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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Maria Carolina Pereira da Rocha

Medicalização da infância: um olhar sobre o cuidado em saúde da criança

Doutorado em Ciências Sociais

Antropologia

SÃO PAULO/SP

2020
Maria Carolina Pereira da Rocha

Medicalização da infância: um olhar sobre o cuidado em saúde da criança

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Ciências Sociais, sob a
orientação da Professora Doutora Terezinha
Bernardo.

SÃO PAULO/SP

2020
Banca Examinadora

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A saúde é um estado de resistência. Resistência à própria doença. Resistência
também à violência e ao assédio, resistência às drogas, resistência à exploração,
resistência à comida de má qualidade, resistência à poluição, resistência à condições
precárias de habitação, resistência à indústria farmacêutica, incluindo resistência à
mercantilização da saúde e ainda resistência às vezes, à própria medicina.
(Marc Jamoulle)
Para Maya, que mudou minha visão sobre a vida, o mundo e a infância dedico esse
estudo
A presente tese foi realizada com apoio de bolsa pela Fundação São Paulo
(FUNDASP).
AGRADECIMENTOS

À minha querida PUC/SP que contribui com a minha formação desde 2003,
como médica e agora como pós-graduanda, ensinando-me que não se faz saúde sem
transdisciplinaridade e sem solidariedade. Sou muito grata por ser parte dessa
universidade;
À querida Faculdade de Medicina de Sorocaba que me formou e me acolheu
como professora;
À Universidade de Sorocaba que ampliou meus horizontes em meu mestrado;
Ao querido professor Florenzano, que me inspirou com a antropologia e me
apresentou as ciências sociais;
À querida professora Terezinha Bernardo que me acolheu com tanta
solidariedade e empatia;
Aos colegas do curso de doutorado que me acolheram com carinho e paciência;
Aos alunos da Faculdade de Medicina de Sorocaba que me inspiram e me
instigam a tentar ser melhor;
Aos funcionários da biblioteca da Faculdade de Medicina de Sorocaba que me
apoiaram sempre que necessário;
Aos médicos de família que conheci ao longo do caminho e me guiaram nessa
trajetória;
Aos queridos pacientes com os quais aprendo a todo momento;
Aos meus pais e minha irmã pela compreensão e por estarem sempre ao meu
lado;
Ao Fábio, meu companheiro de vida e de jornada acadêmica por ser meu
parceiro também de sonhos e por me proporcionar o melhor que poderia ter
acontecido ao longo dessa jornada, minha filha Maya.
RESUMO

Rocha, MCP. Medicalização da infância: um olhar sobre o cuidado em saúde da


criança.

O cuidado em saúde pode ser oferecido de diversas maneiras; historicamente ele


passou de um modelo pouco científico, ligado à magia e à espiritualidade, para um
modelo curativo, científico e biomédico. Esse paradigma veio acompanhado do
aumento no consumo de medicamentos, procedimentos e intervenções que passaram
a ser vistos como necessários para o cuidado em saúde ser considerado bom e
passamos a medicalizar alguns processos que podem ser considerados naturais da
vida. Medicalizar é o processo no qual os problemas humanos são definidos e tratados
como médicos, de forma reducionista, individualista e com viés tecnológico. Esse
estudo tem o objetivo de compreender a medicalização do cuidado em saúde na
infância através da análise de gravações de consultas médicas pediátricas de um
serviço de saúde público de Atenção Primária. As demandas de saúde foram divididas
em: consulta de rotina de crianças saudáveis, a puericultura, demanda por
medicamentos e exames laboratoriais (checkups), e demanda por medicamentos
ligados ao comportamento, que foram analisados sob o ponto de vista da prevenção
quaternária, mercantilização da saúde, expropriação da saúde, indústria farmacêutica
e medicalização da vida.

Palavras-chave: Prevenção quaternária; saúde da criança; medicalização.


ABSTRACT

Rocha, MCP. Medicalizationoflife: a look atchildhealthcare

Health care can be offered in many ways, historically it has moved from an unscientific
model, linked to magic and spirituality, to a healing, scientific and biomedical model.
This model was accompanied by the increase in the consumption of medicines,
procedures and interventions, which were considered necessary for health care to be
considered good and we started to medicalize some processes that can be considered
natural in life. Medicalization is the process in which human problems are defined and
treated as medical, in a reductionist, individualistic and technological way. This study
aims to understand the medicalization of childhood health care through the analysis of
recordings of pediatric medical consultations of a public primary care service. The
health demands were divided into: routine consultation of healthy children, child care,
demand for medicines and laboratory tests (check ups) and demand for behavioral
drugs, which were analyzed from the point of view of quaternary prevention,
commodification of health, expropriation of health, pharmaceutical industry and
medicalization of life.

Keywords: Quaternary prevention; child health; medicalization.


LISTA DE SIGLAS

APS Atenção Primária a Saúde


BMJ British Medical Journal
CAVB Centro Acadêmico Vital Brasil
COBEM Congresso Brasileiro de Ensino Médico
DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
ENEM Encontro Nacional do Ensino Médico
FCMS Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde
JAMA Journal of the American Medical Association
MED Médica
MFC Médico de Família e Comunidade
NASF Núcleo de Apoio a Saúde da Família
NUMTROP Núcleo de Medicina Tropical
OMS Organização Mundial da Saúde
PMMB Programa Mais Médicos para o Brasil
PNAB Portaria Nacional de Atenção Básica
PROVAB Programa de Valorização da Atenção Básica
PUC/SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SBD Sociedade Brasileira de Diabetes
SUS Sistema Único de Saúde
TDAH Transtorno de Déficit de Atenção de Hiperatividade
UNIFESP Universidade Federal de São Paulo
UNISO Universidade de Sorocaba
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Foto do bairro Vila Sabiá onde o estudo foi realizado .............................. 31
Figura 2 - Esquema dos níveis de prevenção .......................................................... 52
Figura 3 - Tirinha de Bill Watterson .......................................................................... 81
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13

1.1 Justificativa........................................................................................................ 25

2. OBJETIVO E METODOLOGIA ............................................................................. 29

3 A CONSULTA DE ROTINA DA CRIANÇA SAUDÁVEL ...................................... 33

3.1 Cuidado em saúde da criança com foco no empoderamento ....................... 48

4 PREVENÇÃO QUATERNÁRIA E A SOLICITAÇÃO DE EXAMES E


MEDICAMENTOS DESNECESSÁRIOS .................................................................. 51

5 A MEDICALIZAÇÃO DE PROBLEMAS SOCIAIS E PSIQUICOS NA INFÂNCIA 69

6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 79

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 83
13

1 INTRODUÇÃO

Na Antiguidade, o modelo conhecido como mágico-religioso ou xamanístico,


entendia que as doenças poderiam ter origem natural ou sobrenatural. Sacerdotes,
feiticeiros ou xamãs eram os seres capazes de reconectar as pessoas e o cuidado em
saúde era centrado nessas conexões. A medicina holística de origem hindu e chinesa,
entendia a falta de saúde como desequilíbrio entre os elementos que compõem o
organismo humano. Elementos físicos como insetos, astros e clima seriam os
responsáveis por iniciar esse desequilíbrio (HERZLICH, 2004).
No século VI a.C., Hipócrates foi o primeiro a tentar encontrar explicações não
sobrenaturais para o processo saúde-doença. Criou a Teoria dos Humores na qual
ele enfatizava a importância da relação do homem com o meio através dos elementos
água, terra, fogo e ar e que a desarmonia entre esses humores seria o causador das
doenças (HERZLICH, 2004).
A medicina científica, biomédica tem seu início a partir do século XVI e segue
até a atualidade. O Método de Descartes (séculos XVI e XVII) definiu as regras que
constituem os fundamentos do seu enfoque sobre o conhecimento: não se deve
aceitar como verdade nada que não possa ser identificado como tal; deve-se separar
cada parte a ser examinada em quantas partes forem necessárias para compreendê-
la; ordenar o pensamento, a partir do simples até o mais complexo; rever
exaustivamente os componentes de um argumento (HERZLICH, 2004). O corpo
humano passa a ser visto como um conjunto de partes e contribui para a mecanização
do processo saúde-doença (BARROS, 2002).
Foi também no Renascimento que a explicação para as doenças começou a
ser relacionada às situações ambientais pela primeira vez. A descoberta dos
microrganismos (teoria microbiana) derrubou a teoria dos miasmas (a de que seriam
os gases provenientes de putrefação, os causadores de doenças) e passa a entender
as doenças como causadas por microrganismos que deveriam ser identificados e
estudados. Ambas as teorias associam a doença ao ambiente, impulsionando a
revolução sanitária (HERZLICH, 2004). Se por um lado esse movimento colabora para
o aumento expressivo do conhecimento técnico sobre doenças, por outro, contribui
para a objetificação das pessoas e para a medicalização do processo saúde-doença.
A Revolta da Vacina (1904), exemplifica bem esse período no qual, liderada
pelo sanitarista Oswaldo Cruz, o enfoque da saúde pública eram atividades
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preventivas praticadas a partir da medicina de polícia, na qual as pessoas perdem a


autonomia sobre o próprio corpo sob risco de punição. Frente à epidemia de varíola e
sem receberem qualquer explicação, as pessoas foram obrigadas a tomar a vacina
ou poderiam ser presas.
O entendimento de que as doenças são relacionadas ao meio ambiente
contribuiu, nesse período, para a expulsão das pessoas de suas casas e para a
demolição de cortiços e casebres afastando-as do centro da cidade e obrigando-as a
ir para a periferia em um movimento higienista (PORTO, 2003).
Nesse mesmo período, em 1910, foi publicado o livro Medical Education in the
United States and Canada, documento conhecido como Flexner Report ou Relatório
Flexner, por ter sido elaborado por Abraham Flexner, pesquisador social e educador
norte-americano. Esse relatório foi apoiado pela Fundação Rockefeller e surge em um
momento em que as grandes corporações e o interesse do mercado aproximam-se
das escolas médicas. Ele contribuiu, também, para o aprofundamento do ensinamento
médico, padronizando e organizando o ensino nas escolas de medicinaa partir de uma
prática biomédica, fragmentada e mercantilizada, centrada na doença, no hospital e
no mercado e seu reflexo é sentido até hoje na prática e na formação médica
(PAGLIOSA; DA ROS, 2008).
Na década de 80, surge o Movimento da Reforma Sanitária, dando início ao
processo de introdução de mudanças na saúde com focos na equidade, eficiência da
gestão e efetividade das ações. Os modelos higienista e biomédico passam a ser
desafiados pelo modelo que considera a saúde em seu amplo sentido baseada nos
determinantes sociais de saúde os quais entendem que modos de vida, moradia,
lazer, emprego também interferem no processo saúde-doença. Em 1978, ocorre a
Conferência de Alma-Ata (DECLARAÇÃO...,1978), cuja principal meta social era a
"obtenção por parte de todos os cidadãos do mundo de um nível de saúde, no ano
2000, que lhes permitissem levar uma vida social economicamente produtiva, focada
nos "cuidados primários em saúde".
Diante desse movimento mundial, em 1986 ocorre a VIII Conferência Nacional
de Saúde que diferiu das demais por ter caráter democrático e dinâmico partindo de
conferências municipais e estaduais com a presença de delegados de todo país
representando as forças sociais ligadas à saúde. Materializou-se em 1988 com a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS) que posiciona a saúde como direito
universal e função do Estado. Além do foco em cuidados primários, o SUS tem como
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princípios doutrinários: universalidade, equidade de acesso e integralidade no


cuidado. Seus preceitos organizativos são: regionalização e hierarquização,
descentralização, participação social e complementaridade do setor privado quando
necessário, porém com financiamento público (BRASIL, 1990).
Os cuidados primários, essenciais em saúde, são baseados em métodos e
tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis.
Essas são colocadas ao alcance universal de indivíduos, famílias e da comunidade
mediante sua plena participação e a um custo que ela e o país possam manter em
cada fase de seu desenvolvimento. Representam o primeiro nível de contato dos
indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual
os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde
pessoas vivem e trabalham constituindo o primeiro elemento de um continuado
processo de assistência à saúde (STARFIELD,2004).
Está muito bem determinado que países os quais apresentam bons resultados
em saúde são os que contam com Atenção Primária à Saúde (APS) forte e que atua
por meio de seus atributos, com especialistas médicos de família e a partir de
preceitos da medicina baseada em evidências e prevenção quaternária (GÉRVAS,
2011; STARFIELD, 2004, 2012a; STARFIELD; GÉRVAS; MANGIN, 2012b;
STARFIELD et al., 2008).
Para garantir a autonomia e devido respeito às diferenças das características
de cada município brasileiro, o princípio da descentralização atribui aos municípios a
gestão da Atenção Primária, seguindo diretrizes nacionais elaboradas pela Portaria
Nacional de Atenção Básica (PNAB) sendo que a organização da APS é feita pela
Estratégia de Saúde da Família (ESF) (BRASIL, 2017). Mesmo sendo bem
estabelecidos que modelos de saúde focados em APS forte e resolutiva são os que
apresentam melhores resultados e melhor custo-benefício são poucos os municípios
que investem em modelos eficazes.
A descentralização da gestão da APS gera grande heterogeneidade de
modelos, que vão desde APS fortes e resolutivas, como o município de Florianópolis
(SISSON et al., 2011), a modelos mistos e que não contemplam os atributos com
qualidade, como no município de São Paulo (BRUNELLI et al., 2016) e locais ainda
precários centrado em especialistas e serviços de emergência.
Associado a essa heterogeneidade, 22,8% das pessoas possuíam planos
privados de saúde em 2017. Neles, a cobertura em APS varia entre 10 a 30%
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(MASSUDA et al., 2018), centralizando a maior parte dos cuidados nas mãos de
especialistas, gerando um imaginário de que se trata do melhor modelo.
A resolutividade esperada para uma APS forte é em torno de 85% (ALMEIDA;
GIOVANELLA; NUNAN, 2012), de modo que apenas 15% das pessoas precisariam
de especialistas, demonstrando que a maioria delas não precisaria dessa atenção que
costuma ser cara e nem sempre eficaz. O cuidado especializado deve ser deixado
para questões muito específicas. A generalização desse tipo de oferta de atendimento
é pouco eficaz e ocasiona pouca satisfação nas pessoas porque não considera o
contexto da doença e nem seu desenvolvimento ao longo do tempo, sendo uma
ameaça à equidade na medida em que nenhum país tem recursos ilimitados, além de
contribuir para um olhar mais focado em medicamentos (STARFIELD, 2004).
A principal prática de cuidado médico dentro dos serviços de APS é a chamada
consulta, que pode ser oferecida pelo médico ou por qualquer outro profissional de
saúde. É nesse encontro entre médico-pessoa que se dará o cuidar em saúde. O olhar
biomédico, centrado na doença, propõe um roteiro de perguntas que o profissional
deve realizar para nortear o raciocínio clínico com objetivo fundamental de fazer um
diagnóstico e de propor um tratamento. Esse roteiro é conhecido como anamnese. O
livro do Porto (2013), é uma das referências mais conhecidas desse modelo de
atendimento. Trata-se de um roteiro bem dirigido que foca no diagnóstico médico, na
doença. Ele oferece pouco ou nenhum espaço para fala livre e para entendimento do
significado da doença ou dos sintomas para aquela pessoa ou família. Propõe que as
perguntas sejam divididas em: identificação, queixa principal e duração, história da
doença atual, interrogatório dos outros aparelhos, história pregressa, históricos
fisiológico, familiar e social. Embora até haja um espaço para questões sociais e
familiares, ainda é feito de maneira muito dirigida e centrada em aspectos ligados
unicamente à doença.
A questão aqui é que boa parte das pessoas saem das consultas médicas sem
diagnóstico biomédico e, para a maior parte delas, mais importante do que o nome da
doença é como ela se sente, o impacto disso em sua vida e as ideias e expectativas
que ela tem em relação à doença. Quando a equipe de saúde não é capaz de abordar
essas questões, em geral as pessoas não saem satisfeitas da consulta. No modelo
de atendimento centrado na doença, deixamos de lado o que realmente importa para
aquela pessoa ou àquela família.
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Contrapondo a esse modelo, existe uma outra maneira de organizar o


atendimento, proposto pela canadense Moira Stewart et al. (2018). Esse método de
atendimento é centrado na pessoa e no impacto do sintoma ou da doença na vida
dela, propondo condutas terapêuticas compartilhadas e que a transforme em agente
da própria saúde. Trata-se de um método muito conhecido dentro da Medicina de
Família e Comunidade, mas ainda pouco familiar e usado nas outras especialidades
médicas: o método clínico centrado na pessoa. Na escola médica, em geral, médicos
não são treinados a atender dessa maneira e talvez seja esse olhar que falte para um
cuidado realmente integral. Um dos primeiros cuidados que se deve ter é trocar o
termo "paciente" por pessoa. O termo paciente passa uma ideia de passividade e
centra o cuidado na figura do médico de maneira paternalista e vertical, dirimindo a
autonomia de quem recebe o cuidado. Usar o termo pessoa passa a sensação da
pessoa como agente do próprio cuidado. A seguir, ele propõe que as consultas sejam
iniciadas com perguntas abertas, tipo: "Como eu posso te ajudar?" e a partir daí sejam
exploradas as demandas (que nem sempre são queixas), a experiência da doença,
os sentimentos, ideias, funções e as expectativas com aquela consulta. Entendimento
integral a partir do sentir-se doente, chamado de "illness" e da visão biomédica da
doença chamada de "disease", envolvendo um contexto próximo e distante, tomada
de decisão terapêutica e o estabelecimento de metas de maneira compartilhada,
mantendo próxima a relação entre a pessoa e o serviço de saúde, incorporando
promoção e prevenção à saúde e sendo realista com os recursos disponíveis naquele
local.
Apesar de ainda haver um método, trata-se de uma tentativa de um olhar
menos cartesiano para o encontro entre pessoas durante o cuidado em saúde.
Devemos considerar que nesse encontro tanto os cuidadores quanto as pessoas que
serão cuidadas trazem suas bagagens existenciais e que elas interferem na dinâmica
da troca de saberes e que, embora o cuidador possua o conhecimento biomédico,
ninguém sabe melhor como é viver com aquela doença e isso é especialmente
importante quando falamos de doenças crônicas.
Essa introdução é importante para contextualizar onde e como o material do
estudo foi colhido: em um serviço de Atenção Primária do SUS e por meio de
gravações de consultas realizadas pelo método clínico centrado na pessoa.
Também é necessário esclarecer minha história de vida e de trabalho, pois é a
partir dela que trago as minhas impressões sobre a prática médica que motivaram
18

esse estudo. Tenho 39 anos, sou médica, especialista em Medicina de Família e


Comunidade e Pediatria. Sou de Sorocaba, interior de São Paulo onde cursei o ensino
fundamental em uma pequena escola particular. Meu pai é médico, professor da PUC-
SP e minha mãe trabalha com ele como secretária. Quando nasci, minha mãe tinha
18 anos e meu pai 20 e estava no terceiro ano do curso de medicina. Aos 16 anos fiz
um intercâmbio de um mês em Oxford, Inglaterra, onde fiz um curso de inglês e morei
em casa de família. Terminei o ensino fundamental em 1998, aos 17 anos e passei
direto em Medicina na PUC-SP na última lista de chamada. Entrei na faculdade nova
e imatura, mas muito feliz e empolgada com a nova empreitada.
Durante a faculdade fui da Diretoria do Centro Acadêmico Vital Brasil (CAVB).
Participar do CAVB contribuiu muito para minha formação como médica, pessoa e
acadêmica. No Centro Acadêmico pude treinar habilidades como trabalho em equipe,
desenvoltura para negociações, política estudantil, organização de eventos, além de
ter feito muitas amizades. Participei de um Encontro Nacional de Estudantes de
Medicina (ENEM) em Londrina em 2001. Quando estava, com colegas, na Diretoria,
vasculhando alguns arquivos no CAVB descobrimos que havia um Convênio da PUC
com a Faculdade de Medicina de Santa Clara em Cuba. Conseguimos reativar o
Convênio e no terceiro ano, em 2000, fiquei um mês na Faculdade de Medicina de
Santa Clara, interior de Cuba onde fiz um estágio de Saúde Coletiva. Essa experiência
mudou a minha maneira de ver a medicina, o cuidado em saúde e especialmente me
mostrou uma nova forma de organização social. Enquanto no Brasil os médicos eram
todos brancos, ricos, iam para a periferia de carro atender doentes sobre os quais
pouco sabiam, em Cuba os médicos eram negros, atendiam na comunidade em que
moravam pessoas que conheciam de longa data de uma maneira integral e
humanizada; apesar dos poucos recursos, aquele tipo de atendimento parecia fazer
mais sentido para mim. A partir daí, iniciei um processo de reflexão mais profunda
sobre o papel social do médico.
Na época em que fiz faculdade não se falava em Medicina de Família e
Comunidade e por desconhecimento da especialidade no Brasil, acabei me
interessando pela Pediatria, que me parecia uma especialidade clínica que oferecia
um cuidado mais integral, menos biomédico e que também atuava na família. Entrei
na Liga Acadêmica de Pediatria, da qual fui presidente, para aprofundar meus
conhecimentos. Na Liga pude conhecer melhor a especialidade e entender as
principais doenças que acometem as crianças. Também organizava ações de
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promoção à saúde em algumas comunidades e atividades de Recreação Hospitalar


com as crianças internadas das quais participava. Foi por meio da Liga que tive
minhas primeiras experiências em pesquisa acadêmica e congressos médicos. Fora
da Liga, fiz uma iniciação científica sobre hipertensão arterial, onde tive a chance de
visitar várias unidades de APS em Sorocaba.
No quinto ano da faculdade, em 2002, participei do Projeto Rondon, na cidade
de Itapeva que realiza um Projeto de Cuidado integral e multidisciplinar em uma
comunidade.
No último ano da faculdade, em 2003, fiz parte do Internato na Faculdade de
Medicina de Lille, na França. Lá pude conhecer uma sociedade menos desigual que
a nossa, mas ainda com desigualdades, médicos predominantemente brancos, ricos,
porém um serviço de saúde público, universal e que realmente funcionava. Foi uma
experiência muito importante, pois aprendi uma nova língua, aprimorei meus
conhecimentos médicos, conheci pessoas, países e culturas diferentes.
No ano de 2004, iniciei a Residência Médica. Foram dois anos em pediatria na
PUC-SP (2004-2005) e um ano de residência médica em Infectologia Pediátrica na
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Escola Paulista de Medicina (2006).
A transição do mundo dos estudos para o do trabalho não foi fácil, ainda mais com a
intensidade que é o trabalho na residência médica. São 60h semanais, muitas vezes
mais do que isso, com noites mal dormidas, muita demanda de trabalho em um serviço
público de saúde com diversos problemas estruturais. Se por um lado a residência
médica aumenta rapidamente nossos conhecimentos técnicos, ela também eleva
nosso nível de stress, diminuindo, veementemente, a qualidade do sono e, com pouco
tempo para descanso, reflexão e atividades extracurriculares, desumanizamo-nos e
podemos nos tornar cínicos. Ao longo desses três anos, segui a vida acadêmica com
participações em congressos médicos e na UNIFESP colhi dados para o que viria a
ser a minha primeira publicação internacional.
No segundo ano de residência, em 2005, tive um respiro da vida acadêmica
hospitalar ao fazer o estágio optativo de um mês em Santarém, no Pará, no Núcleo
de Medicina Tropical da USP (NUMETROP). No estágio, atuei em comunidades
ribeirinhas, indígenas e percebi que o cuidado em saúde, que me parecia precário em
São Paulo, era ainda mais insatisfatório no Norte do Brasil. Se por um lado, recursos
e estruturas são escassos, a visão de comunidade, a importância de aspectos
culturais no cuidado em saúde, vínculo, relação médico paciente e empatia
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apareceram com força. Essa experiência contribuiu muito para a escolha da minha
área de atuação em infectologia pediátrica e, posteriormente, em Medicina de Família
e Comunidade. Meu interesse sempre foi mais focado em aspectos epidemiológicos
e determinantes sociais da saúde.
Após o término da residência médica, passei nas provas de Título de
Especialista em Pediatria e de Título de Especialista em Infectologia Pediátrica e fiquei
dois anos trabalhando, entre outras coisas, na periferia de uma grande cidade como
pediatra em uma Estratégia de Saúde da Família, onde trabalho até os dias atuais. A
assistência médica e o contato com as pessoas, com seu modo de vida, sempre me
atraíram e me instigaram.
Entretanto, após três anos de residência médica e dois anos no mundo do
trabalho, em local vulnerável e com estrutura precária, percebi que não estava me
tornando a médica que queria ser, pois me faltavam muitas coisas. Sentia falta de
reflexão, de estudo, de discussões e da vida acadêmica para que fossem ampliadas
minhas ferramentas, as análises de meu trabalho, o aprimoramento da minha prática
e ao mesmo tempo a manutenção da minha saúde mental para tentar realizar um
cuidado em saúde mais harmônico.
Inicialmente minha intenção era seguir o mestrado na UNIFESP, porém as idas
e vindas a São Paulo e a impossibilidade de trabalhar fora enquanto era feito o
mestrado tornaram-no muito difícil para mim. Não havia mestrado no Campus de
Sorocaba da PUC-SP, porém um mestrado em ciências farmacêuticas estava sendo
aberto na Universidade de Sorocaba (UNISO) e com uma linha de pesquisa que me
atraía bastante que era USO RACIONAL DE MEDICAMENTOS e havia um professor
que estudava o uso racional de antibióticos em crianças. Por fim, em 2008 ingressei
no mestrado em ciências farmacêuticas da UNISO, na linha de uso racional de
medicamentos. Esse é outro aspecto da atenção à saúde que me interessa e ao
mesmo tempo me incomoda muito. No curso de medicina, o cuidado é resumido a
consultas rápidas, focadas em biomedicina e espera-se que ela seja finalizada com
prescrição de medicamentos e solicitação de exames. A relação dos médicos e das
instituições médicas com a indústria farmacêutica, laboratórios e equipamentos
médicos sempre me incomodou e me pareceu um pouco promíscua. Os congressos
médicos, em especial de algumas especialidades, cheios de stands da indústria e de
aulas patrocinadas deixavam-me constrangida. Assim, esse mestrado, especialmente
nessa linha de pesquisa, fez bastante sentido para mim, além da oportunidade de
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conhecer outra área de atuação. Estudei uso indiscriminado de antibióticos em


crianças e concluí que médicos que se atualizam por materiais fornecidos pela
indústria farmacêutica prescrevem mais antibióticos e de maneira desnecessária.
Médicos sobrecarregados, que atendiam muitas pessoas por hora também
prescreviam de forma exagerada. Os resultados foram apresentados no 16°
Congresso Brasileiro de Infectologia Pediátrica em 2010 e publicados na Revista
Paulista de Pediatria em 2012. Minha defesa ocorreu em agosto de 2010.
No ano de 2008, eu me casei com o Fábio, com o qual compartilhei a vida,
estudo e trabalho. Fizemos nosso mestrado juntos, cursamos doutorado juntos, e
passamos a compartilhar uma vida acadêmica, além da vida de casal e essa parceria
contribuiu muito para tudo o que aconteceu a partir daqui.
No final de 2010, a Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP
(FCMS/PUCSP), no Campus Sorocaba, estava passando por uma grande reforma
curricular: muitos professores estavam saindo e vários concursos abriram-se para
substituição. No final de 2010, fui aprovada no Concurso como Auxiliar de Ensino da
Disciplina de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Sorocaba-
PUCSP, posto que assumi no início do ano letivo de 2011, com 10 horas semanais.
A faculdade passava por um momento de mudança do currículo, com foco em
metodologias ativas e, por esse motivo, passei a me envolver com educação médica,
fiz cursos de metodologia ativa e participei e apresentei trabalhos em algumas edições
do COBEM (Congresso Brasileiro de Educação Médica).
Após esse processo, fui ampliando minha carga horária e migrei a maior parte
dela para disciplina de Saúde Coletiva com foco em Medicina de Família e
Comunidade. O momento chave para essa mudança foi criação dos Programas de
Provimento pelo Governo Federal, inicialmente o Programa de Valorização da
Atenção Básica (PROVAB) do qual fui supervisora pela PUCSP de 2013 a 2016 e do
Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB) do qual fui supervisora entre os anos
de 2014 e 2016 e Tutora de 2016 até 2019. Participar desses programas modificou
intensamente a médica, a pessoa e a acadêmica que sou hoje. Optei por trabalhar
nas regiões do Vale do Ribeira, Itapeva e Itapetininga onde se encontram as áreas
mais vulneráveis do Estado de São Paulo e que contam com populações rural,
indígena, quilombola, caiçaras, entre outras. Além do provimento, os programas
possuem caráter educacional de modo que todos os médicos têm um tutor e um
supervisor vinculados a alguma Instituição de Ensino parceira. O tutor coordena o
22

trabalho de 10 supervisores e organiza as Reuniões Loco-regionais que acontecem


trimestralmente. O supervisor é responsável por 7 a 10 médicos, realiza visitas
mensais a esses médicos nas unidades de saúde, auxilia no desenvolvimento
acadêmico, articula com gestores e fica à disposição para qualquer dificuldade,
especialmente acadêmica. Rodar essa região toda, conhecer os mais diversos tipos
de unidades de saúde, culturas diferentes, meios de acesso à saúde, articular com
gestão, conhecer melhor os médicos cubanos, entender seu modo de ver o cuidado e
sua cultura foram aprendizados que, associados às leituras teóricas, proporcionaram-
me uma mudança de olhar e abriram portas para uma prática mais reflexiva da qual
sentia falta. O desafio de lidar com o preconceito dos colegas médicos contrários aos
programas, decidir enfrentá-los, arregaçar as mangas e ver de perto do que se tratava
tudo aquilo que as pessoas criticavam sem conhecer proporcionaram-me e vêm me
proporcionando amadurecimento. Hoje, voltei a ser supervisora, tenho críticas e
também consigo ver muitas coisas boas que aconteceram como reflexo do Programa.
O trabalho gerou uma publicação sobre acesso à saúde nessa região na Revista de
Ciência e Saúde Coletiva em 2016 em um número especial sobre o PMMB.
Academicamente, muitas coisas aconteceram a partir daí; definitivamente
mergulhei no mundo da MFC e do ensino médico. Estive em muitos congressos,
cursos, em todo o país, em alguns como palestrante (entre eles o II Congresso
Internacional de Saúde Pública do Delta do Parnaíba, em 2016 e o 13° Congresso
Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, em 2015), apresentei trabalhos
oralmente e no formato de pôster, publiquei em revistas de MFC, estive na Espanha
e na Itália fazendo cursos e conhecendo seus sistemas de saúde e conheci pessoas
incríveis que me têm guiado nessa caminhada. Em 2015, fui aprovada na prova de
Título de Especialista em Medicina de Família e Comunidade (MFC) e hoje, até por
uma questão ideológica, considero essa a minha especialidade médica e a que mais
faz sentido para mim (se realmente for necessário rotular). Juntos eu e o Fábio
ajudamos a reestruturar o internato de Saúde Coletiva da FCMS/PUSCP centrando o
foco em MFC, mas com atores das ciências humanas e das artes e temos tido um
feedback muito positivo dos alunos, da coordenação e das avaliações externas. Essa
está sendo minha quinta orientação de Iniciação Científica e todas foram realizadas
na Atenção Primária a Saúde ou Educação Médica.
Ainda na FCMS de Sorocaba, participo de atividades extracurriculares com os
alunos, organizamos um evento sobre violência e saúde da mulher, chamado “Maria
23

Maria” e, em 2018, foi criada a Liga Acadêmica de Medicina de Família e Comunidade


da qual sou a professora responsável.
Também pude apresentar o nosso internato em Saúde Coletiva, com foco na
manifestação artística como forma de avaliação em um Congresso Ibero Americano
de Medicina de Família e Comunidade em Lima, no Peru.
No entanto, de tudo isso, o mais significativa para mim foi conhecer de perto e
profundamente a Medicina de Família e Comunidade (MFC) e nela encontrar boa
parte das respostas ou, pelo menos, dos caminhos para muitas das perguntas que
me afligem sobre como realizar um cuidado de saúde harmônico, sobre o que é saúde,
sobre ser possível efetivar um Congresso Médico ético e independente da indústria
farmacêutica, sobre como concretizar um cuidado de ponta com tecnologia leve,
como fazer uma medicina e políticas públicas baseadas em evidências, sobre
prevenção quaternária (evitar expor as pessoas a medicamentos e procedimentos
desnecessários que podem causar mais malefícios do que benefícios), como realizar
um cuidado centrado na pessoa e não na doença e, por fim, como trabalhar com a
comunidade.
Sempre acreditei na importância da interdisciplinaridade e, portanto, nunca me
interessei em fazer mestrado ou doutorado em Ciências Médicas para reduzir cada
vez mais minha área de atuação em partes cada vez menores do corpo humano por
meio de estudos quantitativos, biomédicos e positivistas. Minha prática tem sido uma
tentativa de deslocar o olhar médico do eixo que, normalmente, nos é colocado.
Acredito que a medicina não seja uma ciência biológica e sim uma ciência humana
com bases na biologia e eu precisava entender mais de humanidades, precisava
entender melhor sobre as pessoas, seu modo de vida, sobre a sociedade e sobre
política. Até que o Prof. José Paulo Florenzano, da antropologia médica da FCMS,
apresentou-nos a Professora Terezinha Bernardo que, generosamente, aceitou nos
orientar nessa jornada. Iniciei o doutorado em 2015.
Também sempre acreditei no papel social do médico e da escola médica. Não
faz sentido fazer medicina para ter foco apenas em doenças. Nós, médicos, temos
sim uma dívida com a sociedade, somos parte de um todo, temos muitos privilégios
dentro desse todo e precisamos retribuir isso para a sociedade de alguma maneira,
como reflexo de nossa consciência social.
Em 2018, depois de algumas tentativas e de achar que ser mãe não faria parte
da minha vocação, descobri-me grávida. Maya nasceu dia 09 de março de 2019
24

transformando totalmente minha visão de mundo, da maternidade e dos cuidados em


saúde na infância. Assim, muito do que tinha escrito, reescrevi, transformei-me, meu
olhar sobre a saúde tornou-se ainda menos rígido, menos biomédico e mais integral
e sou só gratidão por ter aprendido tanto na prática ao longo desse último ano.
Se no mestrado estudei sobre o uso desnecessário de medicamentos na
infância sob o ponto de vista biomédico, agora estudei sob o ponto de vista cultural.
No mestrado, concluímos que há um excesso de prescrição de antimicrobianos para
infecções respiratórias em crianças e que parte do problema é que as pessoas
demandam esses medicamentos nas consultas médicas e muitos médicos acabam
cedendo, seja por desconhecimento, por medo ou pela dificuldade em convencer a
família de que aquilo não é necessário. Mas afinal por que as pessoas chegam
solicitando esses medicamentos? Por que as pessoas, as famílias, sentem-se mais
seguras medicadas? O que influencia essa sensação de segurança? Qual a
simbologia que o medicamento representa? Essas são algumas das minhas
perguntas motivadoras.
25

1.1 Justificativa

No Brasil, o cuidado em saúde é oferecido de maneira muito heterogênea,


podendo ser centrado no médico especialista, no generalista, nos serviços de
urgência e emergência e nas práticas integrativas. Dentro desse escopo há o cuidado
à saúde da infância, que pode ser oferecido pelo pediatra ou pelo médico generalista.
Tradicionalmente, o bom médico é visto como aquele que é capaz de dar diagnósticos
brilhantes ou de fazer procedimentos com perfeição, mas o cuidado da porta de
entrada nos Sistemas de Saúde, onde poderiam ser resolvidas 85% das demandas,
costuma ser menos valorizado. Atuar como médica pediatra nessa porta de entrada
me trouxeram questionamentos sobre o modelo de cuidado oferecido às crianças .A
questão é que a maioria delas não tem problemas de saúde e o enfoque biomédico
não é suficiente para suprir grande parte das demandas trazidas.
Durante o curso de medicina e da residência médica em pediatria, aprendi a
manejar situações de maneira biomédica, seguindo fluxogramas, diretrizes e
protocolos médicos. Tecnicamente tornei-me uma boa médica que conhecia ou pelo
menos sabia onde encontrar a maioria dessas informações e era capaz de manejar a
maior parte das doenças sem grande dificuldade. Fora dos consultórios, a conversa
entre os médicos era usualmente em tom crítico às pessoas que atendiam: "as mães
procuram à toa", "não esperam os três dias de febre e já correm para a emergência",
"já chegam pedindo medicamentos e exames", "falam demais e muitas coisas que não
importam e não focam no que importa", "pedem vitaminas, mas a criança está acima
do peso e come errado”, “precisamos educar os pacientes". Muitas vezes eu reproduzi
essas falas.
A questão é que quando começamos a usar o método clínico centrado na
pessoa, a entender as expectativas, as angústias e os medos daquelas que nos
procuram, muitas vezes nos deparamos com medos, angústias e desejos de realizar
exames e procedimentos que, de alguma maneira, lhes foram definidos como
necessários. E aí surgem as minhas perguntas: em que momento eles foram
colocados como necessários? Por que motivo? Como o cuidado de uma avó, caseiro,
domiciliar de um resfriado, por exemplo, passou a ser substituído por xaropes,
mucolíticos e antitussígenos que não têm nenhuma evidência científica de
apresentarem qualquer melhora no resfriado? Por que o RX de seios da face passou
26

a ser solicitado para sinusite por médicos e por demanda dos pais se não há nenhuma
evidência científica de que ele seja necessário para o diagnóstico? Por que famílias e
crianças que sabidamente comem alimentos industrializados cheios de sal e açúcar e
têm uma vida sedentária regada a celulares e televisores procuram o médico para
emagrecer? O que eles realmente esperam? Por que passamos acreditar que
vitaminas farão as crianças comerem melhor? Por que a ritalina é um dos
medicamentos mais prescritos do mundo? Por que levamos nossos filhos pequenos
e saudáveis ao médico mensalmente para verificar se há algo errado com eles? Por
que perdemos a capacidade de nos observar e de observar nossa família?
Medicalizar é o processo no qual os problemas humanos são definidos e
tratados como médicos, de forma reducionista, individualista e com viés tecnológico
(CLARK, 2019). Para Foucault (apud CASTRO, 2009, p. 299):

Não são os códigos que regem a sociedade, mas a distinção permanente


entre o normal e o patológico, a tarefa perpétua de restituir o sistema de
normalidade. As sociedades modernas estão submetidas a um processo
contínuo e indefinido de medicalização. As condutas, os comportamentos, o
corpo humano, a partir do século XVIII, integram-se a um sistema de
funcionamento da medicina que é cada vez mais vasto e que vai muito mais
além da questão das enfermidades. O termo "medicalização" faz referência a
esse processo que se caracteriza pela função política da medicina e pela
extensão indefinida e sem limites da intervenção do saber médico.

Ao longo da minha prática como médica de atenção primária, com foco na


saúde da criança, tenho vivenciado experiências com medicalização. Inicialmente me
sentia incomodada com o excesso de exames e medicamentos com poucas
evidências científicas de benefícios, o que me levou ao estudo do meu mestrado.
Ainda com visão muito biomédica, meu foco foi testar o conhecimento dos médicos
sobre os protocolos, julgando que o uso exagerado de medicamentos poderia estar
associado à falta de conhecimentos sobre os protocolos e recomendações médicas.
De fato, muitos médicos desconheciam as recomendações, especialmente os que
diziam se atualizar por meio de materiais da indústria farmacêutica (ROCHA et al.,
2012). Mas isso não me pareceu suficiente.
No decorrer dos anos, com a ampliação dos meus conhecimentos sobre
práticas de medicina de família e de comunidade e utilizando o "método clínico
centrado na pessoa" (STEWART et al., 2018) pude perceber que conhecer os
protocolos é parte do processo para realizar um cuidado de excelência, longe do todo.
Compreendi que essas demandas por medicamentos, exames e procedimentos,
27

muitas vezes, partem das pessoas que nos procuram, fazem parte da nossa cultura e
estão presentes tanto no inconsciente coletivo quanto na cultura médica e, hoje, meu
foco é entender por que elas acontecem e de onde vêm essas demandas.
28
29

2. OBJETIVO E METODOLOGIA

Esse estudo tem o objetivo de encontrar as principais demandas nas consultas


pediátricas em um serviço público de Atenção Primária em Sorocaba-SP e discutir
essas demandas sob o ponto de vista da medicalização, expropriação da saúde,
prevenção quaternária, mercantilização da saúde e papel da indústria farmacêutica
na prática médica.
O principal motivo pela busca de atendimento, ao longo de minha prática como
médica pediatra, foi, sem dúvida, a avaliação do crescimento e do desenvolvimento
de crianças saudáveis tanto ligadas aos padrões de normalidade como medidas,
alimentação, sono, como ligadas às demandas por exames de rotina para saber se
está tudo normal. O segundo motivo são as demandas respiratórios como resfriados,
obstrução nasal e infecções de via aérea em geral (otites, amigdalites e sinusites):
"meu filho não para de tossir, vim pedir um xarope para tosse" ou "ele está com dor
de garganta, preciso de um antibiótico" são falas muito comuns na consulta pediátrica.
Problemas ligados à alimentação também são muito frequentes: "ele come demais,
toma refrigerante no café da manhã "ou "preciso de uma vitamina para ele comer
melhor, ele só come besteira" são solicitações que aparecem muito e, por fim, mas
não menos importantes, as demandas ligadas ao comportamento lideradas pelo déficit
de atenção com ou sem hiperatividade, através de falas como, "meu filho não para
quieto na escola e a professora acha que ele tem hiperatividade e precisa de um
remédio, a ritalina" ou "ele anda agressivo, não me obedece, gostaria de um
encaminhamento ao psicólogo". Esses motivos de consulta coincidem com os dados
da literatura (GUSSO, 2009, 2011).
Diante desses motivos, proponho um estudo qualitativo centrado nas consultas
médicas, com material colhido por meio da gravação delas no serviço de saúde de
APS em um serviço público de Sorocaba-SP. As consultas eram realizadas por mim,
como médica da Atenção Primária, e as famílias concordaram e autorizaram a
gravação. Para evitar exposição das pessoas participantes os nomes foram trocados
pelas iniciais. O critério de inclusão foi consultas com famílias de crianças menores
de 12 anos na Unidade de Saúde Vila Sabiá em Sorocaba que concordaram com a
participação e autorizaram a gravação.
As consultas gravadas foram subdivididas em temas que apareceram com mais
frequência e foram discutidos à luz da medicina baseada em evidências,
30

medicalização, mercantilização da saúde, expropriação da saúde e prevenção


quaternária. O capítulo 3 trata da consulta de rotina da criança saudável; o 4, sobre a
demanda por exames e medicamentos, mais especificamente por exames de rotina e
medicamentos para resfriados e o quinto, sobre a medicalização de problemas sociais
e comportamentais, com foco na hiperatividade e no uso do metilfenidato (ritalina) e o
último, será a conclusão.
O material foi colhido a partir de gravações de consultas médicas em uma
Unidade de Saúde da periferia da cidade de Sorocaba-SP. Sorocaba é um município
com 671.186 habitantes segundo o Censo de 2018. O salário médio mensal dos
trabalhadores é de 3,2 salários mínimos (ano de 2016), sendo que 31,2% da
população têm renda per capita de até 1/2salário mínimo (ano de 2010). A cidade
possui um PIB per capita de 46.888,51 ocupando o 87º lugar no estado de São Paulo
e o 350º no país. Em 2017, a mortalidade infantil do município foi de 9,71 por mil
nascidos vivos, ocupando a 314º posição no estado. Possui 98% de cobertura de
esgotamento sanitário adequados. Sorocaba tem serviço de saúde de Atenção
Primária com cobertura de Estratégia de Saúde de Família de 27% (Fonte Prefeitura
de Sorocaba) com 44 equipes. A unidade de saúde onde o material foi colhido chama-
se Unidade de Saúde Vila Sabiá e atende os bairros: Zacarias, Vila Sabiá e João
Romão. Trata-se de um bairro periférico que se localiza nas margens da Rodovia
Raposo Tavares e que sofre bastante com pobreza, criminalidade e tráfico de drogas.
A unidade de saúde tem em torno de 8000 pessoas cadastradas e conta com duas
equipes de Estratégia de Saúde da Família, cada uma com um médico generalista,
uma enfermeira, dois ou três auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de
saúde além de dois pediatras e um ginecologista para apoio.
Trata-se de uma unidade-escola por isso conta com residentes de Medicina de
Família e Comunidade, residentes de enfermagem e apoio matricial e multidisciplinar
do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) para discussão de casos complexos.
A Faculdade de Medicina de Sorocaba/PUCSP também realiza atividades na unidade
em diversos períodos do curso o que contribui para a qualificação do cuidado e
ampliação do campo de ação das equipes. Trata-se de um trabalho muito desafiador
devido à alta vulnerabilidade social e à dificuldade de atuação da equipe nos
determinantes sociais de saúde.
A população assistida é periférica, pobre, com alta vulnerabilidade, moradora
de um local com altos índices de tráfico de drogas e muita violência. A maioria das
31

famílias vive de maneira disfuncional, com mulheres chefes de família, renda menor
que um salário mínimo, múltiplos casamentos, as crianças crescem sem a presença
dos pais, são frequentes familiares em situação de prisão, muitos recebem o bolsa-
família e dependem em sua totalidade do serviço público para ter acesso à saúde. Há
pouco acesso ao lazer. A escola do bairro oferece um cuidado pouco integral e durante
meio período, sem atividades extracurriculares. Há algumas igrejas no bairro e
predominam as religiões católica e neopentecostais. Há uma área rural no território,
bairro dos Morros. O estado é pouco presente no local, há áreas do Bairro dos Morros
sem saneamento básico e são frequentes as batidas policiais com violência, prisões
e morte. A maior parte das mães são jovens e a gravidez na adolescência é muito
comum. Abandono escolar também ocorre entre os jovens e são raras as pessoas
com nível superior de escolaridade.

Figura 1 - Foto do Bairro Vila Sabiá onde o estudo foi realizado

Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul


32
33

3 A CONSULTA DE ROTINA DA CRIANÇA SAUDÁVEL

Consulta de rotina de um bebê de 4 meses e sua mãe

Med: Oi F., como posso ajudar você hoje?


Mãe: Está tudo bem...vim para rotina mesmo...Só o ouvidinho, que eu fui levar ele
para fazer o exame e estava com cera, o médico mandou usar Cerumim® e voltar
em 7 dias.
Med: Ele está só no peito? Mama bem? Nenhuma dúvida ou dificuldade?
Mãe:Não... está tudo bem.
Med: Xixi, cocô, está tudo bem?
Mãe: Sim...
Med: E ele está firminho, esperto, sorridente?
Mãe: Nossa, estásuper esperto...
Med: Se ele está deitado ele tenta levantar sozinho, rola?
Mãe: Tenta, rola...
Med: Está conseguindo dar banho de sol?
Mãe: Sim...
Med: Vamos dar uma olhada nele.

Exame físico

Med: Tudo ótimo viu? Está tudo super bem, né B.?


Mãe: Sim...
Med: Precisa de alguma coisa?
Mãe: Não...
Med: Então até a próxima...Boa semana!
Mãe: Para você também...

A transcrição acima é de uma consulta de rotina de uma criança saudável em


que a mãe relata estar tudo bem com a criança. Embora tente fazer a consulta de
maneira participativa, fica muito claro que a médica seguiu um roteiro no qual vários
aspectos da vida da criança são questionados: alimentação, eliminações, rotina,
34

hábitos, desenvolvimento neuropsicomotor, exames de rastreio (exame da orelhinha)


entre outros.
A mãe não parece ter dúvidas ou dificuldades, mas ainda assim levou a criança
em uma consulta médica. Está implícito que a consulta de rotina da criança saudável
deve acontecer e é aceito culturalmente pela sociedade, mas diante desse relato
pode-se questionar: por que essa criança foi levada ao médico? Essa consulta é
mesmo necessária? Sob o ponto de vista científico, há evidências de que consultas
de rotina são necessárias para as crianças? Com que frequência? Qual o impacto
disso na saúde da criança e dessa família?
A consulta de rotina da criança saudável é vista, tradicionalmente, como um
momento importante e obrigatório para o bom crescimento e desenvolvimento delas.
Trata-se de um conjunto de normas que apresentam níveis de evidência científica
variados e que visam ao melhor desenvolvimento da criança (BONILHA, 2004). O
termo usado para esse atendimento é puericultura. Ele foi usado pela primeira vez
pelo suíço Jacques Ballexserd em 1762 e significa criação (cultura) da criança (pueri)
e é usado até os dias de hoje para se referir a esse tipo de cuidado em saúde
(MEDEIROS, 2011).
No Brasil, Carlos Arthur Moncorvo Filho (1971-1944) iniciou a história da
puericultura a partir da defesa da sociedade e da raça e da criação do Departamento
da Criança no Brasil e do Museu da Infância, onde ele abordava, com as famílias,
temas como doenças transmissíveis, comportamento, abandono e alcoolismo
(MEDEIROS, 2011).
Até a década de 20 o Brasil tinha a Europa como modelos de saúde,
especialmente os franceses e os alemães. Mas, a partir desse período, e de um
convênio com a Fundação Rockfeller foram financiadas as formações de muitos
especialistas pautadas pelo individualismo e pelas práticas de higiene com focos na
educação sanitária (SILVA, 2018). Esse modelo negava as questões sociais como
catalizadoras do processo saúde-doença e focava em problemas de higiene e moral
(MEDEIROS, 2011).
Bonilha faz uma reflexão sobre a prática da puericultura iniciada nesse período
(BONILHA, 2004, p. 8).

Muitos autores entendem a puericultura como uma prática social sujeita aos
mais diversos agentes políticos e econômicos, com motivos, objetivos e
consequências que extrapolam a simples elaboração de normas científicas
35

que assegurem o desenvolvimento da criança. Existiriam, assim, encobertos


sob a proposta de prevenir a mortalidade infantil através da educação,
outrosprojetos, como o do estabelecimento de um padrão de comportamento
não só para as crianças, mas para as famílias como um todo, de cunho
moralizante e baseado naquele considerado ideal pelas classes dominantes.
Assim, a puericulturarepresentaria a consolidação de um projeto iniciado na
Europa, no século 18, que visava à conservação das crianças, essencial
para os grandes Estados modernos, os quais mediam as suas forças pelo
tamanho de seus mercados e exércitos.

No Brasil, o cuidado e a preocupação com a infância têm origem no início dos


tempos republicanos quando a miséria assolava o Estado de São Paulo e jovens e
crianças trabalhavam para o sustento da família. Esse tipo de mão de obra era
responsável por cerca de 37% dos operários da indústria têxtil. Em 1927, criou-se o
Código de Menores no qual foi estabelecida como 12 anos a idade mínima para o
trabalho e que tratava o assunto superficialmente na medida em que as fiscalizações
eram precárias e não eram oferecidas alternativas às crianças e famílias. Nesse
contexto, surge a ciência como possibilidade de melhoria de questões sociais. A
Revista BRAZIL-MÉDICO, de 1924, ao enfatizar a importância da redução na
mortalidade infantil, reforça o caráter higienista do cuidado com a criança. Segundo
Silva (2018): na cultura da infância é que teremos de basear a luta pela melhoria da
raça.
O objetivo era conquistar vitalidade e robustez nas crianças por meio de um
ideal médico de beleza, saúde e vigor, a partir do qual as crianças eram classificadas
de “anormais”, “subanormais” ou “normais”. Nessa idealização também havia um
discurso silencioso a respeito de raça, já que mistura de raças não era vista com bons
olhos. A “Cartilha de Hygiene” publicada em 1923 e distribuída gratuitamente pelo
Governo de São Paulo ilustra bem o tom usado na época (SILVA,2018, p. 348):

Criança! Alimenta-te bem, dorme bem, vive sempre alegre! O Brasil necessita
que cresças forte, com muita saúde! Trabalhar para ser são e forte é ser bom
brasileiro; é construir uma Pátria engrandecida pela saúde de seus filhos.
Criança! Lembra-te deque és um pedacinho do grande povo brasileiro faz e
tudo ao teu alcance para que o Brasil esteja sempre unido. O Brasil deve ser
um só em todos os recantos de nossa terra; e, um só, agora e sempre.

Sua origem no movimento higienista, nacionalista, na prática da medicina de


polícia, focado no controle dos hábitos das crianças e de sua família faz com que até
os dias atuais o formato e a prática da consulta de rotina da criança saudável
carreguem a herança desse movimento.
36

Esse documento publicado pela Sociedade Brasileira de Pediatria sobre


puericultura (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2004) mostra que até os
dias de hoje há uma herança fortíssima desse período no modo em que são feitas
recomendações sobre como deve ser o cuidado com a criança:

Cabe ao pediatra ajudar a criança (e sua família) em todas as fases de seu


desenvolvimento de modo que ao atingir a fase adulta ela esteja apta a
exercer plenamente seu potencial. Para isso cabe ao pediatra acompanhar,
vigiar e proteger o crescimento e o desenvolvimento da criança desde o
momento do seu nascimento (ou mesmo antes) até o final da adolescência
(ou até depois). Isto significa ajudar a criar uma criança saudável,
considerando-se saúde no seu sentido abrangente de estado (processo
estável) de bem-estar físico, psíquico e social, o que implica não só em estar
livre de doença, mas também estar emocionalmente equilibrado e
socialmente integrado na família e na comunidade. A Puericultura se baseia
na consulta médica, cabendo ao pediatra/puericultor a tarefa
intransferível de educação médica da família para uma qualidade de vida
melhor no presente e no futuro.

Cabe ao puericultor atuar na prevenção, isto é, ele age mais para evitar,
afastar ou controlar os fatores de risco do que propriamente nas doenças. A
meta é fazer o diagnóstico e listar os problemas detectados, em relação à
alimentação, estado nutricional (desnutrição, anemia, obesidade),
imunização, crescimento, desenvolvimento neuropsicomotor e pubertário e
comportamento. Para isso o puericultor conta com os dados de anamnese e
exame físico.

[...] entrevista sobre as condições de vida da criança e as condições familiares


e ambientais, incluindo: 1. Condições econômicas e sociais da família (risco
social). 2. Condições de moradia (salubridade) e da creche/escola.
3.Alimentação (detalhada) habitual, ênfase no aleitamento materno. 4.
Funcionamento intestinal. 5.Habilidades de acordo com a etapa do
desenvolvimento. 6. Temperamento e personalidade, comportamento. 7.
Linguagem. 8. Acuidade visual. 9. Sono. 10. Disciplina (erros educativos). 11.
Atividades lúdicas e sociais (brincadeiras). 12. Escolaridade. 13. Vacinação.

Os termos usados pela Sociedade Brasileira de Pediatria no documento são


muito parecidos com os utilizados no início da puericultura. Ele que diz que a função
intransferível do médico é vigiar e proteger o crescimento da criança, garantindo
seu bem-estar em todas as instâncias, que ela esteja livre de doenças,
emocionalmente equilibrada e socialmente integrada na comunidade, em um discurso
muito parecido com o da época em que o principal objetivo da puericultura era ligado
ao controle. Em seguida, ele cita uma série de itens que o médico deve questionar
para conseguir tal função, um checklist comumente realizado nas consultas
pediátricas, seguido do termo educação médica da família para uma qualidade de vida
melhor no presente e no futuro. Há uma medicalização do processo de crescimento e
desenvolvimento, que nas comunidades tradicionais, sempre foram ligados à cultura,
37

ao modo de vida e à comunidade e passam a ser papel do médico. Tratam-se


claramente de demandas intersetoriais, muito mais ligadas aos determinantes sociais
de saúde, ao modo de vida, ao acesso à educação, lazer, moradia do que
propriamente médico. Esse discurso olha de forma biomédica e individualista para
uma questão muito ampla com um conteúdo moralizante, por exemplo, quando ele
fala de "erros educativos". Como se o médico fosse detentor de todo conhecimento
capaz de atuar e julgar qual o modo de vida correto.
Fato é que poucas das intervenções propostas nas consultas de rotina das
crianças saudáveis conseguem impacto em qualquer desfecho clínico sob o ponto de
vista das evidências científicas. Também não há um consenso sobre o número de
consultas necessárias, embora o número recomendado tenha aumentado nos últimos
anos. A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda 26 consultas pediátricas até os
5 anos de vida. A Academia Americana de Pediatria recomenda 14. O Institute for
Clinical Systems Improvement recomenda 10 a 12 dependendo da família. O Rourke
Baby Record do Canadá recomenda 8 a 10. E a recomendação mais radical vem do
Health for all children, Reino Unido, que sugere apenas duas consultas médicas, ao
nascimento e 4-8 semanas após com a possibilidade de consultas adicionais, a critério
da família aos 8 meses, 2 e 4 anos. Todo o restante do cuidado seria feito por
professores, enfermeiros, ortoptistas, visitadores domiciliares, em uma ideia menos
medicalizada e mais intersetorial sobre o crescimento e desenvolvimento da criança.
David Hall, que coordena o programa, diz que se tratam de recomendações
estritamente baseadas em evidências (BLANK, 2003).
Juan Gérvas e Mercedes Pérez-Fernandez (2015), médicos de família
espanhóis, no livro “La expropriación de la salud” dizem: “ revisão de saúde da criança
saudável, não tem sentido”. Por que preciso levar uma criança ao médico para que
ele lhe diga que ele está saudável? Por que tenho que medir as cabeças das crianças
mensalmente? Ahh... todos em casa temos cabeça grande! Há estudos comprovando
que não há qualquer impacto no desfecho de mortalidade ou melhora do
desenvolvimento com essa medida.
É nítido que o discurso da puericultura desse século pouco se modificou em
relação ao do século passado. Parece-me impossível que um médico, por meio do ato
da consulta médica, consiga atingir tais objetivos que estão muito mais relacionados
às condições de vida, hábitos da família do que propriamente à saúde.
38

É claro que essas questões também afetam a saúde; estudos mostram que o
código postal tem mais influência na saúde das pessoas do que o código genético,
mas cabe ao médico, em uma consulta de rotina, o controle sobre essas outras
questões? (ROBERT WOOD JOHNSON FOUNDATION, 2011).
No livro “Expropriação da Saúde”, Ivan Illich (1975, p. 12) afirma que os estudos
de morbidade demonstram que ela não foi afetada pelos médicos no último século,
mais do que foram afetadas pelos sacerdotes em épocas precedentes. Que os rituais
médicos não influenciaram mais positivamente os resultados em saúde que os rituais
religiosos aplicados anteriormente.

Desde o começo do século XVIII a criança francesa tem uma esperança de


vida superior à de seus pais. A diferença de geração em geração se acentua
mais entre 1899 e 1920... Seria grave erro explicar essas mudanças nas
taxas de mortalidade globais pelo progresso global da eficácia do ato médico.
A variação entre a esperança de vida de sucessivas gerações aparece no
Ancien Régime sem que no entanto na época tenham ocorrido progressos
terapêuticos notórios. Amplia-se com a revolução pasteuriana e
desaparece bem antes do surgimento recente do arsenal médico
contemporâneo. Em outros termos, os indicadores parciais que servem à
apreciação da eficácia dos atos médicos específicos não são utilizáveis
como indicador global.

Ele cita alguns exemplos e, entre eles, o controle das doenças infecciosas. A
tuberculose, por exemplo, que atingiu seu apogeu em Nova York em 1812, teve uma
queda em 1882, muito antes da identificação do bacilo e da criação dos sanatórios
para tratamento. O mesmo ocorreu em relação aos antibióticos, à cólera e ao tifo.
Quando a etiologia dessas doenças foi compreendida e tratamento adequado
estabelecido elas já tinham perdido muito de seu potencial de agressividade (ILICH,
1975).
Quando a causa de mortalidade muda para doenças crônicas, novamente o
regime alimentar e o estilo de vida interferem muito mais do que o cuidado médico em
si. Como impacto na saúde global em primeiro lugar encontram-se as condições de
alimentação, em segundo, condições de saneamento e apenas em terceiro, o acesso
a serviços médicos. Nem proporção de médicos/habitantes, nem meios clínicos
disponíveis, nem a quantidade de leitos hospitalares ocasionam mudanças profundas
nas taxas globais de mortalidade. Eles conseguem, no máximo, redefini-las (ILICH,
1975).
Em seguida, ele atribuía aspectos sociais à saúde global de uma população,
incluindo condições de vida, moradia, trabalho e habitação. Trata-se dos
39

determinantes sociais em saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2011). Em


novembro de 2019, a rede Nossa São Paulo publicou um mapa da desigualdade da
cidade de São Paulo demonstrando que a expectativa de vida na cidade de São Paulo
é de 68,7 anos em média, porém esse valor sobe para 80,6 se a pessoa morar em
Moema (bairro de classe alta) e cai para 57,3 se morar na Cidade de Tiradentes. É
como se você perdesse 23 anos de vida caminhando a distância de um quilômetro,
dado que corrobora a afirmação de Ilich (REDE NOSSA SÃO PAULO, 2019).
Verifica-se, então, que o cuidado biomédico interfere muito menos nos
resultados em saúde que as condições de vida.
Cientificamente falando, existem vários modelos de cuidados à criança
propostos no mundo que podem ser realizados por enfermeiras, médicos generalistas,
pediatras ou podem simplesmente não serem realizados. A realidade é que há poucos
estudos que conseguem comprovar que a realização desse atendimento gera
melhores desfechos em saúde (BLANK, 2003).
O que se vê é que se trata de uma prática com origem duvidosa, realizada de
forma muito heterogênea nos diferentes países do mundo e com pouca evidência
científica de benefícios, mas que está instituída como necessária na nossa sociedade
que culturalmente demanda essas consultas. Muitos anos dessa prática, associadas
à perda da vida em comunidade - já que em nossa sociedade urbana as pessoas
estão cada vez mais isoladas - fez com que as pessoas perdessem a capacidade de
cuidar do crescimento de um bebê e medicalizassem esse processo transferindo essa
responsabilidade para os médicos e profissionais de saúde. Esse procedimento é
chamado por Ilich (1975) e por Juan Gérvas e Mercedes Pérez-Fernandez (2015) de
expropriação da saúde. O texto abaixo mostra a consulta de duas avós em que isso
fica muito claro:

Consulta de rotina de um bebê de 9 meses com duas avós:


Med: Oi pessoal, tudo bem?
Avó 1: Oi Dra. Somos duas avós do bebê!
Med: Ahhh entendi...E a mãe, está trabalhando?
Avó 1: Isso...
Med: Ah, então esse é um bebê muito bem cuidado, né? Duas avós! E como que eu
posso ajudar vocês hoje?
Avó 1: Hoje era só consulta marcada mesmo...Ela já tirou as medidas dele lá...
40

Med: Tá ótimo peso, altura... Você tem alguma dúvida? Alguma dificuldade, vó M.?
Avó 1: Está correto o peso? As medidas?
Med: Está tudo certinho, olha, aqui está o peso dele, aqui a média para a idade dele
e os valores que podem ser considerados acima ou abaixo...o dele está bem na
média... (mostra o gráfico da Organização Mundial de Saúde)
Avó 1: Estamos dando o leite aqui do posto que deu certo para pegar...
Med: O Nestogeno®?
Avó 1: Isso....
Med: O que mais?
Avó 1: Comida estou dando aos poucos, papinha de legumes, às vezes eu ponho
carne ou peixe...
Med: Você cozinha e amassa, vó D.?
Avó 1: Não, eu coloco no liquidificador, porque eu tenho medo dele engasgar...
Med: Não precisa, viu? A gente não usa mais o liquidificador…A comida fica muito
liquida...Desde o começo a gente amassa...Funciona mais ou menos assim, dos 6 aos
9 meses. Você mistura os alimentos e amassa, a partir dessa idade, se vocês
comerem bem em casa, vocês podem dar o que tem em casa com as adaptações
necessárias. Se vocês comerem um legume e uma carne, é isso que você vai dar para
ele.
Avó 1: Mas não tem perigo de engasgar?
Med: Engasgar é muito difícil, o que acontece, às vezes, é o reflexo quando a comida
cai no lugar errado e na grande maioria das vezes ele consegue soltar sozinho.
Também é importante estar por perto para ajudar caso algo aconteça. Fique junto. E
vai dar certo, ok? E verduras, vocês têm dado?
Avó 1: Sim, coloco couve, brócolis...
Med: Frutas, M.?
Avó 1: Sim, ele come banana amassada...
Med: Então veja só, se ele come a banana amassada, vai conseguir comer os
legumes, não é mesmo?
Avó 1: Tá...
Med: Eu sugiro que vocês não deem mais nada, não precisa de pão, bolacha, danone.
Avó 2: A gente dá só quando estamos comendo, para ele não passar vontade...
Med: Cuidado, pois são alimentos industrializados, as crianças não nascem gostando
deles, a gente que ensina, e depois, muitos deles não querem mais a comida e só
41

querem besteira...Aí começa a ser um exercício mais difícil ainda que é mudar a nossa
alimentação....
Avó 2: É....
Med: Porque de verdade, M., a criança vai querer o que ela nos vê comendo e se nós
comemos mal, ela vai comer mal também. Então a gente precisa comer direito para a
criança comer direito, porque se ela está em uma casa que tem refrigerante,
salgadinho e bolacha, é isso que ela vai querer comer. É o hábito da família toda.
Avó 2: É....
Med: Então prestem bastante atenção porque é muito difícil e está na nossa cultura,
todos nós comemos esses alimentos, mas mais pra frente isso começa a
complicar...Agora estamos em uma fase boa, ainda dá tempo de ajustar...
Avó 2: Tentamos dar Danoninho, mas ele não quis...
Med: Eu sei que a gente faz com as melhores das intenções, ai é gostoso, aí ele fica
feliz.
Avó 2: E iogurte?
Med: Olha, só depois de um ano, natural, tem que olhar a lista de ingredientes quando
for comprar ou fazer em casa....
Avó 2: E suco? Suco ele gosta...
Med: Então, mas suco a gente não tem mais dado, acho que comentei com vocês, é
só depois de um ano porque as crianças estavam acostumadas a matar a sede com
suco e que com o tempo era substituído por suco de caixinha...O suco só pega o
açúcar da fruta...
Avó 1:Ahhh eu gosto de dar a laranja para ele chupar...
Med: Perfeito...
Med: Ele está bem firminho? Senta?
Avó 1: Ele senta, se arrasta, anda com andador....
Med: Andador...Então, nossa estou chata hoje, mas também não temos usado o
andador...
Avó 1: Por causa da coluna, né?
Med: Não exatamente, D., é que tem muito risco de queda, porque a criança perde o
controle e também começa a andar com a ponta dos pés.
Avó 2: Ah, mas o dele não é alto, ele não fica com a ponta dos pés...
42

Med: Mas tem as quedas.... Hoje se você entrar em sites de qualquer organização de
pediatria ele é contraindicado. Ia até parar de vender...Gente, eu sei que não é por
mal, mas são coisas que se a gente conseguir ajustar, vão ser ótimas para o bebê.
Med: As vacinas estão em ordem?
Avó 2: Sim.
Med: Xixi e cocô estão normais?
Avó 1: Sim...
Med: Vocês estão conseguindo dar banho de sol nele?
Avó 1: Damos sim...
Med: Está tomando alguma vitamina, M.?
Avó 1:Combiron® e Adera®...
Med: Certinho, mais nada?
Avó 1: Não...
Med: Vamos dar uma olhada nele então?
Exame físico
Med: Gente está tudo bem...Vamos manter as vitaminas e tomar esses cuidados que
conversamos, ok? Claro que o bebê é de vocês e vocês podem fazer como quiserem,
mas eu preciso falar o que é mais certo, hoje, né? Desculpa a chatice...
Avó 2: Imagina…não, está certo. Tudo certo então?
Med: Eu que pergunto, faltou alguma coisa, vovós?
Avó 2: Não...obrigada..

Nessa consulta fica muito claro como, de alguma maneira, as avós estão com
dificuldade em fazer o cuidado do neto saudável e como sofrem influência dos
elementos artificiais impostos pelo mercado, que vão desde alimentos industrializados
até andadores. O nascimento, o crescimento, o desenvolvimento, a procriação e a
morte são aspectos naturais da vida e não necessitam de intervenções médicas para
acontecerem. Durante séculos, as sociedades reagiram a esses processos de forma
coletiva, comunitária, espiritual e familiar. Justamente as avós, tradicionalmente vistas
como cuidadoras e apoiadoras do cuidado nas sociedades tradicionais, mostram-se
extremamente inseguras e necessitadas de orientação médica sobre como esse
cuidado deve ser realizado.
O desenvolvimento da medicina e dos equipamentos médicos foi tornando as
pessoas progressivamente dependentes dos médicos para cuidados antes delegados
43

à sociedade. Os conhecimentos sobre o corpo passaram a ser delegados apenas aos


médicos, sendo que práticas familiares e culturais eram criticadas e as mães eram
culpadas caso ouvissem avós, tias, comadres ou outras pessoas tidas como
“charlatões”. Vê-se a profissionalização da medicina e a elevação do status do médico
(SILVA,2018).
As pessoas foram perdendo a capacidade de lidar de maneira não profissional
com qualquer diferença encontrada em seu corpo, em seu comportamento ou mesmo
sobre cuidados em processos naturais da vida. Soluções caseiras e comunitárias
parecem estar sendo substituídas por soluções medicalizadas e mercadológicas.
Esse fenômeno é chamado por Ilich (1975) e reforçado por Gérvas e Pérez-Fernandez
(2015) de expropriação da saúde. Trata-se da castração da autonomia e do direito de
decisão das pessoas por parte dos médicos e dos serviços de saúde que passam a
decidir quem é são, quem é doente, quem é louco, e assim por diante, tornando-nos
vítimas dos nossos conhecimentos científicos.
Muito além dos indicadores de saúde há uma dependência social dos serviços
médicos. As famílias e as comunidades urbanas foram levadas a perder a capacidade
de cuidar do crescimento e do desenvolvimento de uma criança sem auxílio dos
serviços médicos. Fala-se bastante sobre a medicalização da velhice, sobre a
medicalização do parto, sobre medicalização no caso de doenças mentais, mas fala-
se pouco sobre a medicalização do crescimento e do desenvolvimento de crianças
saudáveis e da infância. Além de oferecer medicamentos no sentido farmacológico,
medicalizar também se refere a normatizar o crescimento e desenvolvimento das
crianças. O hábito de levar mensalmente o bebê ao médico, oferecer-lhe uma consulta
onde será orientada a melhor forma de dormir, se alimentar, se vestir, se relacionar
com os familiares, com a sociedade também é medicalizar e pode gerar muita
ansiedade e frustração nas famílias que tentam incessantemente atingir um padrão
de maternidade e paternidade tido como medicamente correto.
Não bastasse a questão da perda de autonomia e de pouco respeito às
individualidades e às formas do viver, aos poucos a saúde dessas famílias foi
expropriada contribuindo para a perda da capacidade de autocuidado.
A busca para atingir padrões biomédicos tidos como normais também pode
gerar muita angústia e é uma forma de medicalização, como na consulta abaixo:
44

Consulta de rotina de um bebê de 3 meses e sua mãe:


Med: Como eu posso te ajudar dessa vez, C.?

Mãe: A cólica acho que passou...

Med: Deu uma diminuída?

Mãe: Deu...

Med: Você estava preocupada, né?

Mãe: Estava.... Só o nariz que você falou que fica com secreção às vezes o inverno
inteiro...Às vezes sai ramela do olho dela também, mas não é o tempo todo...é
normal?

Med: Vamos dar uma examinada, mas pode ser obstrução da glândula lacrimal. Algo
mais?

Mãe: ...

Med: Está mamando bem?

Mãe:Super bem, como mama!

Med: Nenhuma dúvida, nenhuma dificuldade....

Mãe: E o cocô? Quando vai normalizar? Porque ela faz a cada dois dias....

Med: Então...Isso é normal...O bebê que mama no peito pode variar mesmo a
frequência de evacuações, C., e pode até ficar dias sem fazer, se ela não tiver dor e
estiver tranquila, tudo bem....

Mãe: Gases ela solta bem...

Med: É? Não é um problema?

Mãe: Não...

Med: Tem vacina hoje?

Mãe: Tem, mas está em falta....

Med: Ah…Xixi tá normal?


45

Mãe: Está...

Med: Está sorridente, firminha?

Mãe: Está, super esperta, ativa, conversa....

Med: Algum remédio?

Mãe: Nada.

Mãe:E babar muito é normal? Meu Deus do céu, ela baba muito!

Med: Essa fase baba bastante...Estou colocando ela no gráfico, e está tudo
normal...

Mãe: Só queria então ver essa ramela...

Med: Vamos ver, mas já vou te explicar, conjuntivite ou doenças mais sérias nos
olhos, os olhos ficam vermelhos, inchados e a secreção gruda o tempo todo, quando
acontece como está acontecendo com ela é uma pequena obstrução na glândula
lacrimal, que vai e vem, mas com o tempo melhora, você pode limpar com soro
fisiológico ou água filtrada e fria e fazer massagem para ajudar a desobstruir...Acho
que não precisa de nada além disso... Vamos dar uma olhada nela....

Examina:

Med: A hérnia diminuiu bastante, né?

Mãe: Graças a Deus....

Med: Você estava preocupada, C.?

Mãe: Sim...estava....

Med: Está tudo bem, ok?

Mãe: Meu marido e meu filho que ficam me enchendo o saco, perguntam esse negócio
da ramela, pergunta se não é nada grave, se é normal...Agora o negócio é a vacina,
né? Vou ficar preocupada....

Med: Você tem dado banho de sol?


46

Mãe: Sim...

Med: Joia, caso você não consiga, você me avisa, tá bom?

Mãe: Tá bom....

Med: Mas está tudo ótimo com a C..

Mãe: E sobre a vacina vocês vão ligar quando chegar?

Med: Vamos sim...

Mãe: Mas não tem problema dar muito atrasado?

Med: Olha é uma boa vacina, mas até pouco tempo atrás ela não estava no
calendário...Espera um pouco e caso comece a demorar muito vocês unem as mães
do bairro e pensam o que fazer...Mas vai ficar tudo bem, é uma doença rara...

Mãe: É, né? Então tá bom...Fique com Deus Dra.

Na consulta acima, chama a atenção o número de vezes que aparece a palavra


normal ou normalizar. Nota-se uma preocupação da mãe em saber se alguns hábitos
do seu filho são normais, ela fala sobre as fezes, sobre babar, sobre sair secreção
dos olhos, sobre a hérnia do umbigo. Mas afinal o que é ser normal? Há algum risco
em estar fora do padrão de normalidade?
Geofrey Rose (2010), fala sobre a média e sobre a normalidade sob o ponto de
vista da epidemiologia. Para os estatísticos trata-se de uma forma de distribuição com
propriedades específicas, mas na medicina, isso se confunde com ser saudável.
Quando falamos de valores de exames laboratoriais, esses valores são baseados em
um gráfico, uma curva, feita com a maioria da população, que pode variar de acordo
com a população e é extremamente importante considerar isso (Ex: os níveis médios
de colesterol no Japão são menores do que na Finlândia, como os laboratórios
definem o normal baseado na média local, o que é considerado colesterol alto no
Japão será considerado normal na Finlândia).
Diferente do que o senso comum tende a acreditar, a maioria dos parâmetros
avaliados rotineiramente nas consultas de puericultura tem evidência científica
questionável (BLANK, 2003). Não há comprovação do impacto da anamnese rotineira
47

das crianças em qualquer desfecho em saúde bem como do exame físico completo
de rotina. O gráfico de crescimento, classicamente usado para monitorar o peso e a
estatura das crianças, gera uma busca incessante das mães por um padrão de
normalidade que pode não fazer sentido para a singularidade daquele grupo de
pessoas, daquela família ou daquele indivíduo. Um grupo de médicos ingleses fez
uma crítica importante a essa ferramenta sugerindo que não há uma diretriz confiável
sobre necessidade de encaminhamento uma vez que algum afastamento da média
seja encontrado (HALL,2000). Podemos ser diferentes, originais, singulares e nem por
isso sermos anormais. No livro “São e Salvo” Gérvas e Pérez-Fernandez (2016) diz:

Alguns podem julgar como indesejáveis certos traços e comportamentos mas


por trás deles há saúde: o adolescente gago escreve belos poemas, uma
criança com Síndrome de Down tem humor fresco e constante, a garota
gordinha da classe é a mais carinhosa com seus colegas.

Nesse atendimento a mãe diz: "Meu marido e meu filho que ficam me enchendo
o saco, perguntam esse negócio da ramela, pergunta se não é nada grave, se é
normal". É claro que a busca pela normalidade gera uma preocupação desnecessária
que a afasta da saúde no sentido de desfrutar a vida. O perfeito bem-estar físico,
mental e espiritual que define saúde de acordo com a Organização Mundial de Saúde
é praticamente inatingível, o que se vê é uma busca por atingir um padrão que tem
pouco impacto em qualquer desfecho clínico, ocasionando frustração e padronização
já que as pessoas são diferentes.
A questão dos padrões de normalidade também é importante quando falamos
do comportamento das crianças que será discutido no capítulo 03.
A padronização, normalização ainda carrega o perigo de causar uma falsa
sensação de tranquilidade quando uma pessoa atinge o parâmetro esperado, já que
atingir esses parâmetros também não é nenhuma garantia de saúde. Desse modo, os
gráficos e valores de referência de exames e especialmente de comportamento
devem ser olhados com muita cautela e devem ser individualizados.
Existe também o ponto de vista, que não pode deixar de ser citado, de que
tentar normalizar as pessoas seria uma forma de controle do Estado. Para Foucault a
normalização é uma forma que o Estado encontra de exercer poder através da
disciplina e da biopolítica como eixos do biopoder (CASTRO, 2009).
48

3.1 Cuidado em saúde da criança com foco no empoderamento

Diante das considerações acima e dos questionamentos levantados até agora,


é importante que se diga que não se trata de propor que a consulta de rotina da criança
saudável deixe de ser realizada, mas que seja feita com olhar amoroso, humano,
flexível, individualizado, crítico e cauteloso e mais importante que seja ressignificada.
Não posso deixar de mencionar que vivemos em uma sociedade em que o
acesso à informação é muito fácil, rápido, porém pode ter qualidade duvidosa, e a
ausência dos serviços médicos para auxiliar no cuidado de saúde das crianças pode
gerar busca dessas informações em fontes duvidosas. Um estudo de 2012, mostrou
que 86% das pessoas consideram a internet sua principal fonte para tirar dúvidas
(MORETTI; OLIVEIRA; SILVA, 2012). Se colocarmos a palavra "puericultura" no
Google vamos encontrar 18.300.000 resultados, gerando uma gama muito variada de
informações. Ampliação de conhecimento é bom e pode aumentar a autonomia e
capacidade de autocuidado, mas como as informações não são reguladas ou
fiscalizadas, podem ocasionar confusão e dúvidas sobre a veracidade do que é dito,
e a consulta médica torna-se uma fonte segura de informação para a família. No
entanto a forma que o cuidado será oferecido pode ser rediscutida, talvez ele possa
ser realizado por uma equipe multidisciplinar, mais integral e mais barata que
simplesmente manter essa atividade centrada no médico
Esse estudo propõe uma consulta de rotina da criança saudável focada no
empoderamento, que o nome puericultura, devido sua origem higienista, seja
substituído, e que a família seja parte ativa do processo de modo integral, com sua
individualidade e suas demandas respeitadas.
Se perguntarmos aos pais de crianças pequenas se eles consideram mais
importante que sua equipe de saúde consiga atendê-los quando seu filho está doente,
com febre, por exemplo, ou para realização de consulta de rotina, muito
provavelmente os pais dirão que a febre é mais urgente. Contudo, por algum motivo,
os serviços de saúde priorizam as consultas de rotina e encaminham as crianças
doentes aos serviços de emergência, onde elas serão atendidas com demora, por
uma pessoa que não as conhece, com um olhar medicalizador, muitas vezes,
praticando uma medicina defensiva e que não poderá dar seguimento à sua doença.
Considerando que há poucas evidências científicas de que as práticas usadas
nas consultas de rotina pediátrica tenham impacto nos desfechos clínicos em saúde,
49

acredito fortemente que essa prioridade deva ser questionada. Assim, o processo de
crescimento e desenvolvimento, que é um processo natural da vida seria menos
medicalizado e menos normalizado.
Quanto às consultas de rotina, elas devem respeitar as demandas e
necessidades individuais, serem mais amorosas, acolhedoras e menos protocolares
e cheias de checklists. Outros profissionais de saúde e de outras áreas podem e
devem participar do cuidado, como é feito em muitos países, contribuindo inclusive
para o uso adequado de recursos financeiros, já que o médico costuma ser o
profissional mais caro da equipe.
O cuidado em saúde da criança saudável deve ser menos centrado no médico,
menos medicalizado, menos "patologizador" do processo de nascer, crescer e se
desenvolver. Deve respeitar as diferenças individuais, familiares e culturais, valorizar
o modo de viver de cada pessoa, família e comunidade, estimular a autonomia, o
autocuidado e a vontade das famílias, entendendo que o nascimento de um bebê e
seu crescimento é um momento único, especial e sagrado na vida daquela família e a
maneira como a família vai lidar com isso pertence a ela.
Seus saberes, suas ideias, sua vontade, sua história e sua singularidade devem
ser valorizadas, assim como a idiossincrasia da criança. O médico e a equipe de
saúde não são ou não deveriam ser considerados os detentores do conhecimento
sobre esse processo e não devem impor regras de como o cuidado deve ser dado.
O auxílio deve vir em medida muito sutil, respeitando as demandas de cada
criança e de cada família e sem transformar esse momento tão único em doença, em
anormalidade. Há um grande espectro de variações que são normais e isso deve ser
valorizado. Os saberes da família e da rede de apoio e a intuição podem e devem ter
espaço nesse cuidado. Assim, pouco a pouco, conseguiremos substituir o olhar
higienista, da origem da puericultura por um olhar integral, respeitoso, amoroso e
alicerçado no empoderamento e na solidariedade.
50
51

4 PREVENÇÃO QUATERNÁRIA E A SOLICITAÇÃO DE EXAMES E


MEDICAMENTOS DESNECESSÁRIOS

O segundo principal motivo de consulta encontrado nesse estudo foram


demandas por exames laboratoriais, consultas de rotina e por medicamentos, mais
especificamente xaropes, mucolíticos, descongestionantes e antibióticos para
doenças respiratórias. O que faz uma família buscar ajuda médica nesses casos?
Quando uma pessoa sente que há algo diferente com o seu corpo,
comportamento ou se sente doente ou percebe que alguém de sua família pode estar
doente, ela reage de diversas maneiras. Pode esperar, se auto-observar, observar
seus familiares, solicitar opiniões de familiares, amigos e pessoas do convívio, pode
consultar a internet e as redes sociais ou optar por buscar ajuda profissional com
médicos e outros profissionais de saúde. Quando essa relação deixa de ser familiar,
entre amigos ou comunitária e passa a ser profissional ela se transforma e atinge
novas conotações (GÉRVAS; PÉREZ-FERNANDEZ,2015).
O caminho na busca de atendimento em saúde inicia-se quando as pessoas,
famílias ou comunidade decidem que não conseguem mais cuidar desse problema
por meios próprios e tomam a iniciativa de buscar ajuda de maneira oficial. Essa
procura pode ocorrer através de um serviço de emergência, de um médico generalista
ou de um médico especialista, vinculados a um serviço de saúde público ou privado
(MERHY,2000).
Nesse momento, inicia-se a consulta médica, o encontro entre duas pessoas
para tratar sobre um tema. Se na Antiguidade esse encontro era cheio de rituais,
envolvendo arte, misticismo e pouca ciência, hoje ele é carregado de farmacologia,
biomedicina e a consulta resume-se a relatos de sintomas, prescrição de
medicamentos, exames e procedimentos (MERHY, 2000).
Hoje, além do hábito de procurar os serviços de saúde quando estão doentes,
as pessoas buscam-nos quando se sentem bem, para que o médico confirme se está
tudo bem através da solicitação de exames laboratoriais. As consultas médicas, sobre
as quais foi falado no capítulo anterior, tornaram-se insuficientes para algumas
pessoas que entendem serem necessários exames complementares e procedimentos
para a confirmação de que estão mesmo saudáveis e justificam a necessidade desses
exames pelo medo de uma doença silenciosa e tratável.
52

Quando pensamos em prevenir doenças ou complicações podemos atuar em


quatro níveis. Os mais conhecidos são a prevenção primária, secundária e terciária
(Figura 2). Mas existe também a prevenção quaternária. Prevenção primária seriam
ações tomadas para evitar que a doença apareça, por exemplo, as vacinas.
Prevenção secundária são as ações tomadas para fazer diagnóstico oportuno de
problemas de saúde a fim de reduzir dano ou mortalidade. Prevenção terciária seriam
ações para minimizar o prejuízo de doenças já detectadas (JAMOULLE, 2015;
TESSER, 2017).

Figura 2 - Esquema dos níveis de prevenção

Fonte: TESSER, 2017.

A prevenção quaternária parte do princípio básico da prática e da bioética


médica, "primeiro não lesar"; trata-se de identificar indivíduos sobre risco de
intervenções, exames e medicamentos que causem mais danos do que benefícios e
propor-lhes alternativas eticamente aceitáveis (JAMOULLE, 2015). É comum algumas
pessoas definirem prevenção quaternária como "evitar iatrogênicas", mas o dano
pode aparecer de maneira muito sutil, por isso, essa definição me parece muito
simplista. Quando pensamos em iatrogenia ou em causar dano, normalmente nos vem
à mente o termo "erro médico", coisas do tipo "operar a perna errada", "esquecer
material cirúrgico durante um procedimento", enfim, em atitudes mais objetivas.
Pensamos que a solicitação de um exame desnecessário pode causar mais dano do
que benefício? E uma consulta médica, como no caso das consultas de rotina da
criança saudável, podem causar mais danos? E usar um xarope para tosse em uma
53

criança resfriada, pode ser iatrogênico? Assim, para cada pessoa, família ou situação
há uma série de pequenas intervenções capazes de causar dano que normalmente
são negligenciadas. Costumamos pensar que na dúvida é melhor "pecar pelo
excesso", tendo mais medo da "não intervenção" do que da intervenção. Trazer esse
questionamento à tona é papel do médico e dos serviços de Atenção Primária.
Seguem abaixo alguns exemplos de consultas médicas em crianças em que esses
excessos aparecem:

Menina de 9 anos com medo de diabetes.

Med: Bom dia, tudo bem? E a I.?


Pai: O problema dela é o histórico na família…tem muito diabético em casa e fico
muito preocupada...
Med: O que mais, Sr M.?
Pai: Só isso.
Med: Essa questão do diabetes, ela sente alguma coisa? Aqui está escrito que ela já
até passou na endocrinologista, e que ela já fez esses exames outras vezes...
Pai: Já fez...
Med: Mas nunca deu nada?
Pai: Nunca...
Med: Aqui tem um exame do ano passado, normal.
Pai: Mas por causa do histórico da família, né?
Med: Ela sente alguma coisa? Você percebeu algo diferente nela?
Pai: Não....
Med: E ela está bem?
Pai: Está...
Med: Se alimenta bem, Sr. M.?
Pai: Sim, come bem mesmo....
Med: Não faz muito xixi? Não está perdendo peso?
Pai: Não...
Med: Porque esses são sintomas de diabetes, você sabia?
Médica faz perguntas sobre a rotina e examina.
Med: Tudo bem, no geral está tudo bem...
Pai: O que me preocupa é o histórico de diabetes na família da minha mulher
54

Med: Olha, a gente não precisa fazer exame de diabetes em criança todos os anos, a
menos que ela tenha sintomas. O que a gente pode fazer para te tranquilizar é fazer
uma ponta de dedo dela agora.
Pai: Pode ser....
Med: Agora o que você tem que tomar cuidado desde já é com a alimentação, né?
Pai: Elas adoram um docinho...
Med: Então...Fazer exames todos os anos não previne diabetes, mas ter uma
alimentação mais saudável sim. Os seus familiares têm diabetes tipo 2, muito ligado
ao peso e à alimentação. Ele raramente aparece na infância, ainda mais que sua filha
tem peso bom, mas pode aparecer na vida adulta. E os hábitos alimentares da infância
costumam persistir na vida adulta.
Pai: E se der bolacha recheada come o pacote...
Med: Então,Sr. M., se você está com medo de diabetes, muito mais importante do que
fazer exames todos os anos, é tentar manter uma alimentação mais natural e mais
saudável em casa, mas também é muito mais difícil.
Pai: Verdade Doutora, mas ainda assim prefiro fazer o exame
Med: Tudo bem...já que ela está de jejum, faça então a ponta de dedo para te
tranquilizar e traga para mim, ok?
Exame de glicemia capilar normal
Med: Então mantemos assim e qualquer dúvida estou à disposição, pode ser?
Pai: Pode sim, até mais...

Na consulta acima vê-se claramente uma família com medo de uma doença
silenciosa e potencialmente grave. A demanda por check-ups e exames para
diagnóstico de doenças silenciosas e potencialmente graves é enorme nos serviços
de Atenção Primária. Eles acontecem na população adulta e se estendem nas
crianças. Novamente é necessário cuidado com o excesso de exames e de
intervenções. Trata-se de uma criança de 9 anos, saudável, que não sente nada de
diferente com seu corpo, mas que tem feito exames de glicemia anualmente além de
passar em consulta com o especialista, endocrinologista. O paradoxo nesse caso é
que a preocupação com o diabetes se traduz em uma demanda por exames anuais e
uma medida que comprovadamente previne diabetes, que é uma alimentação natural,
com pouco ou sem açúcares, foi negligenciada. Essa criança vem passando
sistematicamente em consultas médicas, os médicos têm solicitado glicemia e outros
55

exames para ela anualmente, mas ninguém parou para explicar sobre a doença ou
falar sobre o papel dos exames laboratoriais e dos hábitos de vida no diabetes.
Exames não previnem doença. Eles, no máximo, permitem um diagnóstico oportuno
(prevenção secundária). Mas é necessário muita cautela, não basta um diagnóstico
oportuno, é preciso que o diagnóstico permita intervenções que possam mudar a
história natural da doença, que essa mudança tenha impacto comprovadamente maior
se ela ocorrer antes do aparecimento dos sintomas (período em que comumente os
exames são solicitados) e que ele causa poucos danos, entende-se por danos desde
erros nos exames (resultados de falsos positivos ou falsos negativos), dor, dificuldade
na coleta, custo financeiro, até sobre-diagnósticos. Sobre-diagnóstico, diferente de
falsos positivos, é quando as anormalidades existem, mas não causariam desfechos
ruins na saúde das pessoas, por isso saber sobre a existência delas causa mais dano
do que benefício (BRODERSEN et al., 2018).
Por outro lado, mudar hábitos previnem doenças (prevenção primária), no caso
a alimentação, mas há toda uma indústria de marketing, todo um modo de vida
centrado em consumo, em agilidade que impede as pessoas de fazerem a própria
comida, comprarem de pequenos produtores, cozinharem em casa, entre outros.
Estamos tão absorvidos pelas demandas do dia a dia, do trabalho, que fica muito mais
fácil pedir um exame de glicemia anualmente do que cuidar diariamente do que se
come. Médicos e profissionais de saúde estão tão inseridos nesse contexto que
também não refletem sobre essa prática e seguem repetindo o mesmo exame
anualmente. Como se exames normais anuais prevenissem doença.
Há vários pontos que merecem discussão nessa consulta. A primeira delas é a
excessiva preocupação e medo de doença em uma criança de 9 anos de idade.
Barksy (1988) descreveu no New England Medical Journal, o paradoxo da saúde em
que os indicadores de saúde nos últimos 30 anos e especialmente nos países
desenvolvidos, estão cada vez melhores, mas a preocupação com a saúde está cada
vez maior.
Ao longo de 15 anos de experiência como médica de atenção primária, com
foco na saúde da criança, tenho vivenciado essas experiências de uso excessivo de
medicamentos e intervenções no cuidado em saúde da criança. Elas podem aparecer
desde as consultas de rotina, cujas necessidades podem ser discutidas, conforme
discorrido no capítulo anterior, até nos excessos de exames e intervenções.
Inicialmente me sentia incomodada com o excesso de exames e medicamentos com
56

poucas evidências científicas de benefícios, o que levou ao estudo do meu mestrado.


Ainda com visão muito biomédica meu foco foi testar conhecimento dos médicos sobre
os protocolos, julgando que o uso exagerado de medicamentos poderia estar
associado à falta de conhecimento médico. De fato, muitos médicos desconheciam as
recomendações, especialmente os que diziam se atualizar através de materiais da
indústria farmacêutica (ROCHA et al., 2012). Mas isso não me pareceu suficiente. No
decorrer dos anos, com a ampliação dos meus conhecimentos sobre práticas de
medicina de família e comunidade e utilizando o "método clínico centrado na pessoa"
(STEWART et al.,2018) pude perceber que conhecer os protocolos é parte, longe do
todo. Compreendi que essas demandas por medicamentos, exames e procedimentos
muitas vezes partem das pessoas que nos procuram, fazem parte da nossa cultura e
estão presentes tanto na sociedade quanto na cultura médica e podem ser explicadas,
em parte, pela pressão do mercado gerando essas demandas na sociedade. Os
profissionais de saúde, também fazem parte dessa sociedade e alguns parecem ter
perdido a capacidade de parar e refletir sobre sua prática. É preciso falar sobre isso.
Também é preciso falar sobre os malefícios que exames e procedimentos podem
causar. Segue parte do relato de uma consulta em que um exame de glicemia
solicitado desnecessariamente causou dano:

Resultado de exame - menina 3 anos.


Med: Bom dia Senhora A., como posso te ajudar?
Mãe: Doutora, estou aqui para a Senhora ver o resultado dos exames pedidos pelo
Dr. X....
Med: Pois não Dona A., e como a F. está?
Mãe: Está bem Dra...Mas estou muito preocupada com os exames...Há uma semana
que não durmo desde que peguei os resultados.
Med: E porque foram pedidos esses exames?
Mãe: Rotina.
Med: Mas a F. não está sentindo nada? A senhora não notou nada de diferente nela?
Mãe: Não Dra. Mas olhei os exames e parece que a glicemia está aumentada. Estou
com medo de ser diabetes porque vi na internet que com esse valor já é diabetes.
Médica checa exames: glicemia 105
Med: Ela ficou quanto tempo de jejum para colher esse exame?
57

Mãe: Ai Dra. Colhi às 8h da manhã, mas acabei dando uma mamadeira lá por meia
noite que ela costuma tomar.
Médica tranquiliza mãe e solicita exame confirmatório. Exame confirmatório
com resultado dentro dos padrões de normalidade.

Não é objetivo entrar no mérito do diagnóstico específico de nenhuma doença,


mas se forem seguidas as Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes (2017) trata-
se de uma glicemia alterada que merece observação. Mas é preciso individualizar.
Primeiramente, não há nenhum benefício em realizar rastreamento de glicemia em
crianças de 3 anos (rastrear significa testar pessoas saudáveis com objetivo de
realizar diagnóstico e intervenções pertinentes em doenças assintomáticas). Crianças
de 3 anos, quando diabéticas, possuem o tipo 01 da doença que tem uma
apresentação típica e dificilmente será diagnosticada em rastreio (U. S. PREVENTIVE
SERVICES TASK FORCE, 2015). Além disso, exames com valores limítrofes devem
ser avaliados com muita cautela e terem seus resultados correlacionados com a
clínica e com o contexto. Essa família sofreu danos ao ter que se mobilizar para colher
um exame, manter de jejum uma criança de 3 anos, ao furar a pele para coleta, ao
deixar a família preocupada antes e depois do resultado do exame. Gerou custo ao
sistema ao pagar por um exame desnecessário, ao provocar uma nova consulta para
verificação do resultado, ao causar necessidade de novo exame para confirmação do
resultado entre outros. Exames desnecessários podem desencadear uma cascata de
exames desnecessários para confirmar a normalidade do exame inicialmente
solicitado. E isso acontece repetidamente nos serviços de saúde. Mas pouco paramos
para refletir sobre esses episódios.
Uma revisão sistemática, publicada em 2017, analisou 8166 estudos para
tentar entender as expectativas dos clínicos sobre benefícios e malefícios dos
medicamentos e exames laboratoriais. Chegaram à conclusão que os médicos
tendem a subestimar efeitos nocivos e a superestimar benefícios de exames
complementares e tratamentos e que a maioria dos médicos avalia corretamente os
efeitos nocivos em apenas 13% das vezes e os benefícios em apenas 11%. Ele
concluiu ponderando que os pacientes não podem ser assistidos na tomada de
decisões esclarecidas se os próprios médicos não tiverem expectativas precisas dos
benefícios e dos prejuízos da intervenção e sugere possíveis explicações para isso
(HOFFMAN; DEL MAR, 2017):
58

• Os médicos talvez se concentrem mais nos mecanismos dos exames


complementares e dos tratamentos do que nas evidências de sua eficácia;
• Pode simplesmente ser difícil manter-se atualizado sobre as evidências;
• Artigos de revistas e anúncios podem ser os responsáveis pela ênfase dos
aspectos positivos das intervenções;
• Ideias preconcebidas dos médicos também podem incluir a preferência por
qualquer tratamento em vez de nenhum, ou um desejo de segurança;
• “Ilusão terapêutica“: os médicos encaram as intervenções sob uma luz mais
positiva, especialmente aquelas com as quais estão mais familiarizados.
Não é culpa de as pessoas acharem que precisam dos exames e intervenções,
pois há todo um marketing que cria um inconsciente coletivo de que eles são
necessários, há propagandas de medicamentos e procedimentos na televisão,
revistas, internet, rádio, há inúmeras farmácias espalhadas pela cidade (em Sorocaba-
SP, onde foi realizado esse estudo, há uma avenida em que se contam 10 farmácias);
mas é culpa dos profissionais de saúde, escolas médicas e instituições quando
pessoas que deveriam ter uma abordagem tecnocientífica se deixam levar por esse
movimento e a presença da indústria farmacêutica nesses locais é naturalizada.
Seguem abaixo mais dois exemplos, dessa vez com solicitação de colesterol:

Menino 9 anos, eutrófico – necessidade de check-up.


Med: Bom dia....Como eu posso te ajudar hoje M.?
Mãe: Gostaria de fazer exames...
Med: A senhora queria pedir exame...
Mãe: Colesterol...
Med:Uhum. Algo mais?
Mãe: Fazer checkup, né?
Med: Mas por quê? Qual seu medo, M.?
Mãe: Não sei…não temos que fazer exames todos os anos nas crianças?

Menina 12 anos, eutrófica, moradora de um Quilombo em Salto de Pirapora –


resultado de exames.

Med: Bom dia....Como eu posso te ajudar?


Mãe: Gostaria de mostrar resultado dos exames da B....
59

Med: Claro, e porque foram feitos esses exames?


Mãe: Ela tinha colesterol alto, tomou remédio um tempo, mas parou de tomar há um
ano e ficamos preocupadas se o colesterol não subiu.

Colesterol com valores normais para idade, criança com peso adequado
para idade se mostrando muito preocupada com o resultado desse exame.
Novamente, não há nenhuma diretriz que recomende realizar colesterol de
rotina em todos os adultos (deve ser individualizado), menos ainda em crianças
saudáveis (U. S. PREVENTIVE SERVICES TASK FORCE, 2016). Em seu livro “São
e Salvo”, os médicos de família espanhóis Juan Gérvas e Pérez-Fernandez (2016)
fazem uma reflexão interessante sobre o exame do colesterol:

Vale a pena medir e tratar o colesterol em pessoas saudáveis?


Não. O que vale a pena é ser feliz e não se preocupar com o
colesterol... Em relação a crianças e adolescentes, a medida do
colesterol é absurda, porque não prediz seus níveis quando
adultos, nem a incidência de doença cardiovascular.

Por algum motivo as pessoas entendem que exames anuais de colesterol são
necessários em adultos e crianças e esse entendimento reflete na prática médica e
dos outros profissionais de saúde. Uma menina de 9 anos, moradora de uma zona
rural quilombola, chegou até a receber tratamento medicamentoso com estatinas
devido a um colesterol de 230, o que é inaceitável e gera uma cascata de erros e
intervenções que se iniciou com a solicitação de um exame desnecessário, seguida
de um resultado dito aumentado tentando atingir um valor questionável e finalizando
com o tratamento com um medicamento que não mostra nenhum benefício clínico
nessa situação e com efeitos adversos comprovados, especialmente dor muscular
(GÉRVAS; PÉREZ-FERNANDEZ, 2016). Não podemos deixar de notar que se trata
de uma criança moradora de uma área rural quilombola, afastada de uma grande
cidade, com pouco acesso a diversas estruturas sociais como lazer, transporte,
educação, mas que tem acesso a um exame e a um medicamento desnecessários
que ganham importância na vida dessa família que se mostrava extremamente
preocupada.
Trata-se de um exemplo de "disease mongering" ou "mercantilização da
doença" que é a ampliação das fronteiras de diagnóstico de doenças à promoção
agressiva, através do marketing, da expansão do mercado de tratamento ou
60

diagnóstico com objetivo de beneficiar a indústria farmacêutica, médicos e outras


organizações profissionais.
Esse termo descreve como o mercado, no caso a indústria de exames e
medicamentos, consegue fazer com que as pessoas mudem a perspectiva que elas
têm sobre a doença, sobre o seu corpo e sobre a normalidade e criam uma demanda
por esses procedimentos no inconsciente coletivo e até na classe médica. Ele explica
porque, mesmo sem evidência científica de que haja qualquer mudança em qualquer
desfecho clínico, as mães demandam exames de rotina para seus filhos saudáveis e
os médicos têm o hábito de solicitá-los.
O British Medical Journal (BMJ), revista que tem por tradição a ética em
pesquisa e o olhar crítico para os conflitos de interesse na área médica. Em artigo
publicado nessa revista por Moynihan (2002), o assunto é apresentado e são
relatados vários exemplos de como isso pode ser articulado, quais as principais
estratégias utilizadas e seus efeitos.
A articulação costuma ser sempre a mesma: criação de alianças informais entre
a indústria farmacêutica, médicos e grupos de consumidores ostensivamente
engajados em alertar a opinião pública sobre problemas que não estariam sendo
diagnosticados e por isso não tratados, mas que seriam potencialmente graves e
tratáveis. Essas estratégias são ligadas ao departamento de marketing das
companhias que operam para expandir o mercado de novos produtos. O ciclo costuma
dessa forma: 1) lançamento de histórias na mídia associadas a falas de comitês e de
“experts independentes" sobre o assunto, seguidas de 2) conferências médicas
patrocinadas sobre o assunto e a seguir 3) o novo medicamento passa a ser apontado
como a solução para o problema. Chamar a atenção para o problema nas associações
de pacientes também faz parte da estratégia para fidelizar os pacientes. Em 2016, as
Associações de pacientes receberam quase 6 milhões de euros na Espanha. Nem
todas as pessoas envolvidas no processo estão conscientes disso, muitas realmente
têm boas intenções e não percebem que estão sendo manipuladas (MOYNIHAN,
2002).
O problema é que a experiência subjetiva e social da doença está sendo
substituída pela construção corporativa da doença. A história natural da doença, o
caráter autolimitado de muitas delas e importância da individualização são deixados
de lado.
61

Medicalização inapropriada carrega o perigo da rotulação desnecessária,


decisões terapêuticas pobres, iatrogênicas, desperdício financeiro, desvio de custos
que poderiam ser gastos em outras coisas, além de ajudar a alimentar a insalubre
obsessão com a saúde, de obscurecer as explicações sociológicas para os problemas
de saúde e de focar a atenção em soluções farmacológicas, individualistas e
privatizadas.
Alguns argumentam que as pessoas estão mais ativas, mais informadas sobre
riscos e benefícios, menos confiantes na autoridade do médico, menos passivas para
aceitar a explicação médica sobre seu corpo e sua vida. Até que ponto isso não está
sendo substituído pela indústria?
Além de demanda por exames em crianças saudáveis, as solicitações por
medicamentos são muito frequentes, lideradas por doenças do aparelho respiratório,
conforme as falas abaixo:

Caso 1: Menino, 6 anos – tosse.

Mãe: Doutora, o J. está tossindo muito eu gostaria de solicitar um xarope para tosse.
Med: Desde quando ele está se sentindo assim, D.?
Mãe: Ah, já tem uns dois dias, teve febre no primeiro dia, estou dando água, usando
soro no nariz conforme a senhora sempre fala, mas ainda não melhorou.
Med: Ele se sente cansado, com dificuldade para respirar?
Mãe: Não.
Médica examina, sem alterações.
Med: O pulmãozinhodo J.está limpo, não está cansado, com falta de ar, então
provavelmente é um resfriado. O resfriado dura 7-14 dias se a gente der xarope e 7-
14 dias se a gente não der. Inicialmente pode dar febre, seguida de tosse seca, depois
começa soltar o catarro e melhora. Caso evolua diferente disso você volta e eu
reavalio, pode ser?
Mãe: Se o pulmão está bom, pode ser....

Caso 2: Menino, 5 anos - dor de garganta.


Mãe: O N. está com dor de garganta, todas as vezes que ele tem isso precisa tomar
Amoxicilina.
Med: Entendo, e ele tem algum outro sintoma, E.?
62

Mãe: Sim, está com nariz escorrendo e um pouco de tosse.


Médica examina, sem alterações, exceto por hiperemia de orofaringe.
Med: O pulmãozinho dele está limpo, não está cansado, com falta de ar, e a garganta
está apenas vermelha, sem pus, o que significa que não tem bactéria, então não
precisa de antibiótico. A Amoxicilina é um antibiótico, E..
Mãe: Mas ele vai melhorar doutora? Porque todas as vezes que ele vai na PA (Pronto
Atendimento) assim, eles passam amoxicilina.
Med: O resfriado costuma durar entre 7-14 dias, mas os primeiros dias são os piores.
É importante tomar bastante água e descansar. Caso a dor esteja incomodando muito
podemos dar um remédio para a dor. O que você acha?
Mãe:Ah doutora, não sei, preferia dar logo a Amoxicilina para ele melhorar logo.
Med: Entendo, E., mas como não tem bactéria, dar o remédio não vai fazer melhorar
mais rápido, tem o tempo da doença, sabe? E pode fazer mal... Remédio quanto
menos melhor, não é mesmo...
Mãe: Hum...não sei...
Med: Que tal fazermos assim, você observa mais uns dois dias e se não melhorar eu
estarei aqui, posso reavaliar e se precisar dou antibiótico?
Mãe: Pode ser então...Até mais.

Caso 03: Menino, 4 anos – tosse.

Mãe: Doutora, tudo bem? Eu vim porque o médico do PA (Pronto Atendimento) pediu
uma reavaliação, a L. estava com muita tosse, ele fez RX da face e disse que era
sinusite. Estou dando antibiótico há 2 dias e queria saber se ela melhorou. Será que
é melhor fazer outro RX?
Med: Olá, tudo bem, D.? E ela melhorou?
Mãe:Ah doutora, não sei, parece que sim.
Med: Me conte mais como foi que tudo aconteceu e como ela está agora.
Mãe: Então, ela teve febre e tosse, aí no segundo dia eu levei no PA, o médico fez
RX e disse que era sinusite, desde então estou dando antibiótico. A febre melhorou,
mas ela ainda tosse um pouco e com catarro agora.
Med: Entendi. Algo mais?
Mãe: Não.
Med: Vamos dar uma olhada na Luana, então.
63

Médica examina, sem alterações.


Med: Está tudo bem, pulmão limpo, sem pus na garganta e sem muita secreção
aparentemente. É provável que seja apenas um resfriado. Mas já que você já iniciou
o antibiótico vamos terminar, ok?

Os três casos são clássicos de resfriado comum que apresentam evolução


típica dos sintomas e são benignos e autolimitados. No primeiro caso, a mãe pede um
xarope por entender que ele é necessário para melhorar a tosse. No segundo caso,
ela demanda um antibiótico porque é o que costuma receber quando vai à Unidade
de Emergência. E no terceiro caso, a criança já foi submetida a um exame radiológico
e já está recebendo antibiótico em um resfriado que tem todos os sintomas de infecção
viral.
Está muito bem estabelecido que resfriado comum é uma doença benigna e
autolimitada e que antitussígenos, expectorantes e mucolíticos têm pouco impacto no
desfecho final de uma doença respiratória e que RX de seios da face não são
necessários para diagnóstico de sinusite (KENEALY; ARROLL, 2013). Também estão
bem definidos os critérios necessários para pensarmos em amigdalite bacteriana e
iniciar antimicrobianos (McISSAC et al., 1998). Porém, essas intervenções são
sistematicamente realizadas e solicitadas pelas famílias, apesar de ser um problema
antigo com inúmeras tentativas de mudar essa prática.
As mães e as famílias não são culpadas por demandarem essas intervenções.
De alguma maneira, a ida aos serviços de saúde, a leitura de jornais, revistas, a
conversa com amigos e as experiências anteriores ensinou-lhes que essas
intervenções são necessárias. Mas cabe ao médico, aos serviços de saúde e às
escolas médicas tentarem iniciar uma mudança para promover um cuidado mais
sustentável e menos medicalizado.
O modo de vida da nossa sociedade urbana que busca soluções rápidas,
imediatistas e mercantilizadas contribui para essas demandas. Além do que não é fácil
competir com todo o poder de marketing da indústria farmacêutica
No Brasil, temos uma farmácia para cada 3.300 habitantes. Dados da
Federação Nacional de Medicamentos apontam que entre 2007 e 2013 o Brasil saltou
da décima para sexta colocação no mercado farmacêutico mundial. Em 2013, o
faturamento do setor farmacêutico brasileiro foi da ordem de R$ 58 bilhões, um
aumento de 140% em uma década. No setor público, em 2003, foram investidos 1,8
64

bilhões de reais e em 2013 esse valor saltou para R$11,88 bilhões. Os setores de
marketing da indústria farmacêutica gastam bilhões por ano para elaborarem
estratégias para aumentar a venda dos seus produtos.
Artigo publicado no Journal of the American Medical Association(JAMA),
reforça a influência da indústria na prescrição médica com a afirmação de que "não
existe almoço grátis”, ironizando a prática comum de a indústria em pagar refeições
aos médicos, comprovando como essa prática afeta a prescrição médica (DEJONG
et al., 2016). No Brasil, muitos médicos também possuem relação estreita com a
indústria farmacêutica influenciando diretamente a maneira com que eles prescrevem.
Observamos que pediatras que relatavam se atualizar através de materiais fornecidos
por laboratório prescreviam mais e pior os antimicrobianos em infecções respiratórias
do que os que se atualizavam de outras maneiras (ROCHA et al., 2012).
Peter Gotzsche (2016) em seu livro “Medicamentos mortais e o crime
organizado” faz uma crítica contundente aos métodos e ao papel da indústria
farmacêutica no sistema médico e chega a comparar seu modo de ação com uma
quadrilha criminosa. Ele explica em detalhes como são gastos milhões influenciando
as decisões médicas, financiamento de pesquisas sobre medicamentos e até de
periódicos responsáveis pelas publicações.
Jeane Lenzer (2015) comenta no BMJ que, apesar do Centro de Controle e
Prevenção de Doença (CDC) insistir em negar, recebem milhões de dólares em
financiamento da indústria farmacêutica e que isso afetou, de maneira importante, as
decisões tomadas em relação a protocolos, recomendações dadas sobre
determinados agravos e diretrizes de conduta de determinadas doenças nos Estados
Unidos. O CDC é uma agência do Departamento de Saúde e Serviços
Humanos dos Estados Unidos que trabalha na proteção da saúde pública e
da segurança da população. Seu objetivo é prover informações para embasar
decisões quanto à saúde. Ele concentra a atenção nacional no desenvolvimento e no
emprego de prevenção e controle de moléstias (especialmente contagiosas), saúde
ambiental, saúde ocupacional, enfermagem, prevenção de acidentes e atividades
de educação sanitária projetadas para aprimorarem o bem-estar da população
dos Estados Unidos da América. Não é aceitável que essa agência que toma decisões
tão importantes tenha uma relação estreita com a indústria farmacêutica.
Outro exemplo é o caso Influenza. Em 2009, houve um surto do vírus Influenza
A H1N1 no Brasil e no mundo; desde então, o uso de vacinas para prevenção e de
65

medicamentos antivirais para o tratamento vêm sendo amplamente recomendado


pelas organizações nacionais e internacionais (BRASIL, 2016; FIORE et al., 2011).
Ocorreu que a larga utilização dessas práticas permitiu que seus efeitos fossem
estudados. A Cochrane Library, entidade que concretiza revisões sistemáticas de
qualidade sobre práticas em Saúde, realizou duas revisões sistemáticas (estudos de
maior qualidade) importantes sobre o tema em 2013. Uma delas demonstrou que a
vacina contra influenza, embora segura e com pouco efeitos adversos, tem efeito
modesto em reduzir doença e dias de trabalho, incluindo em mulheres grávidas. Outra,
demonstrou, em 2013, que os antivirais usados e recomendados, tanto pelo CDC
quanto pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2016; FIORE et al., 2011) têm pouco
impacto em complicações e não reduzem morbidade ou mortalidade pela doença
(DEMICHELI et al., 2018; JEFFERSON et al., 2014). Apesar disso, a mídia insiste em
fazer reportagens sensacionalistas sobre o tema, gerando pânico na população e
culminando em filas enormes para vacinação, falta de vacinas e serviços de
emergência superlotados.
O Estado também precisa propor políticas e protocolos de saúde com visão
crítica e científica. A ONG “Repórter Brasil” (2015), denunciou como lobby da indústria
para ter seus interesses garantidos pelo Estado no Brasil:

Para tentar influir nas decisões pertinentes ao setor, esses grupos se valem
de variadas estratégias de lobby, uma atividade legal no país, mas o lobby
mantém a prática invisível e gera um déficit democrático para o país...Entre
as principais estratégias de lobby utilizadas pelo setor está a doação para
campanhas eleitorais, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (STF). Em 2014, a Interfarma não doou para as campanhas
eleitorais... desenvolveu outras estratégias para influenciar os deputados.
Entre elas, uma parceria com o Brazil Institute do Woodrow Wilson
International Center for Scholars, com sede em Washington, que entre 2011
e 2013 patrocinou a viagem de 32 parlamentares aos Estados Unidos e à
Europa para participarem de seminários sobre Ciência & Tecnologia e
Inovação. Além de fazer um tour pelos países que visitavam, os
parlamentares de cada grupo participaram, em média, de 40 horas de
conferências sobre os mais diversos aspectos das políticas públicas sobre
inovação, patentes e pesquisa clínica. Porta giratória é a expressão coloquial
usada para classificar a contratação de ex-gestores públicos pela iniciativa
privada ou vice-versa. No Brasil, a prática também não é crime: são poucos
os cargos públicos que exigem do seu ocupante uma quarentena mínima de
quatro meses, após a demissão. Por isso, a porta-giratória é muito
utilizada pela indústria farmacêutica para influir nas decisões do país, já que
os ex-gestores públicos trazem com eles não só acesso privilegiado às
instâncias de poder, como também um acúmulo de conhecimento do modus
operandi do órgão em que atuou.
66

O desempenho de sistemas de saúde tem sido alvo da atenção dos governos,


uma vez que indicadores de desempenho têm potencial de proporcionar ganhos
políticos. Uma avaliação do desempenho dos sistemas de saúde dos países membros
da Organização Mundial da Saúde (OMS), realizada com dados de 1993-1997,
revelou que o Brasil ocupava a 125º posição desse ranking, atrás de países como
Butão, Paquistão, Iraque e Guatemala (TANDON et al., 2001). A solução para a
melhora do desempenho, segundo Oxman et al. (2009) é que políticas e gestores
sejam informados por evidências, mas ainda estamos longe de isso ser uma realidade.
A divulgação de resultados dos estudos realizados pela indústria farmacêutica
também é problemática já que costuma haver pouca transparência e estudos com
resultados negativos não têm obrigatoriedade de serem publicados.
Trata-se de um problema complicado com explicações complexas. Temos de
um lado uma indústria de marketing de medicamentos e alimentos que usa todos os
recursos possíveis para vender seu produto e, do outro lado, uma sociedade
imediatista, medicalizada, consumista, consumida pelo mundo do trabalho, sem
tempo para preparar os alimentos, associada a profissionais de saúde, que são parte
dessa sociedade, e que, em sua maioria, entendem que o papel do médico resume-
se ao fornecimento de receitas e à solicitação de exames laboratoriais, pois médicos
são treinados para isso.
Não há soluções simples. O estímulo à crítica deve ser realizado desde a
formação médica. É compreensível a indústria usar recursos de ética discutível para
vender medicamentos e intervenções, mas não é aceitável que a escola e as
entidades médicas formadoras de opinião vejam a presença da indústria com tanta
naturalidade e nem que a indústria financie eventos para capacitação médica e menos
ainda capacitação de estudantes de medicina. É inadmissível que a indústria
farmacêutica transite livremente pelos corredores de universidades, hospitais e
unidades de saúde-escola, que congressos médicos, cujo objetivo é atualização em
temas de determinada área, identifiquem os participantes em seus crachás como
prescritores e não prescritores, com o intuito de facilitar o assédio dos representantes
dos laboratórios. É preciso falar sobre isso desde a graduação médica, precisamos
formar profissionais críticos capazes de resistir e promover resistência a esse
movimento. É necessário desconstruir a visão da medicina e de serviços médicos
como produto. Cuidar não pode ser confundido com vender.
67

Em paralelo, precisamos falar sobre a história natural das doenças e entender


que o tempo é necessário para o amadurecimento e a cura de muitos dos agravos.
Compreender que sintoma não é doença e que para cada sintoma, na maioria das
vezes, não é necessário um "antissintoma" e que eles, muitas vezes são
autolimitados, e que resfriados têm uma história típica que muda pouco independente
dos medicamentos oferecidos. É preciso desmistificar o verdadeiro benefício dos
medicamentos e intervenções que costumam ser supervalorizados e os efeitos
adversos negligenciados. O médico tem de falar sobre isso quando propõe um plano
terapêutico e no compartilhamento das decisões.
Os responsáveis pelas políticas públicas precisam ser pressionados para que
as políticas públicas sejam pautadas pela ciência e a crítica deve partir da sociedade.
O movimento Choosing Wisely (escolhendo sabiamente), partiu da sociedade civil
americana e propõe listas “do que não fazer”, em várias áreas, falando sobre
intervenções feitas comumente, mas que são indevidas e não têm eficácia
comprovada. A lista da Sociedade Brasileira de Medicina de Família (2017) inclui: não
solicitar exame de sangue anual de rotina, exceto se indicado pelo risco individual e
não prescrever antibióticos para infecções respiratórias superiores que têm alta
probabilidade de ser viral, duas demandas discutidas nesse capítulo, muito frequentes
na rotina de quem atende criança. Iniciativas como essa ajudam a chamar a atenção
e a provocar reflexão sobre o tema, embora ainda sejam muito escassas.
É um problema complicado, presente no mundo todo e que envolve vários
setores da sociedade, escolas médicas, governos, sistemas de saúde e a própria
sociedade, mas que, não só tem sido negligenciado, como vem aumentando conforme
os dados relatados acima. Como toda dificuldade complexa, as soluções não são
simples e passam pela regulamentação na divulgação dos resultados das pesquisas
científicas feitas pela indústria farmacêutica, financiamento público para pesquisas,
divulgação sobre riscos e benefícios reais de medicamentos, proibição da presença
da indústria farmacêutica em ambientes de ensino, seja escola médica, hospitais e
serviços de saúde de ensino e estímulo à crítica na formação médica.
Mas é necessária uma mudança de ótica sobre o real papel do médico e dos
serviços de saúde na vida das pessoas. Investe-se cada vez menos em melhorar as
condições de vida das famílias e das comunidades e há uma tentativa de substituição
por medicamentos. Crianças têm pouco contato com os pais, com a natureza, vivem
em ambientes fechados e insalubres, mas têm acesso a medicamentos para asma e
68

alergias. Os pais das famílias trabalham a maior parte do dia para receberem salários
cada vez menores e com menos direitos trabalhistas, tendo pouco tempo para
comprarem alimentos saudáveis e prepará-los e também para o lazer e atividades
físicas, mas têm acesso a exames de glicemia e de colesterol anuais. Determinantes
sociais têm impacto maior na saúde do que acesso aos serviços sanitários; assim eles
devem ser considerados tão ou mais importante que o acesso aos medicamentos
quando se pensa em uma sociedade saudável (ILICH, 1975; REDE NOSSA SÃO
PAULO, 2019).
69

5 A MEDICALIZAÇÃO DE PROBLEMAS SOCIAIS E PSIQUICOS NA INFÂNCIA

O terceiro motivo mais frequente encontrado no estudo foram demandas por


medicamentos para modificar o comportamento e os sentimentos das crianças.
Transformar problemas sociais e psíquicos em doença e, portanto, oferecer às
pessoas tratamento medicamentoso também é uma forma de medicalização.
Medicalizar a vida significa transformar em individual um problema coletivo e social,
tratando-o como médico e com necessidade de medicamento. O exemplo mais
frequente, quando se trata da infância, é o Transtorno de Hiperatividade ou Déficit de
Atenção, conhecido pela sigla de TDAH, mas ele também pode ocorrer quando
falamos de tristeza, solidão, violência, pobreza, entre outros (BRITO, 2012).
Essa foi considerada a terceira demanda mais comum nas consultas
pediátricas desse estudo. Segue a transcrição de um exemplo abaixo:

Menino 8 anos – carta da escola pelo comportamento


Med: Bom dia, Senhora M., como posso te ajudar?
Mãe: Doutora, estou aqui porque recebi essa carta da escola do P....
Med: Certo, e o que está escrito na carta?
Med: Não li a carta, ela está fechada... Mas ela me disse que o P. não é como as
outras crianças, não para quieto, é muito agitado, quando ela passa alguma atividade
ele fica um minuto parado, faz parte da atividade e logo perde a concentração, levanta
da carteira, começa a conversar com seus coleguinhas, atrapalha os outros, sabe?
Ela acha que ele precisa de um calmante e de um encaminhamento para o psicólogo.
Med: Entendi... E a senhora? O que acha?
Med: Ai doutora...Pode ser que ele precise mesmo... Ele é bastante agitado
mesmo...Olha só, não para muito quieto...
P. estava sentado na cadeira ao lado da mãe no consultório, mexendo na caneta
e no carimbo que estavam sobre a mesa.
Med: Pelo jeito, no mais está tudo bem, né? Vamos ler a carta.
Na carta está escrito que Pedro é um menino inteligente, alfabetizado, mas muito
indisciplinado, não para quieto e atrapalha seus colegas e sugere
encaminhamento para o especialista para prescrição de medicamentos.
70

Med: Temos um grupo de crianças aqui na unidade, o que você acha, de antes de
darmos remédio ele participar desse grupo? Ser observado pela equipe e aí tentamos
entender o que está acontecendo?
Mãe: Pode ser...
Med: Porque veja, M., esses medicamentos são fortes, ele está bem, esperto, já sabe
ler e escrever, será que ele precisa mesmo de remédio? Será que não estamos
querendo que ele seja igual às outras crianças? As pessoas são diferentes...Não são
todas as crianças que vão se adaptar ao modelo de ficar sentados na escola apenas
ouvindo, quietos, e nem por isso precisam de calmantes...
Mãe: Isso é verdade, né doutora?
Med: Vamos tentar assim, então?
Mãe: É....pode ser....

A consulta descrita acima é muito frequente na APS; cada vez mais as escolas
encontram crianças com comportamento que elas consideram diferente do esperado,
ou que incomodam alunos e professores, que atrapalham as aulas; entendem que
pode se tratar de TDAH e encaminham ao médico já sugerindo que a criança deva
receber um medicamento para melhorar a concentração.
Constituído na década de 70 o TDAH tem seu diagnóstico cada vez mais
ampliado. Supõe-se, hoje, que a doença afete 5% das crianças em idade escolar.
Seus critérios biomédicos para diagnóstico incluem padrão persistente de desatenção
e/ou hiperatividade, identificado em pelo menos dois contextos e pode estar associado
à impaciência e impulsividade com prejuízo às atividades acadêmicas e familiares. O
diagnóstico é clínico baseado em história colhida em consulta médica utilizando
critérios e questionários, como é feito com várias doenças que envolvem o psiquismo.
O diagnóstico dessas doenças, no entanto, gera muita controversa e se baseia em
questionários publicados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM).Considerada a "bíblia da psiquiatria" o DSM é um guia publicado pela
Academia Americana de Psiquiatria que categoriza e classifica as doenças mentais a
partir de questionários validados. Diferente de doenças com padrão biomédico, nas
quais encontramos exames laboratoriais ou de imagem diferentes do esperado ou
alterações no exame clínico, as doenças psíquicas baseiam-se em sentimentos,
sofrimento e comportamento humano, envolvendo questões filosóficas e sociais o que
torna seu diagnóstico ainda mais complexo. Seria a medicina capaz de separar
71

sentimentos em aceitáveis ou inaceitáveis? Seria mesmo atribuição do médico definir


esses parâmetros e escolher quem deve e quem não deve receber medicamentos ou
quem deve e quem não deve ser considerado normal? Cada volume do DSM amplia
ainda mais os diagnósticos de doenças mentais e suas definições de normalidade e
de doença são muito controversas (MARTINHAGO, 2018). Há questionamentos
inclusive se o aparecimento de novas doenças não está diretamente relacionado ao
surgimento de uma nova droga para tratá-las. Temos como exemplo a fobia social,
em que o surgimento de uma nova droga gerou uma grande campanha para promover
timidez como uma doença silenciosa e tratável (MOYNIHAN,2002).
No caso da TDAH, o questionário para diagnóstico inclui perguntas como: "com
que frequência tem dificuldades para manter a atenção em tarefas ou atividades
lúdicas"; "é facilmente distraído por estímulos alheios às tarefas"; "com frequência tem
dificuldade para aguardar sua vez"; "frequentemente abandona sua cadeira em sala
de aula ou outras situações nas quais se espera que permaneça sentado" (LARROCA,
2012).
Trata-se de situações muito comuns no cotidiano das escolas e das famílias e
parece-me uma avaliação muito superficial e simplista fazer o diagnóstico apenas
baseado nessas perguntas. A chance do diagnóstico excessivo e, consequentemente,
o uso exagerado de medicamentos para o tratamento é enorme.
O diagnóstico indiscriminado carrega o risco de rotulação, sedação e trata
superficialmente um problema multifatorial que é a dificuldade escolar, medicalizando-
a. As escolas têm papel muito importante na detecção e encaminhamento dessas
crianças e acabam contribuindo com a medicalização na tentativa de fazer com que
as crianças se comportem da maneira esperada (CRUZ; OKAMOTO; FERRAZZA,
2016).
O tratamento oferecido para mais de 90% das crianças que apresentam esses
sintomas é com estimulantes do sistema nervoso central, sendo o mais conhecido o
metilfenidato, comercialmente vendido com Ritalina®. Esse medicamento também é
muito utilizado em pessoas sem a doença para melhora do desempenho escolar ou
em concursos (GOMES; VILANOVA, 1999; GOMES et al., 2007; LARROCA;
DOMINGOS, 2012).
O diagnóstico da doença e o uso de medicamentos aumentaram
consideravelmente nos últimos anos (MARTINHAGO, 2018):
72

Entre as décadas de 1980 e início dos anos 1990, o TDAH era um


fenômeno que ocorria majoritariamente nos Estados Unidos. Mediante
este sucesso, a Associação Americana de Psiquiatria (APA), em parceria
com as companhias farmacêuticas, começou a expandir o diagnóstico por
outros países, como na Alemanha, onde os diagnósticos aumentaram
381% dos anos de 1989 a 2001; no Reino Unido, onde as prescrições de
medicamentos para o TDAH aumentaram 50% entre 2007 e 2012; em
Israel, onde as prescrições duplicaram entre os anos de 2005 a 2012. Em
países fora dos Estados Unidos, o uso mundial de Ritalina em 2007 era
de 17%, passando para 34% em 2012. Nos Estados Unidos, nesse
mesmo ano, 10% de crianças e adolescentes, com idades entre 4 e 18
anos, foram diagnosticadas com TDAH. As vendas globais de
medicamentos para o TDAH renderam 11,5 bilhões de dólares em 2013.

No Brasil, o uso do metilfenidato (Ritalina®) vem aumentando


progressivamente. Estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro revelou
aumento de 775% entre 2003 e 2012 (BARROS, 2014). Revisão Sistemática
publicada pela Cochrane mostra que mais da metade das pessoas submetidas ao uso
dos medicamentos apresenta efeitos adversos, 1 pessoa para cada 100 que utilizam,
apresenta efeitos considerados sérios que incluem morte, eventos cardíacos e
sintomas psicóticos e em menores (STOREBO, 2018).
Vivemos, afinal, uma epidemia de doenças mentais, entre elas o TADAH? Ou
uma epidemia de diagnósticos de doenças mentais?
No livro “Adeus ao corpo”, David Le Breton (2003) problematiza um pouco essa
questão:
A biologização do sintoma da criança naturaliza suas condutas - que
pretensamente agora exprimem sua patologia e não mais seu sofrimento por
estar imersa em uma situação que não encontra sua razão de ser. A escuta
da criança, o suporte afetivo, o acompanhamento ao seu lado, a detecção de
violências familiares ou escolares deixam de se impor quando se trata de
cuidar estritamente do sintoma (a criança transformada em terminal biológico)
sem ter mais de integrar as causas (o sistema de relação em que está
imersa).

Abaixo exemplos de consulta em que as condições precárias de vida também


geram outras demandas médicas. Torna-se importante reforçar que essas consultas
aconteceram em um bairro periférico, pobre, com tráfico de drogas, violência,
alimentação de má qualidade, condições de moradia ruins no qual a maioria das
crianças vive em condições de privação. As famílias são pouco estruturadas, os pais
têm pouco tempo para os filhos, já que são submetidos a altas jornadas de trabalho e
o transporte público é de baixa qualidade e demorado. As escolas são precárias com
professores mal pagos, desestimulados, sobrecarregados e com poucos recursos, as
salas de aula são enormes, lotadas, o ensino é feito de maneira tradicional, antiga,
73

não estimula e não valoriza a criatividade, a singularidade e as diferenças. Os


professores exigem comportamento padronizado de todas as crianças e recorrem à
medicalização para atingi-lo, já que questões estruturais e culturais exigem mudanças
mais profunda e difíceis de serem atingidas.

Menina - 2 anos - solicitação de calmante - problema social grave.


Med: Bom dia, dona C.,como eu posso te ajudar?
Mãe: Eu queria ver se a senhora poderia passar um calmante para minha filha A..
Med: Hum…por quê? Conte pra mim...
Mãe: Ela é muito brava e quando fica brava, às vezes vomita, por isso eu cheguei
nesse ponto de pedir calmante.
Med: Entendi.
Mãe: E ela também está meio gripadinha.
Med: Eu estou olhando aqui e vi que vocês se mudaram recentemente, né?
Mãe: Sim, há uns três meses.
Med: E desde quando a senhora notou que ela está com esse comportamento?
Mãe: Tem uns 6 meses.
Med: O que você faz quando a A. tem esses comportamentos?
Mãe: Eu tento acalmar. Conversar, mas não adianta, às vezes ela se arranha.
Med: Como é a família de vocês?
Mãe: Moro eu, aA. e meu filho G..
Med: E porque vocês se mudaram pra cá?
Mãe: Porque eu me separei do pai dela.
Med: E como foi a separação?
Mãe: Não foi nada amigável, mas a gente tenta fazer o possível pelas crianças.
Med: Antes da separação, o ambiente estava muito ruim em casa? Tinha briga?
Gritaria?
Mãe: Ah tinha sim...Demais
Med: Tinha droga envolvida?
Mãe: Não...
Med:Dona C., a senhora acha que isso pode ter contribuído para ela ficar assim?
Mãe: Acho sim... Foi bem nesse período que ela ficou assim... Ela tem pouco contato
com o pai e chama ele de tio.
Med: E você, C., anda nervosa?
74

Mãe: Muito, principalmente pela dificuldade em tentar manter as crianças, né?


Med: Dinheiro?
Mãe: Isso...Eu trabalho dia e noite, quase não fico em casa. Faço bico pela rua, faço
o que tenho oportunidade. Agora vou pra um e à noite trabalho numa lanchonete. Eles
ficam com a minha avó ou com a minha prima porque não consegui creche.
Médica faz perguntas sobre alimentação, conversa sobre peso, sobre eliminações,
desenvolvimento neuropsicomotor, doenças prévias. Criança se comporta bem
durante consulta e exame físico
Med: Você chegou a procurar ajuda de assistente social?
Mãe: Não.
Med: De repente eles te ajudam. Você pode ir ao CRASS eles te cadastram no bolsa
família, podem te dar leite etc.... Porque me parece que é o que está mais te
preocupando nesse momento, não é mesmo?
Mãe: É sim....
Med: Também podemos conversar com a coordenação da unidade se ela pode
conseguir uma creche para você porque aí será um lugar para as crianças passarem
o dia, tem alimentação saudável, uma preocupação a menos para você.
Mãe: Seria ótimo!
Med: E também queria te convidar, Carmem, para participar do nosso grupo de
famílias lá no Território Jovem, às segundas de manhã, quando você puder. Porque,
veja, todas essas dificuldades quevocês vêm passando com certeza afetam o
comportamento da A., não é mesmo?
Mãe: Com certeza...
Med: Podemos começar assim e observamos como ela se comporta...Pode ser?
Mãe: Pode.
Med: Até mais então. Vamos nos falando.

Menina 6 anos – solicitação de calmante.

Med: Bom dia, J.! Como eu posso te ajudar?


Mãe: Eu queria ver se teria como passar aA.no psicólogo e talvez um remédio para
ela se sentir melhor...
Med: Hum…por quê? Conte pra mim...
75

Mãe: Porque ela... eu...perdi meu marido, faz...ela tinha 9 meses e ela é meio...ela
pergunta muito, chora muito...
Med: O que aconteceu com ele?
Mãe: Ele morreu assassinado...
Med: E ela não lembra dele, né?
Mãe: Não...
Med: Mas pergunta dele?
Mãe: Sim... E ela é muito nervosa...
Med: E você, J., ainda sente muita falta dele? Pensa muito no que aconteceu?
Mãe: Demais...
Med: Deve ter sido muito difícil, perder o marido assim e cuidar sozinha da bebê
pequena...
Mãe: Demais...
Med: E você procurou ajuda? Tem alguém para conversar sobre isso?
Mãe: Não... mas a A. é muito nervosa, não posso falar nada...Se eu falo as coisas
para ensinar ela já fica (respira fundo) nervosa, sabe?
Med: Quando ela é contrariada?
Mãe: É....
Med: E quem mora na casa?
Mãe: Eu, ela e minha mãe...E minha mãe, ai é difícil viu? Eu vou corrigir ela e minha
mãe entra no meio...
Med: Entendi...
Mãe: É terrível...
Med: E você já chegou a conversar com a sua mãe?
Mãe: Já sim...Converso direto, ela fala que eu estou errada...é duro criar com avó...
Med: Você trabalha fora?
Mãe: No momento não...
Med: Entendi...
Mãe: Eu estou procurando, né? Mas está difícil achar emprego, meu Deus! Mas
Graças a Deus eu sou pensionista, tenho pensão dele...
Med: E na escola, J., tem alguma reclamação?
Mãe: Não, na escola ela vai muito bem...A professora elogia ela...Fora da minha casa
ela é uma, dentro da minha casa ela é totalmente diferente.
Med: E porque você acha que isso acontece?
76

Mãe: Por causa da minha mãe...


Med: E você? Anda nervosa?
Mãe: Um pouco...É que a minha mãe, viu? Deus que me perdoe...Eu falo e ela fala
que ela está certa, está certa, está certa...
Med: E você não gostaria de trazê-la algum dia na consulta para conversar comigo?
Mãe: Trago...
Med: E você? Gostaria de vir algum dia para tratarmos só de tudo o que aconteceu e
de como você se sente? Porque certamente isso afeta a A. também, você não acha?
Mãe:Ahãaa... O único probleminha assim, que acho que é dela é que ela fica muito
nervosa, ela fica vermelha, perde o controle na hora que fica brava, por isso pensei
em algum remédio.
Médica pergunta sobre a rotina e examina e não encontra alterações.
Med: Que tal fazermos assim, você vem um dia só para falarmos sobre você, um dia
traz sua mãe para conversarmos, posso pedir ajuda ao psicólogo para conversarmos
sobre todas essas questões e pensarmos juntos em como melhorar para todos e
consequentemente para a A. e vemos como ficam as coisas?
Mãe: Pode ser...
Med: E aí vamos conversando sempre...Tudo bem? Algo mais, J.?
Mãe: Não, obrigada, até a próxima.

Os dois casos acima mostram famílias com problemas sociais e familiares


graves que vêm demandar soluções medicamentosas nos serviços de saúde. No
primeiro caso, uma família em situação de pobreza e privação que vem pedir calmante
para uma menina de dois anos que se encontra agitada. Trata-se de uma família que
mora e se alimenta mal, não tem emprego, vivia em situação de violência com o pai
até há pouco tempo, a mãe tem 3 filhos, está cansada e sobrecarregada e, por isso,
nervosa e vem solicitando medicamento para a filha de 2 anos se acalmar. São
frequentes nos serviços de saúde famílias como essa. Quais são as reais
necessidades dessas famílias? Elas têm condições de vida precárias tratadas
farmacologicamente, com soluções que vão desde medicamentos para vermes até
psicotrópicos. Estamos tratando pobreza com medicamento. E as famílias os solicitam
porque mesmo com todos os problemas dos serviços de saúde, trata-se de um serviço
que eles ainda conseguem acessar mais facilmente.
77

No segundo caso, uma mãe também jovem, cansada, desempregada, viúva


(perdeu o marido assassinado), que precisa morar com a mãe com quem ela tem
dificuldade de relacionamento, nitidamente cansada e nervosa eparece projetar essas
questões todas na filha. Esse é um caso ainda mais complexo, a mãe que parece não
ter sido acolhida em sua integralidade quando passou por um problema grave com
sua família, ainda se sente muito mal com o que aconteceu, projeta isso na família
quando diz que: "gostaria de um medicamento para minha filha se sentir melhor”
pedido associado a toda uma gama de privações sociais. Novamente, cabe a
pergunta: do que essa família realmente precisa? Estamos tratando a ausência do
Estado nas políticas públicas sociais com medicamentos. Nos últimos anos, houve um
aumento expressivo do uso de psicotrópicos nas classes mais baixas o que, em um
olhar mais superficial, poderia ser entendido como ampliação do acesso à saúde é,
na verdade, a medicalização da pobreza (VIEGAS; GOMES; OLIVEIRA, 2013).
Determinantes sociais de saúde são condições de vida e trabalho que implicam
diretamente a saúde das pessoas, são eles: condições da produção agrícola e de
alimentos, educação, ambiente de trabalho, desemprego, água e esgoto, serviços
sociais de saúde e habitação (SOUZA, 2006). É preciso atuar em todos esses campos
se queremos promover saúde e oferecer apenas acesso aos médicos é uma solução
medicocêntrica, medicalizada e frustrante para os profissionais de saúde (BUSS;
PELEGRINNI FILHO, 2007; COMISSÃO NACIONAL SOBRE DETERMINANTES
SOCIAIS DA SAÚDE, 2008).
É importante ampliar o olhar do médico, dos profissionais de saúde, dos
serviços de saúde, das escolas médicas e dos governos para essas questões.
Falamos tanto sobre acesso à saúde, mas que tipo de saúde estamos oferecendo?
Oferecer apenas soluções farmacológicas, medicamentos, é oferecer saúde?
O trabalhador vive mal, se alimenta mal, dorme mal, tem seus direitos
trabalhistas cada vez mais reduzidos, mora em condições insalubres, com
saneamento básico precário. As famílias se alimentam com alimentos industrializados,
cheios de conservantes e corantes, não têm opções razoáveis de lazer, os pais não
têm tempo para brincar com os filhos, as escolas têm estrutura precária com
professores mal pagos e despreparados, o ambiente em casa é poluído e violento.
Então, oferecemos a essas pessoas uma consulta de 15 minutos, cheia de exames
laboratoriais, intervenções e pílulas e fazemos diagnóstico de doença mental através
78

de questionários com perguntas do tipo: "me sinto triste todos os dias", "me sinto triste
alguns dias” (BECK et al., 1961). Será que estamos mesmo oferecendo saúde?
Não se trata de culpar os profissionais de saúde. A realidade é que a taxa de
esgotamento em médicos, em especial da APS é muito alta, e lidar com condições
difíceis de vida contribuí para isso e torna o trabalho frustrante (MORELLI; SAPEDE;
SILVA, 2015). Medicalizar acaba sendo algumas vezes a solução mais rápida e com
a qual o profissional de saúde tem mais familiaridade.
Novamente um problema multifatorial, complexo e que depende de vários
setores da sociedade, mas não podemos deixar de falar sobre eles se temos a
pretensão de oferecer um cuidado em saúde integral.
79

6 CONCLUSÃO

A definição de saúde da OMS como "completo bem-estar físico, mental e


social", embora traga aspectos da integralidade por não considerar apenas o modelo
biomédico, ou seja, ausência de doença, propõe um nível de saúde muito difícil de ser
atingido, especialmente se essa função for exclusivamente delegada aos serviços de
saúde. Quem se sente o tempo todo em pleno bem-estar físico, mental e social?
Posso estar saudável, mas naquele momento, mas não estar em pleno bem-estar,
posso me sentir cansada, me sentir triste, ter uma dorzinha na perna, posso estar
agitada no trabalho, passando por alguma dificuldade na família e por esses motivos
não estar me sentindo plena em todos aqueles quesitos, o que não me torna uma
pessoa doente ou que precisa de medicamentos. A definição da OMS pode se tornar
perigosa ao levar as pessoas a buscarem um estado de saúde inatingível e contribuir
para o processo de medicalização. Aceitar nossas limitações também é saúde. No
livro “São e Salvo” os médicos de família espanhóis Juan Gérvas e Mercedes Pérez-
Fernandez propõem uma definição de saúde que me parece muito mais serena, fácil
de ser atingida e menos medicalizadora. Para eles:

A saúde é estar vivo e curtir a vida. Ser saudável é aceitar e apreciaras


variações da normalidade que adornam a todos nós. Ninguém atende aos
padrões de beleza e saúde. Ninguém é perfeito em qualquer sentido. O ideal
não é a perfeição, mas a harmonia. Se somos cientes da nossa própria
existência, devemos ser também da nossa singularidade, e nela encontrar
uma harmonia que satisfaça.

A saúde deve ser um meio para que possamos desfrutar a vida e não um fim.
A busca da saúde pela saúde não faz sentido. Os serviços médicos e de saúde, com
influência - muitas vezes inconsciente -do marketing da indústria farmacêutica e pela
possibilidade de ganho financeiro dizem a pessoas sadias que elas estão doentes e
necessitam de medicamentos; expropriaram a saúde das pessoas, das famílias e das
crianças, tornaram-nas dependentes desses cuidados (fica muito claro em várias das
consultas a demanda por medicamentos e intervenções), mas parecem, depois, não
saber bem que tipo de cuidado oferecer. Expropriam a saúde e fazem o quê com ela?
As pessoas foram perdendo a autonomia e a capacidade de autocuidado e se
tornando cada vez mais dependentes de profissionais para resolverem questões da
vida cotidiana. Os profissionais e os serviços de saúde, especialmente públicos, estão
80

cada vez mais sobrecarregados com o atendimento de pessoas sem doença e as


famílias se sentindo cada vez mais incapazes de cuidar de processos naturais da vida
como crescimento e desenvolvimento das crianças, sem ajuda profissional. Não há
mais o senso de comunidade para ajudar no cuidado de uma criança. Se antigamente
toda a comunidade se reunia para auxiliar a família quando nascia um bebê, hoje as
mães estão mais sozinhas, inseguras e sobrecarregadas. A frase: "quem pariu Moisés
que o embale" faz cada vez mais sentido em uma sociedade individualista e que gasta
boa parte de sua energia para o mundo do trabalho. Os bebês não pertencem mais à
comunidade e sim à família, mais especificamente aos pais, muitas vezes apenas à
mãe, que se apoia nos serviços médicos para ajudá-la a dar conta desse momento
tão sagrado que é o nascimento de um filho. Nas famílias de periferia, onde foi
realizado esse estudo, isso é ainda mais complexo, pois vem associado a diversos
tipos de privações e à pouca ou nenhuma licença-maternidade. Faltam políticas
públicas de apoio à maternidade e a falta de apoio intersetorial canaliza todas as
dificuldades da maternidade aos serviços de saúde, medicalizando-as.
Le Breton (2003), em seu livro “Adeus ao Corpo”, faz uma reflexão sobre isso:

Não é mais a sociedade que fornece um significado para a existência por


meio da integração inequívoca do indivíduo. O último tende cada vez mais a
ter a si próprio como referência, a procurar em si mesmo, em seus próprios
recursos, o que em outros tempos procurava no contato com os outros, nas
instituições sociais e no recurso à cultura. Sua latitude de escolha é
considerável. Mas o paradoxo da liberdade é exigir uma bussola para orientar
seu uso... A liberdade é sempre equívoca para o homem cujo sentimento de
identidade dá prioridade à ambivalência, à ambiguidade, também à
necessidade de uma direção para amansar o fato de viver... O imaginário que
preside ao seu uso torna os psicotrópicos um dos meios simbolicamente
eficazes de produzir sua identidade pessoal e um modo que dê segurança
pela busca de um estado psicológico adaptado às condições de vida: o
indivíduo adapta sua vigilância ou sua resistência com auxílio de estimulantes
psíquicos ou de fortificantes, ou combate os efeitos do estresse tomando
tranquilizantes ou soníferos para acalmar suas tensões. O indivíduo está em
busca da melhor adequação possível à realidade social.

O cuidado em saúde, por sua vez, é reduzido à tirada de medidas corpóreas,


orientações com pouca ou nenhuma evidência científica sobre como as famílias
devem cuidar de seus filhos, padronização, preenchimento de questionários, listas de
checagem e fornecimento de medicamentos e exames laboratoriais. Movimento
parecido acontece nas escolas, que, cada vez mais precárias, mais padronizadas e
com menos recursos encaminham, aos serviços de saúde, crianças que se
comportam diferente do que elas entendem como padrão.
81

Nessa tirinha, de Bill Watterson, Calvin faz uma crítica importante a esse
movimento que limita a liberdade e a criatividade das crianças:

Figura 3 - Tirinha de Bill Watterson

Precisamos parar de oferecer soluções farmacológicas para problemas que


têm uma profundidade muito maior.
Crianças não precisam de um médico para "acompanhar, vigiar e proteger o
seu crescimento e desenvolvimento" (SBP, 2004) através de consultas mensais,
gráficos de medidas, suplementação vitamínica, exames e intervenções. Elas
precisam de boas condições de vida, casas com saneamento básico, de pais que
tenham tempo e disposição para ficarem com elas, de espaços adequados para lazer,
de acesso à creche e licença maternidade adequada.
Elas não precisam de anfetaminas para se comportarem nas escolas, precisam
de escolas libertadoras, solidárias, amorosas, em um ambiente saudável e acolhedor,
com professores com boas condições de trabalho que as ensinem a respeitar as
diferenças, com amor e compaixão.
Crianças não precisam de um médico para detectar problemas alimentares ou
colherem exame de colesterol e glicemia anualmente; elas precisam ter acesso a uma
alimentação saudável, comprada direto do produtor, livre de agrotóxico e que seus
pais tenham tempo de cozinhar com elas.
Crianças não precisam de xaropes para tosse, elas precisam ter boas
condições de moradia, casas arejadas, em um ambiente saudável, despoluído e de
contato com a natureza.
Crianças não precisam de serviços médicos; elas precisam de uma sociedade
menos desigual, com menos pobreza, menos violência, melhores condições de vida,
educação e de lazer.
82

Crianças não precisam de médicos e medicamentos; elas precisam de uma


sociedade justa, amorosa e solidária.
83

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