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Betty Mindlin
(Universidade de São Paulo)
Em pri meiro lugar, gostaria de agradecer ao CNPq, a SBPC, ao Ministério da Cultura, e muito
especialmente, a Marta Vannucci e à família de Érico Vannucci Mendes, a concessão deste prêmio.
Agradeço também à Comissão Julgadora, cuja paciência de percorrer tantos trabalhos é admirável. E
devo gratidão para sempre a Reginaldo Prandi, que foi quem me encorajou a concorrer ao prêmio e
me fez sua sucessora. Érico Vannucci Mendes é uma figura ímpar na cultura brasileira, com
interesses variados e sempre associados aos que têm menos voz, e é uma honra ser considerada
uma seguidora de suas idéias.
No caso Suruí, língua que eu falo, os mitos foram transcritos na língua, (numa escrita ainda
experimental), o que permitiu uma tradução mais acurada. Nos outros casos, a tradução para o
português é oral pelos intérpretes, e ao ser escrita por mim, contém sempre alguma dose de
recriação, em cada livro de um modo diferente, mas a intenção é a maior fidelidade possível ao
original. Os índios sempre lêem e corrigem as provas dos livros, que, quando publicados, são
enviados a todos os narradores, professores, escolas, líderes e organizações.
Em 2002, pude comprovar que muitos dos professores desses povos estão escrevendo com
fluência em suas línguas, resultado alcançado apenas recentemente. Podem agora, de fato, escrever
os mitos em suas línguas, estimulados pelas fitas gravadas para os livros, ouvindo outra vez os
narradores, pesquisando entre os guardiões da tradição. Sempre procurei incorporar pesquisadores
índios, distribuí gravadores, incentivei transcrições, mas os resultados saem gradualmente. O livro
mais recente, Couro dos espíritos, dos Gavião-Ikolen, sobre pajés e sobre o amor, traz narrativas
gravadas e traduzidas por alguns investigadores do próprio povo. É muito provável que surjam agora
54ª Reunião Anual da SBPC – Goiânia/GO – Julho/2002
escritores bilíngües, e os livros assumem o papel de documento, remetendo às fitas originais nas
línguas.
Faltam, ainda, muitas condições favoráveis, como lingüistas que poderiam apoiar os índios na
análise da tradição literária no vernáculo, e sua comparação com a do português. Seria preciso
inventar formas de apoiar a oralidade, uma vez que já houve a introdução da escrita, preservando a
variedade de estilos, onomatopéias, sons, cantos, gestos, danças, tempo extenso da narrativa,
transmissão tradicional de uma geração a outra. Talvez isso seja possível, junto com a riqueza que é
ler e escrever, conheci mento e descoberta que a nova geração está fazendo.
2. Moqueca de maridos
O terceiro livro de mitos que publiquei, seguindo-se ao dos Tupari em 1993 e ao dos Suruí em
1996, foi uma antologia de mitos de amor de 6 povos das Áreas Indígenas Rio Branco e Guaporé.
(Jabuti, Macurap, Aruá, Arikapu, Ajuru, Tupari). Muitas velhinhas encantadoras desaguaram sua
tradição, e talvez por serem mulheres, contaram histórias sexualizadas sem nenhuma censura. O
conjunto de enredos e imagens ainda me surpreende a cada leitura, com os eventos mais estranhos
contribuindo para o desencontro de homem e mulher.
3. O sexto livro, O primeiro homem, São Paulo, Cosac&Naify, 2001, foi feito para crianças – uma
pequena antologia, com mitos de criação, da cabeça voadora, de uma bruxa dos Tremembé
cearenses e vários outros, quase todos de Rondônia e Mato Grosso. Alguns são bastante cômicos,
atraindo as crianças, sobretudo quando se referem ao corpo humano e as palavras usualmente
proibidas, como um mito Cinta Larga sobre a origem do peido ou o mito Jabuti do menino cujas fezes
eram o amendoim degustado pelos primeiros criadores. A ausência de censura e a naturalidade do
imaginário indígena quando se trata da biologia, do amor, do corpo, poderia ser um exemplo para
nossas escolas, o proibido e o engraçado estimulando a leitura. Resta a pergunta se estes livros são
a verdadeira tradição indígena, se são úteis para as escolas dos índios, se desvendam ou são
invasivos de sua cultura. Tenho a impressão de que são um começo, despertando a admiração de
quem os lê por um repertório carregado de sentido e ao mesmo tempo fantasmagórico. Para que
sejam fiéis e se transformem numa verdadeira literatura, têm que ser agora recontados oralmente,
filmados, gravados, musicados e escritos nas línguas originais.