de organização do grupo.

150 BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Contra Capa, 2000.
151 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Companhia das Letras, 2008.
152 BARTH, Fredrik. An anthropology of knowledge. Current Anthropology, v. 4, 2002.

242 Eliane Cantarino O’Dwyer


Bibliografia
ALMEIDA, Alfredo W. Berno. Territórios Quilombolas e conflitos: comentários sobre povos
e comunidades tradicionais atingidos por conflitos de terra e atos de violência no decorrer de
2009. In: Territórios Quilombolas e Conflitos. UEA Edições, 2010.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BARTH, Fredrik. Cosmologies in the making. Cambridge: Cambridge University Press,
1987.
___. Etnicidade e o conceito de cultura. In: Antropolítica. n. 19, 2005.
___. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
___. An Anthropology of Knowledge. v. 43, n. 1, 2002.
ERIKSEN, Thomas Hylland. Ethnicity and Nationalism: anthropological perspectives.
London: Pluto Press. 1993.
___. Ethnic Identity, National Identity, and Intergroup Conflict: the significance of personal
Experience. In: ASHMORE; JUSSIM; WILDER (Eds.). Social Identity, intergroup conflict,
and conflict reduction. Oxford: Oxford University Press, 2001.
HERZFELD, Michael. Cultural intimacy: social poetics in the nation-state. London:
Routledge, 2005.
O’DWYER, Eliane C. “Remanescentes de Quilombos” na fronteira amazônica: a etnicidade
como instrumento de luta pela terra. In: Caderno Terra de Quilombo da Associação
Brasileira de Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
___. O papel social do antropólogo: aplicação do fazer antropológico e do conhecimento
disciplinar dos debates públicos contemporâneos. Rio de Janeiro: E-papers, 2010.

Processos identitários e a produção da etnicidade 243


Capítulo 9

Identidades em movimento: questionamentos acerca


de construção de identidades culturais e étnicas
em condições contextuais de deslocamentos153
Erick Delgado Ribeiro

Este trabalho monográfico foi construído integralmente como realização


de compreensões processuais, que envolvem desde aspectos referentes à
Antropologia, como disciplina e conjuntura referencial de conhecimento;
passando por questionamentos acerca da Etnografia, como método e ex-
periência; até elaborações mais pontuais, referentes a relações possíveis
entre construções de identidades culturais e conjunturas de deslocamentos,
que, pode-se dizer, se configuram como objeto fundamental dos esforços
reflexivos aqui desenvolvidos.
Como ponto de partida, considera-se que a compreensão da Antro-
pologia como disciplina de construção de conhecimentos se confere na
realização dos saberes antropológicos como referenciais de visão e expe-
rimentação de realidades diversas. Isto não significa dizer que a Antropo-
logia se faz como um “instrumento universal” de “leitura de realidades
autoevidentes”, mas, pelo contrário, entende-se que a efetivação de pro-
postas antropológicas se constitui mediante reconhecimentos e buscas de
compreensões acerca de diversas condições de manifestação humana. Em
outras palavras, entende-se a Antropologia como conjuntura que abarca
inúmeros referenciais compreensivos, configurados em atitudes e metodo-
logias, direcionados a múltiplas experimentações humanas de mundo em
contextos socioculturais dinamicamente dispostos. Neste sentido, conside-
ra-se possível a construção da disciplina antropológica por meio de dife-
rentes “linguagens”, cujos conteúdos e usos – termos, categorias, sentidos,
significados etc. – se conferem em pluralidades contextuais, que variam
tanto entre autores quanto entre ‘escolas’ antropológicas ou ‘tradições’

153 Monografi a apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal


Fluminense para conclusão da habilitação de Bacharelado do Curso de Ciências Sociais, aqui
editada e resumida para atender às condições de edição propostas a esta publicação.

244 Eliane Cantarino O’Dwyer


disciplinares possíveis e são direcionados a estes esforços de compreensão
de “alteridades” e “diversidades” humanas.
Neste sentido, reconhece-se aqui uma diacriticidade conferida a alguns
elementos práticos e conceituais, considerados como fundamentais às rea-
lizações antropológicas, entre eles, a Etnografia. Sucintamente, considera-
-se que a abordagem etnográfica se constitui como metodologia funda-
mental dos “fazeres antropológicos” pelo fato de ser construída por meio
de relativas e diversas possibilidades de experimentação de mundo, não
apenas em sentido de “observação”, mas em situações de posicionamentos
dinâmicos em diversos contextos socioculturais. Isto é melhor discutido
ao longo do trabalho, mas é possível adiantar que estes posicionamentos,
contínuos e processuais, se põem como efetivas experiências existenciais,
condicionadas e limitadas pelas situações e contextos de relacionamentos
sociais nos quais se inscreve cada etnógrafo, como agente social ativo em
posicionamentos dinamicamente construídos. Desta forma, defi ne-se que
a etnografia aponta para resultados sempre relativamente provisórios, que
não abrangem totalidades, mas sim localidades dinamicamente dispostas,
conferidas em movimentações constantes de referenciais significativos e
visões de mundo.
Dito isto, torna-se possível se apresentar aquilo que se toma como
questionamento fundamental deste trabalho, constituído em abordagens
acerca de construções de identidades culturais em condições daquilo que
aqui se defi ne como deslocamentos. Em termos também preliminares, par-
te-se da concepção de construções identitárias como fluxos contínuos de
negociações relacionais significativas e simbólicas entre agentes sociais,
conferidos em múltiplos contextos culturais igualmente dinâmicos – como
conjuntos analiticamente classificatórios e tipificados –, cujas condições
de localização se apresentam fundamentadas em movimentos contínuos
de “renovação” de referenciais de experiência existencial. Em outras pala-
vras, compreende-se que cada condição identitária e cultural se apresenta
como conjuntura construída e realizada em trajetórias processuais de inú-
meras manifestações inter-relacionadas, conferidas situacionalmente nas
agências socialmente implicadas dos atores sociais.
Não se fazem, então, como sistemas estruturais, tomados em condi-
ções de relações necessárias entre elementos, que poderiam sugerir que
se algum elemento “falhar” em suas disposições funcionais sistemáticas,
todos os outros elementos também “falharão”, num enorme movimento
de falhas expansivas encadeadas, sucessivas, até que tudo resulte em um
colapso total da estrutura. A condição processual aqui defi nida sugere que

Processos identitários e a produção da etnicidade 245


os relacionamentos se realizam em condições de construções contínuas,
ativas e dinâmicas, que não implicam voluntarismos ou determinismos,
mas sim empregam-se como processos de experimentação integral, que en-
volvem condições empíricas (porém não empiristas) e conceituais (porém
nunca a priori).
Não se sucita uma disposição liminar entre extremos ou polos radi-
cais, mas se sugere condições de diferenciação que envolvem trajetórias,
nas quais os “elementos” não são “necessariamente relacionados”, mas
sim se realizam de forma relativamente autônoma, não isolada, manten-
do relações diversas de afetação e influências recíprocas, múltiplas, po-
rém limitadas. Assim, ao invés de “falhas sistemáticas” que se propagam
gradualmente, até o colapso da estrutura, consideram-se transformações
processuais que ocorrem em cada elemento autônomo e que afetam os
outros elementos, porém não necessariamente destruindo as composições
conjunturais mais amplas. Mas gerando movimentos e mudanças, com
intensidades relativas: deslocamentos. Neste sentido, considera-se desloca-
mentos como movimentos tanto em esfera material quanto de referenciais
culturais realizados pelos agentes sociais em suas trajetórias relacionais e
identitárias e, em última instância, existenciais.
Por fi m, afi rma-se veementemente que este trabalho se apresenta cons-
truído e fundamentado inteiramente em situações etnográficas experimen-
tadas, sendo todo conceito, categoria, relato e discussão componentes de
seu desenvolvimento defi nidos como elaborações das múltiplas experiên-
cias vivenciadas e presenciadas tanto durante a permanência em campo,
quanto em momentos posteriores de reflexão. Diz-se ainda que estas ar-
gumentações são apresentadas em condições relativamente provisórias de
análise, entendendo-se que toda categoria conceitual é construída, orga-
nizada e se inscreve em trajetórias de constituição, sempre ressignificadas
dinamicamente, sendo a própria monografia um construto em “desloca-
mento”, cujas compreensões se marcam processualmente em momentos,
situações e localizações não estanques, a serem analiticamente desdobra-
das, em possíveis ocasiões futuras.

Linguagens
Neste momento, busca-se concentrar os esforços analíticos na construção
de um conceito de Linguagem como aqui se considera, entendido como
fundamental para a argumentação desenvolvida neste trabalho. Para tanto,
considera-se primeiramente a necessidade de apresentação de dois outros
conceitos: significação e simbolização, para garantir maior clareza à análise.

246 Eliane Cantarino O’Dwyer


O conceito de significação proposto neste trabalho se confere em uma
esfera de compreensão que busca extravasar o escopo idiomático – predo-
minante nas concepções linguísticas – e se remete a processos desenvolvi-
dos pelo ser humano em sua realização existencial, referentes à construção
de suas relações com o mundo e com os outros fenômenos nele manifestos.
Dito de outra forma, não se busca aqui concentrar o foco analítico em
condições de enquadramento significativo de fenômenos em modelos de
estrutura linguística, mas sim dar ênfase a aspectos condicionais de cons-
trução significativa, referidos nas diversas experimentações dos indivíduos
em âmbito relacional.
Significar envolve, então, a construção e atribuição de referenciais re-
lacionados com experiências, de modo a criar vínculos em esferas diver-
sas – intelectiva, afetiva, cognitiva etc. Corresponde à defi nição de gostos,
valores, preferências, importâncias, desejos, vontades, entre outras cate-
gorias que se ligam a configurações subjetivas e que compõem a conjun-
tura individual de cada um, mas que não se limitam ou se encerram no
indivíduo. Trata-se, em suma, do processo engendrado na experimentação
existencial, por meio do qual o indivíduo constrói e atribui significados
relacionados com fenômenos experimentados.
No mesmo sentido análogo, se defi ne, então, o processo de simboli-
zação aqui proposto. Em primeiro lugar, a noção de “condensação” de
sentidos e significados, designada por Turner nas condições dos símbo-
los rituais, serve bem ao intuito proposto de se concentrar atributos sem
suprimi-los, neste caso, referentes às categorias envolvidas na concepção
de significação.
A categoria símbolo ressemantizada, segue, então, defi nida como um
fenômeno experimentado pelo indivíduo e organizado em suas esferas
impressivas e compreensivas de forma já referenciada e significativa. Um
ordenamento classificatório que engloba fenômenos já significativamente
localizados em determinados contextos relacionais de experimentação dos
indivíduos, capaz de concentrar significados diversos, não só em diferentes
contextos, mas em um mesmo contexto de experiência, remetendo à pro-
priedade polissêmica defi nida por Turner.
Portanto, pode-se dizer que o conceito de simbolização aqui proposto
remete a um processo de localização de fenômenos significados em contex-
tos específicos de experiência existencial significativa, tendo-se simbolizar
como uma forma de localizar especificamente o conteúdo significativo de
determinado fenômeno em determinado contexto situacional. Evoca-se,
então, uma diversidade de práticas, usos, compreensões e, portanto, sig-

Processos identitários e a produção da etnicidade 247


nificações, que passam a concentrar importâncias específicas no contexto
em que se inserem e, assim, extravasam dimensões linguísticas idiomá-
ticas generalizadas e se conferem como índices de condições expressivas
e significativas pontualmente localizadas, ou seja, condições simbólicas,
que defi nem os símbolos como fenômenos existencialmente localizados em
determinado contexto de experiência relacional significativa, de natureza
diversa – material ou imaterial –, capazes de concentrar, efetivar e incor-
porar a realização das condições significativas locais.
Entende-se que isto não se desenvolve pelo simples enquadramento dos
fenômenos em estruturas significativas predispostas, mas sim pela cons-
trução destas relações e compreensões significativas, referenciadas em con-
dições de compartilhamento significativo, ou seja, em âmbito coletivo de
experimentação existencial. Da mesma forma, que não há condição sig-
nificativa imanente, que se apreenda pelos significados ou se “substitua”
pelos símbolos, não há condições absolutas a priori que atuem de modo
determinista sobre o indivíduo. Além disso, embora se tenha configurado
uma análise que conceitua separadamente estes processos, esta separação
foi realizada apenas como recurso metodológico, pois entende-se que sig-
nificar e simbolizar ocorrem simultaneamente, como processos inseridos
na experimentação do indivíduo.
Defi ne-se então que, no sentido apresentado, a condição subjetiva não
se confere como um construção de “consciências coletivas”, comporta-
mentos passivos e nem de encontros casuais de subjetividades “autossufi-
cientes”. Mas sim, conceitua diferentes formas de ser, que, embora diversi-
ficadas, mantém inter-relações constantes, fundamentadas em referenciais
compreendidos como comuns, compartilhados. Este processo condicional
é aqui, então, categorizado como intersubjetividade: processo inter-rela-
cional contínuo de experimentação subjetiva, conferido pela construção
de referências significativas e simbólicas coletivamente compreensíveis e
compartilhadas.
Conclui-se, então, que intersubjetividade se remete a uma condição
subjetiva de reciprocidade e, portanto, coletiva, sendo todo sujeito, em úl-
tima instância, um agente social, que realiza ações coletivamente impli-
cadas: intersubjetivas. Assim, linguagem não é uma condição que torna
possível a relação entre os sujeitos, mas sim, é o conjunto destas relações,
um complexo que engloba todas as condições e realizações significativas e
simbólicas intersubjetivas.
Compreende-se, então, que os sujeitos constituem linguagens em suas
experimentações intersubjetivas de modo a organizar e realizar existên-

248 Eliane Cantarino O’Dwyer


cia por meio de construções significativas e simbólicas referenciais, pelas
quais orientam suas ações socialmente implicadas. Portanto, as linguagens
se constroem por processos coordenados de significação e simbolização, de
modo a construir significados relacionados com fenômenos, que, quando
significativamente experimentados tornam-se também existencialmente
localizados, contextualizados e inseridos em economias simbólicas e signi-
ficativas e condições de múltiplas referenciações.
As polarizações possíveis das condições de linguagens – normativa e
usual – são, portanto, planos conceituais que se remetem a relações cons-
tantes entre processos de construções, desconstruções e reconstruções de
referenciais significativos e simbólicos experimentados em realizações in-
tersubjetivas de existência.
Desta conclusão, erige-se, então, uma nova discussão, acerca das con-
dições de orientação das experimentações intersubjetivas de existência,
realizadas em formas convencionadas de ações socialmente implicadas:
identidades culturais e étnicas.

Identidades

Ações Socialmente Implicadas


Como dito anteriormente, as linguagens envolvem conjuntos de condições e
construtos significativos e simbólicos, constituídos e compartilhados de for-
ma referencial entre os sujeitos. Cada linguagem, portanto, inscreve diversas
formas de experimentação e realização de existência, definidas em condições
de cada sujeito e relativamente compartilhadas em relações de intersubjeti-
vidade. Neste sentido, problematiza-se esta noção de “compartilhamento”.
Compartilhar não significa agir de forma necessariamente semelhante,
coerente, coesa ou equivalente, mesmo que se remeta a referenciais inter-
subjetivos entendidos como comuns. O compartilhamento intersubjetivo
sugere, então, a) tanto possibilidades de que os sujeitos interpretem as sig-
nificações e simbolizações realizadas por outros sujeitos, compreendendo-
-as como configurações “comuns” ou “estranhas” em suas próprias expe-
riências; b) quanto a disposição de realizarem-se de forma compreensível,
ou seja, de modo que suas ações signifiquem e simbolizem aquilo que cada
agente busca manifestar, possível de ser compreendido e interpretado pelos
outros sujeitos, com determinados sentidos.
Entende-se, então, que estas relativas e frágeis condições compreensi-
vas e interpretativas, que compõem fundamentalmente as relações inter-

Processos identitários e a produção da etnicidade 249


subjetivas, se inscrevem em linguagens diversas, que marcam as possibili-
dades de relacionamento entre os sujeitos, como aspectos referenciais das
ações subjetivas, sendo todo conteúdo dispare ou semelhante defi nido em
condições de cada relação estabelecida.
A concepção de ações socialmente implicadas remete, então, a condi-
ções relacionais de compartilhamento intersubjetivo, nos quais os sujeitos
defi nem certas formas de agir como “modelos” convencionais de interação.
Ou seja, estabelecem certas linguagens como referências de ação intersub-
jetiva. Agir de forma socialmente implicada se refere a ações imbuídas de
linguagens compartilhadas, referenciadas como formas de experimenta-
ção intersubjetiva de existência. Por compreensão análoga, pode-se tomar
a condição metodológica weberiana, pelos tipos ideais de ação social. A
tipificação, defi nida por Weber como método de análise das ações sociais,
pode ser considerada nas próprias condições práticas de agência relacional
intersubjetiva, uma vez que os sujeitos defi nem certos tipos de linguagens
como ideais para cada contexto de ação. Assim, ao compartilhar determi-
nadas referências, os sujeitos defi nem não apenas quais ações realizar, mas
também quais linguagens são – convencionalmente – mais adequadas para
realizarem suas existências de modo intersubjetivo, compartilhado.
Portanto, diz-se que cada ação socialmente implicada se desenvolve,
em última instância, por meio de múltiplos processamentos de linguagens
– atos, gestos e concepções, significativos e simbólicos – convencionalmen-
te construídos, organizados e compartilhados em condições relacionais, de
experimentações intersubjetivas de existência.

Culturas
Afi rma-se, então, que cada contexto intersubjetivo se configura por meio
de inúmeras agências socialmente implicadas, que se atravessam e se afe-
tam continuamente, formando quadros processuais igualmente ininterrup-
tos. Observa-se que cada ação é constituída por diversos atos coordenados
processualmente, que por sua vez são construídos por meio da conjugação
de várias linguagens, que abarcam inúmeras condições significativas e sim-
bólicas. A multiplicidade de linguagens constituintes de cada ação torna
estes quadros ainda mais complexos, uma vez que as linguagens também
são posicionadas em condições de influências mútuas e constantes. Neste
panorama aparentemente caótico, recorre-se a uma outra disposição já
apresentada, que defi ne que é característica fundante de toda linguagem
o fato de ser também referencialmente construída. Isto torna possível se
considerar, com mais clareza, que todas as configurações processuais de

250 Eliane Cantarino O’Dwyer


linguagens se conferem defi nidas em condições de aprendizados, tradições,
produções e reproduções de saberes e práticas compartilhados.
Recorrendo às noções de dimensões normativas e usuais, nas condições
aqui definidas, diz-se então que ao compartilharem linguagens por meio de
ações socialmente implicadas, os sujeitos promovem a construção processu-
al de condições referenciais, convencionadas como formas comuns de agên-
cia em detrimento a formas diferenciadas ou estranhas de manifestação.
Entende-se aqui que estes “enquadramentos” relativos – como poderia
propor Erving Goffman – se compõem por construções em caráter de or-
ganização inteligível de experiência, algo mais próximo do que são tipifi-
cações, como construtos convencionais de referenciação. Cada referencial
é compartilhado em condição social, por relações de experimentações que
não se organizam necessariamente em sistemas estruturais, mas sim em
composições de ações processualmente inter-relacionadas. É neste sentido
que se pensa o conceito de cultura aqui proposto.
De forma direta, pode-se dizer que se concebe cultura como um com-
plexo de redes processualmente construídas, dispostas e inter-relacionadas
de ações socialmente implicadas. Neste sentido, sendo cada ação um con-
junto processual de linguagens, entende-se que não se fala de Cultura, mas
sim de culturas, de forma a não encerrar um conceito em formas estritas
ou unívocas. Com esta condição categórica busca-se nomear sem nomi-
nalizar, ou seja, entende-se que a categoria “cultura” é construída como
condição classificatória, que organiza inteligivelmente conjuntos de ações
socialmente implicadas, como complexos convencionados de condições e
relações intersubjetivas de linguagens e, portanto, de conteúdos e proces-
sos significativos e simbólicos, existencialmente experimentados e realiza-
dos; com intenção de compreendê-los como processos ativos e dinâmicos
e não como estruturas pré-fabricadas ou hermeticamente desenvolvidas.
Reforça-se que culturas se põe como conceito no qual se inscreve uma
infi nidade de experiências existenciais defi nidas em termos e condições
comparativas de compreensão. De forma mais simplificada, dizer que a
forma de existir em determinada localidade é a cultura deste contexto
se faz possível apenas levando em conta condições de outros contextos
também entendidas como culturas. Assim, o conceito de cultura é possível
apenas comparativamente, levando em conta condições existenciais que se
inter-relacionam e que são compreendidas como “próximas”, “díspares”,
“melhores”, “mais ou menos evoluídas” por condição classificatória, ten-
do-se umas em referências com as outras. A arbitrariedade está na própria
condição linguística de conceito, assim como suas condições de condensa-

Processos identitários e a produção da etnicidade 251


ção de diversidades: que unem sem fundir, diferenciam sem desvincular e
organizam sem suprimir.
Além disso, esta condição conceitual de culturas – como redes pro-
cessuais múltiplas de diversas ações socialmente implicadas – inscreve a
condição de comparatividade relacional também no sentido de cada condi-
ção cultural é intersubjetivamente construída dinamicamente. Isto porque
entende-se que as culturas não se apresentam estanques ou presas a suas si-
tuações contextuais, como se cada local possuísse uma cultura própria em
essência. Entende-se um status processual das condições conceitualmente
classificadas como culturais, que não apenas mantém vínculos constantes e
transformações inter-relacionais, mas também se conferem em trajetórias,
compreensíveis genealogicamente por comparação. Assim, compreender e
acompanhar trajetórias processuais inclui noções comparativas e classifi-
catórias, conceitualmente organizadas e tipificadas, mas nunca engessadas
ou reificadas.
Desta forma, a metodologia genealógica aqui proposta se põe como
condição de compreensão de trajetórias sem intenção de defi ni-las como
justificativas ou causas explicativas, mas as entendendo como processos de
transformação de condições experimentadas em diversos contextos. Diz-se
ainda, que não existe uma linguagem ou algumas linguagens unívocas em
cada cultura, pois – como conjunto de linguagens – cada cultura inscreve
múltiplas e inumeráveis condições de realização de existência que são con-
ceitualmente construídas e localizadas em formas convencionadas de com-
preensão. Portanto afi rma-se que não há culturas inerentes a cada lugar,
mas sim trajetórias processuais de experimentações e realizações existen-
ciais intersubjetivamente relacionadas, constituídas em ações socialmente
implicadas que se entrelaçam formando redes processuais e dinâmicas, de-
fi nidas e localizadas conceitualmente – de forma arbitrária, convencional
e condensadora – como culturas.

Identidades
Retomando a organização categórica aqui proposta e defi nida, pode-se
considerar que: a) as inúmeras possibilidades de “seres humanos” se cons-
troem em dimensões experimentais, b) nas quais cada sujeito se realiza
como uma existência singular, inter-relacionado com outros sujeitos – e
portanto com outras ‘existências singulares’, c) por meio de condições de
compartilhamento de linguagens, constituídas e manifestas em ações so-
cialmente implicadas, d) multiplicadas em redes processuais que são con-
ceitualmente dispostas como culturas localizadas e dinâmicas. Defi nin-

252 Eliane Cantarino O’Dwyer


do-se que cada cultura se apresenta como condição de compreensão de
diversas experimentações existenciais, ou ainda, como conjuntura concei-
tual composta por redes de inúmeros processos intersubjetivos; pode-se,
então, falar em construções de múltiplas identidades subjetivas.
Neste sentido, afi rma-se que cada “Eu” se realiza em situações relacio-
nais com “Outros”, porém se compondo sempre em condições singulares
de experiência intersubjetiva. Considera-se, portanto, que não há pré-con-
dições de existência, mas condições mínimas e principiais de “existir de
alguma forma”, compreendidas em limites não restritivos e nem fi xos, mas
condicionais e processualmente mutáveis.
Portanto, além das condições já propostas anteriormente referentes à
consolidação de cada indivíduo como sujeito, adiciona-se a concepção de
que a intersubjetividade se apresenta como uma negociação entre singu-
laridades existenciais que não apenas compartilham linguagens comuns,
mas que se referenciam e se identificam reciprocamente em cada situação
relacional. Esta condição de identificação pode ser defi nida em três as-
pectos ou atitudes conceituais mais especificadas: reconhecer, pertencer e
manifestar.
Ressalta-se que estas três categorias conceituais servem apenas para
ilustrar as inúmeras processualidades condicionalmente limitadas em con-
dições convencionais, que marcam a trajetória de construção de identi-
dades subjetivas e que, além disso, nunca podem ser tomadas de forma
isolada, pois tratam de instâncias simultâneas de experimentação. Ou seja,
reconhecer, pertencer e manifestar envolvem, analiticamente, conteúdos
que em prática não se separam, pois são construídos por vias processuais
sincrônicas. Dito isto, pode-se demarcar melhor a concepção de identida-
des aqui propostas.
De forma direta, entende-se que os sujeitos, ao reconhecerem-se em
determinadas condições de realização existencial, caracterizando este per-
tencimento e buscando manifestá-lo de forma diferenciada; assumem e rei-
vindicam que suas identidades singulares compõem identidades coletivas
mais amplas, realizadas em conjuntos de conteúdos culturais que especifi-
cam determinadas formas bem demarcadas e defi nidas de experimentarem
e realizarem existência de forma compartilhada.
Os sujeitos coletivamente organizados compartilham conteúdos que
compreendem como referenciais de suas condições singulares, eleitos e rei-
vindicados como condensadores de suas experimentações existenciais. Ou
seja, assumem-se reciprocamente como sujeitos que compartilham formas
de experimentar e realizar existências, e designam condições intersubje-

Processos identitários e a produção da etnicidade 253


tivas diferenciadas de outras, por meio daquilo que Barth definiu como
sinais diacríticos. Nestas condições diacríticas, entende-se que cada inter-
subjetividade se organiza como um conjunto no qual cada “Eu” reconhece
a si mesmo a outros como parte de uma condição coletiva, de “Nós”. Diz-
-se, porém, que “Nós” não “indiferencia” cada “Eu”, mas defi ne que os
“Outros”, nestas situações, são aqueles sujeitos que não compartilham das
condições intersubjetivas diacríticas consideradas, e, assim, fazem parte de
um outro conjunto intersubjetivo e diferenciado diacriticamente por outras
condições culturais. Desta forma, é possível dizer que cada grupo identitá-
rio se demarca como uma “coletividade singular”, diferenciada por meio
de intersubjetividades convencionadas como próprias, diacríticas.
Nestas circunstâncias, considera-se equivocadas as noções de “iden-
tidade” como coletânea de elementos culturais pré-moldados, como pe-
ças de um quebra-cabeças apenas desfragmentado e montado em confi-
gurações possíveis de acordo com os formatos e encaixes de cada peça,
em cada localidade. Portanto, utilizando as categorias já citadas de modo
cumulativo, é possível dizer que: as condições de múltiplas identidades
aqui consideradas se realizam como organizações intersubjetivas que ins-
crevem processos de significação e simbolização, conferidos em linguagens
especificadas em agências socialmente implicadas, configuradas em redes
dinâmicas de disposições culturais que são referenciadas como conteúdos
diacríticos, índices de diferenciação entre intersubjetividades. Em formas
mais resolutas, diz-se ainda que as esferas normativas e usuais de cada
identidade intersubjetiva remetem a condições fluidas e localizadas de ar-
bitrariedade e condensação – como já defi nidas – na medida em que as
eleições e reivindicações diacríticas convencionam determinados conteú-
dos culturais – práticas e saberes – como símbolos de experimentações e
realizações existenciais compartilhadas.
Em última instância, considera-se então que cada condição identitária
se apresenta então como uma situação de “ser” que realiza uma condição
de “existir”, ou ainda, uma condição singular de experimentação e reali-
zação de existência, conferida em disposições culturais plurais e diacríticas
construídas pelos sujeitos como efetivação condensadora (simbólica e sig-
nificativa) – em práticas e saberes – de suas existências. Não há singulari-
dade isolada ou autossuficiente, pois cada singularidade autônoma existe e
se constrói em relação com outras singularidades autônomas.

254 Eliane Cantarino O’Dwyer


Deslocamentos
Esta parte da argumentação será desenvolvida de forma mais pontual,
considerando aquilo que aqui se defi ne como contextualização mais lo-
calizada das condições analíticas até agora apresentadas. Primeiramente,
faz-se uma breve caracterização da ideia de “deslocamento” aqui defi nida,
como uma referenciação conceitual.
Em termos provisórios, entende-se por deslocamento um processo de
localização espaço-temporal transitória, que tem como característica fun-
damental – porém, não única – uma condição de movimentação dinâmica
– ou seja, não inerte –, conferida em situações experimentadas em tal es-
tado processual. Em outras palavras, “deslocar-se” se defi ne por situações
de mudança e transformação nas condições de localização daqueles que
“se deslocam”, que geram, consequentemente, alterações nas formas de ex-
perimentação e realização existencial destes sujeitos. Como salientado ao
longo de todo este trabalho, ressalta-se que não se considera a existência
de uma forma “correta” ou única de deslocamento. Pelo contrário. Busca-
-se compreender diferentes e diversas formas condicionais de existência,
condensadas nestes processos, sendo esta defi nição mais geral – como dito
anteriormente – apenas uma concepção referencial para a argumentação
que aqui se busca desenvolver.
Seja “à pé” ou por veículos. Com tração animal ou mecânica. Transpor-
te terrestre, fluvial ou aéreo. De uma margem de um rio para outra ou entre
cidades etc. A questão aqui evocada não se demarca pela distância per-
corrida ou meio de locomoção. Mas, se constitui pelo movimento gerado.
Movimento este que se refere a inúmeras causas, condições e contextos e
se desenvolve em conformidade com as alternativas locais de cada situação.
E que, além disso, se constitui para além das manifestações físicas dos su-
jeitos, circunscrevendo também as realizações noéticas, afetos e rearranjos
subjetivos acarretados ao longo dos processos de construções identitárias.
Dito isto, como primeiro marco analítico, situam-se alguns aspectos
referentes à categoria “local”, muito recorrente e importante nas cons-
truções conceituais sobre deslocamentos. Isto porque, entende-se, logo
de início, que constituir uma noção de “deslocar” envolve também uma
concepção de “localizar”, pois deslocar remete a condições dinâmicas, de
transposições, ou ainda, de realocação de elementos localizados. Assim,
fala-se também em noções de situação e posicionamento (e reposiciona-
mento) de elementos, conteúdos e referenciais. Entende-se que a concepção
de situação evoca tanto condições de momentos espaçotemporais, como
acontecimentos fatuais históricos; quanto atitudes processuais de “demar-

Processos identitários e a produção da etnicidade 255


cação” ou “especificação” de determinadas condições de experiência. Por
exemplo, quando alguém diz que fez uma viagem a outro país: a “viagem”
é defi nida como situação historicamente localizada na trajetória existen-
cial deste determinado sujeito singular – porém, direta e indiretamente
relacionada a outros sujeitos e intersubjetividades –; ao mesmo tempo em
que a condição da “viagem para outro país” inscreve também uma trans-
formação de localidades, ou seja, este sujeito se situou em outro local, sen-
do a própria viagem uma condição dinâmica de situação, realocação e lo-
calização. Uma espécie de “re-situação”, que, cujo termo categórico pode
não fazer sentido, já que se trata de processamentos contínuos de localiza-
ção que são contextualmente posicionados. Nesta condição, os posiciona-
mentos se relacionam as estas condições ativas de situação, conferidos nas
próprias condições de experiências, localizadas em trajetórias existenciais.
Portanto, pelo exemplo da “viagem”, pode-se dizer que os posicionamen-
tos do “sujeito viajante” se conferem na própria dinâmica processual da
viagem como situação – em todos os sentidos – sendo que este sujeito se
posiciona de diferentes e diversas formas ao longo de toda a viagem e, em
escopo mais amplo, ao longo de toda sua trajetória existencial. Assim,
falar de “re-posicionamentos” também se torna pouco interessante cate-
goricamente, tal como “re-situação”, em função das disposições dinâmicas
já conferidas nestes conceitos. Fala-se, então, de condições processuais de
situações e posicionamentos contínuos, dinamicamente conferidos em tra-
jetórias de deslocamentos.
A noção de “local” aqui conferida inscreve, então, atitudes de posi-
cionamentos subjetivos, conferidos, mais especificamente, em contextos
situacionais de intersubjetividades diacríticas, ou, em outras palavras,
identidades coletivas. Considerando-se as condições dinâmicas e fluidas
das diversas disposições culturais, é possível então dizer que cada conjunto
de redes processuais culturais pode inscrever diversas intersubjetividades
diacríticas. Assim, um mesmo contexto local pode abarcar diferentes iden-
tidades coletivas, que se constroem inclusive por meio de inter-relaciona-
mentos mútuos, se identificando reciprocamente. O que não significa dizer
de forma “igual” ou “equivalente”, mas sim autônoma e localizada. Pela
complexificação do conceito sugerido, diz-se então que não se tomam ape-
nas condições de movimentações materiais ou tampouco apenas noéticas
e subjetivamente internalizadas; mas busca-se compreender deslocamen-
tos por meio da perspectiva relacional existencial conferida ao longo de
toda esta proposta argumentativa. Assim, deslocamento se confere como
conceito que envolve situações de trajetórias existenciais, considerando-se

256 Eliane Cantarino O’Dwyer


transformações processuais que afetam sujeitos singulares e intersubjetivi-
dades diacríticas em suas constituições identitárias. Entender deslocamen-
to não se trata de entender como se dá “uma mudança daqui para ali”, mas
entender como isto transforma os sujeitos e como os afeta em suas condi-
ções existenciais coletivas: como estes significam e simbolizam seus movi-
mentos, que alterações ocorrem em termos de linguagens, ações e agências
socialmente implicadas, disposições culturais, identidades subjetivas (re-
conhecimentos, pertencimentos e manifestações) e intersubjetividades dia-
críticas. Trata-se então de compreender “identidades em movimento”, ou
ainda, entender as diversas condições dinâmicas e fluidas que perpassam
processos identitários coletivos por meio de transformações de condições
existenciais intersubjetivas, pela mudança em panoramas de referências
significativas e simbólicas. Em outras palavras, busca-se compreender as
condições de fluidez das construções identitárias, em determinado con-
texto intersubjetivo diacrítico localizado, levando em conta condições de
movimentação material e noética.
Consideram-se, então, possibilidades de se considerar trajetórias pro-
cessuais em condições intersubjetivas diacríticas, como construções “bio-
gráficas” de “coletividades singulares”, sem pretensões explicativas mas
com intuitos compreensivos, que não justificam fatos mas ressaltam con-
dições identitárias diferenciadas. Observa-se, entretanto, que as condições
de deslocamentos aqui propostas não se defi nem necessariamente como
situação transitória entre dois pontos extremos: algo entre um ponto de
partida e um ponto de chegada. Esta condição transitória se refere a uma
transformação que, embora seja referenciada comparativamente entre duas
ou mais configurações indicativas de mudança – algo que era de determi-
nada forma e se tornou outra coisa – não se apresenta como status apenas
passageiro ou, tomando emprestado o termo de Arnold Van Gennep, uma
situação de liminaridade.
Em suas considerações acerca de condições liminares, entende-se que
Van Gennep defi ne que cada contexto liminar, apresentado em “ritos de
passagem”, se apresenta como uma situação marcada por condições pro-
cessuais de mudança e transformação, que defi nem um status entre dois
estados bem defi nidos. Assim, a liminaridade se marca pela relação simul-
tânea de “perda” de determinadas características e “ganho” de outras, no-
vas e diferentes. Ou ainda, pela transfiguração de atributos, que, em status
liminar, configura a coexistência localizada e processual de características
“antigas” e “novas”, até que se chegue a uma condição de transformação
completa e consolidada.

Processos identitários e a produção da etnicidade 257


Diz-se ainda que Van Gennep descreve os ritos de passagem – classifi-
cados em diversas categorias, que não cabe citar – como situações que se
apresentam entre ritos preliminares e ritos pós-liminares, sendo portanto a
liminaridade uma condição de referência entre contextos de “separação” e
outros de “agregação”. Entretanto, o autor também faz questão de denun-
ciar que estes respectivos pontos de “partida” e “chegada”, assim como a
própria condição liminar, não se apresentam estanques e fi xos, mas são
sempre tomados a partir de contextualizações específicas.
Neste sentido, pode-se defi nir algumas considerações entendidas, aqui,
como relevantes às construções propostas, que remetem a noções de rela-
cionamentos situacionais e posicionais, defi nidos como “tradicionais” e
“atuais”. A categoria “tradição” é construída como uma forma conjun-
tural de inúmeros conteúdos existenciais – que remontam todas as cons-
truções conceituais realizadas até este momento, desde a significação até
condições identitárias intersubjetivas diacríticas – que são compreendidos
como tipificações referenciais constituintes de trajetórias existenciais cole-
tivas. “Tradicional” remete, portanto, a aspectos de experiências existen-
ciais, intersubjetivamente situados, posicionados e, portanto, localizados
como elementos “fundantes” ou fundamentais nas condições de relacio-
namento e identificação diacrítica. Disposições que são compreendidas e
localizadas processualmente, retomando “tempos passados” que se esten-
dem até “tempos atuais” e que “remontam” ou “atualizam” em certa me-
dida princípios convencionais de identidades, “garantindo-lhes”, inclusive,
diacriticidade em seus referenciais identitários.
Disto isto, cabe dizer, logo de início, que a proposta aqui defi nida é
diferenciada das defi nições estruturalistas de “atualização”. Diretamente,
diz-se que as condições de “atualização” das disposições “tradicionais”
não “reordenam sistematicamente” os sujeitos. Mas sim, se conferem em
atitudes de “preservação” de certas condições compreendidas como diacrí-
ticas nos grupos, reivindicadas ativamente pelos sujeitos como marcas de
suas trajetórias singulares e socialmente compartilhadas. Assim, o “res-
gate” de aspectos tradicionais ou sua “manutenção” ou “preservação” se
relacionam a intenções coletivas de reforçar as identidades intersubjetivas
frente a outras por meio do reforço de memórias compartilhadas. A “eficá-
cia simbólica” aqui defi nida se confere, então, em estratégias e usos reivin-
dicatórios, intersubjetivamente realizados, que marcam e demarcam cada
grupo com suas identidades dinâmicas e processuais, que se transformam
e se deslocam, sem se tornarem amorfas, mas sempre se diferenciando
como “identidades intersubjetivas singulares”.

258 Eliane Cantarino O’Dwyer


Trata-se, portanto, de condições metodológicas e analíticas que, assim
como as tipificações weberianas, os polos simbólicos de Turner, a Língua
e a Fala de Saussure, entre outros, se defi nem como marcos de compreen-
são e localização classificatória, pontuados em processos contínuos, cuja
integralidade se encontra em possibilidades de compreensões genealógicas
de trajetórias processuais. Neste sentido, os deslocamentos aqui propostos
são defi nidos também por índices de mobilidade, que não encerram os
sujeitos e suas intersubjetividades em situações herméticas e repetidas, mas
sim contribuem para compreensões que valorizam processos de localiza-
ção, situação e posicionamento de existências intersubjetivas diacríticas.
Entende-se, portanto, que cada “situação de deslocamento” não se dá ape-
nas como ponto entre condições “tradicionais e atuais” ou “normativas e
usuais”, ou ainda, delineadas por condições carregadas de indefinições,
relativamente amorfas ou com conteúdos “misturados”. Mas cada deslo-
camento se apresenta como contexto processual que possui configurações
próprias e bem marcadas, sendo as próprias condições de mudanças e
transformações configuradas e construídas em trajetórias singulares.
Considera-se ainda que cada deslocamento, como contexto de locali-
zação processual e dinâmica, desconstrói noções de inércia ou imobilidade
associadas a condições culturais e identitárias se realizando por meio de
renovações constantes de referenciais e atribuições. Novos bons e maus en-
contros, experimentados por existências singulares em contextos intersub-
jetivos diacríticos. Portanto, pode-se dizer que cada deslocamento, como
situação de afetação identitária, condensa e realiza diferentes “condições
de possibilidades” e diversas “disposições de ação”, como sugere Bourdieu
e, por fi m, lembrando os afetos de Spinoza, pode-se dizer, sem aspirações
poéticas, que cada deslocamento inscreve movimentar-se, com “corpo e
alma”, de forma existencialmente integralizada.

Etnografia
A concepção aqui sugerida acerca da etnografia se apresenta no sentido de
se compreender e se realizar as incursões etnográficas como possibilidades
de experimentação de diferentes formas de manifestação existencial. Trata-
-se da intenção de se construir posicionamentos localizados em contex-
tos de “alteridades”, vivenciando de forma compreensiva as experiências
de mundo de Outros, não de forma “empática”, mas sim constituída em
“estranhamentos”: deslocamentos constantes de referências relacionais. A
“experiência etnográfica” não deve ser apenas uma condição de análise
do “estranho vagamente familiar”, como se fosse simplesmente uma ques-

Processos identitários e a produção da etnicidade 259


tão de se entender “diferentes formas de ser humano”. Considera-se que se
opera por meio de experimentações fundamentadas em condições social-
mente compartilhadas que determinados sujeitos compreendem e reconhe-
cem como suas formas de realizarem existência. Ou seja, por negociações e
compartilhamentos contínuos de sentidos e significados por meio dos quais
os agentes socialmente implicados se apresentam e se reconhecem recipro-
camente, em relações uns com outros. O que, reitera-se, não significa dizer
que se trata de relações harmônicas e fluidas de entendimento mútuo “qua-
se natural”, mas se considera possibilidades de compartilhamentos, cujas
eficácias e sustentabilidades variam de acordo com as situações e contextos,
assim como pelas ações e motivações dos agentes que se relacionam.
Diz-se ainda que estes posicionamentos ativos e dinâmicos são toma-
dos como coletivos ou sociais por condições convencionais, situadas e lo-
calizadas em diversos contextos igualmente fluidos, que os sujeitos reco-
nhecem e reivindicam, e que, neste sentido, não se trata de averiguar se o
que dizem é “verdade” ou “mentira”, coerente ou incoerente com o que
fazem e concebem. Isto porque tais inferências e impressões se apresen-
tam como defi nições classificatórias das experimentações, que, em termos
comparativos, podem se revelar em formas de “julgamentos” de diversas
ordens referenciais – moral, política etc. –, etnocêntricas em grande medi-
da, por tomarem manifestações de Outros a partir de pontos referenciais
fi xos, que podem se compor em “supostas” formas únicas de ser humano.
Desta forma, considera-se que cada etnógrafo se apresenta, antes de
tudo, como um agente socialmente ativo, que realiza sua existência em
determinadas condições possíveis, afetando e sendo afetado tanto pelas
situações e condições contextuais que experimenta quanto pelos outros
agentes contextualizados: seus posicionamentos, seus relacionamentos e,
portanto, por suas manifestações existenciais. Cabe ressaltar também que
a condição etnográfica não se apresenta ausente de visões de mundo, ou
seja, imbuída de neutralidades que “eximiriam” alguns sujeitos das for-
mas comparativas e possibilitariam que estes alcançassem integralmen-
te significados “substanciais de alteridades”. Assim, assume-se que “ser
etnógrafo” não se substancializa em uma ou mais formas de existir, e
que, como posicionamento social construído relacionalmente, se consti-
tui em esfera existencial por meio de processos situacionais, atravessados
e transformados pelas condições contextuais experimentadas “em cam-
po”, sendo o “agir de forma etnográfica” relativizado em diversos escopos
metodológicos sugeridos e realizados. Ou seja, de acordo com diferentes
embasamentos teóricos e práticos tomados como referência de ação e com-

260 Eliane Cantarino O’Dwyer


preensão, que possibilitam conferir a etnografia como situação e condição
existencial em constantes deslocamentos.
Além disso, entende-se que o esforço etnográfico, como aqui proposto,
se dá em direção a outras formas diversas de experimentação, convencio-
nalmente possíveis, ressaltadas em ações de “estranhamento” das referên-
cias existenciais experimentadas que, mesmo em condições socioculturais
“alcançáveis”, apresentam-se limitadas. Experimentar etnograficamente
inscreve então “movimentos” de aprofundamento do etnógrafo em condi-
ções intersubjetivas diacríticas diferenciadas daquelas identificadas por ele
como “suas”, sendo sua posição defi nida em constantes compreensões de
que aquilo que está experimentando não é parte de sua condição social e
cultural, mesmo que tome aspectos e práticas entendidos como “comuns”
ou “familiares”. Assim, um etnógrafo nunca é parte integral daquela “re-
alidade” que está experimentando e na qual se posiciona, pois, por mais
próxima que sua experimentação possa chegar daquelas condições exis-
tenciais que experimenta, propõe-se que ele (o “etnógrafo” em questão)
nunca “é” ou “se torna completamente”, de fato, parte dos contextos inter-
subjetivos que busca experimentar. A menos que se desloque integralmente
da posição de etnógrafo em direção às sociabilidades que experimenta,
transformando suas condições de identidade e seus posicionamentos re-
lacionais junto aos Outros e se realizando efetivamente nestas condições
existenciais. Ou seja, deixe de “ser etnógrafo” e se torne efetivamente par-
te do contexto sociocultural diacrítico que está experimentando, identifi-
cando-se e sendo identificado como integrante do grupo.
Compreender uma “experiência local” ou “localizada”, envolve, por-
tanto, a concepção de que esta “localização” é condicionalmente dinâmica
e relativa. Ou seja, uma condição de deslocamento situacional, cuja pró-
pria fluidez referencial permite se tomar o local – como dito anteriormen-
te – como contexto processual, que envolve condições de transformações
contínuas e múltiplas, cujas análises integrais são possíveis por meio de
compreensões de trajetórias existenciais contextualizadas. Desta forma,
entende-se que não há condições inerentes a espaços locais, territórios ou
condições empíricas, mas sim processos múltiplos e não lineares que fa-
zem parte das condições experimentadas in locus. Ressalta-se que aqui se
considera que não há modelos precondicionais ou pré-moldados de experi-
ência humana: formas que embora múltiplas, diversas e diferentes seriam
predeterminantes das condições humanas. Entende-se que todo modelo de
experimentação e realização de existência se apresenta apenas como con-
vencionalidade inteligível, classificatório das experiências. Portanto, em

Processos identitários e a produção da etnicidade 261


limite de tangibilidade propõe-se a noção de trajetórias existenciais, que
em condições intersubjetivas e, assim de referenciais socioculturais com-
partilhados, são classificadas como formas de experimentação e realização
de existência e tipificadas convencionalmente em modelos de experiência,
como estratégias de organização e ordenamento elaborativo conferido em
condições de relações sociais contextualizadas. Ou seja, como já dito, or-
ganizam-se em categorizações de disposições culturais e identitárias.
Entretanto, a possibilidade de se compreender ou se estabelecer con-
tato relacional com cada “coletividade singular” se apresenta apenas na
condição de relação com cada singularidade subjetiva que a compõe. Ou
seja, não existe a “entidade” coletiva se não por meio de representativida-
des singulares que de certa forma simbolizam a intersubjetividade diacrí-
tica em questão. Assim, se considera a possibilidade de presença e atuação
de “representantes” ou “lideranças”, como relativos “condensadores” de
aspectos das identidades etnograficamente experimentadas, cujos reco-
nhecimento, posicionamento e legitimidade são construídos e designados
no contexto do grupo em questão. O contato “direto” com a experiência
intersubjetiva diacrítica é, então, possível por meio das relações com as
existências subjetivas singulares, pois não há experiência existencial inter-
subjetiva diacrítica local unívoca que apenas se acessaria.
Neste sentido, a etnografia se realiza como uma experimentação exis-
tencial com intuitos de compreensão das condições de determinadas iden-
tidades diacríticas localizadas. Entender outras intersubjetividades, e ,
portanto, as condições de existência de “Outros”, por meio principalmen-
te da compreensão de suas trajetórias processuais e condições diacríticas
identitárias. Trata-se então de experimentar até o limite do tangível as
condições existenciais que realizam “outros seres humanos”, sendo cada
experiência singular levada relativamente em conta na construção de uma
compreensão processual destas experiências socialmente compartilhadas.
Porém, como dito e reforçado, não se trata aqui de averiguar como ocorre
cada processo singular subjetivo de realização existencial, em trajetórias
individuais únicas, pois isto se concebe fora das proposições aqui conside-
radas, no bojo de outras esferas de conhecimento. Mas, entendendo-se a
experimentação das visões de mundo de Outros como condicionalmente
possível, compreende-se que a experiência etnográfica se dá em proporções
de “visitação” de outras formas de existir, em deslocamentos integrais – de
referenciais significativos e simbólicos, culturais e identitários e, portanto,
existenciais.

262 Eliane Cantarino O’Dwyer


Trabalho de campo: condições de entrada
As disposições metodológicas aqui concebidas inscrevem possibilidades de
entendimentos construídos etnograficamente em sentido genealógico, que
por meio das vivências e relatos de “Outros”, permitem compreender os
trajetos processuais de construção das referências identitárias coletivas,
constituídos por inúmeras condições relacionais, historicamente desenvol-
vidas. Desta forma, as condições etnográficas narradas a seguir se confe-
rem como situações de experiências integrais, sendo aqui possível apenas se
relatar aspectos de forma resumida e limitada. Entendendo-se a elaboração
das experiências como processo de condensação simbólica e significativa,
busca-se centrar a narrativa etnográfica em pontos entendidos como críti-
cos, fundamentais e diacríticos. Ressalta-se veementemente, portanto, que
a narrativa etnográfica aqui realizada não se apresenta como “justificativa”
ou “exemplo” dos conceitos aqui formulados, sendo possível dizer que as
conceituações até agora sugeridas conferem-se como “frutos” de elabora-
ções destas condições existenciais experimentadas etnograficamente, como
forma de compartilhamento de experiências de compreensão dos contextos
de “Outros”, em suas disposições culturais, de linguagens, agências, signi-
ficações e simbolizações localizadas em condições de deslocamentos.
As primeiras impressões relatadas dizem respeito àquilo que se con-
sidera como “entrada em campo”, ou ainda, como primeiros marcos si-
tuacionais de deslocamento em condições etnográficas. Os primeiros
movimentos afetivos e estranhamentos em campo, que se deram desde ex-
perimentações mais “sensíveis”, como o intenso calor úmido e “estranha-
do” do “verão amazônico”; passando por observações inicialmente tácitas,
como os detalhes mais minuciosos de paisagens ecológicas; até condições
de diferenças de linguagem, como, por exemplo, sotaques e formas gestu-
ais diferenciadas. Muitos processos de desconstrução de naturalizações ou
preconcepções, que desde implicações de aparentes “obviedades” até as
condições mais “estranhas”– não necessariamente pejorativas – se reali-
zaram desde os primeiros contatos com “as diferenças e deram forma aos
deslocamentos etnográficos.
Portanto, não se pretende apresentar “fatos realmente relevantes”,
como uma espécie de desvelamento de “verdades” por trás de “trivialida-
des”. Mas, pelo contrário, busca-se evidenciar a limitação condicional da
percepção envolvida nos relatos, pois, compreende-se que nenhuma aná-
lise – por mais profunda, laboriosa ou densa que possa ser pretendida ou
considerada – dá conta da totalidade existencial e seus “imponderáveis”,
como demarcado por Malinowski. Por conseguinte, as experiências a par-

Processos identitários e a produção da etnicidade 263


tir de agora relatadas se referem a compreensões situacionais, provisórias
e limitadas, de aspectos singulares de determinados contextos existenciais,
localizados, em termos “geográficos” nos arredores de Santarém, no Esta-
do do Pará, mais especificamente na região defi nida como “várzea do rio
Ituqui”, um dos muitos afluentes do rio Amazonas. Relato este que será
desenvolvido de forma sincera e quão densa possível.

Entrada em campo
A curta viagem, desde a saída do porto de Santarém até a chegada à região
de várzea do rio Ituqui, fez-se em, aproximadamente, duas horas. A nave-
gação pelo rio Tapajós até seu encontro com o rio Amazonas e a observa-
ção de um horizonte de águas intermináveis transformavam o percurso em
uma experiência tácita, ainda sem elaboração consolidada. Como ilustra-
ção marcante da condição de “estranhamento”, só foi possível constatar
que havia chegado ao Ituqui depois de já estar a pelo menos meia hora em
suas águas, no momento em o barco parou, atracando-se a um dos diver-
sos “portos singulares”, construídos de forma artesanal e esmerada, com
ripas de madeira improvisadas como rampas de acesso – cuja condição
provisória se fez diacrítica, como discutirei posteriormente. Juntamente
com os outros pesquisadores, fui recepcionado por alguns comunitários e,
após breves apresentações e identificações pessoais, nos encaminhamos até
um local onde outros moradores já estavam reunidos, aguardando o início
das discussões a serem realizadas.
Neste primeiro dia, comparecemos às reuniões nas três comunidades:
São José, Nova Vista e São Raimundo. Cada reunião ocorria num espaço
comum, presente em cada comunidade: uma espécie de “galpão”, soergui-
do a 1 metro do solo, todo construído em madeira – exceto pelas telhas de
tijolo ou amianto – delimitado por paredes vazadas em trançados, ergui-
das a mais ou menos 1,70 metro a partir do piso. Este espaço compartilha-
do, de tamanho suficientemente capaz de abrigar todos os moradores ao
mesmo tempo, é significado e simbolizado de diversas formas, sendo utili-
zado em múltiplas ocasiões e situações intersubjetivas, como por exemplo,
festividades e discussões, como estas reuniões em questão.
As três recepções, marcadas em singularidades e diferenças, apresen-
tavam situações possíveis de serem relativamente comparadas, como, por
exemplo, a utilização do galpão comunitário de cada comunidade como
espaço de discussão. Cada comunitário fazia questão de se identificar sin-
gularmente, por nome e sobrenome. Formas receptivas, com distintivida-
des e cortesias, ou simplesmente “educadas”, como muitos assim defi ni-

264 Eliane Cantarino O’Dwyer


ram. Alguns apresentaram, inclusive, seu status representativo dentro da
organização comunitária, como cargos administrativos diversos e outros
posicionamentos participativos no âmbito social. Aqueles que optaram
por não se pronunciar verbalmente, observavam e ouviam atentamente
às discussões, expressando gestualmente seus ímpetos, concordâncias e
discordâncias.
Grande parte dos pontos discutidos tinha, como temas principais,
condições referentes ao “trabalho” a ser realizado, conferido por nossa
presença e atuação na região. As dúvidas apresentadas se conferiam em
duas questões fundamentais: em que consistiria e como seria realizado este
“trabalho de levantamento antropológico”. Conforme buscávamos con-
textualizar o trabalho – e de certa forma, “justificar” nossa presença – os
gestos e expressões de cada observador pronunciavam novas significações.
Debatidas as questões, encerrou-se o primeiro dia do trabalho, iniciando-
-se os primeiros deslocamentos etnográficos. Voltamos para o barco ao
anoitecer. Nos ancoramos próximo a uma pequena “ilha de terra cresci-
da”, que emergia em um estreitamento do rio.
Nestas primeiras incursões, entre outras disposições discursivas, situa-
-se uma que se destacou recorrentemente em termos de intensidade afetiva
diacrítica: as atitudes de muitos moradores que em seus pronunciamentos
faziam questão de afi rmar suas condições identitárias. Alguns se identi-
ficaram como “quilombolas”; outros afi rmaram que “não são quilombo-
las”; outros que “não sabiam se eram ou não quilombolas”; e, ainda, ou-
tros que embora se dizendo “interessados”, buscavam “saber se poderiam
ser quilombolas ou não”. Esta situação, se tomada de forma equivocada
poderia sugerir condições restritivas de “múltiplas escolhas”, como um
quadro de “respostas optativas fechadas”. Entretanto, em nenhum mo-
mento dos diálogos foram enunciadas perguntas neste sentido positivista,
de enquadrar identidades em modelos caracterizados. Pelo contrário. O
que chama atenção nestas afi rmações identitárias é justamente a condição
de autorreconhecimento referenciado, compartilhado e conferido em crité-
rios intersubjetivos do próprio grupo.
Cada situação singular de afi rmação identitária marcava localizações
e posicionamentos que cada comunitário reconhecia em sua própria con-
dição subjetiva, imperativamente apresentados inclusive como expressão
de suas próprias expectativas referentes ao “trabalho antropológico” a ser
realizado. Expectativas estas trazidas à discussão, nas diversas incertezas
e dúvidas enunciadas em cada reunião, referentes às condições de nossa
presença nas comunidades. Quem cada um de nós era, singularmente, não

Processos identitários e a produção da etnicidade 265


era separado daquilo que estávamos realizando. As nomeações variavam:
“professores”, “pesquisadores”, “antropólogos do Incra”, entre outras. Po-
rém, seja qual fosse o nome ou cargo conferido, todas as categorias nativas
se construíam em sentidos de compreensão e identificação, na conferência
de posicionamentos relacionados a nossa situação e localização. Segundo
muitos comunitários consideravam e relatavam, nossas motivações e ações
se pautavam em “capacidades” de afi rmar ou destituir esta condição iden-
titária reivindicada coletivamente. Ou seja, um “poder” de “identificar” e
dizer quem “de fato era ou não era quilombola”. Condição de posiciona-
mento que foi logo renegociada, conforme buscávamos apresentar nossas
intenções de “buscar compreendê-los e não explicá-los” e que se transfor-
mou ao longo de todo o trabalho de pesquisa.
Neste sentido, é possível dizer que cada afi rmação identitária singular
não se punha como condição individual isolada. Mas sim como posicio-
namento intersubjetivamente conferido, enunciado perante todo o gru-
po, e demarcador perante “Outros” – “pesquisadores” – que, neste caso,
acreditava-se, poderiam destituir ou deslegitimar esta identidade. Isto se
evidencia nestes “discursos tipificados”, pela reivindicação afi rmativa ou
negação de uma “identidade quilombola” e também pelas “dúvidas” quan-
to às possibilidades de reivindicá-la ou negá-la.
Assim, a entrada em campo se defi niu neste panorama inicial, carac-
terizado pelo encontro entre “diferenças singulares” complexificado em
relações múltiplas de posicionamento. Neste quadro esquemático tinha-se,
entre outras inúmeras referências compreensivas possíveis e expectativas:
uma posição “oficial” do Incra, simbolizada nas disposições de seus repre-
sentantes, sobre sua própria função, sobre nossa situação como “antropó-
logos contratados para a elaboração do Laudo Antropológico” e sobre a
condição reivindicatória dos comunitários; as compreensões dos comunitá-
rios sobre a própria condição identitária, sobre o trabalho do Incra e sobre
nossa posição como “pesquisadores contratados pelo Incra, responsáveis
pela legitimação das identidades quilombolas”; e ainda a nossa compreen-
são sobre nosso “trabalho de pesquisa etnográfica a ser realizado”, sobre o
posicionamento do Incra e sobre as compreensões dos comunitários sobre
suas próprias condições identitárias. Ou seja, entre outras possíveis cons-
tatações de pontos referenciais singulares e intersubjetivos, apresentava-se
um contexto conjuntural de relações que se cruzavam e se atravessavam
continuamente. Portanto, é possível dizer que os primeiros deslocamen-
tos apresentavam, então, não apenas relações diferenciadas mas também
a constatação de compreensões e posicionamentos demarcados até mesmo

266 Eliane Cantarino O’Dwyer


antes dos contatos iniciais, em expectativas, que dinamicamente se trans-
formaram conforme os diálogos e discussões se desenvolviam.

Dinâmicas socioecológicas e ambientais


Dito isto, parte-se agora à análise referente a alguns aspectos relacionados
à construção do território reivindicado por meio das relações estabelecidas
pelos moradores entre si e com as “condições ambientais locais”, carac-
terísticas específicas das condições de natureza ecológica e geográfica do
contexto considerado. Ressalta-se que não se trata de “defi nir” estes ele-
mentos como fenômenos “exclusivos” desta localidade e meio de vida; e
muito menos de “inseri-los” nesta realidade. A abordagem destes fatores
é realizada pelo fato de eles serem – como afi rmado anteriormente – cons-
tantemente acionados e afi rmados no discurso nativo local, vinculados a
condições históricas, de origem comum dos sujeitos e de suas realizações
relacionais, e passíveis, portanto, de serem compreendidos como alguns
dos sinais diacríticos referentes a critérios de identidades e pertencimento
do grupo. Neste sentido, torna-se imperativo reconhecê-los como fatores
ativos na realização sociocultural deste grupo, partes de sua realidade exis-
tencial experimentada, que permitem, então, a construção dos conceitos
aqui apresentados, principalmente, aqueles relacionados a deslocamentos.
Como pontuado anteriormente, o clima equatorial típico da região se
caracteriza por temperaturas elevadas – a partir de 30°C , porém com
sensações térmicas ainda mais elevadas, em função da alta umidade – e
por ciclos de chuvas relativamente bem defi nidos, que demarcam as esta-
ções de cheia e vazante e determinam o nível das águas. Essas variações
climáticas e mudanças constantes do ambiente trazem consigo transforma-
ções igualmente significativas em relação ao panorama ecológico da região
conferidas, entre outros elementos, em ciclos migratórios e reprodutivos
de animais, predominância de vegetações, possibilidades de locomoção.
Neste sentido, a vida cotidiana dos moradores não só é afetada na mesma
medida, mas, de fato, é construída e organizada em função dessas trans-
formações sazonais. Técnicas e períodos de pesca, caça, plantio e criação
de animais. Formas de construção de moradias e outras estruturas da co-
munidade. Organização das atividades em relação às condições climáticas
e horários de dias e noites. Em outras palavras, os comunitários defi nem
suas estratégias socioculturais e econômicas de vivência, e praticamente
todas as outras esferas de realização de existência, tendo como quadro
fundamental a configuração ambiental que experimentam.

Processos identitários e a produção da etnicidade 267


Não se considera uma relação determinista entre sujeitos e ambiente,
como se os moradores fossem “vítimas” ou “produtos passivos” criados
pelo ambiente. Tampouco se compreende os comunitários e suas ações
como se fossem “a causa absoluta” das transformações do ambiente. Pelo
contrário. Busca-se evidenciar a capacidade ativa dos sujeitos, centrados
em suas ações sociais, organizados coletivamente em seus papéis de agen-
tes sociais pró-ativos; que tanto afetam quanto são afetados pelo ambiente
onde se inserem, vivendo “nele” e “dele”. Relação esta que é atravessada
por dinâmicas ambientais que os afetam e com as quais estes têm de lidar,
incluídas nas constantes transformações sazonais e outros fenômenos na-
turais, como as chamadas “terras caídas” e “terras crescidas”; e, na mesma
medida, por situações problemáticas surgidas no âmbito relacional social
ligadas fundamentalmente a estes fluxos ambientais locais, como acordos,
restrições e outras convencionalidades referentes a atuação dos comunitá-
rios pela realização e reprodução de práticas concebidas como de “preser-
vação” em detrimento a outras defi nidas como “predatórias”.

Deslocamentos do Ituqui: as terras caídas


Cita-se, como ponto de partida, situações apresentadas principalmente pe-
los “antigos” – categoria nativa que abrange os moradores mais antigos da
região, considerados detentores de saberes e memórias tradicionais, capa-
zes de contar casos e fatos referentes à trajetória histórica da comunidade,
inclusive no que diz respeito a relações estabelecidas reciprocamente entre
as três comunidades – referentes a condições que marcam as trajetórias
históricas de transformação do ambiente local, tanto em função da atu-
ação direta dos moradores, quanto pela dinâmica natural. Entre outras,
apresenta-se, por exemplo, uma condição recorrentemente relatada que
envolve transformações na largura do rio e na distância entre as margens.
Segundo os moradores, em tempos antigos, o rio Ituqui era mais “estreito”
e mais profundo, de tal modo que era possível atravessar de uma margem
para outra sem grandes problemas e sem ter que percorrer longas distân-
cias. Relata-se, inclusive, que era comum moradores de margens opostas
se comunicarem e conversarem sem saírem de seus terrenos, “gritando das
varandas de suas casas”, e até mesmo “arremessarem” objetos empres-
tados ou esquecidos de um lado para o outro. Entretanto, diz-se que, ao
longo dos anos, a distância entre as margens foi aumentando e, na mesma
medida, o rio foi se tornando mais “largo” e relativamente mais raso, fato
evidente principalmente pela diferença notória entre os níveis do terreno e
da água, que se tornou mais significativa em tempos de vazante. Aumen-

268 Eliane Cantarino O’Dwyer


tando as dimensões do rio, aumentaram também as distâncias a serem
percorridas, e, assim, a demanda e os gastos com transporte e locomoção,
bem como as distâncias entre os moradores e comunidades que se punham
em margens opostas.
Segundo o discurso nativo, esta “transformação do rio” é possível de
ser compreendida a partir de um fenômeno defi nido como terras caídas,
o qual se apresentava não apenas nas recorrentes referências encontradas
nos relatos dos comunitários, mas foi possível de ser observado também
diretamente, ao longo de toda a experiência etnográfica. O fenômeno em
si é relacionado como parte integrante das condições de vida encontradas
nas regiões de várzea e é, inclusive, reportado por moradores de outras
regiões de várzea, que se estendem pelo rio Amazonas, além desta tratada
aqui – várzea do rio Ituqui. Segundo os comunitários, as “terras caídas”
se originam na própria dinâmica natural desenvolvida no decurso das mu-
danças de estações climáticas que caracterizam este contexto, sendo o ano
dividido em duas estações mais marcantes: Inverno – estação da “cheia”,
mais chuvosa, que vai, mais ou menos, de janeiro a junho – e Verão – es-
tação da “vazante”, mais ou menos, de julho à dezembro. Dada a grande
intensidade das chuvas durante o Inverno – tanto em relação à frequência
diária quanto aos índices pluviométricos de cada precipitação –, o nível
das águas se eleva de tal forma que encobre as áreas de pasto e plantio das
comunidades, bem como os outros espaços comunitários de convívio. No
decorrer dos meses, com a chegada do Verão, o nível das águas vai abai-
xando, deixando transparecer novamente os terrenos antes submersos.
À medida em que a quantidade de chuvas decresce, o nível das águas
do rio diminui, e, assim, o contorno das margens se torna mais evidente.
Entretanto, esta queda do nível fluvial ocorre em grande velocidade, pas-
sível de ser notada, literalmente, dia após dia. Conforme a água “abaixa”,
a discrepância entre os níveis do rio e da terra aumenta, de modo que, em
certo momento, esta diferença ultrapassa facilmente 1 metro de altura, e,
em certos casos, até mais de 2 metros entre os níveis da água e do terreno
marginal. Quanto maior a diferença, mais expostas e instáveis ficam as ba-
ses das margens. É neste momento que o fenômeno ocorre de forma mais
explícita e significativa. Conforme o nível da água diminui, o movimento
ondular gerado naturalmente pela correnteza causa choques constantes
entre a água e as paredes marginais, que fazem com que a terra dessas
margens vá, aos poucos, cedendo à ação contínua das águas e, em algum
momento, desmorone. Ou seja, a terra efetivamente “cai”, para dentro
do rio. Essas quedas frequentes de terra acarretam mudanças irreversíveis

Processos identitários e a produção da etnicidade 269


nas dimensões dos terrenos, pois o volume de terra fi rme disponível vai
aos poucos sendo diminuído, tragado pelas águas. Conta-se também que
quando passam os “grandes navios” que transitavam, – como aqueles que
vendiam madeira e compravam lenha – e outros que atualmente transi-
tam no rio Amazonas, levando a produção entre os portos das cidades,
é possível perceber as alterações causadas por este trânsito pelo aumento
na “agitação” da água – defi nida como “banzeiro” – que não só dificulta
a pesca em certos aspectos, mas também afeta diretamente a intensidade
das terras caídas, já que acarreta um aumento nas condições que defi nem
a ocorrência deste fenômeno – já citadas anteriormente. O que, consequen-
temente, afeta as condições de vida dos comunitários.
Esta situação de “redimensionamento do rio” defi nia-se, então, como
um fator, entre outros, condensador de aspectos de afetação mútua entre a
trajetória ambiental local e transformações nas condições relacionais entre
moradores e comunidades, que inscreve outros deslocamentos e torna pos-
sível, inclusive, uma melhor compreensão de outras situações já apresen-
tadas. Isto porque este “alargamento” do rio, se liga também, em termos
de ambiente ecológico, a transformações referentes ao gradiente de terras
disponíveis na localidade, que, por sua vez se ligam a outros aspectos de
mudança nas relações sociais e socioambientais dos moradores. Pode-se
dizer então que o “alargamento do rio”, anteriormente citado, inclui tam-
bém o “movimento das terras”, o “avanço das margens para o interior do
terreno” desde tempos antigos, em que o banzeiro “produzido” pelo trân-
sito dos “grandes navios” dos quais se comprava a madeira e para os quais
se vendia lenha, já afetava as condições ambientais locais assim como hoje.

Vida em movimento: estratégias e sustentabilidade


No início deste relato, indiquei “condições provisórias” que podiam ser
encontradas em certas estruturas construídas pelos comunitários, naquele
caso, referindo-me às rampas de madeira que permitiam o acesso aos ter-
renos a partir do rio, dispostas como “portos improvisados”. Como dito,
isto não se punha por acaso e se apresentou de forma intensamente diacrí-
tica. Assim como as configurações relativamente “comuns” conferidas tan-
to na construção quanto no posicionamento de outras estruturas presentes
em cada comunidade, como condições de moradia dos comunitários, que
evidenciavam mais claramente a consonância entre a dinâmica ecológica e
as estratégias nativas de organização e vivência.
De forma geral, salvos alguns móveis e utensílios domésticos, toda a es-
trutura das casas era construída, principalmente, com madeira, comprada

270 Eliane Cantarino O’Dwyer


na cidade e arredores. Tábuas e ripas de madeira eram unidas com pregos
e algumas amarrações, organizadas de modo a dar forma e diferenciar
cômodos, fachada e outras áreas. Os alicerces eram constituídos por pila-
res também de madeira, enterrados até certa profundidade e alinhados de
modo a conferir estabilidade e sustentação à estrutura, suspensa entre 1,70
metro a 2 metros de altura em relação ao nível do terreno, sendo muito
comum que as casas possuíssem pequenas escadas que levavam até suas
entradas – frontais, laterais e/ou de fundo. O terreno nas imediações da
casa era utilizado de diversas formas, mas, principalmente, para o cultivo
das pequenas plantações e flores; para depósito de material de pesca, tra-
balho e/ou lida – motores, barcos, enxadas, cordas, arreios, lenha e outros
materiais sobressalentes –; e como espaço de criação de pequenos animais
domésticos – galinhas, cabras, cachorros etc. – que aproveitavam a área
debaixo da estrutura suspensa para se protegerem do sol forte ou da chu-
va. Além disso, outras áreas mais amplas do terreno também eram apro-
veitadas neste sentido, para as plantações mais amplas – árvores frutíferas,
plantas leguminosas etc. – e, em alguns casos, para a criação de gado, li-
mitada às condições do espaço disponível. Ou seja, como loci de elementos
conferidos como tradicionais na vida da comunidade, fundamentais para
a garantia da sustentabilidade das famílias, seja como fonte de renda pela
venda ou para consumo próprio.
A importância desses aspectos se evidencia mais fortemente quando
associada às condições naturais características do Inverno, época da cheia,
na qual o nível do rio se eleva e excede o limite das margens, de modo
que as águas “transbordam” para o “interior” das terras de várzea. Neste
sentido, quaisquer supostas “fragilidade” ou “precariedade” possíveis de
serem – etnocentricamente – associadas a essas moradias são “descons-
truídas” pelos próprios comunitários. A estrutura de madeira, mais leve
e versátil do que das casas de alvenaria, se apresenta passível de ser trans-
formada constantemente e de forma relativamente simples, alterando-se
a configuração das tábuas conforme a necessidade, ou substituindo-se a
madeira “antiga” por outra mais “nova”. Assim, durante as cheias con-
forme o nível da água sobe, os moradores literalmente elevam o piso das
moradias, erguendo e reforçando as tábuas de modo a manter a casa acima
do nível da água. Esta prática é conhecida e denominada como “marom-
ba” e utilizada, não apenas na reconfiguração das casas, mas também na
readaptação de outros espaços e estruturas, como, por exemplo, no espaço
destinado ao gado, sendo o curral também elevado por meio da maromba.
Assim como na construção dos “portos improvisados”, que são transfor-

Processos identitários e a produção da etnicidade 271


mados conforme as estações de cheia e vazante, de acordo com o nível da
água. A “condição provisória” de cada terreno pode ser entendida, então,
como parte fundamental das estratégias e realizações de vivência no con-
texto local, dinâmico em constantes deslocamentos, que marcam formas
ativas de relação dos sujeitos com o ambiente em que realizam suas exis-
tências, construídas de modo socialmente implicado.
Deslocamentos que se evidenciavam também em casos “mais extre-
mos”, porém não menos comuns, que envolvem as dinâmicas relacionais
entre condições de moradia/cheia e vazante agregadas ainda ao fenômenos
das terras caídas. Como dito anteriormente, a queda das terras acarreta
reconfigurações irreversíveis nas disposições ecológicas e geográficas lo-
cais em função da relativa e consequente diminuição dos estoques de terras
disponíveis. Conforme as terras caídas “avançam” e redimensionam o ter-
reno, diz-se que “as margens do rio vão ficando mais próximas das casas”,
sendo necessário a cada morador se “mudar” e se afastar das margens,
antes que suas casas sejam também tragadas para dentro do rio. Fato que
ocorre com certa frequência, pois as terras podem cair a qualquer instan-
te, do dia ou da noite, sendo crucial que os moradores mantenham certa
distância das margens. A perda de terras e das casas, além dos prejuízos
e danos gerados, significa também perda de espaços de plantação e cria-
ção de animais, e, assim, uma alteração das condições e possibilidades de
sustento, bem como de outras manifestações socioculturais, além de, em
alguns casos, significar a morte de parentes. Neste sentido, a “versatilida-
de” das “condições provisórias” das estruturas locais se evidenciava nova-
mente, pois, como estratégia de adaptação, as moradias eram literalmente
“desconstruídas”, tábua por tábua, para serem “reconstruídas” por inteiro
em outro local do mesmo terreno ou em outro terreno. Muitos morado-
res, principalmente os antigos, relatavam as diversas vezes em que tiveram
que se mudar em função destas condições, levando suas casas “mais pra
dentro do terreno”, alguns mais de cinco vezes. Além das histórias de ou-
tros moradores, que perderam suas casas ou “venderam” suas terras e se
mudaram para Santarém ou outras localidades, geralmente para casas de
parentes. Por isso, é comum que os moradores, ao se referirem a seus locais
de moradia, não digam que “moram” em determinado local, mas sim que
“pararam por ali”, provisoriamente. Mas que, porém, “sua casa está na
várzea do Ituqui, em seu terreno”.
Este panorama se apresenta, então, como mais do que uma situação
pontual, mas sim como um processo situacional, que embora não “exclu-
sivo” da localidade, promove demarcações significativas e simbólicas fun-

272 Eliane Cantarino O’Dwyer


damentais que permitem compreender que aspectos do ambiente local e
das comunidades não se separam ou se determinam mutuamente, mas sim
se afetam constantemente, por meio de elementos que são situados tanto
nas trajetórias “naturais”, “da várzea do Ituqui”, quanto nas trajetórias
históricas e tradicionais de sociabilidade dos moradores desta localida-
de. Deslocamentos integrais realizados tanto pela transposição física das
moradias, e de todos os “espaços” referentes à realização das atividades
tradicionais e diárias, quanto por movimentos referentes a processos de
referências subjetivas e intersubjetivas, de usos e costumes comuns com-
partilhados, em novas condições de localização experimentadas. Isto se
torna mais claro quando se compreende um outro fator associado a estas
dinâmicas, relativo mais precisamente ao fato de que, junto às terras caí-
das tem-se também as chamadas “terras crescidas”.
Os moradores diziam que “as terras que caem” em algum lugar “vão
crescer” em outro lugar, determinado pelo próprio fluxo natural, pois os
grandes volumes de terra que cedem e são levados pelas águas vão aos
poucos se sedimentando em outros locais. Conforme as concentrações de
terra aumentam, vê-se surgir novos “terrenos” que, ao se consolidarem,
se caracterizam por um solo que, embora inicialmente arenoso, concentra
um alto índice de nutrientes provenientes do fundo do rio. Estes novos
terrenos apresentam então condições extremamente propícias à atividade
agrícola, sendo este solo fértil escolhido pelos moradores como preferen-
cial a determinadas variedades de cultivo. Assim, os moradores não apenas
“se afastam” das terras caídas, como também buscam terras crescidas,
deslocando-se ativamente juntamente com o próprio terreno disponível na
várzea, e portanto, na comunidade. Assim, as estratégias de sobrevivên-
cia e autossustentabilidade do grupo – seus usos, costumes e tradições –
predominantemente construídas e realizadas – de forma não determinista
– em consonância com as condições ambientais ecológicas locais experi-
mentadas pelos sujeitos; não marcam “harmonias perfeitas” entre social e
ambiental, mas sim afetações mútuas e contínuas. Relações que se apresen-
tam literalmente em condições de fluxo constante, em dinâmicas naturais
de diversidade inumerável, marcadas em relações entre fatores ambientais
e sociais inter-relacionados, com intensa complexidade. Sendo a dinâmica
de terras caídas/crescidas apenas um destes fatores naturais influentes nas
estratégias de sustentabilidade dos comunitários.
No decorrer dos “ciclos econômicos”, desde os mais antigos aos atu-
ais, as condições de trabalho e produção, bem como o acesso a mercados,
bens e serviços; sempre estiveram relacionados tanto a condições ecológi-

Processos identitários e a produção da etnicidade 273


cas quanto à capacidade de deslocamento dos comunitários. As plantações
de cacau e juta, bem como a extração de madeira, por exemplo, marca-
ram a trajetória histórica da região e também influíram fortemente nas
transformações do meio ambiente desta área, pela adequação de grandes
áreas para a plantação de cacau e para extração de lenha – que servia para
abastecer os fornos dos navios –, bem como da utilização de áreas mais
alagadas para o processamento da juta. Desde a escoação da produção,
por meio dos rios até outras cidades e portos; à captação de mão de obra
para as plantações de cacau, juta e na extração de madeira; até a compra
de sementes para o plantio, de ração e remédios para o gado e, mais re-
centemente, a compra de equipamentos para pesca e motores para barcos.
Como pontuado por Sr. Rafael, entre outros, é comum que moradores que
possuam embarcações maiores realizem, mediante o pagamento de uma
taxa, o transporte da produção de outros. Muitos destes são conhecidos,
tradicionalmente, como marreteiros: que realizam transporte e comércio
na região, como “intermediários” na compra e venda de produções de di-
ferentes localidades. Fala-se ainda da necessidade de preparo da terra para
o plantio, da limpeza dos terrenos para a pastagem do gado – bovino e bu-
balino – e, ainda, da influência da pesca na estrutura ecológica da região.
A relação entre as atividades tradicionais de sustento e a dinâmica am-
biental se punham então mais evidentes. Segundo os relatos, durante a
cheia: a pesca se torna mais “difícil” e menos rentável em função da gran-
de quantidade de água que possibilita que os peixes “se espalhem e fiquem
mais profundos”; o trabalho se torna “impossível”, pela ausência de terra
disponível para plantio; e a lida com gado demanda estratégias muito es-
pecíficas, que vão desde a utilização da maromba para manter o gado fora
da água até o transporte dos animais para outras regiões de “planalto”,
de “terra fi rme”, longe da várzea. Transporte este realizado mediante o
pagamento de taxas por “cabeça de gado”, via “barcas”, grandes embar-
cações adaptadas direcionadas especificamente a este fi m. Já no tempo de
vazante: a pesca se torna mais “fácil e rentável”, pela água “mais baixa”;
o trabalho se torna viável novamente, realizado principalmente nas terras
crescidas resultantes da cheia; e a lida também se estabiliza, sendo a ma-
romba desfeita e/ou o gado trazido de volta da terra fi rme. Além disso,
este panorama de correlação socioambiental se conferia não apenas nestas
“demandas naturais” ativamente “respondidas” pelas estratégias de pesca,
“agricultura de vazante” e “manejo do gado”, como eram defi nidas estas
situações; mas também eram atravessadas por condições mais problemáti-
cas, que envolviam as relações entre comunitários e não comunitários. Re-

274 Eliane Cantarino O’Dwyer


lações estas que não envolviam apenas moradores da região, mas também
a atuação de “agentes externos”, instituições federais e particulares, e,
nesta condição específica, nossa própria presença e posicionamento, como
pontuado desde o início deste relato.
Como dito anteriormente, participar nos interesses da comunidade,
como critério de pertencimento, envolvia ações compartilhadas e singu-
lares dos comunitários, que fossem concebidas para o reforço de vínculos
relacionais tanto “dentro” quanto “fora” do grupo, bem como para a atu-
alização de referências tradicionais, tendo-se como motivação fundamen-
tal a realização das formas de manifestação e reprodução social do grupo.
Estas condições relacionais, bem como sua compreensão, eram atravessa-
das, entre outros aspectos, por formas de relacionamento com o meio am-
biente local, bem como de usufruto dos recursos naturais disponíveis, que,
em última instância, poderiam determinar o posicionamento dos sujeitos
frente ao grupo: “dentro” ou “fora” da comunidade e/ou do movimento.
Um “não comunitário” poderia ser considerado “amigo da comunidade”
por meio de suas atitudes relacionais com o grupo, desde que “contribuís-
se” para o “crescimento e desenvolvimento da comunidade” ou poderia ser
considerado um “predador”, caso suas ações fossem compreendidas como
nocivas às condições de vida da comunidade. Fato que geralmente se ligava
a relações de sobre-exploração dos recursos naturais, em atitudes defini-
das, portanto, como “predatórias” ou “de depredação do meio ambiente”.

Preservação, depredação: agências diacríticas


Assim, as iniciativas de criação das associações comunitárias e do mo-
vimento de reivindicação territorial, em seus cargos e legitimidades, te-
riam surgido, então, “da necessidade de se garantir a preservação” dos
recursos naturais e das formas tradicionais de manifestação “da cultura
da comunidade”, que estariam sendo ameaçadas por estas ações preda-
tórias realizadas principalmente por fazendeiros da região, por “gente de
fora”, proveniente de Santarém e outras regiões próximas, e, em alguns ca-
sos, por alguns moradores e até mesmo comunitários. Lideranças e outros
participantes são “imbuídos” de responsabilidades que envolvem a coibi-
ção de ações predatórias e “incentivo” às atitudes ditas “de preservação”,
acionadas principalmente por meio daquilo que os comunitários defi niam
como “ações de conscientização”. “Conscientizar” moradores e “gente
de fora” constituía em conversas ocasionais, encontros e reuniões mas,
principalmente, por meio daquilo que defi niam como “fiscalizações”. Os
comunitários combinavam “rondas” periódicas, por meio de rios e lagos,

Processos identitários e a produção da etnicidade 275


em locais conferidos como “dentro do território”, ou seja, localidades que
os comunitários defi niam como lugares fundamentais para o sustento da
comunidade. Territórios construídos por meio destas relações de uso tra-
dicional, por trajetórias historicamente compreensíveis de inter-relaciona-
mentos socioambientais, que incluíam também ações de agentes externos.
Assim, os usos e práticas realizados nestas localidades eram “fiscalizados”
não apenas pelos moradores, mas também por regulamentações governa-
mentais e institucionais, com as quais os moradores “negociam” conti-
nuamente. Negociações que podem ser conferidas em proibições e outras
iniciativas de intervenção governamental, por meio de instituições federais
e estaduais, como o Incra e o Ibama, além de instâncias administrativas
estaduais e municipais, via secretarias de meio ambiente, que determinam
certos critérios e restrições que, nem sempre são negociados com os mo-
radores locais, mas que são discutidas e questionadas pelos comunitários.
Ações que regulamentam, inclusive e principalmente – e não por acaso – às
três atividades consideradas como características fundamentais da cultura
tradicional comunitária: a pesca, o trabalho (agrícola) e a lida com gado.
No que se refere à pesca, a maioria das regulamentações se relaciona a
utilização de métodos e técnicas de pescaria que comprometem o ciclo re-
produtivo das espécies e, portanto o equilíbrio ambiental local. Em épocas
de vazante, institui-se então o período de “defeso”, que proíbe a pesca de
determinadas espécies bem como a utilização de determinadas localidades
para a atividade pesqueira, fator que afeta sensivelmente a renda e susten-
tabilidade da comunidade. Os moradores então geralmente se vinculam a
“colônias de pesca”, conforme regiões de atuação e moradia, por meio das
quais se torna possível que estes recebam o que chamam de “dinheiro do
defeso”, indenizações conferidas junto ao órgão federal em função destas
restrições. Neste sentido, a maioria dos problemas socioambientais locais se
confere pelo descumprimento desses “acordos”, associados principalmente
a métodos predatórios de pesca como, por exemplo, a “pescaria de arras-
tão”, cuja proibição se estende para além das épocas de ciclos reprodutivos.
O “arrasto” consistia em se estender uma grande rede “malhadeira” –
que muitas vezes chegava até o fundo do rio – entre duas ou mais embarca-
ções posicionadas paralelamente na distância total entre as duas margens,
geralmente em locais de estreitamento, como a“ boca” do rio, nos quais
o fluxo dos peixes era mais intenso durante certas épocas do ano. A par-
tir destas posições, os barcos literalmente arrastavam a rede rio “acima”,
contra a correnteza, capturando praticamente tudo aquilo que não fosse
pequeno o suficiente para passar pela malha extremamente fi na – proibida

276 Eliane Cantarino O’Dwyer


nos padrões regionais. Este tipo de pesca era geralmente praticado utili-
zando-se aquilo que os moradores defi niam como “geleiras”: embarcações
de grande porte, equipadas com caixas térmicas que, ao mesmo tempo,
possibilitavam o armazenamento de grandes quantidades de pescado as-
sim como um maior tempo de permanência na pescaria, já que os peixes
eram conservados no gelo até seus locais de venda.
A pesca era caracterizada como predatória também em virtude da lo-
calidade e contexto em que fosse realizada. Além das “bocas” de rios e
outros estreitamentos com alto fluxo fluvial, os lagos que se formavam
principalmente durante o verão, além daqueles ditos “permanentes”, tam-
bém eram alvos constantes “de depredação”. Isto porque, segundo os co-
munitários, conforme o nível das águas baixava, os cardumes se aglome-
ravam principalmente nestes locais tanto por “ficarem presos”, quanto por
condições de reprodução, já que se dizia que os lagos eram “os berçários”
de muitas espécies. Assim, as águas mais baixas e a grande concentração
de peixes facilitavam a pescaria que, embora proibida nestas épocas de re-
produção, atraíam “geleiras” e outros pescadores que não se intimidavam
com os avisos e restrições.
Os confl itos referentes ao trabalho e à lida com gado se apresentavam
de forma frequentemente interligada. Assim como as colônias de pesca, os
moradores se vinculam também ao sindicato de trabalhadores rurais de
Santarém, que atua também nesta “intermediação” entre instâncias go-
vernamentais e locais, além de intervir em casos regionais, de confl ito.
Isto porque a maioria dos problemas relatados se confere em situações em
que o gado “invade” terrenos, destruindo cercas e plantações, sendo fator
recorrentemente levantado nas discussões a condição de responsabilidade
de construção das cercas, sendo ora atribuída ao proprietário do gado, ora
associado ao “dono” do terreno invadido.
Segundo os comunitários, na lida local operava-se com duas varieda-
des de gado: o “gado branco” – bovino – e o “gado de búfalos” – bubalino.
Comparativamente, o gado branco era defi nido como menos rentável por
produzir menos leite que o gado de búfalos, porém também menos one-
roso em termos de impacto ambiental. Isto porque o gado bubalino, além
de alta produção leiteira e maior preço de mercado, era defi nido como
“mais adaptado às condições da várzea”, “mais forte” podendo inclusive
nadar longas distâncias e permanecer na água por mais tempo; enquanto
o gado “branco” tinha “pouca tolerância ”, mantendo-se fora da água. Os
búfalos, de porte avantajado, não só afetavam mais as condições do solo
em função do maior peso, mas também necessitavam de mais alimento e

Processos identitários e a produção da etnicidade 277


consumiam várias espécies de vegetação, muitas das quais o gado bovino
rejeitava. Pela habilidade de nadar associada a maior força e peso, dizia-se
que “os búfalos não respeitam cerca”, pois não só as destruíam com mais
facilidade como também circundavam as cercas mais fortes por meio da
água. Além disso, muitos problemas se vinculavam também ao fato de os
animais, principalmente búfalos pela “maior tolerância” à água, consumi-
rem algumas espécies de vegetação aquática que eram defi nidas pelos co-
munitários como “locais” onde muitas espécies de peixe se reproduziam:
“a casa” ou “o ninho dos peixes”. Fato que afetava diretamente também
a atividade pesqueira pela diminuição da piscosidade, tanto em termos de
quantidade quanto qualidade, já que muitas espécies de peixe acabavam
“sumindo dos rios e lagos da região” e buscavam outros locais de reprodu-
ção. Desta forma, os acordos estabelecidos determinaram a proibição da
presença do gado na várzea, em época de cheia, proibindo também a prá-
tica da maromba para este fi m; sendo obrigatório que o gado seja levado
para terrenos de terra fi rme até determinado prazo negociado e estabeleci-
do conforme as situações contextuais.
Assim, além da destruição de cercas e plantações, a lida com gado,
quando praticada de forma predatória também era “responsabilizada” por
danos causados diretamente às configurações e disposições de recursos
naturais locais disponíveis. Isto porque, além dos impactos causados di-
retamente ao solo pela própria atividade e presença dos animais e pela
frequente utilização de certas áreas comuns defi nidas como “pastos natu-
rais” em função da vegetação que apresentavam; realizava-se também a
desbastação da vegetação em outras porções de terra, cuja utilização como
pasto demandava ainda a eliminação de certas espécies vegetais, inclusive
pelo uso de agrotóxicos. Os produtos químicos não afetavam apenas o
solo e as vegetações terrestres mas também, pelas chuvas e principalmente
em época de cheia, as águas de rios e lagos também eram contaminadas.
Além destas formas citadas, as ações “predatórias” também eram con-
feridas em situações de roubo ou morte de gado, roubo ou destruição de
redes de pesca e, em certos casos por formas de “apropriação” de terrenos.
Para se entender esta apropriação predatória de terrenos, faz-se necessá-
rio primeiramente compreender as condições de “apropriação legítima”.
De forma sucinta, de acordo com leis federais os terrenos de várzea são
defi nidos como terras devolutas, sendo impossível a obtenção de títulos
individuais de propriedade e, portanto, qualquer forma legal de compra
ou venda destas terras. A titulação das terras se faz então, entre outras
formas, pela condição de reconhecimento de ocupação e uso tradicional da

278 Eliane Cantarino O’Dwyer


terra de várzea, vinculado inclusive a processos de identidades coletivas,
como este em questão. Esta condição de ocupação tradicional pode ser
conferida na própria reivindicação de origem comum dos proprietários,
quando se referem à Valentina como “dona” das terras, “herdadas” por
seus fi lhos e parentes, assim como as “raízes” fi rmadas por cabanos e es-
cravos. Assim, o título de “dona” atribuído à Valentina, se confere pelas
condições de usos e ocupações por ela realizadas, que inclusive hoje se
conferem em formas tradicionais de apropriação deste território realizadas
por seus descendentes.
O problema não se faz necessariamente em “compras” ou “vendas” de
terrenos entre comunitários, fato recorrente e comum, incorporado inclu-
sive às tradições, como no caso do Sr. Rafael que comprou seu terreno do
próprio sogro, ao se casar, sendo sua esposa considerada uma “fi lha do
Ituqui”. Os confl itos se fazem principalmente por meio daqueles que são
não comunitários, principalmente fazendeiros. Retoma-se então a situação
de Regina, bisneta de Valentina, cujo terreno onde reside foi conseguido
por meio de acordo com um fazendeiro morador do Ituqui, que restringe
não apenas o uso do terreno, mas as próprias ações de Regina e sua famí-
lia. Conforme revelado ao longo da experiência etnográfica, além do fato
de os familiares de Regina serem acusados de praticar pesca predatória,
este fazendeiro em questão se trata de Cauã, citado rapidamente por Sr.
Rafael. A importância disto se marca pela trajetória do pai de Cauã, Taru-
mã, para quem o Sr. Rafael teria inclusive vendido seu gado para comprar
o terreno de seu sogro. Tarumã teria inicialmente atuado como um comer-
ciante na região e, por meio da atividade e, principalmente, das dívidas de
outros moradores, teria conseguido se apropriar de muitas terras e gado,
tornando-se um fazendeiro. Condição considerada predatória, que inclui
também o terreno “ocupado” por Regina, ainda pertencente à família de
Tarumã por meio de seu filho Cauã, também um fazendeiro, que, além
disso, também é acusado de praticar outros usos de recursos naturais de
forma predatória.

Conclusões e considerações finais


Apresentados todos os eixos de discussão, é possível agora se realizar al-
gumas breves conclusões, referentes às condições desta experiência etno-
gráfica, tanto no que tange as situações encontradas no campo observado
quanto o próprio posicionamento neste contexto. Para tanto, cita-se uma
outra situação que condensa aspectos referentes a formas de relaciona-
mento social e pertencimento, conferidas em construções dinâmicas en-

Processos identitários e a produção da etnicidade 279


tre agentes sociais, bem como em deslocamentos de seus posicionamentos
contextualizados.
Nesta ocasião, fomos “convidados” pelos representantes da comuni-
dade de São José e São Raimundo a conferir os pontos pretendidos para
a demarcação do território reivindicado. Pontos que, segundo eles, seriam
os limites do território que “precisavam”: locais em que pescavam, em que
levavam o gado para pastio, que evocavam memórias e histórias comuns e
que correspondiam a fronteiras entre comunidades e, ainda, entre comu-
nidades e terras de fazendeiros e outros que não integravam o movimento.
Estas “fronteiras” envolviam ainda demarcações referentes a áreas de atu-
ação ou implantação de inúmeros projetos, governamentais ou privados,
defi nidas como disponíveis a todos os moradores da região, cujo usufruto,
porém, era condicionado a determinadas conformidades, principalmente,
por meio de TACs – Termos de Ajustamento de Conduta – defi nidos e
mantidos inclusive, por órgãos como Ibama e o Incra. De forma sucinta,
pode-se dizer que a maioria das determinações dos TACs era construída
no intuito de atender às dinâmicas ambientais locais pela regulamentação
das atividades de usufruto de recursos naturais conforme as épocas do
ano consideradas e suas relativas particularidades. O manejo obrigatório
do gado, já citado, é um exemplo destas determinações. Além dos TACs,
outras formas de regulação do usufruto dos recursos naturais também
vigoravam na região, como por exemplo os Acordos de Pesca que, entre
outras determinações, instituíam as práticas válidas para a atividade pes-
queira de acordo com a época do ano, assim como o “defeso”, já citado, e
seu período de vigência. Entretanto, muitas destas áreas de TACs e outros
acordos se apresentavam também inseridas no território reivindicado pelo
movimento, e seriam portanto “incorporadas” pelo território quilombo-
la. Fato que preocupava alguns comunitários e muitos não comunitários
pois demandava que muitas destas fronteiras – territoriais e simbólicas –
fossem renegociadas, sobrepostas ou até mesmo dissolvidas, acarretando
transformações nas configurações socioambientais locais, tanto em termos
de espaço, disposição e usufruto dos terrenos e seus recursos; quanto nas
relações entre moradores, “comunidades” e instituições.
Fomos em duas “voadeiras”, sob a guia de “comunitários”, entre os
quais duas lideranças, que nos “apresentavam” o cenário que experimen-
távamos, denominando os diversos locais por onde passávamos e apon-
tando os pontos considerados vitais para garantia de sustentabilidade da
comunidade e de seus usos e saberes tradicionais. Bem como aqueles nos
quais algumas atividades estavam suspensas ou proibidas, em função das

280 Eliane Cantarino O’Dwyer


condições dos TACs. Em certo momento do percurso, avistamos um outro
barco, que, segundo um dos guias, poderia pertencer a pescadores que
estariam burlando as determinações do “defeso”, cujo período de vigor se
iniciava. Ao nos aproximarmos, identificou-se que o barco pertencia ao Sr.
Pena, um morador da “terra fi rme”, considerado um “amigo da comuni-
dade” e apontado como uma liderança no “planalto”, inclusive, como um
dos incentivadores do início do movimento no Ituqui. Em breve conversa,
Sr. Pena disse estar fazendo a “fiscalização” na área, “conscientizando”
alguns moradores que estariam utilizando “malhadeira” para pescar, cujo
uso se tornava proibido pelo “defeso” a partir daquele dia. Disse ter avis-
tado alguns barcos “mais cedo”, mas que teriam desaparecido, deixando
para trás as “malhadeiras”.
Nos despedimos de Sr. Pena e retomamos o percurso planejado. Porém,
logo adiante, fomos surpreendidos com outros barcos, cujos ocupantes pa-
reciam igualmente surpresos com nossa presença. Naquele instante, após
se entreolharem, os representantes presentes pediram “licença” para que
pudessem aproveitar o momento para “conscientizar” estes moradores que
estariam pescando de forma irregular. Desviamos o curso e nos aproxi-
mamos dos barcos, sendo os ocupantes logo identificados como “gente de
fora”. A “conscientização” durou alguns breves minutos, constituindo-se
em um diálogo no qual os comunitários buscavam informar sobre a proi-
bição da “pesca de malhadeira” que se iniciava naquele dia como cumpri-
mento do “defeso”; enquanto os pescadores em questão, “de fora”, diziam
saber do fato e que estavam apenas buscando “um motor” que havia sido
“deixado para trás mais cedo”. Encerrada a “conscientização”, prossegui-
mos com o “planejamento”. Enquanto conversávamos sobre o ocorrido,
um dos guias comentou que havia avistado algumas “marcações” em um
local pelo qual passamos e novamente pediu licença para que pudesse uti-
lizar a “voadeira” e verificar. Segundo nos explicaram, estas “marcações”
são feitas geralmente utilizando-se galhos que são fincados no fundo do
rio, de modo a marcar a localização onde são deixadas “malhadeiras”,
recuperadas ao fi m do dia juntamente com todo o pescado recolhido. Ou-
tras formas de “marcação” se constituem ainda pela utilização de garrafas
plásticas ou outros materiais flutuantes atados às “malhadeiras”, com a
mesma fi nalidade. Retornamos e as “marcações” foram retiradas.
Neste breve panorama, chama-se atenção à fluidez de posicionamentos
dos agentes sociais contextualizados, bem como à transformação contínua
de suas ações e relações. A fiscalização dos comunitários, como articula-
ção localizada no discurso e na agência prática nativa, reafi rmava princí-

Processos identitários e a produção da etnicidade 281


pios de usufruto tradicional dos recursos de sustentabilidade da comuni-
dade tendo como fundamento apropriado, regulamentações organizadas e
geridas por agentes e políticas governamentais, que serviam como recursos
de reafi rmação e legitimação das atitudes de preservação. No mesmo sen-
tido, o rearranjo dos limites territoriais, como já mencionado, significa-
va também a possibilidade de estabelecimento e/ou resgate de acesso a
áreas que se mantinham restritas tanto por intervenções públicas quanto
por ações privadas, principalmente, de fazendeiros, que em certos casos
negavam o acesso a determinadas áreas que se compreenderiam em suas
“propriedades”. Assim, as movimentações das fronteiras territoriais signi-
ficavam também a transformação de ordenamentos sociais, deslocamentos
de status e posicionamentos que teriam de ser renegociados direta e indi-
retamente, inclusive com respaldo de instâncias públicas governamentais.
Estas dinâmicas também se conferiam em nossa situação em campo:
de “antropólogos contratados pelo Incra”, para “fazer exames” e “dizer
quem é ou não é quilombola”, “professores da universidade do Rio de
Janeiro” que queriam “conhecer as histórias dos tempos dos antigos”;
éramos “transformados” agora, nesta situação, em mais do que “teste-
munhas” das ações, mas efetivamente em participantes da fiscalização.
Pois, embora mesmo que não nos pronunciássemos verbalmente, estáva-
mos inegavelmente presentes na situação relacional, como “ocasionais”
agentes de conscientização, contextualizados e localizados. Porém, como
ressaltado, estes inúmeros deslocamentos posicionais não se faziam sem
esforço ativo, mas por meio de negociações contínuas de sentidos e refe-
rências múltiplas, relativamente compartilhados, por meio dos quais todos
os agentes contextualizados se posicionavam e, ao mesmo tempo, eram
posicionados, processualmente. Desta forma, ser etnógrafo neste contexto
se apresentava em situações de transferências constantes de localização,
simbólica e material, que eram realizadas de acordo com as condições de
possibilidade de cada contexto de ação, marcadas em trajetórias relacio-
nais ativas. No mesmo sentido, compreender a experiência de “Outros”
era buscar estas disposições ativas, estas referências de uso e costume e,
enfi m, estas formas de realização existencial que embora de tangibilidade
limitada, possibilitavam constituir e situar múltiplos referenciais significa-
tivos e simbólicos pela construção e deslocamento de novas visões e expe-
rimentações de mundo.
Portanto, em conclusão, diz-se que no contexto etnográfico considera-
do, as condições de deslocamento se relacionam intimamente às configu-
rações culturais e identitárias dos comunitários por meio da construção de

282 Eliane Cantarino O’Dwyer


uma identidade compartilhada e atravessada ininterruptamente pela atu-
ação de múltiplas condições e situações processuais conferidas em ações e
relações sociais dos comunitários entre si, com “outros” e com o ambiente
local onde se situavam. Identidade esta baseada em uma origem comum
presumida e compartilhada, condensada em “ancestralidades” vinculadas
à Maria Valentina, aos cabanos e ao tempo dos escravos, e manifesta tam-
bém pela “diversidade de cor da pele”, reivindicada, explicada e contes-
tada em inúmeras compreensões locais. E ainda, aliada à realização de
atividades tradicionais de pesca, trabalho e lida com gado, demarcadas em
técnicas e formas relacionais de usufruto dos recursos de sustentação da
comunidade. Enfi m, configurações apresentadas em conjunturas de inter-
-relações dinamicamente dispostas e condensadas em sinais diacríticos de
pertencimento, que se ligam a referenciais tradicionais de práticas, usos e
costumes por meio dos quais os sujeitos se identificam como comunitários
e se diferenciam dos não comunitários.
Disposições que, por sua vez, são conferidas no acionamento de me-
mórias e saberes que demarcam a trajetória histórica existencial da comu-
nidade em consonância com a trajetória existencial do próprio contexto
localizado, a “várzea do Ituqui”. Ser ou não ser comunitário se apresenta
então em determinadas formas de viver e se relacionar: formas de realizar
existência por meio de ações socialmente implicadas, de “preservação” ou
“predatórias”, que em última instância, se conferem como afi rmação ou
negação destas formas diacríticas de existir, sempre processuais, em rela-
ções ativas com as situações ambientais experimentadas.
Por meio destas conjunturas dinâmicas de ação, conferem-se situações
processuais de “negociação”, que incluem a possibilidade de reivindicação
e reconhecimento de um território associado a uma “identidade étnica”
comum, acionada junto às instâncias institucionais governamentais, que
marcam ainda um não isolamento do grupo, pela manutenção e busca de
relacionamentos com “Outros”, possíveis amigos da comunidade e tam-
bém pela rejeição de predadores, inclusive daqueles que vivem na região.
Relações que implicam então no reconhecimento e resguardo de um terri-
tório construído tradicionalmente, cujas delimitações são construídas por
meio das práticas de usufruto dos recursos ambientais disponíveis, mar-
cadas “desde o começo”, em processos inúmeros e dinâmicos conferidos
desde os tempos dos antigos até os dias de hoje, nas próprias dinâmicas
ecológicas locais e na relação ativa dos sujeitos com estas dinâmicas; que
é atravessado por disputas e conflitos, que são defi nidos como ameaças às
possibilidades de manifestação das formas de existência da comunidade,

Processos identitários e a produção da etnicidade 283


pois, embora a localidade seja rica em recursos naturais, todos os recursos
não se localizam em um mesmo lugar. Ou seja, os moradores têm que se
deslocar – as vezes longas distâncias, e de diversas formas – para conse-
guirem captar ou usufruir de todos os recursos que necessitam. Fato que
explica em grande medida a amplitude do território reivindicado, que in-
clui três comunidades – São José, Nova Vista e São Raimundo – e algumas
áreas defi nidas como comuns e de importância estratégica vital para a
reprodução do meio de vida da comunidade, que em muitos casos são alvo
de ações predatórias, de uso e apropriação privativos, praticadas principal-
mente por fazendeiros e gente de fora.
Trata-se então de uma conjuntura construída por inúmeros desloca-
mentos, marcados desde a dinâmica de cheias e vazantes, passando pela
necessidade de se “acompanhar” o movimento das terras caídas e cres-
cidas, desconstruindo-se e reconstruindo-se espaços de moradia; até as
próprias condições de relações socioculturais, em fluxos dinâmicos de
compartilhamento e disputa de sinais diacríticos e legitimidades, que se
constituem como peças-chave nas estratégias de sobrevivência e mani-
festação existencial do grupo. Condições processuais de fluxo que, como
pontuado no início deste relato, envolvem os posicionamentos de todos
os sujeitos contextualizados, como agentes socialmente implicados: “mo-
radores da várzea”, “comunitários” e “não comunitários”, cujas relações
mútuas são construídas dinamicamente.

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Processos identitários e a produção da etnicidade 285

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