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Nutrindo a Vitalidade
Rio de Janeiro
Março de 2008
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C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E
U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
Dedicatória
Agradecimentos
Aos meus pais Marco Antonio e Beatriz pela primordial oportunidade da vida.
À minha filha Sofia, pela concessão de muitas horas de seu 'direito a atenção' para
que o trabalho pudesse fluir. Que possa usufruir do conhecimento.
À Professora Madel Luz pelas aulas, orientações, pelo incansável trabalho à frente do
grupo de pesquisa Racionalidades Médicas, e principalmente, por sua sabedoria e
capacidade em incentivar a criatividade e a singularidade nos projetos de seus alunos.
À Dennis Linhares Barsted, por seu apoio contínuo durante todo trabalho.
Aos Professores e companheiros do caminho, que inspiraram este trabalho com seus
ensinamentos e conversas. Donati Caleri, Juan Carlos Vairo, Carlos Tadeu, Sergio
Seixas, Lygia Franklin, Gabriel Nieto, Michael Winn, Karin Sorvik, Cai Wen Yu, Heiko
Roshcke.
À David Capco, Michael Rinaldini, Greg and Rita Lucier, George Henderson, e Caryn
Boyd, grato as suas idéias inspiradoras e entrevistas concedidas durante o curso
Daoísmo Intensivo, ministrado pela professora Livia Kohn.
À Karina Nagao, Gabriel Felzenszwalb, Frederico Coelho e Anna Elisa de Castro, por
sua hospitalidade e auxilio durante a fase de construção do projeto de pesquisa nos
Estados Unidos.
Resumo
Nas últimas quatro décadas a Medicina Chinesa estabeleceu raízes estáveis nos países
ocidentais. Durante o processo de aculturação, a escola de pensamento denominada Medicina
Tradicional Chinesa (ZHŌNG GUÓ YĪ, 中 國 醫) alcançou uma posição hegemônica nestes países
e também na República Popular da China (1949- ). Esta escola foi inicialmente concebida como
um projeto para reconstrução da Medicina Chinesa dentro do território da China continental após a
revolução de 1949. Um dos propósitos deste projeto foi construir uma síntese entre a Medicina
Clássica Chinesa (GǓ DÀI ZHŌNG YĪ 古 代 中 醫) e a ciência ocidental, adequando-se aos
valores e ideologia da China comunista. Neste processo foram excluídas ou modificadas, por
razões políticas, ideológicas ou paradigmáticas, concepções fundamentais da Medicina Clássica
que constituíam um modelo de prevenção e promoção de saúde. Em contrapartida, foram
enfatizados seus aspectos diretamente relacionados ao paradigma biomédico, essencialmente
voltados para a cura de doenças.
Assumindo que durante seu período de formação na dinastia HÀN 漢 (206 B.C. - 220 A.D.) a
Medicina Clássica Chinesa era um corpo de conhecimento interligado aos saberes e práticas
Daoístas, efetuamos a apreensão e análise das concepções inseridas no contexto do modelo
cosmológico Daoísta que constituiu os fundamentos para o desenvolvimento dos saberes médicos
nesta época.
Abstract
In the last four decades Chinese Medicine settled stable roots on western countries. During the
acculturation process it seems that one current of its traditions named Traditional Chinese
Medicine (ZHŌNG GUÓ YĪ, 中 國 醫) attained a hegemonic position in these countries and also in
China. This current was conceived as a project for reconstructing Chinese Medicine in People’s
Republic of China (1949 - ). Looking for a synthesis between the Classical Chinese Medicine (GǓ
DÀI ZHŌNG YĪ 古 代 中 醫) and science, Traditional Chinese Medicine has excluded or modified
for political, ideological or paradigmatic reasons important notions of Classical Medicine such as
SHÉN 神, LÍNG 靈 and MÌNG 命, and emphasized its aspects that are more related to biomedical
paradigm, centered on the notion of curing diseases.
Our objective in this work is to apprehend and analyze the conceptions and values that
structures the therapeutic model of Classical Chinese Medicine, granting special attention to the
aspects that compose the health promotion part of the model (YǍNG SHĒNG 養 生), and re-
integrating the above mentioned excluded or modified conceptions.
Assuming that during its formative period in HÀN 漢 dynasty (206 B.C. - 220 A.D.) Classical
Chinese Medicine was a subject completely interrelated to Daoism, it was essential to analyze the
main conceptions inside the context of the Daoist cosmological model that constituted the
foundation to medical knowledge development, constituting a research theme that is absent in the
hegemonic research agenda of contemporary Chinese Medicine.
Sumário
Introdução Geral ........................................................................................................................... 11
I.1. A Saúde no Mundo e as Contribuições da Medicina Chinesa............................................... 11
I.2. Breve História da Medicina Chinesa...................................................................................... 12
I.3. A Medicina Chinesa no Ocidente Contemporâneo................................................................ 19
I.4. O Cenário Atual da Pesquisa em Medicina Chinesa............................................................. 21
I.5. Crítica às Diretrizes de Pesquisa........................................................................................... 26
I.6. Projeto Racionalidades Médicas: O Espaço da Pesquisa no Brasil...................................... 29
I.7. Objeto, Objetivo e sua Abordagem........................................................................................ 32
I.8. Questões Metodológicas de um Estudo Teórico sobre Tema Pouco Explorado .................. 35
I.9. Notas sobre a Grafia das Categorias Chinesas .................................................................... 43
I.10. Estrutura do Texto ............................................................................................................... 47
Capítulo 1 – A Base Ternária da Medicina Chinesa................................................................... 48
1.1. Saúde, Longevidade, Imortalidade: Evidências de uma Proposta Terapêutica Ampla ........ 49
1.2. A Divisão de Funções entre os “Médicos”: FĀNG SHÌ 方 士, WŪ 巫 e YĪ 醫. ...................... 57
1.3. A Tradição dos Imortais: Vitalidade Ilimitada........................................................................ 60
Capítulo 2 – O Nível Celeste ........................................................................................................ 69
2.1. Cosmogênese e Cosmologia Daoísta: Saúde, Auto-Conhecimento e Destino.................... 70
2.2. Desenvolvimentos Contemporâneos dos Saberes Clássicos .............................................. 80
Capítulo 3 – O Nível Humano....................................................................................................... 94
3.1. Prevenir, Guardar e Suplementar: Processos Fundamentais do Nível Humano ................. 95
3.2. A Importância da Relação entre o Homem e a Natureza na Prevenção de Desarmonias. 102
3.3. A Constituição como Fator de Desequilíbrio ...................................................................... 104
3.4. Sobre a Origem da Constituição......................................................................................... 108
3.5. O Cultivo das Virtudes na Terapêutica da Constituição ..................................................... 111
Capítulo 4: O Nível Terrestre ..................................................................................................... 118
4.1. Os Aspectos Curativos da Medicina Clássica .................................................................... 119
4.2. A Medicina Tradicional Chinesa como Exacerbação do Nível Terrestre............................ 124
Capítulo 5 – A Terapêutica nos Três Níveis: Acupuntura e Moxabustão .............................. 130
5.1. A Diversidade das Práticas Terapêuticas........................................................................... 131
5.2. A Acupuntura no Nível Terrestre ........................................................................................ 133
5.3. Níveis Humano e Celeste nos Textos Clássicos ................................................................ 137
5.4. Nível Humano nos Autores Contemporâneos .................................................................... 138
5.5. Nível Celeste nos Autores Contemporâneos...................................................................... 144
Capítulo 6: A Terapêutica nos Três Níveis: Os Fármacos ...................................................... 149
6.1. Os Fármacos no Nível Terrestre ........................................................................................ 152
6.2. Os Fármacos no Nível Humano ......................................................................................... 155
6.3. Os Fármacos no Nível Celeste........................................................................................... 157
ix
1
80 Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e 110 Congresso Mundial de Saúde Pública. A
Declaração do Rio foi extraída da página eletrônica da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva – ABRASCO. www.abrasco.org.br/noticias/noticia int.php?id noticia=47 acessado
em 14/09/2006.
2
Negritos do autor.
12
3
Birch, S. é Acupunturista, Phd. pelo Center for Complementary Health Studies da
Universidade de Exeter, Inglaterra, e pesquisador pela Associação Toyohari, sociedade de
pesquisa em acupuntura.
13
4
Utilizamos o termo paradigma com o mesmo sentido conferido por Unschuld (1985), autor
do modelo.
14
LǍO ZǏ 老 子, mesmo que não tenha existido de fato, teve seu nome vinculado
ao proto-Daoísmo, com a compilação do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 , onde estão
explicitadas as concepções que irão formar o corpo teórico do próximo paradigma,
como DÀO 道, DÉ 德, WÚ WÉI 無 為 e YĪN 陰-YÁNG 陽.
7
O autor preferiu não traduzir o termo “Traditional Chinese Medicine” do inglês, cuja
tradução seria “Medicina Tradicional Chinesa.”
18
8
Tais como Shanghai University of Traditional Chinese Medicine e Nanjing University of
Traditional Chinese Medicine, que produziram um conjunto de referências bibliográficas com
objetivo de padronizar a “internacionalização da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) no
mundo: http://www.tcmtreatment.net/images/bookstore/s15.htm, acessado em 07/06/2005.
19
9
Ver Bates (2000).
10
Sobre a institucionalização da Biomedicina ver Camargo Jr. (2003) e Luz (1996). Sobre a
aculturação da Medicina Chinesa, Birch (2002).
11
Para maiores detalhes ver Campbell (1997), Luz (1997) e Souza (2004).
20
12
Patel, M.S. – Institut Universitaire de Médecine Sociale et Préventive, Lausanne,
Switzerland.
13
Este termo denota todos os sistemas médicos e práticas terapêuticas não biomédicas.
14
Acupunturista, Ph.D., consultor da Fundação para Estudos de Medicinas do Leste Asiático,
Amsterdam, Holanda.
22
A partir desta avaliação Birch (2003 a) sugere diversos tipos de pesquisa que
considera úteis ao campo, incluindo propostas de desenho de projetos,
colaboradores e financiamento necessários. Reproduzimos abaixo apenas os tipos:
15
Pesquisador Senior e Consultor Médico do Royal South Hants Hospital, Southampton,
Grã-Bretanha.
23
O segundo estudo exemplar, dirigido por Cho (2001) teve como objetivo a
investigação das repercussões da inserção de agulhas de acupuntura no plano
fisiológico (Biomédico). Considerado inovador por ter evidenciado a especificidade
de ação dos pontos de acupuntura, é tido como um exemplo bem sucedido de
“interdisciplinaridade” (Kim, 2000), por ter construído resultados positivos para todos
os grupos envolvidos: os acupunturistas, os neurologistas e os especialistas em
imagens (ressonância magnética). O Modelo esquemático do estudo foi o seguinte:
5- Comparar as imagens.
16
McPherson, H. Ph.D., Acupunturista, Diretor de pesquisa da Fundação para Medicina
Tradicional Chinesa, Reino Unido.
26
17
Sherman, K,J. Ph.D., Departamento de Epidemiologia, Universidade de Washington,
Estados Unidos.
18
Ginzburg (1992) chama esta qualidade operativa de “paradigma indiciário”
27
dos olhos” são sinais positivos da condução do processo terapêutico, ignorados pelo
modelo de pesquisa focado na categoria “doença”.
5) A ação terapêutica.
32
2) Objetivos secundários:
19
Nunes, J.A.., Sociólogo da Universidade de Coimbra, Portugal, interligado ao grupo de
Santos, B.S.
34
Portanto, uma questão fundamental na escolha dos textos foi determinar sua
fidedignidade quanto à definição e elaboração das noções fundamentais da
terapêutica da Medicina Clássica. Esta tarefa não foi simples, pois o autor não
dispõe das habilidades necessárias para fazer interpretações diretas de textos
clássicos chineses, portanto, trata-se na realidade da classificação da qualidade das
traduções ou interpretações dos clássicos de acordo com padrões propostos por
acadêmicos especializados20. Apresentamos a seguir uma lista destes textos:
a) DÀO DÉ JĪNG 道 德 經
b) ZHÙANG ZǏ 壯 子
20
Neste aspecto foi de fundamental importância a disciplina intitulada: “Intensivo de
Daoísmo” cursada junto à Universidade de Boston em regime de doutorado sanduíche em
junho de 2007. A disciplina foi ministrada pela professora Kohn, L., eminente autoridade no
campo de estudos da religião Daoísta. De igual importância foram as sessões de co-
orientação conferidas a mim pela professora durante os meses de junho e julho de 2007. A
determinação dos padrões de qualidade dos textos decorreu essencialmente da transmissão
de conhecimento desta professora.
37
d) DÀO ZÀNG 道 藏
1) Filosofia
2) Adivinhação e Numerologia
3) Medicina e Farmacologia
5) Alquimia
7) Cosmogonia e Panteão
8) Mitologia e Hagiografia
9) Liturgia
21
Informação recebida em sessão de orientação.
39
outros capítulos recorremos a Veith (1972), uma das primeiras traduções para
línguas ocidentais no contexto acadêmico das últimas décadas22.
d) MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆
Richard DeWoskin (1983), por seu trabalho sobre a profissão dos médicos e
sacerdotes na dinastia HÀN 漢.
25
Opinião transmitida em sala de aula.
26
Opinião transmitida por comunicação eletrônica.
27
Por exemplo, durante o já citado curso ministrado pela professora Kohn, L. junto a Boston
University, houve discussão sobre este rigor. A professora comunicou oralmente a opinião de
um autor expoente no campo que defende a necessidade de obter-se um doutorado em
língua chinesa clássica, outro em estudos de religião comparada, outro em religião Daoísta,
e ainda ser iniciado no sistema religioso que estuda para que pudesse elaborar uma
tradução adequada de textos clássicos Daoístas. Ao aplicarmos estes critérios para os
pesquisadores do campo, apenas o próprio autor teria todos os requisitos, e o campo seria
de fato um monólogo. Se aplicarmos estes mesmos critérios aos textos médicos chineses, o
tradutor teria que ser também um clínico, o que excluiria o próprio professor Unschuld, P.
supostamente o tradutor mais rigoroso de textos médicos.
28
Salvo estudos superficiais de língua chinesa e experiência clínica no campo.
44
29
As informações sobre o ideograma simplificado foram colhidas no dicionário eletrônico
http://zhongwen.com/, acessado em 05/02/2008.
45
Esta opção soluciona parte do problema da grafia, ao menos sua metade mais
fácil, possibilitando saber a qual termo original estamos nos referindo. Consideramos
a parte mais difícil a escolha do termo em português para traduzir o original, pois é a
parte que não se trata apenas de grafia, mas de interpretação. De qualquer forma,
no que diz respeito à grafia, apresentamos o texto em duas possíveis formas,
adequadas de acordo com sua fluência. A primeira é a forma que prioriza o termo
original, como na frase a seguir:
30
Cabe salientar que esta forma de grafia é a mais rigorosa que observamos. Em diversos
textos de publicação internacional usualmente se omite a acentuação do PinYin, e muitas
vezes apresenta-se o ideograma apenas em um glossário no início ou final do trabalho.
31
A omissão da grafia do termo em língua ocidental ocorre usualmente com noções muito
utilizadas como o DÀO 道.
46
Houve ainda uma última escolha a ser feita nos critérios de grafia, que diz
respeito aos termos que devem, ou não, ser grafados em chinês. A postura mais
rigorosa implicaria na grafia chinesa de todos os termos referentes à Medicina, o que
implica em custos na legibilidade do texto. Vejamos os exemplos de sentenças a
seguir:
“A partir do dedo mínimo o QÌ 氣, força vital, passa para SHǑU TÀI YÁNG
XIǍO CHÁNG JĪNG MÀI 手 太 陽 小 腸 經 眿, o meridiano do intestino delgado, de
onde ascende até a cabeça pela parte externa do braço. Ao chegar à cabeça,
conecta-se com ZÚ TÀI YÁNG PÁNG GUĀNG JĪNG MÀI 足 太 陽 膀 胱 經 眿, o
meridiano da bexiga, no canto interno dos olhos.”
Diante de uma situação como esta, optamos por grafar em chinês apenas os
termos que se referem às concepções relevantes ao estudo de nosso objeto.
Embora sejamos partidários da necessidade de utilizar os termos originais por
expressarem uma diversidade de sentidos que se perdem na tradução, fazê-lo para
todos os termos médicos prejudica a fluência do texto. Assim, admitimos que o
termo PÁNG GUĀNG 膀 胱 não tem todos os seus significados ilustrados quando o
traduzimos por “bexiga”, pois a noção original incorpora funções e significados
distintos, além das funções do órgão físico como compreendido pela biomedicina.
Porém optamos por grafar apenas o termo em português (bexiga), excluindo o nome
chinês (PÁNG GUĀNG 膀 胱), nos casos em que os sentidos e significados perdidos
não forem relevantes ao estudo do objeto, conforme acime exemplificado.
Capítulo 1:
Para elaborar a análise utilizamos estes dois tipos de texto: Os textos médicos
contam com passagens do SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG 神 農 本 草 經 , a mais
divulgada matéria medica chinesa, do HUÁNG DÌ NÈI JING SÙ WÈN 黃 帝 內 經 素
問, e do grupo de textos de MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆32. A literatura sócio-histórica
conta com as traduções de dois textos de hagiografias33 dos XIĀN 仙, imortais, e
com um texto de biografias dos FĀNG SHÌ 方 士, médicos-sacerdotes. O Primeiro é
Nossa intenção é mostrar, através do registro das atividades dos XIĀN 仙 e dos
FĀNG SHÌ 方 士, que as citações dos textos médicos são congruentes com a própria
organização social da época, onde existiram grupos sociais apropriando-se do
mesmo conjunto de saberes e práticas em níveis distintos de profundidade, e
utilizando-os para objetivos também distintos, porém interligados.
32
Utilizamos traduções em língua inglesa de todos os textos. O primeiro em Jarret (2000),
nativo do campo da acupuntura, e Flaws (1998), que enquanto editor não menciona as
qualificações do tradutor. O segundo por Larre (1994), autor especializado em traduções dos
clássicos chineses, fundador do Instituto Ricci, uma instituição Jesuíta sem inserção
acadêmica. E o terceiro por Harper (1998), também especializado em tradução de clássicos.
33
O termo “hagiografia” vem do capo de estudos religiosos e significa biografia dos Santos,
ou estudos sobre as biografias dos Santos. No caso Daoísta os XIĀN 仙, imortais, seriam os
equivalentes dos Santos no ocidente.
34
A Versão do livro que temos em mãos é de 1953, editado em Beijing, e não indica o nome
da editora. Conseguimos acesso ao livro através da supervisora de estágio doutoral, que
recebeu uma cópia do próprio autor. Max Kaltenmark é um autor da segunda geração de
Estudos Daoístas, campo das Ciências Humanas inaugurado pela chegada do DÀO ZÀNG
道 藏 em Paris e Tókio, nos anos 20 do século passado.
50
Iniciando pelos textos médicos, Larre (1994, p.2) utiliza a noção de “caminho
celeste” presente no capítulo 13 do ZHÙANG ZǏ 壯 子 para tecer seus comentários
sobre o primeiro capítulo do SÙ WÈN 素 問. Para o autor as noções do capítulo
devem ser apreendidas a partir do contexto Daoista, onde TĪAN 天, o céu, seria uma
potência que simultâneamente movimenta e ordena o cosmos, criando um DÀO 道,
caminho para cada ser. A saúde dos homens dependeria fundamentalmente de seu
adequado alinhamento com os movimentos celestes. Esta noção esclarece os
argumentos do primeiro capítulo, onde é dito que os “homens da alta antiguidade”
viviam por mais de 100 anos porque “observavam o caminho”, “modelavam-se no
Yin e no Yang”, e “alcançavam a harmonia através da prática e dos números”. Para
o autor o termo “pratica” refere-se a diversidade de práticas destinadas à busca da
longevidade e ao desenvolvimento da consciência, e “número” refere-se ao processo
de compreensão sistemática e alinhamento com as forças de organização da vida.
Pela tradução de Larre (1994, p.94), existiam na alta antiguidade os ZHĒN RÉN
真 人, homens autênticos, que eram capazes de viver “tanto quanto o céu e a terra,
cuja longevidade não conhece fim”. Esta capacidade devia-se, tanto ao fato destes
homens terem apreendido o TĪAN 天, o céu, DÌ 地, a terra, o YÁNG 陽, e o YĪN 陰;
respirarem JĪNG 精, as essências, e QÌ 氣, a força vital, quanto a terem realizado a
unidade pela manutenção dos SHÉN 神, os espíritos, dentro de seu próprio corpo.
viver 100 anos de idade. E por último surgiram os XIÁN RÉN 賢 人, homens sábios,
com características semelhantes à classe anterior, porém em função subordinada.
Segundo Engelhart (2005, p.111), desde a dinastia ZHŌU 周 (1122 a 255 A.C.)
já havia termos precisos para longevidade (CHÁNG SHĒNG 長 生 ou SHÒU 壽).
Eram definidos no contexto de um conjunto de práticas cujo objetivo era dar suporte
ao desenvolvimento da força vital para possibilitar um tempo de vida apropriado
definido para a espécie humana 35 , evitando uma morte prematura (YĀO 夭). A
autora salienta a existência de uma clara distinção entre longevidade e imortalidade,
a última usualmente definida pelo termo CHÉNG XIĀN 成 仙, traduzido por “tornar-
se imortal”, que implicava na transformação do corpo, mente e espírito para estados
supra-humanos.
35
Tempo usualmente definido como 100 ou 120 anos, dependendo do texto.
52
FĀNG SHÌ 方 士
DeWoskin (1983, p.22) nos oferece uma lista destes saberes e técnicas que
descrevemos a seguir em forma resumida e classificada por similaridade de funções.
54
Astrologia (leitura das posições planetárias e sua influência na terra); leitura das
influências dos eventos celestes (meteoros, estrelas cadentes, etc...); estudo dos
cantos dos pássaros; leitura dos padrões de rachaduras em bambu ou cascos de
tartaruga; leitura pelos hexagramas do YI JĪNG 精; análise de sonhos.
WŪ 巫
YĪ 醫
• Gestação e Parto
• Exorcismo
57
Aprofundando a análise dos saberes e práticas dos FĀNG SHÌ 方 士 e dos textos
de MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆 , é possível notar descrições de processos que
corresponderiam aos três níveis de apreensão dos saberes e práticas propostos no
SHÉN NÓNG 神 農. Ou seja, existe uma conexão entre as concepções de remover
influências maléficas, nutrir a natureza (YǍNG XÌNG 養 性) e nutrir o destino (YǍNG
MÌNG 養 命).
Há ainda outros grupos, que incluem textos como:Receitas para nutrir a vida
(YǍNG SHĒNG FĀNG 養 生 方) e Harmonização do Yin e do Yang (HÉ YĪN YÁNG
合 陰 陽), que também apresentam receitas alimentares e introduzem o tema do
cultivo da sexualidade, práticas sexuais que teriam como objetivo nutrir a vida,
rejuvenescimento e longevidade, características do processo de nutrir destino
(YǍNG MÌNG 養 命).
XIĀN 仙
Campany (2002, p.85) desenvolve uma análise um pouco mais elaborada desta
relação dos XIĀN 仙 com a sociedade. Para o autor, os XIĀN 仙 viviam na borda
externa e superior da sociedade, mas não se faziam invisíveis para esta. Tendo num
passado longínquo assumido cargos oficiais de estado, teriam se tornado eremitas
num tempo mais recente, devido à perda da pureza das sociedades arcaicas.
Mesmo tendo reduzido sua relação com a sociedade, os XIĀN 仙 continuaram a
36
A apresentação das hagiografias dos imortais assim como uma elaborada análise de sua
participação na história e cultura chinesa encontram-se em Campany (2002). To live as long
as heaven and earth: a translations and study of Ge Hong’s traditions of divine transcendents.
61
PÉNG ZǓ 彭 祖
37
Uma Deidade celeste da Mitologia Chinesa.
38
Outro nome para a dinastia SHĀNG 商, sucedida pelos ZHŌU 周 em aproximadamente
1020 a.C.
62
Certa vez houve uma mulher do harém que era conhecida por ter
alcançado o Dao desde sua juventude, e possuía métodos esotéricos
para nutrir seu corpo. Ela tinha 270 anos de idade, mas aparentava 15
ou 16. O Rei ofereceu presentes a ela, incluindo ouro e jade. Então
ordenou que procurasse por Peng Zu e perguntasse por seu caminho.
Quando chegou, prostrou-se diante de Peng Zu e perguntou por seu
método de extensão dos anos de vida. Ele então respondeu:
1) No trecho (k): “Aqueles que entram no caminho devem ser capazes de comer
alimentos saborosos, usar roupas decentes, ter sexo e trabalho. Seus ossos e
tendões são firmes, sua face lisa, o tempo passa e eles não envelhecem fisicamente.
Estendem seus anos de vida e permanecem no mundo por muito tempo”.
Temos uma passagem que mostra os ideais de saúde e espiritualidade que eram
cultivados naquela sociedade: uma vida longa, com corpo saudável e jovem, que
fosse simultâneamente um sinal de harmonia e desenvolvimento espiritual.
2) No trecho (l): “Frio, calor, secura e umidade não podem causar-lhes dano.
Fantasmas, espíritos e fadas não ousam atacá-los Armas e criaturas venenosas não
se aproximam deles”.
39
Cabe salientar que a historicidade de PÉNG ZǓ 彭 祖 não é relevante na argumentação,
mas sim a de GÉ HÓNG 葛 洪 (283-343 d.C.), o compilador das hagiografias. Pois este,
tendo sido um influente aristocrata, historiógrafo e praticante Daoísta, selecionou o texto de
PÉNG ZǓ 彭 祖 como uma ilustração das noções a valores de saúde de sua época.
64
Temos a descrição de outra característica desta saúde ideal: uma alta imunidade
à fatores patogênicos, naturais ou espirituais.
“Ele também ingeria Canela, Mica e chifres de veado” (c) . Estes são itens
comuns nos manuais de farmacologia da Medicina Chinesa, todos utilizados até os
dias atuais.
“Ele com freqüência selava sua respiração e respirava internamente (d).” Esta é
a chamada prática de respiração fetal, presente na lista de saberes dos FĀNG SHÌ
方 士, que tem como objetivo um tipo de “retorno ao útero”, pois o praticante deve
cessar sua respiração de ar, e passar a se alimentar de um tipo de força vital (QÌ 氣)
que surge espontaneamente de dentro do corpo.
“Do nascer do sol ao meio-dia ele iria sentar-se, massagear seus olhos, corpo e
membros, lamber seus lábios e engolir saliva, ingerindo força vital (QI) dezenas de
vezes” (e). O trecho refere-se a práticas de auto-massagem e ingestão de saliva que
são comuns em diversos tipos de exercícios de QÌ GŌNG 氣 功 e TÀI JÍ QUÀN 太 極
拳 até os dias atuais.
diferentes partes do corpo, na cabeça e na face, nos nove orifícios e nas cinco
vísceras, nos quatro membros e mesmo em seus cabelos (g).”
5) Os itens (h), (i) e (j): “Se alguém quiser elevar sua forma, ascender aos céus e
ser promovido à um cargo imortal, deve utilizar ouro e cinabre (h). Este é o método
pelo qual o primeiro soberano e a grande mônada ascenderam aos céus em plena
luz do dia. Este caminho é o mais alto de todos, não é algo que possa ser praticado
por lordes ou reis. O próximo é o caminho pelo qual durante o ato sexual-afetivo
nutre-se a essência e os espíritos (i), e também ingere-se ervas (j).”
Deste modo temos o grupo dos XIĀN 仙, imortais, como a imagem ideal do
homem realizado, tendo percorrido e dominado os três níveis dos saberes e práticas,
que conduzem da recuperação da saúde à imortalidade. Os XIĀN 仙 seriam o ideal
que os FĀNG SHÌ 方 士 deveriam buscar, o limite superior do desenvolvimento do
conhecimento. O imortal consegue curar a si mesmo, manter sua saúde, e estender
sua vida indefinidamente, utilizando para isto um mesmo conjunto de saberes e
40
Informação colhida em experiência pessoal no campo.
66
Supondo então que um ser receba uma quantidade de força vital em sua
concepção que o permita viver por X anos, e a partir daí construímos as seguintes
questões:
a) Como poderia este ser viver menos do que os anos que lhe foram
concedidos?
41
Há divergências quanto ao momento que determina a recepção desta força-vital primordial,
considerando-se ou a concepção, ou o nascimento.
67
b) Como poderia o mesmo ser viver os X anos que lhe foram concedidos?
c) Como poderia o mesmo ser viver mais do que os X anos que lhe foram
concedidos?
Esta noção é a mesma que está ilustrada no SHÉN NÓNG 神 農 como a classe
terrestre de medicina ou classe baixa de medicina, aquela que “ocupa-se do
tratamento de enfermidades e corresponde a terra.” O que não está expresso neste
clássico, é a relação dos níveis da medicina com a noção de tempo de vida
concedido, mas ao analisarmos as duas fontes, vemos que a passagem do texto
pode ser compreendida como uma síntese do cenário exposto nas biografias dos
FĀNG SHÌ 方 士 e nas hagiografias dos XIĀN 仙. Ambas as fontes convergem para
o mesmo ponto: uma medicina estratificada em três níveis contínuos e integrados.
Nível de 60 120
Vitalidade anos anos
A
100%
Tempo de vida
B
C
A linha amarela (A) representa o caminho humano, que pela devida nutrição,
alncança o potencial máximo de vida. A linha laranja (B) representa alguém que
recebeu injúrias, tendo diminuído seu nível de vitalidade, permitindo que alcance
apenas metade do potencial de vida. A linha azul (C) representa a função do nível
terrestre da medicina, de conduzir de volta ao nível harmônico de vitalidade através
da cura das enfermidades. Por último, a linha violeta (D) representa o nível celeste,
através do qual se aumenta o nível de vitalidade para além do inicial, permitindo
ultrapassar o tempo de vida máximo.
Capítulo 2 – O Nível Celeste
Capítulo 2:
O Nível Celeste
70
42
Detalhes sobre a transmissão e traduções dos textos, sobre os comentaristas posteriores,
bem como análise das categorias encontra-se em Kohn (1992, p.59).
72
43
Há discordância entre os autores do campo sobre o momento de definição da natureza
interna e do destino, se seriam conferidos durante a concepção do ser ou durante o
nascimento.
73
44
Interpretação baseada em Wieger (1965, p205) e Willmont (1999, p.6)
45
Interpretação baseada em Jarret (2000, p.29), e Wieger (1965, p.47)
46
É mais comum encontrarmos o termo MÌNG 命 traduzido por “destino”. Evitamos esta
tradução por conotar “fatalidade”, ou “predestinação”, sentidos comuns atribuídos à palavra,
mas deveras superficiais para a apreensão da categoria original.
74
47
Parte do verso 38 do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 traduzido por Stephen Mitchell em
http://www.edepot.com/taoism.html, acessado em 17/11/2007.
48
Na obra intitulada “Two Visions of the Way: A Study of the Wang Pi and the Ho-Shang
Kung Commentaries on the Lao-Tzu”, Chan (1992) analisa as diferenças e ênfases
conferidas ao DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 pelos comentaristas HÉ SHÀNG GŌNG 河 上 公 e
WÁNG BÌ 王 弼.
75
Notamos então que o DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 pode ser abordado por diversos
ângulos. O tema mais aparente é o da recuperação da ordem social perdida, com
diversos conselhos sobre a arte de governar. Poderia desta forma, ser interpretado
como um livro de ciência política. Porém, também é um dos livros centrais para os
místicos Daoístas, sendo recitado até hoje em monastérios, como uma ferramenta
para cultivar estados de consciência refinados, o que o torna um livro místico-
religioso. E principalmente na versão de HÉ SHÀNG GŌNG 河 上 公, mas também
no ZHÙANG ZǏ 壯 子, temos a relação com as práticas de auto-cultivo, ou YǍNG
49
A Noção de TÀI PÍNG 太 平, paz suprema, como um estado social que reflete a ordem
cósmica foi compartilhada por Daoístas e Confuncionistas no final da dinastia HÀN 漢.
Maiores detalhes em Kaltenmark (1979).
76
O Dao engendra o Um
O Um engendra o Dois
O Dois engendra o Três,
O Três é a origem de todas as coisas. 51
50
Esta passagem é uma tradução do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 compilado por HÉ SHÀNG
GŌNG 河 上 公 presente no Cânone Daoísta da dinastia MÌNG 明 (1368 A 1643 d.C.). Texto
DZ682, fascículo 363, capítulo 6;1,5ª.
51
Parte do verso 42 do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 traduzido por Stephen Mitchell em
http://www.edepot.com/taoism.html, acessado em 17/11/2007.
77
52
Winn, M. é um professor de Alquimia Daoísta Contemporânea no ocidente, com atividade
de expressão internacional. Seus escritos, não publicados em meios acadêmicos, são
considerados aqui como fontes documentais.
78
JĪNG 精
SHÉN 神
QÌ 氣
Este estilo de texto parece ter sido intencionalmente escolhido para funcionar
junto com a tradição oral, onde a função do mestre transmissor da linhagem seria
desdobrar o símbolo para seus alunos em uma diversidade de significados que
estariam ali condensados. Desta forma, não sabemos até o presente momento, se
os desenvolvimentos literários recentes elaborados pelos autores ocidentais são
novos no plano do pensamento e desenvolvimento das idéias, ou se eles inovam
apenas no plano da escrita.
literatura chinesa contemporânea 53, 54, Estas obras tem em comum a elaboração da
noção de SHÉN 神 como funções psíquicas dos ZÀNG FǓ 贓 腑 e dos pontos de
acupuntura. Além disto, desenvolvem explicações sobre o modo como as noções se
infundem nas outras dimensões da racionalidade médica, saindo da cosmologia e da
doutrina médica, para entrar na dinâmica vital, morfologia, diagnose e terapêutica.
Eyssalet (2003, p.141) salienta que no capítulo 47 do LÍNG SHÚ 靈 樞 está
registrada a relação entre os JĪNG SHÉN 精 神, os espíritos dos órgãos, XÌNG 性, a
natureza interna e MÌNG 命 , o destino. Porém, as explicações sobre o modo
operacional desta relação não estão desenvolvidas. Em termos de Racionalidade
Médica, a explicação do modo como o modelo cosmológico se inscreve na dinâmica
vital não está explícita.
53
Expressão literária da escola Medicina Tradicional Chinesa.
54
Estas elaborações estão presentes principalmente nas obras de Worsley (1990, 1991),
Yuen (2005), Jarret (2000, 2003), Willmont (1999), Kaatz (2005) e Dechar (2006).
55
A criação do Diagrama HÉ TÚ 河 圖 é atribuída ao imperador mitológico FU XI 伏 羲. O
diagrama é um instrumento essencial para a elaboração da cosmologia no YÌ JĪNG 易 經.
Para aprofundamento na questão ver Barsted (2003, p.200).
82
2
Fogo
3 5 4
Madeira Terra Metal
1
Agua
Fonte:
Jarret (2000, p. 125)
Neste modelo, as cinco fases são vistas como uma espécie de mapeamento do
processo de criação e reabsorção do cosmos, onde temos SHǓI 水, a água, como a
fase primordial, mais próxima do WÚ JÍ 無 極, a fonte da criação; HǓO 火, o fogo,
seria o a fase de nascimento da consciência, poder de organização relacionado à
SHÉN 神; MÙ 木, madeira, seria o processo de distinção das formas no mundo; JĪN1
金, metal, seria ao mesmo tempo o processo de materialização do cosmos, e o início
do retorno ao WÚ JÍ 無 極, à unidade primordial. Por último, TǓ 土 , a terra é
considerada o eixo da criação, recebendo a posição central entre as outras fases,
representa o equilíbrio entre o processo de criação e dissolução das formas.
Vontade de incorporar
Imaginação.
Memória.
89
56
Apresentamos uma figura na página seguinte para ajudar na visualização desta descrição.
91
Figura 3: Trajetos dos Meridianos dos Rins, Coração, Bexiga e Intestino Delgado.
92
Este trajeto mostra que existe uma dinâmica natural de mistura da essência
(JĪNG 精) dos rins com a consciência (SHÉN 神) do coração a partir da circulação da
força vital (QÌ 氣). Além disto, como o ponto da bexiga JĪNG MÍNG 睛 明57 se localiza
no canto interno dos olhos, é um ponto que confere à eles o brilho, MÍNG 明, dado
pela interação de SHÉN 神 e JĪNG 精. Um brilho que seria um sinal resultante do
reconhecimento da natureza interna (XÌNG 性 ) e da manifestação do mandato
(MÌNG 命 ). Este modelo de dinâmica vital, explica como se poderia avaliar a
qualidade da relação do indivíduo com estes princípios, ou seja, uma avaliação do
seu estado de saúde no ponto original onde se define saúde ou doença, constituindo
assim uma prática da dimensão diagnóstica da racionalidade médica, adequada ao
nível celeste.
57
Ao traduzir o nome do ponto, temos JĪNG 睛 como olho, e MÍNG 明,, brilho, assim o termo
completo seria “o brilho dos olhos”. Um aspecto notável é que os ideogramas para o nome
do ponto são homófonos à JĪNG 精, essência, e MĪNG 命,, mandato celeste.
93
Capítulo 3:
O Nível Humano
95
JĪNG 精
Assim, SHÈN JĪNG 腎 精 é constituída por uma parcela irrecuperável, XĪAN TĪAN
JĪNG 先 天 精, e outra recuperável, HÒU TIĀN JĪNG 後 天 精, sendo que uma vez
desgastada, a parte irrecuperável não pode ser substituída pela essência que
provêm dos alimentos, o que faz com que o produto total seja algo destinado a
diminuir com o tempo. O aporte de JĪNG 精 é diminuído com o envelhecimento, e
portanto, vários sinais deste estão associados à esta diminuição da essência.
Desta forma, JĪNG 精 é algo a ser protegido e guardado (SHǑU 守), pois seu
desgaste reduz o aporte geral de QÌ 氣 no organismo, fazendo-se notar em sintomas
97
QÌ 氣
58
O tema da relação entre saúde e sexualidade constitui um vasto campo para pesquisas e
apresenta uma importante função dentro da cultura chinesa em geral. Reservamos um
capítulo no final desta tese para aprofundar questões que poderiam ser elaboradas aqui, tais
como a relação entre a sexualidade feminina e a saúde, e para aprofundar também o tema
do uso da sexualidade como prática de saúde e longevidade, em oposição aos métodos
restritivos.
99
59
Legenda do gráfico: P- Pulmões; IG – Intestino Grosso; E – Estômago; Bço – Baço; C –
Coração; ID – Intestino Delgado; B – Bexiga; R – Rins; Per – Pericárdio; TA – Triplo
Aquecedor; VB – Vesícula Biliar; F - Fígado
101
SHÉN 神
Do ponto de vista da doutrina médica, significa dizer que o ponto mais alto desta
parte do sistema de prevenção depende das proteções prévias do corpo físico e da
força-vital, um trabalho que vai do mais denso para o mais sutil. A saúde é
determinada em última instância pela capacidade de manter a consciência em
estado de serenidade para que a organização da vida aconteça de forma
espontânea através de SHÉN 神. Porém, esta serenidade só pode ser alcançada e
guardada se cumpridas as etapas anteriores60.
60
Esta estrutura de pensamento pode ser reconhecida na prática do QÌ GŌNG 氣 功, onde
busca-se trabalhar com diversos tipos de exercícios de fortalecimento do corpo e circulação
da força vital antes de sentar-se para meditação.
61
Referimo-nos aqui ao aspecto patológico das emoções, que normalmente é compreendido
como o excesso ou a estagnação de uma delas.
102
por sua vez cumprem sua promessa. Deve-se assistir o fluxo de Qi,
que gosta de ir para o exterior. Isto corresponde ao Qi do verão. É o
caminho que mantém o crescimento da vida. Ir ao contrário desta
corrente traz injúrias ao coração. Causando febre intermitente no
outono. Através de um suprimento insuficiente para a colheita, a
enfermidade piora no inverno.” (Larre, 1994, p.110)
Fogo
Madeira Terra
Água Metal
Fogo
Madeira Terra
Água Metal
62
LIÚ YĪ MÍNG 劉 一 明, filósofo Daoísta do final do século XVIII. Seu extenso trabalho foi
centrado na explicação da linguagem esotérica dos textos de Alquimia Daoísta. As traduções
dos textos com seus comentários estão em Cleary (2003).
63
Imagem desconfigurada pelas alterações na forma de escrever o ideograma ocorridas nas
mudanças da língua chinesa.
110
64
RÁN 然 é considerado um advérbio, não tendo sentido fora do composto.
111
A forma como a queda ocorre pode ser resumida nos seguintes passos:
Neste cenário hipotético o autor busca salientar dois aspectos: o primeiro seria o
resultado final do evento, que estabelece a queda de um estado harmônico a partir
de uma fixação na forma de atribuir sentido a vida relacionadas à fase metal, que
tem a atribuição de valor como uma de suas funções específicas, relacionadas ao
PÒ 魄, o espírito desta fase. Segundo, o autor mostra o processo de perda de DÉ 德,
virtudes, também associadas à mesma fase. No início, o jovem rapaz era receptivo
e inspirado, virtudes associadas a fase metal, porém, depois do evento, inundado
pelas emoções de tristeza e melancolia, estas virtudes são perdidas.
de saúde há a capacidade de sentir qualquer emoção, sem ser afetado por seu
movimento de forma negativa. Portanto, diante de uma perda seria saudável sentir
YŌU 憂, a tristeza, porém, sob ação da virtude YĪ 醫, a retidão, este sentimento seria
organizado e o funcionamento psíquico harmonizado. A emergência da constituição
com a perda da virtude relaciona-se ao fenômeno de acumulação e fixação da
emoção. Quando o sentimento da tristeza passa a ser habitual a qualquer evento na
vida, que passa a ser vivida como se algo de valor estivesse prestes a ser perdido a
cada dia. Esta intoxicação de tristeza sobre tristeza cria problemas em diversos
aspectos. O primeiro está diretamente relacionado à somatização. Considera-se que
a intoxicação emocional tende a “se cristalizar” no corpo, convertendo-se em um dos
fatores climáticos geradores de desarmonia. No caso, a tristeza converter-se-ia em
secura, danificando os órgãos relacionados à fase metal.
sentenças do tipo: “tudo que eu possuir me será tirado”, ou “eu sempre perco o que
valorizo”.
65
Parece que este aspecto do psiquismo relacionado à fase metal guarda semelhanças, em
linhas gerais, com a noção de narcisismo na teoria psicanalítica.
116
Como nosso objetivo neste capítulo foi facilitar a apreensão das noções
fundamentais do nível humano da Medicina Chinesa, não consideramos necessário
expor em detalhes o mesmo processo para as outras fases. Os exemplos citados
acima são suficientes para descrevê-las. As noções deste nível se relacionam
diretamente com as do nível celeste principalmente através da metáfora da queda,
representando a perda de um estado pleno de saúde. Nesta relação parte das
terapêuticas do nível humano podem ser pensadas como estratégias de retorno à
plenitude da saúde, onde o processo de nutrir XÌNG 性, a natureza interna, seria sua
forma exemplar. A constituição é pensada como a porta de saída e também de
retorno a este estado, e as práticas de desenvolvimento das virtudes e
suplementação das deficiências geradas pela fixação constitucional seriam as
principais práticas terapêuticas voltadas para a realização deste processo.
117
Capítulo 4:
Nível Terrestre
119
66
A interpretação é uma suposição, pois logo a seguir o autor assume suas próprias dúvidas
em relação ao que estariam querendo dizer os autores do SÙ WÈN 素 問: “Entretanto
imunidade contra os ventos não é diminuída apenas por comportamentos considerados
imorais, se for mesmo este o significado de “falta de pureza””.(Uschuld, 2003a, p.187)
123
O texto associa as cinco emoções às cinco fases, e destaca seu caráter danoso,
se vivenciadas em intensidade “violenta”, fora da norma. A origem das emoções é
explicada como uma transformação natural do QÌ 氣 no interior dos órgãos. Segundo
Unschuld (2003a, p.229) percebe-se que a emergência das emoções como um
deslocamento excessivo de QÌ 氣, e a subversão do fluxo de QÌ 氣 pelas emoções,
compõem um conjunto circular de causa e efeito. Ou seja, não há no texto uma
referência à origem das emoções violentas como uma perda de DÉ 德, tida como
uma função do psiquismo capaz de organizar a vida afetiva interior e concectá-la
adeqüadamente com os acontecimentos do mundo, conforme as concepções
expostas por Jarret (2000) elaboradas em capítulos anteriores. O modelo do
HUÁNG DÌ NÈI JING 黃 帝 內 經 confere uma explicação dos efeitos das emoções
no corpo, permitindo a elaboração de terapêuticas adequadas para anular seus
efeitos danosos. Unschuld (2003a, p.230) porém, salienta que o texto não descreve
rigorosamente os procedimentos. Não identifica se a recomendação terapêutica
seria buscar a causa da severidade emocional, ou apenas focar nos efeitos que
provoca sobre o QÌ 氣, desconsiderando a emoção em si. É descrito em detalhes
124
Temos assim uma sistematização dos fatores encontrados nos clássicos, sem
alterações fundamentais. Todavia, consideramos que uma mudança significativa do
período clássico para a Medicina Tradicional Chinesa é a ênfase que a última
confere aos BIÀN ZHÈNG 辨 證, “padrões de desarmonia”. Segundo Chen (2004,
p.3) o procedimento diagnóstico adequado deve resultar na identificação do estado
da vitalidade do sujeito e do “nome da doença”.
67
Chen, P. é médica treinada em Medicina Tradicional Chinesa e Biomedicina. Sua obra é
referência no ensino de Medicina Tradicional Chinesa para estudantes ocidentais e também
para os primeiros anos de Universidades Chinesas.
126
Leucorréia com descarga vaginal clara Eliminação de umidade-frio por via baixa
68
Tradução do termo inglês soggy.
127
69
Tabela traduzida, adaptada e resumida de Fruehauf (1999, p.13), com os aspectos
relevantes ao tema aqui exposto.
128
Notamos pelas informações deste quadro, que parece haver neste processo de
incorporação da Biomedicina uma reprodução de aspectos de sua racionalidade
decorrentes da centralização da noção de doença e seu combate, como por
exemplo, a especialização do médico em categorias definidas pela doença, além
dos aspectos associados ao modelo científico de validação de conhecimento, como
a quantificação e a objetividade.
Capítulo 5:
Este conjunto pode ser considerado uma parte restrita das artes dos FĀNG SHÌ
方 士, que representam em nossa compreensão, as práticas médicas no sentido
restrito, cumprindo função delimitadora entre estas e as ritualísticas, religiosas ou
artísticas.
relacionados aos níveis humano e celeste da Medicina Chinesa. Para tal, iniciamos
com uma exposição sobre os fundamentos da acupuntura no nível terrestre, o mais
divulgado, para podermos em seguida efetuar comparações com os outros dois.
70
A erva mais utilizada é a artemísia. Folium Artemisiae Argyii,
134
Exemplo 1
Exemplo 2
(R7), tonifica o YÁNG 陽 dos rins; ZHÌ SHÌ 志 室 (B52), tonifica o aspecto mental dos
rins, a força de vontade.
71
O uso da moxabustão como forma de estimular a força vital (QÌ 氣 ) no sistema de
meridianos aparece nos primeiros textos médicos de MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆. No decorrer
do desenvolvimento da Medicina Chinesa esteve sempre intimamente relacionada a
acupuntura, principalmente como uma forma alternativa de tonificar os pontos, sendo em
diversas ocasiões usada em conjunto com a agulha.
72
Cai, Liu Zheng é um médico chinês contemporâneo que vive em Chengdu, Província de
Sichuan. Liu é um defensor da hipótese da Medicina Chinesa ser majoritariamente um ramo
dos saberes Daoístas. Em sua obra: “A Study of Daoist Acupuncture”, o autor busca
esclarecer as bases Daoístas nas teorias da Medicina Chinesa.
138
“Seu título, Ben Shen, nos lembra que a puntura com uma agulha
é efetiva somente quando realizada pelas mãos de um acupunturista
cujo espírito possa percorrer todo o caminho, até o coração daquilo
que anima, até os espíritos do paciente.”
Ponto 1:
Nome: JĪNG QÚ 經 渠
Ações do ponto: Faz descender a força vital dos pulmões (FEIQÌ 氣); alivia a
tosse e a falta de ar.
73
Escolhemos como referência de textos clássicos a obra de Deadman (2001), pois os
autores deixam claro que expõem apenas as funções descritas nos clássicos de acupuntura
como o “Systematic classic of acupuncture and moxibustion” ou o “Great compendium of
acupuncture and moxibustion” ,sem propor modificações ou adições. (Deadman, 2001, p.8)
140
Ponto 2:
Nome:TĪAN FǓ 天 府
Ações do ponto: Limpa o calor dos pulmões e faz descender a força vital (QÌ 氣);
Esfria o sangue e faz parar sangramento; Acalma a alma corpórea (PÒ 魄).
74
Do inglês: “Floating corpse ghost talk”.
142
Quanto a sua aparência pessoal, a paciente era uma mulher muito atraente, que
poderia mesmo ser uma top-model. Mantinha uma aparência imaculada e utilizava
apenas roupas e jóias de alta qualidade.
próprio valor ao exigir mudanças dos outros, e interpreta o fim da relação como uma
falta de auto-valor. A história pregressa mostra que a questão do valor foi um tema
familiar recorrente, e o hábito de fumar é interpretado como uma forma de evitar os
sentimentos de perda e depreciação associados aos pulmões. Este conjunto de
informações levou o autor a concluir que a constituição da paciente era metal.
Jarret (2000, p.54) interpreta LÍNG 靈 como a potência espiritual que emana da
essência (JĪNG 精) a partir de uma seqüência de transformações alquímicas que
conduzem à realização do mandato celeste. Estas transformações envolvem a
ascensão da essência (JĪNG 精) concentrada nos rins (SHÈN 腎) para o tórax, onde
reside XĪN 心, o coração. Nesta área a essência se transforma em LÍNG 靈, que se
mistura a SHÉN 神, a consciência organizativa presente no coração, conferindo a
este um poder de provocar mudanças no mundo. LÍNG 靈 guarda semelhanças com
DÉ 德, a virtude, no sentido de ser um poder que emana a partir da manifestação de
MÌNG 命, o mandato celeste. Ainda segundo o autor, LÍNG 靈 é uma potência
criativa capaz de estabelecer uma ambiência adequada para a ocorrência de
determinado evento, o que significa que não é um poder de comando direto ao
mundo. Entende-se que do mesmo modo como TĪAN 天, o céu, não pode forçar o
homem a cumprir seu mandato, o homem não pode forçá-lo a modificar o mundo
através de comandos. A posição do shaman ao realizar o ritual seria como a de um
mensageiro, alegando ter cumprido sua parte no contrato, e portanto requisitando
aos céus que cumpra a sua. O evento acontece sem ser diretamente realizado.
145
Desta forma autores como Jarret (2003), Willmont (1999) e Kaatz (2005)
entendem que a acupuntura como uma terapêutica do nível celeste seria capaz de
promover o desenvolvimento destas forças, que apresentaria os seguintes
resultados: 1) Ao desenvolver SHÉN 神 enquanto autoconsciência capaz de
promover organização espontânea, capacita-se a percepção da própria natureza
interna (XÌNG 性), e portanto, ao alinhamento com MÌNG 命, o mandato celeste; 2)
Ao desenvolver LÍNG 靈 , desenvolve-se a potencia para realizar MÌNG 命 , o
mandato celeste através de WÚ WÉI 無 為, a não ação.
Ponto 3:
LÍNG XŪ 靈 墟, R24
Ações do ponto: Relaxa o tórax; Faz descender a força vital (QÌ 氣) em rebeldia
nos pulmões e no estômago; Beneficia os seios.
75
O autor traduz LÍNG 靈 por “espírito”, da mesma forma que o faz com SHÉN 神.
146
Ainda, o autor considera que a posição do ponto no tórax, onde o meridiano dos
rins penetra no coração, evidencia a chegada da essência (JĪNG 精) presente no
meridiano dos rins, na residência da consciência (SHÉN 神).
Ponto 4:
Ações do ponto: Relaxa o tórax; Faz descender a força vital (QÌ 氣) em rebeldia
nos pulmões e no estômago; Beneficia os seios.
realizadas. Esta sensação dispensa avaliação de terceiros, por ser uma relação
direta do sujeito individualizado com o céu (TĪAN 天).
76
Tradução do original em inglês: The twelve spiritpoints of acupuncture: beyond
symptomatic and preventive healing.
148
Capítulo 6:
Engelhart (2005, p. 114) salienta que uma das compilações do SHÉN NÓNG 神
農 foi feita por TÁO HÓNG JǏNG 陶 弘 景 por volta do ano 500 d.C. TÁO 陶 teria
elaborado sua obra com base em fragmentos de versões anteriores da dinastia HÀN
漢, as quais teria adicionado seu próprio conhecimento. Ocorre que TÁO 陶 foi o
primeiro patriarca da escola Daoísta SHÀNG QĪNG 上 清, suprema claridade, e teria
desenvolvido seus conhecimentos na região de MÁO SHĀN 茅 山, onde estudou
filologia, medicina e alquimia. O detalhe interessante é que MÁO SHĀN 茅 山 era
área de residência da família GÉ 葛, da qual TÁO 陶 era parente.
Desta forma o autor da versão do SHÉN NÓNG 神 農 que teria chegado até o
presente recebeu seus conhecimentos da família de GÉ HÓNG 葛 洪, e este fato
pode elucidar alguns aspectos da estrutura do texto.
Engelhart (2005, p.114) cita que TÁO 陶 era enfático no que diz respeito à
relação entre a saúde e o desenvolvimento espiritual ligado a longevidade e
imortalidade. “Uma vez que TÁO 陶 via a saúde como pré-requisito básico para
qualquer realização religiosa avançada, não é surpreendente que tenha buscado
estudar de forma profunda a medicina e a farmacologia, e que tenha se engajado
em diversos experimentos alquímicos”.
77
Texto número 1016 do Cânone Daoísta.
152
Exemplo de Fitoterápico 1:
Ações e indicações: Drena calor e purga acumulações: para febre alta, suor,
sede, constipação, distenção abdominal e dores. Delírios acompanhados de saburra
amarela na língua e pulso cheio; Drena calor-umidade: Drena também pelas fezes
[...], especialmente no caso de disenterias. [...]; Revigora o sangue e dispersa
estagnação sanguínea: Para amenorréia, massas abdominais imóveis ou dor fixa
devido à estagnação de sangue.
Uma das propriedades do sabor picante seria dispersar, por isto a ação da erva
na dispersão da força vital (QÌ 氣 ) presa no exterior, em combate com fator
patogênico. Ainda, como o fator patogênico é frio, a erva selecionada apresenta
características mornas, de forma a eliminá-lo.
78
Ver capítulo anterior.
155
Da mesma classe que a anterior, esta erva reforça as funções de dispersar o frio,
o fator patogênico.
Por último, GĀN CǍO 甘 草, pertence à categoria: “ervas que tonificam o QÌ 氣”.
É descrita como doce, neutra e morna. Penetra todos os 12 canais e tem como
ações: “Tonificar o baço-pâncreas, lubrificar os pulmões e acalmar a tosse, limpar a
toxicidade do calor, e moderar e harmonizar as características das outras ervas”.
Dentro da formula sua principal função é a de moderação dos componentes
anteriores. Uma função auxiliar. (Bensky, 2003, p.323)
Fora do contexto hagiográfico, eliminar a fome era tido pelos praticantes das
artes da longevidade como um meio para alcançar diversos fins tais como: a)
“sobreviver em tempos difíceis”, ou seja, em situações de escassez de alimentos; b)
preparação para permanência em retiros de meditação durante longos períodos de
tempo, usualmente em montanhas ou cavernas; c) purificação para realização de
rituais ou, em ultima instancia, como um dos métodos de transformação corporais
necessárias para tornar-se um XIĀN 仙, imortal.
Schipper (2004, p.860) destaca que o texto intitulado “Artes secretas dos divinos
imortais para nutrir a vitalidade”79, parte do Cânone Daoísta, contém “receitas para
sobrevivência em tempos de escassez”, segundo as quais através de uma
combinação de arroz, feijão e sementes de gergelim seria possível alcançar efeitos
como “cessar a fome por 7 dias”. Caso não se ingerisse nada mais durante o
período, uma segunda dose seria capaz de “cessar a fome por 49 dias”, e num
terceiro ciclo, a fome cessaria por 100 dias. Para retornar a uma dieta normal, “o
adepto deveria ingerir três caixas de sementes de girassol, em sopa”. Isto nos diz
que o Cânone (DÀO ZÀNG 道 藏 ) apresenta fórmulas para alcançar efeitos
semelhantes aos descritos nas hagiografias.
Ainda quanto aos diversos usos da eliminação da fome, Arthur (2006, p.91) cita
que o termo genérico para sua denominação é BÌ GǓ 辟 榖, que tem como tradução
79
Cânone Daoísta, livro 948, f.599.
159
Picante
HĒI ZHĪ 黑芝 Água Suplementar a força vital (QI) dos Não há referência
80
Esta parte não foi traduzida por Campany (2002, p.26), tendo apenas colocado uma
referência que a seqüência do texto descreve o método de preparo.
163
81
Sobre as técnicas de preparo de substâncias ver Siounneau (1995).
Capítulo 7: A Terapêutica nos Três Níveis: As Artes Sexuais
Capítulo 7:
Por se considerar o ato sexual como uma situação com alto potencial de
desgaste da essência, foram criadas diversas práticas para sua proteção. Assim, o
82
Refiro-me à obra de Sigmund Freud.
83
Cabe aqui um breve comentário, pois parece-me que a própria existência de tratados
clássicos sobre sexualidade na china são um contra-exemplo ao argumento de Foucault
(1988), em história da sexualidade: vontade de saber, que situa o início da formação de
discursos e construção de saberes racionais sobre sexualidade no século XVIII. Se assim o
foi no ocidente, a história do oriente parece distinta.
167
abordarmos este tópico faz-se adequada uma pequena digressão, pois até o
presente momento apresentamos a questão da sexualidade enfatizando o ponto de
vista masculino. É conveniente questionarmos como fica a questão da perda de
essência (JĪNG 精) para as mulheres, antes da apresentação da utilização do ato
sexual como terapia.
A primeira, apresentada por Maciocia (1996, p.174), mostra-nos uma visão que
associa o orgasmo ao desgaste da essência (JĪNG 精 ), igualando assim as
condições sexuais do homem e da mulher, pois o homem a desgastaria pela
ejaculação durante o orgasmo, e a mulher o faria pelo próprio orgasmo em si,
independente da perda de fluidos sexuais. Assim, o autor aponta que se deve contar
apenas os encontros sexuais que conduzem ao orgasmo como lesivos à essência
(JĪNG 精), tanto para o homem como para a mulher. As atividades sexuais que não
alcançam o nível orgástico não são consideradas fator patológico neste modelo.
Esta interpretação nos conduz à imagem do próprio prazer como algo lesivo à
saúde, o que nos parece contraditório com a visão dos textos clássicos das artes
sexuais e, mais ainda, com o que ocorre no campo do Daoísmo contemporâneo84.
Vejamos o que nos diz o primeiro verso do SÙ NǓ JĪNG 素 女 經.
84
Os motivos da existência destas distintas apropriações do campo sexual pode com certeza
ser explicada por transformações sócio-culturais. Porém, tal empreendimento constitui um
objeto de pesquisa por si, amplo e interessante, e por isto iremos evitar nos aprofundar aqui
para não desviarmos de nosso objeto. Apenas como indicação provocativa para futuras
pesquisas colocamos a seguir uma sentença de Maciocia (1996, p. 176): “A Medicina
Chinesa também considera a abstinência como uma causa de patologia, embora isto nunca
seja mencionado na China moderna.[...]”
169
formar a essência pré-natal do feto (XĪAN TĪAN JĪNG 先 天 精), e após o parto é
convertida em leite para amamentação. Isto explicaria porque a mulher só volta a
mestruar ao final da lactação, quando a essência (JĪNG 精) já não estaria mais
85
A tradução do Inglês e os grifos são meus.
86
Parece-nos que Maciocia (1996, p.175) esteve ao menos parcialmente consciente da
distância que existe entre as apreensões, pois procurou adicionar em seu texto algumas
características específicas dos sexos. Primeiro, reconhece que a atividade sexual excessiva
afetaria mais aos homens do que às mulheres, explicando em termos da dinâmica da
essência JĪNG 精, que na mulher está mais ligada ao sangue do que aos fluidos sexuais.
Portanto, afirma que a mulher recupera o JĪNG 精 perdido mais rápido que o homem. E mais,
expõe a gestação e parto como um fator importante de desgaste para as mulheres.
170
A segunda questão diz respeito ao orgasmo em si, com ou sem perda de fluidos,
pois este poderia ser uma fonte de desgaste de JĪNG QÌ 精 氣, a força vital (QÌ 氣)
Neste cenário a mulher ocupa posição distinta do homem. Como sua essência
(JĪNG 精) não se concentra nos fluidos corporais produzidos durante o ato sexual, e
por ter tendência natural a alcançar um orgasmo do tipo interno, a mulher poderia ter
atividades sexuais orgásticas sem nenhum desgaste da essência, (JĪNG 精) ou de
sua força vital associada (JĪNG QÌ 精 氣). Logo, a superioridade da mulher mostra-se
em sua natureza sexual, onde prazer e saúde são aliados, ao contrário do homem,
171
que inicia sua jornada sexual com estes elementos dissociados, tendo nas FÁNG
ZHŌNG SHÙ 房 中 術, as artes sexuais, e principalmente na mulher, as fontes de
saber que poderão uni-los novamente87.
Convém salientar mais uma vez que a prescrição terapêutica é orientada pelo
sexo. Isto significa que a tabela de restrições quantitativas é direcionada
principalmente ao homem, enquanto as mulheres poderiam engajar-se no prazer
sexual com um grau de restrições muito menor, em termos quantitativos.
87
Devemos notar que os clássicos apresentam distintas soluções diante deste problema.
Basicamente, parte-se da superioridade de mulher, porém, a resposta a esta superioridade
nem sempre resulta numa postura de aprendizagem por parte do homem, tal como acontece
no SÙ NǓ JĪNG 素 女 經, onde a mulher instrui o imperador. Mas, alguns textos clássicos
são tomados por metáforas militares, onde a mulher é tida como um “inimigo poderoso”. Os
motivos e as repercussões desta variação constituem um objeto extenso demais para ser
tratado aqui.
172
feminino no campo sexual, pois, segundo Chang (2001, p.133), nas posturas
desenhadas para a cura do homem, a mulher também recebe benefícios, enquanto
nas posturas desenhadas para a cura da mulher, o homem não receberia benefícios.
Vejamos a seguir algumas destas fórmulas curativas:
Posição para Fraquezas nos ossos, ossos quebrados, doenças da medula óssea e
artrite: A mulher deita-se sobre seu lado esquerdo com sua perna esquerda dobrada
para trás. A direita fica reta. O Homem pode deitar-se de lado ou obliquamente.
Nesta posição fazer cinco seqüências de nove, cinco vezes ao dia, por dez dias
seguidos. (Chang, 2001, p.129)
Na técnica resumida na imagem acima, os parceiros devem guiar a força vital (QÌ 氣)
para os rins, não mais para curar alguma enfermidade, mas para concentrar e
ampliar sua vitalidade. (Chia, 1986, p.232).
pela ejaculação. Para tal, utilizam-se diversas técnicas, como a do “cadeado”, que
consiste em pressionar o ponto de acupuntura HǓI YĪN 會 陰 (VC-1), momentos
antes do início do processo de ejaculação, a fim de mantê-las dentro do corpo e
ampliar o tempo do contato sexual. (Chia, 1984, p.120).
Além desta, o autor descreve outras técnicas como pressionar os glúteos, bater
os dentes, e direcionar a força vital (QÌ 氣) para o interior do corpo através da
intenção.
Existem práticas semelhantes para a mulher, porém, seu foco de trabalho não é
na contenção para posterior internalização, mas no fortalecimento e circulação da
vitalidade gerada. Para tal, utilizam-se massagens na região genital, exercícios dos
músculos do ânus, e técnicas de respiração para concentração de força vital (QÌ 氣).
Orgasmo
Feminino
Superior
Orgasmo
Masculino
Comum
Orgasmo
Masculino
Superior
Orgasmo
Feminino
Incompleto
Segundo Kohn (2003, p.211), para ambos os sexos o primeiro estágio baseia-se
no selo completo da essência (JĪNG 精). Deve-se evitar completamente qualquer
perda, o que para as mulheres, significa obter a capacidade de parar sua
menstruação. Será necessário manter a essência presente no fluido menstrual
dentro de seu corpo a fim de passar para o próximo estágio de transformação. Para
os homens, o selo já iniciado pela diminuição da ejaculação nos estágios anteriores
deve completar-se, cessando-a totalmente. As denominações alegóricas destes
processos são respectivamente “decapitar o dragão vermelho” e “domar o tigre
branco”.
Uma vez que a essência tenha sido selada, deverá ser utilizada para as
transformações regenerativas do corpo físico e para o desenvolvimento da
consciência. No primeiro caso, por exemplo, o praticante pode realizar o processo
chamado de DǍO JĪNG BǓ NǍO 導 精 補 腦, reverter a essência para nutrir a
medula, que se baseia numa conexão entre a essência (JĪNG 精) e a qualidade dos
ossos, mas principalmente da medula óssea, sendo que a área de maior
concentração de medula seria o próprio cérebro, chamado de “mar de medula”. O
praticante deve ser capaz de conduzir a essência (JĪNG 精) de volta para os ossos,
179
Cabe notar que a evolução do trabalho dual pode ser mapeada pelas
transformações do orgasmo no corpo feminino, conforme tabela a seguir:
Assim, notamos que nas artes do interior do quarto (FÁNG ZHŌNG SHÙ 房 中
術) encontra-se a mesma estrutura em três níveis observada nas outras práticas
terapêuticas.
1. Síntese do Modelo
1) Nível celeste
2) Nível humano
Outros fatores seriam problemas gerais na circulação de força vital (QÌ 氣),
especificamente entre eles, o problema da desarmonia entre o ser individualizado e
o ambiente, relacionado a variação das estações climáticas; A perda da quietude
mental; e a perda da essência, usualmente relacionada à conduta sexual.
185
3) Nível terrestre
Os limites do cenário são dados por um lado pela morte, e por outro pela
imortalidade, sendo a primeira uma das poucas certezas sobre o futuro de um ser
humano, e a segunda, um objetivo ideal. Qualquer condição de saúde-doença estará
compreendida entre estes dois extremos. Mais, além de conferir os limites, a morte e
a imortalidade determinam também a direção comum da ação terapêutica, ou seja,
não importa em que posição do contínuo uma determinada ação terapêutica esteja
186
2) O local é uma sala de consultório, um sujeito entra e diz: “Estou com dores
na região lombar da coluna, tenho tido insônia. Já fiz diversos exames não foi
constatada nenhuma doença. Gostaria de mudar esta situação para uma de maior
bem-estar.”
3) Ainda em uma sala de consultório uma outra pessoa entra e diz: “tenho boa
saúde e também um bom trabalho, mesmo assim não me sinto satisfeito com o que
tenho, com o que venho fazendo. A vida está desinteressante. O que devo fazer da
minha vida?”
88
Salvo em condições especiais em que a função parece reverter para acompanhar o
processo de morte, o que consideramos função secundária. Ocorre quando o terapeuta se vê
impossibilitado de cumprir a primária.
187
89
Se o terapeuta for da Racionalidade Biomédica, provavelmente estaria envolto no
paradigma mecanicista, buscando identificar uma doença e combater sua causa. Para as
racionalidades do paradigma clássico, uma situação desta frequentemente envolveria “ações
purgativas”, onde buscaria-se “limpar o corpo” do excesso de fator de desequilíbrio, tido
frequentemente como um fator natural presente no corpo humano e no ambiente, como por
exemplo, umidade ou calor. Uma vez purgado o fator, provavelmente o terapeuta iria realizar
procedimentos de re-harmonização.
188
Uma conexão fraca com XÌNG 性, sua natureza interna, conduziu a escolha de
ações e percursos na vida que o afastaram da realização de MÌNG 命, seu mandato
celeste, causando sentimentos genéricos de insatisfação e falta de interesse pela
vida.
direção da saúde. A limitação por sua vez, aparece pelo mesmo conjunto de
definições, mas ao contrário, pela negação do caráter enfermo de alguma situação,
ou do potencial patogênico de algum fator.
Por sua vez, se a orientação geral é a mesma para todos os níveis da Medicina
Clássica, existem variações sutis a cada nível que requerem alguns comentários.
Por exemplo, a doutrina médica do nível celeste define a desconexão com a
natureza interna (XÌNG 性) como um “fator patogênico”, no sentido de ser a primeira
“queda” de vitalidade em direção à enfermidade. Para o nível celeste esta falta de
contato e a conseqüente negação do desenvolvimento de potenciais (MÌNG 命) é o
principal fator determinante de saúde ou doença, podendo ser considerado como a
origem das enfermidades. Assim, pela inter-relação entre as dimensões da
Racionalidade Médica, se considerarmos a desconexão como uma enfermidade em
si, a primeira de uma série, teremos uma elaboração nas outras dimensões que
explicam os fatores que formaram este estado de doença, o que ele modifica na
dinâmica vital, como identificá-lo, como proceder a terapêutica, e por último, como
avaliar seu resultado.
90
Cabe salientar que a Medicina Tradicional Chinesa, sendo um projeto de síntese, utiliza
ambas as formas em suas avaliações.
192
Por ser desde sua concepção um projeto voltado para a cientificização dos
saberes clássicos, a Medicina Tradicional Chinesa é um exemplo emblemático dos
problemas decorrentes de tal caminho, pois trata-se sobretudo de um conflito
paradigmático. O paradigma clássico, fundamentado na cosmologia Daoísta, é
caracterizado por valores aos quais a ciência se opôs frontalmente desde sua
concepção. Para o Daoísmo a vida é um fenômeno que não pode ser definido de
forma precisa, pois sempre haverá nela um aspecto misterioso (XUÁN 玄 ) que
desafia a apreensão intelectual. A partir desta concepção, a construção do
conhecimento sobre a vida é vista como um processo de exploração multi-
dimensional de sua complexidade, que exige uma transformação do próprio sujeito a
partir da interação com seu “objeto”, a força da vida (QÌ 氣 ), para que o
conhecimento seja apreendido e elaborado. Neste sentido a Medicina constitui um
caminho (DÀO 道), onde o conhecido e o conhecedor estão em processo contínuo
de transformação mútua. Em tal paradigma, as formas mais adequadas de registrar
informações são o símbolo e o mito, sobretudo por se constituírem em formas de
comunicação capazes de correlacionar múltiplos níveis de significados, e o
instrumento mais adequado para apreendê-los é a consciência humana, refinada a
partir do próprio processo de comunicação.
Esta urgência não pode ser vista apenas como um clamor de uma minoria
contra-hegemônica movida pela paixão, pois existem evidências de que a
colonização não foi capaz de criar uma Medicina mais eficaz, nem mesmo quando
os parâmetros para avaliação de eficácia são determinados pelo próprio colonizador.
Isto é ilustrado pelo exemplo de Kaptchuck (2000, p.369) apresentado na introdução,
de um experimento no qual foi possível comparar uma terapêutica padronizada,
onde todos os pacientes que foram diagnosticados com síndrome do cólon irritável
receberam a mesma medicação, com uma terapêutica singularizada, na qual a
composição da fórmula foi adequada a cada sujeito de acordo com o padrão de
desarmonia apresentado, segundo critérios de diagnose da Medicina Chinesa. Ao
final do experimento, em uma condição onde o método (ensaio clínico randômico
controlado), a definição de enfermidade (síndrome do cólon irritável) e os
parâmetros para avaliação de eficácia foram determinados pela Racionalidade
Biomédica, o resultado foi favorável à prática terapêutica que respeitou valores
internos da Racionalidade Médica Chinesa, como a singularização do composto de
fármacos a partir dos critérios diagnósticos da própria Racionalidade, em oposição à
prática que incorporou valores externos, como a padronização dos fármacos a
partir das definições do sistema diagnóstico biomédico.
196
Nesta situação específica, os saberes que foram excluídos pela imposição dos
métodos e concepções científicas como um imperativo global, compõem parte de
um conjunto encadeado de explicações nas seis dimensões da Racionalidade
Médica, parecendo haver uma espécie de coerência interna entre estas dimensões
que quando alterada pode resultar numa perda para a terapêutica.
Cada uma das seis situações é identificada por um conjunto de sinais que
caracterizam o fator patogênico invasor ou a qualidade da vitalidade e da relação
entre os órgãos e vísceras. Como por exemplo, a presença de odor fétido e de
saburra amarela e pegajosa são sinais de calor-umidade, enquanto o excesso de
gases e a distenção abdominal indicam problemas na relação entre o Baço e o
Fígado.
Pensamos ainda que estes prejuízos potenciais não são os únicos e nem os
mais relevantes, pois, até o momento, elaboramos a análise a partir de um
experimento contextualizado no nível terrestre da medicina, centrado na cura de
enfermidades. Seguindo o mesmo padrão de análise, procuramos, a seguir,
identificar que transformações podem ocorrer nos outros níveis da medicina como
decorrência de processos de cientização semelhantes.
avaliação dos estados de saúde. Pois, qual seria a utilidade do método sutil de
avaliar o brilho dos olhos se não considerarmos a insatisfação com a vida como uma
desarmonia em estágio potencial?
Propomos aqui uma análise das intenções dos atores do campo conforme seus
discursos, pois percebemos que se a ciência e a Biomedicina justificam sua
abordagem à Medicina Chinesa através da necessidade de “garantir a segurança ou
eficácia da prática” ou “provar sua eficácia terapêutica”, deve-se salientar que estas
necessidades não parecem partir dos terapeutas de orientação clássica nem dos
95
Conforme obras de Luz (1988, 1996) ,Sayd (1998) e Camargo Jr. (2003).
203
Desta forma, queremos propor a inversão do discurso, pois, parece-nos que são
Biomedicina e a Ciência que precisam da Medicina Clássica para reformular sua
própria Racionalidade e aperfeiçoar seu sistema terapêutico, mais do que a
Medicina Clássica precisa da Ciência ou da Biomedicina para atuar de forma segura
e eficaz. O exemplo de Kaptchuck (2000, p.369) mostra que a Biomedicina foi
procurar na Fitoterapia Chinesa uma forma de atuar numa condição de saúde para a
qual não apresentava proposta terapêutica eficaz. Esta condição de desarmonia leve,
que estaria no limite entre os níveis terrestre e humano segundo a Medicina Clássica,
representa um exemplo entre as diversas impossibilidades terapêuticas da
Racionalidade Biomédica96.
96
Não queremos dizer com isto que a Medicina Clássica Chinesa é onipotente, capaz de
resolver qualquer problema de saúde. Isto não seria verdadeiro, havendo de fato inúmeras
situações onde a utilização de práticas de sua dimensão terapêutica seria menos adequada
do que as terapêuticas da biomedicina. Queremos apenas salientar que as deficiências da
Biomedicina são quase sempre ocultas no discurso elaborado por seus defensores.
204
Assim, mesmo que as concepções de essência (JĪNG 精), vitalidade (QÌ 氣),
serenidade mental (expressão da força de SHÉN 神) ou constituição (QÌ ZHÌ 氣 質)
não possam ser avaliadas de forma científica, talvez fosse possível avaliar de forma
estatística o resultado na saúde de uma terapêutica orientada por estas concepções,
o que poderia se constituir numa contribuição para o campo da saúde coletiva, por
exemplo, ao criar parâmetros para calcular a quantidade de recursos financeiros que
estariam sendo economizados no tratamento das enfermidades evitadas,
mensurados pela diferença com o grupo que não tenha recebido o conjunto de
terapias.
Percebemos que existem outras linhas de pesquisa que respeitam esta direção,
e que atuam na classe de “Explorações da teoria tradicional” conforme tipologia de
Birch (2003 a). Um trabalho deste tipo foi desenvolvido por Motoyama (1986)97 com
objetivo de mensurar correntes elétricas possivelmente associadas ao sistema de
meridianos. Seu objetivo foi de fato criar um instrumento de avaliação quantitativa do
fluxo de força vital (QÌ 氣), baseado na pressuposição de que este poderia ser
equivalente ao fluxo de correntes elétricas. Mesmo podendo haver problemas nesta
pressuposição, o autor respeitou as concepções da dimensão da dinâmica vital ao
97
Motoyama, H, PhD. É fundador e diretor do Califórnia Institute for Human Sciences, e
representante do conselho de pesquisas em Medicina Oriental do Japão.
206
A transmissão oral foi uma hipótese bastante considerada, pois, segundo Hsu
(1999, p.2) em seu estudo antropológico sobre a transmissão de conhecimentos,
constitui até o presente uma forma relevante. A autora destaca que este tipo de
transmissão pessoal, as vezes secreta, existe de forma concomitante à padronizada,
baseada em textos escritos e aberta ao publico. Ainda, Hsu (1999, p2) afirma que o
conhecimento transmitido de forma oral pode estar escrito em algum texto, mas a
forma de recebê-lo altera ou amplia seu conteúdo.
209
Esta questão é um exemplo particular que pode ser generalizado para todas as
interpretações sobre os cinco espíritos orgânicos (WǓ JĪNG SHÉN 五 精 神) e as
funções psíquicas dos ponto de acupuntura (SHÉN XUÈ WÈI 神 穴 位) presentes na
literatura contemporânea. Consideramos que a melhor resposta até o presente seria
apenas ilustrar os fatores que poderiam pesar a favor das duas direções.
Diante deste cenário, pensamos que o objeto de pesquisa mais apropriado para
elucidar a relação existente entre as interpretações contemporâneas e os
significados e funções atribuídos aos órgãos e pontos de acupuntura é o DÀO ZÀNG
道 藏. O cânone é imenso e pouco explorado, sendo provável que suas seção de
Medicina, Cultivo da vitalidade (YǍNG SHĒNG 養 生), Farmacologia e Alquimia
tenham muito a contribuir para a atualização dos saberes clássicos. Se ainda não é
211
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Liu Ming
Phone: 1-510-444-0733
Phone: 1-831.646.9399
Pacific Grove, CA
Dra. Yong Yi Wu
Phone: 1-415-362-7276
Phone: 1-415-781-7850
Dr. Su
Phone: 1-415-392-1935
Nota: A entrevista não ocorreu por falta de domínio da lingua inglesa por parte
do terapeuta
Phone: 1-415-989-0603