Autoras: Lilia M. Schwarcz, doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo – USP, professora do Departamento de Antropologia da mesma universidade. Heloisa M. Starling, doutora em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Capítulo 3: Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência. (págs. 106 – 143) Subcapítulos: (I) O tráfico de viventes; (II) No Brasil a mistura; (III) Escravidão é sinônimo de violência; (IV) Toma lá dá cá: rebeliões, insurreições e movimentos escravos; (V) Palmares: a rebeldia dos quilombos; (VI) As muitas modalidades da luta de resistência.
(I) O tráfico de viventes (pág. 106 – 120).
O Capítulo se inicia com a afirmação da importância do sistema escravocrata para o desenvolvimento do Brasil colônia. Para tal, as autoras fazem uso da definição do jesuíta Antonil que considerava os escravos como “as mãos e os pés do senhor do engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente” (p. 106). Isto estabelecido, as autoras passam a uma breve reconstrução do papel do sistema escravocrata em diversas sociedades europeias, principalmente no condizente às civilizações grega e romana. Assim, estabelecem que este seria um sistema já a mito presente no continente europeu, de modo que a população de escravos no auge do império romano seria da ordem de 40% da população seria representativa dessa presença. Diversos povos, em diversos períodos históricos, teriam registro do uso deste sistema. Apesar disso, seguem as autoras, o papel de tais sistemas escravocratas na Antiguidade e na Idade Média seria diferente, tanto é que o trabalho compulsório não significaria “a principal força para a reprodução de bens e realização de serviços” (p. 107). A finalidade desta força de trabalho também teria um caráter diferenciado, de modo que não seria de muito comum sua utilização para a produção agrícola. Este papel pertencia, geralmente, a populações camponesas, o que se manteve até meados do século XV. Paralelamente a isso, no continente africano também haveriam sistemas escravistas, no entanto desenvolvidos sob outros parâmetros, acerca do que as autoras citam sistemas de linhagem e parentesco. Ainda assim, a heterogeneidade política do continente possibilitava a realização da compra e venda de escravizados. A ocupação portuguesa de territórios estratégicos no litoral africano foi decisiva para a criação de uma nova estrutura escravista na região. Inicialmente, a demanda europeia por cativos africanos era direcionada para o próprio continente, de modo que era possível identificar uma presença maciça destes na população da cidade de Lisboa no Século XVI. O início da colonização americana mudou os rumos do fluxo escravista, que passou não mais a atender demandas domésticas da Europa, mas a abastecer postos de trabalho no cultivo do açúcar no Brasil. A importação de cativos iniciaria de forma gradual, mas dentro de pouco tempo teria tomado proporções muito maiores, tendo triplicado após cerca de 20 anos. As autoras afirmam que os portugueses se consideravam familiarizados com as populações do continente africano, não se preocupando com a cor ou com “o que hoje denominamos ‘raça’” (pág. 110), mas, sim, classificando tais povos sob a alcunha de amigos ou inimigos. Nessa senda, os portugueses teriam desenvolvido diversas estratégias para o fortalecimento do mercado escravista, ao que estabeleceram relações próximas com diversas civilizações africanas, a exemplo da família real congolesa, mas, posteriormente, realizando movimentos de conquista e colonização. As autoras seguem afirmando que, em razão destas estratégias, os portugueses “nunca se envolveram” (pág. 111) em atividades internas de captura de cativos. Além do que, diferentemente do que se costuma pensar, os cativos africanos não eram apreendidos, mas “trocados por tecidos, instrumentos agrícolas, barras de metal, pólvora, cachaça, rum e outras bebidas alcoólicas” (pág. 111). O tráfico de escravos teria, portanto, um certo nível de complexidade ao compreender pontos fixos de embarque, troca e negociação, assim como fortes litorâneos e portos, além de comerciantes africanos, ligados ou não a nobres e reis locais. Tal complexidade colocaria por terra o mito de que os escravizados seriam de baixo valor econômico, assim como de que seriam deliberadamente destruídos durante a viagem. Outra questão que as autoras afirmam ser um mito seria o de que os europeus “triangulavam ser comércio, carregando produtos europeus para a África, escravos para a América e açúcar para a Europa numa mesma viagem” (pág. 112). Em verdade tanto as embarcações eram especialmente designadas para o transporte de cativos, quanto o objetivo era o de maximizar a quantidade destes que seriam transportados. Tal característica de maximização seria um dos fatores mais importantes para a alta taxa de mortalidade do transporte de escravizados, que variava entre 10% e 20%. As condições da viagem, em matéria de alimentação, higiene, superlotação e outros recursos variados, tornava os navios negreiros um ambiente propício para a disseminação de doenças como varíola, sarampo, febre amarela, tifo, entre outras. O perfil dos cativos era, em sua maioria, composto por homens adultos, que seriam diretamente colocados em atividades agrícolas. Mulheres também seriam alocadas em atividades agrícolas, mas eram consideradas boas especialistas para certas atividades. Crianças e pessoas de idade mais avançada tinham pequena preferência do tráfico, tendo em vista as dificuldades de desenvolvimento do trabalho pesado. Chegados ao Brasil, os escravizados eram registrados e colocados quase que imediatamente à venda, sendo classificados por sexo, idade, nacionalidade e estado de saúde. Preparados com óleos, eram expostos para inspeção dos compradores em leilões públicos, ou, quando não fossem comprados de pronto, eram armazenados em galpões. (II) No Brasil a mistura (pág. 120 – 122). Nesta subseção as autoras iniciam por salientar o alto grau de diversidade de povos que foram trazidos ao Brasil pelo sistema escravista. A diversidade de origem tinha como consequência a classificação dos cativos entre bons trabalhadores, como foi o caso dos chamados “negros de Angola”, e de maus trabalhadores, a exemplo dos “negros de Moçambique” (pág. 120). Por outro lado, já no território brasileiro, haveria uma grande diferença no tratamento dado a diferentes tipos de escravos, como era o caso de escravos destinados à casa grande, bem tratados, e dos escravos do eito, geralmente aqueles sob os quais recaia a maior carga de trabalho pesado. O sistema escravista brasileiro seria marcado por uma “baixa fecundidade” e “alta mortalidade infantil”, que, diferentemente do que ocorrera nos EUA, não tornavam propícios para a “criação de escravos” (pág. 122). A isso estaria aliada a questão cultural da abstinência cultural, comum principalmente entre os iorubas, o que, por sua vez, colocaria por terra a noção de “promiscuidade sexual” construída ao redor dos cativos. Um outro aspecto da dominação seria a deslegitimação dos relacionamentos entre os escravizados. Isto acontecia seja pela venda separada de membros de uma mesma família, ou mesmo pelo registro de novos nomes de batismo, que demarcariam a dominação do Senhor. (III) Escravidão é sinônimo de violência (pág. 122 – 132). O presente subcapítulo tem por início a afirmação de que a compreensão do sistema escravista moderno teria por necessidade atentar para a articulação de colônias voltadas para a produção para o mercado externo. As novas condições de produção, nos latifúndios de monocultura, teriam influenciado para a recriação da escravização sob novas bases. Neste contexto, a dominação psicológica seria importantíssima, de modo que os cativos seriam alienados de suas origens por diversos meios, seja pelo trabalho, tido como atividade disciplinadora e civilizadora, seja pelo mais direto dos meios, a violência. Tal violência não seria desprovida de diretrizes ou objetivos. Em verdade foram criados métodos e estratégias de violência que visavam empregar sobre os escravizados uma noção constante de medo e coação que os transformasse em “trabalhadores obedientes” (pág. 123). Os castigos geralmente eram empregados de forma coletiva, onde as punições públicas formaram uma “arqueologia da violência que tinha por fito constituir a figura do senhor como autoridade máxima, cujas marcas, e a própria lei, ficavam registradas no corpo escravo” (pág. 124). Por meio da violência, a escravização teria se enraizado no Brasil por meio de costumes, que passavam pela definição dos locais reservados aos escravizados, os ambientes em que seriam confinados, para chegar a expressões que adentraram o vocabulário geral, como é o caso do termo boçal, que, à época, designava escravizados que não tinham aprendido a língua local. O trabalho nos engenhos era de muito degradante, de modo que os cativos eram obrigados a cumprir jornadas diárias de cerca de vinte horas de trabalho. Outros espaços, como é o caso das fornalhas, eram utilizados como castigo a escravizados que causassem problemas, exatamente em razão das condições ainda piores de trabalho, onde eram comuns as queimaduras, as mutilações e a perda de membros. Ao mesmo passo, as mulheres escravizadas não escapavam de tal julgo, muitas vezes sendo forçadas à prostituição em localidades portuárias, ou sendo vítimas de punições comuns, mas, também, seriam comuns as mutilações em razão dos ciúmes das Senhoras. Em razão de tais fatores, seguem as autoras, é que se coloca por terra uma noção errônea de que o Brasil teria passado por uma “escravidão mais benevolente” (pág. 127). Mas, dentre todas as circunstâncias, o regime de trabalho seria o grande vilão, em razão do que boa parte dos cativos morria da exaustão do trabalho, o que, por outro lado, movimentavam o mercado escravista para que as perdas fossem repostas. Um outro ponto específico da escravização brasileira seria a alforria, espécie de possibilidade de libertação de escravizados, mas que não encontrava qualquer forma de regulamentação legislativa, fundando-se tão somente em costumes. Nesta modalidade, as autoras afirmam que a maior parte dos alforriados seria de mulheres e crianças, além dos mulatos, de forma que homens em idade de trabalho eram alforriados em menor parcela. No entanto, apesar desta possibilidade de libertação existir, era constante o seu desrespeito, fazendo com que os libertos tivessem de voltar ao estado de escravização, tamanha a fragilidade do instituto. O contexto de violência em questão fez com que os cativos africanos desenvolvessem diversas formas de resistência, entre insubordinações individuais, como é o exemplo de desobediências diárias, sabotagens do maquinário ou mesmo de formas mais extremas como o aborto ou o suicídio. Mas, também, de formas coletivas, como as fugas e rebeliões, sendo a mais marcante destas a formação de quilombos. (IV) Toma lá dá cá: rebeliões, insurreições e movimentos escravos (pág. 132 – 135). A reação natural à violência, segundo as autoras, seria a própria violência. Desta forma, teria sido assim que os escravizados reagiram à rotina a que foram forçados, realizando o assassinato de feitores e Senhores, assim como rebeliões e insurreições em massa. Tais estratégias de resistência é o que teria dado origem aos quilombos. Enquanto o suicídio era uma solução extrema, mas continuava sendo uma solução para o julgo escravista, o quilombo se tornou uma alternativa concreta a esta realidade. A fuga para estes locais envolvia muitos riscos, pelo desconhecimento da geografia local e pela possibilidade de captura e eventuais punições, mas que foi comum por toda a história da escravização no Brasil. A forma de organização dos quilombos, como indicam as autoras, perdurava de acordo com as formas de convivência que fossem estabelecidas com seus vizinhos. Em razão disso, muitos quilombos teriam desenvolvido atividades comerciais com núcleos urbanos próximos, objetivando ter acesso a recursos que possibilitassem o exercício de atividades agrícolas na comunidade. Outros, no entanto, teriam estabelecido relações conflituosas, realizando saques e roubos que, posteriormente, seriam vendidos para cumprir o mesmo objetivo, de conseguir recursos. No cenário amazônico, por sua vez, a forma de adaptação dos escravizados fugidos ao ambiente era uma das circunstâncias mais determinantes da continuidade da comunidade quilombola. (V) Palmares: a rebeldia dos quilombos (pág. 135 – 139). Dentre os inúmeros quilombos formados no Brasil, as autoras indicam o Quilombo dos Palmares como um dos mais notáveis, a nível de organização política ou de tempo de duração. Iniciado por um pequeno núcleo de quarenta escravizados fugidos que se estabeleceram na Serra da Barriga, o Quilombo dos Palmares perdurou por cerca de 100 anos, entre o fim dos séculos XVI e XVII, chegando a uma população de 20 mil habitantes em diversas comunidades, sendo cerca de 6 mil somente em sua principal comunidade, Cerca Real do Macaco. Palmares atingiu um alto nível de complexidade administrativa, sendo composto por diversas comunidades, todas chefiadas por líderes próprios que se reportavam a um líder central, localizado na maior comunidade, Cerca Real do Macaco. Seu desenvolvimento tomou, por diversas vezes, proveito das instabilidades políticas no domínio português, que muitas vezes se via em conflito com outras nações europeias. O nível de força do Quilombo dos Palmares começou a diminuir na segunda metade do século XVII, quando os portugueses desenvolveram uma estratégia para quebrar a centralidade do poder na comunidade em razão de divergências em um acordo proposto pelos colonos. Por mais 15 anos Palmares teria resistido às incursões portuguesas, somente tendo caído após a morte de seu último líder, Zumbi, e da conquista de sua capital. No entanto, restou como um exemplo de resistência dos povos escravizados nos séculos que se seguiram, sendo diversas vezes revisitado e ressignificado. (VI) As muitas modalidades da luta de resistência (pág. 139 – 143). Apesar de os quilombos serem uma das formas mais notáveis de resistência, esta não era a única, de modo que outras muitas eram realizadas pelos escravizados. Dentre estas constavam as já citadas como o suicídio, o aborto, o assassinato de feitores e Senhores e etc. O candomblé, por sua vez, figurou como uma forte maneira de conservação de preceitos culturais e religiosos africanos no Brasil, a partir da ressignificação de diversos costumes e ritos para que fossem mascarados no contexto cristão da escravização. Por outro lado, os portugueses aprofundavam suas estratégias de perseguição, momento em que iniciou-se a formação da figura dos Capitães do Mato, libertos que exerciam o ofício de capturar escravizados fugidos. Apesar disso, os cativos continuaram a exercer modos de resistência, onde o ato de provocar prejuízos econômicos aos senhores, quebrando e sabotando maquinários, ou mesmo causando incêndios nas plantações se tornaram muito comuns.