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EXT.

ESTRADA DOS ROMEIROS - DIA

A narradora caminha pela estrada dos romeiros onde é possível


ver as casa do centro histórico.

NARRADORA
Em 1890, os leprosos caminhavam pela
estrada dos romeiros em busca de uma
cura milagrosa em Pirapora do Bom
Jesus. Diz a lenda que a imagem
sagrada de Jesus estava na capela em
Barueri, uma cidade vizinha, e com a
enchente do Rio Tietê, suas águas
acabaram levando a imagem que foi
descoberta na cidadezinha de Pirapora
e a imagem está até hoje lá. Agora
chamamos quem faz esse trajeto de fé
de romeiro. Mas os leprosos não eram
vistos com bons olhos. Toda vez que
eles passavam os moradores de Santana
de Parnaíba fechavam as janelas.

Todas as janelas se fecham.

NARRADORA
Os leprosos a cada ano ficavam cada
vez mais envergonhados com as manchas
que tinham no seu corpo e se cobriam
com um manto branco. Porém as janelas
continuavam fechando, só que com muito
mais aflição.

As janelas se fecham com mais intensidade.

NARRADORA
Na cidade de Santana de Parnaíba não
sabia quem eram aqueles misteriosos
mantos brancos vagando pela estrada e
o que não se pode explicar, como em
toda humanidade, surge uma lenda.
Assim, criou-se a landa da procissão
das almas.

INT. CASA DO CENTRO HISTÓRICO - NOITE

Henrique Preto fecha todas as janelas e tranca todas as


portas com ligeireza. A Maria, a esposa de Henrique Preto
aparece do quarto.

MARIA
Para que tanto desespero querido?
2.

Fala ofegante e com medo.

HENRIQUE PRETO
Elas estão passando...

MARIA
Elas quem meu bem?

HENRIQUE PRETO
As almas, todas elas, quer que elas
venham nos visitar e depois nos levar
para ficar vagando junto com elas?

Maria entreabre uma das janelas para ver a procissão.

MARIA
Você acredita em qualquer besteira que
te falam. Todo ano elas passam e não
fazem mal a ninguém.

Henrique Preto fecha a janela que Maria abriu.

HENRIQUE PRETO
Não deveria duvidar dos mais sábios.

MARIA
Nunca se perguntou o por quê virem
apenas uma vez no ano? Na mesma época?
O por quê do branco? A estrada dos
romeiros? Será que são um tipo de
romeiro? Tantas perguntas... Isso os
sábios não respondem.

Andando de um lado para o outro preocupado.

HENRIQUE PRETO
São apenas almas perdidas que querem
confundir você para que vaguem junto
com elas.

MARIA
Isso pode definir os tais sábios que
você mencionou.

HENRIQUE PRETO
Engraçadinha, ao invés de usar esse
seu deboche poderia contar uma
história e me tranquilizar.

MARIA
Você que se tranquilize sozinho.
3.

HENRIQUE PRETO
Desde que tudo esteja fechado estou
bem.

Alguém bate na porta. Maria vai tender e Henrique Preto a


impede.

MARIA
O que foi?

HENRIQUE PRETO
E se forem elas?

MARIA
Para de drama Henrique, deve ser um de
seus amigos do samba.

E Maria se desvencilha de seu marido e abre a porta,


encontrando uma das almas.

MARIA
Olá!

A alma permanece em silêncio.

MARIA
O que podemos ajudar?...Vou pegar um
copo de água para você.

Maria vai até a cozinha. A alma fica encarando Henrique Preto


e vice-versa, com rosto de assustado de Henrique Preto. A
alma retira de dentro do manto branco uma vela e aponta para
Henrique Preto.

ALMA
Pegue!

Henrique Preto pega tremendo a vela.

ALMA
Guarde bem, pois ano que vem eu venho
pegar de volta.

Henrique Preto pega a vela balançando a cabeça tremendo. Se


vira para guardar a vela na gaveta e quando volta para porta
não há mais ninguém por lá. A Maria volta da cozinha.

MARIA
Também fiz um café e trouxe uns
biscoitos, eu sei que a caminhada é
longa. Ora, cadê a alma?
4.

HENRIQUE PRETO
Foi embora.

MARIA
Nossa eu tinha tantas perguntas. O que
ela te disse? Não. O que você disse
para ela ir embora?

HENRIQUE PRETO
Eu não disse nada. Desviei os olhos um
minuto e ela desapareceu.

MARIA
E o que ela te disse?

HENRIQUE PRETO
Nada.

MARIA
Que alma mal educada, não aceita um
café, um biscoito, não responde minhas
perguntas.

HENRIQUE PRETO
Eu disse para não abrir a porta.

EXT. ESTRADA DOS ROMEIROS - DIA

A narradora aponta para a casa de Henrique Preto.

NARRADORA
Ali era a casa do Henrique Preto. Bem
não temos certeza de nada dentro de
uma lenda, mas é muito divertido
imaginar. Vocês devem estar pensando
por que os leprosos eram vistos desta
forma antigamente? A lepra foi uma
doença sem cura por muito tempo e as
manchas que apareciam na pele eram
tida como castigo de Deus, além de ser
muito contagiosa. Mas voltemos com
Henrique Preto, o grande sambador,
depois que ele recebeu a vela da
"alma" e a promessa que viria buscar,
toda vez que Henrique Preto afinava o
bumbo ele olhava para a vela. As duas
coisas mais sagradas que Henrique
Preto possuía. Meses se passaram até
completar um ano e a procissão viria
juntamente com o desespero de Henrique
Preto.
5.

INT. CASA DO CENTRO HISTÓRICO - NOITE

Começa a procissão e Henrique Preto repete todo ritual de


fechar toda a casa.

MARIA
Todo ano é a mesma coisa.

HENRIQUE PRETO
Esse ano é diferente.

MARIA
Por que?

HENRIQUE PRETO
Eu tenho uma coisa que é deles.

MARIA
Tem alguma coisa haver com nossa
visita ano passado?

HENRIQUE PRETO
Sim.

MARIA
Por que não me contou nada?

HENRIQUE PRETO
É uma coisa minha com eles não queria
te envolver.

MARIA
O que é?

HENRIQUE PRETO
É essa vela estranha que ele me deu e
disse que viria buscar.

MARIA
Fascinante. Bem eu achei que foi em
vão aquela visita, mas com certeza foi
incrível, vou preparar o café.

HENRIQUE PRETO
Desde de quando alma bebe café?

MARIA
É uma desfeita não ter preparado para
uma visita marcada.
6.

HENRIQUE PRETO
Não quero que seja uma visita,
entendeu?

MARIA
Mas eu quero. Vou preparar alguma
coisa.

Maria vai até a cozinha. E Henrique Preto fica fixado na


porta esperando ela bater. Depois de um tempo, ela bate.

MARIA
Eu atendo.

Henrique Preto imediatamente vira-se para gaveta e abre ela.

MARIA
Não tem ninguém.

Maria olha para os lados da rua procurando por alguém. e


Henrique Preto fica fixado no que tinha dentro da gaveta.

MARIA
Não precisa ficar assustado meu amor,
deve ser alguma criança aprontando.

HENRIQUE PRETO
Não to preocupado com isso.

MARIA
O que foi então?

HENRIQUE PRETO
Tem um osso na minha gaveta.

MARIA
Você deve ter colocado por descuido.

HENRIQUE PRETO
Essa gaveta apenas guardava a vela.

MARIA
Eu não mexi nas suas coisas.

HENRIQUE PRETO
Eu sei que não mexeu, porque eu vi a
vela antes de tocarem na porta.

MARIA
Quer dizer que a vela se transformou
em osso?
7.

HENRIQUE PRETO
Só tem uma coisa para fazer com isso.

MARIA
O que?

HENRIQUE PRETO
Samba.

Henrique Preto afina sua zabumba.

MARIA
Você não vai fazer isso sozinho nunca.

Maria pega sua caixinha e afina ela.

EXT. ESTRADA DOS ROMEIROS - DIA

NARRADORA
Henrique Preto e Maria pegaram seus
instrumentos e Henrique preto pegou o
osso para tocar sua zabumba no ritmo
do samba rural paulista em direção ao
cemitério para levar todas as almas
para seu devido lugar. Assim iniciou-
se a festa do Grito da Noite, uma
tradição do carnaval de Santana de
Parnaíba que dentro do seu trajeto
sempre passa pelo cemitério. Há boatos
que a criançada assustava o Henrique
Preto para que ele tocasse o samba e
que pudessem dançar e cantar. As vezes
dançamos e cantamos o samba sem
entender a sua história, mas tudo fica
mais encantador quando compreendemos
as histórias, lendas, construções que
foram feitas a cem, duzentos até mesmo
milhões de anos. Será que foram
realmente almas ou apenas leprosos?

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