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54ª Reunião Anual da SBPC – Goiânia/GO – Julho/2002

AUTORES INDÍGENAS BRASILEIROS: SENDAS PARA


UM REGISTRO ORAL E ESCRITO
(Conferência pronunciada ao receber o Prêmio Érico Vannucci Mendes,
durante a 54ª Reunião Anual da SBPC, Goiânia/GO, 10 de julho de 2002).

Betty Mindlin
(Universidade de São Paulo)

Em pri meiro lugar, gostaria de agradecer ao CNPq, a SBPC, ao Ministério da Cultura, e muito
especialmente, a Marta Vannucci e à família de Érico Vannucci Mendes, a concessão deste prêmio.
Agradeço também à Comissão Julgadora, cuja paciência de percorrer tantos trabalhos é admirável. E
devo gratidão para sempre a Reginaldo Prandi, que foi quem me encorajou a concorrer ao prêmio e
me fez sua sucessora. Érico Vannucci Mendes é uma figura ímpar na cultura brasileira, com
interesses variados e sempre associados aos que têm menos voz, e é uma honra ser considerada
uma seguidora de suas idéias.

Tanta homenagem me deixaria encabulada, se eu não me lembrasse que o prêmio é


concedido a uma obra, seis livros de mitos indígenas, que não é minha apenas, mas coletiva, em co-
autoria com os narradores, que são, quase todos, de um tempo anterior à escrita. A maioria fala
pouco o português, representando doze línguas indígenas diferentes (Suruí, Tupari, Gavião,
Macurap, Jabuti, Ajuru, Aruá, Arikapu, Kanoé, Kampé, Zoró, Arara, Sateré-Mawé). Considero-os os
verdadeiros autores, tanto que são eles quem tem recebido os direitos autorais dos livros. Que a
sociedade brasileira tenha interesse pela tradição viva, nossa contemporânea, de 200 povos
indígenas (mais de 170 línguas), é um avanço para a causa do respeito à pluralidade cultural e à
autonomia dos índios. Os índios têm direito, consubstanciado na Constituição Federal e nas
Convenções Internacionais, às suas línguas, culturas, expressão própria, terras, organização social e
econômica, bem como à cidadania plena brasileira; mas também os brasileiros em geral têm o direito
e o dever de conhecer e apreciar esse mundo riquíssimo e variado. Nestes livros, estão publicados
aproximadamente uns 300 mitos, escolhidos entre um total de mitos gravados que deve atingir a cifra
mágica de 1001 histórias.

1. A pesquisa, a escrita e a oralidade


A pesquisa para os livros começou em 1978, com os Suruí (Paiter), foi se estendendo a outros
grupos, e se tornou muito mais intensa a partir de 1992, quando coordenei um programa multicultural
e multilíngüe de formação de professores indígenas em Rondônia. Desde os primeiros tempos eu
gravava com narradores mais velhos, homens e mulheres, com todos os pajés, as narrativas,
músicas e cantos nas línguas, mesmo quando quase não os entendia. Fui aos poucos traduzindo
com auxílio de intérpretes, ou na hora do registro, ou ouvindo depois, o que permitia comparar várias
traduções.

No caso Suruí, língua que eu falo, os mitos foram transcritos na língua, (numa escrita ainda
experimental), o que permitiu uma tradução mais acurada. Nos outros casos, a tradução para o
português é oral pelos intérpretes, e ao ser escrita por mim, contém sempre alguma dose de
recriação, em cada livro de um modo diferente, mas a intenção é a maior fidelidade possível ao
original. Os índios sempre lêem e corrigem as provas dos livros, que, quando publicados, são
enviados a todos os narradores, professores, escolas, líderes e organizações.

Em 2002, pude comprovar que muitos dos professores desses povos estão escrevendo com
fluência em suas línguas, resultado alcançado apenas recentemente. Podem agora, de fato, escrever
os mitos em suas línguas, estimulados pelas fitas gravadas para os livros, ouvindo outra vez os
narradores, pesquisando entre os guardiões da tradição. Sempre procurei incorporar pesquisadores
índios, distribuí gravadores, incentivei transcrições, mas os resultados saem gradualmente. O livro
mais recente, Couro dos espíritos, dos Gavião-Ikolen, sobre pajés e sobre o amor, traz narrativas
gravadas e traduzidas por alguns investigadores do próprio povo. É muito provável que surjam agora
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escritores bilíngües, e os livros assumem o papel de documento, remetendo às fitas originais nas
línguas.

Faltam, ainda, muitas condições favoráveis, como lingüistas que poderiam apoiar os índios na
análise da tradição literária no vernáculo, e sua comparação com a do português. Seria preciso
inventar formas de apoiar a oralidade, uma vez que já houve a introdução da escrita, preservando a
variedade de estilos, onomatopéias, sons, cantos, gestos, danças, tempo extenso da narrativa,
transmissão tradicional de uma geração a outra. Talvez isso seja possível, junto com a riqueza que é
ler e escrever, conheci mento e descoberta que a nova geração está fazendo.

2. Moqueca de maridos
O terceiro livro de mitos que publiquei, seguindo-se ao dos Tupari em 1993 e ao dos Suruí em
1996, foi uma antologia de mitos de amor de 6 povos das Áreas Indígenas Rio Branco e Guaporé.
(Jabuti, Macurap, Aruá, Arikapu, Ajuru, Tupari). Muitas velhinhas encantadoras desaguaram sua
tradição, e talvez por serem mulheres, contaram histórias sexualizadas sem nenhuma censura. O
conjunto de enredos e imagens ainda me surpreende a cada leitura, com os eventos mais estranhos
contribuindo para o desencontro de homem e mulher.

Darei um exemplo apenas, entre as 50 histórias curiosíssimas do livro. É a de um caçador que


encontra na floresta uma jovem solteira extraordinária, que sabe caçar, pescar e carrega peso muito
melhor que ele, e é além do mais linda e sedutora. Ela o convida para ir à sua casa: e lá tem 50 irmãs
igualmente atraentes, todas deliciadas por receber um marido em potencial, que o rodeiam com suas
redes e afagos, satisfazendo todos os seus desejos. O único inconveniente é que têm um pai feroz, o
único homem da aldeia. Sogro que tenta matar o caçador a cada noite, sendo impedido por pauladas
violentas das filhas, que acabam por persuadi-lo que o melhor é autorizar o namoro, e levar o jovem
para auxiliá-lo na caça e outras tarefas. O caçador vive feliz, e até já tem um filho com a pri meira
companheira, mas sente saudades da mãe e pede permissão para visitá-la. Elas concedem, desde
que ele mantenha segredo sobre sua existência. Na pri meira visita, tudo se passa sossegadamente,
mas na segunda, um Teimoso tanto atormenta o caçador, que ele acaba por revelar sua vida dupla.
O caçador aprende o caminho para as mulheres-fantasmas (pois são aparições, não gente
verdadeira) e é morto por elas. Elas desaparecem, e o caçador, tristíssimo, nunca mais as encontra,
nem revê o filho.

3. O sexto livro, O primeiro homem, São Paulo, Cosac&Naify, 2001, foi feito para crianças – uma
pequena antologia, com mitos de criação, da cabeça voadora, de uma bruxa dos Tremembé
cearenses e vários outros, quase todos de Rondônia e Mato Grosso. Alguns são bastante cômicos,
atraindo as crianças, sobretudo quando se referem ao corpo humano e as palavras usualmente
proibidas, como um mito Cinta Larga sobre a origem do peido ou o mito Jabuti do menino cujas fezes
eram o amendoim degustado pelos primeiros criadores. A ausência de censura e a naturalidade do
imaginário indígena quando se trata da biologia, do amor, do corpo, poderia ser um exemplo para
nossas escolas, o proibido e o engraçado estimulando a leitura. Resta a pergunta se estes livros são
a verdadeira tradição indígena, se são úteis para as escolas dos índios, se desvendam ou são
invasivos de sua cultura. Tenho a impressão de que são um começo, despertando a admiração de
quem os lê por um repertório carregado de sentido e ao mesmo tempo fantasmagórico. Para que
sejam fiéis e se transformem numa verdadeira literatura, têm que ser agora recontados oralmente,
filmados, gravados, musicados e escritos nas línguas originais.

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