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PUC-SP
Antropologia
SÃO PAULO/SP
2020
Maria Carolina Pereira da Rocha
SÃO PAULO/SP
2020
Banca Examinadora
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A saúde é um estado de resistência. Resistência à própria doença. Resistência
também à violência e ao assédio, resistência às drogas, resistência à exploração,
resistência à comida de má qualidade, resistência à poluição, resistência à condições
precárias de habitação, resistência à indústria farmacêutica, incluindo resistência à
mercantilização da saúde e ainda resistência às vezes, à própria medicina.
(Marc Jamoulle)
Para Maya, que mudou minha visão sobre a vida, o mundo e a infância dedico esse
estudo
A presente tese foi realizada com apoio de bolsa pela Fundação São Paulo
(FUNDASP).
AGRADECIMENTOS
À minha querida PUC/SP que contribui com a minha formação desde 2003,
como médica e agora como pós-graduanda, ensinando-me que não se faz saúde sem
transdisciplinaridade e sem solidariedade. Sou muito grata por ser parte dessa
universidade;
À querida Faculdade de Medicina de Sorocaba que me formou e me acolheu
como professora;
À Universidade de Sorocaba que ampliou meus horizontes em meu mestrado;
Ao querido professor Florenzano, que me inspirou com a antropologia e me
apresentou as ciências sociais;
À querida professora Terezinha Bernardo que me acolheu com tanta
solidariedade e empatia;
Aos colegas do curso de doutorado que me acolheram com carinho e paciência;
Aos alunos da Faculdade de Medicina de Sorocaba que me inspiram e me
instigam a tentar ser melhor;
Aos funcionários da biblioteca da Faculdade de Medicina de Sorocaba que me
apoiaram sempre que necessário;
Aos médicos de família que conheci ao longo do caminho e me guiaram nessa
trajetória;
Aos queridos pacientes com os quais aprendo a todo momento;
Aos meus pais e minha irmã pela compreensão e por estarem sempre ao meu
lado;
Ao Fábio, meu companheiro de vida e de jornada acadêmica por ser meu
parceiro também de sonhos e por me proporcionar o melhor que poderia ter
acontecido ao longo dessa jornada, minha filha Maya.
RESUMO
Health care can be offered in many ways, historically it has moved from an unscientific
model, linked to magic and spirituality, to a healing, scientific and biomedical model.
This model was accompanied by the increase in the consumption of medicines,
procedures and interventions, which were considered necessary for health care to be
considered good and we started to medicalize some processes that can be considered
natural in life. Medicalization is the process in which human problems are defined and
treated as medical, in a reductionist, individualistic and technological way. This study
aims to understand the medicalization of childhood health care through the analysis of
recordings of pediatric medical consultations of a public primary care service. The
health demands were divided into: routine consultation of healthy children, child care,
demand for medicines and laboratory tests (check ups) and demand for behavioral
drugs, which were analyzed from the point of view of quaternary prevention,
commodification of health, expropriation of health, pharmaceutical industry and
medicalization of life.
Figura 1 - Foto do bairro Vila Sabiá onde o estudo foi realizado .............................. 31
Figura 2 - Esquema dos níveis de prevenção .......................................................... 52
Figura 3 - Tirinha de Bill Watterson .......................................................................... 81
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13
1.1 Justificativa........................................................................................................ 25
6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 79
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 83
13
1 INTRODUÇÃO
(MASSUDA et al., 2018), centralizando a maior parte dos cuidados nas mãos de
especialistas, gerando um imaginário de que se trata do melhor modelo.
A resolutividade esperada para uma APS forte é em torno de 85% (ALMEIDA;
GIOVANELLA; NUNAN, 2012), de modo que apenas 15% das pessoas precisariam
de especialistas, demonstrando que a maioria delas não precisaria dessa atenção que
costuma ser cara e nem sempre eficaz. O cuidado especializado deve ser deixado
para questões muito específicas. A generalização desse tipo de oferta de atendimento
é pouco eficaz e ocasiona pouca satisfação nas pessoas porque não considera o
contexto da doença e nem seu desenvolvimento ao longo do tempo, sendo uma
ameaça à equidade na medida em que nenhum país tem recursos ilimitados, além de
contribuir para um olhar mais focado em medicamentos (STARFIELD, 2004).
A principal prática de cuidado médico dentro dos serviços de APS é a chamada
consulta, que pode ser oferecida pelo médico ou por qualquer outro profissional de
saúde. É nesse encontro entre médico-pessoa que se dará o cuidar em saúde. O olhar
biomédico, centrado na doença, propõe um roteiro de perguntas que o profissional
deve realizar para nortear o raciocínio clínico com objetivo fundamental de fazer um
diagnóstico e de propor um tratamento. Esse roteiro é conhecido como anamnese. O
livro do Porto (2013), é uma das referências mais conhecidas desse modelo de
atendimento. Trata-se de um roteiro bem dirigido que foca no diagnóstico médico, na
doença. Ele oferece pouco ou nenhum espaço para fala livre e para entendimento do
significado da doença ou dos sintomas para aquela pessoa ou família. Propõe que as
perguntas sejam divididas em: identificação, queixa principal e duração, história da
doença atual, interrogatório dos outros aparelhos, história pregressa, históricos
fisiológico, familiar e social. Embora até haja um espaço para questões sociais e
familiares, ainda é feito de maneira muito dirigida e centrada em aspectos ligados
unicamente à doença.
A questão aqui é que boa parte das pessoas saem das consultas médicas sem
diagnóstico biomédico e, para a maior parte delas, mais importante do que o nome da
doença é como ela se sente, o impacto disso em sua vida e as ideias e expectativas
que ela tem em relação à doença. Quando a equipe de saúde não é capaz de abordar
essas questões, em geral as pessoas não saem satisfeitas da consulta. No modelo
de atendimento centrado na doença, deixamos de lado o que realmente importa para
aquela pessoa ou àquela família.
17
apareceram com força. Essa experiência contribuiu muito para a escolha da minha
área de atuação em infectologia pediátrica e, posteriormente, em Medicina de Família
e Comunidade. Meu interesse sempre foi mais focado em aspectos epidemiológicos
e determinantes sociais da saúde.
Após o término da residência médica, passei nas provas de Título de
Especialista em Pediatria e de Título de Especialista em Infectologia Pediátrica e fiquei
dois anos trabalhando, entre outras coisas, na periferia de uma grande cidade como
pediatra em uma Estratégia de Saúde da Família, onde trabalho até os dias atuais. A
assistência médica e o contato com as pessoas, com seu modo de vida, sempre me
atraíram e me instigaram.
Entretanto, após três anos de residência médica e dois anos no mundo do
trabalho, em local vulnerável e com estrutura precária, percebi que não estava me
tornando a médica que queria ser, pois me faltavam muitas coisas. Sentia falta de
reflexão, de estudo, de discussões e da vida acadêmica para que fossem ampliadas
minhas ferramentas, as análises de meu trabalho, o aprimoramento da minha prática
e ao mesmo tempo a manutenção da minha saúde mental para tentar realizar um
cuidado em saúde mais harmônico.
Inicialmente minha intenção era seguir o mestrado na UNIFESP, porém as idas
e vindas a São Paulo e a impossibilidade de trabalhar fora enquanto era feito o
mestrado tornaram-no muito difícil para mim. Não havia mestrado no Campus de
Sorocaba da PUC-SP, porém um mestrado em ciências farmacêuticas estava sendo
aberto na Universidade de Sorocaba (UNISO) e com uma linha de pesquisa que me
atraía bastante que era USO RACIONAL DE MEDICAMENTOS e havia um professor
que estudava o uso racional de antibióticos em crianças. Por fim, em 2008 ingressei
no mestrado em ciências farmacêuticas da UNISO, na linha de uso racional de
medicamentos. Esse é outro aspecto da atenção à saúde que me interessa e ao
mesmo tempo me incomoda muito. No curso de medicina, o cuidado é resumido a
consultas rápidas, focadas em biomedicina e espera-se que ela seja finalizada com
prescrição de medicamentos e solicitação de exames. A relação dos médicos e das
instituições médicas com a indústria farmacêutica, laboratórios e equipamentos
médicos sempre me incomodou e me pareceu um pouco promíscua. Os congressos
médicos, em especial de algumas especialidades, cheios de stands da indústria e de
aulas patrocinadas deixavam-me constrangida. Assim, esse mestrado, especialmente
nessa linha de pesquisa, fez bastante sentido para mim, além da oportunidade de
21
1.1 Justificativa
a ser solicitado para sinusite por médicos e por demanda dos pais se não há nenhuma
evidência científica de que ele seja necessário para o diagnóstico? Por que famílias e
crianças que sabidamente comem alimentos industrializados cheios de sal e açúcar e
têm uma vida sedentária regada a celulares e televisores procuram o médico para
emagrecer? O que eles realmente esperam? Por que passamos acreditar que
vitaminas farão as crianças comerem melhor? Por que a ritalina é um dos
medicamentos mais prescritos do mundo? Por que levamos nossos filhos pequenos
e saudáveis ao médico mensalmente para verificar se há algo errado com eles? Por
que perdemos a capacidade de nos observar e de observar nossa família?
Medicalizar é o processo no qual os problemas humanos são definidos e
tratados como médicos, de forma reducionista, individualista e com viés tecnológico
(CLARK, 2019). Para Foucault (apud CASTRO, 2009, p. 299):
muitas vezes, partem das pessoas que nos procuram, fazem parte da nossa cultura e
estão presentes tanto no inconsciente coletivo quanto na cultura médica e, hoje, meu
foco é entender por que elas acontecem e de onde vêm essas demandas.
28
29
2. OBJETIVO E METODOLOGIA
famílias vive de maneira disfuncional, com mulheres chefes de família, renda menor
que um salário mínimo, múltiplos casamentos, as crianças crescem sem a presença
dos pais, são frequentes familiares em situação de prisão, muitos recebem o bolsa-
família e dependem em sua totalidade do serviço público para ter acesso à saúde. Há
pouco acesso ao lazer. A escola do bairro oferece um cuidado pouco integral e durante
meio período, sem atividades extracurriculares. Há algumas igrejas no bairro e
predominam as religiões católica e neopentecostais. Há uma área rural no território,
bairro dos Morros. O estado é pouco presente no local, há áreas do Bairro dos Morros
sem saneamento básico e são frequentes as batidas policiais com violência, prisões
e morte. A maior parte das mães são jovens e a gravidez na adolescência é muito
comum. Abandono escolar também ocorre entre os jovens e são raras as pessoas
com nível superior de escolaridade.
Exame físico
Muitos autores entendem a puericultura como uma prática social sujeita aos
mais diversos agentes políticos e econômicos, com motivos, objetivos e
consequências que extrapolam a simples elaboração de normas científicas
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Criança! Alimenta-te bem, dorme bem, vive sempre alegre! O Brasil necessita
que cresças forte, com muita saúde! Trabalhar para ser são e forte é ser bom
brasileiro; é construir uma Pátria engrandecida pela saúde de seus filhos.
Criança! Lembra-te deque és um pedacinho do grande povo brasileiro faz e
tudo ao teu alcance para que o Brasil esteja sempre unido. O Brasil deve ser
um só em todos os recantos de nossa terra; e, um só, agora e sempre.
Cabe ao puericultor atuar na prevenção, isto é, ele age mais para evitar,
afastar ou controlar os fatores de risco do que propriamente nas doenças. A
meta é fazer o diagnóstico e listar os problemas detectados, em relação à
alimentação, estado nutricional (desnutrição, anemia, obesidade),
imunização, crescimento, desenvolvimento neuropsicomotor e pubertário e
comportamento. Para isso o puericultor conta com os dados de anamnese e
exame físico.
É claro que essas questões também afetam a saúde; estudos mostram que o
código postal tem mais influência na saúde das pessoas do que o código genético,
mas cabe ao médico, em uma consulta de rotina, o controle sobre essas outras
questões? (ROBERT WOOD JOHNSON FOUNDATION, 2011).
No livro “Expropriação da Saúde”, Ivan Illich (1975, p. 12) afirma que os estudos
de morbidade demonstram que ela não foi afetada pelos médicos no último século,
mais do que foram afetadas pelos sacerdotes em épocas precedentes. Que os rituais
médicos não influenciaram mais positivamente os resultados em saúde que os rituais
religiosos aplicados anteriormente.
Ele cita alguns exemplos e, entre eles, o controle das doenças infecciosas. A
tuberculose, por exemplo, que atingiu seu apogeu em Nova York em 1812, teve uma
queda em 1882, muito antes da identificação do bacilo e da criação dos sanatórios
para tratamento. O mesmo ocorreu em relação aos antibióticos, à cólera e ao tifo.
Quando a etiologia dessas doenças foi compreendida e tratamento adequado
estabelecido elas já tinham perdido muito de seu potencial de agressividade (ILICH,
1975).
Quando a causa de mortalidade muda para doenças crônicas, novamente o
regime alimentar e o estilo de vida interferem muito mais do que o cuidado médico em
si. Como impacto na saúde global em primeiro lugar encontram-se as condições de
alimentação, em segundo, condições de saneamento e apenas em terceiro, o acesso
a serviços médicos. Nem proporção de médicos/habitantes, nem meios clínicos
disponíveis, nem a quantidade de leitos hospitalares ocasionam mudanças profundas
nas taxas globais de mortalidade. Eles conseguem, no máximo, redefini-las (ILICH,
1975).
Em seguida, ele atribuía aspectos sociais à saúde global de uma população,
incluindo condições de vida, moradia, trabalho e habitação. Trata-se dos
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Med: Tá ótimo peso, altura... Você tem alguma dúvida? Alguma dificuldade, vó M.?
Avó 1: Está correto o peso? As medidas?
Med: Está tudo certinho, olha, aqui está o peso dele, aqui a média para a idade dele
e os valores que podem ser considerados acima ou abaixo...o dele está bem na
média... (mostra o gráfico da Organização Mundial de Saúde)
Avó 1: Estamos dando o leite aqui do posto que deu certo para pegar...
Med: O Nestogeno®?
Avó 1: Isso....
Med: O que mais?
Avó 1: Comida estou dando aos poucos, papinha de legumes, às vezes eu ponho
carne ou peixe...
Med: Você cozinha e amassa, vó D.?
Avó 1: Não, eu coloco no liquidificador, porque eu tenho medo dele engasgar...
Med: Não precisa, viu? A gente não usa mais o liquidificador…A comida fica muito
liquida...Desde o começo a gente amassa...Funciona mais ou menos assim, dos 6 aos
9 meses. Você mistura os alimentos e amassa, a partir dessa idade, se vocês
comerem bem em casa, vocês podem dar o que tem em casa com as adaptações
necessárias. Se vocês comerem um legume e uma carne, é isso que você vai dar para
ele.
Avó 1: Mas não tem perigo de engasgar?
Med: Engasgar é muito difícil, o que acontece, às vezes, é o reflexo quando a comida
cai no lugar errado e na grande maioria das vezes ele consegue soltar sozinho.
Também é importante estar por perto para ajudar caso algo aconteça. Fique junto. E
vai dar certo, ok? E verduras, vocês têm dado?
Avó 1: Sim, coloco couve, brócolis...
Med: Frutas, M.?
Avó 1: Sim, ele come banana amassada...
Med: Então veja só, se ele come a banana amassada, vai conseguir comer os
legumes, não é mesmo?
Avó 1: Tá...
Med: Eu sugiro que vocês não deem mais nada, não precisa de pão, bolacha, danone.
Avó 2: A gente dá só quando estamos comendo, para ele não passar vontade...
Med: Cuidado, pois são alimentos industrializados, as crianças não nascem gostando
deles, a gente que ensina, e depois, muitos deles não querem mais a comida e só
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querem besteira...Aí começa a ser um exercício mais difícil ainda que é mudar a nossa
alimentação....
Avó 2: É....
Med: Porque de verdade, M., a criança vai querer o que ela nos vê comendo e se nós
comemos mal, ela vai comer mal também. Então a gente precisa comer direito para a
criança comer direito, porque se ela está em uma casa que tem refrigerante,
salgadinho e bolacha, é isso que ela vai querer comer. É o hábito da família toda.
Avó 2: É....
Med: Então prestem bastante atenção porque é muito difícil e está na nossa cultura,
todos nós comemos esses alimentos, mas mais pra frente isso começa a
complicar...Agora estamos em uma fase boa, ainda dá tempo de ajustar...
Avó 2: Tentamos dar Danoninho, mas ele não quis...
Med: Eu sei que a gente faz com as melhores das intenções, ai é gostoso, aí ele fica
feliz.
Avó 2: E iogurte?
Med: Olha, só depois de um ano, natural, tem que olhar a lista de ingredientes quando
for comprar ou fazer em casa....
Avó 2: E suco? Suco ele gosta...
Med: Então, mas suco a gente não tem mais dado, acho que comentei com vocês, é
só depois de um ano porque as crianças estavam acostumadas a matar a sede com
suco e que com o tempo era substituído por suco de caixinha...O suco só pega o
açúcar da fruta...
Avó 1:Ahhh eu gosto de dar a laranja para ele chupar...
Med: Perfeito...
Med: Ele está bem firminho? Senta?
Avó 1: Ele senta, se arrasta, anda com andador....
Med: Andador...Então, nossa estou chata hoje, mas também não temos usado o
andador...
Avó 1: Por causa da coluna, né?
Med: Não exatamente, D., é que tem muito risco de queda, porque a criança perde o
controle e também começa a andar com a ponta dos pés.
Avó 2: Ah, mas o dele não é alto, ele não fica com a ponta dos pés...
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Med: Mas tem as quedas.... Hoje se você entrar em sites de qualquer organização de
pediatria ele é contraindicado. Ia até parar de vender...Gente, eu sei que não é por
mal, mas são coisas que se a gente conseguir ajustar, vão ser ótimas para o bebê.
Med: As vacinas estão em ordem?
Avó 2: Sim.
Med: Xixi e cocô estão normais?
Avó 1: Sim...
Med: Vocês estão conseguindo dar banho de sol nele?
Avó 1: Damos sim...
Med: Está tomando alguma vitamina, M.?
Avó 1:Combiron® e Adera®...
Med: Certinho, mais nada?
Avó 1: Não...
Med: Vamos dar uma olhada nele então?
Exame físico
Med: Gente está tudo bem...Vamos manter as vitaminas e tomar esses cuidados que
conversamos, ok? Claro que o bebê é de vocês e vocês podem fazer como quiserem,
mas eu preciso falar o que é mais certo, hoje, né? Desculpa a chatice...
Avó 2: Imagina…não, está certo. Tudo certo então?
Med: Eu que pergunto, faltou alguma coisa, vovós?
Avó 2: Não...obrigada..
Nessa consulta fica muito claro como, de alguma maneira, as avós estão com
dificuldade em fazer o cuidado do neto saudável e como sofrem influência dos
elementos artificiais impostos pelo mercado, que vão desde alimentos industrializados
até andadores. O nascimento, o crescimento, o desenvolvimento, a procriação e a
morte são aspectos naturais da vida e não necessitam de intervenções médicas para
acontecerem. Durante séculos, as sociedades reagiram a esses processos de forma
coletiva, comunitária, espiritual e familiar. Justamente as avós, tradicionalmente vistas
como cuidadoras e apoiadoras do cuidado nas sociedades tradicionais, mostram-se
extremamente inseguras e necessitadas de orientação médica sobre como esse
cuidado deve ser realizado.
O desenvolvimento da medicina e dos equipamentos médicos foi tornando as
pessoas progressivamente dependentes dos médicos para cuidados antes delegados
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Mãe: Deu...
Mãe: Estava.... Só o nariz que você falou que fica com secreção às vezes o inverno
inteiro...Às vezes sai ramela do olho dela também, mas não é o tempo todo...é
normal?
Med: Vamos dar uma examinada, mas pode ser obstrução da glândula lacrimal. Algo
mais?
Mãe: ...
Mãe: E o cocô? Quando vai normalizar? Porque ela faz a cada dois dias....
Med: Então...Isso é normal...O bebê que mama no peito pode variar mesmo a
frequência de evacuações, C., e pode até ficar dias sem fazer, se ela não tiver dor e
estiver tranquila, tudo bem....
Mãe: Não...
Mãe: Está...
Mãe: Nada.
Mãe:E babar muito é normal? Meu Deus do céu, ela baba muito!
Med: Essa fase baba bastante...Estou colocando ela no gráfico, e está tudo
normal...
Med: Vamos ver, mas já vou te explicar, conjuntivite ou doenças mais sérias nos
olhos, os olhos ficam vermelhos, inchados e a secreção gruda o tempo todo, quando
acontece como está acontecendo com ela é uma pequena obstrução na glândula
lacrimal, que vai e vem, mas com o tempo melhora, você pode limpar com soro
fisiológico ou água filtrada e fria e fazer massagem para ajudar a desobstruir...Acho
que não precisa de nada além disso... Vamos dar uma olhada nela....
Examina:
Mãe: Sim...estava....
Mãe: Meu marido e meu filho que ficam me enchendo o saco, perguntam esse negócio
da ramela, pergunta se não é nada grave, se é normal...Agora o negócio é a vacina,
né? Vou ficar preocupada....
Mãe: Sim...
Mãe: Tá bom....
Med: Olha é uma boa vacina, mas até pouco tempo atrás ela não estava no
calendário...Espera um pouco e caso comece a demorar muito vocês unem as mães
do bairro e pensam o que fazer...Mas vai ficar tudo bem, é uma doença rara...
das crianças em qualquer desfecho em saúde bem como do exame físico completo
de rotina. O gráfico de crescimento, classicamente usado para monitorar o peso e a
estatura das crianças, gera uma busca incessante das mães por um padrão de
normalidade que pode não fazer sentido para a singularidade daquele grupo de
pessoas, daquela família ou daquele indivíduo. Um grupo de médicos ingleses fez
uma crítica importante a essa ferramenta sugerindo que não há uma diretriz confiável
sobre necessidade de encaminhamento uma vez que algum afastamento da média
seja encontrado (HALL,2000). Podemos ser diferentes, originais, singulares e nem por
isso sermos anormais. No livro “São e Salvo” Gérvas e Pérez-Fernandez (2016) diz:
Nesse atendimento a mãe diz: "Meu marido e meu filho que ficam me enchendo
o saco, perguntam esse negócio da ramela, pergunta se não é nada grave, se é
normal". É claro que a busca pela normalidade gera uma preocupação desnecessária
que a afasta da saúde no sentido de desfrutar a vida. O perfeito bem-estar físico,
mental e espiritual que define saúde de acordo com a Organização Mundial de Saúde
é praticamente inatingível, o que se vê é uma busca por atingir um padrão que tem
pouco impacto em qualquer desfecho clínico, ocasionando frustração e padronização
já que as pessoas são diferentes.
A questão dos padrões de normalidade também é importante quando falamos
do comportamento das crianças que será discutido no capítulo 03.
A padronização, normalização ainda carrega o perigo de causar uma falsa
sensação de tranquilidade quando uma pessoa atinge o parâmetro esperado, já que
atingir esses parâmetros também não é nenhuma garantia de saúde. Desse modo, os
gráficos e valores de referência de exames e especialmente de comportamento
devem ser olhados com muita cautela e devem ser individualizados.
Existe também o ponto de vista, que não pode deixar de ser citado, de que
tentar normalizar as pessoas seria uma forma de controle do Estado. Para Foucault a
normalização é uma forma que o Estado encontra de exercer poder através da
disciplina e da biopolítica como eixos do biopoder (CASTRO, 2009).
48
acredito fortemente que essa prioridade deva ser questionada. Assim, o processo de
crescimento e desenvolvimento, que é um processo natural da vida seria menos
medicalizado e menos normalizado.
Quanto às consultas de rotina, elas devem respeitar as demandas e
necessidades individuais, serem mais amorosas, acolhedoras e menos protocolares
e cheias de checklists. Outros profissionais de saúde e de outras áreas podem e
devem participar do cuidado, como é feito em muitos países, contribuindo inclusive
para o uso adequado de recursos financeiros, já que o médico costuma ser o
profissional mais caro da equipe.
O cuidado em saúde da criança saudável deve ser menos centrado no médico,
menos medicalizado, menos "patologizador" do processo de nascer, crescer e se
desenvolver. Deve respeitar as diferenças individuais, familiares e culturais, valorizar
o modo de viver de cada pessoa, família e comunidade, estimular a autonomia, o
autocuidado e a vontade das famílias, entendendo que o nascimento de um bebê e
seu crescimento é um momento único, especial e sagrado na vida daquela família e a
maneira como a família vai lidar com isso pertence a ela.
Seus saberes, suas ideias, sua vontade, sua história e sua singularidade devem
ser valorizadas, assim como a idiossincrasia da criança. O médico e a equipe de
saúde não são ou não deveriam ser considerados os detentores do conhecimento
sobre esse processo e não devem impor regras de como o cuidado deve ser dado.
O auxílio deve vir em medida muito sutil, respeitando as demandas de cada
criança e de cada família e sem transformar esse momento tão único em doença, em
anormalidade. Há um grande espectro de variações que são normais e isso deve ser
valorizado. Os saberes da família e da rede de apoio e a intuição podem e devem ter
espaço nesse cuidado. Assim, pouco a pouco, conseguiremos substituir o olhar
higienista, da origem da puericultura por um olhar integral, respeitoso, amoroso e
alicerçado no empoderamento e na solidariedade.
50
51
criança resfriada, pode ser iatrogênico? Assim, para cada pessoa, família ou situação
há uma série de pequenas intervenções capazes de causar dano que normalmente
são negligenciadas. Costumamos pensar que na dúvida é melhor "pecar pelo
excesso", tendo mais medo da "não intervenção" do que da intervenção. Trazer esse
questionamento à tona é papel do médico e dos serviços de Atenção Primária.
Seguem abaixo alguns exemplos de consultas médicas em crianças em que esses
excessos aparecem:
Med: Olha, a gente não precisa fazer exame de diabetes em criança todos os anos, a
menos que ela tenha sintomas. O que a gente pode fazer para te tranquilizar é fazer
uma ponta de dedo dela agora.
Pai: Pode ser....
Med: Agora o que você tem que tomar cuidado desde já é com a alimentação, né?
Pai: Elas adoram um docinho...
Med: Então...Fazer exames todos os anos não previne diabetes, mas ter uma
alimentação mais saudável sim. Os seus familiares têm diabetes tipo 2, muito ligado
ao peso e à alimentação. Ele raramente aparece na infância, ainda mais que sua filha
tem peso bom, mas pode aparecer na vida adulta. E os hábitos alimentares da infância
costumam persistir na vida adulta.
Pai: E se der bolacha recheada come o pacote...
Med: Então,Sr. M., se você está com medo de diabetes, muito mais importante do que
fazer exames todos os anos, é tentar manter uma alimentação mais natural e mais
saudável em casa, mas também é muito mais difícil.
Pai: Verdade Doutora, mas ainda assim prefiro fazer o exame
Med: Tudo bem...já que ela está de jejum, faça então a ponta de dedo para te
tranquilizar e traga para mim, ok?
Exame de glicemia capilar normal
Med: Então mantemos assim e qualquer dúvida estou à disposição, pode ser?
Pai: Pode sim, até mais...
Na consulta acima vê-se claramente uma família com medo de uma doença
silenciosa e potencialmente grave. A demanda por check-ups e exames para
diagnóstico de doenças silenciosas e potencialmente graves é enorme nos serviços
de Atenção Primária. Eles acontecem na população adulta e se estendem nas
crianças. Novamente é necessário cuidado com o excesso de exames e de
intervenções. Trata-se de uma criança de 9 anos, saudável, que não sente nada de
diferente com seu corpo, mas que tem feito exames de glicemia anualmente além de
passar em consulta com o especialista, endocrinologista. O paradoxo nesse caso é
que a preocupação com o diabetes se traduz em uma demanda por exames anuais e
uma medida que comprovadamente previne diabetes, que é uma alimentação natural,
com pouco ou sem açúcares, foi negligenciada. Essa criança vem passando
sistematicamente em consultas médicas, os médicos têm solicitado glicemia e outros
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exames para ela anualmente, mas ninguém parou para explicar sobre a doença ou
falar sobre o papel dos exames laboratoriais e dos hábitos de vida no diabetes.
Exames não previnem doença. Eles, no máximo, permitem um diagnóstico oportuno
(prevenção secundária). Mas é necessário muita cautela, não basta um diagnóstico
oportuno, é preciso que o diagnóstico permita intervenções que possam mudar a
história natural da doença, que essa mudança tenha impacto comprovadamente maior
se ela ocorrer antes do aparecimento dos sintomas (período em que comumente os
exames são solicitados) e que ele causa poucos danos, entende-se por danos desde
erros nos exames (resultados de falsos positivos ou falsos negativos), dor, dificuldade
na coleta, custo financeiro, até sobre-diagnósticos. Sobre-diagnóstico, diferente de
falsos positivos, é quando as anormalidades existem, mas não causariam desfechos
ruins na saúde das pessoas, por isso saber sobre a existência delas causa mais dano
do que benefício (BRODERSEN et al., 2018).
Por outro lado, mudar hábitos previnem doenças (prevenção primária), no caso
a alimentação, mas há toda uma indústria de marketing, todo um modo de vida
centrado em consumo, em agilidade que impede as pessoas de fazerem a própria
comida, comprarem de pequenos produtores, cozinharem em casa, entre outros.
Estamos tão absorvidos pelas demandas do dia a dia, do trabalho, que fica muito mais
fácil pedir um exame de glicemia anualmente do que cuidar diariamente do que se
come. Médicos e profissionais de saúde estão tão inseridos nesse contexto que
também não refletem sobre essa prática e seguem repetindo o mesmo exame
anualmente. Como se exames normais anuais prevenissem doença.
Há vários pontos que merecem discussão nessa consulta. A primeira delas é a
excessiva preocupação e medo de doença em uma criança de 9 anos de idade.
Barksy (1988) descreveu no New England Medical Journal, o paradoxo da saúde em
que os indicadores de saúde nos últimos 30 anos e especialmente nos países
desenvolvidos, estão cada vez melhores, mas a preocupação com a saúde está cada
vez maior.
Ao longo de 15 anos de experiência como médica de atenção primária, com
foco na saúde da criança, tenho vivenciado essas experiências de uso excessivo de
medicamentos e intervenções no cuidado em saúde da criança. Elas podem aparecer
desde as consultas de rotina, cujas necessidades podem ser discutidas, conforme
discorrido no capítulo anterior, até nos excessos de exames e intervenções.
Inicialmente me sentia incomodada com o excesso de exames e medicamentos com
56
Mãe: Ai Dra. Colhi às 8h da manhã, mas acabei dando uma mamadeira lá por meia
noite que ela costuma tomar.
Médica tranquiliza mãe e solicita exame confirmatório. Exame confirmatório
com resultado dentro dos padrões de normalidade.
Colesterol com valores normais para idade, criança com peso adequado
para idade se mostrando muito preocupada com o resultado desse exame.
Novamente, não há nenhuma diretriz que recomende realizar colesterol de
rotina em todos os adultos (deve ser individualizado), menos ainda em crianças
saudáveis (U. S. PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2016). Em seu livro “São
e Salvo”, os médicos de família espanhóis Juan Gérvas e Pérez-Fernandez (2016)
fazem uma reflexão interessante sobre o exame do colesterol:
Por algum motivo as pessoas entendem que exames anuais de colesterol são
necessários em adultos e crianças e esse entendimento reflete na prática médica e
dos outros profissionais de saúde. Uma menina de 9 anos, moradora de uma zona
rural quilombola, chegou até a receber tratamento medicamentoso com estatinas
devido a um colesterol de 230, o que é inaceitável e gera uma cascata de erros e
intervenções que se iniciou com a solicitação de um exame desnecessário, seguida
de um resultado dito aumentado tentando atingir um valor questionável e finalizando
com o tratamento com um medicamento que não mostra nenhum benefício clínico
nessa situação e com efeitos adversos comprovados, especialmente dor muscular
(GÉRVAS; PÉREZ-FERNANDEZ, 2016). Não podemos deixar de notar que se trata
de uma criança moradora de uma área rural quilombola, afastada de uma grande
cidade, com pouco acesso a diversas estruturas sociais como lazer, transporte,
educação, mas que tem acesso a um exame e a um medicamento desnecessários
que ganham importância na vida dessa família que se mostrava extremamente
preocupada.
Trata-se de um exemplo de "disease mongering" ou "mercantilização da
doença" que é a ampliação das fronteiras de diagnóstico de doenças à promoção
agressiva, através do marketing, da expansão do mercado de tratamento ou
60
Mãe: Doutora, o J. está tossindo muito eu gostaria de solicitar um xarope para tosse.
Med: Desde quando ele está se sentindo assim, D.?
Mãe: Ah, já tem uns dois dias, teve febre no primeiro dia, estou dando água, usando
soro no nariz conforme a senhora sempre fala, mas ainda não melhorou.
Med: Ele se sente cansado, com dificuldade para respirar?
Mãe: Não.
Médica examina, sem alterações.
Med: O pulmãozinhodo J.está limpo, não está cansado, com falta de ar, então
provavelmente é um resfriado. O resfriado dura 7-14 dias se a gente der xarope e 7-
14 dias se a gente não der. Inicialmente pode dar febre, seguida de tosse seca, depois
começa soltar o catarro e melhora. Caso evolua diferente disso você volta e eu
reavalio, pode ser?
Mãe: Se o pulmão está bom, pode ser....
Mãe: Doutora, tudo bem? Eu vim porque o médico do PA (Pronto Atendimento) pediu
uma reavaliação, a L. estava com muita tosse, ele fez RX da face e disse que era
sinusite. Estou dando antibiótico há 2 dias e queria saber se ela melhorou. Será que
é melhor fazer outro RX?
Med: Olá, tudo bem, D.? E ela melhorou?
Mãe:Ah doutora, não sei, parece que sim.
Med: Me conte mais como foi que tudo aconteceu e como ela está agora.
Mãe: Então, ela teve febre e tosse, aí no segundo dia eu levei no PA, o médico fez
RX e disse que era sinusite, desde então estou dando antibiótico. A febre melhorou,
mas ela ainda tosse um pouco e com catarro agora.
Med: Entendi. Algo mais?
Mãe: Não.
Med: Vamos dar uma olhada na Luana, então.
63
bilhões de reais e em 2013 esse valor saltou para R$11,88 bilhões. Os setores de
marketing da indústria farmacêutica gastam bilhões por ano para elaborarem
estratégias para aumentar a venda dos seus produtos.
Artigo publicado no Journal of the American Medical Association(JAMA),
reforça a influência da indústria na prescrição médica com a afirmação de que "não
existe almoço grátis”, ironizando a prática comum de a indústria em pagar refeições
aos médicos, comprovando como essa prática afeta a prescrição médica (DEJONG
et al., 2016). No Brasil, muitos médicos também possuem relação estreita com a
indústria farmacêutica influenciando diretamente a maneira com que eles prescrevem.
Observamos que pediatras que relatavam se atualizar através de materiais fornecidos
por laboratório prescreviam mais e pior os antimicrobianos em infecções respiratórias
do que os que se atualizavam de outras maneiras (ROCHA et al., 2012).
Peter Gotzsche (2016) em seu livro “Medicamentos mortais e o crime
organizado” faz uma crítica contundente aos métodos e ao papel da indústria
farmacêutica no sistema médico e chega a comparar seu modo de ação com uma
quadrilha criminosa. Ele explica em detalhes como são gastos milhões influenciando
as decisões médicas, financiamento de pesquisas sobre medicamentos e até de
periódicos responsáveis pelas publicações.
Jeane Lenzer (2015) comenta no BMJ que, apesar do Centro de Controle e
Prevenção de Doença (CDC) insistir em negar, recebem milhões de dólares em
financiamento da indústria farmacêutica e que isso afetou, de maneira importante, as
decisões tomadas em relação a protocolos, recomendações dadas sobre
determinados agravos e diretrizes de conduta de determinadas doenças nos Estados
Unidos. O CDC é uma agência do Departamento de Saúde e Serviços
Humanos dos Estados Unidos que trabalha na proteção da saúde pública e
da segurança da população. Seu objetivo é prover informações para embasar
decisões quanto à saúde. Ele concentra a atenção nacional no desenvolvimento e no
emprego de prevenção e controle de moléstias (especialmente contagiosas), saúde
ambiental, saúde ocupacional, enfermagem, prevenção de acidentes e atividades
de educação sanitária projetadas para aprimorarem o bem-estar da população
dos Estados Unidos da América. Não é aceitável que essa agência que toma decisões
tão importantes tenha uma relação estreita com a indústria farmacêutica.
Outro exemplo é o caso Influenza. Em 2009, houve um surto do vírus Influenza
A H1N1 no Brasil e no mundo; desde então, o uso de vacinas para prevenção e de
65
Para tentar influir nas decisões pertinentes ao setor, esses grupos se valem
de variadas estratégias de lobby, uma atividade legal no país, mas o lobby
mantém a prática invisível e gera um déficit democrático para o país...Entre
as principais estratégias de lobby utilizadas pelo setor está a doação para
campanhas eleitorais, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (STF). Em 2014, a Interfarma não doou para as campanhas
eleitorais... desenvolveu outras estratégias para influenciar os deputados.
Entre elas, uma parceria com o Brazil Institute do Woodrow Wilson
International Center for Scholars, com sede em Washington, que entre 2011
e 2013 patrocinou a viagem de 32 parlamentares aos Estados Unidos e à
Europa para participarem de seminários sobre Ciência & Tecnologia e
Inovação. Além de fazer um tour pelos países que visitavam, os
parlamentares de cada grupo participaram, em média, de 40 horas de
conferências sobre os mais diversos aspectos das políticas públicas sobre
inovação, patentes e pesquisa clínica. Porta giratória é a expressão coloquial
usada para classificar a contratação de ex-gestores públicos pela iniciativa
privada ou vice-versa. No Brasil, a prática também não é crime: são poucos
os cargos públicos que exigem do seu ocupante uma quarentena mínima de
quatro meses, após a demissão. Por isso, a porta-giratória é muito
utilizada pela indústria farmacêutica para influir nas decisões do país, já que
os ex-gestores públicos trazem com eles não só acesso privilegiado às
instâncias de poder, como também um acúmulo de conhecimento do modus
operandi do órgão em que atuou.
66
alergias. Os pais das famílias trabalham a maior parte do dia para receberem salários
cada vez menores e com menos direitos trabalhistas, tendo pouco tempo para
comprarem alimentos saudáveis e prepará-los e também para o lazer e atividades
físicas, mas têm acesso a exames de glicemia e de colesterol anuais. Determinantes
sociais têm impacto maior na saúde do que acesso aos serviços sanitários; assim eles
devem ser considerados tão ou mais importante que o acesso aos medicamentos
quando se pensa em uma sociedade saudável (ILICH, 1975; REDE NOSSA SÃO
PAULO, 2019).
69
Med: Temos um grupo de crianças aqui na unidade, o que você acha, de antes de
darmos remédio ele participar desse grupo? Ser observado pela equipe e aí tentamos
entender o que está acontecendo?
Mãe: Pode ser...
Med: Porque veja, M., esses medicamentos são fortes, ele está bem, esperto, já sabe
ler e escrever, será que ele precisa mesmo de remédio? Será que não estamos
querendo que ele seja igual às outras crianças? As pessoas são diferentes...Não são
todas as crianças que vão se adaptar ao modelo de ficar sentados na escola apenas
ouvindo, quietos, e nem por isso precisam de calmantes...
Mãe: Isso é verdade, né doutora?
Med: Vamos tentar assim, então?
Mãe: É....pode ser....
A consulta descrita acima é muito frequente na APS; cada vez mais as escolas
encontram crianças com comportamento que elas consideram diferente do esperado,
ou que incomodam alunos e professores, que atrapalham as aulas; entendem que
pode se tratar de TDAH e encaminham ao médico já sugerindo que a criança deva
receber um medicamento para melhorar a concentração.
Constituído na década de 70 o TDAH tem seu diagnóstico cada vez mais
ampliado. Supõe-se, hoje, que a doença afete 5% das crianças em idade escolar.
Seus critérios biomédicos para diagnóstico incluem padrão persistente de desatenção
e/ou hiperatividade, identificado em pelo menos dois contextos e pode estar associado
à impaciência e impulsividade com prejuízo às atividades acadêmicas e familiares. O
diagnóstico é clínico baseado em história colhida em consulta médica utilizando
critérios e questionários, como é feito com várias doenças que envolvem o psiquismo.
O diagnóstico dessas doenças, no entanto, gera muita controversa e se baseia em
questionários publicados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM).Considerada a "bíblia da psiquiatria" o DSM é um guia publicado pela
Academia Americana de Psiquiatria que categoriza e classifica as doenças mentais a
partir de questionários validados. Diferente de doenças com padrão biomédico, nas
quais encontramos exames laboratoriais ou de imagem diferentes do esperado ou
alterações no exame clínico, as doenças psíquicas baseiam-se em sentimentos,
sofrimento e comportamento humano, envolvendo questões filosóficas e sociais o que
torna seu diagnóstico ainda mais complexo. Seria a medicina capaz de separar
71
Mãe: Porque ela... eu...perdi meu marido, faz...ela tinha 9 meses e ela é meio...ela
pergunta muito, chora muito...
Med: O que aconteceu com ele?
Mãe: Ele morreu assassinado...
Med: E ela não lembra dele, né?
Mãe: Não...
Med: Mas pergunta dele?
Mãe: Sim... E ela é muito nervosa...
Med: E você, J., ainda sente muita falta dele? Pensa muito no que aconteceu?
Mãe: Demais...
Med: Deve ter sido muito difícil, perder o marido assim e cuidar sozinha da bebê
pequena...
Mãe: Demais...
Med: E você procurou ajuda? Tem alguém para conversar sobre isso?
Mãe: Não... mas a A. é muito nervosa, não posso falar nada...Se eu falo as coisas
para ensinar ela já fica (respira fundo) nervosa, sabe?
Med: Quando ela é contrariada?
Mãe: É....
Med: E quem mora na casa?
Mãe: Eu, ela e minha mãe...E minha mãe, ai é difícil viu? Eu vou corrigir ela e minha
mãe entra no meio...
Med: Entendi...
Mãe: É terrível...
Med: E você já chegou a conversar com a sua mãe?
Mãe: Já sim...Converso direto, ela fala que eu estou errada...é duro criar com avó...
Med: Você trabalha fora?
Mãe: No momento não...
Med: Entendi...
Mãe: Eu estou procurando, né? Mas está difícil achar emprego, meu Deus! Mas
Graças a Deus eu sou pensionista, tenho pensão dele...
Med: E na escola, J., tem alguma reclamação?
Mãe: Não, na escola ela vai muito bem...A professora elogia ela...Fora da minha casa
ela é uma, dentro da minha casa ela é totalmente diferente.
Med: E porque você acha que isso acontece?
76
de questionários com perguntas do tipo: "me sinto triste todos os dias", "me sinto triste
alguns dias” (BECK et al., 1961). Será que estamos mesmo oferecendo saúde?
Não se trata de culpar os profissionais de saúde. A realidade é que a taxa de
esgotamento em médicos, em especial da APS é muito alta, e lidar com condições
difíceis de vida contribuí para isso e torna o trabalho frustrante (MORELLI; SAPEDE;
SILVA, 2015). Medicalizar acaba sendo algumas vezes a solução mais rápida e com
a qual o profissional de saúde tem mais familiaridade.
Novamente um problema multifatorial, complexo e que depende de vários
setores da sociedade, mas não podemos deixar de falar sobre eles se temos a
pretensão de oferecer um cuidado em saúde integral.
79
6 CONCLUSÃO
A saúde deve ser um meio para que possamos desfrutar a vida e não um fim.
A busca da saúde pela saúde não faz sentido. Os serviços médicos e de saúde, com
influência - muitas vezes inconsciente -do marketing da indústria farmacêutica e pela
possibilidade de ganho financeiro dizem a pessoas sadias que elas estão doentes e
necessitam de medicamentos; expropriaram a saúde das pessoas, das famílias e das
crianças, tornaram-nas dependentes desses cuidados (fica muito claro em várias das
consultas a demanda por medicamentos e intervenções), mas parecem, depois, não
saber bem que tipo de cuidado oferecer. Expropriam a saúde e fazem o quê com ela?
As pessoas foram perdendo a autonomia e a capacidade de autocuidado e se
tornando cada vez mais dependentes de profissionais para resolverem questões da
vida cotidiana. Os profissionais e os serviços de saúde, especialmente públicos, estão
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Nessa tirinha, de Bill Watterson, Calvin faz uma crítica importante a esse
movimento que limita a liberdade e a criatividade das crianças:
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