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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DISCIPLINA POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE MENTAL

ANA JÚLIA DIAS ALVES (12121PSI012)

RELATÓRIO PESQUISA DE ESTIMATIVA RÁPIDA


Uma discussão sobre o conceito de saúde

Uberlândia
2023
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-
estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Paralelamente
a essa concepção idealizada, é exibido no documentário Ilha das Flores, dirigido por Jorge
Furtado, uma realidade em que seres humanos são colocados inferiormente aos porcos no
acesso à comida. Nesse sentido, é evidente a distância entre a definição oferecida pela OMS e
a realidade social, o que promove uma reflexão sobre as diferentes noções de saúde, doença e
tratamento e quais aspectos modificam essa ótica.

A priori, foi realizada uma pesquisa de estimativa rápida com cinco pessoas de diferentes faixas
etárias e mesmo nível socioeconômico, classe média alta. Foram feitas três perguntas simples,
as quais discutiam os conceitos de saúde, doença e o que colocaria essa saúde em risco. Desse
modo, as resposta, as quais estão organizadas em uma tabela nos anexos, demonstraram
pequenas diferenças, a ideia central converge com o olhar biomédico. Tal olhar, valoriza saúde
de um ponto de vista fisiológico e pontua a doença como algo que abale esse corpo fisicamente.
Algumas das respostas mencionaram o aspecto psicológico como um dos pilares da saúde, mas
nenhuma evidenciou as questões sociais. Por fim, os riscos foram definidos por palavras como
sedentarismo, exposição a patologias, maus hábitos e falta de exercício.

Nesse cenário, percebe-se que o conteúdo dessas respostas reflete o pensamento de um recorte
social, o qual aproxima-se muito daquele conceito fornecido pela OMS, utópico e idealizado.
Logo, é necessário aprofundar-se nessa discussão para reconhecer que perguntas
aparentemente simples como essas, exigem respostas e investigações complexas. Dito isso, o
entendimento dos conceitos de saúde, doença e os eventuais processos de tratamento são
extremamente relativos, e além de terem passado por transformações históricas, são moldados
por, em especial, aspectos culturais e sociais.

Sob essa lógica, é inicialmente importante entender cultura como um conjunto de elementos
que mediam e qualificam qualquer atividade física ou mental, que não seja determinada pela
biologia, e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. Trata-se de
elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações
sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições
e seus modelos operativos. A cultura inclui valores, símbolos, normas e práticas. (LANGDON,
2010). Logo, cada cultura apresenta uma maneira singular de enxergar as questões de saúde e
doença e apresentam conhecimentos diferentes sobre causas e tratamentos das enfermidades,
as técnicas terapêuticas, seus praticantes, os papéis, padrões e agentes em ação nesse espaço.
Um exemplo disso, é a existência de especialistas da saúde específicos em cada grupo cultural,
tais como benzedeiras, curandeiros, xamãs, pajés, massoterapeutas, pais de santo, pastores,
padres, dentre outros. Ademais, existem em algumas culturas, doenças que não são
reconhecidas pelos livros biomédicos, como a presença de maus espíritos. Assim, percebe-se
que dependendo do referencial cultural a análise acerca da saúde de um indivíduo pode ser
completamente diferente e o mais importante é não estabelecer uma hierarquização desses
saberes.

Além disso, essa noção de saúde apresenta nuances dentro de uma mesma cultura, muito
influenciada pelas posições socioeconômicas dos indivíduos. O documentário Ilha das Flores
ilustra muito bem como essa diferenciação é feita no sistema capitalista, visto que os seres
humanos se definem, de um ponto de vista biológico, por possuírem um “telencéfalo altamente
desenvolvido e polegar opositor”. Entretanto, apesar dessa característica comum, o que garante
o acesso a condições básicas de vida é a posse de dinheiro. Por isso, os moradores de Ilha das
Flores, mesmo possuindo “telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor” eram
posicionados abaixo dos porcos na pirâmide social já que não possuíam dinheiro. Nessa lógica,
fica claro o quanto dentro de uma mesma cultura, de um mesmo país, de uma mesma cidade,
as noções de saúde e doença mudam drasticamente. Se os parâmetros de saúde fornecidos pelas
respostas da pesquisa de estimativa rápida fossem aplicados aos moradores de Ilha das Flores,
eles não seriam vistos como pessoas saudáveis, afinal, se alimentavam de alimentos podres.
Porém, me pergunto se tais questionamentos fossem feitos diretamente para essa população
quais seriam suas respostas e, particularmente, acredito que eles se enxergariam como
indivíduos saudáveis. Isso porque em nossa sociedade, saúde é muito confundida com o
conceito de normalidade (estar na média), e para eles aquelas condições eram normais, já que
eram compartilhadas pela maior parte do grupo que ali habitava e não conheciam outra forma
de viver.

A partir dessas reflexões, é possível compreender a plasticidade dos conceitos de saúde, doença
e tratamento, e que tal discussão apresenta raízes profundas em múltiplos aspectos da
sociedade, não sendo possível determinar valores universais. Diante dessa visão relativista
surgem, então, novos questionamentos sobre quais as formas corretas de intervenção dos
sistemas e profissionais da saúde, tanto no tratamento direto quanto nos projetos de
conscientização (Educação Permanente em Saúde), para que possam exercer seus papéis com
qualidade sem impor saberes acadêmicos e com respeito as particularidades de cada grupo
sociocultural.
Para essa questão, muitas propostas foram discutidas historicamente, o psiquiatra e antropólogo
americano Arthur Kleiman propôs que esse sistema seria composto por três setores, um setor
dedicado à prática profissional de cura, outro setor destinado às formas de cura populares e,
finalmente, o setor voltado para as crenças, escolhas, decisões, papéis, relações, interações e
instituições de natureza popular. Em cada um destes segmentos, indivíduos como médicos,
curandeiros, pacientes e membros das respetivas famílias adotam abordagens explicativas
diversas acerca da origem, sintomas, fisiopatologia, evolução e tratamento das doenças. Tais
interpretações variam socialmente e são moldadas em conjunto, sendo necessário um processo
de negociação durante a busca pela cura. (KLEINMAN, 1988).

No cenário brasileiro, esse equilíbrio entre os saberes se faz muito necessário, pois trata-se de
um país amplo, não apenas em dimensões geográficas, mas em aspectos culturais e sociais. Por
isso, ao se pensar em estratégias e ações de saúde promovidas pelos profissionais e órgãos
estatais é preciso, antes de tudo, identificar com que tipo de comunidade está se estabelecendo
um vínculo. A comunicação, as instruções e as intervenções precisam adaptar-se para cada
contexto específico, e não deve haver uma imposição e nem um senso de superioridade dos
saberes biomédicos. Dessa forma, os profissionais da saúde e os usuários desses serviços
devem estabelecer um diálogo, a fim de que ambos apliquem e compartilhem seus
conhecimentos em saúde, e estabeleçam uma Educação Permanente em Saúde multilateral,
sem uma hierarquização de cargos e saberes. Assim, apesar de conceituar saúde ser algo
complicado, é possível pensá-la como o nível de acesso a unidades de tratamento/prevenção, e
reconhecer que saúde e doença não são aspectos antagônicos, mas complementares (enfrentar
uma doença caracteriza um aspecto da saúde).

Portanto, conclui-se que a definição fornecida pela OMS está distante daquilo que a saúde
representa para as diferentes óticas sociais, e que não é possível defini-la de modo tão objetivo
e generalizado. É mais que importante levar em consideração as facetas culturais, sociais,
étnicas e econômicas que permeiam a construção individual e coletiva desses conceitos. Por
fim, é fundamental que os sistemas e profissionais da saúde reflitam sobre seus espaços e
ambientes de atuação e se comprometam com um modelo que, ao invés de impor
conhecimentos científicos como superiores e rotular pacientes como saudáveis ou doentes,
tenham a capacidade de deslocar-se para o ponto de vista do outro, e estabeleça uma educação
em saúde traduzida e adaptada para tal olhar.
REFERÊNCIAS

Brasil. Ministério da Saúde (2005) Curso de formação de facilitadores de educação permanente


em saúde – Unidade de aprendizagem Análise do Contexto, da Gestão e das Práticas, pp. 27-
64

Langdon, E. J., & Wiik, F. B. (2010). Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao
conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem,
18, 459-466.

Scliar, M. (2007). História do conceito de saúde. Physis: Revista de saúde coletiva, 17, 29-41.

Shirane, T. Y. (2022). Ilha das Flores: uma crítica à condição humana. Nova Perspectiva
Sistêmica, 31(72), 120-122.

Kleinman, A., Eisenberg, L., & Good, B. (1978). Culture, illness, and care: clinical lessons
from anthropologic and cross-cultural research. Annals of internal medicine, 88(2), 251-258.
ANEXO TABELA PESQUISA POR ESTIMATIVA RÁPIDA

SAÚDE DOENCA RISCOS


Saúde para mim trata-se de Ausência da saúde. Estar Exposição a patologias
ter um bom vulnerável, sem disposição (vírus, bactérias),
condicionamento, estar para viver. Baixa imunidade. sedentarismo,
psicologicamente bem e ter vulnerabilidade social.
hábitos saudáveis
(alimentação, exercício).
O conceito de saúde envolve Estar com exames ruins Além de patologias
a presença de hábitos (aspecto fisiológico). Algo independentes dos hábitos
saudáveis, tais como que impeça a pessoa de individuais. É possível
exercícios, boa alimentação viver sua vida plenamente. mencionar o sedentarismo,
e saúde mental em dia. Ter má qualidade do sono,
disposição para vida. estresse, ansiedade.
Saúde trata-se muito de Estar acometido por algum Maus hábitos, falta de
prevenção, o que envolve mal, seja de ordem física ou exercício.
questões como alimentação mental.
e exercícios. Viver bem, sob
os critérios básicos.
Estado equilibrado Algum dos aspectos Relaciona-se com o estilo de
fisicamente, biopsicossociais está vida (alimentação, atividade
emocionalmente, desequilibrado. física, felicidade).
psicologicamente e
socialmente. Estilo de vida
equilibrado na medida do
possível.

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