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Livro: Brasil: uma biografia

Membro do Grupo de Pesquisa: Alexandre Julião


Autoras:
Lilia M. Schwarcz, doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo –
USP, professora do Departamento de Antropologia da mesma universidade.
Heloisa M. Starling, doutora em ciência política pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, professora do Departamento de História da
Universidade Federal de Minas Gerais.
Capítulo 3: Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência.
(págs. 106 – 143)
Subcapítulos: (I) O tráfico de viventes; (II) No Brasil a mistura; (III) Escravidão é
sinônimo de violência; (IV) Toma lá dá cá: rebeliões, insurreições e movimentos
escravos; (V) Palmares: a rebeldia dos quilombos; (VI) As muitas modalidades da
luta de resistência.

(I) O tráfico de viventes (pág. 106 – 120).


O Capítulo se inicia com a afirmação da importância do sistema escravocrata para
o desenvolvimento do Brasil colônia. Para tal, as autoras fazem uso da definição do
jesuíta Antonil que considerava os escravos como “as mãos e os pés do senhor do
engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda,
nem ter engenho corrente” (p. 106).
Isto estabelecido, as autoras passam a uma breve reconstrução do papel do sistema
escravocrata em diversas sociedades europeias, principalmente no condizente às
civilizações grega e romana. Assim, estabelecem que este seria um sistema já a mito
presente no continente europeu, de modo que a população de escravos no auge do
império romano seria da ordem de 40% da população seria representativa dessa
presença.
Diversos povos, em diversos períodos históricos, teriam registro do uso deste
sistema. Apesar disso, seguem as autoras, o papel de tais sistemas escravocratas na
Antiguidade e na Idade Média seria diferente, tanto é que o trabalho compulsório não
significaria “a principal força para a reprodução de bens e realização de serviços” (p.
107).
A finalidade desta força de trabalho também teria um caráter diferenciado, de
modo que não seria de muito comum sua utilização para a produção agrícola. Este papel
pertencia, geralmente, a populações camponesas, o que se manteve até meados do
século XV.
Paralelamente a isso, no continente africano também haveriam sistemas
escravistas, no entanto desenvolvidos sob outros parâmetros, acerca do que as autoras
citam sistemas de linhagem e parentesco. Ainda assim, a heterogeneidade política do
continente possibilitava a realização da compra e venda de escravizados.
A ocupação portuguesa de territórios estratégicos no litoral africano foi decisiva
para a criação de uma nova estrutura escravista na região. Inicialmente, a demanda
europeia por cativos africanos era direcionada para o próprio continente, de modo que
era possível identificar uma presença maciça destes na população da cidade de Lisboa
no Século XVI.
O início da colonização americana mudou os rumos do fluxo escravista, que
passou não mais a atender demandas domésticas da Europa, mas a abastecer postos de
trabalho no cultivo do açúcar no Brasil. A importação de cativos iniciaria de forma
gradual, mas dentro de pouco tempo teria tomado proporções muito maiores, tendo
triplicado após cerca de 20 anos.
As autoras afirmam que os portugueses se consideravam familiarizados com as
populações do continente africano, não se preocupando com a cor ou com “o que hoje
denominamos ‘raça’” (pág. 110), mas, sim, classificando tais povos sob a alcunha de
amigos ou inimigos.
Nessa senda, os portugueses teriam desenvolvido diversas estratégias para o
fortalecimento do mercado escravista, ao que estabeleceram relações próximas com
diversas civilizações africanas, a exemplo da família real congolesa, mas,
posteriormente, realizando movimentos de conquista e colonização.
As autoras seguem afirmando que, em razão destas estratégias, os portugueses
“nunca se envolveram” (pág. 111) em atividades internas de captura de cativos. Além
do que, diferentemente do que se costuma pensar, os cativos africanos não eram
apreendidos, mas “trocados por tecidos, instrumentos agrícolas, barras de metal,
pólvora, cachaça, rum e outras bebidas alcoólicas” (pág. 111).
O tráfico de escravos teria, portanto, um certo nível de complexidade ao
compreender pontos fixos de embarque, troca e negociação, assim como fortes
litorâneos e portos, além de comerciantes africanos, ligados ou não a nobres e reis
locais. Tal complexidade colocaria por terra o mito de que os escravizados seriam de
baixo valor econômico, assim como de que seriam deliberadamente destruídos durante a
viagem.
Outra questão que as autoras afirmam ser um mito seria o de que os europeus
“triangulavam ser comércio, carregando produtos europeus para a África, escravos para
a América e açúcar para a Europa numa mesma viagem” (pág. 112). Em verdade tanto
as embarcações eram especialmente designadas para o transporte de cativos, quanto o
objetivo era o de maximizar a quantidade destes que seriam transportados.
Tal característica de maximização seria um dos fatores mais importantes para a
alta taxa de mortalidade do transporte de escravizados, que variava entre 10% e 20%.
As condições da viagem, em matéria de alimentação, higiene, superlotação e outros
recursos variados, tornava os navios negreiros um ambiente propício para a
disseminação de doenças como varíola, sarampo, febre amarela, tifo, entre outras.
O perfil dos cativos era, em sua maioria, composto por homens adultos, que
seriam diretamente colocados em atividades agrícolas. Mulheres também seriam
alocadas em atividades agrícolas, mas eram consideradas boas especialistas para certas
atividades. Crianças e pessoas de idade mais avançada tinham pequena preferência do
tráfico, tendo em vista as dificuldades de desenvolvimento do trabalho pesado.
Chegados ao Brasil, os escravizados eram registrados e colocados quase que
imediatamente à venda, sendo classificados por sexo, idade, nacionalidade e estado de
saúde. Preparados com óleos, eram expostos para inspeção dos compradores em leilões
públicos, ou, quando não fossem comprados de pronto, eram armazenados em galpões.
(II) No Brasil a mistura (pág. 120 – 122).
Nesta subseção as autoras iniciam por salientar o alto grau de diversidade de
povos que foram trazidos ao Brasil pelo sistema escravista. A diversidade de origem
tinha como consequência a classificação dos cativos entre bons trabalhadores, como foi
o caso dos chamados “negros de Angola”, e de maus trabalhadores, a exemplo dos
“negros de Moçambique” (pág. 120).
Por outro lado, já no território brasileiro, haveria uma grande diferença no
tratamento dado a diferentes tipos de escravos, como era o caso de escravos destinados
à casa grande, bem tratados, e dos escravos do eito, geralmente aqueles sob os quais
recaia a maior carga de trabalho pesado.
O sistema escravista brasileiro seria marcado por uma “baixa fecundidade” e “alta
mortalidade infantil”, que, diferentemente do que ocorrera nos EUA, não tornavam
propícios para a “criação de escravos” (pág. 122). A isso estaria aliada a questão
cultural da abstinência cultural, comum principalmente entre os iorubas, o que, por sua
vez, colocaria por terra a noção de “promiscuidade sexual” construída ao redor dos
cativos.
Um outro aspecto da dominação seria a deslegitimação dos relacionamentos entre
os escravizados. Isto acontecia seja pela venda separada de membros de uma mesma
família, ou mesmo pelo registro de novos nomes de batismo, que demarcariam a
dominação do Senhor.
(III) Escravidão é sinônimo de violência (pág. 122 – 132).
O presente subcapítulo tem por início a afirmação de que a compreensão do
sistema escravista moderno teria por necessidade atentar para a articulação de colônias
voltadas para a produção para o mercado externo. As novas condições de produção, nos
latifúndios de monocultura, teriam influenciado para a recriação da escravização sob
novas bases.
Neste contexto, a dominação psicológica seria importantíssima, de modo que os
cativos seriam alienados de suas origens por diversos meios, seja pelo trabalho, tido
como atividade disciplinadora e civilizadora, seja pelo mais direto dos meios, a
violência.
Tal violência não seria desprovida de diretrizes ou objetivos. Em verdade foram
criados métodos e estratégias de violência que visavam empregar sobre os escravizados
uma noção constante de medo e coação que os transformasse em “trabalhadores
obedientes” (pág. 123).
Os castigos geralmente eram empregados de forma coletiva, onde as punições
públicas formaram uma “arqueologia da violência que tinha por fito constituir a figura
do senhor como autoridade máxima, cujas marcas, e a própria lei, ficavam registradas
no corpo escravo” (pág. 124).
Por meio da violência, a escravização teria se enraizado no Brasil por meio de
costumes, que passavam pela definição dos locais reservados aos escravizados, os
ambientes em que seriam confinados, para chegar a expressões que adentraram o
vocabulário geral, como é o caso do termo boçal, que, à época, designava escravizados
que não tinham aprendido a língua local.
O trabalho nos engenhos era de muito degradante, de modo que os cativos eram
obrigados a cumprir jornadas diárias de cerca de vinte horas de trabalho. Outros
espaços, como é o caso das fornalhas, eram utilizados como castigo a escravizados que
causassem problemas, exatamente em razão das condições ainda piores de trabalho,
onde eram comuns as queimaduras, as mutilações e a perda de membros.
Ao mesmo passo, as mulheres escravizadas não escapavam de tal julgo, muitas
vezes sendo forçadas à prostituição em localidades portuárias, ou sendo vítimas de
punições comuns, mas, também, seriam comuns as mutilações em razão dos ciúmes das
Senhoras.
Em razão de tais fatores, seguem as autoras, é que se coloca por terra uma noção
errônea de que o Brasil teria passado por uma “escravidão mais benevolente” (pág.
127). Mas, dentre todas as circunstâncias, o regime de trabalho seria o grande vilão, em
razão do que boa parte dos cativos morria da exaustão do trabalho, o que, por outro
lado, movimentavam o mercado escravista para que as perdas fossem repostas.
Um outro ponto específico da escravização brasileira seria a alforria, espécie de
possibilidade de libertação de escravizados, mas que não encontrava qualquer forma de
regulamentação legislativa, fundando-se tão somente em costumes. Nesta modalidade,
as autoras afirmam que a maior parte dos alforriados seria de mulheres e crianças, além
dos mulatos, de forma que homens em idade de trabalho eram alforriados em menor
parcela.
No entanto, apesar desta possibilidade de libertação existir, era constante o seu
desrespeito, fazendo com que os libertos tivessem de voltar ao estado de escravização,
tamanha a fragilidade do instituto.
O contexto de violência em questão fez com que os cativos africanos
desenvolvessem diversas formas de resistência, entre insubordinações individuais, como
é o exemplo de desobediências diárias, sabotagens do maquinário ou mesmo de formas
mais extremas como o aborto ou o suicídio. Mas, também, de formas coletivas, como as
fugas e rebeliões, sendo a mais marcante destas a formação de quilombos.
(IV) Toma lá dá cá: rebeliões, insurreições e movimentos escravos (pág. 132 – 135).
A reação natural à violência, segundo as autoras, seria a própria violência. Desta
forma, teria sido assim que os escravizados reagiram à rotina a que foram forçados,
realizando o assassinato de feitores e Senhores, assim como rebeliões e insurreições em
massa. Tais estratégias de resistência é o que teria dado origem aos quilombos.
Enquanto o suicídio era uma solução extrema, mas continuava sendo uma solução
para o julgo escravista, o quilombo se tornou uma alternativa concreta a esta realidade.
A fuga para estes locais envolvia muitos riscos, pelo desconhecimento da geografia
local e pela possibilidade de captura e eventuais punições, mas que foi comum por toda
a história da escravização no Brasil.
A forma de organização dos quilombos, como indicam as autoras, perdurava de
acordo com as formas de convivência que fossem estabelecidas com seus vizinhos. Em
razão disso, muitos quilombos teriam desenvolvido atividades comerciais com núcleos
urbanos próximos, objetivando ter acesso a recursos que possibilitassem o exercício de
atividades agrícolas na comunidade.
Outros, no entanto, teriam estabelecido relações conflituosas, realizando saques e
roubos que, posteriormente, seriam vendidos para cumprir o mesmo objetivo, de
conseguir recursos. No cenário amazônico, por sua vez, a forma de adaptação dos
escravizados fugidos ao ambiente era uma das circunstâncias mais determinantes da
continuidade da comunidade quilombola.
(V) Palmares: a rebeldia dos quilombos (pág. 135 – 139).
Dentre os inúmeros quilombos formados no Brasil, as autoras indicam o
Quilombo dos Palmares como um dos mais notáveis, a nível de organização política ou
de tempo de duração.
Iniciado por um pequeno núcleo de quarenta escravizados fugidos que se
estabeleceram na Serra da Barriga, o Quilombo dos Palmares perdurou por cerca de 100
anos, entre o fim dos séculos XVI e XVII, chegando a uma população de 20 mil
habitantes em diversas comunidades, sendo cerca de 6 mil somente em sua principal
comunidade, Cerca Real do Macaco.
Palmares atingiu um alto nível de complexidade administrativa, sendo composto
por diversas comunidades, todas chefiadas por líderes próprios que se reportavam a um
líder central, localizado na maior comunidade, Cerca Real do Macaco. Seu
desenvolvimento tomou, por diversas vezes, proveito das instabilidades políticas no
domínio português, que muitas vezes se via em conflito com outras nações europeias.
O nível de força do Quilombo dos Palmares começou a diminuir na segunda
metade do século XVII, quando os portugueses desenvolveram uma estratégia para
quebrar a centralidade do poder na comunidade em razão de divergências em um acordo
proposto pelos colonos.
Por mais 15 anos Palmares teria resistido às incursões portuguesas, somente tendo
caído após a morte de seu último líder, Zumbi, e da conquista de sua capital. No
entanto, restou como um exemplo de resistência dos povos escravizados nos séculos que
se seguiram, sendo diversas vezes revisitado e ressignificado.
(VI) As muitas modalidades da luta de resistência (pág. 139 – 143).
Apesar de os quilombos serem uma das formas mais notáveis de resistência, esta
não era a única, de modo que outras muitas eram realizadas pelos escravizados. Dentre
estas constavam as já citadas como o suicídio, o aborto, o assassinato de feitores e
Senhores e etc.
O candomblé, por sua vez, figurou como uma forte maneira de conservação de
preceitos culturais e religiosos africanos no Brasil, a partir da ressignificação de
diversos costumes e ritos para que fossem mascarados no contexto cristão da
escravização.
Por outro lado, os portugueses aprofundavam suas estratégias de perseguição,
momento em que iniciou-se a formação da figura dos Capitães do Mato, libertos que
exerciam o ofício de capturar escravizados fugidos.
Apesar disso, os cativos continuaram a exercer modos de resistência, onde o ato
de provocar prejuízos econômicos aos senhores, quebrando e sabotando maquinários, ou
mesmo causando incêndios nas plantações se tornaram muito comuns.

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