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Jacqueline Pitanguy
organizadoras
UFRJ
Reitor
Aloisio Teixeira
Vice-Reitora
Sylvia Vargas
I Carlos Antonio
Editora
Kalil Tannus
UFRJ
Diretor
Carlos Nelson Coutinho
I
Coordenadora de Produção
J anise Duarte
Conselho Editorial
Carlos Nelson Coutinho (presidente)
Charles Pessanha
Diana Maul de Carvalho
José Luis Fiori EDITORAUFRJ
José Paulo N etto
RIo DE JANEIRO
Leandro Konder
2006
Virgínia Fontes
Apresentação
Sylvia da Silveira Mello Vargas 9
111
o
Gênero, violência e saúde
jacqueline Pitanguy 145
Sexualidade e gênero na medicina
Fabíola Rohden 157
233
prido o dever de conservar este prestígio tradicional, ajustando-o às
exigências dos nossos tempos.
O restabelecimento do governo civil brasileiro em 1985 também
Alicia Navarro de Souza e jacqueline Pitanguy
se fez sentir na UFRJ e na sua Faculdade de Medicina, pois, pela
Com a palavra os alunos
primeira vez em suas vidas, os nomes do novo reitor e do novo dire-
Atila Victal Rondon, Raphael de Lucena Oliveira
245 tor, nomeados pelo Governo Central, resultaram da escolha direta
e Tàtiana Guthierre Tàrgino dos Santos
de toda a comunidade universitária, após ampla consulta.
I
~.
Sobre os autores 255 Rodolpho Paulo Rocco dirigiu a Faculdade de Medicina no qua-
driênio 1986-1989, iniciando nessa gestão as discussões sobre a
reformulação curricular, a criação de disciplinas eletivas e a implan-
tação de novos cursos.
Após 182 anos de sua criação, em 1990, tomou posse a primeira
mulher diretora da Faculdade de Medicina, a professora Vera Lúcia
Rabello de Castro Halfoun, do Departamento de Clínica Médica.
jANE Russo
Do corpo-objeto ao corpo-pessoa:
desnaturalização de um
pressuposto médico
Procurarei neste texto discutir a tensão entre corpo-objeto e corpo- sempre será homem ou mulher, jovem ou velho, gordo ou magro,
pessoa que parece atravessar a prática médica.! Parto do pressuposto hranco ou negro, casado ou solteiro etc. O corpo-pessoa, portanto,
de que a medicina científica moderna foi paulatinamente construída resiste a ser transformado em corpo-objeto.
a partir da tentativa - nem sempre bem-sucedida - de transformar Cabe uma pergunta: se essa transformação é impossível, por que
corpos-pessoas em corpos-objetos. Vou inicialmente argumentar a ela é pensdvel?
favor da impossibilidade dessa transformação, para em seguida dis- Temos aqui de ir além da própria medicina e pensar no que a
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cutir as razões pelas quais, embora impossível, ela faz parte do hori- fundamenta como pressuposto cultural. Refiro-me à lógica subja-
zonte da prática e do conhecimento médicos. N uma segunda parte cente a todo empreendimento científico ocidental que permitiu o
do texto procurarei demonstrar, a partir de exemplos da vida cotidia- desenvolvimento da medicina tal como a conhecemos hoje e que se
na, a inseparabilidade entre corpo e pessoa, entre o físico e o mental, fundamenta na concepção dualista do ser humano.
entre o biológico e o moral. Não é minha intenção propor algum Sustentada na tradição cristã hegemônica no Ocidente, tal con-
tipo de hierarquia entre esses dois planos, mas justamente argu- cepção separa em planos distintos o funcionamento espiritual do III
mentar a favor de sua inevitável articulação. ser humano (a pessoa) e seu funcionamento material ou físico (o
corpo). De um lado temos o espírito, a alma e, mais modernamente, II
I Corpo-pessoa) é possível transflrmá-Io em objeto?
a mente, e, de outro, a matéria, o corpo. De um lado está a cultura
Qual a justificativa para a (tentativa de) transformação do corpo- ou a sociedade (o que é produto do espírito humano) e de outro a
pessoa em corpo-objeto verificada nas aulas de anatomia? Na medida natureza (imutável, resistente à vontade humana).
em que as "peças" lá estudadas nunca serão encontradas na prática Uma vez pensada a separação entre os dois planos, foi possível
do futuro médico (a não ser talvez que este escolha a medicina legal constituir uma hierarquia entre eles. O espírito, ou a mente, sendo
como especialidade), porque introduzi-Ia deste modo no estudo do o que caracteriza o ser humano e o distingue dos animais, é ao mes-
corpo humano? Meu argumento é que a medicina tal como a conhe- mo tempo superior e passível de transformação, isto é, submetido à
cemos depende de algum grau de objetifieação do ser humano para vontade humana. Este é o lado do que é arbitrário, variável e que ~
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poder existir. Essa objetificação, radjcal nas aulas de anatomia, se '"
poderia ser de outro modo. O ser humano, nesse sentido, sente que '"
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verifica de modo mais suavizado na prática médica de um modo é capaz, por exemplo, de transformar a sociedade em que vive, suas
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geral. Pensemos no paciente internado em uma enfermaria - o modo leis, seus costumes. A matéria, ou o corpo, é ao mesmo tempo infe- cG
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como se tenta despi-Ia de tudo que o caracteriza como corpo-pessoa rior, porque vinculada à natureza animal do homem, mas ao mesmo o
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de modo a aproximá-Ia o máximo possível de um corpo-objeto. O tempo mais básica, mais fundamental. Nesse plano encontra-se o o
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sujeito é despido de suas roupas, seus adereços, tudo o que o singu- que é invariável, a natureza na sua realidade física inquestionável. ~
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lariza enquanto pessoa. Entretanto a transformação em corpo-objeto É essa visão dualista que sustenta alguns dos pressupostos mais o
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'" nunca é integral, porque esse sujeito, por mais despido que esteja, fundamentais de nossa cultura. O mais importante deles é a crença o
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~ de que as pessoas possuem seu corpo, como qualquer outro objeto. o
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1 Para uma discussão desse dilema, ver Bonnet (2004).
Ou seja, é possível objetificar o próprio corpo como algo que se
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185
possui, e, como conseqüência, também é possível fazer o mesmo com Uma vez nascida, como a criança será nutrida? Será amamentada
o corpo dos outros. Daí a idéia prevalente na medicina de que há um por sua mãe? Por outra pessoa?
corpo-objeto a ser manipulado, tratado, examinado. Essa percepção Toda a discussão sobre a amamentação do bebê e seu futuro des-
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amplamente aceita de que há, de um lado, o corpo e, de outro, a pes- mame - como dar de mamar, quando, quantas vezes ao dia, até quan- c'u
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soa fundamenta a possibilidade de se ter, por exemplo, como uma das do etc. - é necessariamente biocultural, ou físico-moral. Sub-jacente 187 I1
disciplinas no curso médico, uma "medicina da pessoa", paralela- a toda a discussão acerca do leite materno como um nutriente e suas
mente às disciplinas voltadas para o estudo de partes do corpo-objeto conseqüências para a saúde (biológica) da criança, há um conjunto
("otorrino", "gastro", "urologià' etc.). Apesar de todos concordarem de ideais extremamente fortes e amplamente difundidos acerca da I
I:
com a necessidade de se estabelecer uma boa relação com o paciente
mulher e seu papel histórico de mãe e provedora de cuidados. A de-
(a pessoa), a terapêutica proposta normalmente baseia-se no que de
finição do que é ser mulher e, sendo mulher, do que é ser uma boa
jflto está acontecendo em termos bioquímicas e materiais em seu
mãe é uma questão moral crucial em nossa cultura, que se eorporifiea
corpo. A dual idade acaba sendo constitutiva da prática médica.2 num ato físico - o "dar de mamar".3 Nesse sentido o bebê está ma-
No próximo item deste texto vou apresentar alguns argumentos
mando leite (nutrientes específicos passíveis de uma análise material)
contra essa concepção dualista do ser humano, tentando demonstrar
junto com idéias/valores.
que somos, desde sempre, quer queiramos ou não, corpos-pessoas.
O desmame - que necessariamente envolverá questões biocul- -<
w a produção de um corpo-pessoa.
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3 Sobre a construção histórica do ideal de maternidade no Ocidente, ver Badinter
2 Sobre os pressupostos que norte iam a prática médica, ver Camargo Jr. (2003). (1985).
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como pequenos corpos-pessoas, vão aprendendo desde cedo a gostar de hábitos higiênicos. Esse treinamento incl.ui não somente o con-
(corporalmente) de certos alimentos e não de outros, a mastigar e trole dos esfíncteres - que varia nos diferentes grupos sociais, tanto
engolir os alimentos de um modo e não de outro e a reagir com no- em termos do momento em que deve ocorrer como também na
jo, repulsa ou náusea (isto é, corporalmente) a uma subversão das maneira como a criança é levada a realizá-Ia -, mas também as ablu-
regras, das classificações ou das idéias.4 ções, os banhos e os cuidados corporais de modo geral. Em poucas
searas da vida humana a imbricação biocultural ou físico-moral é tão
I Um adestramento corporal/espiritual evidente.
A aprendizagem da mastigação, do manuseio dos instrumentos Em nossa cultura aprendemos que os hábitos que cercam os cui-
(talheres), da posição do corpo, indica um adestramento corporal dados e a limpeza do corpo e de suas diferentes partes têm a ver com
que cerca necessariamente o ato de comer. Mas não somente ele. a higiene, que, por sua vez, costuma ser pensada como uma prática
Uma espécie de etiqueta ao mesmo tempo e indissociavelmente cor- racional ou mesmo cientificamente fundamentada. a
estudo de ou-
poral e espiritual subjaz aos nossos atos mais corriqueiros, como tras culturas mostra o valor altamente simbólico ou espiritual das
andar, correr, sentar, falar, tocar outra pessoa, dirigir o olhar, apro- abluções, por exemplo, e sua estreita relação com crenças acerca da
ximar-se de alguém, etc.5 Em cada um desses atos há sempre um pureza ou impureza de determinados ambientes, pessoas ou objetos.
conjunto de valores sociais que se realiza no corpo e através do corpo. Lavar determinadas partes do corpo de determinado jeito ou em
a caráter biocultural de nossos atos corporais cotidianos fica bastan- certos momentos pode ter a ver com as crenças religiosas do sujeito,
te evidente no modo caracteristicamente feminino ou masculino de seu status social ou com ambos. Costumamos olhar tais costumes
executá-Ias. Se a anatomia diferenciada dos corpos certamente justi- com curiosidade, deixando de perceber o caráter simbólico ou mes-
fica parte da "feminilidade" ou "masculinidade" dos comportamen- mo espiritual de nossos hábitos higiênicos.
tos físicos, o fato de tais comportamentos variarem em diferentes A antropóloga Mary Douglas costuma afirmar que "sujeira é
culturas e grupos sociais demonstra que explicá-Ias unicamente do matéria fora do lugar". Terra no quintal não é sujeira, mas terra't1o
ponto de vista físico é insuficiente. Nesse sentido, ser homem ou assoalho da sala de estar é, porque está fora do lugar. A separação <
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ser mulher envolve um adestramento corporal, ao mesmo rempo entre o que é sujo e o que é limpo, portanto, tem a ver com o modo V>
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físico e moral, em que se "aprende" não apenas a ser homem, por como o mundo à nossa volta é ordenado e com a manutenção apro-
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exemplo, mas também a ser um "homem de verdade", ou uma c..