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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE

MÔNICA LIMA DE JESUS

ATUAÇÃO PSICOLÓGICA EM SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE


DE SALVADOR DO PONTO DE VISTA DOS PSICÓLOGOS

Salvador
2005
MÔNICA LIMA DE JESUS

ATUAÇÃO PSICOLÓGICA EM SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE


DE SALVADOR DO PONTO DE VISTA DOS PSICÓLOGOS

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Saúde Coletiva, Instituto de
Saúde Coletiva, Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutora em Saúde Coletiva.

Orientadora: Prof. Mônica Oliveira Nunes

Salvador
2005

2
LIMA, Mônica.
Atuação psicológica em serviços públicos de saúde de Salvador: do ponto de vista dos
psicólogos. Mônica Lima – Salvador-Bahia, 2005.
304 f.
Orientador: Mônica Oliveira Nunes.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva, 2005.

1. Cultura psicológica. 2. Psicologia da saúde. 3. Saúde mental. 4. Psicoterapia. 5.


Unidades básicas de saúde. Teses. I. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Saúde
Coletiva. II. Nunes, Mônica Oliveira. III. Título.
CDU: 611.89

3
A João,
com você... meu mundo ficaria completo.

4
RECONHECIMENTOS

Agradeço...

À Família Lima de Jesus – Velho Chico, Mama, Márcia Lima, Marquinhos, Tchelo,
Rita Silvana, DindaMara, Chuchus e os mais novos descendentes, Gabi, Tati e Janjão –
fonte de obstinação e de curiosidade, que apóia a caçula sem medir esforços, obrigada
por tornar minha vida melhor;
À Silvinha Ferreira, que me acolhe como filha e representa um modelo que guia a
minha formação acadêmica;
À Ná, pela amizade incondicional;
A Guga, amigo de todas as horas e agora de todos os lugares;
À Paulina, que mesmo de longe se mantém atentamente perto;
À Dri, Mil, Iarinha, Concinha, Julinho, Núbia, CA, Ollie, Mifis, Tetê, Fabi, Dezoito
parte cativa da turma da Moli;
A Pin, com quem quero sempre poder contar;
À Tia Cléo e Meu Avô, que conduzem o mistério da minha existência;
À Vladinha, por me presentear com sua amizade;
Aos amigos-pesquisadores do NISAM, Mônica, Maurice, Alexandre, Vládia, Vitória e
Milton, pelo incentivo até aos domingos;
Aos mais novos colegas de trabalho do Colegiado de Psicologia da UNIVASF, Mônica,
Afonso Henrique, Luís Augusto, Christian, Elzenita, Aléssia, Leonardo e Lúcia, pelo
apoio na reta final da escrita da tese;
À Maria Luíza Miranda, que escutou o que muitos só podem ouvir sobre mim;
Ao professor Carlos Caroso, que, nos primeiros anos do doutoramento, me acompanhou
com a competência que lhe é peculiar; agradeço por conduzir a definição do objeto de
estudo que discuto nesta tese;
À professora Mônica Oliveira Nunes, por ter acolhido o meu trabalho em momento tão
delicado. Torno-me extremamente grata pela orientação primorosa, marcada pelo
cuidado minucioso e pelo respeito;
Aos amigos do doutorado, MirelaPaloma, Artenira, MônicaAnjinho, ÂngeloCatedrático
e FernandoVascon, pelas discussões frutíferas regadas ao bom vinho. Que chegue a vez
da Czarina degustar o ―Pape‖!;

5
Ao professor Ordep Serra, pela condução humorada e pelo rigor na leitura dos nossos
projetos de tese;
Ao professor Jorge Iriart, pelas discussões fundamentais que promoveu em suas aulas;
Às professoras Leny Trad e Jane Russo, pelas contribuições na qualificação do projeto
de tese;
Ao professor Marcos Vinícius, que não faz idéia de quanto me impulsionou nesta
jornada;
A Wilson Sampaio, pelas conversas ―filosóficas‖ sobre a formação de psicólogos; e aos
colegas de trabalho da UNIFACS, pelo incentivo;
Aos funcionários e amigos do LIS, Moisés e Cliger;
Aos funcionários da biblioteca do ISC, Creuza, Dario e Bia;
Aos funcionários do CRP-BA/SE, pela disposição em me ajudar;
Ao CNPq, pelo apoio técnico-financeiro nos primeiros anos do doutoramento;
À Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, por ter autorizado o meu acesso aos
serviços públicos de saúde;
Por fim, agradeço muitíssimo aos psicólogos entrevistados, por reservarem um pouco
do seu tempo corrido para compartilharem comigo suas experiências profissionais,
possibilitando as nossas interpretações.

6
Onde não há jardim, as flores crescem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Drummond de Andrade

7
RESUMO

Esta tese buscou compreender como atuam os psicólogos e quais significados atribuem
às suas práticas desenvolvidas nos serviços públicos de saúde de Salvador. O trabalho
de campo foi realizado entre os anos de 2002 a 2003, inspirado no modelo teórico-
metodológico de Sistema de Signos, Significados e Práticas. Foram entrevistados 21
psicólogos, dos quais sete trabalhavam em Unidades Básicas de Saúde - UBSs, 12 em
um dos três Centros de Saúde Mental – CSMs, e dois em outros locais, vinculados à
Secretária Municipal de Saúde de Salvador. A coleta de dados foi realizada através de
entrevistas semi-estruturadas e de observações assistemáticas. As atividades
desenvolvidas pelos psicólogos são similares, apesar de serem realizadas em níveis
diferentes de assistência à saúde. Predomina a oferta de psicoterapias individual e em
grupo com orientação em psicanálise. A despeito da orientação teórica, todos os
profissionais modificam a prática para adequá-la ao atendimento da população que
busca os serviços. Identificamos três modalidades de trajetórias profissionais: de
conflito, que tende à ociosidade do profissional; de reprodução, que conduz ao
isolamento típico da assistência ambulatorial; de construção, que demonstra uma certa
abertura para busca de atuação fora da clínica tradicional. Foram identificados alguns
signos e seus significados que qualificam a função do psicólogo nos serviços e as
práticas desenvolvidas que lhe dão identidade profissional: escuta, demanda,
psicoterapia, aconselhamento, terapia de apoio, de suporte, de grupo, entre outras. As
práticas psicológicas desenvolvidas foram categorizadas em psicoterapias e para-
psicoterapias, considerando as diferenças em relação a quem se destinam e às suas
funções terapêuticas, de como e onde são realizadas. Há duas grandes dimensões de
significação atreladas às práticas psicológicas que guiam a escuta psicológica: a
individual e a coletiva. A escuta psicológica tende a dar mais ênfase à dimensão de
significação individual, atribuindo-lhe maior função psicoterapêutica; tende a
negligenciar e desqualificar a dimensão socioeconômica e cultural, que escapa ao jogo
da produção de sentido do sofrimento. Foi possível categorizar a escuta psicológica em
cautelosa ou asséptica, dependendo da inclusão e manejo dos psicólogos em relação às
dimensões de significação dos problemas apresentados pelos usuários. Nestes serviços,
opera-se uma seleção socioculturalmente informada da clientela para os atendimentos
psicológicos, sendo o emprego das para-psicoterapias e da terapia de grupo proveniente
de uma estratégia dos profissionais para lidarem com demandas psicológicas de pessoas
pouco afeitas ao ideário individualista. Há necessidade de renovação da atuação
psicológica, considerando os diferentes modos de subjetivação apresentados pela
clientela que busca atendimento psicológico e as noções caras à reforma psiquiátrica em
relação ao papel e ao lugar da clínica para o cuidado em saúde mental. Nesta direção,
apresentamos uma proposta que denominamos atuação psicológica coletiva como um
ponto de partida para orientar a organização do trabalho do psicólogo em UBSs.

Palavras-Chaves: cultura psicológica; psicologia da saúde; saúde mental; psicoterapia;


unidades básicas de saúde.

8
ABSTRACT

This dissertation seeked to understand how psychologists work, and which meanings
relate to their practices implemented in public health services in the city of Salvador,
Bahia, Brazil. The field study was carried out from 2002 to 2003 and was inspired by
the theoretic-methodological model of Signs, System, Meanings and Practices. 21
psychologists were interviewed, seven of which worked in the Basic Health Unit
(UBSs), 12 in one of the 3 Mental Health Centres (CSMS), and 2 in different venues
associated to the municipal Health Department in Salvador. The data collection was
done through semi-structured interviews and unstructured observations. The activities
developed by the psychologists are similar despite being carried out in different levels
of health assistance. There is predominance in the availability of individual and group
psychotherapy, oriented by psychoanalysis. In spite of theoretical orientations, all
professionals modify their practices to accommodate them to the assistance of the
people who look for these services. We identified three modalities of professional
trajectories: conflict, which deals with professionals‘ idleness; reproduction, which
leads to typical isolation of clinical assistance; and construction, which shows a certain
openness to seek practices outside the traditional clinic. We identified various signs and
their meanings that qualify the function of the psychologists in the services and
practices implemented, which provide a professional identity: listening, demand,
psychotherapy, advice, support therapy, group therapy, and others. The psychological
practices implemented were categorized in psychotherapies and para-psychotherapies,
considering the differences in relation to whom they were aimed at, and their
therapeutic functions—how and when they are realized. There are two major meaning
dimensions tied to psychological practices, which guide the listening: the individual and
the collective. The listening tends to emphasize the individual meaning dimension,
attributing a greater psychotherapeutic function. The listening also tends to neglect and
disqualify the socioeconomic and cultural dimension, which fades from the production
of the sense of suffering. It was possible to categorize the listening as cautious or
aseptic, depending on the inclusion and management of the psychologists in relation to
the meaning dimensions of the problems presented by the clients. The clientele in these
services is socio-culturally well informed. The employment of the para- psychotherapies
and group therapy derives from professionals‘ strategies to deal with the psychological
demands of the people least pleased with individual ideology. There is a necessity to
renew psychological performance considering the different types of subjectivity
displayed by the clients that seek psychological counselling. Thus, within this
perspective we present a proposal denominated Collective Psychological Consultation
as a starting point to guide the organisation of the work of the psychologists in UBSs

Keywords: psychological culture; psychology of the health; mental health;


psychotherapy; basic units of health.

9
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Distribuição de psicólogos vinculados à SMS de Salvador em 2002, por


sexo, empregados nas Unidade Básicas de Saúde (UBS), por Distrito
Sanitário (DS).

Quadro 2 Distribuição de psicólogos vinculados à SMS de Salvador em 2002, por


sexo, empregados nos Centros de Saúde Mental (CSM), por Distrito
Sanitário (DS).

Quadro 3 Distribuição de psicólogos vinculados à SMS de Salvador em 2002, por


sexo, empregados nas Unidades Especializadas (EU), ou à disposição de
outros de ponta, por Distrito Sanitário (DS).

Quadro 4 Distribuição de psicólogos trabalhando nos serviços de saúde de


atendimento direto à população, por período de entrada, na Rede Pública
de Saúde de Salvador.

Quadro 5 Distribuição de psicólogos, por faixa etária, vinculados à SMS de


Salvador.

Quadro 6 Distribuição de psicólogos por sexo, vinculados à SMS de Salvador.

Quadro 7 Caracterização dos psicólogos, por tempo de serviço (Geral e no de


Saúde), orientação teórica, principal atividade desenvolvida em UBSs.

Quadro 8 Caracterização dos psicólogos, por tempo de serviço (Geral e no de


Saúde), orientação teórica, principal atividade desenvolvida em CSMs.

Quadro 9 Caracterização dos psicólogos, por tempo de serviço (Geral e no de


Saúde), orientação teórica, principal atividade desenvolvida em CR
DST/AIDS.

10
LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS
SMS Secretária Municipal de Saúde

SESAB Secretaria de Saúde do Estado da Bahia

SUS Sistema Único de Saúde

CTA Centro de Testagem e Aconselhamento

COAS Centro Orientação e Aconselhamento Sorológico

AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

CMS Centro de Saúde Mental

UBS Unidade Básica de Saúde

ONG Organização Não Governamental

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

DST Doença Sexualmente Transmissível

IST Infecção Sexualmente Transmissível

CRP Conselho Regional de Psicologia

CFP Conselho Federal de Psicologia

UFBA Universidade Federal da Bahia

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

CNS Conselho Nacional da Saúde

SAME Serviço de Atendimento Médico

PSF Programa de Saúde da Família

ACS Agente Comunitário de Saúde

S/ssp Sistema de Signos, Significados e Práticas

FUSEB Fundação de Saúde do Estado da Bahia

11
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 15

1.1 PROBLEMÁTICA, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA DO ESTUDO 17

2. CULTURA PSICOLÓGICA: algumas implicações para a atuação psicológica 26


nos serviços públicos de saúde.

2.1 PRÁTICAS PSICOLÓGICAS E OS MENOS AFEITOS AO IDEÁRIO 33


INDIVIDUALISTA: algumas reflexões sobre os efeitos da difusão da cultura
psicológica.

3. O PSICÓLOGO NO CONTEXTO DA SAÚDE PÚBLICA: compromisso 63


social e atuação psicológica

3.1 INCLUSÃO DO PSICÓLOGO NAS EQUIPES MULTIDISCIPLINARES 73


DE SAÚDE: alguns reflexos das políticas públicas de saúde.

3.2 A ATUAÇÃO PSICOLÓGICA NO CONTEXTO DO SISTEMA ÚNICO DE 82


SAÚDE: algumas indicações.

3.3 O LUGAR DA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA NO CONTEXTO DA 87


RFORMA PSQUIÁTRICA: algumas críticas e orientações.

4. MODELO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA: sistema de signos, 94


significados e práticas.

4.1 LER É DIFERENTE DE ESCUTAR: algumas contribuições da antropologia 102


interpretativa

5. CONTEXTOS E TEXTOS DE PESQUISA: de onde emergem e quem os 111


produz.

5.1 Descrição geral do delineamento da investigação 111

5.2 Estratégia e instrumento de coleta de dados 115

5.3 Algumas considerações sobre os serviços públicos de saúde visitados 117

5.4 Caracterização dos interlocutores-chave 120

5.5 Considerações éticas da pesquisa 121

12
6. TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS NAS UNIDADES BÁSICAS DE SÁUDE: 126
as repercussões da identidade profissional

6.1 TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS: de conflito e de reprodução 130

6.2 TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS de construção 136

6.3 TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS: algumas considerações sobre a crise de 137


identidade profissional e a formação em psicologia

7. TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS NOS CENTROS DE SAÚDE MENTAL 151


(CSM): o lugar que lhes é de direito?

7.1 Trajetórias profissionais no CSM-F: desistência, desânimo, abertura e 154


conformismo.

7.2 Trajetórias profissionais no CSM-G: abertura e conformismo 162

7.3 Trajetórias profissionais no CSM-H: conflito, desilusão e abertura 171

8. ESCUTA, DEMANDA E NECESSIDADES PSICOLÓGICAS: o que se pode 172


ler sobre quem se ouve, ou que se pode oferecer a quem se ouve?

8.1 PSICOTERAPIA DE GRUPO: demanda institucional ou necessidade de 201


saúde?

9. SIGNOS E SIGNIFICADOS DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS 205


DESENVOLVIDAS EM SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE.

9.1 PSICOTERAPIAS E PARA-PSICOTERAPIAS: vertentes da atuação 208


psicológica

9.2 ATUAÇÕES PSICOLÓGICAS: dimensões de significações e função 216


terapêutica

9.2.1 ATUAÇÕES PSICOLÓGICAS: dimensão de significação individual 220

9.2.2 ATUAÇÕES PSICOLÓGICAS: dimensão de significação coletiva 232

9.3.3 ESCUTA PSICÓLOGICA e MODOS DE SUBJETIVAÇÃO: abrindo 245


questões.

10. ATUAÇÃO PSICOLÓGICA COLETIVA EM UBS: um ponto de partida 255


para uma renovação do trabalho psicológico.

13
10.1 TRAJETÓRIA PROFISSIONAL: de abertura e de renovação 257

11. O LUGAR DO PSICÓLOGO E DA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA: últimas 271


considerações

12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 288

13. ANEXOS 296


Anexo A: Tabelas do estudo de Franco e Mota (2003).
Anexo B: Diversas tabelas do estudo de Cammarota (2000).
Anexo C: Quadro sintético comparativo entre a psicanálise e a psicoterapia breve
de orientação psicanalítica elaborado por Braier (1997).

14. APÊNDICES 302


Apêndice A: Roteiro de entrevista para os psicólogos empregados em serviços de
saúde.
Apêndice B: Termo de consentimento esclarecido.

14
1. INTRODUÇÃO

Obstinação

Diante desta pedra me concentro:


Nascerá uma luz se o meu querer,
De si mesmo puxado, resolver
O dilema de estar aqui ou dentro.

José Saramago, Os Poemas Possíveis.

O texto possível que ora apresento decorre de um processo de doutoramento marcado

pelo significante obstinação 1, retomado aqui em duas direções convergentes e

complementares. No primeiro sentido, persistência e perseverança, remonta a um

interesse que surgiu ainda na graduação, quando já me perturbava o alto índice de

desistência e abandono dos atendimentos psicoterapêuticos de uma clientela carente que

buscava o Serviço de Psicologia da UFBA2, cuja procura, em contrapartida, crescia a

cada semestre. No entanto, isso não era tomado como um problema de investigação por

parte dos envolvidos no processo de formação de futuros psicólogos, ainda que as

dificuldades daí decorrentes não escapassem aos mesmos 3.

Ao longo da minha formação e na qualidade de professora de Psicologia da

Saúde, a problemática que envolve a falta de acesso e a necessidade de adequação do

atendimento psicológico para as classes populares sempre esteve presente como uma

questão aberta, bem como a importância do tema para a formação dos psicólogos. A

minha entrada no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva sinalizou uma maior

urgência de familiarização com a literatura, que tem buscado compreender a inserção do

1
No Aurélio (2004), encontramos as seguintes acepções para o termo obstinação: 1. Pertinácia,
persistência, tenacidade, perseverança: trabalhar com obstinação. 2. Teima, birra: Continuou a insistir,
só por obstinação.
2
Em 1997, no último ano do curso de psicologia, desenvolvi, com mais três colegas, sob orientação da
professora Ana Cecília Bastos, a pesquisa intitulada ―Abandono e desistência de atendimento
psicoterapêutico no Serviço de Psicologia da UFBA‖, quando entrevistamos a clientela, como atividade
da disciplina Prática de Pesquisa em Psicologia.
3
É importante ressaltar que, apesar de não ter havido pesquisa sobre este aspecto, no período em que eu
freqüentava o Serviço como estagiária, a adesão da clientela sempre foi um tema recorrente nas reuniões
internas promovidas pelo Serviço.

15
psicólogo nos serviços públicos de saúde e o compromisso social da psicologia para o

estudo do processo saúde-doença-cuidado.

No segundo sentido do termo obstinação, a princípio mais jocoso, significando

teima e birra, parece adequado por apontar para a insistência de levar a cabo uma

pesquisa com o modelo teórico-metodológico que me coloca em um lugar melindroso:

no duplo papel de psicóloga-pesquisadora. Em relação a este aspecto, serei mais prolixa

ao apresentar o modelo de Sistema de Signos, Significados e Práticas e descrever o uso

que fiz dele na presente tese. Por enquanto, tenho que admitir que fui tomada por uma

certa teimosia ao apostar que os aspectos sociais e culturais incidem na atuação

psicológica e a torná-los mais evidentes no contexto da saúde pública. Nesse sentido o

que me parece importante é que, sendo psicóloga entrevistando colegas, busco, no

entanto, não me valer exclusivamente das explicações teóricas produzidas dentro do

campo da própria psicologia, lançando um olhar crítico sobre as mesmas e interpretando

a partir de referenciais provenientes de outros campos disciplinares.

Lembro que, em algum momento desse trabalho, ouvi de uma ex-professora,

naquele momento como colega de trabalho: ―cuidado para não buscar briga com a

categoria‖, após ter-lhe informado sobre a minha pesquisa, ainda que de modo muito

superficial. Este efeito colateral, de certo que não estava entre meus objetivos; a partir

de então passou a ser uma possibilidade da qual busquei distanciar-me. Neste terreno,

em alguns momentos, tornou-se uma birra a conclusão do trabalho, porque comumente

fico impaciente com profissionais que procuram reduzir toda complexidade da

experiência humana aos cânones de uma única abordagem teórica, tomando tudo que

está fora do seu circuito como irrelevante, e que não reconhecem a importância de

identificar e discutir os limites da sua área em nome do corporativismo.

16
Por fim, para que de fato nós possamos começar, tenho que admitir que a

obstinação possibilitou-me aprender muito mais com os interlocutores do que pude, ou

fui capaz de retratar ao ler as suas trajetórias profissionais e as descrições sobre a

atuação psicológica em situações de trabalho em saúde pública.

1.1 Problemática, objetivos e justificativa do estudo

A ampliação da atuação de psicólogos no campo da saúde pública, antes circunscrita a

serviços especializados de saúde mental, é considerada emergente no Brasil (SPINK,

1992; LO BIANCO e outros, 1994; BASTOS e ACHCAR, 1994; DIMENSTEIN, 1998;

CARVALHO e YAMAMOTO, 1999). Esta expansão, decorrente da saída dos

psicólogos da clínica privada para a área de saúde pública, tem como impulsionador um

amplo movimento de forças sociais, que envolve empresários, profissionais de saúde,

usuários interessados em discussões sobre as condições de saúde da população,

consolidando-se em propostas concretas nas últimas Conferências Nacionais de Saúde e

nas específicas de Saúde Mental. Um importante aspecto dessa expansão refere-se à

política de recursos humanos em saúde que incentivava a formação de equipes

multidisciplinares (LO BIANCO e outros, 1994; DIMENSTEIN, 1998; CARVALHO e

YAMAMOTO, 1999).

No Brasil, a atuação dos psicólogos na saúde pública ocorreu inicialmente no

campo da saúde mental em níveis secundário e terciário (em hospitais psiquiátricos e

gerais, e gradativamente, nos ambulatórios psiquiátricos e gerais), expandindo-se,

mesmo que timidamente, para as unidades básicas de saúde e outras instituições

(escolas, creches e organizações que empreendem ações de saúde) (LO BIANCO e

outros, 1994). Este deslocamento é atribuído às ações sociais e políticas para a

efetivação da reforma psiquiátrica, que impulsionaram a crítica ao modelo asilar e

17
alimentaram propostas de atuação multiprofissional para a melhoria da qualidade da

assistência à saúde mental (SPINK, 1992; DIMENSTEIN, 1998), reforçadas pela busca

do Estado para diminuir os custos hospitalares e ampliar a atenção secundária e

primária, abrindo espaço para o trabalho em equipe, incluindo o psicólogo (LO

BIANCO e outros, 1994; DIMENSTEIN, 1998).

Não há trabalhos que descrevam a inserção dos psicólogos na área da saúde

pública em Salvador. Contamos com o estudo de Cavalcante (1984), que caracteriza o

perfil dos primeiros egressos do curso de Psicologia da UFBA, cadastrados no CRP 03

Bahia/Sergipe, anunciando o que denominaremos aqui acesso pessoal, entre 1970 a

1980, caracterizado pela entrada de psicólogos por iniciativa e esforço próprios e em

quantidade ínfima nos serviços públicos. Neste estudo, a autora identificou as principais

áreas de trabalho do psicólogo: a) a clínica, onde havia 27,7%; b) a de

trabalho/organizacional 14,3%; c) a de educação, que contava com 6,3%, d) a de ensino,

onde havia 3,6% (CAVALCANTE, 1984). No primeiro momento, poderíamos pensar

que não havia psicólogos inseridos na área de saúde pública entre 1973 e 1982, em

Salvador, período de análise desse estudo. No entanto, é preciso ressaltar os tipos de

instituições que alocavam tais egressos. Na área clínica, 56,9% deles trabalhavam em

consultórios particulares, e 29,2% nos órgãos da Administração Pública (INPS, UFBA,

FAMEB, Secretaria da Saúde, IAPSEB, FUNABEM e Secretaria de Segurança Pública)

(CAVALCANTE, 1983). Neste sentido, portanto, podemos considerar que havia

profissionais de psicologia atuando na área de saúde pública.

Cabe registrar que o cargo de psicólogo na instituição pública de saúde mental

surgiu em 1974, em Salvador, quando da contratação das duas primeiras psicólogas para

atuarem em um hospital psiquiátrico. De acordo com uma delas, este fato ocorreu no

momento em que surgia como ―política da [Fundação de Saúde do Estado da Bahia]

18
FUSEB, a preocupação de oferecer aos pacientes agudos do hospital psiquiátrico um

tratamento diferenciado e mais intensivo visando um menor tempo de internamento.

Com isto objetivava manter um vínculo do paciente com a sua família e reduzir o

estigma de que o doente mental deveria ser afastado da sociedade (comunicação oral) 4‖.

Em Salvador, a entrada dos psicólogos na assistência à saúde mental não ocorreu

de modo tão tranqüilo; muitas vezes, havia atores sociais que alimentavam os embates

acirrados, os conflitos e as diferenças entre os profissionais vindos de áreas diversas, ao

colocarem em cheque a importância de se ter um psicólogo, psicanalista, no caso, numa

equipe de atendimento a psicóticos. Neste terreno, esse descrédito em relação à função

exercida pelo psicólogo alicerçava obstáculos quase intransponíveis nas equipes de

saúde mental em hospitais psiquiátricos, já na década de 1980. Nas palavras de uma

psicóloga-psicanalista que atuou neste período, podemos perceber a busca para abrir e

garantir um espaço para o psicólogo e para o ―cuidado da subjetividade‖ das pessoas

com transtornos psicológicos graves:

Aí é que começou a luta, porque eles questionavam, nas reuniões entre


técnicos, o diretor, sobretudo o pessoal da direção e da Secretaria de Saúde
perguntavam assim: “mas pra que serve um psicólogo numa equipe de
atendimento a psicótico, vai fazer o quê? [...] Porque T.O, a gente sabe, vai
ocupar o paciente, assistente social vai atender as famílias, o médico, a
gente... é obvio e evidente, enfermeira é o básico, e vocês vão fazer o que‖?
Era assim, era raso assim, como eu estou dizendo. Então o que a gente tinha
que fazer? Precisou de muitos documentos pra provar que o profissional de
psicologia passava cinco anos na faculdade se preparando pra ser um clínico
e que ele estava aqui, porque ele tinha aula de psicopatologia, porque ele
estava tecnicamente habilitado pra atender clinicamente. Então, que ele
deveria estar também no atendimento de psicóticos, com essa formação toda.
Qual é a razão pra excluir? Então a gente perguntava ao avesso: por que
vocês nos excluem se temos cinco anos de um curso, no mínimo, de cinco
anos de graduação com disciplinas, tais como: psicopatologia teórica e
prática, várias matérias técnicas, individual e grupal e etc.? A gente se pautou
no currículo para perguntar ao contrário, ao avesso, fazendo a inversão da
pergunta: por que nos excluem se estamos preparados talvez mais do que
o psiquiatra, [...]. Por que vocês querem nos excluir dessa equipe? Então,
foi um diálogo longo, foi uma briga longa até provarmos à Associação
Psiquiátrica, que na época alegou... quem estava à frente dessa discussão com
a Secretária de Saúde.

4
Comunicação oral de uma das primeiras psicólogas contratadas pela FUSEB sobre a inserção do
psicólogo na área de saúde mental, no I Encontro Estadual dos Psicólogos da Saúde, em 1992.

19
Já em 1998, no âmbito do CRP 03 Bahia/Sergipe, os dois principais setores de

atuação eram: 1) o consultório particular, onde havia 36% dos psicólogos; 2) os

hospitais, ambulatório e pronto socorro, onde havia 19% deles, seguidos pelos setores

de empresa/psicotécnico, que contavam com 16,5, e o de docência/pesquisa/escola, que

dispunha de 16,0% dos psicólogos registrados (SANTOS, 1998). A autora considerou

que 58% dos psicólogos estavam associados à área de saúde, 17% à de educação; 14%

do trabalho/organizacional e apenas 4% à área social. Este estudo, ao comparar seus

resultados com trabalhos anteriores (CRP, 1988; 1994), reafirma a tendência apontada

para o cenário nacional em relação ao crescente aumento da atividade clínica/saúde e ao

número paulatinamente menor de profissionais ingressos na área de organizacional, na

última década, justificada pelo direcionamento dos psicólogos para os hospitais, clínicas

e postos de saúde (SANTOS, 1998).

No Brasil, a inserção de psicólogos nas unidades básicas de saúde (UBS)

acompanha o movimento de expansão da assistência à saúde mental. Em Salvador, a

entrada de psicólogos nas UBSs ocorreu na década de 1990, um pouco mais tardiamente

do que em outros estados do Brasil, de acordo com nossos entrevistados. No entanto,

após mais de três décadas da entrada do primeiro profissional de psicologia na rede

pública de saúde, a despeito do relevo que esta problemática vem tendo no panorama

nacional, há uma lacuna de estudos sobre a inserção e a atuação dos psicólogos na Bahia

no campo da saúde pública, realidade que nos conduziu à seguinte pergunta de pesquisa:

como atuam os psicólogos e quais significados atribuem às práticas psicológicas

desenvolvidas nos serviços públicos de saúde, vinculados à Secretaria Municipal de

Saúde de Salvador? Nesta direção, definimos, para o nosso estudo, os seguintes

objetivos específicos:

20
1) ‗Descrever o acesso e a inserção dos psicólogos nos serviços públicos de

saúde, descrevendo suas trajetórias profissionais;

2) Identificar e descrever as práticas desenvolvidas pelos psicólogos em

Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e nos Centros de Saúde Mental (CSMs);

3) Identificar e descrever os aspectos singulares das práticas desenvolvidas e

verificar em que medida elas se distanciam/aproximam das realizadas em

consultório privado;

4) Compreender os significados atribuídos pelos psicólogos às práticas

desenvolvidas;

5) Identificar e descrever os fatores que dificultam, ou impedem, a realização

da atuação psicológica em tais contextos;

6) Esboçar uma ―proposta‖ de atuação psicológica em UBS.

Para atingir e contextualizar esses objetivos, a presente tese desenvolve os

seguintes aspectos. No capítulo dois, sistematizamos boa parte da literatura que se

ocupa de entender o surgimento e a difusão da cultura psicológica, destacando as

principais idéias que alimentam e contextualizam a problemática do nosso estudo. Neste

terreno, embora contemos com uma rica produção sobre a repercussão da cultura

psicológica na sociedade brasileira (FIGUEIRA, 1981; 1985; 1987; 1988; VELHO,

1987; RUSSO, 1993), que em uma das suas vertentes de interesse inclui a preocupação

em relação às particularidades de se oferecer atendimento psicológico para uma parte da

população supostamente menos afeita ao ideário individualista (COSTA, 1989;

BEZERRA-JÚNIOR, 1993; FIGUEIREDO, 1995; FIGUEIREDO, 1997; NUNES,

1993; SILVA, 1995), há poucos estudos sobre a difusão dessa cultura, a partir da

inserção dos psicólogos no campo da saúde pública, para o contexto soteropolitano. Por

21
enquanto, cabe situar que o esquema analítico que sobressai à relação indivíduo-pessoa,

a partir da hipótese de que existe uma diferença cultural entre os modelos relacionais de

―pessoa‖ e o modelo de ―indivíduo‖ ocidental moderno, tem se constituído no Brasil

como uma grande e frutífera linha de pesquisa, desde a década de 1970, enraizando-se

nos estudos sobre o processo saúde-doença (DUARTE, 2003).

No que concerne à produção dentro da própria psicologia sobre a sua inserção no

campo da saúde pública, o que se encontra é um número significativo de trabalhos que

identificam problemas e desafios para uma atuação psicológica mais adequada dentro da

rede de saúde pública, enfatizando as repercussões da formação de psicólogos na

graduação para atuarem neste espaço de trabalho (SILVA, 1992; LO BIANCO e outros,

1994; BASTOS e ACHCAR, 1994). Estes estudos foram elaborados pelos teóricos da

psicologia sócio-histórica (BOCK, 1999; 2003) e pelo Conselho Federal de Psicologia

(1988; 1994), discutidos no terceiro capítulo. Neste momento, aproveitamos para

sumarizar alguns conceitos e noções vistas como pertinentes para orientarem a atuação

psicológica neste contexto de trabalho.

No capítulo quatro, apresentamos os fundamentos teóricos e metodológicos do

sistema de signos, significados e práticas (S/ssp) (BIBEAU, 1992; BIBEAU e CORIN,

1995; ALMEIDA-FILHO, e outros s/d; s/d(a); ALMEIDA-FILHO, COELHO e

PERES, 1999; CAROSO, RODRIGUES e ALMEIDA-FILHO, 1996; 1998) que

inspirou o presente estudo. No capítulo cinco, apresentamos o delineamento da

pesquisa, os procedimentos de coleta de dados, os sujeitos e os contextos da pesquisa e

as considerações éticas. No total, foram entrevistados 21 psicólogos, dos 24 trabalhando

no atendimento direto à população, distribuídos em seis UBSs, em três CSMs e em dois

outros locais de trabalho para atendimento em DST-AIDS. Para o referido período,

ressaltamos que a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador contava apenas com 28

22
psicólogos. A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semi-estruturadas e de

observações assistemáticas nos serviços visitados.

Entre os capítulos seis e dez, apresentamos os nossos resultados e discussões. No

capítulo seis, descrevemos as trajetórias profissionais (TPs) dos psicólogos nas UBSs.

Foram identificadas três modalidades de TPs, que denominamos como: 1) trajetória de

conflito, que tende à ociosidade do profissional; 2) trajetória de reprodução, que conduz

ao isolamento típico da assistência ambulatorial; e 3) trajetória de construção, que

demonstra uma certa abertura para a busca de atuação fora da clínica tradicional.

No capítulo sete, descrevemos as trajetórias profissionais concernentes aos

CSMs. Nesses locais, observamos que todas as trajetórias aí desenvolvidas configuram-

se como trajetórias de reprodução, no sentido de que os psicólogos organizam o

trabalho nos ambulatórios de saúde mental reproduzindo o modelo de consultório

privado e de que não há vestígios de trabalho mais integrado para o cuidado à saúde

mental dos usuários. No entanto, as variações encontradas nas modalidades de

trajetórias profissionais reconstruídas estão condicionadas ao grau de flexibilidade da

gerência, à possibilidade de organizar o trabalho nos moldes da clínica particular, à

capacidade de lidar com os desafios decorrentes do seu encontro com a população mais

pobre.

Para a elaboração dos capítulos oito e nove, o primeiro passo foi identificar

alguns signos utilizados pelos entrevistados para descreverem as atividades que

desenvolvem e que lhes atribuem identidade profissional, a saber: escuta, demanda,

psicoterapia, aconselhamento, apoio, suporte, terapia, terapia de grupo, entre outras. A

partir da polissemia encontrada, buscamos compreender os seus significados.

Inicialmente, no capítulo oito, discutimos a utilização polissêmica dos

psicólogos do termo demanda e identificamos seus sentidos, os quais categorizamos

23
em: a) institucional; b) espontânea, ou sem intermediário; c) familiar, d) diferenciada; e)

médica; f) de triagem, todas essas em contraponto a g) demanda psicológica. Ainda

neste capítulo, identificamos e descrevemos as relações entre as demandas e as

necessidades de tratamento psicológico.

No capítulo nove, foram apresentados os signos e significados das práticas

desenvolvidas pelos psicólogos nos serviços públicos de saúde. As principais práticas

psicológicas desenvolvidas foram caracterizadas em duas amplas categorias,

psicoterapias e para-psicoterapias, considerando: a) as diferenças em relação a quem se

destinam e suas funções terapêuticas; b) como e onde são realizadas; c) a influência dos

dispositivos institucionais sobre a realização das mesmas. A análise dos dados permitiu

que identificássemos e descrevêssemos, o que denominamos de dimensões de

significação de um problema de saúde e que tecêssemos interpretações sobre como

elas guiam a escuta psicológica. Foi possível identificar, do ponto de vista dos

psicólogos, duas tendências frente aos conteúdos socioculturais presentes nas demandas

da clientela em atendimento psicológico, que denominamos: uma tendência mais

asséptica e uma postura mais cautelosa. Neste momento, buscamos descrever o que

entendemos como escuta psicológica socioculturalmente orientada.

Por fim, no capítulo dez, em um retorno inesperado ao contexto da pesquisa, já

em meados de 2004, pudemos descrever a trajetória profissional de uma psicóloga que

se mostrou rica por servir de exemplo concreto, mais evidente, à discussão acerca da

necessária renovação da prática psicológica em uma UBS. Nesse momento fez-se

necessário voltar a estudos realizados no campo da saúde coletiva e da própria

psicologia, que propõem as orientações e as indicações a partir dos princípios e

diretrizes do Sistema Único de Saúde para formação do profissional da saúde (PAIM,

1999; PAIM e ALMEIDA-FILHO, 2000) e, particularmente, para o psicólogo (LO

24
BIANCO e outros, 1994; DIMENSTEIN, 1998). Nesta direção, ousamos definir o que

denominamos de atuação psicológica coletiva, considerando aspectos apontados como

fundamentais em tais estudos e esboçados nesses dados empíricos.

25
2. CULTURA PSICOLÓGICA: algumas implicações para a atuação psicológica nos
serviços públicos de saúde
Mais Psicanálise

Tirada a pedra, a luz do dia mostra


O côncavo da terra que a mantinha:
Cegueira dos vermes, branca de sol,
Contrai-se devagar, acende, queima
Frios cristais de neves, revelações.

J. Saramago em Os Poemas Possíveis.

Cultura psicológica pode ser entendida como ―um certo movimento de difusão na

cultura, de um conjunto de conceitos, de valores, de práticas e serviços marcados pelo

radical psi‖ (SILVA, 1995: 13)5. A cultura psicológica estrutura-se a partir de dois pólos

com responsabilidades recíprocas, no entanto configurados em espaços desiguais de

ligação e de apropriação da ideologia que orienta um específico estilo de vida (SILVA,

1995).

O pólo dos produtores diz respeito à comunidade psicológica, representada

pelos profissionais e instituições que se organizam a partir de um ideal de difusão de

signos, práticas e valores que são próprios dessa cultura. O segundo pólo, representado

pelo público leigo consumidor dessa cultura, entra em contato ativo com seus signos e

sentidos. Além disso, muitas vezes, esse público se direciona aos serviços psi em busca

de auxílio e de uma linguagem, que possam ―traduzir sua experiência em relação ao

comportamento e à subjetividade, e que, a partir desse acesso, se tornam de alguma

forma integrantes e reprodutores desse universo‖ (SILVA, 1995: 14).


5
Castel (1987: 17) pode ser considerado um dos primeiros a utilizar a noção de cultura psicológica ao
reconstruir a ―rede diversificada de atividades, de expertises, avaliações e assinalações e de distribuição
das populações‖ demarcadas pelos pólos da gestão dos riscos sociais à gestão das fragilidades
individuais. O autor descreve a cultura psicológica a partir da difusão da psicanálise e dos efeitos daí
decorrentes, que se expande freneticamente nas sociedades modernas. Este é o uso que vem sendo feito
por autores brasileiros, ainda que, às vezes, de forma indiscriminada ao de cultura psicanalítica. Por sua
vez, um elemento parece estar presente em todos os trabalhos brasileiros aqui citados: a difusão da
psicanálise acontece de modo particular nos diversos países e dentro de um determinado país, cujas raízes
podem ser buscadas no desenvolvimento de uma ideologia individualista nas sociedades modernas. Além
disso, pode-se perceber que cultura psicanalítica está contida e dá força motriz a um fenômeno mais
amplo denominado cultura psicológica, já que várias outras teorias psicológicas e práticas foram
desenvolvidas em diversas sociedades modernas, sob a égide do ideário individualista.

26
É imprescindível enfatizar que o poder heurístico dessa diferenciação, entre os

referidos pólos, não subjuga a força de criação e apropriação singular dos

―consumidores‖ da ideologia apresentada e reforçada pela comunidade psi. Neste

sentido, é o contato e a dinâmica entre os leigos e a comunidade psi que fomentam

efeitos que justificam estudos sobre a difusão da cultura psicológica e seus corolários

psicologismo, psicologização, grupalismo, entre outros conceitos que destacaremos a

seguir.

Nesta perspectiva, revisamos algumas das discussões realizadas desde a década

de 1980 (FIGUEIRA, 1981; 1985; 1987; 1988; VELHO, 1987; COSTA, 1989),

incluindo estudos mais recentes (RUSSO, 1993; NUNES, 1993; BEZERRA-JÚNIOR,

1993; FIGUEIREDO, 1995; FIGUEIREDO, 1997), que fazem este tema importante

para a compreensão da atuação psicológica nos serviços públicos de saúde, locais para

onde se direcionam pessoas de classes populares em busca de ajuda de profissionais psi

e palcos de difusão, criação e apropriação da cultura psicológica.

Estes estudos partem do pressuposto de que o saber psicanalítico surgiu em uma

determinada circunstância do individualismo no ocidente, propondo modalidades

específicas de agenciamento e de emergência da subjetividade (FIGUEIRA, 1987).

Neste sentido, apresenta uma certa noção de ―estruturação de subjetividade‖

característica do indivíduo, que emergiu dentro das sociedades igualitárias e livres.

Por sua vez, a cultura psicanalítica é considerada um dos efeitos do surgimento e

difusão do saber psicanalítico, que ressalta a presença deste pensamento como

desempenhando um papel orgânico e fundamental nos valores, crenças e perspectivas

ideológicas nos setores médios brasileiros, construindo uma ―visão de mundo

psicanalítico‖ (FIGUEIRA, 1985)6. Neste particular, a difusão da psicanálise, desde a

6
O interesse pela constituição e difusão da psicanálise como fenômeno cultural é, inicialmente,
encontrado em estudos como os de Berger [1965 (1980 )], nos Estados Unidos, e Castel [ 1981 (1987)],

27
década de 1970, no Brasil, inclui a expansão de um determinado modelo de

subjetividade típico de sociedades modernas.

A cultura psicanalítica pode ser compreendida a partir de suas três dimensões

constituintes, a saber: eidos, ethos e dialeto (FIGUEIRA, 1985; 1988). Por eidos

compreende-se a presença de uma certa lógica para o pensamento, que busca

explicações das coisas fora do aparente e no domínio pessoal, denominado

―psicologismo individualizante‖; por ethos, destaca-se a existência de um código para o

controle e a expressão das emoções, a princípio vista como algo inconfessável e

reprimida, que deve ser liberada para obter-se bem-estar (―individualismo

psicologizante‖); por fim, o dialeto decorrente da incorporação da linguagem

psicanalítica por alguns grupos (particularmente, os intelectualizados, e, paulatinamente,

as pessoas que vão se submetendo ao tratamento psicanalítico), na construção de

explicações sobre questões pessoais (―psicotagarelice expressiva‖), em síntese:

Toda cultura psicanalítica é, portanto, passível de ser entendida como


resultado de uma articulação complexa e nem sempre harmônica de um eidos
e de um ethos psicanalíticos que circulam através do dialeto do psicologismo
(FIGUEIRA,1988: 134)

Neste sentido, a difusão da cultura psicanalítica apresenta um certo ―estilo de

vida‖, a princípio, para as classes médias e altas brasileiras, que direciona e dá sentido a

aspectos significativos da vida, como as relações amorosas, deliberação de ter e criar

filhos, escolha da carreira profissional (RUSSO, 1993). Os estudos desenvolvidos sobre

a cultura psicanalítica, a partir da década de 1970, foram particularmente realizados no

eixo Rio de Janeiro - São Paulo7, sendo ainda hoje os contextos mais analisados pelos

autores aqui destacados.

na França. No Brasil, Figueira (1985) é o primeiro pesquisador a propor a noção de ―cultura psicanalítica‖
para identificar e buscar compreender os efeitos da difusão da psicanálise.
7
Sobre as diferentes configurações assumidas pela difusão da cultura psicanalítica no Rio de Janeiro e em
São Paulo, podemos recorrer a um estudo mais recente desenvolvido por Russo (2002).

28
De acordo com Russo (1993) 8, as cinco principais características do intenso

processo de difusão da cultura psicanalítica são decorrentes; a) do oferecimento e busca

dos diversos tipos de terapia psicanalítica; b) do surgimento e abuso de um ‗dialeto

psicanalítico‘ utilizado principalmente pela parcela intelectualizada, aspecto sinalizado

em estudo anterior pela própria autora (RUSSO, 1987); c) da introdução da teoria e

técnica da psicanálise em outras áreas profissionais médicas, sociais e educacionais; d)

da vulgarização de conceitos e ideais psicanalíticos nos meios de comunicação de massa

e sua apropriação na vida cotidiana; e) do incremento do número de especialistas, a

partir da ampliação da quantidade de cursos de psicologia e da proliferação de

instituições de formação de psicanalistas terapeutas de linha psicanalítica, característica

definida por Figueiredo (1984).

Na Bahia, encontramos apenas um trabalho que descreve diretamente o

surgimento da cultura psicológica no contexto baiano (SILVA, 1995) 9. O autor

descreve a cultura psicológica na Bahia como apresentando um curioso descompasso

entre a sua condição pioneira de contato com as idéias freudianas no Brasil 10 e as

visíveis dificuldades para a sua instalação pragmática como uma modalidade clínica.

Ele percebeu que, em comparação com outros estados, os primeiros agentes clínicos

psicanalíticos tecnicamente treinados só aparecem a partir de meados dos anos de 1970.

Este aspecto tardio da presença de psicanalistas treinados está relacionado à não

proliferação dos cursos de psicologia na Bahia, que é marcante em vários estados

8
Alguns aspectos já foram destacados por Castel (1981 [1987] ), na França, como importantes nesse
processo, a saber: a entrada dos pressupostos psicanalíticos na formação de vários profissionais, inclusive
dos psiquiatras e psicólogos; as instâncias oficiais psicanalíticas terem perdido o controle sobre a sua
divulgação; a psicologia ter conquistado uma posição de concorrência em relação à psiquiatria. O autor
define dois momentos da difusão psicológica tomando a difusão da própria psicanálise como referencial.
O primeiro, denominado psicanalítico, enfatiza a força do próprio saber psicanalítico no auge da sua
expansão, e o segundo momento, pós-psicanalítico, marca o surgimento ou fortalecimento das ditas
―novas técnicas psicológicas‖, derivadas da psicanálise e que se tornaram autônomas em relação à ela.
9
O objetivo do autor foi compreender alguns aspectos do processo de instauração desta cultura
psicológica na sociedade baiana do fim dos anos de 1970 e da década de 1980, centrando o foco no
segmento dos profissionais ―psi‖.
10
O argumento é o contato de Juliano Moreira com as idéias de Freud, no início do século XX.

29
brasileiros logo no início da referida década, no momento descrito como ‗boom da

psicanálise‖ (FIGUEIRA, 1985).

Segundo Silva (1995), entre meados do século XIX até os anos de 1970, há uma

construção ―raquítica‖ do campo profissional ―psicológico‖ na Bahia, em suas palavras:

A ―vinculação e relação de dependência com o campo médico, a constituição


do ―psicológico‖ enquanto um domínio autônomo se viu limitado e
prejudicado, seja pela concorrência desigual com a forte presença da
perspectiva organicista ali dominante (e fundamental para a afirmação da
psiquiatria), bem como pela hegemonia da Fac. de Medicina, que enquanto
força política organizadora exerceu o seu poder, no sentido de evitar a
autonomização do ―psicológico‖, prevenindo concorrências futuras‖ (SILVA,
1995, p. 242).

A descrição do autor remonta a uma demarcação de território muito forte por

parte da vertente psiquiátrica da comunidade psicológica em Salvador, centralizada pela

Fac. de Medicina. Neste sentido, é atribuído à criação do primeiro curso superior de

psicologia na Bahia, em 1968, uma força que reduz o controle estrito da Medicina sobre

o saber ―psicológico‖. Esta situação é melhor retratada na citação abaixo:

Fora do controle acadêmico da Psiquiatria, o ―psicoterapêutico‖ iria se


organizar autonomamente, a fim de viabilizar, tardiamente, um processo de
provimento de suas necessidades de formação profissional, num contexto
histórico em que, já estando a Psicanálise submetida a questionamentos
políticos, a sua entrada na Bahia se oneraria com esse fato, gerando um
processo de difusão no qual ela aparece associada a elementos teóricos,
técnicos e políticos enfraquecedores e questionadores de sua própria
presença. Dessa forma na Bahia, não seria o surgimento da Psicanálise, que
possibilitaria, com previsto no modelo teórico que apresentamos, uma
expansão de um ―psicológico pós-psicanalítico‖ (SILVA, 1995, p. 243).

No entanto, esta situação não impediu que fosse paulatinamente desenvolvida

uma comunidade psi ativa, que já contava com representantes das principais abordagens

e escolas teóricas e técnicas do campo psicológico (SILVA, 1995). O autor conclui que,

no período que corresponde ao início da década de 1970 e parte da de 1980, ―apesar do

seu pequeno porte e dos limites restritos da sua influência social, realiza uma

considerável oferta de serviços, destacando-se os psicodiagnósticos e as psicoterapias,

30
marcando, ainda, significativa presença no campo da saúde e em menor escala, na

educação e no segmento empresarial‖ (SILVA, 1995, p. 25).

Na Bahia, em relação à difusão da psicanálise entre os vários segmentos

populacionais converge para as descrições encontradas em outros centros urbanos do

país, apontando igualmente o alcance dessa comunidade psi. Ela esteve limitada àqueles

que fazem parte de segmentos médios intelectualizados e que caracterizam uma certa

elite social, os quais, por terem maiores condições econômicas e culturais, obtiveram

acesso privilegiado aos conceitos, aos debates e aos serviços por ela oferecidos (SILVA,

1995). Por outro lado, a difusão aconteceu também via os serviços públicos (escolas,

prisões, hospitais, centros de saúde, asilos de idosos, etc), que se tornam paulatinamente

alvo dos interesses da comunidade psi como ―espaços de experimentação de uma prática

psicológica, que pretende legitimar a atuação dos seus agentes na condição de peritos‖

(SILVA, 1995, p. 26).

O efeito da difusão da cultura psicanalítica tanto na vida cotidiana de leigos

quanto na própria produção de conhecimento dentro de campos científicos, a exemplo

das ciências sociais, é designado ―psicologização‖ (FIGUEIRA, 1988). No contexto

baiano, o processo de psicologização foi pouco explorado sistematicamente até o

presente momento, diferentemente do que vem acontecendo no eixo Rio de Janeiro -

São Paulo, onde encontramos uma rica produção sobre este tema, desde a década de

1970. Russo (2002) também descreve a difusão da psicanálise como força motriz para o

processo de psicologização da sociedade, ou seja:

a volta para dentro de si mesmo [...] uma busca ―dentro de si‖ para o que
antes estava ―fora‖ – parâmetros, regras, orientação. Esta busca requer o
―auto-conhecimento‖, levando o sujeito a colocar em questão sua
personalidade, sua interioridade, pois é lá (e não ―fora‖, nas regras dadas
―externamente‖) que está a chave para um comportamento saudável e
ajustado (RUSSO, 2002: 43)

31
Todos os estudos compartilham a idéia de que a difusão da psicanálise está ligada

ao processo de consolidação do individualismo. Em sua maioria, lançam mão dos

escritos de Louis Dumont (1985; 1992) sobre a emergência da ideologia individualista

nas sociedades modernas, no sentido de subsidiar suas análises para o contexto

brasileiro dos fenômenos sociais mais diversos (VELHO, 1997; Da MATTA, 1978), ou,

particularmente, para compreender a expansão dos saberes e práticas do campo psi e as

repercussões no cotidiano dos brasileiros (FIGUEIRA, 1981, 1985, 1988; ROPA e

DUARTE, 1985; DUARTE, 1988, 1993; 1994 e 1998; RUSSO, 1993; 1997; 2002).

Uma das principais contribuições de Dumont está no seu tratamento da relação

indivíduo-sociedade. Dumont (1992) buscou compreender a transição entre um modo de

organização e pensamento tradicional (holismo) das sociedades não-ocidentais e a

emergência da ideologia individualista, comparando com as sociedades ocidentais. Há

uma relação de oposição e hierarquia entre estas configurações de valor, ou seja, o

surgimento do individualismo pressupõe a existência e o rompimento da totalidade e da

transcendência, típicas do holismo. O individualismo está contido e coexiste enquanto

possível na organização holista; nas sociedades modernas se combinam e se completam.

É nessa transição que o autor busca o surgimento do homem como indivíduo:

autônomo, senhor de si, diferente, único, que conduz sua vida pautado em noções de

igualdade e liberdade.

Figueira (1985; 1987), que discute a noção de indivíduo como um tipo específico

de estruturação da subjetividade, ainda que não despreze as dimensões jurídica e

política do termo, considera que a psicanálise surge sob a égide do individualismo, mas

não é individualista, porque não aceita os seus pressupostos, e sim os questiona:

[..] Em termos conceituais, ela só pôde existir porque questionou a ilusão


básica do individualismo: a de um indivíduo constituir um ser indiviso e
autônomo. O aspecto básico do discurso da prática psicanalítica é o de que o
sujeito não é autônomo; tal autonomia é uma ilusão da consciência, a qual,

32
porém, sofre uma série de determinações vindas de uma dimensão que lhe é
totalmente desconhecida (FIGUEIRA, 1987: 99).

Da citação destacada acima, podemos perceber que o que está em cena é mais do

que determinar uma certa maneira de funcionamento psíquico, que, ao assegurar que o

sujeito não é autônomo, sustenta a idéia de que ele tem, ou pode ter, esta ilusão, aspecto

facilmente defendido pela teoria psicanalítica.

De modo geral, o interesse pelas formas de psicologização das sociedades

modernas e o efeito no cotidiano dos brasileiros não é recente (FIGUEIRA, 1981; 1985;

1987; 1988; VELHO, 1987; COSTA, 1989). Em busca de compreender esse fenômeno,

muitos autores procuraram analisar a crescente difusão do saber psicanalítico-

psicológico no cotidiano dos brasileiros nas últimas décadas do século XX, ora

focalizando-a nas classes médias urbanas (VELHO, 1987; RUSSO, 1993), ora nas

classes populares (ROPA; DUARTE, 1985; COSTA, 1989; BEZERRA-JUNIOR, 1993;

FIGUEIRA; 1997). Esses últimos estudos questionam e problematizam a pertinência do

atendimento psicológico para uma população que sente, pensa e age a partir de

princípios menos individualistas, o que apresentaremos a seguir.

2.1 PRÁTICAS PSICOLÓGICAS E OS MENOS AFEITOS AO IDEÁRIO

INDIVIDUALISTA: algumas reflexões sobre o efeito da difusão da cultura psicológica

A compreensão da pertinência das práticas psicológicas para os menos afeitos ao ideário

individualista é muito complexa e tem ocupado o interesse de alguns estudiosos

psicanalistas, que via de regra recorrem também a outros campos de conhecimento

como a antropologia e a sociologia. É preciso ressaltar que, de modo geral, um sujeito

considerado mais afeito à prática psicanalítica pertence também às classes sociais mais

altas e letradas e tem, supostamente, se beneficiado mais com este tratamento

33
psicológico, freqüentemente diferenciando-se de pessoas que pertencem às ditas classes

populares, por motivos que serão discutidos criticamente (FIGUEIRA, 1987; COSTA,

1989; BEZERRA-JÚNIOR, 1993).

Figueira (1987), para explicar a diferença de engajamento das pessoas no

tratamento psicanalítico, considera os próprios mecanismos sociais de estruturação de

subjetividade e identidade, mais do que o fato de os clientes se pensarem ou não como

―indivíduos‖, ou seja, livres e iguais. O autor inclui em sua análise aspectos da própria

interação cotidiana, que ao serem excluídas ou modificadas em favor dos rituais típicos

das práticas psicológicas (setting analítico), demarcam diferenças sociais e culturais, às

vezes intransponíveis (FIGUEIRA, 1987).

Uma categoria de análise clássica para a discussão da pertinência do atendimento

psicológico a classes populares é o ―nervoso‖11, enquanto expressão do sofrimento

psíquico distante do padrão encontrado nos habituados à cultura psicanalítica,

apresentada por pessoas que tinham dificuldade em se submeterem a este tipo de

tratamento (FIGUEIRA, 1987; COSTA, 1989; BEZERRA-JUNIOR, 1993).

Duarte (1986), na análise etnográfica da complexidade semântica que envolve o

uso cotidiano do código de nervoso, defende a hipótese de que impera, nas classes

populares, um modelo hierárquico de construção de pessoa – baseado na família, nas

diferenças e desigualdades das relações de gênero, de classe e idade, distante da

proposta individualista que sustenta os saberes e as práticas do campo psi. O autor

defende, desde então, que há construção diferencial de noção de pessoa para as classes

11
Tais autores remetem-se ao estudo etnográfico de Luiz Fernando Duarte, desenvolvido na década de
1980, em um bairro de classe trabalhadora em Niterói, no qual se objetivou compreender ―os processos de
construção das identidades sociais face à diferenciação acentuada das experiências no trabalho‖
(DUARTE, 1986, p.13).

34
populares, que é constituída mais por valores holistas do que individualistas (DUARTE,

1986; 1998; 2003)12. Na citação abaixo, o autor sintetiza este pressuposto:

as formas de construção da pessoa nas classes populares brasileiras não


obedecem aos princípios da ideologia do individualismo. O fio central da
argumentação repousa justamente na demonstração do nervoso como
‗perturbação físico-moral‘ estruturante nesses meios culturais, expressiva de
uma ordem relacional, hierárquica, resistente aos diversos mecanismos de
indução à adoção do modelo de ‗indivíduo‘ prevalente nos meios letrados e
dominantes de nossa sociedade. A representação do nervoso popular
ocuparia, de certa forma, o lugar demarcado pela concepção de um
‗psiquismo‘ de uma interioridade psicológica, naqueles outros meios
culturais (DUARTE, 2003, p. 177).

A emergência do fenômeno ―nervoso‖ nas classes populares incentivou o autor a

resgatar a locução ―perturbações físico-morais‖ para entender os problemas enfrentados

por este grupo. Por esta locução entende-se:

todas as alterações do estado ‗normal‘ da pessoa, que se supõe ser


culturalmente definido. Dessas alterações digo serem ―físico-morais‖ para
transmitir a impressão de totalidade, de multipresença, de que elas
freqüentemente se revestem, abrangendo ou atravessando dimensões
diferentes da vida dos sujeitos (DUARTE, 1986, p. 13)

Segundo Duarte (1986), esta locução liga dois pólos da visão de mundo dos

sujeitos comuns, qualificando o imbricamento das dimensões de causas físicas e de

princípios religiosos, cosmológicos ou socioeconômicos. Trata-se de ―condições,

situações ou eventos de vida considerados irregulares ou anormais pelos sujeitos sociais

e que envolvam ou afetem não apenas sua mais imediata corporalidade, mas também

sua vida moral, seus sentimentos e sua auto-representação‖ (DUARTE, 2003: 177).

Duarte (1994) ressalta ainda a importância dessa noção, cuja vantagem analítica é

o não endossamento a priori das representações modernas sustentadas no mundo

acadêmico. O que nos autoriza a considerar as distinções feitas por Silva (1995) sobre

os dois pólos de configuração da cultura psicológica como emblemático, ressaltando

12
Duarte pode ser considerado um dos pesquisadores que mais fez uso, com propriedade, do pensamento
dumontiano para compreender a realidade brasileira, a partir da relação indivíduo-sociedade e
identificação das ideologias individualista e holista em sociedades modernas e tradicionais,
respectivamente.

35
que os leigos ou ―consumidores‖ não só reproduzem os signos e sentidos advindos da

comunidade psi, mas se apropriam e constroem expressões de sofrimento que podem ser

muito distantes da ideologia dos ―produtores‖. E aí temos um dos pontos críticos que

pode dificultar ou mesmo inviabilizar a prática psicológica em determinados contextos.

A não observação dessa noção de ―construção de pessoa‖ como dimensionada

socioculturalmente tem uma implicação direta sobre o ―atendimento psicológico‖ às

classes populares, que se mostra, muitas vezes, problemático por apresentar resultados

terapêuticos desanimadores (ROPA e DUARTE, 1985). Os estudos revisados por Ropa

e Duarte (1985) apontam limitações do próprio saber psiquiátrico-psicológico, falta de

incentivos institucionais, contradições socioeconômicas entre os profissionais e

usuários, e formulam respostas para resolver esta problemática em torno da introdução

de abordagens terapêuticas corporais em substituição das verbais 13.

Kirmayer (1989), aceitando a premissa defendida também pelos autores acima

citados, na qual se afirma que a concepção de pessoa varia transculturalmente, destaca

que a psicoterapia (a desenvolvida pelos ocidentais) está associada à noção

individualista de pessoa. Além disso, ressalta que a avaliação subjacente aos indivíduos

acerca da sua habilidade para se envolverem em um determinado discurso psicológico

tem forte base social. Neste particular, subjaz ao fato de que os pacientes julgados não

propensos psicologicamente são rejeitados pela psicoterapia psicodinâmica e

encaminhados para tratamentos somáticos ou comportamentais.

Nesta perspectiva, o autor identifica algumas características psicológicas que

podem ser tanto pré-requisito para a realização de uma psicoterapia ao mesmo tempo
13
Além disso, Ropa e Duarte (1985) indicam as seguintes características dos sujeitos que se
aproximariam mais do sistema médico-científico: a capacidade de reflexividade e verbalização
(BOLTANSKI, 1979) implica discriminar e comunicar sensações corporais através da linguagem;
introspecção (BERNSTEIN, 1980), que significa possuir equipamento lingüístico para produzir um
discurso sobre as ‗experiências íntimas‘; a noção de problematização, elaborada a partir do conceito de
habitus cultivado (BOURDIEU, 1974), definida pelo autor como disposição adquirida pela formação
escolar, ou seja, certa intenção intelectual para problematizar.

36
meio pelo qual ela é conduzida: a) a crença na existência do inconsciente; b) alguma

capacidade para rever, ainda que apenas momentaneamente, a experiência do eu e

observá-la reflexivamente; c) a capacidade, ou mais precisamente, o desejo para aceitar

lidar com o aumento da responsabilidade pela sua condição de sofredor; d) a

imaginação, ou seja, a habilidade para jogar com o imaginário e com o pensamento não-

estruturado.

Por sua vez, Ropa e Duarte (1985) argumentam que o descompasso marcado pelo

uso de técnicas psicológicas para determinada parcela da população menos habituada

aos cânones da psicoterapia não seria sanável através de simples modificações técnicas,

sendo mais profícuo buscar explicações sobre a eficácia como um todo do sistema

psiquiátrico-psicológico, enquanto sistema adequado ao atendimento às pessoas de

classes populares. Neste terreno, cabe a ressalva em relação à aplicação indiscriminada

do modelo psiquiátrico-psicológico, a despeito de transformações e adaptações

realizadas, sem o questionamento mais profundo sobre a sua possibilidade de eficácia

para determinados grupos (ROPA e DUARTE, 1985).

Os autores destacam três principais questões-problemas que devem ser revistos pela

comunidade psi, que remetem à difusão diferencial da visão de mundo psicologizante,

comprometida com a constituição e a difusão da ideologia individualista distante do

pensamento holista, no sentido de exigirem reflexões quanto à aplicação de práticas psi

a classes populares (ROPA e DUARTE, 1985).

1. Tomar o sistema psiquiátrico-psicólogo como o único sistema simbólico

possível e válido para explicar períodos de crise ou mal-estar ―psíquico‖;

2. Desconsiderar que, em sociedades complexas, coexistem diversos sistemas

simbólicos (psicanálise, umbanda, medicina, entre outros) e estes são eficazes à

37
medida que fornecem ao sujeito uma representação do seu estado, o que torna

compreensível e assimilável à experiência desagregadora;

3. Desconsiderar que a escolha do sistema terapêutico depende das características

sociais (grau de divulgação e acesso, status e poder social) do sistema e das

características do sujeito (cultura e classe social) que o busca.

Um dos textos que se ocupa da difusão da psicanálise remetendo–se ao próprio

interesse e visão dos seus atores principais sobre esta problemática é o de Figueira

(1988). O autor identifica algumas atitudes assumidas pelos próprios psicanalistas frente

à difusão cultural da psicanálise quando ela tende a chegar a um ponto de saturação e a

se constituir como uma weltanschauung (visão de mundo). Alguns dos próprios

analistas simplesmente desconhecem a existência do fenômeno da difusão. Entre os que

percebem a sua existência, há os que não atribuem importância para os efeitos que

poderiam causar na teoria, na técnica ou na instituição psicanalíticas. No entanto, há

também aqueles que estão atentos a este fenômeno e que consideram importante levar

em conta a presença social da psicanálise para compreender algumas das suas

repercussões teóricas, clínicas e institucionais. Entre esses últimos têm aqueles que, ao

reconhecerem e conferirem importância à existência do fenômeno da difusão da cultura

psicanalítica, cindem o campo psicanalítico em ―boa psicanálise‖, realizada pelos ―bons

analistas‖, e ―má psicanálise‖, conduzida pelos ―maus analistas‖:

A cisão do campo psicanalítico é uma operação classificatória que faz


coincidir a Psicanálise difundida, simplificada e tornada visão de mundo com
a Psicanálise equivocada, recuperada, distorcida (ou simplesmente ―má‖),
relacionando-a com a ação de psicanalistas que não entenderam ou traíram a
verdadeira essência da Psicanálise, que é ser um instrumento de crítica e
dissolução da ―crença‖ e da ―ilusão‖ (isto é, os ―maus‖ analistas). Por outro
lado, e em grande contraste, a ―boa‖ Psicanálise é aquela que é manobrada
pelo ―bom‖ analista de modo a evitar a transformação da Psicanálise em uma
Weltanschauung para o paciente ou para ele próprio, através da análise e
desestruturação da própria relação de crença com a Psicanálise (FIGUEIRA,
1988, p. 136).

38
Segundo Figueira (1988), esta categorização binária maniqueísta mostra a sua

limitação, uma vez que propõe um dentro e um fora da psicanálise de modo estanque,

que tem responsabilizado apenas aos ―maus analistas‖ pelos efeitos negativos da difusão

(ou seja, pela distorção que culmina na psicanálise como visão de mundo). Para o autor,

este ponto de vista negligencia a importância de outras instituições médicas e

acadêmicas como impulsionadoras dessa expansão e, mais importante ainda, exclui da

análise os mecanismos básicos que, no plano da sociedade e da cultura, contribuem para

esse processo de transformação.

Um segundo problema, destacado pelo o autor, refere-se ao fato de que a cisão do

campo psicanalítico conduz à ―dissociação estrutural da Psicanálise‖, entendendo esta

noção como a concretização do ―contraste entre as posições teóricas e conscientes de

Freud em relação à difusão psicanalítica e suas ações, desejos e política que se situam

fora do campo conceitual psicanalítico e que se relacionam com a difusão‖ (FIGUEIRA,

1988: 140). Neste sentido, a dissociação entre o que a psicanálise diz que é e o que ela

não reconhece poder ser não esgota o fenômeno da difusão e seus efeitos na

sociedade14.

Há duas conseqüências da dissociação estrutural da psicanálise considerando as

categorias binárias acima citadas. A primeira diz respeito ao efeito de conversão dos

pacientes à psicanálise, reduzida a um conjunto de valores a serem reverenciados e

seguidos, conseqüente da atuação dos ―maus‖ analistas, que a usam como valor ou

sistema simbólico. A segunda refere-se à psicanálise utilizada como meio ou

instrumento; neste particular, o analista utiliza seu saber de forma não dogmática e faz

da psicanálise um instrumento na produção/emergência da singularidade do cliente

(FIGUEIRA, 1988).

14
Figueira (1988, p. 139) remete-se a uma série de momentos da obra de Freud que advertem os
psicanalistas sobre os efeitos da difusão, especialmente, sobre o equívoco de tomar a psicanálise como
visão de mundo e distanciar-se da visão científica.

39
A distinção entre psicanálise-valor e psicanálise-instrumento traz subjacente um

modelo de subjetividade típico das ideologias individualistas, tendo o ―indivíduo‖ como

ideal. Neste sentido, ―é a própria existência do individualismo enquanto ideologia, e o

papel que nela desempenha o ―indivíduo‖ enquanto valor, que permitem que a própria

noção de singularidade do sujeito desejante tenha significado para psicanalistas e

pacientes‖ (FIGUEIRA, 1988: 142). Este fato sustenta a dissociação estrutural da

psicanálise.

Outro ponto de referência da dissociação estrutural da psicanálise é descrito

considerando-se a cisão da população de pacientes. Esses podem ser separados entre

aqueles que demandam singularidade e aqueles que demandam adaptação e

normatividade. Os últimos demandam justamente o que a Psicanálise não deve

propiciar: valores, visão de mundo, ética, utopia... Mais uma vez, incidimos na

tendência a dicotomizar, sendo agora, a ―boa‖ demanda e a ―má‖ demanda,

respectivamente (FIGUEIRA, 1988, p. 144).

No entanto, o que é preciso ressaltar é que a ―verdadeira‖ demanda de

singularidade se apóia em valores, pressupostos, em certos mecanismos do imaginário

do universo individualista e é também adaptativa, uma vez que a mesma facilmente

pode ser compreendida como ajustamento aos cânones que regem o individualismo

psicologizado (FIGUEIRA, 1988).

Neste particular, é possível considerar a hipótese de que este tipo de noção

sustenta uma operação subjacente que pode explicar a seleção sociocultural da clientela.

Negligenciá-la pode camuflar uma das possíveis causas que poderia ser atribuída às

desistências dos clientes do tratamento psicológico. Além disso, tomando agora os

profissionais como referência, ela poderia ajudar a compreender a desmotivação ou a

40
busca de ajustes frente aos impasses da atuação psicológica desenvolvida em

determinados contextos, a exemplo dos serviços públicos de saúde.

Estudos mais recentes que buscam apontar a pertinência do uso do dispositivo

psicanalítico em ambulatórios públicos de saúde (VERZTMAN, 1999; FIGUEIREDO,

1997; 1999) atualizam a problemática que acompanha uma das facetas da difusão da

psicanálise, no que diz respeito à adequabilidade de práticas psicológicas de base

individualista, neste caso fundamentalmente a psicanalítica, para o atendimento de

pessoas que não pertencem a classes sociais médias e altas, supostamente mais

individualistas. Os autores remetem-se à necessidade do retorno do rigor da atuação do

psicanalista frente aos desafios impostos pelo seu exercício fora do consultório privado.

Nessa perspectiva, Figueiredo (1997) defende que o dispositivo psicanalítico não foi

suficientemente colocado à prova para ser rotulado como ineficaz ou impróprio para

atender às demandas da clientela que busca os serviços públicos. Em sua análise sobre a

clínica psicanalítica exercida nos ambulatórios públicos de saúde pelos mais diversos

profissionais que entrevistou, assume uma postura prescritiva orientada pelo domínio da

teoria e técnica psicanalíticas. É importante ressaltar que o objetivo da autora, no

referido estudo, foi refletir sobre as questões mais sutis da atuação em psicanálise, em

seus aspectos específicos, nos ambulatórios da rede pública de saúde do Rio de Janeiro,

incluindo considerações sobre os encaminhamentos, a triagem e a recepção de usuários,

o trabalho em equipe, a função do pagamento e o uso do divã (FIGUEIREDO, 1997).

Destacamos a seguir alguns dos seus argumentos a partir da combinação de dois eixos:

a) a demanda de atendimento, b) os próprios dispositivos de tratamento. Segundo a

autora:

os dispositivos analíticos não devem ser reduzidos aos ideais do terapeuta enquanto

representante da classe média escolarizada, uma vez que, na função de terapeuta,

41
não devem prevalecer os seus valores, nem as condições de analisabilidade devem

se orientar exclusivamente pelos conteúdos mais ou menos psicologizados da fala

do cliente;

o suposto modelo universalizante da psicanálise deve ser considerado como um

conjunto de conceitos articulados como ‗universais‘, podendo ser aplicados a

demandas diversificadas;

a própria difusão da cultura psicanalítica supõe um atravessamento cultural que

permite que haja uma aposta em tratar também os menos afeitos à cultura ‗psi‘;

deve-se evitar comparar um modelo de intervenção a partir de outro modelo, por

exemplo, parâmetros da psiquiatria, ao privilegiar o tratamento medicamentoso, para

analisar os dispositivos psicanalíticos; neste sentido, colocar todas as psicoterapias

como processo secundário ou acessório.

Nas ponderações acima, Figueiredo (1997) não descarta a diferença cultural, mas

defende a possibilidade de apostar na oferta de psicanálise para a clientela que aflui nos

serviços públicos de saúde, considerando esse atravessamento cultural. Percebemos que

a autora coloca de maneira quase exclusiva nas mãos do profissional a habilidade de

contornar os problemas advindos do emprego da psicanálise em ambulatórios públicos,

a partir do maior domínio dos dispositivos psicanalíticos. Neste sentido, defende que há

condições mínimas para que o trabalho clínico se caracterize como psicanalítico e se

distancie do amplo campo das psicoterapias em geral. Entre estas condições podemos

citar: a) a psicanálise é uma clínica da fala, neste sentido fazer o sujeito falar é uma

condição da escuta; b) ela consiste em produzir um modo de falar através da

transferência, cabe ao analista manter a oferta sem coagi-lo, mas com clareza de seu

42
objetivo; c) a ação ou a palavra como interpretação do analista dirigida ao sujeito só

pode ser medida a posteriori (FIGUEIREDO, 1997, p. 127).

Costa (1989), de modo menos contundente, mas com muito rigor, também

acredita que a psicanálise pode ser utilizada como um dos recursos de tratamentos para

a clientela que busca os serviços públicos de saúde. No referido estudo, o autor descreve

o encontro de pessoas advindas das classes populares que se queixam de nervoso com

os profissionais psi, buscando explicar a ―apatia‖ teórico-técnica presente na concepção

clínica, quando esta alimenta a confiança na universalidade da classificação nosográfica

e de um modelo de representação do aparelho psíquico (COSTA, 1989). Do seu ponto

de vista, as concepções clínicas sustentadas pelos profissionais podem ser analisadas a

partir de três convicções: a) crença na existência de uma essência da doença 15; b) crença

na abstração formal do par terapeuta-paciente; c) crença na existência de um modelo

único de comunicação humana.

Para tanto, a doença dos nervos é discutida como um exemplo que questiona o

pressuposto de uma expressão essencialista e universalista do distúrbio psíquico. Um

dos argumentos que ele utiliza é que esta manifestação difere das outras expressões

neuróticas por ser expressa por pessoas que ao relatarem seus mal-estares, reordenam

aspectos de saberes apropriados nos seus cotidianos e que fornecem um modelo

explicativo aparentemente incoerente e extravagante em relação ao modelo intelectual-

acadêmico tomado como único referencial (COSTA, 1989).

Neste particular, o mais importante a notar é a sua consideração de que a

atribuição de causalidade está condicionada ao modo como se constrói a doença, sendo,

portanto inextricável à subjetividade de quem a produz (COSTA, 1989). O autor

15
Crer na essência da doença é desconsiderar que ―os distúrbios mentais só existem através de certos
conflitos subjetivos, os quais, por seu turno, estão socioculturalmente condicionado‖ (COSTA, 1989: 18).

43
enfatiza que o ―pensamento fragmentado‖ das pessoas que se queixam de doenças dos

nervos tem uma repercussão significativa para a postura do terapeuta, uma vez que ele,

habituado a pensar na neurose como um desequilíbrio cuja psicogênese está


nos conflitos familiares, afetivos ou sexuais, originados num certo tipo de
infância, o terapeuta pode se desesperar quando se defronta com razões do
tipo pancada na cabeça; convulsão quando criança; desgosto pelo filho
ingrato e marginal; desgosto com a filha que se perdeu; menstruação que
não veio na hora certa; marido violento; vizinha invejosa, etc. (COSTA,
1989, p. 21)

Outra reflexão muito profícua de Costa (1989) diz respeito à sua compreensão sobre

o conflito subjetivo e sua relação com a identidade psicológica. Esta relação, por

exemplo, pode sustentar explicações plausíveis no que concerne à clientela masculina,

que sofre de doenças dos nervos e que expressa seus conflitos subjetivos ancorada em

uma específica identidade psicológica, a de ser trabalhador, diferente dos homens da

elite. No entanto, para ficar mais claro os argumentos do autor, é importante apresentar

primeiramente os conceitos utilizados na sua discussão.

A identidade, em termos descritivos, é entendida como ―aquilo que se vivencia

(sente, enuncia) como sendo eu, por oposição àquilo que se percebe ou enuncia como

não-eu (aquilo que é meu; aquilo que é outro; aquilo que é do outro)‖ (COSTA, 1989, p.

22). Ela é formada por sistemas diversos de representações caucionadas no universo

sociocultural, contemplando a identidade de classe, social, profissional, religiosa, entre

outras. O conflito subjetivo é experienciado a partir das contradições internas em um dos

sistemas e quando há incompatibilidade entre sistemas diferentes e diversos. Caso o

sujeito não siga as exigências da norma identificatória, poderá sofrer psicologicamente,

se avaliar seu desempenho como fora do normal, abaixo do normal ou anormal. No

entanto, ressalta o autor, nem todo conflito subjetivo, portanto identificatório, é

experimentado como doença ou distúrbio mental, passível de ser assim considerado

apenas quando atinge a identidade psicológica (COSTA, 1989).

44
A identidade psicológica é diferente dos demais sistemas identitários por se

apresentar ao sujeito ―como aquilo que não é apenas atributo do meu eu ou de alguns

eu, mas o traço identificatório comum a todos os eu‖, ou, dito de outra maneira: ―é o

sistema de representações que se mostra à consciência do sujeito como um predicado

universal e genérico, definidor por excelência do humano‖ (COSTA, 1989, p. 22). Dois

atributos lhe são reservados: a) as representações constitutivas da identidade psicológica

histórica e socialmente condicionadas, quando internalizadas como universais não se

deixam relativizar facilmente 16; b) a coerção que ela exerce é percebida como natural e

o desvio sentido como doença (COSTA, 1989, p. 22)

Na sua experiência clínica, Costa (1989) diz que os homens com doenças dos

nervos, ao falarem dos seus mal-estares, não se remetiam aos conflitos familiares,

afetivos e sexuais típicos das falas dos homens de elite (classe média e de profissões

intelectualizadas), eles costumeiramente construíam explicações causais sobre as

trajetórias profissionais ou percalços da vida laborativa: nos aspectos relacionados ao

mundo do trabalho, dos conflitos com os patrões e colegas de trabalho, má

remuneração, desemprego, entre outros aspectos do mundo do trabalho. Em síntese, o

objetivo do autor:

é mostrar que o imenso relevo dado à sexualidade diminui de importância


quando deixamos o espaço cultural das elites e entramos no universo da
classe trabalhadora masculina. Nesta última, o sexo tem relevância enquanto
comportamento manifesto e não enquanto fonte de verdade sobre a
subjetividade. A identidade psicológica do trabalhador funda-se no traço
identificatório heterossexualismo, mas não da mesma maneira que os homens
da elite. Ao lado da heterossexualidade, o componente capacidade de

16
O autor ressalta que ―a relativização da identidade psicológica não se contrapõe à asserção psicanalítica
que afirma a universalidade da diferença de sexos [...] porque é um fenômeno da espera ego-narcísica [...]
porque a diferença de sexos não diz respeito ao ego e sim a todo o sujeito‖. Dito de outra maneira, a
diferença de gêneros e a diferença de sexos pertencem a registro diversos da experiência humana, a
primeira visa ―mostrar que estamos tratando de papéis ou funções sociais conscientemente reconhecidas e
inconscientemente ancoradas na diferença de sexos‖. Por sua vez, a diferença de sexos não é relativizável,
na perspectiva psicanalítica, é representada pela presença ou não do falo (―que é puro índice da diferença;
daquilo que demarca sem predicar uns e outros‖, os que têm e os que não têm) (COSTA, 1989, p. 24). O
que não implica uma postura ingênua de que a sexualidade não é um elemento básico na definição da
identidade masculina das classes trabalhadoras, pois é em todos, do ponto de vista psicanalítico.

45
trabalho ou ser trabalhador também é um elemento definitório de grande
significação (COSTA, 1989, p. 27)

Uma hipótese plausível é de que o engajamento dos menos afeitos à ideologia

individualista ao tratamento psicológico como representante de uma certa identidade

psicológica, antes de ser um problema ou inaptidão dos mesmos, decorre da ―viseira

essencialista‖ dos profissionais psi em relação à complexidade intrínseca da experiência

humana, às várias roupagens possíveis de serem assumidas pelos problemas psíquicos e

ao alcance das teorias e técnicas psicológicas (COSTA, 1989). A expectativa do

terapeuta pautada na esperança de que a pessoa venha atribuir outras causas ao seu

sofrimento mais próximas ao modelo de subjetividade hegemônico, como expresso na

citação abaixo, pode ser frustrante ao desembocar apenas na desistência do tratamento

pelo paciente.

a subjetividade psicológica que nos habituamos a ver como universal é um


produto da progressiva nuclearização da família; de uma crescente
privatização da vida familiar; de uma valorização exorbitante da intimidade
psicológica; do grande desenvolvimento do esprit d’ examen, criado pela
dilatação do período de escolarização; do enorme valor que a sexualidade
passou a ter na pedagogia do corpo e da alma; de uma educação moral cada
vez mais dirigida para a pessoa, em vez de dirigida para o status; enfim, é o
produto da dissolução da moralidade religiosa e repressiva, que foi
substituída pela moralidade descartável e permissiva da moda, secretada pela
sociedade de consumo. É esta subjetividade, objeto de uma tematização
obsessiva pelos indivíduos, que nos habituamos a reconhecer como a matéria
que se presta à psicoterapia e psicanálises (COSTA, 1989: 27-8).

Neste particular, perde-se de vista, nos relatos de determinados pacientes, a ênfase

dada à sexualidade ao transitar-se em outros espaços menos elitistas. Em síntese:

a subjetividade que muitos terapeutas têm em mente está longe de representar


a totalidade dos indivíduos brasileiros. A representação de subjetividade que
prevalece nas teorias psicológico-psiquiátricas espelham uma realidade
sócio-historicamente datada e culturalmente circunscrita. Essa realidade deu
origem a uma noção de indivíduo que muitos insistem em considerar o retrato
fidedigno da essência do homem. É o indivíduo da divisão do trabalho em
sociedades com Estado; do capitalismo burocrático e racionalizado em torno
da produtividade industrial e comercial; da revolução política burguesa com
ideário dos direitos do homem, enfim, é o sujeito regido por dispositivos

46
disciplinares que, de leste a oeste ou do norte a sul, mostraram sua eficácia no
adestramento da alma e do corpo (COSTA, 1989: 27).

Outro aspecto discutido por Costa (1989) diz respeito à miopia etnocêntrica,

avalizada por preconceitos associados ao enquadramento idealizado da relação

terapeuta-paciente na psicoterapia dual. Nele supõe-se um acordo tácito orientado por

padrões correspondentes de cidadania, de igualdade na participação em domínios

sociais comuns, processo de socialização familiar compatível, percepção de valores de

autonomia, independência, auto-realização (COSTA, 1989). Estas condições nem

sempre podem ser asseguradas, considerando que terapeutas e pacientes podem não ser

socializados no mesmo universo de sentido, que pode haver distância cultural no modo

de comunicação proposto e nas cláusulas contratuais do enquadramento idealizado.

Neste terreno, o preconceito do encontro entre o sujeito ideal e sujeito ideal terapeuta é

acompanhado da ilusão de que a pessoa que apresenta problema psíquico não tem

registro sociocultural. Idéia essa que pode muitas vezes fomentar impedimentos à

psicoterapia, cuja base deveria ser pautada apenas na possibilidade de que o

inconsciente possa emergir e produzir efeitos (COSTA, 1989).

Costa (1989) destaca ainda as repercussões decorrentes do fato de se considerar

um modelo único de comunicação no encontro terapeuta-paciente. A discussão do autor

remete-se ao questionamento da pertinência da tradução dos psicoterapeutas frente aos

conteúdos singulares das queixas de doenças de nervos17, ou seja, a tendência a fixar um

único significado mesmo frente a expressões de sofrimento tão polissêmicas.

17
―os psicoterapeutas, ao escutarem a expressão doenças dos nervos, nervosismo, estado de nervos ou
sistema nervoso, pensam habitualmente, num arcaísmo médico residualmente conservado na cultura
popular. A idéia dominante é que os indivíduos, quando usam a expressão, estão se referindo ao que
acreditam ser o sistema nervoso descrito pela neuro-anatomia. Desta interpretação, alguns retiram as
seguintes conseqüências: se o indivíduo crê realmente que a doença dos nervos é uma afecção
neurológica, então dificilmente aceitará a idéia de psicoterapia, e reinvidicará muito naturalmente um
tratamento exclusivamente medicamentoso. Estaria aí uma das razões pelas quais se mostra tão rebelde à
atividade psicoterápica‖ (COSTA, 1989: 34)

47
Outro obstáculo diz respeito ao estilo de comunicação. Comparando o trabalho

psicoterápico dual e de grupo, o autor conclui que os clientes eram mais extrovertidos

no trabalho em grupo, quando incentivados a falar, do que no enquadre dual (COSTA,

1989). Esta característica pode ser explicada uma vez que o trabalho em grupo permitia

fugir do ―estilo interrogativo, não diretivo ou elusivo, das intervenções terapêuticas na

relação dual‖, trazendo maiores benefícios para determinados clientes de classes

populares (COSTA, 1989, p. 37).

Por sua vez, Bezerra-Júnior (1993) compartilha da hipótese de Costa (1989)

sobre a pertinência do trabalho em grupo para uma parte da população alijada dos

possíveis benefícios terapêuticos do campo psicológico-psicanalítico dentro do contexto

dual. O autor traz, em sua análise sobre o fenômeno do grupalismo, elementos

importantes para a compreensão das idéias subjacentes às teorias e terapias de grupo,

que podem prejudicar a utilização das mesmas no âmbito dos serviços públicos de

saúde.

O grupalismo é um dos fenômenos que se insere historicamente no quadro da

cultura psicológica. A princípio, podemos considerá-lo uma conseqüência do uso

intenso de teorias e terapias de grupo em resposta à inadequação do trabalho

psicoterapêutico dual para determinados clientes e reduzir este uso a uma dimensão

exclusivamente negativa, pautado na justificativa de que se trata de uma resposta a uma

demanda social (BEZERRA-JUNIOR, 1993). No entanto, é preciso considerar que há

uma dimensão positiva do uso das terapias de grupo quando oferecidas à população

diferente do universo das classes médias, por exemplo, nas instituições públicas de

saúde, possivelmente, alicerçada pela idéia de que ―estar em grupo de pares atenuava as

conseqüências paralisantes da dessimetria fortemente sentida no ‗setting‘ individual‖

(BEZERRA-JÚNIOR, 1993: 142).

48
O movimento grupalista é marcado por alguns dos valores caros ao

psicologismo, a saber, autonomia, liberação da palavra, desrepressão das emoções,

valorização da espontaneidade, exploração de vivências, ou seja, orientado pela

concepção de indivíduo moderno e sua consciência psicológica do eu (BEZERRA-

JUNIOR, 1993). O autor organiza suas reflexões destacando alguns pressupostos que

têm orientado o oferecimento das práticas grupais e que merecem atenção especial, pois

podem trazer repercussões negativas quando estão camufladas.

A primeira idéia diz respeito à aceitação do universalismo da representação

individualista, ou seja, à suposição, sem base, de que os membros do grupo são

representantes incontestes do modelo de indivíduo18. Esse aspecto é considerado como

repercutindo negativamente na escuta do terapeuta, o que decorre da confusão

estabelecida entre as noções de competência psicológica e capacidade universal de

expressar conflitos psíquicos. Diferentemente dessa capacidade universal típica do ser

humano, a competência psicológica seria a

capacidade de descrever com detalhes e nuanças os estados emocionais e os


anseios de cada um, o hábito de suspeitar de motivações desconhecidas para
atitudes e sentimentos próprios, e o costume de procurar sentido das
experiências da vida no esquadrinhamento dos afetos e sensações que
provocam no mundo interno de cada um (BEZERRA-JÚNIOR: 1993, 138).

Os atributos referidos à competência psicológica estão relacionados à organização

subjetiva individualista e decorrem do processo de socialização, que começa com a

família, desenvolve-se na escola e configura-se no próprio meio cultural. Neste sentido,

segundo o autor, a competência psicológica é um marcador social e, como qualquer

outro, se dá de modo particular e desigual nas sociedades (BEZERRA-JÚNIOR, 1993).

A segunda idéia desenvolvida pelo autor está relacionada ao fato de tomar-se o

grupo como essência. Aqui temos a mesma representação do indivíduo caucionada pelo
18
Indivíduo visto como uma ―forma particular de organização da individualidade moldada pela cultura
psicológica, e que carrega seus típicos anseios, conflitos e expectativas‖ (BEZERRA-JUNIOR, 1993:
137).

49
ideário individualista apenas ampliada para o próprio grupo, ou, mais precisamente,

para um indivíduo-grupo. Neste particular, ―a concepção ontológica do grupo caminha

ao lado da convicção de que o grupo possui uma natureza própria, com leis de

organização peculiares que transcendem os contextos em que se forma‖ (BEZERRA-

JÚNIOR, 1993: 139).

Na análise tecida por Bezerra-Júnior (1993), as pontuações realizadas frente aos

impasses advindos do emprego da psicoterapia dual para as pessoas distantes da cultura

psicológica podem ser transferidas para o trabalho psicoterápico em grupo, pois a escuta

do terapeuta, em ambos os enquadres, pode sofrer dos mesmos enganos. Podemos

destacar as seguintes orientações do estudo em pauta:

Escutar clientes menos afeitos à cultura psicanalítica significa apurar a escuta

psicanalítica e precisar a função do terapeuta19;

O fato de tais clientes não carregarem de forma emblemática os traços da cultura

psicológica não impede a escuta analítica.

Por sua vez, Nicácio (1996), ao descrever o padrão de distribuição da clientela entre

os serviços de psicologia e psiquiatria de um ambulatório 20, pôde identificar formas

típicas de sofrimento psíquico. Trata-se de discursos socialmente construídos e

partilhados sobre os mal-estares passíveis de mapeamento a partir da reconstrução das

histórias singulares e falas individuais que circulam nesse ambulatório. Neste serviço

foi possível identificar três fluxos de pacientes: o dos doentes dos nervos, o dos loucos e

o dos sujeitos psicológicos. Os dois primeiros, advindos de classes sociais baixas, são

atendidos pelos psiquiatras, sendo submetidos exclusivamente ao tratamento

medicamentoso.

19
A função do terapeuta ―ocupa um lugar que, investido transfencialmente pelo cliente, serve de garantia
para a emergência das formações inconscientes que põem em cheque as versões imaginárias de cada um
(BEZERRA-JÚNIOR, 1993, p. 143).
20
O referido ambulatório constitui uma das unidades periféricas do Instituto de Assistência dos
Servidores do Estado do Rio de Janeiro – IASERJ.

50
As queixas do nervoso remetem-se a um espaço da doença que, freqüentemente,

coincide com o corpo, elas giram em torno de uma diversidade de sintomas, não

redutíveis ao modelos nosográficos tradicionais: dores de cabeça; sentir a cabeça

quente; leseira na cabeça, frieza nas mãos, dormência no corpo; enjôos; vômitos;

aperto no peito; esquecimento; tremores; choque; insônia. A localização do sofrimento

é também enunciado através da referência a uma perturbação dos vínculos do sujeito

constituídos nas relações sócio-afetivas, familiares, de trabalho, geralmente associada a

um comportamento considerado atípico: desânimo para fazer as coisas; medo de andar

de ônibus; vontade de quebrar tudo. Além disso, são manifestações descritas pelo olhar

médico-psiquiátrico como ―queixas somáticas vagas; múltiplas‖.

Os loucos ou psicóticos, geralmente levados por outras pessoas, podem ser

considerados o próprio problema: ―ele é a queixa‖. Presença marcada pela discordância

entre os ditos do próprio paciente e os ditos sobre ele pelo familiar. Quando eles

encontram espaço para emitir algum discurso sobre seu próprio sofrimento, surgem

queixas como: nervosismo, crise de choro, tonteira na cabeça, insônia; falam da falta

de compreensão das pessoas, do isolamento a que se encontram submetidos, da aflição

por não ter o que fazer; nem ter pra onde ir; do desânimo para fazer as coisas, da

interrupção da atividade laborativa. No entanto, nos prontuários são freqüentemente

rotulados como aqueles ―refratários ao tratamento‖ (NICÁCIO, 1999).

Os sujeitos psicológicos, cujo perfil socioeconômico é de classe alta, aptos a

tematizarem verbalmente o sofrimento, são encaminhados para psicoterapia, embora

paralelamente possam fazer uso de psicofármacos. São os usuários que fazem uso de

uma linguagem da intimidade, ―através da qual se volta pra dentro de si, a fim de

descrever os detalhes das variações dos seus estados subjetivos‖ (BEZERRA-JUNIOR,

1990 apud NICÁCIO, 1996, p. 86).

51
Segundo Nicácio (1996), o atendimento seletivo da clientela tem resultado numa

lógica de não-responsabilização e de abandono dos pacientes. Neste terreno, quatro

regras governam a lógica que subjaz o encontro entre a demanda e a assistência: a

desqualificação do discurso do nervoso dá-se pela barreira linguística, conferindo a

determinados pacientes (nervosos e loucos) a incapacidade de aplicação das categorias

legitimadas pelo profissional de saúde (particularmente, os psicoterapeutas) para

descrição do sofrimento; a medicalização da loucura, silenciando o delírio através dos

psicofármacos, entendida como eficiente técnica disciplinar; a garantia da

produtividade, balizada a partir da contabilidade entre investimento na escuta versos

tipo de clientela, ou seja, neuróticos para psicólogos, psicóticos e nervosos para

psiquiatras, lógica que inviabiliza o trabalho em equipe; e a realização do mínimo, na

impossibilidade de encontrar estímulo, devido ao achatamento salarial e falta de

condições de trabalho, cada um cumpre seu horário e tarefas solitariamente, implicando

uma ―divisão psicopatológica do trabalho 21. O princípio de funcionamento é: o

psiquiatra se ocupa do bio; o psicólogo, do psico e o assistente social, do social.

Neste trabalho, foi possível diferenciar dois tipos de demanda. A primeira

demanda, qualificada como objetiva, situa-se no reino da necessidade, apresentada pelos

nervosos e loucos, ou simplesmente pelos mais pobres. A segunda demanda,

denominada subjetiva, encontra-se no reino da liberdade, presente nos sujeitos

psicológicos, ou de classe média, que transitam por um campo semântico que viabiliza a

atualização de sentimentos e pensamentos íntimos (NICÁCIO, 1996). A análise do

autor demonstra com clareza que a hierarquização da clientela acaba sendo perpassada

pelo crivo discriminativo de classe social e, particularmente, pela desqualificação de

21
Analogia forjada pelo autor a partir idéia de taylorização da assistência (LANCETTI, 1989), implica a
organização dos serviços, cuja matriz de divisão do trabalho pode ser representada por um modo de
funcionamento em que o psiquiatra se ocupa do bio, o psicólogo do psico e o assistente social do social
(NICÁCIO, 1996: 88).

52
modos de expressão de sofrimento e de subjetivação que não se coadunam com um

suposto modelo padrão.

Por sua vez, os impasses na tradução dos profissionais psi frente à riqueza

semântica das expressões de sofrimento construídas por pessoas das classes populares

também foram discutidos por Nunes (1993). A autora, no estudo sobre a relação

terapêutica desenvolvida entre moradores de um bairro popular de Salvador e terapeutas

de um centro de saúde mental, reconstrói os caminhos do tradicional espaço

institucional até a comunidade de referência. Uma das suas principais reflexões é sobre

como ocorre muitas vezes, essa tradução da experiência de sofrimento pelos

profissionais psi (psiquiatras e psicólogos) das queixas dos usuários dos serviços

públicos de saúde, lê-se na assertiva abaixo:

A experiência clínica é malograda por uma escuta não culturalmente sensível


e não instrumentalizada pelo acesso ao universo sociocultural do outro. O
risco desse desconhecimento, ou apreensão superficial da realidade alheia,
reside numa postura homogeneizadora por parte dos terapeutas, interpretando
a realidade clínica à mão a partir de categorias de significação restrita a
outros grupos sociais (NUNES, 1993: 218).

A escuta não culturalmente sensível reflete-se, muitas vezes, na própria

condução terapêutica, como sintetiza Nunes (1993: 129):

são desconsiderados sistemas de valores, cosmologias e códigos de interação


que dão aos fenômenos patológicos o significado social de doença,
hierarquizando e interpretando os seus sintomas. Minimiza-se o valor
terapêutico desses outros elementos que muitas vezes são vistos como
obstáculos que tornariam as camadas populares incapazes (ou deficientes)
para traduzir as linguagens dos técnicos e os seus códigos terapêuticos.

Hung-Tat e Fung (2003) discutem os limites e a pertinência do emprego da

psicoterapia para pessoas socializadas em contextos culturais diferentes e apresenta-nos

uma proposta de trabalho psicoterapêutico numa perspectiva transcultural, que tem por

princípio reforçar a competência cultural do terapeuta. A preocupação dos autores

53
decorre do fato da psicoterapia proposta no ocidente não ser apropriada para outros

contextos culturais, sem que haja determinadas ponderações.

A competência cultural psicoterapêutica enfatiza a capacidade de agir do

terapeuta e de obter ganhos clínicos positivos nos encontros com clientes de contextos

culturais diferentes. Ela está esquematizada a partir da intersecção das suas dimensões, a

saber: a) a competência cultural geral, que ―é o conjunto de conhecimento e

ferramentas necessárias para o encontro terapêutico transcultural‖; b) a competência

cultural específica que ―possibilita que os terapeutas trabalhem efetivamente com uma

comunidade etnocultural específica‖ (HUNG-TAT e FUNG, 2003, p. 162).

A competência cultural geral e competência cultural específica estão presentes

em todas as fases do trabalho psicoterapêutico. A partir da primeira noção, os autores

enfatizam que na condução do processo do paciente e da sua família, se for o caso, o

terapeuta deve buscar determinadas qualidades e habilidades, algumas delas destacadas

a seguir:

a) ter sensibilidade cultural, considerada a base da competência cultural, inclui


atributos como curiosidade, perspicácia e respeito. Neste terreno, é preciso
ressaltar que os modelos explicativos dos médicos, dos pacientes e de suas
famílias sobre a doença, necessariamente, não coincidem (KLEINMAN, 1980),
comumente um ponto de confronto e impedimento, quando não bem manejado;
b) atentar para o jogo étnico (ethnic match), entendido como uma habilidade para
julgar o quanto positivo ou negativo pode ser terapeuta e paciente pertencerem
ao mesmo sistema de valores, compartilharem da mesma linguagem e serem do
mesmo grupo étnico para conduzir aos melhores resultados terapêuticos;
c) desenvolver atitude de abertura, ou seja, distanciar-se de uma postura onisciente
e ingênua frente à cultura do paciente, evitando suposições equivocadas e
estereotipadas. Neste sentido, reconhecer em que lugar o paciente coloca o
terapeuta, buscando identificar se ele o ancora em uma figura significativa para
seu contexto cultural e que, de alguma maneira, possa vir a impedir o pleno
desenvolvimento do seu tratamento;

54
d) manter a aliança terapêutica, prezando pela sensibilidade cultural, e
inicialmente abordar assuntos julgados pelo paciente como importantes e
possíveis de serem trabalhados, introduzindo, cautelosamente, assuntos que
possam ser tabus e de difícil manejo;
e) avaliar e dar feedback a partir de uma abordagem compreensiva, incluindo as
perspectivas biológica, psicológica, social e espiritual, como seja o caso;
f) explorar a identidade cultural, entendida como fluida e dinâmica, que se
expressa por determinadas estratégias, geralmente invocadas a depender do
contexto ou situação vivenciada pelo paciente. Neste sentido, atentar para o grau
de aculturação que o paciente desenvolveu em relação ao contato que teve e tem
com o novo contexto cultural, identificando suas estratégias de aculturação no
que diz respeito à rigidez e ao ajustamento ao ambiente.

A competência cultural específica se desenvolve a partir da análise cultural, que

incorpora conhecimento específico de várias disciplinas, como a psicologia

transcultural, a psiquiatria, a antropologia e a sociologia, buscando uma abordagem

sistemática. A análise cultural tem como ―objetivo realizar o mais completo

entendimento psicológico culturalmente informado do paciente‖ (HUNG-TAT e FUNG,

2003, p. 166).

Os autores advertem que a análise cultural deve ser utilizada como uma estratégia de

gerar hipóteses (hypothesis - generating strategy), ou seja, aspectos potenciais da visão

de mundo do paciente que merecem ser explorados, mas que não podem conduzir a sua

rotulação. Esta análise comporta três domínios:

a) domínio do self, aspectos influenciados pela cultura, tais como emoções,

comportamentos, cognição, objetivos, metas, motivações, a própria concepção de self

do paciente;

55
b) domínio da relação, a cultura influencia a visão de mundo do paciente de acordo

com seus relacionamentos com os amigos, a família e os membros da sua comunidade,

além disso, com as coisas materiais e com a própria natureza;

c) domínio do tratamento, inclui a importância da cultura para a compreensão do

padrão de comunicação, tanto verbal como não verbal. Por outro lado, ressalta a

importância dos atributos e habilidades do terapeuta, já apresentados na competência

cultural geral, aqui destacados quando focalizados para entender um caso específico.

Outra perspectiva muito profícua que procura dar conta da problemática da

oferta de psicoterapia para os menos afeitos à ideologia individualista é a elaborada por

Figueira (1995). De acordo com o autor, esta idéia não só é viável como o próprio

processo psicoterapêutico pode funcionar como um palco de constituição de

subjetividade mais próxima à mesma, ainda que a sua função não se resuma a isto. Dito

de outra maneira, as práticas psicoterápicas podem ser entendidas como espaços de

―transições instauradoras‖, no sentido de serem uma das ―formas de propiciar passagens

entre modos de subjetivação‖ (FIGUEIREDO, 1995, p. 82). Segundo o autor, há três

modos de subjetivação passíveis de serem identificados na sociedade brasileira: as

pessoas, os meros-indivíduos e o sujeito, cujas definições apresentaremos a seguir.

Antes disso, é importante ressaltar que os modos de subjetivação apresentados

por Figueiredo (1995) são passíveis de serem reconhecidos para o contexto brasileiro,

ao passo que ele compartilha com DaMatta (1978) da idéia de que a sociedade brasileira

caracteriza-se como sendo constituída por um ―código duplo relacionado aos valores de

igualdade e da hierarquia‖ (DaMATTA, 1978, p. 156). De acordo com Figueiredo

(1995, p. 43), a análise antropológica de DaMatta (1978) apresenta um ―um país cindido

e oscilante entre um modo de subjetivação tradicional, holístico e hierárquico, familiar e

clientelístico, gerador de pessoas, e um modo de subjetivação moderno e urbano,

56
igualitário e impessoal, gerador de (meros) indivíduos‖22. Nas palavras do próprio

DaMatta (1978, p. 156), ―as relações entre a nossa ―modernidade‖ – que se faz

certamente dentro da égide da ideologia igualitária e individualista – e a nossa

moralidade (que parece hierarquizante, complementar e ―holista‖) são complexas e

tendem a operar num jogo circular 23.‖

Nesta perspectiva, Figueiredo (1995) distingue as pessoas dos meros-indivíduos

e dos sujeitos24. O modelo de subjetivação de pessoa apresenta-se como uma

modalidade pré-moderna sob a égide da heteronomia, configurando identidades

posicionais. Neste sentido, pode ser representada por homens e mulheres cujas vidas

estão reguladas pelas tradições e pelos costumes. Embora gozem em certa medida e por

momentos de liberdade, estão ―atados aos lugares que ocupam numa rede estreita e

densa de relações e histórias coletivas e submetidos a uma ‗ética da excelência‘ – em

que cada um deve se dedicar às funções e às tarefas que lhes são destinadas para

superar-se no seu exercício‖ (FIGUEIREDO, 1995, p. 37).

22
A análise realizada por DaMatta (1978) para a sociedade brasileira propõe a distinção entre o indivíduo
e a pessoa, como duas maneiras diferentes de conceber o universo social e de agir nele; a inclusão do
terceiro modo de subjetividade denominado mero-indivíduo é uma proposta do próprio Figueiredo
(1995).
23
Um dos exemplos clássicos apresentado por DaMatta (1978), que espelha a duplicidade brasileira entre
a igualdade e hierarquia decorrente do uso da expressão ―você sabe com quem está falando?‖, empregada
em diversas situações cotidianas pelos brasileiros como um rito de autoridade, que tem como objetivo
distanciar-se de um modelo de indivíduo e operar como pessoa. O autor chama atenção para o fato de ser
difícil para um brasileiro operar como indivíduo (ou seja, ser submetido às leis e às normas gerais), uma
vez que a sociedade brasileira é marcada pelas relações pessoais e de apadrinhamento e ―onde se tem
pouca tolerância para com a igualdade e o individualismo‖ (DaMATTA, 1978, p. 182).
24
Estas definições também têm como ponto de partida a relação indivíduo-sociedade elaborada por Louis
Dumont: ―Nas sociedades tradicionais os indivíduos, enquanto unidade empírica de falas e ações, aí
figuram como seres socialmente determinados, assumindo identidades posicionais, vale dizer identidades
que se definem a partir da posição (ou posições) que ocupam no quadro social estratificado e
hierarquizado. Desta forma a coletividade e as suas tradições condicionam as existências individuais e
limitam as possibilidades de individuação em um grau desconhecido nas sociedades individualistas.
Nestas os indivíduos, além de serem unidades empíricas, são representados como elementos a-sociais,
independentes e autônomos, sobre os quais se organizam ou deveriam organizar os modos de
funcionamento e as estruturas da sociedade. Eles, de fato, são tomados com valor a ser realizado nas e
pelas práticas sociais, o que implica no estabelecimento de normas e ideais individualistas, cujo
paradigma está explicitado no ideário liberal dos séculos XVIII e XIX, e no exercício de procedimentos
individualizantes‖ (FIGUEIREDO, 1995: 27-28).

57
O sujeito e os meros-indivíduos configuram modelos modernos de subjetivação

(FIGUEIREDO, 1995). A concepção de sujeito como um modelo de subjetivação é

equivalente à noção de indivíduo moderno, autônomo, independente, auto-orientado,

auto-sustentado, configurando-se a partir de identidades idiossincráticas, vista já em

Luis Dumont e em Roberto DaMatta. Por sua vez, o autor introduz outra categoria, os

meros indivíduos que ―gozam de uma precária e muito discutível independência de

vínculos e obrigações – rompidas com a dissolução das instituições holistas – mas ficam

reduzidos à condição de objetos de uso alheio e submetidos a formas autoritárias de

controle (FIGUEIREDO, 1995: 38), considerados pelo autor como sendo aqueles para

quem a existência dentro do contexto de duplicidade brasileira tende a ser

subjetivamente ainda mais desgastante.

É necessário destacarmos aqui dois pressupostos apresentados por Figueiredo

(1995): a) cada brasileiro é concomitantemente pessoa, mero indivíduo e, de modo

menos pronunciado, sujeito; b) a busca por atendimento psicológico, particularmente o

psicoterapêutico, está extremamente associada a esta crise nas condições de

assujeitamento [ou seja, tornar-se sujeito].

Tomando como referência os clientes na busca de atendimento psicológico e

considerando a possibilidade desses espaços funcionarem como uma passagem entre

modos de subjetivação, ou mais precisamente, dos meros-indivíduos aos outros, o autor

aponta dois processos: personalização ou assujeitamento.

Personalização é o processo de instauração nostálgica que conduz meros

indivíduos em direção a formas antigas de subjetivação, que são possíveis através da

imaginação, ou mesmo na prática (FIGUEIREDO, 1995). Dito de outra maneira, os

meros-indivíduos parecem solicitar o retorno à condição de ―pessoa com tudo que ela

58
promete de integração a ordem, de diferenciação qualitativa, de sentido denso para

existência social dos homens (FIGUEIREDO, 1995, p. 86).

Por assujeitamento25 atinge-se o modo moderno de subjetivação. Neste, o mero-

indivíduo ―se constitui como sujeito auto-suficiente e auto-sustentado, ou bem enquanto

autonomia racional diante de um mundo de objetos plenamente ―objetivos‖, ou bem

enquanto autonomia expressiva de forças naturais e/ou históricas‖ (FIGUEIREDO,

1995: 39). Este processo pode ser entendido como uma instauração modernizante

destinado a conduzir meros-indivíduos à condição de sujeito moderno e está em

dependência de como e quanto eles se constituíram a partir das transformações

ocorridas na estrutura e dinâmica familiar modernas.

Estas passagens podem ser propiciadas pelas práticas terapêuticas, como espaços

institucionalizados, mas estão longe de serem restritas a eles, considerando-se as

seguintes condições para a situação de duplicidade brasileira (FIGUEIREDO, 1995, p.

80):

a) as condições da existência como mero indivíduo são, como sempre

foram, extremamente difíceis e quase indesejáveis;

b) as condições de existência como pessoa vão se tornando precárias, mas

ainda subsistem e atraem;

c) as possibilidades de existir como sujeito abrem-se lentamente, exigindo

investimentos muito empenhados e custosos.

25
Este processo ―supõe um momento da história do indivíduo em que ele pertenceu de fato a uma
coletividade que lhe garantia uma existência como pessoa‖. As condições de assujeitamento dizem
respeito à ―eficácia dos dispositivos [transformações na estrutura e na dinâmica das famílias modernas
(FIGUEIREDO, 1991)] cuja função seria instituir uma origem simbólica para o sujeito no reino das
pessoas‖ (FIGUEIREDO, 1995: 39).

59
O autor destaca que estas transições, a partir de instaurações modernizantes,

podem ser orientadas por duas plataformas: a humanista-existencial e a tecnocrática 26.

Apesar das diferenças que as sustentam, estas plataformas têm como base comum a

crença de que ―há possibilidade de se (re-)constituírem subjetividades, segundo o

modelo da modernidade‖ (FIGUEIREDO, 1995, p. 87).

Nesta perspectiva, cabe ressaltar ainda uma das hipóteses do autor, agora

tomando como referência os próprios terapeutas. O uso imbricado feito pelos mesmos

de recursos advindos de ambas plataformas díspares (a exemplo dos de base

existencialista e os de base comportamental) pode ser explicado, considerando-se dois

aspectos complementares: 1) o árduo trabalho de contribuir para a construção de

subjetividades modernas num meio social hostil; 2) apesar das dificuldades lógicas que

a princípio possam apresentar, pode-se supor que há ―perfeita comunhão de propósitos

e, em termos histórico-sociais, o mesmo sentido‖, considerando as freqüentes demandas

de (re)-personalização e de assujeitamento que aparecem nos consultórios

(FIGUEIREDO, 1995).

O autor ainda reserva um breve espaço para a discussão de como a psicanálise

lida com estes modos de subjetivação, já que a exclui do bojo das plataformas citadas,

provocando os próprios psicanalistas a partir da seguinte questão: ―como será que ela

[psicanálise] funciona e o que será que ela significa quando, afastada de suas origens e

relativamente fora do lugar opera num país em que a modernidade sempre esteve

embrulhada num grande mal-entendido?‖. Neste caso, a idéia que se quer passar com a

expressão fora do lugar é de que a psicanálise fica ―sem um alvo muito nítido‖ em um

26
Figueiredo (1995: 87) identifica duas plataformas que orientam as transições modernizantes.
Plataforma humanista-existencial: ―circula o discurso de desalienação, da liberdade e da responsabilidade
individual, vale dizer, a ideologia do humanismo moderno na sua versão liberal romantizada [...]. e a
Plataforma tecnocrática: ―idéia de que o controle de si necessário para o controle do mundo físico e
social implica em desenvolver e pôr à disposição do mero indivíduo uma ―tecnologia comportamental‖, a
apropriação pelo cliente destas técnicas o elevaria à condição de sujeito‖.

60
contexto, a exemplo do Brasil, cujas subjetividades estariam organizadas sobretudo

segundo um ―modelo relacional em que as pessoas vivem realmente e conscientemente

divididas na trama de direitos e deveres dos seus grupos de parentesco, amizades‖

(FIGUEIREDO, 1995, p. 90).

Nesta perspectiva, no Brasil, a presença e permanência da psicanálise não

poderia se dá sem a tomar a partir de ―profundas transformações no seu sentido e na sua

eficácia‖, o que ainda está por ser um objeto de estudo com a seriedade que esta

problemática exige, ressalta Figueiredo (1995). Neste terreno, outro caminho apontado

pelo autor, que merece desdobramentos analíticos, coloca em cheque o próprio modelo

de subjetividade do ―psicanalista‖ brasileiro como não representante autêntico do

sujeito, cujas relações com os seus pares sugere uma busca para a condição de pessoa.

Em suas próprias palavras:

A relação de muitos psicanalistas com seus próprios analistas, com seus


supervisores e suas sociedades parece marcada não tanto pela filiação, como
pela de apadrinhamento e clientelismo. O que esperam destas relações talvez
não seja uma via de supressão, nem de ascensão, à condição de sujeito, mas
de acessão à condição de pessoa, integrando-se a uma ordem de familiares,
vizinhos e compadres, beneficiando-se de favores (as indicações) e
legitimações personalizadas (FIGUEIREDO, 1995, p. 91).

Em suma, no presente capítulo, buscamos problematizar teoricamente a

pertinência do atendimento psicológico moderno para uma parte da população pouco

afeita ao discurso psicológico, ou seja, pessoas representantes de uma estruturação de

subjetividade mais distante da denominada ―indivíduo‖. Para tanto, nos reportamos a

estudos teóricos que descrevem o processo de difusão da cultura psicológica nas

sociedades modernas e aos autores que buscaram discutir este fenômeno no contexto

brasileiro, particularmente situando as repercussões no contexto psicoterapêutico para as

pessoas de classes populares.

61
Destacamos algumas idéias e conceitos básicos que alimentam a discussão sobre

o desenvolvimento e efeitos da cultura psicológica nas sociedades modernas, que foram

substanciais para a análise dos dados empíricos sobre a atuação dos psicólogos em

serviços públicos de saúde. A conseqüência imediata da sistematização de parte desses

estudos foi definir alguns pressupostos que orientaram e justificam a presente

investigação, a saber:

A cultura psicológica é um fenômeno instigante e ainda merece estudos

empíricos que alimentem a discussão dos seus efeitos;

Há visivelmente argumentos teóricos que validam a necessidade de compreender

as possíveis conseqüências, principalmente as negativas, decorrentes da

ignorância dos efeitos desse fenômeno;

Particularmente, há necessidade de investir em estudos que empreguem e

chequem pressupostos e conceitos que parecem apresentar teoricamente poder

heurístico;

Desconsiderar as particularidades do desenvolvimento e difusão da cultura

psicológica, tanto da perspectiva dos produtores quanto dos consumidores,

impossibilita os ajustes e avanços necessários, advindos da própria difusão;

Por fim, percebemos que o conhecimento teórico desse fenômeno pode

contribuir para a compreensão da seleção social e culturalmente orientada dos

usuários, decorrente de princípios subjacentes às práticas psicológicas

desenvolvidas pelos psicólogos em serviços públicos de saúde.

62
3. O PSICÓLOGO NO CONTEXTO DA SAÚDE PÚBLICA: compromisso social e

atuação psicológica.

Enigma

Um novo ser me nasce em cada hora.


O que fui, já esqueci. O que serei
Não guardará do ser que sou agora
Senão o cumprimento do que sei.

J. Saramago em Os Poemas Possíveis.

Neste capítulo, temos como objetivo apresentar alguns estudos críticos elaborados por

pesquisadores preocupados com o desenvolvimento da psicologia como ciência e como

profissão. De modo geral, estes autores estão interessados em compreender a

repercussão da inserção dos psicólogos nos mais variados contextos de trabalho,

particularmente na área da saúde, no sentido de refletir sobre a função social que a

profissão tem assumido na sociedade brasileira (SILVA, 1992; CAMPOS, 1992;

BASTOS e ACHCAR, 1994; LO BIANCO, e outros 1994; BOCK, 2003; SPINK,

2003).

Em recente trabalho sobre os 40 anos de existência da profissão de psicólogo

regulamentada no Brasil, Bock (2003) nos traz importantes elementos para a

compreensão de como se tem estabelecido sua função social. A autora descreve este

pequeno período de existência tal como destacado na citação abaixo:

Uma profissão que, durante seus 40 anos de vida, serviu às elites, sendo um
serviço de difícil acesso aos que têm pequeno poder aquisitivo. Uma
profissão com pouca inserção social, baixo poder organizativo, com
entidades frágeis com pequeno poder de pressão e que negociou pouco com o
Estado suas demarcações e possibilidades de contribuição social (BOCK,
2003, p. 19).

A autora destaca três categorias na sua análise: 1) a naturalização do fenômeno

psicológico; 2) o conceito de prática psicológica como uma intervenção distante da

noção de trabalho; e 3) a concepção reducionista da relação indivíduo-sociedade. Ela

63
tem como pressuposto de interpretação que as mesmas refletem os interesses das elites

no Brasil27, uma vez que a psicologia tem se constituído como uma ciência e uma

profissão para o controle, a categorização e a diferenciação das pessoas, contribuindo

muito pouco para a transformação das condições de vida da sociedade.

Do ponto de vista da concepção naturalizada e universal do fenômeno

psicológico, não se vislumbra no horizonte teórico a necessidade de incluir as vivências

cotidianas das pessoas, seus valores sociais e culturais, muito menos as formas de

produção de sobrevivência e as interações sociais para entender o mundo psíquico.

Nesta direção, a prática profissional limita-se ao reencaminhar para o ―seu trilho‖ o que

foi desviado, distanciando do seu campo de visão as preocupações com a qualidade de

vida, a promoção de saúde e a transformação da sociedade (BOCK, 2003).

O segundo aspecto discutido pela autora refere-se ao fato de que os psicólogos

não têm concebido suas intervenções como trabalho. Dito de outra maneira, o trabalho,

entendido como ação intencionalmente direcionada sobre o mundo, não faz sentido para

uma categoria profissional que pensa que tem como cliente ―um sujeito autônomo e

capaz de produzir seu próprio movimento de individualização‖, cabendo-lhe apenas

ajudá-lo no processo de autoconhecimento (BOCK, 2003, p. 24).

Nesta direção, não se admite a idéia de que as intervenções psicológicas

influenciam e direcionam as pessoas com quem se entra em contato direto ou indireto,

compreendendo os próprios recursos utilizados no trabalho como neutros (BOCK,

2003). Por exemplo, para a autora, perde-se de vista que, ao levantarmos critérios que

permitem julgar as condições de saúde psíquica de alguém, estes estão embutidos em

regras morais dominantes na sociedade.

27
Na sua breve digressão, Bock (2003) remete-se a alguns fatos que exemplificam o que denomina de
compromisso com a elite, a saber, sua aplicação na educação para diferenciar pessoas e construir grupos
homogêneos, no trabalho, para selecionar trabalhadores mais adequados aos objetivos da empresas, além
disso, o exemplo que se tornou clássico, o desenvolvimento dos testes psicológicos como instrumento
principal da profissão, incentivado por interesses bélicos.

64
Por fim, a reducionista concepção da relação indivíduo-sociedade dominante na

psicologia está sustentada na idéia de que a sociedade não tem papel algum na

constituição do homem e da sua subjetividade, pois ele desenvolve-se pela sua natureza

(BOCK, 2003). A sociedade é vista como algo externo ao sujeito que, no máximo, o

impede, ou o ajuda, a desenvolver-se:

A psicologia tem concebido os sujeitos como responsáveis e capazes de


promover seu próprio desenvolvimento; essa concepção isola o sujeito e sua
subjetividade do mundo social e isenta as instituições sociais e modos de
produção da sobrevivência de qualquer responsabilidade pelos sofrimentos
psicológicos. Os problemas e características do mundo psíquico são
explicados pelo seu próprio funcionamento e movimento (BOCK, 2003, p.
27).

Os três aspectos destacados acima têm fundamentado as atuações do psicólogo

na sociedade brasileira e têm sido reforçados pelos cursos de psicologia, desde o

momento de graduação. Segundo Silva (1992), o processo de formação em psicologia

direciona o graduando para o exercício autônomo em consultório particular, prioriza um

modelo único de atuação que, independentemente da abordagem teórica, privilegia

processos psicoterápicos contínuos.

Podemos acompanhar o poder da formação profissional que imprime uma visão

específica de mundo através do estudo de Good (1994). O autor realizou uma etnografia

junto ao curso de medicina de Harvard, com o objetivo de compreender como a

medicina constrói seu objeto de conhecimento e de intervenção. Nesta direção,

participou de aulas práticas e teóricas, além de realizar entrevistas com os graduandos

de semestres diferentes, reconstruindo suas trajetórias. O autor conclui que o processo

de formação em medicina é, para os futuros médicos, mais do que a incorporação de

conhecimentos cognitivos, do aprendizado de abordagens de resolução de problemas e

de técnicas. Trata-se de uma formação simbólica que atribui significados singulares e

poderosos ao longo do curso, fazendo os graduandos habitarem em um mundo novo. Os

65
graduandos realizam práticas que são formuladas a partir de uma perspectiva

materialista e individualista da doença e relatam com riqueza de detalhes as

transformações no seu olhar, na sua fala e na sua escrita, que dão sentido a esse novo

habitar (GOOD, 1994).

Também no que tange à formação dos psicólogos, as idéias e valores

individualistas são constitutivos da cultura profissional desse profissional no Brasil,

como podemos perceber na síntese transcrita abaixo:

a Psicologia que é ensinada nas nossas universidades tem pretensão de ser


apolítica, neutra, e justo por isto está embebida da ideologia dominante e
conservadora das relações sociais. Assim, é uma Psicologia ingênua e
ineficaz que a universidade termina promovendo, porque psicologizante e a-
crítica dos modelos importados, o que leva a um distanciamento do social e
uma aproximação ainda maior do aluno às idéias e valores hegemônicos da
ideologia individualista que ele carrega, pois oriundo das classes médias
urbanas (DIMENSTEIN, 2000, p. 5).

Silva (1992), que problematizou a formação de psicólogos a partir da sua

experiência como professora supervisora de estágio em unidades básicas de saúde,

também descreve como os cursos de psicologia imprimem certas características difíceis

de serem modificadas ou ampliadas. Por exemplo, quando os graduandos se deparam

com novas propostas de atuação diferentes da clínica tradicional, a qual, como veremos,

está, particularmente, pautada no acompanhamento sistemático, regular e

psicoterapêutico, não é possível atribui-lhes valor positivo.

Por identificar a prática psicoterapêutica como sinônimo de atuação clínica é


que o modelo de atuação tem sido mantido e imposto aos diferentes níveis de
atenção em saúde sejam eles primários, secundários ou terciários. Isto é,
independentemente dos tipos de serviços e de suas necessidades, a psicologia
tem em geral tentado exercer um único modo de atuar através dos
atendimentos psicoterápicos de seguimento contínuo e/ou prolongado
(SILVA, 1992, p. 31)

A autora ressalta que os próprios estagiários tendem a desvalorizar atividades

que são mais adequadas a níveis primários de saúde, como ações de prevenção,

identificação precoce de casos e encaminhamento para níveis de atenção mais

especializados, ou promoção de saúde, por não corresponderem à atuação ―ideal‖

66
reforçada ao longo do seu processo de formação e por não estarem presentes no seu

imaginário antes de ingressar no curso (SILVA, 1992).

Além disso, outro aspecto que merece maior destaque é que o modelo de

atuação em clínica que é retroalimentado nos cursos de psicologia está distante da

população que procura os serviços públicos de saúde; e podemos arriscar , nos três

níveis de assistência, e não apenas no primário. As propostas clínicas continuam

orientadas e direcionadas por parâmetros típicos da classe média, utilizados para a

padronização de seus instrumentos, métodos e técnicas, linguagem e valores em geral

(SILVA, 1992).

Dois estudos financiados pelo Conselho Federal de Psicologia (1988; 1994) são

importantes para a compreensão das repercussões de uma formação profissional

descontextualizada sociocultural e economicamente da realidade brasileira. O ponto de

partida é o fato de a atuação psicológica ter se expandido para contextos onde os

profissionais têm que entrar em contato com a parcela pobre da população, antes fora do

seu campo direto de intervenção. O modo como este contato ocorre, ou seja, as

respostas que estes profissionais representantes do campo psicológico fornecem para os

problemas enfrentados por este grupo são alvo de constantes críticas dentro do próprio

campo disciplinar (SILVA, 1992; BASTOS e ACHCAR, 1994).

Nestes trabalhos, identificou-se que houve uma expansão da atuação de

psicólogos para outros contextos de trabalho, ampliação descrita como uma certa

movimentação do consultório privado para outros contextos de trabalho, como a

educação, a saúde e o campo organizacional, ainda que a atuação em clínica privada se

mantenha como predominante. A despeito dessa mudança, Bastos (1990 apud BASTOS

e ACHCAR, 1994) identifica o modelo hegemônico que tem caracterizado a atuação do

psicólogo no Brasil, percebendo que não há muita diferença no modelo de atuação em

67
relação ao tipo de instituição de graduação proveniente. Este modelo é descrito como

majoritariamente constituído pela atuação psicoterapêutica em consultórios particulares,

dirigida à clientela adulta da classe média, com dedicação parcial de tempo. No entanto,

o autor ressalta que a inserção dos psicólogos nas instituições de saúde modificou a

clientela, caracterizada por pertencer à classe social de nível socioeconômico mais

baixo, mas houve a manutenção das mesmas atividades típicas da clínica tradicional.

De acordo com Lo Bianco e outros (1994: 9), as características abaixo elencadas

definem a clínica tradicional:

Atividades de psicodiagnóstico e/ou terapia individual ou grupal;


Atividade exercida em consultórios particulares, restrita a uma clientela
proveniente de segmentos sociais mais abastados;
Atividade exercida de forma autônoma, como profissional liberal, não inserida
no contexto dos serviços de saúde;
Trabalho que se apóia em um enfoque intra-individual, com ênfase nos
processos psicológicos e psicopatológicos, e centrado em um indivíduo abstrato
e a-histórico;
Hegemonia do modelo médico, aqui traduzido na aceitação da autoridade do
profissional na relação com o paciente, não se questionando o saber e a prática a
partir das reações do paciente.

Percebemos que a tentativa de caracterizar a clínica tradicional presente nesse

modelo hegemônico busca considerar desde o espaço em que ela é desenvolvida, as

técnicas e estratégias utilizadas, a ênfase atribuída a determinado foco para a

compreensão do fenômeno psicológico, até a natureza da relação entre o psicólogo e o

paciente. Considerando a caracterização transcrita acima, o estudo desenvolvido por

Dimenstein (1998; 1998a) sobre o perfil profissional do psicólogo no contexto do SUS,

particularmente das UBSs em Teresina – Piauí, conclui que a transposição desse modelo

tradicional, ou seja, o oferecimento exclusivo de psicoterapia individual e do

68
psicodiagnóstico, não é adequado para este nível de assistência à saúde, pois não atende

às demandas da população nem às expectativas da organização hierárquica do SUS.

Segundo Lo Bianco e outros (1994), as atividades mais freqüentes desenvolvidas

pelos psicólogos no nível primário de atenção à saúde no Brasil são a psicoterapia de

adulto e adolescentes e o psicodiagnóstico. Em relação aos recursos técnicos mais

utilizados, encontramos a entrevista, a psicoterapia individual, os testes e a psicoterapia

breve, embora estas atividades sejam vistas como especializadas e mais adequadas ao

nível secundário de atenção à saúde.

O descompasso entre a natureza da intervenção e o nível de assistência, ou seja,

a cristalização de uma determinada atuação psicológica para todos os níveis de

assistência, é visto pelos autores como impeditivo e mesmo indefensável para justificar

a contratação de psicólogos para atuarem em programas de atenção primária (LO

BIANCO e outros, 1994).

Neste particular, a inserção do psicólogo na rede básica de saúde deveria atentar

para os seguintes aspectos (LO BIANCO e outros, 1994: 40-1):

Enfatizar o planejamento e execução de ações em base em demandas coletivas;


Atentar para as especificidades trazidas pela ―pulverização‖ de problemas
específicos de saúde trazidos pela população, que coloca o psicólogo em contato
com questões que extrapolam o campo da ―saúde mental‖ propriamente dito;
A necessidade de lidar com contingentes maiores de indivíduos, levando a
priorizar estratégias grupais e focais para lidar com os problemas trazidos pela
população;
Contato mais direto com as condições concretas de vida do segmento não
privilegiado economicamente na sociedade, fazendo chegar a este serviços dos
quais estavam excluídos. Além disso, este contato permite ao psicólogo checar
seus conceitos universalizantes de psiquismo;
A concepção de ‗clínica psicológica‘, compreendendo também as ações de baixa
complexidade, ampliando-se, assim, para uma percepção da clínica não como
sinônimo de ações psicoterápicas especializadas, mas como manejos que

69
previnem as necessidades das mesmas ou que visam à promoção de saúde
(JACKSON e CAVALLARI, 1991).
Apesar do esforço dos referidos autores para elencarem quais as ações e noções

que seriam mais pertinentes para serem reforçadas na formação e desenvolvidas pelos

psicólogos nas UBSs, alguns dos aspectos levantados estão por ser desdobrados ou

mesmo definidos. Está obscuro o que significa ―demanda coletiva‖ e o que se quer dizer

com ―pulverização‖ dos problemas específicos. Além disso, o emprego de trabalho em

grupo justificado pelo aumento da demanda parece-nos um ponto de partida da reflexão,

e não uma deliberação que se deve aceitar sem ressalvas. Neste terreno, já apresentamos

os equívocos discutidos por Costa (1993) em relação ao fenômeno do grupalismo, que

já demonstra o perigo de indicações como estas sem reflexões mais profundas. No

entanto, o convite feito aos psicólogos e pesquisadores, representados nos dois últimos

itens, é fundamental, considerando as críticas feitas nas linhas precedentes sobre a

inserção dos psicólogos e os impasses daí decorrentes, a exemplo da prática clínica não

orientada socioculturalmente.

Alguns estudos enfatizam que as dificuldades de ampliação e sustentação de

novos campos de atuação dependem das mudanças nos princípios orientadores da

própria formação profissional, cujos efeitos negativos, conseqüentemente, tornaram-se

ainda mais visíveis fora do consultório particular, particularmente nas instituições

públicas de saúde (SILVA, 1992; LO BIANCO e outros 1994; SPINK, 2003;

YAMAMOTO, 2003).

Segundo Yamamoto (2003), é preciso ressaltar a dimensão política da ação do

profissional psicólogo. Nesta perspectiva, considerar, criticamente, os efeitos dos tipos

de intervenções propostas e, porventura, distantes das ―políticas de vigilância da

70
saúde‖28. Para o autor, as ações dos psicólogos no setor social público demonstram

apenas a extensão da atuação convencional, desacompanhada de problematização da sua

eficiência e adequação, resultando no acesso desqualificado por parte de parcelas cada

vez maiores da população (YAMAMOTO, 2003).

A partir da metade da década de 1990, temos maior incentivo dos conselhos

regionais de psicologia, impulsionados pelo federal, para fomentar uma formação

profissional baseada na noção de compromisso social, ou seja, que inclua no seu

universo simbólico o interesse pela mudança nas condições de vida das pessoas, bem

como a alteração de estruturas sociais que alimentam os problemas vividos pelas

mesmas. Neste terreno, o compromisso social envolve, também, a preocupação com as

dimensões ideológica e política da mudança social, apoiado na permanente crítica das

relações sociais dentro da estrutura social (BASTOS e ACHCAR, 1994).

Segundo Bock (1999), considerar, operacionalmente, o compromisso social da

psicologia é poder avaliar a inserção da psicologia, como ciência e como profissão,

enfatizando as particularidades da realidade brasileira com intuito de orientar quanto ao

caminho que foi percorrido e aquele que se gostaria de trilhar para a transformação ou

para a manutenção das condições de vida.

Por sua vez, Bastos e Achcar (1994) apontam que o compromisso social deve

pautar a compreensão dos fenômenos psicológicos, da natureza e do nível da

intervenção, bem como sustentar uma perspectiva multidisciplinar do conhecimento que

embase a prática e amplie as tecnologias, a partir do desenvolvimento de uma atitude

mais crítica frente às teorias, às técnicas e aos instrumentos empregados na atuação

28
De acordo com Yamamoto (2003, p. 49), ―as estratégias de intervenção da ―vigilância da saúde‖
resultam da combinação de promoção da saúde, de prevenção das enfermidades e dos acidentes, e da
atenção curativa (MENDES, 1996)‖, incluindo as diretrizes advindas da reforma psiquiátrica para
estabelecimento dos modelos substitutivos de atenção a saúde mental, por exemplo.

71
psicológica a uma parcela da população que se encontrava, historicamente, excluída da

sua clientela principal.

Neste sentido, os autores descrevem uma tendência que deveria acompanhar a

formação do psicólogo desde a graduação, de modo a diminuir os efeitos negativos da

aplicação indiscriminada da ―clínica tradicional‖:

A mudança na concepção sobre o fenômeno psicológico, que esteve centrado no


plano individual (indivíduo a-histórico, isolado do seu contexto social), deve
passar a ser visto na sua interdependência com o contexto sociocultural;
Mudança na natureza da intervenção, em dois âmbitos:
o Historicamente, centrada na ação isolada do psicólogo, tende a incluí-lo
em equipes multidisciplinares;
o Focalizada no indivíduo, ou seja, nos aspectos ―intra-psi‖, de caráter
curativo e remediativo, tende a centrar-se em contextos, em grupos, em
ações preventivas e prospectivas;
Mudanças no nível da intervenção: antes, totalmente restrita ao plano de
aplicação das técnicas (o que nos dá reduzido poder de intervenção), tende à
atuação no nível mais estratégico, fornecendo maior poder decisório (assessoria,
gerência, consultoria);
Crítica das fontes de conhecimento que embasam a prática: passa-se de uma
perspectiva unidisciplinar para uma perspectiva multidisciplinar;
Ampliação dos recursos técnicos: antes, restritos e originários, basicamente, no
âmbito da própria psicologia, tendem a ser ampliados, contemplando maior
diversidade de recursos e instrumentos, ou seja, pluralidade de técnicas que
podem extrapolar o campo da psicologia;
Nova atitude em relação aos conhecimentos, técnicas e práticas: tendemos a
passar de uma atitude consumista (aplicar aquilo que foi gerado em outros
contextos) para uma atitude mais crítica: preocupada em gerar conhecimentos e
tecnologia apropriados à realidade em que atuam;
Mudança no perfil da clientela atendida: predominantemente de classe média e
com poder aquisitivo (crianças e adultos), está cada vez mais diversificada, há
uma tendência para cuidado de outros segmentos socialmente excluídos;

72
A natureza do compromisso enquanto profissional: uma preocupação humanista
e voltada para o atendimento de necessidades individuais, deve buscar fortalecer
uma preocupação com o engajamento pela transformação social.
Os aspectos destacados acima propõem alternativas de transformação de uma

identidade profissional ainda inadequada para atender à demanda de uma parcela

considerável da população brasileira, na perspectiva de uma atuação psicológica

desvinculada da noção de compromisso social (LO BIANCO e outros, 1994; BASTOS

e ACHCAR, 1994; DIMENSTEIN, 1998; 1998a; 2001; BOCK, 1999, 2003;

YAMAMOTO, 2003). Tomando-os, como pano de fundo, apresentaremos alguns

princípios que têm orientado as políticas públicas de saúde no âmbito dos recursos

humanos, percebidos como contribuidores para a entrada e inserção de psicólogos no

setor saúde.

3.1 INCLUSÃO DOS PSICÓLOGOS NAS EQUIPES MULTIDISCIPLINARES DE

SAÚDE: alguns reflexos das políticas públicas de saúde.

Do ponto de vista normativo, a presença de psicólogos, como um dos representantes das

14 profissões de saúde, é garantida pelo Decreto n. 53.462 29, desde 1964. No entanto,

segundo Dimenstein (1998; 1998a), antes da metade dos anos de 1970, podemos

encontrar experiências isoladas de alguns psicólogos que atuavam em instituições de

saúde. Apenas a partir da década de 1980 é que há um número maior de psicólogos

empregados no setor. Entre 1976 e 1984, houve um incremento da categoria de 726

destes profissionais para 3.671 nas equipes de saúde de nível superior, o que revela um

aumento progressivo na sua participação. No entanto, comparado à entrada de outros

profissionais, este aumento é numericamente pouco expressivo. Por exemplo, para este

29
Este decreto de 21/01/1964 regulamenta a Lei 4.119, que dispõe sobre a profissão de psicologia.

73
mesmo período, o número de assistentes sociais passou de 3.309 para 6.649, muito

superior ao de psicólogos. Por outro lado, considerando a taxa de empregos de saúde no

Brasil por categoria profissional, podemos perceber que a de psicólogo aumentou muito

acima da média de outras categorias, chegando a atingir o maior crescimento

proporcional, correspondente a 51,65 em 1984 30, no final da década de 1970 e início dos

anos de 1980.

Em 1995, havia 4.990 empregos para psicólogos no setor público de saúde para

3.330 no setor privado. A participação numérica total de psicólogos era de 8.290

profissionais: inferior aos 10.277 assistentes sociais, aos 41.501 enfermeiros e aos

307.952 médicos; superior aos 6.908 farmacêuticos, 1.746 terapeutas ocupacionais,

entre outras categorias. Particularmente no setor público de saúde, ainda em 1995, havia

4.990 empregos para psicólogos: 70,1% deles concentrados na região sudeste (3.398),

16,8% no nordeste (817), 9,3% no sul (449), 2,4% na região norte (116) e apenas 1,4%

no centro oeste (66)31 (DIMENSTEIN, 1998).

Em levantamento para o ano de 199832, feito por Franco e Mota (2003), havia

1.384.145 profissionais de saúde no Brasil, dos quais 6.684 eram psiquiatras,

representando 0,48 do total, e 14.504 eram psicólogos cadastrados no sistema de

informações ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), os últimos representando 1,0% do total

de profissionais. Ainda persistem as diferenças regionais quanto à distribuição dos

psicólogos no Brasil: no sudeste (579.984), temos a proporção mais elevada e, nas

regiões norte e nordeste, as mais baixas (356 e 2.187, respectivamente). As diferenças

são atribuídas à presença ou ausência nos estados de agências formadoras de psicologia,

que se deu e se dá de modo diferenciado no país. Na região sudeste, há 12,9 psicólogos

por 100.000 hab., enquanto para a região nordeste esta taxa cai para 4,8 por 100.000

30
Fonte IBGE (1995)
31
Fonte IBGE (1995)
32
Fonte SIA/DATASUS/MS (1998)

74
hab, e, particularmente, para a Bahia, há um déficit ainda maior, contamos apenas com

1,9 psicólogos por 100.000 hab (ver TABELA 2 no ANEXO A).

Em 1998, na Bahia, tínhamos 77.254 profissionais de saúde, sendo 234

psiquiatras e 242 psicólogos, seguindo a mesma tendência dos demais estados

nordestinos de terem mais psicólogos do que psiquiatras nos serviços públicos de saúde.

Segundo Mota e Franco (2003), para a região nordeste, são os estados de Pernambuco

(715), Paraíba (493) e Alagoas (312) que dispõem de maior número de psicólogos; a

Bahia (242) está na quarta posição, sendo que os estados que contam com menos

psicólogos são o Piauí (45) e o Sergipe (28) em relação à quantidade de psicólogos nos

serviços públicos de saúde (ver TABELA 1 no ANEXO A).

Em 2004, em levantamento direto feito na folha de pessoal para a presente

pesquisa, a presença de psicólogos na rede pública de saúde da Bahia ainda pode ser

considerada incipiente. Em toda a rede, contamos com o total de 68 profissionais,

distribuídos em órgãos administrativos e em serviços de atenção direta à população da

seguinte maneira: a) 52 estão trabalhando em Salvador, 25 deles em serviços ou órgãos

sob a gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), e os outros 27 em unidades que

estão sob a responsabilidade da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB); b) 16

estão distribuídos em outros municípios do referido estado 33.

Podemos considerar que a participação dos psicólogos no setor saúde,

particularmente no âmbito público, tem crescido nos últimos anos de 1990; tínhamos

3.671 em 1984, 8.290 em 1995 e 14.504 em 1998, no Brasil. Por outro lado, é preciso

ressaltar que a abertura e crescimento do número de psicólogos, que, em 1998, é mais

do que o dobro de psiquiatras (6.684), reforça a desejada orientação do modelo

assistencial baseado em princípios de prevenção e promoção de saúde; no entanto,

33
Fontes: SESAB (2004) e SMS (2003)

75
aumenta as expectativas quanto a sua participação e exige ampliação para a atuação dos

psicólogos (FRANCO e MOTA, 2003).

Essa observação dos autores sugere que a implantação de novas políticas

públicas de saúde tem incentivado a abertura do setor para outras categorias

profissionais, buscando não restringi-lo à assistência médica tradicional; em

contrapartida, exige adequação da atuação ao nível de assistência correspondente,

incorporando a idéia de hierarquização e da integralidade.

Segundo Dimenstein (1998), os seguintes fatores foram decisivos para aumentar

a entrada do psicólogo nos serviços públicos de saúde: a) o contexto das políticas

públicas de saúde do final dos anos de 1970 e da década de 1980, particularmente a

repercussão no setor de recursos humanos; b) a crise econômica e social nos anos de

1980 e a diminuição de busca da população, que se tornou mais empobrecida, aos

consultórios privados de psicologia; c) a movimentação da própria categoria com

objetivo de redefinir a função social da psicologia na sociedade 34; d) a difusão da

psicanálise e a psicologização da sociedade 35.

A partir da década de 1980, há, portanto, um incentivo na política de recursos

humanos à entrada de psicólogos na rede básica de saúde (DIMENSTEIN, 1998).

Grosso modo, alguns fatores contribuíram para a entrada desses profissionais no setor

público de saúde, principalmente as políticas públicas decorrentes dos movimentos pela

reforma sanitária e, de forma particular, pela reforma psiquiátrica (SPINK, 2003;

CARVALHO; YAMAMOTO, 1999; DIMENSTEIN, 1998; 1998A; REMOR, 1997). A

entrada dos psicólogos no setor público de saúde ocorreu voltada para a assistência à

34
Alguns aspectos que mostram esta movimentação foram descritos na sub-seção anterior, diz respeito à
busca dos conselhos regionais e o federal de conhecerem melhor a atuação da categoria, através das
pesquisas citadas, que apontaram as críticas que devem ser superadas desde a graduação, incorporando o
lema do ―compromisso social‖ da psicologia, tendo maior visibilidade nacionalmente na década de 1990.
35
Aspecto apresentado em profundidade no primeiro capítulo, em que se pesem as repercussões da
difusão da cultura psicanalítica e psicológica e seus desdobramentos no campo da assistência pública à
saúde.

76
saúde mental. O movimento pela reforma psiquiátrica brasileira, desencadeado em

1970, trouxe algumas propostas significativas para a organização da assistência do

setor. Nessa década, no Brasil, a assistência psiquiátrica era baseada, principalmente, na

internação hospitalar, fato que perdura até metade dos anos oitenta, ainda que de modo

diferenciado em todo o país.

A partir da década de 1970, a influência dos movimentos internacionais pela

reforma psiquiátrica (psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas; a

psiquiatria de setor francesa e a psiquiatria preventiva norte-americana; a antipsiquiatria

e psiquiatria democrática italiana) alimenta uma série de debates em torno do tema da

saúde mental (DIMENSTEIN, 1998; 1998a), incentivando uma diversidade de

experiências em vários estados brasileiros (TENÓRIO, 2002).

Podemos admitir que, até 1980, no Brasil, esta influência se limitou à

humanização do hospital psiquiátrico 36, mas incentivou a criação de espaços de

assistência ambulatorial, como alternativa à internação. Segundo Tenório (2002), a

crítica ao modelo privatista/asilar/segregador, em meados dos anos de 1980, fez

germinar três processos significativos para a reforma atual: 1) a ampliação dos atores

envolvidos no processo; 2) a iniciativa de reformulação legislativa; e 3) o surgimento de

experiências institucionais bem-sucedidas para o cuidado em saúde mental, a exemplo

dos centros psicossociais de saúde37.

Em relação ao terceiro item, os dispositivos CAPS e hospital dia não são

estruturas alternativas aos ambulatórios, mas representam uma diversificação na forma

36
Apesar de estarmos destacando apenas aspectos importantes das políticas públicas de saúde mental, a
partir da definição do nosso objetivo nesta sub-seção, que é citar a entrada dos psicólogos nas instituições
públicas de saúde, particularmente a partir dos anos de 1980, é importante ressaltar uma das repercussões
nocivas do governo militar para a assistência em saúde mental. Trata-se da abertura e incentivo no
período militar do governo brasileiro, nas décadas de 1960 e 1970, da articulação com instituições
privadas, definida como setor conveniado e contratado pela União e depois pelo SUS, que consolida a
fusão entre internação asilar e privatização da assistência (Ver TENÓRIO, 2002).
37
Os programas de Saúde Mental de Santos e o CAPS Luiz Cerqueira de São Paulo são apontados e
descritos pelo autor como experiências bem-sucedidas pioneiras em saúde mental, inaugurando novas
formas de cuidar o louco-cidadão.

77
de distribuição de cuidados (CAMBRAIA, 1999). De acordo com o referido autor, é

importante ressaltar este fato, uma vez que o ―perfil‖ de usuários desses serviços deve

ser bem preciso, trata-se de pessoas com transtorno grave e de longa evolução. Neste

particular, ele defende a importância dos ambulatórios considerando a necessidade de

oferecê-lo frente à ―diversidade e plasticidade com que as formas de adoecimento ou de

sofrimento psíquico se apresentam‖, o que do seu ponto de vista justifica a diversidade

de oferta de serviços, com o objetivo de complementaridade (CAMBRAIA, 1999, p. 7).

É importante ressaltar que alguns estudos que problematizam a expansão de

ambulatórios na saúde mental trazem análises pouco animadoras (CAMBRAIA, 1999;

TENÓRIO, 2001). Segundo Leal (1994 apud TENÓRIO, 2001), a ambulatorização e a

humanização do asilo não conseguiram vencer a lógica subjacente à estrutura

manicomial, alimentada pelo tratamento sintomatológico e cronificante dos pacientes,

servindo os ambulatórios como pontes para internação, sem conseguirem reverter o

ciclo vicioso internação-alta-internação. Entre as características destacadas que

sustentam a referida análise, podemos citar: a) a equipe multidisciplinar quando

existente trabalhava de modo totalmente desagregado; b) o trabalho médico se reduziu à

prescrição de medicamentos e à emissão de guias de internação; c) o aprazamento das

consultas; d) não raro, os usuários eram internados sem o conhecimento dos seus

médicos; e) os psicólogos se limitam a atender os neuróticos; f) por sua vez, os

assistentes sociais atendem os pedidos de encaminhamento de transporte para internação

e contato com os familiares do usuário.

Nesta direção, podemos considerar que apenas a partir dos anos de 1990 é que

―a crítica ao asilo deixa de visar seu aperfeiçoamento ou humanização, vindo a incidir

sobre os próprios pressupostos da psiquiatria, a condenação de seus efeitos de

78
normatização e controle‖ (TENÓRIO, 2002: 27), que se podem estender para outros

dispositivos de cuidado em saúde mental.

É importante ainda ressaltar que, desde 1989, com a apresentação da Lei da

Reforma Psiquiátrica ao Congresso Nacional, posteriormente sancionada pelo

Presidente da República em 6 de abril de 2001, viemos reforçando a ―cidadania como

valor fundante e organizador‖ da reforma psiquiátrica brasileira, percebida como um

―campo heterogêneo que abarca a clínica, a política, o social, o cultural e as relações

com o jurídico‖ (TENÓRIO, 2002: 28). Esses aspectos exigiram reflexões dos campos

psi em relação ao oferecimento de serviços de cuidado em saúde mental e também

incidiram sobre a própria clínica, desde a relação com o paciente à concepção de saúde

mental.

Ao analisar a repercussão das políticas públicas de saúde adotadas para o setor

dos recursos humanos, Dimenstein (1998; 1998a) diz que, desde a década de 1980, vem

sendo consolidada a idéia de que a assistência à saúde deve prezar pelo trabalho

realizado por equipes multiprofissionais. Cita alguns documentos que reforçam este

ponto de vista, a exemplo do Programa de Reorientação Psiquiátrica Previdenciária. A

partir de 1982, este orientava o processo, reforçando a necessidade de criação de formas

intermediárias de assistência psiquiátrica (hospital-dia, hospital-noite, pensão protegida,

etc). Além disso, destacava a criação de equipes multiprofissionais e atendimentos

ambulatoriais, onde o psicólogo é incluído para desenvolver psicologia clínica. Estas

equipes multiprofissionais deveriam atuar para a ampliação das técnicas de diagnóstico

e de tratamento, na supervisão e orientação de trabalhos desenvolvidos em âmbito

ambulatorial, foco central do programa.

Como parte da implantação do referido programa, destacam-se as ações

integradas de saúde (AIS), que incentivavam a participação de outros profissionais de

79
saúde, inclusive o psicólogo, ao ter como princípio que a saúde é um processo resultante

das condições de vida e que a atenção à saúde não se restringe à assistência médica,

primando por desenvolver uma rede de serviços integrados e regionalizados

(DIMENSTEIN, 1998; 1998a; CARVALHO; YAMAMOTO, 1999).

Um dos eventos mais importantes que marca a década de 1980 é a VIII

Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Nesta, definiram-se as bases do projeto para a

Reforma Sanitária brasileira, cujos eixos fundamentais orientam o setor de saúde até

hoje e foram retomados nas conferências seguintes: a) saúde como direito de todos e

dever do Estado; b) ampliação do conceito de saúde, buscando incluir as dimensões

sociais e psicológicas do processo saúde-doença; c) criação de um sistema único de

saúde, considerando diretrizes como universalidade, atendimento integral,

descentralização; d) participação popular e controle social nos serviços públicos de

saúde (DIMENSTEIN, 1998; 1998a; CARVALHO e YAMAMOTO, 1999).

Dimenstein (1998; 1998a) destaca ainda a I Conferência Nacional de Saúde

Mental, em 1987. Um dos eixos norteadores deste evento diz respeito à política de

recursos humanos, que apresenta indicações para a mudança curricular para os

profissionais de saúde e concurso público para o ingresso de trabalhadores de saúde.

Mais uma vez, há o incentivo para a implantação de equipes multiprofissionais na rede

básica, nos hospitais e ambulatórios, reforçando a percepção integral do sujeito, além da

inclusão de práticas preventivas e educativas. Em 1987, adota-se o Sistema Único

Descentralizado de Saúde - SUDS, como modelo transitório para o SUS, o qual foi

implantado em 1990, já aprovado na Constituição Federal de 1988.

Estas condições estruturantes dão uma idéia de um nível mais amplo da

realidade, que não podemos perder de vista ao fazer considerações sobre a inserção e

atuação de psicólogos na saúde pública a partir de experiências concretas.

80
Como buscamos destacar nas linhas precedentes, a atuação dos psicólogos em

novos contextos de trabalho, como é o caso da saúde, tem sofrido crítica por não atender

as suas expectativas. É preciso que a organização da atuação psicológica esteja em

permanente diálogo crítico com os princípios que norteiam as políticas públicas de

saúde, que possivelmente influenciaram esta entrada. É necessário que desenvolvamos

pesquisas que nos informem como sua atuação de dá e quais são os entraves que a

impedem de ser mais adequada à realidade brasileira. Acreditamos que este esforço

deve se operar na interface da psicologia com a saúde coletiva, admitindo uma

articulação a partir de uma reflexão crítica.

Nesta direção, podemos considerar, a partir das críticas elaboradas pelos autores

citados, que a transposição dos elementos que fundamentam a ―clínica tradicional‖ é um

dos principais problemas para alguns contextos de atuação, a exemplo das ações

desenvolvidas nas unidades básicas de saúde. De acordo com Lo Bianco e outros

(1994: p. 39), a ―atenção primária requer, por conseguinte, um engajamento diferente do

psicólogo, até então formado para, prioritariamente, lidar com ―distúrbios psicológicos‖

já instalados em uma clientela distinta daquela que freqüenta os serviços públicos de

saúde no nosso país‖.

De fato, a entrada dos psicólogos neste nível de atenção à saúde fomentou várias

reflexões e imprimiu várias exigências ao campo; particularmente, por proporcionar que

os psicólogos entrassem em contato com problemas de saúde que emergem dentro de

contextos socioeconômicos e culturais distantes da sua própria experiência, colocando

em cheque seus princípios e técnicas.

No entanto, embora ainda estejamos por dizer o que realmente é pertinente para

cada nível de assistência à saúde, parece haver um certo acordo entre os autores de que

é preciso estar atento aos efeitos da atuação psicológica nos diversos níveis de

81
assistência à saúde. Neste particular, podemos considerar que há necessidade de

refletirmos sobre esta atuação a partir das diretrizes e princípios elaborados pela reforma

sanitária e pela psiquiátrica.

3.2 A ATUAÇÃO PSICOLÓGICA NO CONTEXTO DO SISTEMA ÚNICO DE

SAÚDE: algumas indicações.

Nesta sub-seção, apresentaremos brevemente alguns dos princípios e aspectos básicos

sugeridos como orientadores para a reorganização dos serviços de saúde, decorrentes do

movimento pela Reforma Sanitária Brasileira - RSB, desde os anos de 1970. Uma das

principais conquistas do final da década de 1980 para o campo da saúde, no Brasil, foi a

incorporação de um conceito de saúde menos reducionista recomendado pela

Constituição Federal de 1988:

a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas


sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação (art. 196)

Em 1990, após transições e redimensionamento do modelo de assistência à

saúde através do Sistema Descentralizado de Saúde - SUDS, a RSB culminou na

implantação do Sistema Único de Saúde – SUS. As inovações propostas pela reforma

sanitária foram sistematizadas na 8a Conferência Nacional de Saúde, sendo possível

destacar algumas das suas proposições, a seguir: a) conceito ampliado de saúde; b)

reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado; c) Sistema Único de

Saúde (SUS); d) participação popular; e) constituição e ampliação do orçamento

participativo (PAIM, 1999).

A proposta do SUS, de caráter público, inclui algumas diretrizes e princípios

básicos que devem orientar e prevalecer sobre toda alternativa de reorganização dos

82
serviços de saúde do país38, tendo com o setor privado uma articulação apenas

complementar. Algumas dessas são destacadas abaixo:

A descentralização é uma forma de organização que dá aos municípios o poder

de administrar os serviços de saúde locais. Nesta direção, o processo de municipalização

da saúde é entendido como a descentralização política, técnica e administrativa, que

transfere do nível federal para os municípios a responsabilidade pela formulação e

implementação de políticas, organização e gestão dos processos de trabalho e manejo de

recursos financeiros, humanos, físicos e materiais (LACERDA, 1998; PAIM, 1999).

A descentralização tem como pressupostos a regionalização e a hierarquização. A

regionalização dita sobre a distribuição e organização dos serviços públicos de saúde

para atender as demandas da população de modo a evitar a duplicidade de meios para

fins idênticos. A hierarquização preza pela organização do sistema de saúde,

assegurando a divisão dos serviços a partir de três níveis de complexidade (PAIM,

1999, p. 482), transcritos a seguir:

- Nível de atenção primário – ―porta de entrada única‖: representa os serviços de


primeira linha, de caráter ambulatorial (clínica médica, pediatria, ginecologia, etc);
- Nível de atenção secundário – composto de consultórios especializados e de
pequenos hospitais (tecnologia intermediária);
- Nível de atenção terciário – constituído por grandes hospitais gerais e especializados
que concentram a tecnologia compatível com as subespecialidades médicas,
servindo de referência para os demais serviços.

O princípio da rede regionalizada e hierarquizada ―supõe a distribuição espacial

dos equipamentos em função das características epidemiológicas de cada localidade,

descentralizando os serviços mais simples e concentrando os mais complexos‖

(PAIM, 1999, p. 482).

38
Ministério da Saúde. Manual para organização da atenção básica. 3 a ed. 1998. Disponível em
www.saude.gov.br Acesso em 9/03/2003.

83
A diretriz de atendimento integral autoriza uma forma de assistência que

privilegie a saúde e não a doença. Neste sentido, orienta a implementação de ações de

cuidado, de prevenção e promoção à saúde, a partir da noção de que o indivíduo como

ser humano integral está submetido às mais diferentes situações de vida e de trabalho

que podem influenciar também no seu adoecer e na sua saúde, incluindo as ações de

saúde para a sua comunidade. A participação da comunidade estimula e reforça o

controle social da população, através de seus representantes, na definição,

acompanhamento e fiscalização das políticas públicas de saúde.

Além disso, outros princípios, não menos importantes, são: a universalidade,

que assegura o acesso de toda a população aos serviços de saúde em todos os níveis de

assistência, sem preconceito ou privilégios, que remete ao princípio da igualdade. O

princípio de eqüidade ressalta que a distribuição dos recursos deve ser orientada a partir

da noção de desigualdade social, conduzindo à definição de prioridade em função de

situações de risco, das condições de vida e da saúde de determinados indivíduos e

grupos de população.

Por sua vez, a intersetorialidade preza pelo desenvolvimento de ações integradas

entre os serviços de saúde e outras instituições públicas, com o objetivo de articular

políticas e programas de interesse para a saúde, potencializando o impacto das ações de

prevenção e promoção da saúde. A resolutividade enfatiza a capacidade de resolver

problemas de saúde através da assistência integral resolutiva, compatível com a

realidade sanitária local. A humanização do atendimento reforça a responsabilização

mútua entre os serviços de saúde e a comunidade, estreitando o vínculo entre as equipes

de profissionais e a população.

Spink (2003a), discutindo as repercussões da entrada e inserção do psicólogo na

área de saúde, percebeu que, entre os principais desafios impostos para esta categoria,

84
neste processo, há a necessária articulação da sua prática ao respectivo nível de

assistência à saúde. Além disso, notou que a ausência das temáticas relacionadas à

saúde pública e desconhecimento da organização do sistema público de saúde na sua

formação tem diminuído a força da sua participação. Neste terreno, o desenvolvimento

da subárea de psicologia, denominada psicologia da saúde, tanto como campo de saber

como de atuação, tem buscado fomentar:

reflexão sobre o contexto mais global em que se dá a atuação psicológica, que


inclui o interesse pelas representações do processo saúde/doença; conhecer a
configuração dos serviços de saúde e das profissões que aí atuam; além disso,
familiarizar-se com as políticas setoriais e suas implicações para os usuários;
explicação do processo saúde/doença, considerando três dimensões distintas: o
saber oficial; o saber popular (ou do senso comum) e a sociedade.

Na constituição de um novo campo da saúde coletiva, Paim e Almeida-Filho (2000)

destacam a necessidade de formar sujeitos ―dinamizadores‖ capazes de criar modos de

cuidado diferentes, que respeitem a heterogeneidade cultural e a riqueza subjetiva dos

usuários, dentro de um quadro sanitário marcado pela desigualdade social. Nesta

direção, apontam algumas habilidades imprescindíveis a todos profissionais de saúde

(PAIM e ALMEIDA-FILHO, 2000, p. 91):

Capacidade de análise do contexto em relação às práticas que realizam;


Compreensão da organização e gestão do processo de trabalho em saúde;
Exercício de um agir comunicativo ao lado do pensamento estratégico;
Advocacy ou habilidade para proceder denúncia de situações e convencimento
de interlocutores;
Tolerância e diálogo em situações conflitivas;
Atenção a problemas e necessidades de saúde;
Senso crítico quanto à efetividade e ética das intervenções propostas ou
realizadas;

85
Permanente questionamento sobre o significado e o sentido do trabalho e dos
projetos de vida.

Por sua vez, Dimenstein (1998, p. 124) destaca quatro pontos fundamentais que

devem estar presentes no trabalho do psicólogo no SUS em ações voltadas para a

atenção primária à saúde:

é preciso saber identificar quais são os problemas que requerem atenção


prioritária dentro da comunidade em que está trabalhando, ou seja, conhecer
quais são os problemas mais freqüentes, fazer um mapeamento das necessidade
de saúde da comunidade, ser um detector de problemas;
obter informações sobre a comunidade, buscando traçar um perfil
socioeconômico e epidemiológico através da instituição à qual está vinculado,
assim como da própria comunidade. É importante estimular a participação dos
usuários como identificadores de problemas e multiplicadores de soluções;
propor ações de saúde juntamente com outros profissionais, mediante a
participação da comunidade, utilizando um rol diversificado de procedimentos
terapêuticos;
avaliar continuamente os resultados de sua intervenção e a qualidade da atenção
prestada. Para isso, é preciso trabalhar para o desenvolvimento de metodologias
e indicadores adequados aos serviços de psicologia para que possa, finalmente,
propor modificações nas práticas e nos serviços.
Como discutido na seção anterior, as críticas ao modo como ocorre a inserção dos

psicólogos nos serviços públicos de saúde são inúmeras e urgentes de serem superadas.

Não contamos com a prescrição de um modelo padronizado para cada tipo de atuação

condizente aos níveis de assistência à saúde, o que percebemos como um ganho, pois

que não passaria de mais um equívoco. No entanto, contamos com algumas reflexões e

muitas indicações de normas, conceitos, princípios que podem e devem servir de guia

para atuações mais contextualizadas e para a própria formação dos futuros psicólogos.

86
3.3 O LUGAR DA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA NO CONTEXTO DA REFORMA

PSIQUIÁTRICA: algumas críticas e orientações.

O movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira também ampliou a participação dos

psicólogos no campo da saúde e, ao longo dos anos, propiciou discussões e trouxe

desafios para os mesmos (DIMENSTEIN, 1998; SPINK, 2003). É possível definir três

vertentes no campo teórico-prático da reforma psiquiátrica, considerando a psiquiatria e

a psicanálise como saberes de base: a desinstitucionalização, a clínica institucional e a

reabilitação psicossocial (TENÓRIO, 2001).

A primeira diz respeito ao paradigma italiano da desinstitucionalização, que

enfatiza a dimensão política e social da transformação almejada frente ao lidar e ao

compreender a loucura. Propõe a ―superação da clínica‖. A segunda vertente é

influenciada pela psicoterapia institucional francesa, que afirma positivamente a clínica,

denominada pelo autor como ―clínica institucional‖. A terceira, qualificada de

reabilitação psicossocial, tem caráter pedagógico, de educação para a vida social,

buscando-se a competência social do louco:

No geral, as experiências brasileiras não se definem prioritariamente pela


adesão doutrinária, mas nem por isso as preferências conceituais deixam de
ter influência, determinando inflexões específicas, escolhas por certos tipos
de ação e por determinado vocabulário, em detrimento de outro. A influência
da psicanálise é muito pequena nas práticas estritas da reabilitação; negada na
vertente da desinstitucionalização, embora presente como saber sobre a
loucura e como interlocutor criticado; e explícita na psicoterapia institucional
e, por conseguinte, no vocabulário e nas práticas dos CAPS [Centro de
Atenção Psicossocial] brasileiros (TENÓRIO, 2001, p. 54).

Apesar de considerar as particularidades que acompanham cada uma das

vertentes, o autor também adota a expressão ―campo da atenção psicossocial‖ para

designar as transformações mais gerais que ocorrem no setor psiquiátrico, a partir do

movimento da reforma psiquiátrica que propõe um novo paradigma de cuidados em

saúde mental. Nesta direção, entende que ―atenção psicossocial não é exclusivamente

87
nem reabilitação, nem clínica institucional, mas o conjunto de dispositivos e instituições

que fazem com que o cuidado em saúde mental tenha uma incidência efetiva no

cotidiano das pessoas assistidas‖ (TENÓRIO, 2001, p. 55). É o mesmo que dizer que

existem suficientes normas, noções e conceitos que podem e devem guiar a atenção em

saúde mental e orientar determinadas escolhas em situações concretas de cuidado.

A noção de atenção psicossocial, cara ao momento atual da reforma psiquiátrica

brasileira, particularmente com o maior rigor ocasionado pela implantação de CAPS e

de experiências bem-sucedidas (ver, por exemplo, GOLDBERG, 1994), tem sido

acompanhada pela exigência do desenvolvimento de uma abordagem ética em saúde

mental. Esta abordagem ocorre a partir da transformação da política de saúde mental em

ações concretas, o que inclui a implantação de novos dispositivos de cuidado

(SARACENO, 2001), ciente dos equívocos da centralização no tratamento

hospitalocêntrico-sintomatológico (GOLDBERG, 1994), bem como busca refletir sobre

os alcances e limites das próprias clínicas psi (psiquiátrica, psicológica, psicanalítica,

entre outras vertentes), de modo prospectivo à expectativa da reforma psiquiátrica

(BEZERRA-JÚNIOR, 2001; SARACENO, 2001a; TENÓRIO, 2001; 2001a). A

construção de uma abordagem ética em saúde mental pode seguir o caráter conciliador

descrito na citação abaixo, considerando as dimensões particulares do cuidado que cada

uma das vertentes tende a reforçar:

atenção psicossocial e clínica do sujeito não são a mesma coisa. Mas uma
pode tornar a outra possível – desde que a primeira evite dois riscos: impor
ao psicótico ideais de funcionamento que nossos e aos quais ele muitas vezes
não pode corresponder, e o de acreditar que o bem estar psicossocial torna
menos relevante o trabalho subjetivo na palavra; e que a segunda reconheça
os limites de qualquer prática ligada à palavra e a necessidade, em certos
casos prioridade, na psicose grave, de uma ajuda concreta e cotidiana ao
viver (TENÓRIO, 2001a, p. 87)

Saraceno (2001a, p. 151), que segue um rumo menos conciliador entre estes

eixos, ressalta que a abordagem ética em saúde mental deve fornecer ―oportunidades de

88
trocas materiais e simbólicas [que] são oportunidades precedentes na construção da

capacidade relacional do sujeito‖. O sujeito louco está alijado previamente do poder de

troca, não só pela sua condição de diferente, mas, principalmente, pela negatividade que

acompanha a representação social da loucura. Neste terreno, o seu projeto de

reabilitação psicossocial tende a prezar muito mais pela reconstrução da cidadania e do

poder contratual do sujeito em três cenários principais: habitat, rede social e trabalho

(SARACENO, 2001; 2001a). Por sua vez, o autor mostra-se descrente quanto aos

possíveis efeitos substanciais da clínica para os pacientes. Nesta direção, conclui que as

―práticas terapêuticas que nos últimos 100 anos derivaram dos modelos da clínica são

altamente insatisfatórias‖ (SARACENO, 2001a, p. 150).

A leitura de Kinoshita (2001: 55) também nos adverte para pensarmos em ações

terapêuticas, no sentido de que não se deve perder de vista o ―poder contratual‖ de cada

sujeito, uma vez que ―no universo social, as relações de trocas são realizadas a partir de

um valor previamente atribuído para cada um indivíduo dentro do campo social, como

pré-condição para qualquer processo de intercâmbio‖. A restituição do poder contratual

deve redimensionar a troca de bens, a troca de mensagens e a troca de afetos, uma vez

que o objetivo de ações de cuidados em saúde mental é restituir o poder contratual dos

usuários (KINOSHITA, 2001).

Os encontros clínicos não estão fora do campo das trocas simbólicas, não há

dúvida, e a implementação dos novos dispositivos de saúde mental tem exigido a

superação de críticas antigas. Cabe aos profissionais de saúde mental considerarem dois

aspectos na atuação oferecida: a) a possibilidade do aumento do poder contratual do

usuário; b) a viabilidade de elaboração de projetos/ações práticas que transformem as

condições concretas da vida de cada usuário e que incidam positivamente na sua

subjetividade (KINOSHITA, 2001). Cabe ressaltar que são ambições difíceis de serem

89
concretizadas sem mudanças radicais na organização de dispositivos de cuidado em

saúde mental, mas que, no entanto, não advêm apenas da mudança estrutural das

instituições, incluindo o reposicionamento de todos os envolvidos.

Podemos encontrar, entre alguns autores (BEZERRA-JÚNIOR, 2001;

TENÓRIO, 2001), o esforço de conciliar, ou, ao menos, discutir as contribuições vindas

de abordagens mais sócio-políticas e as de cunho mais clínico, particularmente na

perspectiva psicanalítica.

Bezerra-Júnior (2001) nos informa que o lugar da clínica neste campo de

intervenção, em direção à reforma psiquiátrica, ou à reabilitação psicossocial, não deve

ser nem supervalorizado nem subvalorizado. A supervalorização da clínica está

sustentada no superdimensionamento do trabalho individual ou grupal em detrimento

das intervenções fora do setting terapêutico, ou seja, a despeito da interação do sujeito

com os demais membros da sociedade e seus ambientes. Por outro lado, a

subvalorização da clínica ancora-se na acentuada importância atribuída à mudança nas

estruturas assistenciais, mas que tende a excluir do debate a busca de um terreno comum

que possibilite pensar conceitos sustentáveis na prática junto aos usuários numa relação

mais estreita.

Tomar de empréstimo a discussão de Bezerra-Júnior (2001) sobre a noção

freudiana de sujeito descentrado e a sua relação com o tipo de clínica (ampliada) que

convém à abordagem ética em saúde mental, parece-nos útil. Falar de sujeito

descentrado é falar de um homem ―aberto à pluralidade das produções que a cultura

oferece, aberto à criação de modelos novos de subjetividade, modelos novos através dos

quais os sujeitos se pensam, se sentem, se produzem de forma diferente‖ (BEZERRA-

JÚNIOR, 2001: 141).

90
Bezerra-Júnior (2001) defende uma noção de clínica nesta direção e,

considerando a noção de descentramento, percebe que aquela merece ser adjetivada

como ampliada:

[a clínica ampliada, ou seja,] fazer clínica não é apenas lidar com a


interioridade psicológica do sujeito, mas lidar com a rede de subjetividade
que o envolve, o que implica não apenas nessa interioridade, mas em todas as
formas de estímulos, que no campo da alteridade, se apresentam para o
sujeito, como causa de sua ação [...] [é ainda pensar] em criar instrumentos,
settings, modalidades de intervenção com objetos, com palavras, com
silêncios, mas que produzam e provoquem reações que apontem para uma
plurificação da capacidade daquele sujeito ordenar suas práticas psíquicas,
suas práticas sociais, de modo mais criativo (BEZERRA-JÚNIOR, 2001:
142).

No bojo da discussão sobre as especificidades e importância de ações

psicossociais em relação às práticas clínicas, temos dois pontos ainda a sinalizar. O

primeiro diz respeito à cristalização dos papéis profissionais impeditivos à renovação do

cuidado em saúde mental, destacado por Goldberg (2001) como ―preconceito

tecnológico‖. O preconceito tecnológico enfatiza uma certa maneira de se realizar

práticas, que cada profissional adota a partir de um repertório comportamental

modelado por sua profissão, sem se preocupar com o sujeito que está sob os seus

cuidados, muitas vezes blindado em um não tratar tudo o que se fizer fora deste

repertório.

O segundo ponto está relacionado ao fato de, não havendo clareza do papel e

importância da clínica dentro da perspectiva da reabilitação psicossocial, todas as

intervenções aí desenvolvidas serem tomadas como clínica, o que, de acordo com

Bezerra-Júnior (2001), diluiria suas particularidades e sua riqueza heurística.

Podemos perceber que esta preocupação do resgate da função da clínica dentro

de dispositivos em saúde mental, como o CAPS, conjugada aos aspectos

―extraclínicos‖, aparece de modo contundente em Tenório (2001), que é um dos autores

que reforça a necessidade de buscar desmedicalizar e subjetivar o sofrimento psíquico

91
(TENÓRIO, 2000). O autor na discussão rigorosa do que pode ser a clínica da reforma

adverte para uma certa banalização da escuta e da clínica do sujeito, que tem dissolvido

sua força terapêutica, desde a implantação de ambulatórios como alternativa para fugir

da iatrogenia dos internamentos em hospitais psiquiátricos.

Segundo Tenório (2001), a clínica da reforma é uma clínica (psicanalítica) que

não pode estar delimitada apenas ao seu clássico campo de pertença, tendendo a se

tornar flexível ao dirigir situações consideradas extraclínicas. Pode ser definida dessa

maneira, pois defende algumas proposições, transcritas abaixo, que exigem uma

mudança no escopo das ações clínicas (TENÓRIO, 2001: 72):

a) Se a psicose é uma condição de existência que não se presta à expectativa


médica de cura como restituição de uma integridade supostamente perdida;
b) Se sua incidência na vida do sujeito abarca a totalidade da experiência subjetiva
e pragmática do paciente;
c) Se a assistência passa a ter como objetivo aspectos relacionados ao
gerenciamento da vida;
d) Se nesse trabalho o entorno sociocultural é uma referência importante de
cuidado e identidade.

Resgatar, neste momento, a noção de poder contratual, preconceito tecnológico,

clínica ampliada e clínica da reforma parece-nos importante para compreender o

impacto, a curto e a longo prazo, do pouco alcance de atuações psicológicas, ou de

quaisquer outras, distantes de uma abordagem ética em saúde mental. Embora seja

pertinente ressaltar que muitas das discussões feitas pelos autores citados sobre o papel

da clínica foram possíveis pelo fato de a mudança de modelo de assistência ter-lhe

propiciado novos rumos. Particularmente, eles se remetem às experiências no

dispositivo do tipo CAPS. Ou seja, há procedimentos clínicos e extraclínicos, ou mais

92
precisamente, da sua conjugação, que não são passíveis de serem visualizados na

organização exclusiva da assistência em regime ambulatorial.

No entanto, tais idéias e conceitos nos dão orientações e constroem um quadro

de referência, que nos guiaram para a compreensão das práticas psicológicas e dos seus

significados nos serviços públicos de saúde visitados, ainda que primordialmente em

regime ambulatorial. Por outro lado, a interpretação dos dados da presente pesquisa

buscou contribuir para o entendimento de como a escuta psicológica está distante das

propostas da reforma psiquiátrica.

Neste sentido, pensamos que é necessário, em todas as ações desenvolvidas, que

os diversos profissionais de saúde mental estejam atentos ao alcance das suas atuações,

ainda que não esqueçamos que elas também são espelho de uma dimensão mais macro

da organização da atenção à saúde mental.

93
4. MODELO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA: algumas considerações

sobre o sistema de signos, significados e práticas.

A presente pesquisa foi inspirada no modelo-metodológico de Sistema de Signos,

Significados e Práticas - S/ssp (BIBEAU, 1992; BIBEAU e CORIN, 1995; ALMEIDA-

FILHO, e outros s/d; s/d(a); ALMEIDA-FILHO, COELHO e PERES, 1999; CAROSO,

RODRIGUES e ALMEIDA-FILHO, 1996; 1998), sem ter seguido, canonicamente, toda

sua complexa metodologia. Apresentaremos, brevemente, os seus principais

pressupostos, objetivos e sua proposta metodológica, destacando os aspectos específicos

para o desenvolvimento da presente tese.

O S/ssp foi desenvolvido considerando a perspectiva de uma hermenêutica

antropológica que se dispõe a articular os contextos micro e macrosociais, propondo um

método de trabalho que parte das experiências subjetivas e trajetórias singulares das

pessoas em situações concretas, prezando por considerar as condições estruturantes e a

experiência organizadora coletiva que as sustentam (BIBEAU, 1992) 39:

[as condições estruturantes] referem-se às restrições do ambiente, ao estilo do


poder político e de desenvolvimento econômico, às referências históricas, e
às condições cotidianas de vida, que se impõem de qualquer maneira a um
grupo humano, que modelam sua cultura, desde o exterior, e põem limites ao
jogo dos atores sociais; o conceito de ―condições estruturantes‖ nos permite
acessar o esquema explicativo, tudo aquilo que se destaca do macrocontexto
e que escapa freqüentemente ao domínio das pessoas individuais. [...] a
―experiência organizadora coletiva‖ refere-se aos elementos maiores do
universo socio-simbólico de um grupo, assim como a seu projeto fundador; a
―experiência organizadora coletiva‖ é aquela que mantém a identidade de um
grupo, ao longo das gerações, e que faz perdurar no tempo a arquitetura de
seu sistema de valores e de sua organização social [tradução nossa]
(BIBEAU, 1992: 18).

Este foi elaborado com o objetivo inicial de ser uma alternativa de investigação

para o campo da psiquiatria transcultural, a partir da integração das perspectivas

interpretativa, fenomenológica e social, desenvolvendo a antropologia crítica. Nesta

39
O autor enfatiza a importância de identificar os condicionantes estruturais e a experiência organizada na análise dos
dispositivos patogênicos estruturais, relacionados ao desenvolvimento de quaisquer problemas de saúde.

94
direção, parte da revisão dos limites da abordagem epidemiológica dos transtornos

mentais, tendo como objeto de estudo os problemas de saúde mental (BIBEAU, 1992;

BIBEAU e CORIN, 1995; ALMEIDA-FILHO, e outros s/d; sd(a); ALMEIDA-FILHO,

COELHO e PERES, 1999).

A proposta do S/ssp, na coleta de dados, considera três etapas metodológicas:

pré-enquete, enquete extensiva e reconstrução de casos. A pré-enquete tem como

objetivo conhecer os signos associados às pessoas socialmente problemáticas, surgidos

espontaneamente em diálogos sobre o problema investigado. Na enquete-extensiva

identificam-se os interlocutores-chave, conhecendo-se os signos e seus significados

através de entrevistas abertas, explorando-se casos concretos. No terceiro momento, há

propriamente a reconstrução de casos, focalizando aspectos como: causas da doença,

gravidade atribuída, reações com relação à pessoa afetada e à doença e tratamentos

realizados (CAROSO, RODRIGUES e ALMEIDA-FILHO, 1996; 1998; ALMEIDA-

FILHO e outros s/d (a)).

Considerando o objeto de estudo da presente pesquisa, buscamos identificar os

signos que caracterizam diferentemente a atuação psicológica tanto nas UBSs quanto

nos CSMs, sejam os que se referem ao destinatário da intervenção e suas demandas, ou

ao tipo de intervenção realizada (psicoterapia individual ou em grupo, por exemplo).

Buscamos compreender os significados que lhes são atribuídos pelos psicólogos a partir

do incentivo ao relato de experiências concretas de trabalho, que se configuram como a

própria etapa de reconstrução de caso, ou seja, as trajetórias profissionais dos nossos

interlocutores.

O S/ssp é constituído de três níveis para a abordagem de um problema de

investigação: o factual, o narrativo e o interpretativo (BIBEAU, 1992). Podemos

considerar que os dois primeiros tendem a coincidir com as fases de coleta dos dados.

95
No entanto, o início da coleta dos dados é um ponto de partida significativo para

capturar o ponto de vista dos interlocutores, que se estende valorizando também o

trabalho do pesquisador até a finalização do trabalho interpretativo.

No primeiro nível, factual, parte-se da idéia de que é preciso levantar fatos,

eventos e ações concretas significativas para os sujeitos da pesquisa. Além disso,

recolher dados complementares diversos, inclusive estatísticos relacionados ao

problema (BIBEAU, 1992).

No que concerne a presente investigação, no nível factual, buscamos a literatura

sobre a inserção do psicólogo na rede de saúde, tomando conhecimento da sua escassez

para o contexto soteropolitano. Nos aproximamos de pesquisadores e professores

interessados na relação da psicologia com o campo da saúde coletiva, através de

conversas informais e entrevistas abertas. Foi o momento em que tivemos conhecimento

que houve um encontro de psicólogos da saúde em Salvador, em 1992. Entramos em

contato com o Conselho Regional de Psicologia de Salvador e resgatamos um registro

do I Encontro Estadual dos Psicólogos de Saúde com depoimentos de vários

profissionais que atuam em serviços públicos de saúde. Transcrevemos as fitas cassetes

disponibilizadas pelo referido Conselho. Além disso, fizemos um primeiro

levantamento junto à SMS de Salvador para conhecermos o número de psicólogos

contratados e a sua distribuição na rede de saúde. Outro aspecto considerado no nível

factual quer ressaltar a importância de tomar como ponto de partida os casos e situações

concretas, no sentido de não nos limitarmos às representações meramente abstratas da

realidade.

O nível narrativo diz respeito à coleta inicial de relatos espontâneos sobre a

problemática e identificação dos interlocutores-chave. Em um segundo momento, mais

sistemático, refere-se à reconstrução propriamente dita das experiências dos

96
interlocutores que lidam cotidianamente com a problemática. Neste particular, é

prudente ressaltar que as narrativas são as principais unidades de análise da proposta, e

não os casos propriamente ditos, marcando um outro tipo de delineamento de pesquisa,

que não o de estudo de caso advindo da clínica médica e psicológica, ou da corrente

sociológica (BIBEAU, 1992).

Particularmente, para esta tese, este nível corresponde à realização das

entrevistas semi-estruturadas com os psicólogos que atuavam diretamente atendendo à

população, considerados todos como interlocutores-chaves potenciais. As reconstruções

de caso, ou as trajetórias profissionais, como será descrito na próxima seção, foram

realizadas em dois momentos, contemplando inicialmente os psicólogos que trabalham

nas UBSs e depois os que atuavam nos CSMs.

Por fim, o nível interpretativo implica em considerar as interpretações dos

interlocutores enquanto uma interpretação nativa, à qual o pesquisador não pode se

limitar. Consideramos que a hermenêutica antropológica requer a passagem da mera

descrição dos fatos e modelos explicativos nativos para a elaboração de uma

interpretação, ou seja, um trabalho cooperativo analítico que propicie a emergência dos

sentidos que podem escapar aos atores sociais (BIBEAU, 1992).

No plano de análise do nosso estudo, para levar a cabo o nível interpretativo,

utilizamos o seguinte procedimento para interpretação das narrativas: a) a identificação

e agrupamento dos termos utilizados pelos próprios psicólogos na reconstrução de suas

trajetórias profissionais; b) a construção de categorias analíticas, considerando os

significados que lhes são atribuídos, já que incentivamos relatos de situações concretas

de trabalho, desde as abordagens de casos clínicos atendidos, até as descrições do dia a

dia do serviço.

97
Neste terreno, cabe ressaltar que a inspiração no modelo S/ssp nos conduziu a

compartilhar duas de suas questões operacionais: 1) as vantagens de considerar as

narrativas produzidas pelos interlocutores (representantes de um campo científico, ou

seja, não leigos) como qualquer conhecimento localmente construído, portanto, plural,

fragmentado e até contraditório como ponto de partida para a sua compreensão; 2) a

idéia de que suas histórias concretas particulares na vivência dos desafios da atuação em

situações de trabalho em saúde pública, particularmente no campo da saúde mental, não

devem ser lidos como ―textos autônomos‖, no sentido de resumi-los a experiências

subjetivas e reificar as narrativas, incluindo a idéia de que os significados devem ser

compreendidos a partir de um determinado contexto sociocultural (BIBEAU, 1992).

Ainda para o nível interpretativo, os autores consideram que a hermenêutica de

segundo nível é uma estratégia que combina a submissão ao texto dos discursos

coletados e a violência feita pelo pesquisador sobre estes textos. Nesta direção, o

processo de interpretação dá-se a partir de quatro regras básicas apresentadas em

aforismos por Bibeau e Corin (1995: 55-60).

O primeiro diz respeito ao fato de ser necessário ―adquirir familiaridade com a

superfície da realidade‖, traduzido no esforço de ganhar familiaridade com o mundo do

nativo, aprendendo sua língua, seus costumes e conhecendo suas atividades. O segundo

aforismo está relacionado à capacidade de ―olhar por trás dos cenários e ler nas

entrelinhas‖, ou seja, não se limitar ao que é dado superficialmente, mas descortinar as

camadas da realidade, buscando os significados intencionais ou voluntariamente

escondidos. Neste sentido, considerando a analogia da cultura como textos (GEERTZ,

1989) produzidos na interação do pesquisador com e sobre seus informantes, buscar o

―subtexto da cultura‖; os interstícios, os silêncios e os múltiplos disfarces dos conceitos

nativos.

98
A terceira máxima, ―seguir os passos dos adivinhos‖, retrata dois sentidos: a) a

seleção de pessoas, autoridades, contadores de histórias, ou seja, informantes-chaves

que se autorizam a narrar suas experiências e que são pessoas conhecedoras do objeto

de interesse do pesquisador; além disso: b) considerar que o processo interpretativo é da

mesma natureza da ―adivinhação‖, não no sentido mágico da tarefa, mas que advém da

possibilidade do pesquisador conectar os signos por ele selecionados, identificando-os

dentro de um sistema de significados ou modo de pensamento que prevalece dentro do

grupo estudado.

Por fim, a quarta regra para desenvolver a interpretação antropológica sob bases

confiáveis ressalta que cabe ao pesquisador ―se comprometer no esforço cooperativo

criativo‖ para compreender a realidade estudada. Neste sentido, é preciso considerar que

a interpretação dos textos implica numa cooperação entre o escritor e o leitor

(RICOEUR, 1989; 1991) que deve ser capaz de preencher os espaços vazios. Por outro

lado, considerar que os informantes são co-autores ao fornecerem as interpretações

nativas. Como ressaltam Bibeau e Corin (1995: 60) ―o significado não é nunca um

produto coletivo já dado, mas este é, em vez disso, incessante e cooperativamente criado

pelos atores culturais, negociado entre eles mesmos sobre diferentes estágios, e

publicamente revelados [tradução nossa]‖.

Em síntese, para os referidos autores, o processo submissão-violência dos

achados etnográficos implica em uma hermenêutica antropológica desenvolvida no

permanente esforço de tornar a realidade estudada cada vez mais familiar aos olhos do

pesquisador, de modo a possibilitar captar os significados que fugiriam à percepção

superficial das situações encontradas. Além disso, busca-se preencher os espaços vazios

dos textos produzidos, com o intuito de acessar os modos de pensamentos que

prevalecem no grupo estudado.

99
Uma parte integrante e integradora da proposta S/ssp é a etnografia focalizada40,

presente desde o início do trabalho de campo: ―a análise dos dados etnográficos devem

conduzir à identificação de padrões e pontos focais em torno das amplas partes da vida

cultural e social, organizadas em cada contexto‖ [tradução nossa] (ALMEIDA-FILHO e

outros s/d (a)). Neste terreno, a etnografia focalizada é uma estratégia metodológica,

que busca descrever os aspectos significativos do contexto estudado para melhor

delimitação do problema de investigação, explorando aqueles que o envolvem ou o

sustentam não como informações complementares e dadas a priori, mas como

produzidos cotidianamente na realidade de estudo. Na presente pesquisa, podemos citar

alguns dos aspectos que privilegiamos: a construção de pessoa dos profissionais e dos

usuários, os dispositivos institucionais, a história da profissão, a identidade profissional,

a formação em psicologia, as diretrizes e princípios para organização do SUS, os

postulados advindo da reforma psiquiátrica, entre outros.

Para percebermos o alcance e os limites do S/ssp, destacamos algumas premissas

epistemológicas que o sustentam, expressas em quatro noções fundamentais como:

objeto-modelo, validade relativa, representatividade fraca, sensibilidade contextual

(ALMEIDA-FILHO; CORIN e BIBEAU, s/d). Tomar um objeto de investigação como

objeto-modelo implica em considerá-lo o ―resultado da redução de traços selecionados

de um fenômeno concreto dentro de categorias gerais universais‖ [tradução nossa]

(ALMEIDA-FILHO; CORIN e BIBEAU, s/d), assumindo uma perspectiva

praxiológica41, ou seja, enfatizando a compreensão dialógica da produção de

40
O uso da etnografia focalizada parece estar sustentada no retorno crítico, no início da década de 1990,
aos trabalhos de autores clássicos da antropologia (por exemplo, Malinowski), cujas etnografias extensas
tentaram dar conta de vários aspectos – políticos, religiosos, de parentesco - de uma sociedade tradicional,
e tendiam a ser tratados extensos, o que acautelou os antropólogos, que estudam sociedades modernas, a
focalizarem mais seus estudos, pelos melindres de levar com êxito tal tarefa.
41
A noção de ciência como práxis, apresentada pelos autores, toma como ponto de partida, que ―o objeto
de conhecimento é determinado pela metodologia assim como a prática diária da ciência (que é a

100
conhecimento. Trata-se de distanciar-se das abordagens que percebem o objeto como

uma ―representação direta da realidade‖ e que ignoram a sua emergência dentro de uma

complexa relação de poder, inerente aos contextos institucionais e às teias sociais e

políticas que a legitimam. O que não implica necessariamente propor que a realidade

social só exista condicionada à sua interpretação.

Segundo, a validade dos achados e interpretações está condicionada à

apresentação do caminho adotado e da explicitação de noções importantes para a

compreensão dos mesmos, por isso seu caráter relativo. Por outro lado, podemos

atribuir uma validade relativa ao conhecimento produzido, uma vez que ele é

simultaneamente influenciado pela modelação do objeto e pelo contexto social,

histórico e cultural, no qual é desenvolvido (ALMEIDA-FILHO; CORIN e BIBEAU,

s/d).

A noção de representatividade fraca quer assegurar o caráter eminentemente

qualitativo do modelo adotado em contraponto a pesquisa quantitativa, cuja escolha dos

informantes-chaves obedece o potencial de heterogeneidade que os mesmos possam

revelar ao grupo estudado e a diversidade discursiva para compreensão do objeto, e não

corresponde as normas das investigações sob a égide do métodos estruturados, que se

orientam em procedimentos estatísticos para definirem sua amostragem (ALMEIDA-

FILHO; CORIN e BIBEAU, s/d). Neste terreno, justificamos o fato de termos mantido

um campo de estudo muito amplo sob o rótulo de serviços públicos de saúde (incluindo

seis unidades e três centros de saúde) e ter entrevistado psicólogos distribuídos pelos

mesmos para garantir a diversidade potencial discursiva sobre a atuação psicológica na

saúde pública.

aplicação metodológica) é a principal força construtora do objeto científico‖ [tradução nossa]


(ALMEIDA-FILHO; CORIN e BIBEAU, s/d).

101
Por fim, a sensibilidade cultural do modelo S/ssp busca enfatizar o compromisso

do pesquisador com a produção contextualizada do conhecimento científico. Dito de

outro modo, seguir na direção de valorizar a interpretação local, revelada na

identificação dos signos e compreensão dos significados que são atribuídos ao objeto-

modelo, como um ponto de partida fundamental de trabalho que valorize o particular e

que não perca de vista as reflexões acerca dos seus aspectos universais (ALMEIDA-

FILHO; CORIN e BIBEAU, s/d).

4.1 LER É DIFERENTE DE ESCUTAR: algumas contribuições da antropologia

interpretativa

Além dos pressupostos do modelo teórico-metodológico do S/ssp que nos

orientou na feitura da presente pesquisa, algumas das noções que sustentam a

antropologia interpretativa (GEERTZ, 1989; 1989a; 2002; 2002a) mostraram-se muito

úteis para a compreensão do nosso problema de pesquisa. É importante ressaltar que

muitas das orientações do S/ssp estão em confluência com a perspectiva interpretativa

de Clifford Geertz, ainda que devamos demarcar a busca de refinamento dos

pesquisadores do S/ssp, particularmente por sistematizarem um método de coleta e

análise dos dados etnográficos sobre os problemas de saúde.

A principal dessas noções está na problematização de que a vida social pode ser

compreendida a partir da metáfora do texto. No trabalho de Geertz (2002a) e seus

seguidores, a noção de texto que sustenta a antropologia interpretativa fundamenta-se,

principalmente, nas reflexões filosóficas de Paul Ricoeur. A metáfora do texto aparece

como um recurso potente no momento fundante de uma nova corrente antropológica,

apresentando uma específica relação entre a produção dialógica proveniente do trabalho

de campo e a sua interpretação a posteriori (GEERTZ, 1989; 2002)

102
Neste sentido, a analogia da vida social como um texto que pode ser lido é

inspirada no conceito de inscrição desenvolvido por Paul Ricoeur, que é ―a chave para a

transição de texto para o texto análogo, ou de um texto escrito como discurso para a

ação como discurso‖ (GEERTZ, 2002a: 50). Para Ricoeur (1991: 106) ―texto é todo

discurso fixado pela escrita‖ e inscrição é a fixação do significado em alguma forma de

registro.

A antropologia interpretativa parte dessa perspectiva, considerando que a própria

ação é constituída de significados e que pode ser lida como um texto. Do ponto de vista

da escrita etnográfica interpretativa, inscrever a ação possibilita-nos a passagem da mera

descrição dos fatos e modelos explicativos nativos para a elaboração de uma

interpretação do pesquisador (GEERTZ, 1989; 2002; 2002a). Este estímulo pode ser

encontrado em uma das passagens de Ricoeur (1989;1991), transcrita abaixo:

O que é fixado pela escrita é, pois, um discurso que poderia ter sido dito, é
verdade, mas que se escreve, precisamente, porque não se diz. A fixação pela
escrita surge no lugar da fala, quer dizer, no lugar em que a fala poderia ter
nascido. Podemos, então, perguntar se o texto não é verdadeiramente texto
quando não se limita a transcrever uma fala anterior, mas quando inscreve
directamente na escrita o que quer dizer o discurso (RICOEUR, 1989, p.
142).

Partindo da noção de inscrição da ação, Geertz (1989) diz que a descrição

etnográfica é interpretativa e microscópica. O que se interpreta é a fluidez do discurso

social, buscando salvar o ―dito‖, evitando assim a sua extinção e fixando-o em formas

pesquisáveis. O sentido atribuído à característica microscópica da descrição autoriza a

ressalva de que ―interpretações mais amplas e análises mais abstratas‖ surgem de ―um

conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos‖. Há também a

consideração de que, ao assim qualificá-la, evita-se que o lócus do estudo coincida

necessariamente como o objeto de estudo, comum em estudos antropológicos mais

clássicos (GEERTZ, 1989, p. 31).

103
Nesta perspectiva, estudamos a atuação dos psicólogos nos serviços públicos de

Salvador, a partir da proposta teórica-metodológica do sistema de signos, significado e

práticas (BIBEAU e CORIN, 1995; BIBEAU; 1992; CAROSO, RODRIGUES e

ALMEIDA-FILHO, 1996; 1998; ALMEIDA-FILHO e outros s/d; s/d (a)), buscando o

alinhamento entre os dizeres produzidos na interação psicólogo-usuário nos encontros

psicoterapêuticos (a eles apenas reservados) e os ditos sobre eles a posteriori (aqui

apenas pelos psicólogos). Dito de outra maneira, buscamos compreender o relato da

interação psicólogo-usuário e a interpretação sobre a interação do ponto de vista dos

psicólogos, considerando que

A experiência humana – a vivência real através dos acontecimentos – não é


mera sensação: partindo da percepção mais imediata até o julgamento mais
imediato, ela é uma sensação significativa – uma sensação interpretada, uma
sensação apreendida [...] para os seres humanos toda experiência é
construída, e as formas simbólicas nos termos das quais ela é constituída
determinam sua textura intrínseca – em conjunção com uma grande variedade
de outros fatores que vão da geometria celular das retinas até os estágios
endógenos da maturação psicológica (GEERTZ, 1989a, p. 272).

Consideramos a força da experiência vivenciada, ressaltando a possibilidade de

acessar os significados da mesma através da prática etnográfica, na busca de conhecer

como pensam e sentem os sujeitos. Cabe ao pesquisador registrá-las, seja provocando os

interlocutores com técnicas de coleta de dados – entrevistas, por exemplo - ou fazendo

observações diretas, etc.

Os diálogos produzidos no atendimento psicológico (o dizer) desaparecem

temporariamente com o momento da ação (práticas psicológicas), mas os significados (o

que foi dito) permanecem, principalmente, e não exclusivamente, na inscrição (fixação

do significado), sendo possível conhecê-los do ponto de vista do nativo-psicólogo,

considerando as possíveis relações estabelecidas com elementos mais amplos da

realidade, sejam os culturais, sociais ou políticos (GEERTZ, 2002).

104
No entanto, é preciso outra advertência, estamos no lugar de quem ―lê‖ e não de

quem ―escuta‖, quando do tratamento dos dados coletados. Neste particular, temos que

considerar dois momentos distintos da produção dos dados e conseqüentemente da sua

análise. Primeiro, as entrevistas foram realizadas exclusivamente pela pesquisadora,

momento em que está no papel de quem escuta e produz um diálogo com seus

informantes-chaves. Na perspectiva adotada produz já uma interpretação, menos

consciente, sobre o que é falado e segue o seu fluxo, ainda que orientada por um roteiro.

No segundo momento, a análise das narrativas a coloca no papel de quem lê (como

definiremos a partir de Ricoeur), que é enriquecido pela prévia participação na produção

direta das narrativas que serão as suas unidades de análise, mas que não se limita a este

momento nem a tornaria inviável se não houvesse participado da mesma: o dito

inscreve-se.

Ricoeur (1989; 1991) parte da premissa de que o ato da leitura é diferente do ato

do diálogo. Uma característica importante que marca esta diferença é que a escrita

preserva o discurso e o torna disponível para a memória individual e coletiva. Segundo

o autor, o diálogo está para a fala, assim como, a escrita está para a leitura, uma vez que

a escrita toma o lugar do discurso. Porém, para o autor não há supremacia entre a fala e

a escrita: ―o que aparece na escrita é o discurso enquanto intenção de dizer e [...] a

escrita é uma inscrição directa desta intenção, mesmo se, histórica e psicologicamente, a

escrita começou por transcrever graficamente os signos da fala‖ (RICOEUR, 1989:

143).

Considerar que o texto toma o lugar do discurso (RICOEUR, 1989), ou seja, da

vida social, parece ser um dos estímulos para o desenvolvimento da perspectiva

interpretativa da antropologia, e parece-nos que esta aproximação vai além da noção de

inscrição e chega à própria noção de interpretação. Esta noção baseia-se na separação do

105
texto produzido no que diz respeito à oralidade, cuja liberação transforma as relações

entre a linguagem e o mundo, além disso, a relação entre a linguagem e as

subjetividades do autor e do leitor.

Ler um texto significa interpretá-lo, ou seja, apropriar-se do que, inicialmente,

era estranho, no sentido de diminuir a distância cultural (RICOEUR, 1989; 1991). A

tarefa da leitura é efetuar a referência para o mundo e para o sujeito, atualizando a

ambiência e a audiência. Do ponto de vista de Ricoeur, a escrita reivindica a leitura e

isto modifica a relação autor-leitor, coloca o leitor no lugar de quem produz uma

interpretação seguindo a própria interpretação oferecida no texto:

Quando o texto toma o lugar da fala, já não podemos falar propriamente de


locutor, pelo menos, no sentido de uma auto-designação imediata e directa
daquela que fala na instância de discurso: a esta proximidade do sujeito
falante com a sua própria fala substitui-se uma relação complexa do autor
com o texto que permite dizer que o autor é instituído pelo texto, que ele
próprio se mantém no espaço de significação traçado e inscrito na escrita; o
texto é exatacmente o lugar onde o autor sobrevive (RICOEUR, 1989, p.
145)

Esta noção reflete a perspectiva interpretativa proposta por Geertz. A tarefa do

pesquisador, ou a própria prática etnográfica, tem por vocação conhecer o mundo do

ponto de vista do nativo. No entanto, adverte-nos de que:

o etnógrafo não percebe – principalmente não é capaz de perceber – aquilo


que seus informantes percebem. O que ele percebe, e mesmo assim com
bastante insegurança, é o ―com que‖, ou ―por meios de que‖, ou ―através de
que‖ (ou seja lá qual for a expressão) os outros percebem (GEERTZ, 2002, p.
89)

Para Geertz (2002), a interpretação pode ser também exemplificada como sendo

a passagem da experiência próxima à experiência distante42. Por experiência próxima

entende-se o uso natural e sem esforço de explicações sobre o que os semelhantes vêem,

sentem, pensam e imaginam que os demais membros do grupo entenderiam facilmente;

42
Estes conceitos foram desenvolvidos pelo psicanalista Heinz Kohut e tomados de empréstimo por
Geertz (2002) para expor a passagem do texto nativo para o texto interpretativo advindo da escrita
etnográfica.

106
por sua vez, a experiência distante é uma outra interpretação, não menos válida do que a

anterior, elaborada para alcançar objetivos científicos, filosóficos ou práticos.

No terreno da interpretação, ao pesquisador cabe não se limitar à experiência-

próxima, mas considerá-la como ponto fundamental de partida. Tomamos os relatos dos

nossos interlocutores como produzindo conceitos de experiência-próxima, ainda que,

em alguns momentos, eles façam uso de conceitos que vêm de experiência-distante, pois

são também especialistas. Segundo Geertz (2002), não há diferença normativa entre tais

conceitos, ou seja, um não é melhor do que o outro. Há uma diferença de grau, e não de

oposição extrema.

Destacamos estas idéias para ressaltar a capacidade dos interlocutores

produzirem sentido em situações concretas, além disso, considerar o papel ativo do

pesquisador na leitura dos textos produzidos cooperativamente com seus informantes.

Nesta mesma direção, Bibeau (1992) ressalta que, no processo interpretativo, é preciso

recuperar a responsabilidade e autonomia dos atores sociais e deles próprios, sem, no

entanto, negligenciar os fatores políticos, sociais e culturais que se impõem nas suas

explicações e decisões em situações concretas.

Há ainda mais um aspecto importante que precisa ser discutido em relação à

passagem entre a experiência próxima e a experiência distante quando se está na

condição de pesquisadora-psicóloga. Até que ponto a produção de narrativas sobre a

atuação psicológica em serviços públicos de saúde, em setting clínico, e demais

atividades desenvolvidas pelos psicológos, podem ser consideradas experiência distante

para uma pesquisadora que é também psicóloga? Na condição de pesquisadora-

psicóloga, podemos responder esta questão e conferir validade a interpretação dos dados

em duas vertentes conjugadas: a pessoal-profissional e a teórica-metodológica adotada.

107
O procedimento teórico-metodológico empregado parece nos colocar no lugar

falsamente melindroso quando se remete à diferença das experiências distante e

próxima, a partir do duplo papel de pesquisadora-psicóloga. Nesta condição, por um

lado, devido à própria formação em psicologia e o exercício da profissão na função de

professora de psicologia, a atuação psicológica é familiar. Neste terreno, é importante

retornarmos alguns momentos da minha própria formação e trajetória profissional em

relação à familiaridade com o objeto e contexto de estudo.

A primeira aproximação se deu quando da minha participação como estagiária

de psicologia em um modelo de atendimento multiprofissional em parceria com a

enfermeira de puericultura em posto de saúde, como atividade de pesquisa e de estágio

supervisionado. Este foi retomado, na qualidade de professora de psicologia da saúde,

quando elaborei propostas de estágios para estudantes de psicologia em unidades

básicas de saúde e alguns centros especializados para o trabalho de prevenção em

DST/AIDS.

O segundo momento, o breve contato com a psicoterapia individual nos moldes

da clínica tradicional, na clínica-escola, em atividade de estágio supervisionado em

clínica psicanalítica, que aí se restringiu. Posso considerar que este contato foi retomado

por mim, alguns anos depois, no papel de analisanda a partir do referencial psicanalítico

lacaniano, que se prolonga até o presente momento.

Estas circunstâncias demonstram uma certa familiaridade com o objeto e com o

campo da pesquisa, associada ao esforço de distanciamento do pesquisador no processo

de interpretação dos seus dados, conduzindo a resolução deste percalço. Desse ponto de

vista, a experiência é mais próxima do que distante. Esse aspecto pode ser explorado em

toda a sua complexidade (ciladas e soluções) em diversos momentos da produção da

pesquisa, alguns deles ressalto a seguir.

108
No primeiro momento, os termos utilizados pelos psicólogos entrevistados para

definirem as atividades psicológicas desenvolvidas e as dificuldades com a clientela

pareciam domésticos. Alguns deles sequer foram questionados por mim quando os

interlocutores os falavam, no momento do diálogo, a exemplo, do termo demanda.

Se não fossem as indicações do procedimento de análise dos dados em relação às

múltiplas citações de um mesmo termo, poderiam passar desapercebida a variação de

seus significados. O que parece demonstrar que ler é diferente de escutar, no sentido que

estamos lhe atribuindo aqui. Isolar cada fragmento narrativo onde aparecia o termo

―demanda‖ e buscar o significado atribuído a cada uso fez com que percebêssemos o

seu caráter polissêmico, que vai do sentido de ―quantidade‖, muitos usuários que

buscam os serviços, até o de ―ter demanda‖, ou seja, ter atributos que lhes confere o

direito ao tratamento psicológico, ou ainda, ―demanda diferenciada‖, que remete à idéia

da tendência de mudança do perfil dos usuários... É oportuno retomar mais uma vez as

palavras de Geertz que ampliam a noção de experiência próxima, para cumprimos nosso

objetivo:

as pessoas usam conceitos de experiência-próxima espontaneamente,


naturalmente, por assim dizer, coloquialmente; não reconhecem, a não ser de
forma passageira e ocasional, que o que disseram envolve ―conceitos‖. Isto é
exatamente o que a experiência-próxima significa – as idéias e as realidades
que elas representam estão naturalmente e indissoluvelmente unidas
(GEERTZ, 2002, p. 89)

Neste particular, podemos exemplificar que o uso de demanda diferenciada na

experiência próxima, que, no primeiro momento, implica a inclusão da ―classe média

empobrecida‖, torna-se experiência distante quando transmutado em um ―novo

conceito‖. A partir da leitura das narrativas, podemos perceber que se trata de um

marcador do jogo exclusão-inclusão socioculturalmente orientada dos usuários em

relação à pertinência de atendimento psicológico, que pediu muitas outras articulações

com os demais marcadores da experiência próxima dos nossos interlocutores, como

109
veremos nos resultados e discussão. Neste terreno, parece que a vertente teórico-

metodológica impôs o rigor que a condição de psicóloga-pesquisadora parecia, a

princípio tender a fragilizar.

Por fim, há mais uma observação a ser registrada que envolve o uso da metáfora

do texto como estratégia para o entendimento da realidade social: a promessa de uma

interpretação que preza por ressaltar ―a ação a seu significado, e não o comportamento a

seus determinantes‖ (GEERTZ, 2002a: 55). Não buscamos associações positivas entre

variáveis, presas à relação causa e efeito, buscamos os significados que são atribuídos às

ações a partir de situações concretas. Feitas estas ressalvas, a opção nesta pesquisa foi

submeter os achados, tomando as narrativas como unidades de análise, ao processo de

submissão-violência, considerando as premissas do S/ssp e a perspectiva da

antropologia interpretativa.

110
5. CONTEXTOS E TEXTOS DA PESQUISA: de onde emergem e quem os produz

5.1 Descrição geral do delineamento de investigação

A presença de psicólogos na rede pública de saúde da Bahia pode ser considerada

incipiente. Em toda rede contamos com 68 profissionais, distribuídos em órgãos

administrativos e em serviços de atenção direta à população: a) 52 estão trabalhando em

Salvador, 25 deles em serviços ou órgãos sob a gestão da Secretaria Municipal de Saúde

(SMS) e os outros 27 em unidades que estão sob a responsabilidade da Secretaria de

Saúde do Estado da Bahia (SESAB); b) 16 estão distribuídos em outros municípios da

Bahia43.

O campo do presente estudo foi definido a partir de um mapeamento inicial

realizado junto à SMS de Salvador em 2002, uma vez que tínhamos interesse em

problematizar a atuação psicológica no nível mais primário de atenção à saúde. Nesta

direção, a entrada pela SMS ocorreu pelo fato da mesma ser responsável pela atenção

básica à saúde no município, enquadrando-se na categoria de gestão plena da atenção

básica de saúde, desde 1997. Por outro lado, um dos maiores desafios para a inserção

dos psicólogos na área de saúde pública é a adequação da atuação psicológica aos

objetivos específicos concernentes aos três níveis assistenciais de saúde: primário,

secundário e terciário. A recente entrada desses profissionais no nível primário de saúde

tem despertado o interesse de pesquisadores, que levantam problemas que merecem

esforços sistemáticos para compreendê-los, como descrito no capítulo três.

Fizemos um primeiro levantamento do número e distribuição por unidade dos

psicólogos contratados através da Subcoordenadoria de Administração de Pessoal da

43
Fontes: SESAB (2004) e SMS (2003), em relatórios solicitados para a presente investigação.

111
SMS, em 2002. Neste ano, mais precisamente em 28 de abril, a SMS contava apenas

com 28 psicólogos contratados: 25 deles em atendimento direto à população e três em

outras atividades. Considerando a organização do Sistema Único de Saúde (SUS) e o

tipo de gestão em que se encontrava a SMS, os interlocutores-chave da presente

pesquisa foram selecionados nos dois níveis de assistência à saúde em serviços de

atendimento direto à população:

No nível primário, havia seis psicólogos distribuídos em cinco unidades básicas


de saúde (UBS);
No nível secundário, havia 19 psicólogos, assim distribuídos: a) 17 em três
centros de saúde mental (CSM); b) um no centro de testagem e aconselhamento
em doenças sexualmente transmissíveis - DST/ síndrome da imunidade
adquirida – AIDS (CTA-DST/AIDS); c) um à disposição de uma organização
não governamental (ONG) no cuidado em AIDS.
Elegemos os psicólogos em serviços de ponta, ou seja, na assistência direta à

população, como interlocutores-chave, uma vez que desejávamos explorar a atuação

psicológica, considerando as particularidades da clientela que busca tratamento

psicológico.

O trabalho de campo para coleta dos dados primários foi realizado em dois

momentos complementares, no primeiro semestre de 2002 e ao longo do ano de 2003. O

primeiro teve como contexto de investigação as UBSs. Todos os seis psicólogos foram

entrevistados (QUADRO 1). Além disso, entrevistamos um psicólogo do CTA-

DST/AIDS e um à disposição da ONG-AIDS (QUADRO 3). Realizamos neste período

oito entrevistas.

Cabe ressaltar que, antes de entrarmos na segunda fase, fizemos um segundo

levantamento, em 14 de janeiro de 2003, para atualizar o número e distribuição de

psicólogos vinculados à SMS. A Secretária contava como total de 25 psicólogos, sendo

que os três profissionais que se encontravam trabalhando em atividades fora do

112
atendimento à população se mantiveram (QUADRO 2). Neste sentido houve perda de

três psicólogos nos serviços de ponta, representando um total de 22, assim distribuídos:

No nível primário, havia apenas cinco psicólogos distribuídos em quatro


unidades básicas de saúde (UBS);
No nível secundário, havia 17 psicólogos, assim distribuídos: a) 15 em três

centros de saúde mental (CSM); b) um no centro de testagem e aconselhamento

em doenças sexualmente transmissíveis - DST/ síndrome da imunidade

adquirida – AIDS (CTA-DST/AIDS); c) um à disposição de uma organização

não governamental (ONG) no cuidado em AIDS.

Na segunda fase do trabalho de campo, já em 2003, focalizamos a investigação

nos centros de saúde mental. Entramos em contato com 12 dos 15 informantes

potenciais e os entrevistamos. Neste período, dois informantes potenciais pediram

demissão e não foram entrevistados, pois, apesar de buscarmos contato, não houve

disponibilidade de tempo por parte dos mesmos. O terceiro informante potencial não foi

encontrado no CSM, apesar de constar no quadro de pessoal da SMS e das inúmeras

visitas ao referido centro. Incluindo os dois momentos do trabalho de campo,

realizamos 20 entrevistas semi-estruturadas com 20 psicólogos44.

QUADRO 1 - Distribuição de psicólogos vinculados à SMS de Salvador, por sexo, empregados nas
Unidade Básicas (UBS) de Saúde por Distrito Sanitário (DS).

Número de psicólogos /Sexo (F/M)


DS UBS Primeiro levantamento em 18/04/2002 Segundo levantamento 14/01/2003
Barra-Rio (Unidade D) 1 (1F) 0
Vermelho
Cabula-Beiru (Unidade E) 1 (1F) 1 (F)
Centro Histórico (Unidade B) 1 (1F) 1 (F)
(Unidade A) 2 (2 F) 2 (F)
Pau da Lima (Unidade C) 1 (1F) 1 (F)
Total 5 6 5
Fonte: Secretária Municipal de Saúde de Salvador.

44
Estamos considerando que fizemos 20, mas de fato fizemos 21 entrevistas, quando incluímos a última
psicóloga, em 2004. No entanto, cabe ressaltar que durante a elaboração desse capítulo excluímos esta
profissional, por não ter os dados que já dispúnhamos sobre os demais profissionais entrevistados,
apresentados em relatórios para o período anterior a entrada da mesma na rede de saúde.

113
QUADRO 2 - Distribuição de psicólogos vinculados à SMS de Salvador, por sexo, empregados nos
Centros de Saúde Mental (CSM) por Distrito Sanitário (DS)

DS CSM Primeiro levantamento em 18/04/2002/ Segundo levantamento em 14/01/2003


quantidade de psicólogos por sexo (F/M) quantidade de psicólogos por sexo (F/M)
Barra-Rio (CSM-G) 7 = (6F) (1M) 6 = (5F) (1M)
Vermelho
Brotas (CSM-F) 6 (6F) 6 (6F)
Itapagipe (CSM-H) 4 (3F) (1M) 3 (3F)
Total 3 16 15
Fonte: Secretária Municipal de Saúde de Salvador.

QUADRO 3 - Distribuição de psicólogos vinculados à SMS de Salvador, por sexo, empregados nas
Unidades Especializadas (EU)ou à disposição de outros serviços de ponta, por Distrito Sanitário.

Número de psicólogos /Sexo (F/M)


DS UE Primeiro levantamento 18/04/200 Segundo levantamento 14/01/200

Itapagipe RF-DST/AIDS- I 1 (1F) 1 (F)

ONG-J 1 (1M) 1 (M)


Total 2 2 2
Fonte: Secretária Municipal de Saúde de Salvador.

Ao visitarmos os serviços públicos de saúde podemos perceber que é comum o

trânsito dos psicólogos entre unidades, centros e setores, que inclui transferências para

níveis de assistência diferentes ou culminam em demissões. Nestes contatos diretos foi

possível verificar que dos seis psicólogos distribuídos em quatro distritos sanitários, em

cinco UBS, houve perda de dois profissionais para este nível de assistência através de

pedidos de transferência: um para um hospital geral e outro para um centro de saúde

mental.

Considerando os dois levantamentos realizados para os CSMs, podemos

identificar quando das visitas aos mesmos, que houve três pedidos de demissão, uma

psicóloga voltou ao setor de origem fora da assistência direta a população, em

contrapartida houve uma transferência de uma psicóloga vinda de uma das UBSs.

Ainda em relação à produção de dados primários para a realização da presente

investigação, incluímos depoimentos de psicólogos que pudessem reconstruir a

114
participação dos psicólogos no campo da saúde pública, a partir da estratégia de

mapeamento de rede de informantes. Estes psicólogos diferem dos outros

interlocutores-chave, pois não se encontravam vinculados à SMS no momento do

trabalho de campo e totalizam seis entrevistas abertas. Prezamos por selecioná-los a

partir de critérios como: já terem atuado em serviços públicos de saúde e serem

pesquisadores ou terem alguma posição de destaque no cenário baiano da formação e

atuação psicológica45.

O procedimento para identificá-los foi a de rede de informantes, ou seja, no

momento da entrevista aberta, solicitávamos que o mesmo indicasse outros que

pudessem contribuir nesta reconstrução da difusão da cultura psicológica,

principalmente no campo da saúde pública. Estes atores eram convidados a

reconstruírem livremente sua própria trajetória profissional que coincidia com a própria

história da participação e atuação dos psicólogos na rede pública de saúde.

Em relação aos dados secundários, utilizamos falas de psicólogos e psiquiatras

sobre a sua atuação na área da saúde proveniente de três eventos, dois técnico-

científicos e um comemorativo, dois deles gravados diretamente para esta pesquisa e o

outro que se encontrava arquivado no Conselho Regional de Psicologia BA-SE (CRP-

3a Região - BA/SE), em fitas cassetes.

a) eventos técnico-científicos:
- Encontro promovido pela Associação Baiana de Medicina - ABM. Tema:
Psicoterapia nas instituições. Realizado em 30/07/2001, na ABM, Salvador-
Bahia (arquivo pessoal);
- I Encontro Estadual dos Psicólogos da Saúde. Promovido pelo CRP 3 a Região -
BA/SE. Tema: Prática do psicólogo em instituições de saúde. Período 26 a
28/11/1992. Local: Auditório do Museu Geológico da Bahia. Salvador-Bahia
(disponível em arquivo no CRP - 3a Região).

45
Suprimimos suas identidades pessoais como a dos demais interlocutores-chaves.

115
b) evento comemorativo:
- Evento de Comemoração do Dia do Psicólogo - 30 anos do Curso de
Psicologia. Relato de Mercedes Cunha: “Memória viva”. Promovido pelo CRP
3a Região - BA/SE e Departamento de Psicologia da UFBA. Local: Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas – UFBA. Salvador-Bahia. 27 de agosto de
2003 (arquivo pessoal).

5.2 Estratégia e instrumentos de coleta de dados

Coletamos os dados considerando a divisão e distribuição dos psicólogos nos níveis

primário e secundário de assistência à saúde, pois há algumas particularidades na

organização da assistência à saúde mental que devem ser levantadas e discutidas, que

diferem das relacionadas à atenção básica à saúde. Além disso, é relevante percebermos

se há diferenças nas construções discursivas dos psicólogos sobre a sua atuação,

considerando os que estão diretamente em contato com o saber psicológico e

psiquiátrico e os que estão lidando com outras problemáticas fora do âmbito restrito da

saúde mental. Por outro lado, tentamos não desconsiderar as especificidades da

organização dos níveis de assistência.

Além das observações assistemáticas nos dez serviços públicos de saúde

visitados e de conversas informais, optamos pela técnica de entrevista semi-estruturada.

Desenvolvemos basicamente um instrumento para coleta de dados (APÊNDICE A).

Trata-se de um guia de entrevista, composto de uma série restrita de tópicos que

deveriam ser explorados de modo a proporcionarem a construção narrativa dos

entrevistados sobre os temas abordados.

As entrevistas tiveram uma média de 45 minutos de gravação. Solicitamos que o

interlocutor falasse um pouco sobre tópicos como: a) entrada na rede de saúde e na

unidade; b) atividades desenvolvidas; c) demandas dos usuários que o procuram,

116
incentivamos comparações entre seu trabalho na clínica particular e as realizadas nos

serviços (APÊNDICE A). Houve principalmente o encorajamento não verbal por parte

da pesquisadora, evitamos fazer perguntas diretas ou que implicassem em justificações,

ainda que, em alguns momentos, este aspecto escapasse ao nosso controle. Foi comum

que o entrevistado solicitasse à entrevistadora voltar a um ponto anterior, que ele julgou

merecer maior desenvolvimento, ou, simplesmente, concluir o episódio interrompido

pela inclusão de algum adendo que ele mesmo introduziu. Apenas ao final dos tópicos e

da entrevista como um todo, quando o entrevistado dava indícios de ter concluído relato

de uma situação ou caso atendido, fizemos questões mais diretas, solicitando ao

interlocutor esclarecimentos sobre algum aspecto. As entrevistas foram transcritas e

codificadas após indexação em aplicativo informatizado para organização e

categorização de dados não-estruturados (NUDIST N-Vivo).

5.3 Algumas considerações sobre os serviços públicos de saúde

Os 20 psicólogos entrevistados estão distribuídos por dez serviços de saúde, no período

da coleta dos dados, entre o segundo semestre de 2002 e o ano de 2003. Os serviços de

saúde onde havia presença de psicólogos vinculados à SMS eram: a) três Centros de

Saúde Mental CSM; b) cinco Unidades Básicas de Saúde – UBS (no total de cinco); c)

um Centro de Referência em DST/AIDS e em uma Organização Não-Governamental –

ONG, que contava com um psicólogo cedido pela SMS.

a) CSMs

Os centros de saúde mental são serviços especializados para o tratamento de problemas

de saúde mental. Contam com equipe multidisciplinar, incluindo os especialistas do

campo ―psi‖: terapeutas ocupacionais, psicólogos, psiquiatras, além de outros

profissionais de saúde. É importante ressaltar que os três CSM visitados na presente

117
pesquisa e que contavam com a presença de psicólogos ficaram sob a administração da

SMS e diretamente assessorados pela Coordenação de Atenção Básica apenas a partir de

junho de 1998. Foi neste momento que a Prefeitura de Salvador ingressou na Gestão

Plena da Atenção Básica, dando início ao processo de municipalização da saúde em

Salvador (CAMMAROTA, 2000).

O CSM-F pertence ao Distrito Sanitário de Brotas (QUADRO 2), um dos

bairros populares mais populosos de Salvador. Possui dois espaços de trabalho bem

delimitados, correspondentes aos ambulatórios e ao CAPS – Centro de Atenção

Psicossocial. O CSM-F contava com seis psicólogos assim distribuídos: quatro atuando

em regime ambulatorial; um atuando no CAPS. Todos os psicólogos desse centro foram

entrevistados. Ressalta-se que o CAPS foi implantado em 1997, meses antes da

municipalização da saúde em Salvador. Em 2003, ainda era o único dispositivo

alternativo para o cuidado de psicóticos e neuróticos graves do SUS, em Salvador. O CSM-G pertence ao

Distrito de Itapagipe, situa-se na parte baixa da cidade, sendo o mais periférico do três

centros. Vale ressaltar que é o único centro especializado em saúde mental, em regime

ambulatorial, de toda a cidade baixa de Salvador. Os três psicólogos que aí trabalhavam

foram entrevistados.

b) UBSs

As UBS oferecem os serviços básicos, essenciais à população de acordo com os

princípios do SUS de integralidade das ações, universalidade, descentralização e

hierarquização dos serviços (Lei 8080 de 19/09/1990). Os serviços de UBS são

oferecidos a partir dos programas: saúde da mulher (pré-natal, preventivo, consulta

ginecológica, etc.), saúde da criança (puericultura, imunização, consulta pediátrica,

acompanhamento nutricional, etc.), saúde do idoso (hipertensão, diabetes, imunização,

etc), saúde do adolescente, saúde bucal, saúde do adulto. Em todos esses serviços, são

118
desenvolvidas atividades de clínica médica, enfermagem, serviço social, nutrição,

psicologia, ginecologia, odontologia e farmácia, com atividades interna e externas (na

unidade e na comunidade). Cada um dos programas citados acima segue um protocolo

do Ministério da Saúde, sendo que cada profissional tem sua meta (qualitativa e

quantitativa) a cumprir. Cada programa tem seus objetivos, princípios, metas e sistema

de avaliação. Essas ações devem ser desenvolvidas de forma multiprofissional e

interdisciplinar, num sistema de rede com outras unidades de média e alta

complexidade, além dos hospitais. 46

É importante ressaltar que, em Salvador, a entrada de psicólogos nas UBS ocorre

a partir da metade da década de 1990, através de concurso público, o que antes era feito

só por iniciativa pessoal. De fato, apenas um dos entrevistados teve experiência

profissional em UBS antes desse período. Apenas cinco UBSs contavam com a

presença de psicólogos, praticamente um profissional para cada um dos cincos distritos

contemplados. Três delas no centro de Salvador e duas delas em áreas periféricas

(QUADRO 1). Todos os seis psicólogos foram entrevistados.

c) Outros locais

Outros dois locais de trabalho ocupados por dois psicólogos entrevistados foram: um

centro de referência em DST/AIDS (CR-DST/AIDS) e uma ONG para tratamento de

pacientes com AIDS, ambos estão implantados no distrito sanitário de Itapagipe.

Os Centros de Orientação e Apoio Sorológico – COAS são centros de referência

(CR), que foram adotados como estratégia de prevenção para DST-HIV-AIDS, a partir

de 1988, em todo o Brasil. Trata-se de uma unidade especializada para a prevenção e

controle de infecções sexualmente transmissíveis (IST47) e AIDS. O centro visitado

fornece aconselhamento coletivo e individual para prevenção de IST e AIDS. Tem por

46
Informações disponíveis em www.saude.gov.br
47
Termo que vem sendo utilizado nos serviços de saúde em detrimento da sigla DST, de modo a incluir
os usuários infectados, mas que não desenvolveram a doença correlata.

119
objetivo a prevenção primária do HIV, adesão do usuário ao tratamento, o tratamento do

parceiro sexual e adoção de práticas preventivas. Além disso, oferece a testagem

sorológica anti-HIV, que deve ser de caráter estritamente voluntário e anônimo. É

importante ressaltar que qualquer profissional de saúde treinado, por algum órgão

vinculado ao Ministério da Saúde, pode desempenhar a função de aconselhador. O CR-I

visitado conta com uma psicóloga que foi entrevistada. Por sua vez, a referida ONG

contava com um psicólogo cedido pela SMS, que foi entrevistado. Este serviço é

destinado a paciente com AIDS, funciona como uma casa-hospital de acolhimento e

tratamento.

5.4 Caracterização dos interlocutores-chave

Dos 25 interlocutores potenciais, que estavam vinculados à SMS nos dois

levantamentos realizados para definição dos sujeitos da presente pesquisa, foram

entrevistados 20. É importante ressaltar que, exceto os psicólogos empregados nas

UBSs, inseridos na rede de saúde no final da década de 1990, os que estão nos CSMS

têm como vínculo de origem a SESAB, cedidos à SMS no período da municipalização,

em 1997. Os últimos, em sua maioria, entraram na rede de saúde a partir da década de

1980 (QUADRO 4), em decorrência da ampliação da assistência no âmbito

ambulatorial, como descrito na sub-seção do capítulo três.

QUADRO 4 – Distribuição de psicólogos trabalhando nos serviços de saúde de atendimento direto à


população, por período de entrada, na Rede Pública de Saúde de Salvador.

Quantidade de psicólogos por tipo de instituição pública de saúde


Período (Geral) (UBS) (CSM) (CR-DTS/AIDS) (fora do atendimento
direto à população)
1980 a 1985 8 - 8 - -
1986 a 1990 4 1 2 - 1
1991 a 1995 4 3 1 - -
1995 a 2000 9 1 3 2 3
Total de 25 5 14 2 4
psicólogos

120
Fonte: SMS (2003)

Em relação à faixa etária, a maioria deles tem mais do que 40 anos, no total de

14 psicólogos. Dez deles têm menos de 40 anos (QUADRO 5). Ressalta-se que os mais

jovens estão atuando nas UBS e no CSM-H implantado mais recentemente.

QUADRO 5 - Distribuição de psicólogos, por faixa etária, vinculados à SMS de Salvador.

Faixa etária N0 de psicólogos


< 30 -
31 - 35 4
36 – 40 6
41 – 45 5
46 – 50 5
51 – 60 4
> 61 -
Total48 24
Fonte: SMS, 2003

Outro aspecto que podemos destacar é que a feminilização prevalecente na

categoria profissional dos psicólogos (LO BIANCO, et. at, 1994; DIMENSTEIN, 1998)

aparece entre os 25 psicólogos empregados, sendo 22 são do sexo feminino e apenas

três do sexo masculino (QUADRO 6).

QUADRO 6 - Distribuição de psicólogos, por sexo, vinculados à SMS de Salvador.

Sexo N0 de psicólogos
Feminino 22
Masculino 3
Total 25
Fonte: SMS (2003)

Considerando apenas os psicólogos que foram entrevistados na presente

pesquisa, 20 psicólogos, o tempo médio geral de atuação no serviço público é de 21

anos, não diferindo do tempo médio geral de atuação, exclusivamente, no setor saúde,

que é de 21,5 anos. É importante ressaltar que alguns dos psicólogos com mais de 20

anos de atuação no serviço público ingressaram em outros setores, principalmente, na

48
O total aqui difere dos apresentados em outros quadros, pois que para um dos psicólogos não constava
a idade na folha de pessoal cedida pela SMS.

121
área de educação (QUADRO 8). Estes pediram transferência para o setor saúde,

segundo seus próprios relatos, sobretudo com o objetivo de poder ―fazer clínica‖, já que,

na área de educação, sua atuação era, basicamente, realizar avaliação psicológica, sem

possibilidade de acompanhamento mais sistemático dos adolescentes encaminhados

com dificuldade de aprendizagem, por exemplo.

Há maior diversificação para estas variáveis quando os profissionais são

separados por tipo de unidade (QUADROS 7, 8 e 9). Por exemplo, tratando-se do tempo

médio de atuação no serviço público de saúde, há um decréscimo para 11,7 anos, no

caso das UBS (QUADRO 7). Isso corrobora com os dados apresentados, no capítulo

três, de que a participação dos psicólogos na atenção básica à saúde é também mais

recente, no contexto soteropolitano.

QUADRO 7 – Caracterização dos psicólogos, por tempo de serviço (Geral e no de Saúde), orientação
teórica, principal atividade desenvolvida e outras atividades em UBSs.

UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE


Interlocutor- Tempo de serviço Tempo de Orientação Principais Outras atividades
Unidade público geral serviço na saúde teórica atividades fora da UBS
Psi I-A 7 anos 7 anos Psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi II-A 10 anos 10 anos Psicanálise Psicopedagogia consultório
psicopedagogia em grupo particular
Psi III-B 20 anos 15 anos Psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi IV-C 10 anos 10 anos Psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi V-D 22 anos 18 anos Psicanálise Aconselhamento -
individual
Psi VI-E 10 anos 10 anos Terapia familiar Psicoterapia -
(sistêmica) individual

Atuando em UBSs, havia seis psicólogos; cinco deles orientavam-se tendo como

referencial a psicanálise e apenas um deles a terapia familiar. De modo geral, a principal

atuação psicológica é a psicoterapia individual, seguindo a tendência criticada por

vários autores (SILVA, 1992; LO BIANCO, e outros, 1994; DIMENSTEIN, 1998), a

partir de argumentos que foram apresentados no capítulo três. Exceto dois deles, todos

os outros atuavam também em consultório particular. Estes têm tempo médio de atuação

122
em serviços de saúde de 10 anos (QUADRO 7), tento entrado, particularmente, na

metade da década de 1990.

Os interlocutores entrevistados nos CSM totalizam doze psicólogos49. Entre os

psicólogos que atuam nos CSM, não há maior diversidade de orientação teórica em

relação aos que estão nas UBS. Predomina a abordagem psicanalítica entre doze deles.

A atuação psicológica principal é a psicoterapia individual nos três CSM. No entanto,

nos CSM- G e H há psicoterapia em grupo, atividade não desenvolvida no CSM-F. A

maioria atua, também, em consultório privado, precisamente, oito deles (QUADRO 8).

O tempo médio de atuação nos serviços de saúde é de 10 anos. No entanto, há, em um

dos CSM, o centro H, o menor tempo de atuação, quatro anos, que coincide com o

período de implantação do CSM-H em outro local do distrito ao qual faz parte.

QUADRO 8 - Caracterização dos psicólogos, por tempo de serviço, orientação teórica, principal
atividade desenvolvida e outras atividades em CSMs.

CENTROS DE SAÚDE MENTAL


Interlocutor- Tempo de Tempo de Orientação Principais Outras atividades
Unidade serviço público serviço na teórica atividades fora do CSM
geral saúde
Psi VII-F 18 anos 18 anos humanismo Psicopedagogia consultório
(rogeriana) individual particular
Psi VIII-F 19 anos 10 anos psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi IX-F 20 anos 11 anos psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi X-F 22 anos 22 anos psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi XI-F 16 anos 4 anos psicanálise Oficina -
(CAPS) (intercalados)
Psi XII-F 20 anos 20 anos psicanálise Oficina -
(CAPS) (psicodinâmica
infantil)
Psi XIII-G 17 anos 9 anos psicanálise Psicoterapia consultório
(estuda individual e em particular
psicologia grupo
analítica)
Psi XIV-G 20 anos 14 anos psicanálise Psicoterapia consultório

49
Um dos nossos entrevistados teve uma experiência pontual (quatro anos intercalados) nos CSM-F e, no
momento da pesquisa, já havia voltado ao setor de origem. No entanto, foi entrevistado, pois se mostrou
solícito e interessado na pesquisa sobre atuação psicológica, sendo apenas incluído na descrição geral que
caracteriza o perfil dos profissionais, e excluído na análise das narrativas, uma vez que seu discurso
esteve muito em função das atividades que desempenhava em outro setor que não era de atendimento
direto à população.

123
individual e em particular
grupo
Psi XV-G 17 anos 17 anos ―existencialis Psicoterapia -
mo‖ individual
Psi XVI-H 4 anos 3 anos psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular
Psi XVII-H 4 anos 4 anos psicologia Psicoterapia consultório
junguiana individual e em particular
grupo
Psi XVIII-H 4 anos 4 anos teoria Psicoterapia clínica
sistêmica individual e em (ambulatório de
grupo hospital público)

Entrevistamos, também, dois profissionais que se dedicavam ao trabalho com

DST/AIDS. Com tempo médio de atuação em serviço de saúde de sete anos: um deles

atua em consultório particular com referencial psicanalítico e o outro orienta sua prática

na psicologia junguiana, e não tem consultório privado (QUADRO 9).

QUADRO 9 - Caracterização dos psicólogos, por tempo de serviço, orientação teórica, principal
atividade desenvolvida e outras atividades em CR DST/AIDS.

CENTROS DE REFERÊNCIA EM DST/AIDS


Interlocutor- Tempo de Tempo de Orientação Principais Outras atividades
Unidade serviço serviço na teórica atividades fora da unidade
público geral saúde
Psi XIX-I 7 anos 7 anos psicologia Aconselhamen -
junguiana to individual e
coletivo
Psi XX-J 7 anos 7 anos psicanálise Psicoterapia consultório
individual particular

5.5 Considerações éticas da pesquisa

Levamos em consideração as normas e diretrizes para realização de pesquisa com seres

humanos, deliberadas na Resolução no 196 do Conselho Nacional de Saúde - CNS.

Entre outras indicações este documento prevê a obrigatoriedade da apreciação do

projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa. O número do protocolo de

apreciação e aceite da presente pesquisa é 023-03/CEP-ISC. Utilizamos o

consentimento informado (APÊNDICE B), que garante a participação voluntária, prevê

124
que o colaborador foi esclarecido sobre os objetivos da pesquisa e do uso que se fará das

informações, além disso, dos limites quanto ao uso das mesmas.

É importante ressaltar que, para conseguir que as identidades fossem preservadas, já

que o número de psicólogos por unidade é pequeno, às vezes apenas um profissional por

serviço, adotamos as seguintes medidas:

a. Apresentamos os dados mais objetivos diferenciando-lhes por números romanos

(Psi I a XX) e suas experiências profissionais atribuindo-lhes nomes fictícios;

b. Resolvemos não identificar os serviços de saúde pelos seus nomes oficiais, expondo

informações apenas essenciais sobre os mesmos, diferenciando-lhes por letras do

alfabeto e agrupando-os pela natureza do serviço: unidades básicas de saúde (UBS

A;B;C;D;E;), centros de saúde mental (CSM F;G;H), centro de referência

DST/AIDS (CR I;J).

Ao adotarmos tais procedimentos, buscamos evitar relacionar diretamente o

profissional à unidade de origem, principalmente, para UBS e CR, onde há um

profissional por unidade. Por fim, em relação aos entrevistados que deram depoimentos

para a contextualização da difusão da cultura psicológica na área de saúde, que não

estão vinculados a nenhum dos serviços visitados, mantivemos as preocupações acima

especificadas. Eles, também, tiveram seus nomes e cargos profissionais específicos

preservados.

125
6. TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE: as

repercussões da identidade profissional

A maioria dos psicólogos lotados, atualmente, em unidades básicas de saúde

(UBS) de Salvador entrou na década de 1990 através de concurso, à exceção de um

deles, que entrou no final da década de 1980. A entrada de psicólogos nas UBSs é

proveniente da ampliação da assistência à saúde mental na atenção básica (SPINK,

2003; CARVALHO; YAMAMOTO, 1999; DIMENSTEIN, 1998; 1998a; REMOR,

1997), que, em Salvador, pode ser considerada não só tardia como incipiente. Em 2002,

contávamos com seis psicólogos em cinco UBSs, e em 2003 apenas com quatro,

distribuídos em apenas quatro distritos sanitários dos 12 existentes na capital

(QUADRO 1).

Em relação ao tipo principal de atividade desenvolvida pelos mesmos nas UBSs,

diversos estudos corroboram o que foi encontrado no nosso estudo (QUADRO 7, 8, 9),

ou seja, que essas atividades são centradas na psicoterapia de orientação psicanalítica.

Assim, Lo Bianco e outros (1994) retratam realidade semelhante no âmbito nacional e o

trabalho de Dimenstein (1998), também, demonstra a ênfase na psicoterapia individual,

diferindo apenas quanto à orientação teórica predominante, que, em Teresina, é a

abordagem rogeriana.

Podemos considerar que o psicólogo, nas unidades básicas de saúde - UBS de

Salvador - ainda é um profissional ―estranho‖ [Do lat. extraneu, 'externo'; 'que é de

fora'; 'estrangeiro'.] e, de modo geral, ainda precisa aprender a cultura local. Por um

lado, um novo sistema cultural se apresenta, onde procedimentos comuns aos serviços

públicos de saúde tornam-se complexos aos seus olhos e ouvidos. Por outro lado, sua

bagagem parece pesada e pouco adequada a este novo espaço de trabalho: os psicólogos

126
tendem a reproduzir o modelo clássico da psicologia clínica que aprenderam durante a

graduação, que dá o tom, o compasso e a forma de atuarem, como discutido no terceiro

capítulo.

Explorando as trajetórias profissionais dos nossos interlocutores, podemos

perceber que eles não sabem, a priori, o que farão neste nível primário de atenção à

saúde e quem os recebe parece não ter isso muito claro, também. Facilmente, são

impelidos a organizarem seu trabalho do modo que lhes é mais familiar. Para Silva

(1992), a atuação psicológica centrada na psicoterapia individual tem esquivado o

psicólogo de desenvolver ações de atenção primária à saúde, desprezando a

possibilidade de integração de suas atividades com as demais ações oferecidas pelas

unidades básicas.

Do mesmo modo, ressaltamos que não identificamos nas falas dos entrevistados

maior incentivo institucional para o desenvolvimento de ações mais integradas. A visão

dos gestores e colegas de trabalho do que pode fazer e faz um psicólogo é orientada pelo

senso comum. No entanto, quando há algum pedido de integração por parte dos

gestores, isto pode gerar mal entendido e descontentamento por parte dos próprios

psicólogos.

Em outros estados brasileiros a inserção dos psicólogos na área de saúde pública

sempre foi apontada como problemática, independentemente da década em que ocorreu

a entrada dos mesmos. Spink (2003), descrevendo este movimento dos psicólogos para

as UBSs de São Paulo, em 1985, já questionava o que eles deveriam fazer neste nível de

assistência. Há nas falas de seus entrevistados, e também nas de Dimenstein (1998), a

mesma percepção de não familiaridade e de premente ―desespero‖ nos primeiros

contatos com este espaço de trabalho, tal como encontramos entre os nossos

interlocutores.

127
No presente estudo, de modo geral, a identidade profissional do psicólogo

entrevistado tende a fundir-se primordialmente com a de um psicanalista. Por sua vez,

as trajetórias podem ser apresentadas como orientadas em três principais sentidos que

nomeamos: a) trajetórias de conflito (ociosidade); b) trajetórias de reprodução

(isolamento) e; c) trajetórias de construção (abertura).

Na trajetória de conflito, há uma recusa do profissional para o

desenvolvimento de novas propostas de intervenção que não a psicoterapia individual, o

que pode ter como efeito a ociosidade do mesmo no local de trabalho, por ele ficar em

função de uma parcela muito pequena da população que de fato adere a este tipo de

tratamento. Na trajetória de reprodução há ainda o apego do psicólogo pela

psicoterapia individual como atividade exclusiva. No entanto, quando se consegue

reproduzir, na instituição pública, a organização da atuação nos moldes do consultório

particular tem-se como conseqüência o isolamento do profissional em relação às outras

atividades desenvolvidas na unidade.

Em ambas modalidades, podemos identificar uma tendência à compreensão

restrita do fenômeno psicológico: proveniente de narrativas que se detêm em

explicações centradas, predominantemente, em aspectos intra-individuais das demandas

trazidas pela população atendida, aspecto que será mais explorado no capítulo

subseqüente. Três das trajetórias relatadas apresentam experiências dos profissionais

que adotaram a psicanálise como teoria e técnica de intervenção. Freqüentemente,

utilizam termos como psicanalista, analista, análise e psicanálise para reconstruírem

suas histórias e marcam explicitamente sua diferença em relação aos outros

profissionais de saúde da unidade, quando se remetem a procedimentos que deveriam

ser comuns a todos os profissionais de saúde que se encontram na unidade, por

exemplo, o agendamento das consultas no SAME.

128
Na trajetória de construção há uma abertura do profissional para o

desenvolvimento de intervenções mais próxima às demandas e necessidades

institucionais e busca de planejamento da atuação a partir da realidade encontrada. A

diferença básica entre esta modalidade e as duas primeiras é que, nesse caso, o

psicólogo ensaia desenvolver uma atuação apropriada após um período de

reconhecimento dos problemas e demandas da população local, fato que não é

acompanhado de recusa do oferecimento de atendimento individual psicoterapêutico.

Neste sentido, podemos considerar que há uma certa tendência do profissional, ao uso

de outras técnicas de intervenção e para o trabalho em grupo. O que não significa que se

elimina o risco de isolamento do profissional nem que seja possível avaliar

comparativamente a eficiência das intervenções. Por sua vez, podemos perceber aqui

uma compreensão menos restrita do fenômeno psicológico: proveniente de narrativas

que incluem as condições de vida e aspectos sociais das demandas trazidas pelas

pessoas que atendem, sem, no entanto, perder o foco no indivíduo.

Três experiências ilustram alguns dos elementos destacados para esta categoria,

no sentido de não se restringirem ao oferecimento de psicoterapia individual e

ensaiarem outras estratégias de intervenção em conjunto com outros profissionais, ou

mesmo com outro setor (de educação, por exemplo). Estas trajetórias profissionais

também estão orientadas pelo referencial psicanalítico, mas não a utilizam como

técnica. Os interlocutores remetem-se à psicanálise, geralmente, como um ―lastro de

pensamento‖, ―um modo de pensar‖, um modo de orientá-los. Além disso,

diferentemente dos outros profissionais, não têm consultório particular (se têm, não

usam a técnica psicanalítica clássica).

Outro aspecto que autoriza esta diferenciação é que, no horizonte teórico prático

deste grupo, permite-se recorrer a outras técnicas de intervenção, e mesmo a diferentes

129
abordagens teóricas. Muitas vezes, impelidos pelo fato de julgarem que a psicanálise,

como técnica, não é adequada para atender as demandas da clientela e as exigências

institucionais dos serviços públicos de saúde. Considerando uma subdivisão entre as

três categorias de trajetórias identificadas (de conflito, de reprodução, de construção), o

que muda, basicamente, é a natureza da intervenção. O que as une é a forte influência da

psicanálise como visão de mundo.

6.1 Trajetórias profissionais: de conflito e de reprodução

Na condição de psicóloga, desde 1993, quando entra na rede de saúde, Carmem esteve

às voltas com o sentimento de não pertencimento ao contexto de trabalho em saúde

pública. Decidiu pela psicanálise ainda na graduação, definindo sua formação

profissional a partir dessa linha teórica. Um certo desconforto acompanha a sua

trajetória profissional de conflito no setor público de saúde, fazendo-a ―circular‖ por

várias unidades periféricas de Salvador, numa busca ativa para lidar mais eficientemente

com aspectos que julga interferirem na sua atuação. A interlocutora interpreta sua

chegada no serviço público de saúde como ―traumática‖, sinalizando as dificuldades

decorrentes do choque entre ela e a gerente da unidade.

As descrições atribuídas à gerente, como representante da saúde coletiva, a seu

ver, pouco convidativas ao diálogo: ―autoritária‖; ―queria mudar o mundo, mudar o

centro...‖, que lhe acusa de ―querer fazer psicanálise‖ no posto de saúde. O mal-estar

atribuído ao sentimento de não pertencimento, em um lugar que não aceita, a princípio,

sua forma de ver o mundo e de orientar sua prática, que é a psicanalítica, vai perdurar e

impulsionar seu desejo de sair de uma ―unidade de saúde normal‖ para uma de ―saúde

mental‖:

130
Tava tudo certo pra eu vir, já pra entrar na equipe, aí a gente já tinha tido
reunião, não me liberaram, não. De jeito nenhum. Porque eu sou a única
psicóloga do distrito, então... Eu digo; tudo bem, mas vocês querem
psicólogos pra quê, entendeu? Pra dizer que tem, que o distrito tem
psicólogo, entendeu? Então não tem cabimento, eu não tô, eu tô ociosa na
unidade, essa é que é a verdade, entendeu? Continuo ociosa, entendeu?
Poderia tá atendendo muito mais do que eu tô atendendo. Eu tô atendendo o
paciente que soube, na rua, que tem um psicólogo e vem aqui. Porque não
tem outra forma de encaminhamento, nem dentro da unidade, nem as
assistentes sociais encaminham...eh... [Carmem, Psi IV-C: 10 anos] 50

Seu reclame de inclusão parece ecoar, também, sem destino, pela comunidade,

em freqüentes queixas e pedidos de divulgação da sua insistente proposta de trabalho.

Este tipo de problema não foi vivenciado pela entrevistada apenas em uma única

unidade em outras unidades o estranhamento mútuo ainda persiste:

Então, cê tá lá, fica lendo, fica isso, fica aquilo, entendeu? E não tenho muito
o que fazer, quer dizer, eu sempre pergunto isso: gente, o que é que eu
poderia fazer? Eu boto um cartaz, eu boto o quê? Sabe, eu tenho que me
mobilizar dentro da unidade pra poder buscar esse paciente, né? A louca da
última gerente chegou a me dizer: ―cê tem que ir pra fila chamar os
pacientes‖, que ela diz lá completamente louca (risos), ―cê tem que ir pra
fila‖! E, ―minha fiinha‖, que ela era louca assim: ―você, venha, tem psicólogo
aqui‖! Eu digo: é, só falta essa mesmo, oh, gente, ir pra fila chamar
paciente... [Carmem, Psi IV-C: 10 anos]

As estratégias imaginadas pela psicóloga e sugeridas por outros profissionais

para divulgar o trabalho se mostraram, além de ineficazes, insólitas. Os poucos

encaminhamentos internos feitos pelos outros profissionais de saúde também são

percebidos como insuficientes para aumentar a procura dos usuários para o tratamento

psicológico, do seu ponto de vista, reforçados pela inexistência de triagem. Este

particular faz a interlocutora concluir que ―a demanda é muito restrita para o psicólogo

em unidade de saúde‖ e se qualificar como ―ociosa‖ nas unidades em que esteve.

Nessa perspectiva, chama a atenção o fato de não existir iniciativa de atuação

psicológica fora do contexto clínico tradicional. Por exemplo, a presença e atuação de

agentes comunitários de saúde (ACS) é uma das ações utilizadas no país para a

50
Ao apresentarmos os fragmentos das narrativas que busca orientar o leitor em relação aos signos e
significados destacados nas nossas discussões, utilizaremos o seguinte padrão para diferenciar os
interlocutores: [nome fictício, Psi = psicólogo, número antecedido da letra que os diferenciam por
unidade: por fim, o tempo de serviço em unidade pública de saúde, expresso em anos]

131
organização do SUS, considerando seus princípios e diretrizes, e tem assumido um

lugar muito significativo na implantação do programa de saúde da família (PSF) como

estratégia neste processo (PAIM, 1999).

Nunes e outros (2002), em recente estudo sobre o papel dos agentes

comunitários no PSF analisam as práticas e discursos dos mesmos, produzidos na

realização de seu trabalho com famílias atendidas pelo PSF em áreas urbanas e rurais de

cinco municípios do Estado da Bahia. Os autores descrevem o papel de tradutor

assumido pelos mesmos em relação à percepção privilegiada que têm acerca dos

problemas apresentados pela comunidade, particularmente, decorrente da posição que

ocupam na rede social comunitária.

No nosso estudo, apesar da proximidade da entrevistada com os agentes

comunitários de saúde, o máximo a que se permite é solicitar-lhes ―divulgação do

trabalho‖ da psicologia e queixar-se de que não há o retorno em forma de demanda

psicológica (aspecto que será discutido com profundidade em momento oportuno). Isso

evidencia um nível muito superficial, e pouco informado, da relação entre os diversos

profissionais de uma equipe que se quer interdisciplinar.

Seguindo a sua trajetória, a transferência para um centro de saúde mental, que

lhe parece mais preparado para aceitar o tipo de atuação (psicoterapia individual

psicanalítica) em que se julga capacitada e que lhe dá identidade profissional, foi

negada. Por outro lado, os motivos que impulsionam o seu pedido de transferência

podem nos fazer questionar se há implícita a idéia de que a psicoterapia individual seja

mais adequada ao nível secundário de assistência, a exemplo de um centro de referência

em saúde mental, do que à UBS, como sugerido por Lo Bianco e outros (1994).

Carmem qualifica-se como o ―último dos moicanos‖ na defesa da psicoterapia

individual em UBSs em detrimento a qualquer outra atividade que pudesse ser

132
desenvolvida por ela, os seus argumentos giram em torno do fato de estar preparada e

acreditar na sua eficácia psicoterapêutica:

Mas é um trabalho de psicoterapia individual, eu defendo isso (risos) de


qualquer jeito, entendeu? É o que eu sei fazer, é o que eu acredito,
entendeu? Agora, fantástico que tenha trabalho de grupo, entendeu? Tem
grupo, ótimo. Tem grupo de adolescente na unidade, [diz o nome de uma
colega de trabalho] coordena, eventualmente a gente vai, faz um trabalho,
entendeu? Mas não é a minha, esse trabalho, eu prefiro trabalhar na linha de
psicoterapia, se tivesse num centro de unidade de saúde mental, que tem as
oficinas, que tem, né, outras coisas acontecendo, ótimo, também acho
fantástico, isso tudo é importante acontecer. Agora, numa unidade, eu ainda
defendo a posição da psicoterapia, vou ficar defendendo ali, vou ser o
último dos moicanos (risos) [Carmem Psi VI-E, 10 anos].
Da sua trajetória observamos mais enfaticamente a dificuldade pessoal de alguns

profissionais em realizarem práticas fora do repertório comportamental modelado pela

sua profissão, revelada pela ausência de diálogo com outras áreas de saúde, na direção

de fazer um trabalho mais integrado ou mesmo de organizar uma atuação mais

compatível com a realidade dos serviços públicos de saúde, caracterizando

exemplarmente o que foi descrito por Goldberg (2001) como ―preconceito tecnológico‖.

Os relatos seguintes de Virgínia e de Cristina, sobre a entrada e inserção nas

UBS representam à modalidade que denominamos trajetória profissional de

reprodução, que conduz ao isolamento profissional, característico de trabalho

ambulatorial. Diferentemente da trajetória anterior, a inserção de Virgínia é facilitada

por ter encontrado uma gerente que compartilhava da particularidade do discurso

psicológico, apesar de ser médica, tal como a gerente do caso anterior:

Foi muito boa. [Fulana], na época, que era a gerente da unidade... [...] parece
que ela era nova aqui também na unidade na época. Ela entrou junto comigo,
parece, na prefeitura; ela não era nem da prefeitura, ela era pessoa de fora,
da... Ela é médica, infectologista, ela trabalhava com DST e AIDS, ela
trabalhava num hospital [...], me parece. Então, ela sempre... ela fazia análise
pessoal e ela sempre teve uma abertura muito grande com a psicologia, com a
psicanálise. Então, a gente teve uma identificação muito grande, ela sempre...
me recebeu muito bem, sempre me apoiou muito aqui. Ela nem ficou muito
tempo, eu acho que ela ficou uns oito, nove meses na unidade, depois ela
pediu exoneração, saiu do cargo, foi fazer outras coisas, mas a minha
acolhida, aqui, foi muito boa. Também, com as pessoas da unidade, tem uns
problemas internos, né, que sempre tem, mas, até hoje, eu tenho um
relacionamento muito bom com todo mundo aqui. [Virgínia, Psi I-A: 7 anos]

133
Virgínia, que orienta também sua atuação pela psicanálise, ao entrar, em 1999,

foi inicialmente alocada em um programa sócio-educativo. Ficou pouco tempo neste

programa e foi ―devolvida‖, [―eu fui devolvida, como eles chamam, né?‖ (risos)] à

SMS, e, na iminência de ir para uma unidade no subúrbio da cidade, preferia a

exoneração. No entanto, como esta demorou a sair, conseguiu uma unidade mais

central, à qual se encontra vinculada até hoje (UBS-A). Ela desenvolve, como atividade

principal, a psicoterapia individual psicanalítica. Também optou cedo pela psicanálise e

investe ainda hoje em supervisão, grupo de estudo e análise pessoal.

Cristina, por sua vez, entra no serviço público em 1988. Após ter atuado na área

de educação por alguns anos, pede transferência para a área de saúde, no início da

década de 1990:

eu não tenho e não tinha nem vontade de ter uma formação dentro dessa área
pedagógica. Então, em função disso, eu consegui uma remoção para a área de
saúde, que era aonde eu teria mais um trabalho dentro da linha, que era uma
linha de consultório mesmo, uma linha clínica, visto que eu já estava tendo
meu consultório de psicologia, junto até com as colegas de lá da educação. A
gente se juntou... aquela coisa... vi que a minha praia era mais fazer clínica
mesmo. Então, eu queria não ficar dividida nisso, porque eu ficava dividida
numa atuação educacional e numa atuação clínica, na qual eu não tinha
nenhuma formação, nem pedagógica... nenhuma, nenhuma. Minha formação
tinha sido de científico e de entrar na faculdade de psicologia. Eu não tinha
nenhum interesse nessa coisa pedagógica, eu queria mais, mesmo, era fazer
psicanálise dentro de uma área completamente clínica. [Cristina, Psi III-B,
15 anos]

Cristina adotou a psicanálise como campo teórico através de grupo de estudo,

em que se inseriu no mesmo período em que entrou no serviço público, não se

vinculando a nenhuma instituição de formação. Como Virgínia, Cristina está entre as

psicólogas que se adaptaram com mais facilidade à ―coisa pública‖, principalmente em

decorrência do desfrute da liberdade de organizar seu trabalho nos moldes do seu

consultório particular (agenda com hora marcada, distribuídos nos quatros turnos de

trabalho com flexibilidade e não submetido à hierarquia médica). Além disso, não há

indícios de empecilhos por parte dos outros profissionais, ou mesmo da gerência, em

134
relação à atividade que desenvolve na unidade: psicoterapia individual com orientação

psicanalítica. A receptividade da área médica ao seu trabalho é atribuída aos

encaminhamentos feitos pelo diversos profissionais de saúde.

Nas duas últimas trajetórias apresentadas, é a transposição da postura assumida

nos seus consultórios particulares para a UBS e o desfrute de liberdade que aparecem

como elementos fortes para garantirem às entrevistadas a identidade de psicóloga-

psicanalista e fixá-las nas respectivas UBS.

Em síntese, essas trajetórias profissionais destacadas estão particularmente

ligadas entre si pela natureza da intervenção que realizam nas UBSs, além disso,

associadas à visão psicanalítica que as orientam. O que possibilita a inserção dessas

psicólogas é a transposição do modo de organizar a atuação nos moldes do consultório

particular, à exceção de Carmem que busca implantá-lo, mas não consegue a contento.

Nos três casos, há uma recusa em participar de atividades com outros profissionais, bem

como daquelas que tenham cunho informativo ou sócio-educativo, principalmente

porque têm convicção de não ser uma atuação pertinente com a escolha que fizeram

pela clínica psicanalítica.

Mas, no geral, eu acho que a coisa é bem mais difícil de você coordenar, o
ritmo, a forma de funcionamento da unidade com o trabalho da psicologia,
né? Então, o atrito seria que eles queriam muito que a gente fizesse um
trabalho em grupo, sala de espera, só que eu não quero fazer esse trabalho de
sala de espera, de fazer trabalho informativo, eu não tô aqui pra fazer trabalho
informativo [Carmem, Psi IV-C: 10 anos].

Neste terreno, segundo as entrevistadas, as ações sócio-educativas devem ser

desenvolvidas por outros profissionais, que podem até ser psicólogos, se se dispuserem,

mas não se configuram nos seus horizontes teórico prático. Neste sentido, quando não

atribuem valor estritamente negativo a estes tipos de intervenção sócio-educativa sem

uma explicação muito clara para tal, não percebem os mesmos como eficazes, pois que,

ao seu ver, não vão ao cerne da questão, ou seja, são ações superficiais que servem para

135
mudança ou adaptação do comportamento, aspectos que não interessam a abordagem

psicanalítica.

Por sua vez, nestas falas podemos identificar alguns signos que as distanciam e

as fazem demarcar um lugar diferente da ―área médica‖ tais como os que se seguem: a

possibilidade de ―acompanhamento sistemático‖; ―não é enquadrar ninguém‖, ―o uso da

psicanálise não cura‖. Por outro lado, os signos atribuídos à área médica, usada aqui

mais como metonímia para a saúde pública, são: ―despacha remédio‖; ―área de saúde,

do corpo físico, do orgânico‖, ―o negócio é vacinar‖, ―curativo‖.

Um aspecto fundamental é que não há nas narrativas nada que suscite

questionamento quanto à pertinência do modelo psicológico, ou da natureza da

intervenção, para este espaço de trabalho, nem de quem tem se queixado diretamente do

problema de não haver demanda dos usuários para tratamento psicólogo e nem dos que

se queixam das solicitações institucionais, que incluem as ações sócio-educativas.

6.2 Trajetórias profissionais de construção

As trajetórias profissionais de outras três psicólogas, Laura, Conceição e Osvalda, nos

fazem pensar em um padrão de inserção diferente do descrito anteriormente, apesar das

particularidades que as separam entre si.

A trajetória de Laura foi inicialmente de estranhamento e de dificuldade para

implantar o setor de psicologia nas UBSs onde trabalhou. A experiência na graduação

com o estágio clínico em enquadre individual com supervisão, típica do modelo de

consultório particular, não é percebida, pela entrevistada, como suficiente para enfrentar

as situações que lhe surgiram, sendo necessário um esforço da própria profissional para

garantir um espaço dentro da instituição para o desenvolvimento de uma atuação que ela

136
julga mais adequada. É o contrário das trajetórias profissionais de reprodução nas quais

as psicólogas analisam positivamente os estágios clínicos que fizeram sob supervisão de

psicanalistas. Essas diferenças que serão exploradas no final dessa seção.

Particularmente, Laura, apesar de se sentir acolhida nas UBSs em que trabalhou,

diz que as mesmas contavam com a referência do modelo médico, ou seja, os usuários

só buscavam a unidade quando estavam muito doentes e, além disso, não existia

encaminhamento nem reuniões técnicas. Ressaltamos aqui que tais problemas foram

também apontados nas trajetórias que denominamos de conflito e de reprodução, e que

não demonstra uma particularidade de uma única UBS.

Foi em 1993 que Laura entrou pela primeira vez em uma UBS. Tem uma

trajetória que inclui atuação, nos dois primeiros anos, em unidades com problemas

sociais sérios, prostituição, uso de drogas, entre outras, mas, a despeito disso, conseguiu

fixar-se na UBS-A, durante vários anos (na qual se encontrava no momento da

entrevista). Considerando as exigências institucionais por ―quantidade‖, uma vez que a

demanda é numericamente intensa, e as suas ―por qualidade‖, Laura desenvolve a

atividade que nomeia de ―oficina de crescimento pessoal‖ para crianças e adolescentes.

A interlocutora apresenta sucintamente as três vertentes que orientam seu trabalho: ―do

corpo (trabalho de corpo, respiração e alongamento); de consciência corporal e o

trabalho voltado para a aprendizagem‖. Este trabalho foi planejado para responder à

freqüente demanda de dificuldade de aprendizagem entre o referido público e porque

houve a percepção de que era preciso operacionalizar melhor o trabalho. A sua atuação

é baseada em princípios da psicopedagogia com referência teórica na psicanálise:

Eu coordeno quatro oficinas e aí é... tem a referência, todos entram aqui com
uma pasta, distribuo textos, então, é um trabalho de saúde e educação
psicopedagógica. [...] hoje eu trabalho aqui, faço acolhimento individual,
tenho uma escuta voltada, inclusive, com toda a referência da psicanálise,
mas eu faço uma aliança com o trabalho psicopedagógico [Laura, Psi II – A:
10 anos].

137
A visão da entrevistada, que tem consultório particular com a mesma orientação,

sobre como deve ocorrer a atuação de um psicólogo em serviços públicos de saúde

difere das anteriores. Diz que é preciso ―ter flexibilidade, ter mobilidade‖:

Tipo assim, o psicólogo fica perdido, porque a demanda é muito grande e não
estrutura nada com aquele trabalho. Não tenta fazer alguma coisa. E aí eu
tenho essa realidade, o que é que eu posso fazer? O que é que eu posso
desenvolver? Palestras educativas na escola, então... falar em palestras, o
psicólogo que está na clínica não pode fazer palestra [Laura, Psi II-A: 10
anos]

Os atributos de flexibilidade e mobilidade relacionados ao desempenho de um

psicólogo em UBS, aos quais se remete Laura, serão de suma importância para

compreendermos as relações delicadas entre as demandas e as necessidades de

atendimento psicológico e o papel fundamental do profissional para torná-las mais

adequadas possível. Nesta perspectiva, reservamos o próximo capítulo para

apresentarmos algumas idéias sobre esta problemática.

Uma outra trajetória analisada, a de Conceição segue, um pouco, a direção da de

Laura e caracteriza-se pela abertura da atuação psicológica. No entanto, a sua entrada no

serviço é caracterizada por uma menor receptividade por parte do gestor. Ela entra em

1993 no serviço público de saúde, numa unidade na área suburbana da cidade, e ouve da

gerente, no momento da sua chegada:

Ah! Esperava que viesse uma, uma pediatra e não psicóloga. [...] É, mas, já
que está aqui, faz o trabalho. Mas, aí ao contrário, a demanda ao contrário, a
demanda que eu fosse atender os funcionários problemáticos, né?... resolver
os problemas... então, há um desconhecimento claro dos médicos em
relação... muitos médicos em relação ao trabalho do psicólogo. [Conceição,
Psi VI-E: 10 anos]

Ainda que a interpelação da gerente possa ser lida apenas como indelicadeza,

endereçável a qualquer profissional de saúde que não correspondesse à sua expectativa

de composição do quadro funcional, esta narrativa possibilita que indaguemos

diretamente: a UBS é um lugar para psicólogos? Certamente, a presença de um

138
representante da comunidade psicológica neste espaço impõe questões importantes,

muitas delas já destacadas neste e em outros capítulos. Como vimos, é atribuído a esta

categoria a qualidade de ―profissional de saúde‖, logo, normativamente ele pode

trabalhar em qualquer nível de assistência à saúde. No entanto, uma das críticas

provenientes da sua presença neste espaço é o descompasso entre as demandas e as

estratégias de intervenção, considerando a especificidade do respectivo nível de

assistência, bem como a pouca familiaridade dos demais profissionais ao trabalho

psicológico.

Por outro lado, esta interpelação pode ser lida em outra direção, como sugere o

tom da entrevista com Conceição. O que pode fazer um psicólogo nas UBS? Pode

aceitar todos pedidos encaminhados pelos seus colegas de trabalho decorrentes,

principalmente, do estranhamento e desconhecimento dos mesmos em relação às suas

atribuições? Pode implantar um modelo de atuação desconsiderando as especificidades

do contexto? Onde buscar orientações para organizar o seu trabalho de modo mais

adequado ao Sistema Único de Saúde senão em suas diretrizes e princípios básicos e

nos da reforma psiquiátrica brasileira? Por sua vez, como conciliar a organização do

trabalho e os objetivos que as unidades devem cumprir em relação a procedimentos

clássicos à assistência médica, sem excluir a dimensão subjetiva do processo saúde-

doença-cuidado?

Desde a graduação, Conceição, que tinha uma inclinação para discussões

políticas e não se percebia trabalhando em algo que não incluísse o ―social‖; diz que a

clínica particular nunca a atraiu. Fez formação em terapia familiar, mas estudava tanto a

abordagem sistêmica como abordagens psicanalíticas. Para a interlocutora a psicanálise

fornece um ―lastro de pensamento‖, embora, questione a adequabilidade da técnica para

responder as demandas da população que busca os serviços.

139
A estratégia de Conceição para organizar seu trabalho na UBS não parece tão

sistemático como o desenvolvido por Laura. Inicialmente, ―bota pra escutar‖ todos que

aparecem, buscando ganhar maior familiaridade e conhecimento das demandas, e

adaptando-se aos novos dispositivos institucionais:

Há uma série de controles assim, que às vezes ficam difíceis. Você está no
centro de saúde e quem recebe o paciente é o funcionário, que estava
acostumado a tratar umas bem, outras mal né? Isso gerando um problema,
mas a pessoa tinha que marcar... O SAME [Serviço de Atenção Médica, setor
de marcação de consulta]. E eu fiquei um pouco sem saber como vou
controlar isso aqui. Segue no SAME, marca. Eu digo os meus horários, eles
marcam, ou eu devo marcar? Mas a minha decisão foi atender quem
chegasse, crianças, adultos, ah...Toda demanda que chegar, eu vou botar pra
escutar [Conceição, Psi VI-E: 10 anos]
Conceição, que se mostrou disposta e flexível para organizar seu trabalho,

considerando as particularidades do contexto, percebeu que o pedido do gestor para

atender os ―funcionários problemáticos‖ não poderia ser respondido a contento, o que

denominou de demanda ao contrário. Percebeu que seria preciso delimitar sua atuação,

deixando mais claro, para os não familiarizados com o discurso e atuação psicológica,

quem pode ser cuidado, ao menos por ela. O sujeito do seu cuidado não é o funcionário

da unidade, nem a equipe de trabalho. Na UBS-E, onde trabalha, continua atendendo a

população que chega à procura de atendimento psicológico. Investiu em atuações extra-

muros indo à escola local, pois que chegavam muitas crianças e adolescentes com

dificuldade de aprendizagem, uma das queixas mais freqüentes nos serviços visitados,

de acordo com as psicólogas.

A trajetória profissional de Osvalda também pode ser considerada mais aberta a

novas formas de atuação psicológica. A entrevistada seguiu um caminho pouco comum

em relação às demais psicólogas, passando do nível terciário de atenção, pois entrou

pelo hospital geral, em direção aos postos de saúde (nível primário de atenção), por

motivos que não quis compartilhar diretamente, relacionados com o fato dos ―médicos

serem privilegiados‖. As atividades desenvolvidas no primeiro incluíam avaliação e

acompanhamento individual de adolescentes gestantes e os respectivos companheiros

140
no processo de aceitação/rejeição da gravidez não planejada, e discussão em grupos, a

partir de temáticas como sexualidade, cuidado de si e do bebê.

Nas UBSs em que atuou, a interlocutora relata que participou de programas de

saúde oferecidos, a exemplo do ―programa de redução de danos‖ 51. Além disso, frente à

persistente demanda de crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem,

desenvolveu um trabalho de ―desenvolvimento pessoal e social‖ para este público em

conjunto com uma enfermeira e uma assistente social. Osvalda esteve ―dividida entre a

educação e a clínica‖. A entrevistada ressalta que fazia seu trabalho com uma leitura

baseada no referencial teórico psicanalítico, mas que, em nenhum desses contextos,

fazia psicanálise: ―não fazia psicanálise no ambulatório, porque a demanda era grande,

o espaço não era adequado, não botava no divã‖.

A organização das trajetórias profissionais que fizemos entre as três

modalidades, a princípio, sugere uma dicotomia aparentemente simples marcada: a) pela

diferença de enquadre da atuação em individual ou grupal; b) pela influência da

orientação teórica e dos recursos utilizados, e o atravessamento do grau de ―pureza‖ da

psicanálise aplicada. Não temos dúvidas que estes são pontos de partida importantes,

mas não nos escapa que ainda não dão conta da complexidade da problemática.

Estamos partindo do nível factual, a oferta de psicoterapia individual de base

psicanalítica em UBSs está relacionado a dificuldade de manter o usuário no

atendimento sistemático e mais prolongado, por motivos que identificamos e discutimos

ao estabelecermos as relações entre demandas e necessidade de atendimento psicológico

e ao buscarmos os significados atribuídos pelos psicólogos as práticas psicológicas

desenvolvidas tanto em UBS quanto em CSMs, em direção ao nível interpretativo.

51
A entrevistada remete-se ao programa de redução de danos implantado em um dos distritos sanitários de
Salvador, para o atendimento de usuários de drogas injetáveis e preocupado na prevenção de DST/AIDS,
que consiste na troca de seringas descartáveis com acompanhamento sistemático por equipe
multidisciplinar, da qual fez parte.

141
Neste sentido, por enquanto, podemos considerar que, o profissional que busca

organizar o trabalho no enquadre grupal e ampliar os recursos técnicos para a

intervenção, que ensaiam trabalhos mais integrados e de cunho mais preventivo e de

promocão da saúde dentro de UBSs tendem aqui a serem considerados como

apresentando uma certa abertura para construir um modelo de atuação psicológica

apontado como mais adequado ao nível de assistência primário (SILVA, 1992; LO

BIANCO e outros 1994; DIMENSTEIN, 1998).

6.3 TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS: algumas considerações sobre a crise de

identidade e a formação em psicologia

A influência da psicanálise na formação e atuação profissional de todos os psicólogos

entrevistados é a referência para a construção da identidade profissional; apenas uma

das psicólogas não incluiu durante e depois de graduada esta abordagem no seu

horizonte teórico prático. De modo geral, a maioria das entrevistadas tinha o desejo de

―fazer clínica‖ desde a graduação em psicologia, ou seja, atender sistemática e

individualmente com objetivo psicoterapêutico e ―colocar‖ consultório. Apenas duas

delas não compartilhavam desse ideal, ambas aqui incluídas na trajetória profissional

que denominamos de construção (ou de variação da mesma), e que, ao longo da

graduação, desenvolveram certa ―impaciência‖ frente ao excessivo direcionamento das

disciplinas para abordagem psicanalítica.

Nas trajetórias de conflito e de reprodução não há lugar para mudança ou

reavaliação da identidade profissional de formação, aqui entendidas como a vivência

e/ou expectativa de passar por experiência de trabalho distante dos padrões tradicionais

ou do que se julga a priori apropriado, e que, de modo singular, perturbam o

142
reconhecimento de estar ou não atuando como psicólogo. Essa dificuldade de mudança

se dá principalmente graças a dois fatores. Primeiro porque as entrevistadas se arriscam

pouco em proporem e participarem de outras atividades que não as tradicionalmente

conhecidas e buscam ocupar e garantir uma imagem de psicóloga-psicanalista. Segundo

porque o apego e a transplantação do modelo clínico de consultório particular lhes

garante a identidade de psicólogo clínico, cobiçada e reforçada desde a graduação.

Por outro lado, nas descrições das trajetórias de construção foi comum

encontrarmos indícios de uma crise de identidade profissional. É preciso ressaltar que a

crise não se restringe à atuação na área de saúde, incluindo as experiências profissionais

na área da educação, onde, ao menos, três das interlocutoras passaram antes da entrada

nos serviços públicos de saúde. Considerando o relato abaixo, como apenas um dos

exemplares, percebemos a idéia que permeia o imaginário de muitos psicólogos.

[...] ser psicóloga pra mim era trabalhar em clínica... era a minha fantasia, era
o que eu queria, era o que eu desejava, na época que eu tava fazendo
faculdade, tava estudando psicanálise fazendo formação, coisa e tal. É...
então, por isso eu fui atrás da [cita nome de um hospital geral], entendeu?
Buscar um espaço onde eu me sentisse mais atuando na clínica, como, como
psicóloga... mas no [nome de uma instituição educacional]... depois eu fui
refazendo essa, essa questão dentro de mim, internamente, né. Fui vendo que
era outro espaço de trabalho, que eu podia atuar né, que era esse espaço de
educação... que eu enquanto psicóloga podia atuar também. Então, eu, eu...
eu comecei ... eu senti assim que o meu olhar pra esse... pra esse jovem era
diferente do olhar de um educador... de um pedagogo, era diferente do olhar
de um técnico lá de vídeo, meu olhar diferente, entendeu? Eu, eu percebia
que eu conseguia ver um pouco lá o inconsciente... ver muito o que estava
por trás daquele comportamento, aquela coisa aparente... [Osvalda, Psi V-D,
22 anos]

Há uma certa tendência a reduzir a noção de clínica a sua dimensão apenas de

enquadre, eliminando a possibilidade de compreendê-la também como uma ação ou

postura que pode ser útil para a resolução de problemas de saúde e que não se restringe

a um determinado setting52. Na narrativa acima, identificamos que a crise de identidade

52
Um bom exemplo é a atuação desenvolvida por alguns psicanalistas em ambulatórios de saúde mental,
onde o processo de triagem foi substituído por uma escuta psicanalítica em enquadre grupal, denominada
pelos seus propositores como ―clínica da recepção‖, ao avaliarem os problemas freqüentes em relação ao

143
gerada pelo contato com situações diferentes de trabalho pode vir a proporcionar esta

mudança, quando se percebe a peculiaridade do olhar outrora treinado e que procura

respostas para problemas fora do comportamento aparente. Neste particular, o olhar que

só via a existência de atuação de um psicólogo na clínica, leia-se acompanhamento

sistemático e psicoterapêutico, vai focalizando seu olhar para o sujeito e para o

problema, e não necessariamente para o setting.

Por sua vez, a experiência de Sandra no serviço público de saúde é uma

variação da trajetória profissional de construção, que se autoriza fora do campo da

psicologia. Desde 1993 (quando entrou na rede pública de saúde), a atuação dela se dá

como aconselhadora em um centro de referência em DST/AIDS, no nível secundário de

atenção à saúde, com ênfase nas ações de prevenção (ver capítulo II), função possível de

ser desempenhada por qualquer profissional de saúde treinado para esta tarefa, a partir

das normas do Ministério da Saúde para prevenção e controle das DST/AIDS.

(risos)...é difícil, eu...né... me sinto assim... porque assim... é eu me sinto


uma aconselhadora com um... assim, com essa marquinha de psicóloga...
porque o olhar que eu faço sobre essa pessoa... eu observo, às vezes que é
diferente do olhar que o meu colega que não é, médico faz... tá entendendo?
Então, assim, nesse aspecto sim... né?. Agora, não me sinto tão psicóloga,
porque eu falo: ―Nossa! Faço mesmo a coisa que o meu colega, que é
médico, faz!‖... tá entendendo?. Mas, eu sinto que há esse diferencial...
assim... na relação, na forma que você estabelece a relação com essa pessoa
que ta aí diante de você, não é? De uma forma mais tranqüila de você se
relacionar com essa pessoa, sem aquele distanciamento tão grande que, às
vezes, o médico é treinado a ter. E que até, às vezes, psicólogos,
independente das linhas teóricas e tal, também têm esse distanciamento,
né?... as linhas (TI), as relações são outras, até pro cliente, em termos de
clínica, né? Nesse aspecto, eu acho, aí, você tem a sua marca nesse aspecto,
assim, por ser psicóloga, por pensar, por ter uma linha teórica, uma
compreensão, às vezes, a gente faz muitas discussões, em outro momento,
assim, tá em intervalo que tem pouco movimento: ―mas a gente fala uma
coisa pra pessoa e ela, e essa pessoa... não sei como é que raciocina assim!‖
Aí, a gente tem que dizer: ―poxa, o ser humano é assim mesmo‖ e tal, e tem
que mostrar e discutir um pouco isso, assim... então, essa possibilidade de
ver, às vezes, o ser humano como alguém que falou, não é racional só, tem
outros aspectos, né? [Sandra, XIX-I, 7 anos]

tipo e à natureza dos encaminhamentos para psicoterapia e a baixa resolutividade decorrente desse
procedimento (ver CADERNOS IPUB. A clínica da recepção nos dispositivos de Saúde Mental. Rio de
Janeiro: UFRJ/IPUB, V. VI, N. 17, 2000).

144
É importante ressaltar que a experiência de Sandra, ou seja, o modo como a sua

atuação se processa neste local, através do aconselhamento individual e coletivo (ver

capítulo 4), por natureza se distancia de um marcador caro para a definição de atuação

psicológica encontrada nos demais interlocutores, ou seja, a psicoterapia, pois não

permite acompanhamento sistemático nem psicoterapêutico.

Apesar de realizar a mesma atividade de outros profissionais de saúde de áreas

diferentes da sua, e não fugir da crise de identidade em alguns momentos, ela percebe

que algo da formação de base interfere de modo singular e positivo na sua atuação.

Podemos destacar alguns dos signos que sugerem um olhar que lhe dá identidade como

psicóloga, tais como: ouvir com mais tranqüilidade, sem distanciamento tão grande do

usuário e, principalmente, da sua tendência de não reduzir a compreensão das atitudes

dos usuários frente às práticas sexuais de risco de infecção por HIV ao comportamento

manifesto, manipulável através da aquisição de informação por ser um homem racional.

Acredita que o tipo de conhecimento psicológico, que no seu caso vem da abordagem

da psicologia analítica junguiana, é necessário e diferencia seu olhar, no trabalho que já

é ―preformatado‖ pelo Ministério da Saúde.

Como visto no capítulo anterior, a ênfase teórica e os modelos de intervenção

apresentados nos cursos de psicologia são descritos por muitos pesquisadores como

reforçando a clínica tradicional e como impeditivo de uma inserção mais

contextualizada nos serviços públicos de saúde, particularmente nas unidades básicas.

Pensando no papel da formação acadêmica atribuído pelos nossos entrevistados para sua

atuação nas UBSs, todos compartilham da visão de que o curso de psicologia não os

instrumentalizou para este tipo de trabalho. No entanto, o processo de formação pode

ser pensado em duas direções complementares, tomando a atuação em serviços públicos

de saúde como referência.

145
A primeira diz respeito ao fato de não haver, durante as duas décadas (final de

1970 e década de 1980), às quais se remeteram, sem muita precisão, como sendo os

períodos dos cinco anos de graduação exigidos, matérias específicas sobre atendimento

em unidades públicas nem o oferecimento de estágios supervisionados nestes locais. A

segunda direção aparece nas narrativas dos entrevistados que representam,

particularmente, as trajetórias de reprodução, em relação à importância do estágio na

clínica (psicanalítica) realizado nas dependências da clínica-escola, das supervisões

constantes e por professores-supervisores qualificados, as discussões semanais de casos,

leitura de textos e feitura de monografia, como signos positivos para a atuação em

clínica, mas que não prepara para o seu desempenho no serviço público de saúde. Além

disso, tendem a esperar menos da universidade a responsabilidade pelas suas formações,

e aqui temos algo importante, uma vez que é um atributo que aparece com diferentes

nuances em todos os nossos entrevistados e que aponta de modo contundentemente para

a fusão identitária psicólogo-psicanalista dos mesmos. Pois todos sabem que o processo

de tornar-se psicanalista não coincide com o de tornar-se psicólogo, apoiando-se no

tripé individualista, com auto-responsabilização e investimentos longos e custosos, que

compreendem o domínio teórico da clínica, a supervisão de casos atendidos, e,

principalmente, a análise pessoal.

Por outro lado, os entrevistados que classificamos na modalidade de trajetórias

profissionais de construção queixam-se mais categoricamente em relação à precária

formação em psicologia para este contexto de trabalho. Há os que reforçam que a

familiaridade com o saber psicanalítico desde a graduação tem repercutido

positivamente na sua prática, mas que ressaltam que tiveram que buscar outras leituras

para atuar fora da clínica tradicional. Há, ainda, os que apontam o excesso de

disciplinas, como as de aconselhamento e técnicas psicoterápicas, oferecidas no curso

146
de psicologia, a partir de uma abordagem psicanalítica, não havendo incentivo para que

o profissional desenvolvesse determinadas características como flexibilidade e

mobilidade, e, como veremos, baixa sensibilidade cultural.

Um aspecto que merece um pouco mais de atenção é decorrente dos significados

que são relacionados à fusão identitária psicólogo-psicanalista dos profissionais

entrevistados, que, por sua vez, se refletem nas atividades por eles desenvolvidas e nas

que eles não podem desempenhar. A nossa hipótese é que essa seleção do que se pode

ou não fazer, de certo modo, decorre dessa composição e reflete a ênfase dada na

formação simbólica (GOOD, 1994) em psicologia voltada para a atuação na clínica

tradicional (LO BIANCO, e outros, 1994), o que pode destituir de sentido ações fora

desse horizonte.

É importante ressaltar que a compreensão da difusão da cultura psicanalítica em

relação à ampliação dos cursos de psicologia e formação de psicólogos é significativa

para a fusão identitária aqui vislumbrada. Dias (1994) recorre a alguns autores

(LANGENBACH, 1985a; FIGUEIREDO, 1988; KATZ, 1984) que buscaram entender

o processo de formação do psicólogo, particularmente no Rio de Janeiro, em sua relação

com a difusão e consolidação do pensamento psicanalítico. Neste estudo, reafirma que a

identidade e as expectativas profissionais do psicólogo sempre estiveram estritamente

associadas à psicanálise (LANGENBACH, 1985a). O autor recorre ao estudo de

Figueiredo (1988) que mostra que não há entre a psicanálise e psicologia clínica apenas

superposições circunstanciais, mas uma relação imbricada que coloca a psicanálise

como suporte da segunda. A leitura de Katz (1984), feita pelo autor, ressalta que a

identidade do psicólogo clínico produziu-se através de uma identificação que sempre

carece de algo que lhe falta para ser psicanalista.

147
Esperamos tornar os efeitos dessa fusão identitária entre os nossos entrevistados

mais claros paulatinamente nas seções seguintes. Por enquanto, antecipamos a

categorização que nos foi possível elaborar, considerando todas as modalidades de

trajetórias profissionais, em UBSs e CSMs, em relação às principais atividades

desenvolvidas pelos psicólogos e os respectivos referenciais teóricos que as orientam,

para, então, seguir apresentando as trajetórias profissionais dos psicólogos nos CSMs.

Não há muita diferença entre os tipos de práticas psicológicas oferecidas em

UBSs e CSMs, predominantemente são as psicoterapias individuais de base

psicanalítica. Entre os psicólogos que oferecem psicoterapia individual e/ou de grupo,

no total de 14 profissionais, apenas quatro não utilizam o referencial psicanalítico, e

estão orientados por outras abordagens teóricas, tais como, sistêmica, ―existencialista‖,

psicologia analítica junguiana, denominados aqui psicólogo-não-psicanalista. Os

outros dez, que se orientam pela psicanálise, podem ser classificados em dois grupos.

O primeiro grupo inclui aqueles cujo discurso não sustenta uma definição

explícita como psicanalistas, pois, apesar de já terem se submetido à análise pessoal e de

orientarem sua atuação nesta direção, não foram autorizados pela formação completa

em psicanálise, estudando sozinhos ou em grupo, são aqui classificados de psicólogo-

de-base-psicanalítica. Entre estes há os que estão buscando formação profissional a

partir de outro referencial teórico-prático, por exemplo, psicologia junguiana.

O segundo grupo é composto daqueles cujos relatos direcionam-se para uma

definição como psicanalistas, porque se submeteram à análise pessoal e fazem formação

vinculada à alguma instituição para este fim, ou participam de grupo de estudo, ou

estudam sozinhos, sendo aqui denominados de psicólogo-psicanalista.

Vale dizer que estas modalidades distanciam-se da classificação de ―maus e bons

psicanalistas‖ apresentadas criticamente por Figueira (1988), e aqui retomamos essa

148
discussão como um ponto de importante referência. Dito de outra maneira, não

atribuímos diferença maniqueísta entres estes rótulos, desigualdade já demonstrada pelo

referido autor como pouco produtiva, pois percebemos que, apesar dessa diferença

surgir nas narrativas dos interlocutores, ambos os grupos, inclusive os não-psicanalistas,

de uma maneira ou de outra, tentam adequar sua atuação à realidade encontrada.

De modo geral, todos os psicólogos (UBSs e CSMs), independente da orientação

teórica, adequam de algum modo sua atuação para atender a população que busca os

serviços públicos de saúde, ressaltando que a ―visão de mundo‖ é o que prevalece mais

do que a técnica. Aqui é preciso retomar novamente a discussão de Figueira (1988)

sobre o ponto de saturação da psicanálise a partir da sua difusão, que a transforma

negativamente em uma visão de mundo. Essa seria entendida como medida de

conversão dos pacientes à psicanálise, não delimitando a sua influência apenas ao

setting terapêutico. Nas entrevistas analisadas, é recorrente o aparecimento da expressão

visão de mundo. No entanto, a despeito do que a noção de ―tomar o saber psicanalítico

como visão de mundo‖ significa para a comunidade psicanalítica (FIGUEIRA, 1988),

nossos interlocutores buscam, com este atributo, reafirmarem que a adequação das suas

práticas não abandona a importância atribuída à teoria psicanalítica; ela prevalece acima

de tudo. Este parece ser um modo enfatizado pelos mesmos para se resguardarem à

crítica de que a adequação da técnica esvazia a sua força teórica, ou algo nessa direção.

Outro aspecto importante que merece ser ressaltado é o fato de que esta

diferenciação em relação à natureza da orientação teórica dos entrevistados é possível

porque os próprios psicólogos quando incentivados a falarem sobre sua formação

demonstraram uma visível preocupação em sinalizarem o alcance e os limites da

mesma, possivelmente em resposta à própria comunidade psicanalista, ao tempo que

estavam sendo entrevistados por uma psicóloga. Neste terreno, enfatizamos, mais uma

149
vez, que a fusão identitária psicólogo-psicanalista não deve ser perdida de vista quando

da leitura das narrativas, funcionando como um pano de fundo, uma vez que ela valida

explicações e posicionamentos frente às práticas possíveis ou não de serem

desenvolvidas.

Feitas estas ressalvas, podemos considerar que nas falas dos psicólogos-

psicanalistas aparece maior resistência em realizarem um trabalho mais integrado com

as outras atividades vistas como necessárias para os serviços, ou que impliquem em

pretextos mais sócio-educativos. Os psicólogos de base psicanalista são mais flexíveis

na inclusão de técnicas e mais abertos a participação em outras atividades em

desenvolvimento nos serviços ou extra-muros.

150
7. TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DOS PSICÓLOGOS NOS CENTROS DE

SAÚDE MENTAL: o lugar que lhes é de direito?

Considerando a discussão que fizemos em relação à inserção dos psicólogos nas UBS e

a identificação de três modalidades de trajetórias profissionais: a) há predomínio da

categoria reprodução-isolamento entre os psicólogos que trabalham em CSMs,

apresentando determinadas características decorrentes da singularidade de cada

profissional; b) há marcante presença de fusão identitária psicólogo-psicanalista entre os

mesmos.

Sete trajetórias profissionais das 11 reconstruídas 53 dentro dos CSMs

apresentam-se marcadas profundamente pela fusão identitária psicólogo-psicanalista,

tais como nas UBSs. Apenas quatro deles orientam sua atuação em referenciais teóricos

diferenciados, a saber: psicologia rogeriana, teoria sistêmica, psicologia analítica e

―existencialismo‖.

Todas as 11 trajetórias profissionais de reprodução se configuram de modo

variado em cada um dos CSMs. O primeiro aspecto que alimenta a diferença é a

natureza da gestão da instituição onde se insere o profissional. Esta pode ser flexível ou

impositiva/autoritária em relação à organização do trabalho do psicólogo.

As gerências nos CSM-F e CSM-G são descritas pelas entrevistadas como

flexíveis, no sentido de darem maior liberdade ou não interferirem diretamente na

organização do trabalho. Este elemento de flexibilidade/liberdade incentiva o

isolamento característico da assistência ambulatorial, porém não é a causa do mesmo,

uma vez que se pode atribuí-lo inúmeros fatores, inclusive à ausência, nestes espaços,

de encontros sistemáticos para discussão de aspectos administrativos, técnicos e mesmo

53
Excluímos a experiência de trabalho do profissional Psi XI-F. A entrevistada percebe sua entrada em
um dos CSM como muito pontual e intercalada.

151
clínicos, ou de outras estratégias que fomentem a oferta de uma assistência mais

integrada.

No caso do CSM-H, a postura do gestor beira a ―desqualificação‖ do trabalho

psicológico. De acordo com os entrevistados, a relação com o gestor do serviço é

marcada pelo conflito explícito, dando um pano de fundo organizacional desfavorável

para a inserção dos profissionais de psicologia que aí trabalham, caráter ressaltado nas

entrevistas como, muitas vezes, interferindo direta e negativamente na atuação dos

mesmos. Embora, é importante ressaltar, a existência de conflito no CSM-H não

coincida com a ociosidade dos profissionais de psicologia, o que se viu anteriormente

para um dos casos na UBS. Ao contrário, há uma certa abertura, ao menos no discurso,

e que às vezes se reflete na prática por parte dos psicólogos, na busca de alternativas

para a organização da atuação psicológica. Esta abertura se mostra muito mais

alicerçada na percepção de que há um descompasso entre a natureza da intervenção

psicológica e as demandas trazidas pela população que procura o CSM-H do que nas

exigências provenientes da gerência, que, em sua maioria, são vistas como

inconsistentes.

De modo geral, no terreno das trajetórias profissionais em CSMs não há indício

de crise, pois todos atuam em enquadre clínico tradicional. Apenas um dos

entrevistados trabalha no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e de alguma forma

podemos explorar esta questão se considerarmos a inclusão de atuações clínicas menos

tradicionais, previstas para este dispositivo substitutivo no cuidado em saúde mental,

que faremos em momento oportuno.

Por outro lado, considerando a fusão identitária psicólogo-psicanalista, podemos

explorar o fato de que, após garantia da função como psicólogo clínico, quando da

entrada em CSMs, ou mesmo em algumas UBSs, a partir da organização do trabalho no

152
modelo clássico, é o fato de poder estar mais ou menos psicanalista que pode causar

algum tipo de repercussão na atuação dos mesmos.

Nesta perspectiva, podemos articular a construção da identidade profissional dos

nossos entrevistados em dois momentos. O primeiro, quando descrito que a maioria

deles se dirigiu à área de saúde buscando, justamente, uma determinada ―identidade

profissional‖, pois estavam em crise de identidade na área de educação, como

percebemos também com os que trabalham nas UBSs. Esta crise com a atuação na área

de educação ou organizacional foi atribuída, muitas vezes, à impossibilidade de ―fazer

clínica‖, ou seja, por exemplo, na primeira área mencionada, de poder trabalhar aspectos

subjetivos que estão motivando as dificuldades de aprendizagem de crianças e

adolescentes, de modo mais sistemático e contínuo. No segundo momento, para os mais

afeitos à abordagem psicanalítica ou de base analítica, o trabalho em serviços de saúde

se configurou como um espaço para alicerçar o objetivo de tornar-se psicanalista tanto

para quem, inicialmente, não tinha consultório particular quanto para quem continuou

sem ter.

Nesta segunda perspectiva, podemos explorar as particularidades do estar

psicólogo-psicanalista em situações de trabalho em saúde pública, que de acordo com

os nossos entrevistados sempre foi uma prática que mereceu ajustes no enquadre, no seu

papel na direção do tratamento, culminando, em alguns casos, na busca de outras

abordagens teórico-práticas. O ajuste, a troca ou o incremento de técnicas parecem

decorrer da constatação de que o seu aporte técnico não lhe dá o suporte adequado,

embora não seja uma característica apenas dos profissionais que se orientam na

psicanálise. Uma das entrevistadas, por exemplo, diz ter sido necessário incluir leituras

e técnicas da gestalt, pois as técnicas sustentadas pelo referencial da psicologia analítica

153
junguiana não se traduzem em respostas adequadas para a demanda da clientela que

buscava o CSM.

Nas linhas seguintes, descreveremos as trajetórias profissionais considerando a

divisão por centro de saúde, apontando algumas particularidades institucionais das

mesmas que interferem na organização do trabalho e suas próprias singularidades.

7.1 AS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS NO CSM-F: desistência, desânimo, abertura

e conformismo.

No CSM-F foram reconstruídas cinco trajetórias profissionais, sendo aqui brevemente

apresentadas com os seguintes nomes: Paula, Lorena, Lígia, Dirce e Lindinalva. É

possível identificar algumas regularidades nas suas trajetórias: a) a maioria delas iniciou

a trajetória no serviço público de saúde na primeira metade da década de 1980; b) em

três delas a inserção na área de saúde mental ocorreu via hospital psiquiátrico, indo em

direção aos ambulatórios de centros de saúde mental, c) a maioria segue a orientação

teórico-prática psicanalítica, sendo que apenas uma delas nunca trabalhou com

pacientes psiquiátricos e diferencia-se das demais por se valer da psicologia humanista

rogeriana como abordagem.

O primeiro contato de Paula com a saúde mental é como estagiária no hospital

psiquiátrico. Inicialmente, como assistente social, trabalhou na internação e depois na

qualidade de psicóloga, sendo contratada para atuar no ambulatório, porque ―o

ambulatório era mais efervescente do que... não tinha ainda esse negócio do psicólogo

trabalhar com psicótico dentro dos pavilhões‖.

A entrada de Paula, em 1983, no serviço de saúde mental coincide com um

período descrito pela mesma como de ―muita efervescência‖ quanto à crítica à

centralização e aos efeitos do modelo hospitalocêntrico em Salvador. Por outro lado, a

154
sua narrativa enfatiza a força da psicanálise como campo teórico-prático que

impulsionou alguns psicólogos e psiquiatras a trabalharem tanto na internação como nos

ambulatórios dos hospitais psiquiátricos a partir dessa perspectiva. Como tinha

competência para trabalhar com psicótico, na curta internação, seu trabalho focalizava a

preparação para a ―alta do paciente, trabalhando na remissão do quadro e pela volta à

família de origem‖, junto com a equipe multidisciplinar.

No CSM-F trabalha no ambulatório e atende neuróticos e psicóticos. Considera

que recebe encaminhamento dos últimos para psicoterapia em decorrência da sua ―pré-

história‖. No entanto, podemos qualificar sua trajetória profissional de “desistência”.

Nos últimos dez anos, a entrevistada manteve-se afastada sem vencimentos do

ambulatório por ser muito solicitada em outras atividades mais rentáveis fora do serviço

público. Algumas das suas conclusões sobre a participação do psicólogo na assistência à

saúde mental valem a pena de serem relatados. Ela percebe que a entrada dos psicólogos

na assistência em saúde mental como sendo impulsionada por uma visão utilitarista e

não exatamente pela incorporação de uma maior complexidade em relação à

compreensão da loucura e do cuidado aos portadores de transtorno mental:

Inclusive eu posso lhe dizer que o próprio fato da reforma onde os psicólogos
entraram para atender psicóticos tanto no ambulatório quanto em internação,
eu não sei até que ponto era uma coisa de grandeza de pensamento, nem de
humanidade, nem de coração, nem de abertura ideológica não, porque
também na verdade, existia na época de que se mantém um psicólogo
fazendo psicoterapia, dando atendimento psicoterápico a um psicótico, e ele
consumindo menos medicação, sai mais barato, entendeu? [Paula Psi X-F: 22
anos]

No fragmento acima, encontramos ainda a percepção de que há benefício do

trabalho psicológico para a diminuição da medicação, ou mesmo de sua suspensão em

casos de moderados a leves, aspecto que é, também, encontrado em relatos de outras

entrevistadas, e interpretado como um ponto positivo da sua atuação, o que, muitas

vezes, é desprezado pelos gestores de unidades e pelos próprios distritos sanitários.

155
Lorena, em 1983, inicia sua trajetória pelos dispositivos de cuidado em saúde

mental, começando em um ―anexo psiquiátrico‖ (setor dependente e que, geralmente,

ficava nos fundos de um hospital geral) no interior da Bahia. A iniciativa de construção

de anexos psiquiátricos, início da década de 1980, buscou interiorizar e expandir a

assistência psiquiátrica na Bahia, no sentido de barrar o envio de pacientes para os

hospitais psiquiátricos, que se concentravam na capital do Estado, não apenas pelo custo

elevado que eles representam para o mesmo, mas também para evitar o crescimento do

abandono das pessoas com transtorno mental por suas famílias. No entanto, a visão da

entrevistada sobre os anexos psiquiátricos é de que se tratava de ―coisinhas pequenas no

fundo do hospital, onde fica bem isolado... é a coisa mesmo de isolamento‖. Além

disso, sinaliza o quão difícil era fazer um trabalho ―decente‖ em condições precárias e

reforçadas pela exclusão e isolamento do cuidado em saúde mental.

Lorena trabalha no CSM-F desde 1992, e é uma das poucas psicólogas a

expressar, em sua narrativa, que atende ―psicóticos e neuróticos graves‖, além dos leves,

orientando sua atuação a partir do referencial psicanalítico:

Então, hoje eu trabalho com psicóticos, mas mais com neuróticos graves e
alguns neuróticos leves que procuram o centro, né... Acho que a gente não
tem nenhum... nenhuma estrutura pra fazer um trabalho psicoterápico bom
aqui dentro. A gente faz um trabalho, que eu chamo muito mais de uma
psicoterapia de apoio. Apesar de a psicoterapia de apoio ser considerada uma
psicoterapia breve, eu tenho alguns pacientes que já têm mais de três anos
comigo, que eu não vejo condições de mexer, de afastá-los. Então, alguns, eu
mantenho. E esse, por exemplo, é um dos pontos de discórdia do trabalho
com a prefeitura, com o município, que não... no meu ponto de vista, na
minha maneira de ver, tem pouco conhecimento sobre psiquiatria e trabalho
com doente mental. Porque nós, aqui, não trabalhamos o deficiente mental,
nós trabalhamos o doente mental. Neurótico grave é um doente mental. Tanto
que as altas são... muito questionadas pelo distrito, porque são altas que ficam
muito demoradas... Eu tenho pacientes, por exemplo, que eu já dei alta e que
6 meses, 3 meses, 4 meses depois voltam, não bem, solicitam um retorno e eu
reabro a vaga. E... e... e questiono qualquer distrito que queira... interferir
nisso, porque eu acho que é um problema técnico, que só cabe a mim resolver
[Lorena Psi XI-F: 20 anos].

Outro aspecto que diferencia sua atuação das demais psicólogas é sua abertura

para implantar outro tipo de atividade de modo a obter maior resolutividade frente a

156
problemas que se tornam freqüentes. Há alguns anos atrás buscou desenvolver trabalho

conjunto extra-muro com uma outra profissional de saúde não psicóloga para

adolescentes, em uma escola próxima ao CSM-F, que, após dois anos, foi suspensa ―por

boicote‖ ou por ―falta de conhecimento, de informação do distrito [sanitário]‖, reflete.

Podemos considerar que sua trajetória de reprodução tende a uma certa abertura que

não encontramos nas demais trajetórias. No entanto, atualmente, como a maioria das

entrevistadas, atende individualmente adultos.

Dirce também está no CSM-F há 11 anos, tendo entrado em 1993. Antes de se

inserir na equipe do centro, trabalhou junto à Secretária da Justiça, nos presídios,

fazendo avaliação psicológica. Diferente das demais colegas de trabalho descreve, com

otimismo a construção da sua trajetória profissional.

Já era no [diz o nome do CSM], mas era dividido entre internamento,


emergência e ambulatório. E, no internamento, a gente se sentia um pouco,
assim, limitado, porque era aquela coisa: medica e deixa aí para ver como é
que fica, até passar a crise da, da, dessa, desse quadro psicótico nesse
paciente. Agora, com o advento do CAPS, mudou bastante a questão da visão
dos outros profissionais não médicos, né, nessa unidade. A gente agora se
sente atuante, todos têm a mesma responsabilidade, todos têm o mesmo
compromisso com a unidade. Aqui ninguém sabe mais do que o outro, assim.
A gente trabalha bastante em equipe, então, eu acho, o que eu percebi foi
uma evolução na comunicação entre os colegas, né. Nessa equipe mesmo que
se chama interdisciplinar. Antes era multi, agora é inter porque se troca as
informações, não é. Antes era multi, porque se tinha vários profissionais,
agora é inter, porque se tem vários profissionais e se comunicam. [Dirce, Psi
VIII-F: 19 anos].

Olha, quando eu vim para cá, a gente tinha uma visão ainda bem do médico
saber tudo, assim, daquele que tem o suposto saber, né, que o médico tem
aquela, a questão de Lacan que é aquele sujeito que sabe. Os psicólogos são
aqueles que supostamente sabem, né, [Dirce, Psi VIII-F: 19 anos].

Dirce demonstra maior receio em expor as dificuldades enfrentadas no cotidiano

do serviço, aspectos institucionais negativos que aparecem na maioria dos nossos

interlocutores com interferência na qualidade do atendimento oferecido à população.

Ela constrói um discurso escorregadio, retórico e se esquiva das perguntas dirigidas,

apegando-se em frases prontas. Reconstrói suas experiências ao longo da entrevista

157
abusando do ―nós‖, ―a gente‖, ―o psicólogo‖; raramente utiliza a primeira pessoa do

singular. Quando o faz, tem uma visão bem positiva da atuação de todos que trabalham

neste CSM-F, fugindo um pouco do teor encontrado nas outras entrevistas e nas visitas

realizadas e conversas informais. Em relação à atividade que desenvolve no

ambulatório, a psicoterapia de base psicanalítica, descreve sua trajetória que

caracterizamos como de reprodução conformista, pontuando alguns limites

decorrentes de especificidades inerentes à população atendida e do impacto dos

dispositivos institucionais que interferirem na sua atuação.

Por sua vez, Lígia que fez formação em psicoterapia psicodinâmica infantil e

estudou psicanálise, desde 1983, trabalha em serviços públicos de saúde mental. Antes

de pedir transferência para CSM-F, trabalhou em outros centros, no setor de psiquiatria

infanto-juvenil, onde ficou mais ou menos cinco anos. Ao longo desses anos,

inicialmente, trabalhou na curta-internação, no ambulatório, e participou da implantação

do centro de atenção psicossocial (CAPS), em 1997. Atualmente, participa da equipe

multiprofissional deste dispositivo terapêutico. As dificuldades em lidar com os

dispositivos institucionais, falta de infra-estrutura mínima, superlotação de usuários e os

demais problemas levantados pela interlocutora nos faz pensar numa trajetória

profissional de desânimo frente à repercussão em sua atuação:

Quer dizer, a gente sente, assim, que a municipalização não chegou pra
beneficiar mais do que o Estado beneficiava. Muito pelo contrário! A gente
sente, assim, muita dificuldade, muita dificuldade... e, hoje em dia, por
exemplo, se você pede material pras oficinas, demora pra chegar, ou não
chega... você ‗tá com um número grande de usuários, mais de 60 usuários...
tem usuário que é o turno integral; tem usuário que é meio período – só
manhã, outros só à tarde – dependendo de cada caso, né, se tem necessidade
de você observar ele o dia todo, se ele ‗tá mais... vamos dizer assim... doente
naquela época e você precisa dele ali pra observar, ou se ele não tem
condição de ficar em casa, se a família não tem como mantê-lo, às vezes você
precisa ficar com ele... mas a verdade é que, então, você precisa de ma... de
cadeira, de... outras coisas que a gente precisa e pede e não vem, e não vem,
certo Então, o que a gente nota e eu ‗tô notando agora, nesse momento atual,
o seguinte: entrando muito... muita triagem sendo feita, eles cobram uma
certa (TI) “e cadê as condições mínimas pra trabalhar ” Eu ‗tô numa sala
que não tem ventilador; então, é muito calor. Se eu for trabalhar com um
doente grave, e ele já é inquieto, já é ansioso e ali ‗tá calor, como é que eu,

158
psicóloga, vou trabalhar... fazer um trabalho individual com ele; ele não
agüenta cinco minutos! (Hum...). eu acho que se tivesse uma situação de...
um ventilador, um ar condicionado, tal, talvez... é... ele ficasse mais calmo,
né; até a gente sente o calor!, imagine ele, que é ansioso, que é agoniado, e
‗tá numa sala com...calor, certo Então, precisa muita... a gente pede e eles
dizem que vão mandar e não vem. Então, eu, como profissional...eu ‗tô
falando por mim, não ‗tô falando pelos outros, me sinto desestimulada [Ligia
Psi XII-F: 20 anos].

Nos relatos de Lígia sobre as possíveis atividades pertinentes ao modelo CAPS

de assistência à saúde há a percepção da necessidade de incorporação de outras

estratégias como: visitas domiciliares, inclusão dos familiares do usuário no processo do

seu tratamento e a realização de atividades fora do CAPS. Além disso, ela defende que

as oficinas terapêuticas e/ou trabalho em grupo deveriam ser realizados por mais de um

profissional de áreas diferentes, pela dificuldade do manejo de pacientes graves.

Nas discrições, a partir de situações concretas, que expressam algumas das

atividades concernentes à atuação psicológica por ela desenvolvida no CAPS, há uma

visão de que o psicólogo deve ampliar sua atuação, não se restringindo ao atendimento

individual, que deve incluir na sua escuta a família, que deve ir atender onde o usuário

estiver. Além disso, há uma preocupação de considerar as condições sociais que

influenciam na expressão do sofrimento psíquico. No entanto, chama atenção o fato da

atuação psicológica ter sido qualificada como ―bate-papo‖, ―conversa‖, termos

muitíssimo simplórios para qualificá-la, o que no mínimo merece algumas

considerações em relação à possibilidade de banalização do tratamento psicológico

no dispositivo CAPS, ao menos, o realizado a nível individual, sem que

necessariamente atribuamos esta característica a postura da entrevistada.

É importante atualizar aqui alguns pontos da discussão realizada por alguns

autores (GOLDBERG, 1994; BEZERRA-JÚNIOR, 2001; TENÓRIO, 2001),

apresentados no capítulo três, sobre o lugar da clínica e da sua relação com as ações

extra-clínicas no campo de intervenção psicossocial. Este é um aspecto enfatizado de

159
modo contundente em Tenório (2001), que é um dos autores que reforça a necessidade

de buscar desmedicalizar e subjetivar o sofrimento psíquico, lembrando, inclusive

que a clínica da reforma não deve conduzir à vulgarização da escuta e da clínica do

sujeito, que tem dissolvido sua força terapêutica, desde a implantação dos ambulatórios

como alternativa para fugir da iatrogenia dos internamentos em hospitais psiquiátricos.

Nesta direção, o autor lembra que os dispositivos CAPS podem ser uma alternativa se

conseguirem a conjugação por ele indicada.

A banalização do tratamento psicológico, sugerida no relato da entrevistada,

representa uma preocupação corrente na literatura, que, no caso, aponta para

subvalorização da clínica psicológica (BEZERRA-JÚNIOR, 2001). Primeiro, no que

concerne à falta de clareza do papel e importância da atuação psicológica, ou da própria

garantia de atendimento clínico psicológico para os usuários do CAPS, ao enfatizar a

perspectiva da reabilitação psicossocial. Segundo, e mais importante, no momento em

que há ligação entre atuação psicológica e o ―bate-papo‖ corre-se o risco dessa atividade

perder sua função psicoterapêutica, se esta ―conversa‖ for tomada como um

procedimento clínico. A noção de clínica ampliada, se bem utilizada, não deve

fragilizar a força psicoterapêutica do encontro usuário-profissional seja dentro ou fora

do setting tradicional (BEZERRA-JÚNIOR, 2001).

Por outro lado, Lindinalva insere-se no CSM-F em 1983. Tem orientação teórica

em psicologia rogeriana diferente da maioria das suas colegas de trabalho, no entanto,

não percebe isso como algo que lhe trouxesse problemas em relação ao contato

profissional com as mesmas. Ao entrar neste centro, propôs atendimento individual para

crianças e adolescentes, absorvendo a demanda dos ―problemas escolares‖, muito

freqüentes até hoje. Sua proposta de trabalho foi bem aceita pelas várias diretorias às

quais esteve submetida, ou melhor, às quais ela não se submeteu:

160
E, até agora, graças a Deus, nunca tive problema não. E, se tiver, vai ser uma
complicação, porque eu não vou atender mal ninguém. Vai ser complicado!
Sou capaz até de pedir demissão. Mas, assim... eu não me submeto a isso.
[Lindinalva Psi VII-F: 18 anos].

Sua crítica refere-se aos dispositivos institucionais, tais como: produtividade,

medida a partir do número de atendimentos realizados, que tem como conseqüência a

baixa qualidade do serviço, aspectos ressaltados pela maioria das interlocutoras. A

entrevistada assumiu uma postura de trabalho autônomo, típico de uma trajetória de

reprodução: acabou com a lista de espera, faz a triagem da sua clientela. No entanto,

incorpora nas suas narrativas preocupações com as condições de vida da população que

influenciam na sua saúde mental e é enfática nas críticas atribuídas à organização da

assistência no município. Não lida com problemas psiquiátricos, neste sentido tem

pouco contato com os psiquiatras e com os usuários psicóticos e neuróticos graves. No

entanto, a sua visão em relação ao modelo que prevalece neste contexto, lê-se abaixo:

o modelo que a gente enfrenta, que a gente trabalha é o modelo médico.


Então, tá mudando, tem melhorado [..] mas quem está levando são os
médicos. Tudo é feito em função dos médicos. A produtividade é em função
dos médicos. Então, são eles que são os todos poderosos aqui. Eles pensam
assim, se eles não existissem aqui, isso aqui não andava, ninguém recebia
dinheiro, ninguém recebia produtividade, se eles não estivessem trabalhando.
Porque ele é quem produz e aqui, mais ninguém. O trabalho da gente é um
trabalho porcaria, não é importante, entendeu. Então o modelo médico é o
que é visto. Então, os padrões são todos médicos, as consultas eles não
atentam que os psicólogos atendem em hora marcada, em tempo marcado e
que é aquele número certo por dia e tá acabado. Você não modifica, você não
tem consulta médica de hoje chegou fulano, não chegou, então atende o
próximo. Não, eles querem mais ou menos esse modelo aqui, de você atender
7, 8, 12 pacientes e um novo. Como é que você vai ficar tendo um novo todo
o dia? Pra quem? Vai atender novo pra quê? Em que horário? Impossível, né.
O trabalho da gente é um trabalho completamente diferente, quer dizer, o
funcionamento da gente é diferente. Isso não é muito bem, muito visto. Não é
visto, não se preocupam muito com isso, porque nós somos para-médicos,
entendeu. [Lindinalva, Psi VII-F: 18 anos]

Os aspectos apontados, tão claramente, na narrativa acima, sintetizam muito do

desconforto dos psicólogos frente ao modelo médico hegemônico, que tem

caracterizado a organização da assistência em saúde mental e que não são menos

importantes no processo de construção das trajetórias profissionais.

161
7.2 AS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS NO CSM-G: abertura e conformismo

No CSM-G reconstruímos três trajetórias profissionais denominadas de reprodução,

tratam-se das histórias de Bruna, de Roberta e de Guilherme. Bruna entrou no serviço

público em 1983, atuando no setor de recursos humanos, por seis anos. Pediu

transferência para um centro de saúde mental, no intuito de atender a população, quando

começou a fazer sua formação na clínica psicanalítica. Há 14 anos atua no referido

centro em psicoterapia individual e em grupo para adultos. No entanto, no momento da

entrevista sinalizou seu movimento de ir atuar em um hospital geral, o que implica em

voltar a se vincular à SESAB e deixar de lidar diretamente com as freqüentes

dificuldades que o processo de municipalização tem imposto aos profissionais que estão

na ponta da rede, queixa unânime entre todos os entrevistados, incluindo aqueles dos

outros centros.

No CSM-G a interlocutora passou pela angústia, inicialmente, de ver que existia

uma evasão muito grande dos pacientes e que isso merecia maior atenção, uma vez que

os motivos não lhe eram muito claros. Neste sentido, fez um pequeno levantamento

sobre as razões, e relata seus achados com as seguintes palavras:

pacientes não tinham conhecimento do que era terapia, como é que


funcionava, por que ele tava ali, vinham porque o amigo indicava, porque o
médico dizia que ele tinha que ir,então é isso, e vinha e, muitas vezes, ele não
queria. Ele só queria falar o que tava passando na mente, falou, se sentiu
melhor, vai embora ou porque não tenho dinheiro pra pagar toda semana
[transporte] [Bruna, Psi XIV-G, 20 anos].

Sua trajetória de reprodução conformista apresenta uma certa abertura no

sentido de buscar respostas para as dificuldades institucionais e clínicas enfrentadas no

cotidiano do centro, mas ainda não inclui um questionamento efetivo em relação à

resolutividade da psicoterapia individual de base psicanalítica, que desenvolve como

162
atividade principal para as características apresentadas pela população extremamente

carente que atendia. Senão por ter introduzido novas intervenções, pois que incorporou

o trabalho em grupo, esta abertura ainda não coincide com uma maior reflexão sobre os

limites e alcances da própria atuação. Atualmente oferece psicoterapia individual e em

grupo para adultos (não psicóticos).

Por sua vez, Roberta entrou no serviço público pela Secretária da Educação

permanecendo durante oitos anos, entre 1986 a 1994. Solicitou transferência para o

CSM-G porque sempre teve o desejo de trabalhar com psicologia clínica. Neste terreno,

fez análise pessoal com referencial psicanalítico, além de se especializar em

psicopedagogia. Atualmente, faz mestrado em ciência da família e participa de grupo de

estudo em psicologia analítica junguiana, tendendo a mudar de orientação para o

desenvolvimento da sua clínica. Abaixo Roberta descreve sua entrada:

Quando eu cheguei aqui, eu já cheguei assim, ia fazer trabalho com crianças,


ia fazer trabalho com... de psicoterapia mesmo. E tinha outros psicólogos,
então a gente sempre, mesmo que informalmente, sem ser uma reunião, eu, a
gente sempre trocava experiências, às vezes uma falava com a outra... Teve
uma época que nós tivemos aqui grupos mesmo de reunião pra decidir
determinadas coisas no setor de psicologia, né, então é... Agora, cada uma
tinha um jeito de trabalhar e como no [diz o nome da CSM] a gente faz um
trabalho mesmo de psicoterapia, então, é... cada um fica um pouco na sua
sala, separadamente, né, mas sempre, né, a gente conversava um pouco, mas
ninguém... Quando eu cheguei aqui ninguém disse assim: cê tem que
trabalhar dessa forma, daquela forma, não, né. [Roberta, Psi XIII-G, 17 anos].

Durante os nove anos no CSM-G, sendo que nos últimos dois anos ela esteve de

licença médica, Roberta narra sua trajetória profissional de reprodução conformista,

desenvolvendo psicoterapia individual e em grupo com adultos (não psicóticos),

excluindo o trabalho psicoterapêutico com crianças, por não poder mais realizar os

manejos corporais que a tarefa exige.

A trajetória profissional de reprodução de Guilherme é também fortemente

marcada pelo conformismo. Ele está no CSM-G há 17 anos, desde 1989, tendo vindo

―diretamente para essa e aqui estou até hoje‖. Quanto às atividades que desenvolve, diz

163
que ―a gente faz de tudo, faz aconselhamento, faz orientação, faz psicoterapia, faz o que

chega‖, porque a clientela é variada, também não atende com freqüência psicóticos. Não

relata maiores dificuldades para realizar seu trabalho, tem uma visão positiva do centro:

Olha, eu não, eu não sei lhe dizer, porque eu não sinto dificuldades assim. Eu
acho que você ... veja só eu venho pra qui pra esse Centro, eu tenho minha
sala, eu tenho meus clientes, certo. Eu trabalho com quem chega, chega meus
clientes aqui, eu vou trabalhando, eu num ... eu num ... eu não tenho outras
dificuldades. As instalações estão boas, ótimas, certo, a partir daí você pode
desenvolver qualquer trabalho, eh ... você tem um horário que você tem que
cumprir porque ... é de praxe e tal e ... pronto você tem sua clientela. Num
tem dificuldades, não existe dificuldades, não existe dificuldades outras, né!?
[Guilherme, Psi XV-G: 17 anos]

Guilherme tem um discurso muito objetivo e não é de muitas palavras. Sobre a

linha teórica que orienta a sua atuação relata:

(gargalhadas) Eu já esqueci, olha, eu não sei, eu procuro usar o que eu


aprendi, tudo, né. Eh, eu acredito que eu tenha uma postura mais assim ...
mais existencialista, mais uma coisa mais pra o presente, pra o futuro, né, não
tenho assim uma postura muito ... eh... eh ... psicanalítica, uma coisa de
procurar no... né... uma coisa mais prática, do presente pra o futuro. Então me
coloco mais numa linha existencialista mesmo. [Guilherme, Psi XV-G: 17
anos].

De modo geral, as três trajetórias profissionais reconstruídas pelos interlocutores

no CSM-G, aparentemente, lidam com certa tranqüilidade com os dispositivos

institucionais, possivelmente por contar com maior liberdade para organizarem o

trabalho nos moldes da clínica tradicional e pelo caráter flexível da gestão.

7.3 AS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS NO CSM-G: conflito, desilusão e abertura

As trajetórias profissionais de reprodução, construídas ao longo dos quatro anos de

reinstalação do CSM-H, estão marcadas pelo conflito com a gerência da unidade, pela

desilusão dos psicólogos frente à desvalorização do seu trabalho e pelas incertezas

frente à implantação de um CAPS, na mesma área do centro, aspectos que aparecem nas

três trajetórias construídas por Bruna, Priscila e Neuza. O pano de fundo organizacional

desfavorável à inserção dos profissionais de psicologia, a não familiaridade por parte de

alguns profissionais e da gerente dos procedimentos para organização da atuação

164
psicológica, a altíssima procura de usuários naquele território em busca de tratamento

psiquiátrico servem de contraponto, atualizando questões adormecidas ou naturalizadas

nos outros centros de saúde mental.

Carla, diferente das outras duas colegas de profissão, entrou no CSM-H antes da

mudança para o local atual, período que coincide com uma gerência mais flexível. Neste

primeiro momento, o desafio principal decorre da descoberta de que boa parte da

população que procurava o serviço ―não se adequava bem a terapia individual‖. A

alternativa foi fazer trabalho em grupo, contando com ―liberdade‖ da gerência. Além

disso, cogitou o ―trabalho interdisciplinar‖, sendo claramente avisada da

impossibilidade de realizar atividade em parceria direta com qualquer outro

profissional.

Na época não era a gerente atual, era um gerente né, bom, na realidade, na
época, eu tinha pouco contato com ele, porque eu trabalhava no turno da
tarde, e ele só pela manhã, então a gente eventualmente numa reunião
mensal, ou em alguma outra situação, a gente se via. Ele colocou pra mim,
ele disse ―você faz o que você quiser, né, a gente não tem um referencial, a
gente não tem uma proposta, faz o trabalho então assim, foi uma colocação
assim, contanto que você cumpra carga horária e cumpra aquele número x de
atendimento, você vai fazer e vai determinar‖, isso a princípio né, com a
mudança de gerência, a coisa mudou um pouco no sentido assim, aumentou a
nível de exigência, houve uma cobrança maior nessa questão de atendimento
em grupo [produtividade] [Carla, Psi XVII-H 4 anos]

No segundo momento, a transferência de gerência aumentou ainda mais suas

dificuldades de inserção e de organização do trabalho, somado a alta procura de

usuários e sua inadequação ao trabalho psicoterapêutico de base analítica, que, ao ser

realizado no contexto dual, é agendado quinzenalmente. Carla tem formação em

psicologia analítica junguiana, mas teve que adequar seu aporte teórico prático frente às

realidades da clientela e da própria organização encontradas nos dois momentos no

CSM-H, oferecendo tratamento individual e em grupo (não psicóticos).

Então a minha entrada foi assim, então o local que tinha pra ir é esse, né
então vá pra lá, se apresente e a, ao me apresentar, eu me dei conta dessa
realidade, de que não tinha nada estruturado, então foi uma adaptação, assim,
até porque assim, era uma população que não tinha a menor informação do

165
que era um serviço de psicologia, o que era um psicólogo, vinha procurar o
psicólogo em busca de medicação. Então assim... teve que se trabalhar
também esse lado, de explicar a necessidade do atendimento, a importância
de se ter, o que é que era, né ,de um esclarecimento nesse sentido assim,
então foi assim, pela realidade do local, junto a isso tinha um cronificação
muito grande de pacientes, tinha a questão financeira que é fundamental na
população que você atende, então eu não pude aplicar o meu conhecimento
de psicoterapia, aí eu tive que modificar assim, tá trabalhando às vezes com
psicoterapia de apoio, às vezes psicoterapia breve, em alguns momentos tá
trabalhando a questão do suporte mesmo familiar e tal. Então teve que, eu
tive que me moldar a essa comunidade, a esse atendimento, entendeu, não foi
uma coisa que eu trouxe conhecimento e apliquei, eu tive que reformular
completamente, assim, minha experiência e meu conhecimento teórico pra
essa realidade. [Carla, Psi XVII-H 4 anos]

Priscila entrou na área de saúde em 1999, ficou durante alguns meses no nível

central administrativo da SMS. Solicitou transferência para o serviço de ponta, porque

começou a sentir uma necessidade de ―atuar de fato‖, neste caso ―fazer clínica‖, desejo

que vinha desde a formação em psicologia. Orienta sua atuação no referencial

psicanalítico, desenvolvendo psicoterapia individual com adultos (não psicóticos), não

trabalha com grupos, apesar das freqüentes solicitações da gerência, que, do seu ponto

de vista, tem como objetivo apenas controlar o número de usuários e que exclui das suas

preocupações a qualidade do atendimento e o respeito pelo tipo de atuação que cada

profissional de psicologia pode realizar. O relato sobre a sua entrada lê-se abaixo:

Olha, eu pedi até pra vir pra essa unidade, porque eu já sabia que tinha uma
carência de profissionais, só tinha psicólogos aqui, eu me surpreendi, na
verdade, eu achava que as coisas funcionassem de uma forma assim, mais
facilitada para o profissional, né. Essa coisa só de você, é uma coisa mesmo
de bom senso, mas aí eu me deparei com uma dificuldade muito grande
[risinhos] que era o número de pessoas, que a gente não tem flexibilidade por
parte da gerência, a gente tem discutido tudo isso, mas a gente não encontra
nenhum apoio nesse sentido. Eu vim pra clínica, eu quis vir não só... bom, eu
saí de lá [nível central da Secretaria], uma situação confortável, confortável
em termos de local, né, trabalhar com ar-condicionado, horário, tinha uma
série de comodidades, o volume de trabalho também, então eu vim por gostar
de atender em clínica, então eu me vi uma situação que eu era muitas vezes
obrigada a interromper o atendimento antes da hora, por quê? porque tem um
monte de gente lá fora esperando, tem um número de pessoas muito além do
que o tempo que a gente dispõe comporta, a qualidade versus quantidade, a
unidade quer quantidade. [Priscila, Psi XVI-H: 4 anos].

Neuza entrou na área de saúde em 1999, ficou dois anos em uma unidade básica

de saúde trabalhando no nível de prevenção DST/AIDS, solicitou transferência ao saber

166
da inauguração do CSM-H, pois já tinha experiência profissional prévia em um centro

de convivência em saúde mental:

Então, inicialmente, eu vi todo espaço do centro, e tinha essa idéia da criação


do CAPS, né, que na minha cabeça, era parecido um pouquinho com o centro
de convivência onde eu tinha trabalhado, então fiquei assim animada. Mas,
quando a gente inicia o trabalho no ambulatório, com toda aquela estrutura
institucional, né, rígida, que eu acho que ali tem essa rigidez, me decepcionou
um pouco, né, porque você entra naquela rotina e fica muito sem espaço pra
discussões mesmo de como poder melhorar aquele trabalho, como é que pode
ser diferente. Então você acaba entrando naquela rotina de dar conta do
atendimento, o que é uma loucura, [risos] é uma contradição assim... É a
gente querer trabalhar saúde e você também, ao mesmo tempo, termina
entrando num processo meio que de loucura pra poder dá conta, porque é um
lugar onde a quantidade é mais valorizada do que a qualidade do seu serviço.
Então isso foi uma coisa que ficou muito claro na medida em que eu fui, com
o passar do tempo ali dentro, né. E a questão do discurso, quando eu cheguei,
então, e tive contato com a gerência. E aí assim, e aí você... eu pelo menos
percebi assim, que na fala tem uma abertura, com a visão mais ampla do que
é saúde mental, como é que deve ser, mas, na prática, ainda está muito
distante. Então, eu, na verdade, assim, eu me decepcionei um pouco com esse
lado da, da... organizacional mesmo, e da estrutura que está montada lá. E
hoje assim, chegaram esses novos profissionais, com a intenção da criação,
né, e implantação do CAPS, mas assim, a gente ainda percebe que, apesar de
teoricamente ―ah, tem que mudar os paradigmas, a gente deve adotar um
novo modelo de atenção à saúde mental‖, mas é uma coisa que não se faz da
noite pro dia. Então a gente percebe que a cabeça ainda está naquele modelo
antigo [Neuza, Psi XVIII-H: 4 anos].

Atualmente Neuza atende individualmente adolescentes, adultos neuróticos e

psicóticos, a partir da abordagem sistêmica, mas já incluiu entre suas atividades o

trabalho em grupo para ambas clientelas. Mostrando uma certa abertura para

organização da sua atuação, no CSM-H propôs e realizou, durante um período, trabalho

de grupo em parceria com uma terapeuta ocupacional, que foi aceito pela gerência, mas

interrompido apenas por questões burocráticas (relacionadas à impossibilidade de

registrar o número de usuários atendidos por causa do mau funcionamento do seu cartão

de registro de atendimento).

Além disso, o relato de Neuza transita entre o convite para a possibilidade de

reflexão sobre o novo e a constatação do peso da estrutura rígida imposta pelo

fornecimento exclusivo do tratamento ambulatorial. No caso da atuação psicológica,

como veremos, pode também ter conseqüências significativas, que precisam ser

167
repensadas, principalmente se queremos contribuir com práticas pertinentes ao ideário

reformista a partir da implementação de novos dispositivos terapêuticos de saúde

mental.

Do ponto de vista dos psicólogos, podemos considerar o CSM-H o contexto de

trabalho mais problemático dos três visitados. De modo geral, os psicólogos sentem-se

desvalorizados, desiludidos e cobrados no trabalho a partir de critérios que julgam

pouco adequados à natureza da atuação psicológica. Neste sentido, percebem que a

gerência não considera os parâmetros técnicos para atribuição de alta no tratamento

psicoterapêutico, da duração e número de sessões necessárias para o manejo da

subjetividade, do significado da falta do usuário ao atendimento, percebendo-o apenas

como momento de ociosidade do profissional, o que justificaria a sua imposição de

organizar o trabalho de psicologia nos mesmos moldes da assistência psiquiátrica

desenvolvida pelos psiquiatras. Esses aspectos não aparecem como a mesma intensidade

nos CSM F e G, mas não são totalmente inexistentes.

Um procedimento institucional muito significativo que aparece de modo

contundente nas três trajetórias profissionais reconstruídas é a repercussão do processo

de triagem para a atuação psicológica. Um aspecto diz respeito ao tipo de problema

apresentado pelo usuário encaminhado para o atendimento psicológico pela triagem

que, de modo geral, é visto pelas psicólogas como equivocado, pois que não se

qualificará como demanda para tratamento psicoterapêutico.

No CSM-H, diferentemente dos encaminhamentos do demais centros, é comum

o encaminhamento de psicóticos ou descompensados para psicoterapia, mesmo para os

profissionais que a priori não os inclui como clientela, e dos menos afeitos ao discurso

da intimidade, da auto-reflexão. Neste sentido, parece que aqui ainda não se efetivou a

168
hierarquização da clientela por formas típicas de sofrimento psíquico (NICÁCIO,

1996).

Por outro lado, há uma certa expectativa dos psicólogos que os

encaminhamentos sejam mais próximos a um modelo de sujeito psicológico, composto

de pessoas mais aptas a tematizarem verbalmente o sofrimento, embora possam

paralelamente fazer uso de psicofármacos. Expectativa constantemente frustrada uma

vez que ainda contam com a busca da população mais pobre e menos escolarizada de

Salvador, que aflui do subúrbio ferroviário, diferentemente dos demais centros (de

algumas UBSs) que já contam com a ―classe média empobrecida‖.

Por um lado, a análise dos problemas decorrentes do encaminhamento ainda se

centraliza muito na falta de formação dos profissionais que realizam a triagem, que são

vistos como pouco treinados para a assistência em saúde mental, ao encaminharem

pessoas pouco aptas ao trabalho psicológico, aspecto que não pode ser descartado, mas

que não o esgota.

Nunes (1993) descreve o papel da triagem em um centro de saúde mental54 que

serve de contraponto para a discussão aqui tecida, já que entrevistou os profissionais

diretamente envolvidos com a triagem. Nesta época, era o setor de enfermagem

responsável pela triagem, os pacientes que tinham uma demanda já elaborada eram

encaminhados para a especialidade solicitada, cabendo ao profissional indicado o

acolher a partir dos seus próprios critérios. Este também era o procedimento para os

encaminhamentos externos. Por outro lado, aqueles que não se encaixavam nestas

categorias eram encaminhados, considerando a ―suspeita diagnóstica‖: os psicóticos,

epilépticos e oligofrênicos para os psiquiatras, os neuróticos para os psicólogos. Nesta

54
O centro estudado pela autora, na década de 1990, coincide com um dos serviços que forma nosso
campo de estudo, o CSM-G.

169
avaliação, levava-se em conta, os sintomas referidos, o uso anterior de medicamentos,

bem como um possível histórico de internação.

Particularmente, as indicações para psicoterapia são importantes de serem

retomadas do ponto de vista dos triadores, uma vez que se coadunam aos dos próprios

psicoterapeutas, passando pela condição sociocultural dos usuários, mas que aí não se

finda, além da sua capacidade de ―verbalizar o que sente‖, ―ter insight‖, de ter um certo

―nível cultural‖. Reproduzimos uma fala abaixo pela riqueza dos seus argumentos para

a nossa discussão:

Então você [o triador] se pergunta: que tipo de pessoa você poderia fazer
realmente uma terapia que fosse produtiva, que fosse uma coisa que você
achasse daria condições dele sair daqui mais preparado, se sentindo mais apto
pra enfrentar esse tipo de coisa [citações anteriores de problemas
socioeconômicos], né? E é muito relativo, não tem formula, nem tem aquela
coisa certa. Eu acho que vai muito da conversa, da hora que ele te expõe o
problema dele, do nível cultural dele, que eu acho importantíssimo, porque
você tem muitas pessoas que não têm nem escolaridade, né? Mas que têm um
insight bom, saca as coisas e têm condições realmente de verbalizar o que
sente, etc e tal e você que tem condições de você encaminhar pra psicoterapia
(...). Pois é, exatamente com menos cultura, com menos poder aquisitivo, mas
que você acha que vai dar um bom rendimento. Já têm outros que você vê
que não tem a menor condição. E as poucas tentativas assim que às vezes a
gente faz, você vê que não têm um rendimento muito bom. As pessoas: ―não,
eu não quero isso, eu vim aqui pra, pegar um remédio, eu quero um
remédio‖, porque acreditam que a força maior é a força de um remédio, né?
O remédio que vai curar, o remédio que vai ajudar‖ [relato da enfermeira que
faz a triagem] (NUNES, 1993, p. 135).

De acordo com Nunes (1993), nas falas dos profissionais que faziam a triagem, o

―ser pobre‖ aparece como um fator de ponderação na eleição dos usuários, mas do que

de impossibilidade de acesso à psicoterapia. Considerando os nossos dados e as

discussões trazidas pela referida autora, as controvérsias sobre quem é competente, ou

não, para psicoterapia começam, no primeiro momento, na triagem e, no segundo, no

próprio encontro clínico. A princípio, não há como ter garantia nos dois momentos em

relação aos benefícios desse recurso terapêutico para o usuário. E essa garantia é

possível?

170
No entanto, os psicólogos entrevistados, de certo modo, tentem a responsabilizar

muito este primeiro momento pelo insucesso do seu trabalho com o usuário. O mais

importante é que parece escapar dos profissionais de psicologia uma crítica mais

consistente dos limites e alcances da sua própria atuação, balizada em um determinado

modelo de subjetividade universal advindo do ideário individualista (COSTA, 1989;

BEZERRA-JÚNIOR, 1993; FIGUEIREDO, 1995). Há uma percepção de que algo está

fora da ordem, e que culmina no oferecimento de outras técnicas, a exemplo do trabalho

em grupo, que, como vimos, pode recorrer nos mesmos equívocos sobre a concepção do

fenômeno psicológico (COSTA, 1989; BEZERRA-JÚNIOR, 1993).

Um outro aspecto que merece ser destacado é a busca de identidade profissional

através da garantia da atividade psicoterapêutica seja no setting individual como no

trabalho em grupo. No CSM-H é incentivado pela gerência e oferecido por profissionais

não-psicólogos trabalho em grupo, comumente confundido com o trabalho de grupo

psicoterapêutico que só os psicólogos tem competência e habilidade para

desenvolverem, decorrentes da singularidade da sua formação. Este tipo de preocupação

também foi desenhada em outros serviços, a exemplo do CAPS, cujas atividades

desenvolvidas incluem oficinas e trabalho em grupo, passíveis de serem coordenadas

por diferentes profissionais.

171
8. ESCUTA, DEMANDA E NECESSIDADES PSICÓLÓGICAS: o que se pode ler

sobre quem se ouve, ou o que se pode oferecer a quem se ouve?

―Demanda‖ é um jargão caro ao campo de atuação psicológico e a referência dos

entrevistados a este termo se mostrou muito significativa nas suas reconstruções de

trajetórias profissionais. Identificamos alguns dos usos feitos pelos psicólogos e

buscamos descrever e entender os significados que lhes são atribuídos pelos mesmos.

ESQUEMA 01

ESCUTA PSICOLÓGICA

DEMANDAS NECESSIDADES
PSICOLÓGICAS
DE TRIAGEM PSICOLÓGICAS
MÉDICA
ESPONTÂNEA PODER CONTRATUAL PSICOTERAPIAS
DIFERENCIADA LINGUAGEM DA INTIMIDADE INDIVIDUAL
DE GRUPO

SELEÇÃO SOCIOCULTURAL

Nesta direção, destacamos na nossa análise alguns das noções e conceitos

utilizados para compreender as relações entre as demandas e as necessidades de

atendimentos psicológicos, ao tempo que introduzimos a nossas próprias categorias

(ESQUEMA 01). Antes disso, apresentamos brevemente algumas das definições sobre

demanda, encontradas na literatura especializada, que podem alicerçar a análise dos

dados empíricos. É importante ressaltar que estaremos privilegiando, na identificação

das variações desse termo, os significados atribuídos pelos entrevistados, no seu

cotidiano, ainda que não neguemos que, sendo profissionais, a utilização que fazem dos

mesmos se orienta também por essa literatura.

No âmbito da psicologia, sem a preocupação em especificar a orientação teórica,

é muito comum utilizarmos o termo demanda para nos remetermos aos motivos que

172
conduzem as pessoas a buscarem atendimento psicológico, ou, mais importante ainda,

às razões que sustentam o sujeito no processo psicoterapêutico. A seguir, destacamos a

definição de uma das vertentes da psicologia clínica, a psicanalítica 55, a principal

orientação teórica dos nossos entrevistados.

Lacan (1999), assumindo a influência freudiana, propõe a seguinte distinção

entre demanda, necessidade e desejo. O autor atribui à necessidade um objeto

monótono, no sentido de que apenas um objeto específico satisfaz a necessidade que

está ligada a questões somáticas. A demanda está sempre direcionada a um outro e

assim é interceptada pela linguagem que é simbólica. Desta forma, a demanda apela

para a satisfação de necessidades, mas vai além de todas estas satisfações, constituindo-

se sempre como demanda de amor incondicional. Isto porque ―almeja obter do Outro

uma presentificação essencial – que o Outro dê o que está além de qualquer satisfação

possível, seu próprio ser, que é justamente o que é visado no amor‖ (LACAN, 1999, p.

418). O desejo visa a satisfação de si próprio, assim, a rigor almeja o desaparecimento

do Outro, e neste ponto é que se apresenta a diferença básica entre o desejo e a

demanda, já que a última é direcionada ao Outro. Diante do incondicional da demanda,

cada vez mais exigente de amor, surge o desejo como condição absoluta que exclui o

Outro e visa sua própria satisfação, determinando uma certa independência do sujeito

em relação ao Outro. O desejo irá exprimir o início da autonomia do sujeito (LACAN,

1999).

Do ponto de vista psicológico, a demanda psicológica, circunscrita apenas ao

sujeito que está em busca ou em análise, sempre terá um caráter inconsciente e pode ser

55
Cabe ressaltar que o delineamento da nossa pesquisa não incluiu uma escuta a partir da estratégia de
caso clínico, aqui entendido como mais adequado para captar sistematicamente os aspectos que definem
demanda e os seus corolários, como definidos do ponto de vista da psicanálise lacaniana. Neste sentido,
enfatizamos que menos do que a procedência do usuário ter ou não demanda psicológica, buscamos
explorar e compreender os significados e sentidos do uso desse termo pelos psicólogos com o objetivo de
entender como se opera a seleção dos usuários e dos seus problemas para o tratamento psicológico
(ESQUEMA O1).

173
exemplificada quando alguém chega a uma consulta psicológica pedindo para curar uma

dor de cabeça, dor física, mas pode inconscientemente estar demandando resolver a dor

de cabeça que é o seu casamento, neste caso a dor simbólica. Um bom exemplo, em

relação à operação estabelecida entre o desejo e a demanda de análise pode ser vista

abaixo, a partir da descrição de uma de nossas entrevistadas:

Fica muito isso, uma certa desilusão das crenças, seja ela a crença no que for
no Deus, no amor, no amor das diversas formas no amor filial, no amor
erótico, no amor, seja ele de que forma for. Vem muito em nome de uma
certa desilusão e de uma vontade de ser amada, tem muito disso, não é à toa
vem com uma vontade de ser acolhida, de ser amada. Isso aí é uma
condição sine qua non, lógico: ninguém vai procurar nenhuma análise se não
houver esse desejo, isso é o que move, de ser aceita, essa coisa. [Cristina, Psi
III-B, 15 anos].

Na narrativa acima, podemos perceber que o ponto de partida é o desejo do

sujeito que o motiva a buscar o tratamento psicológico. No entanto, a sua permanência

no processo de análise dependerá do fato desse desejo se reinscrever como uma

demanda, ou seja, em uma tendência do sujeito a investigar e compreender o seu estar

no mundo a partir do desencadeamento de um sofrimento.

Na perspectiva da saúde pública, ou melhor, dos seus representantes, que

buscam entender as definições de demandas e necessidades, a partir da lógica da

organização da assistência em saúde coletiva, podemos citar: as de Schraiber e Mendes-

Gonçalves (1996) e as retomadas, mais recentemente, por Nunes e outros (2002).

Para Schraiber e Mendes-Gonçalves (1996: 29), a demanda é a procura ativa e o

consumo dos usuários aos serviços. Esta busca tem como origem algum carecimento,

definido pelos autores como ―algo que o indivíduo entende que deve ser corrigido em

seu atual estado sócio-vital‖, que impede o fluxo da sua vida, que inclui alterações

físicas, orgânicas, ou mesmo, uma informação que lhe falta. Por outro lado, ―o resultado

das intervenções sobre qualquer desses carecimentos é reconhecido, portanto, como

necessidades, tornando as próprias intervenções também necessidades‖.

174
Nesta mesma direção, Nunes e outros (2002: 1640) 56 propõe a diferenciação entre

desejo, demanda e necessidades de saúde. Os desejos e demandas têm como ponto de

referência os próprios usuários. Os primeiros estariam ―ligados à percepção de

problemas de saúde que gerariam a necessidade de ter acesso a um serviço de saúde‖.

No segundo caso, ―a demanda já incluiria uma avaliação da possibilidade concreta de

ter acesso a esse serviço desejado‖. Por sua vez, as necessidades se orientam pelo ponto

de vista dos profissionais de saúde e serviços: ―as necessidades de serviços de saúde

seriam a quantidade e tipos desses serviços, definidos pelos profissionais (médicos) para

serem consumidos pela população para permanecer ou torna-se sadia‖ (NUNES e

outros, 2002: 1640)

Considerando as definições apresentadas que devem ser entendidas como

passíveis de serem divergentes já que são orientadas por atores sociais diferentes

(usuários, profissionais e os próprios serviços), podemos prever que as demandas

necessariamente não coincidem com as necessidades. No plano ideal, podemos

reconhecer que quanto mais evidentes tornam-se as relações entre os desejos, as

demandas e as necessidades de saúde mais eficientes serão as ações de saúde, ou,

utilizando as palavras de Nunes e outros (2002, p. 1641), haverá uma tendência à

―redução da distância entre o ―desejo‖ de serviços de saúde e a ―demanda‖ concreta dos

mesmos‖.

Pautando-nos neste último referencial teórico podemos dizer que, ao destacarmos

os significados das demandas, podemos considerar que estamos explicitando os

significados das necessidades, já que estamos interpretando os dados a partir do ponto

de vista dos psicólogos. Neste sentido, nas linhas seguintes, estaremos buscando

56
Nunes e outros (2002) retoma as distinções de Jeffer, J. e outros On the demand versus need for
medical service and concept of shortage. American Journal of Public Health, 61: 46-63, 1971 e as de
Paim, J. As ambigüidades da noção de necessidades de saúde. Revista Planejamento, 8: 39-46, 1982.

175
descrever como as demandas se traduzem em necessidades de atendimento psicológico

para os psicólogos que estão em serviços públicos de saúde.

Com o objetivo de contextualizar as descrições sobre a busca de tratamento

psicológico, que esclareçam as relações entre demandas e necessidades de saúde,

mostraremos os motivos atribuídos pelos usuários para se dirigirem aos centros de

saúde mental, recorrendo aos dados presentes no estudo de Cammarota (2000) 57, bem

como às queixas apresentadas pelos mesmos, a partir da visão dos nossos entrevistados

quando em contato direto como os usuários.

De acordo com Cammarota (2000), 53,7% das queixas dos usuários estão

associadas a termos do senso comum. Entre os mais prevalentes, 24,6% referem-se ao

―nervosismo‖ e 7,9%, aos ―problemas de cabeça‖. Os usuários, ao associarem seu

problema com a terminologia técnica utilizam os seguintes termos: 16,3% deles

referiram-se à depressão, 13% à epilepsia, 7,1% aos ―problemas de relacionamento‖ e

5,6% à ―esquizofrenia/psicose‖, entre outras (TABELA 9, ver ANEXO B).

Segundo Cammarota (2000), os motivos principais apontados pelos usuários

para procurarem os centros de saúde mental são: 1) consulta médica mais recebimento

de remédio, apresentando coeficientes que variam de 73% a 79%; 2) ―pegar remédio”,

variando entre 7% a 14%; 3) a consulta médica aparece variando entre 4% a 7%. A

busca pela psicoterapia individual aparece com a variação de 1% a 7% e a psicoterapia

em grupo varia de 3% a 8% entre os motivos apontados pelos usuários nos três centros

(Tabela 19 ver ANEXO B) 58. Os usuários atribuem maior importância aos seguintes

57
Os três centros de saúde mental que serviram de contexto para a pesquisa do autor são os mesmos
cenários da presente investigação. Sua coleta foi realizada entre os meses de dezembro de 1999 e abril de
2000 sendo entrevistados 822 usuários.
58
Em relação à busca de psicoterapia individual, é importante ressaltar que a maior procura está no CSM-
H, distrito sanitário mais periférico do município (7%). A demanda traduzida pela quantidade de usuários
que buscam o atendimento psicológico aparece nas narrativas dos nossos entrevistados como um aspecto
que aumenta a pressão institucional para o trabalho psicoterápico em grupo e para a desqualificação do

176
serviços oferecidos nos centros, por ordem de preferência: 1) recebimento de remédio

(variação entre os centros de 53% a 55%); 2) consulta médica (variação entre os centros

de 34% a 41%). As psicoterapias individual e em grupo aparecem em terceiro lugar,

variando respectivamente, entre os coeficientes de 2% a 10% e entre 3% a 9% 59 nos três

centros (CAMMAROTA, 2000).

Quando identificamos as queixas60 apresentadas pelos usuários que chegam até os

psicólogos temos, entre as mais freqüentes: a depressão e a ansiedade. Estes são vistos

pelos nossos interlocutores como os problemas recorrentes trazidos por mulheres em

idade produtiva, que são as que mais buscam os centros de saúde mental visitados.

Chama atenção o fato das queixas trazidas pelos usuários não diferirem por centro,

como é possível perceber nos fragmentos narrativos abaixo:

eu apostaria assim num palpite que, pelo menos, oitenta por cento, que eu
atendo, a queixa é depressão. No mínimo eu diria, porque assim, e atendo,
basicamente, o que vem à procura é uma população feminina né, e na faixa
dos trinta em diante com a queixa depressão, às vezes associada a ansiedade,
associada a outras questão mais, mas com a queixa fundamental é
depressão, basicamente assim, porque, claro que a gente atende uma parcela
de psicóticos, mas esse, a maioria das vezes, não é encaminhado para o
psicólogo [Carla, Psi XVII-H: 4 anos].

Eu tenho notado assim, o número muito crescente das pessoas que vem
com sintoma de depressão, muito relacionado à situação socio
[socioafetiva], percebendo assim, [PI] mesmo, tem muito caso até mesmo
pela região muito pobre, então tem muito caso que a gente vê é que uma
pessoa tá encaminhada muitas vezes não é nem a questão da psicoterapia,
mas a questão é de fome, questão de falta de trabalho, da dignidade mesmo...
[Priscilla, Psi VI-H: 4 anos]

As queixas eu acho que são essas mesmo, da depressão, da ansiedade,


fobias. [...] É, a maioria são medicadas. Acho que, que não fazem uso de
medicação... eu acho que é muito raro. Porque elas vão buscar ali, é como
eu falei, não a psicoterapia como processo de autoconhecimento, elas
estão ali porque ali é lugar de lidar com a doença, não é com a saúde
(risos). Então eu acho que não tem paciente ali que não faz uso de
medicação. [Neuza, Psi XVIII-H; 4 anos]

individual, condicionando o último ao regime de oferecimento quinzenal em vez de semanal, como


julgam mais adequado.
59
Em relação à busca pela psicoterapia em grupo ser mais acentuada no CSM-F (8%) não se aplica as
nossas descrições feitas a partir do relato dos nossos entrevistados sobre as suas atividades, uma vez que
os psicólogos que atuam nesta instituição informam não oferecer tratamento psicológico em grupo.
60
Podemos considerar que as queixas dos usuários refletem a categoria ―desejo‖ que nem sempre tem
correspondência à categoria ―demanda‖ (NUNES, et. al, 2002), pois estão pautadas na sua percepção de
que algo não vai bem e que, no segundo momento, avaliam ao se dirigirem ao centro de saúde, podendo
ou não se transformarem em necessidade de atendimento psicológico.

177
É plural, tem de tudo, né!? [...] desde os esquizofrênicos, desde os
neuróticos comprometidos, né, incapazes de exercer alguma atividade
laborativa ou de trabalho. A gente recebe muito aqui no ambulatório aquelas
neuroses de donas de casa [...]. o que eu sempre falo é que de uns tempos
para cá eu, a gente tem visto muitos casos de depressão. [...] a síndrome do
pânico, que é vertente, né, da depressão [Dirce Psi VII-F, 19 anos]

eu não atendo psicótico, eu atendo paciente neurótico, então o médico, os


médicos já sabem e ele encaminha o paciente pra gente vai, pra mim, tem a
depressão, vamos supor, ansioso então uma medicação mais leve [Bruna,
Psi XIV-G: 20 anos]

Olhe, com certeza, depressão. Depressão é o que eu posso dizer assim que a
maior parte dos pacientes aqui que me procuram. Porque a gente tem assim o
quê, na verdade o [CSM-H] atende a uma demanda de psicóticos, de pessoas
que entram em crise depressiva, né enfim, de psicopatologia mesmo,
entendeu? Agora,... o pessoal que é encaminhado para a psicologia, né,
geralmente eles passam antes pelo setor de assistente social. Eu não
trabalho dentro daqui, eu não trabalho, eu tenho experiência mesmo de
trabalhar com psicóticos, de fazer mesmo um trabalho de psicoterapia
com psicóticos. A demanda mais pacientes deprimidos, né , geralmente é o
que chega mais pra mim... chega mais pra gente. [Roberta, Psi XIII-G: 17
anos]

É importante ressaltar que, em relação à procura de atendimento psicológico

para adolescentes, as queixas mais freqüentes são dificuldade de aprendizagem,

rebeldia, entre outras, a partir da busca espontânea ou por encaminhamento de escolas,

tanto nas UBSs quanto nos CSMs, como pode ser acompanhado no relato abaixo:

Na faixa de dez a doze, treze anos a dificuldade de aprendizagem, né?! a


escola encaminha muito, as escolas, daqui da redondeza encaminham muito,
aqueles que não conseguem aprender. Os pais, quando trazem seus
adolescentes, se queixam de rebeldia a queixa do pai é a rebeldia ―está
rebelde, não obedece‖, aquela coisa de sempre. [Virgínia, Psi I-A, 7 não].

Neste terreno, podemos destacar alguns elementos que estão associados às

queixas dos usuários, do ponto de vista dos psicólogos:

a) estão categorizadas a partir da nosografia psiquiátrica e, com menos freqüência,

das descrições populares;

b) os sintomas podem estar associados às condições sociais de vida do usuário;

178
c) os sintomas dos neuróticos são vistos como passíveis de serem trabalhados no

processo psicoterapêutico, o que nem sempre se aplica aos trazidos pelos

psicóticos;

d) os sintomas apresentados pelos usuários parecem justificar maciçamente a

necessidade de intervenção medicamentosa, o que nem sempre se aplica a

intervenção psicoterápica;

e) há sobreposição entre demanda e necessidade, no caso da associação

inextricável entre a queixa e a busca de medicamento, muitas vezes tomada a

priori como a única possibilidade do usuário ter ido à consulta psicológica.

Considerando os significados que tais queixas possam assumir para os nossas

entrevistados, um certo tipo de postura do usuário frente às mesmas autoriza, ou não, a

escuta psicológica. A transformação da queixa em demanda psicológica é a base da

autorização, ou seja, a caracterização do fato do paciente ir em busca de respostas

subjetivas para a compreensão do problema apresentado.

Neste sentido, no processo terapêutico, o cliente deve compartilhar com o

terapeuta algumas crenças: a) lidar com o conjunto de sintomas que lhe faz sofrer como

um problema e submetê-lo à crítica e à reflexão; b) deve considerar que existe um

sentido oculto subjacente ao quadro sintomático, que lhe atribui um caráter complexo a

ser interpretado; c) a experiência pessoal de sofrimento deve ser explicitada

verbalmente; conseqüentemente, estar à mercê da decifração e da reordenação

(BEZERRA-JUNIOR, 1992).

Segundo Bezerra-Júnior (1992), o trabalho psicoterapêutico consiste

fundamentalmente no esforço do indivíduo em recompor a sua história psíquica, uma

história que sofreu interrupções e possui brechas que expressam sintomas. Neste

processo, além de procurar sentidos que se perderam ou estão desconectados das

179
experiências pessoais, há a possibilidade de criar novos sentidos, que, ao serem

apropriados pelo sujeito, tendem a ser inscritos na sua história e em seu projeto de vida.

No entanto, segundo o autor, o tipo de atitude descrita não é um atributo

espontâneo da natureza humana, é fruto do aprendizado cultural, que ocorre de modo

diferenciado entre os vários grupos sociais. Em suas próprias palavras:

Isto exige que o paciente tenha aprendido através de seu processo de


socialização a valorizar o colorido emocional dos fatos, e a ver na trajetória
das emoções e não só na seqüência dos acontecimentos a linha que costura
sua história de vida. Ele precisa estar habituado a idéia de vasculhar os
próprios sentimentos, e a pensar que é neste mundo interiorizado e pessoal
que reside a sua verdade, o seu eu, a sua identidade (sic BEZERRA-JÚNIOR,
1992. p. 157-8)

Além disso, exige que o indivíduo esteja de posse de uma certa linguagem da

intimidade, que como os demais atributos, também está marcado pela inscrição de

classe do indivíduo (BEZERRA-JÚNIOR, 1992). Por esta expressão o autor quer

ressaltar um:

vocabulário de introspecção, uma linguagem da intimidade, abundante em


adjetivos e advérbios que permitem qualificar com minúcias, rica em
comparações (uso freqüente de expressão do tipo <<como se>> recorrente no
uso de alusões, metáforas, etc. e fortemente centrada na utilização da
primeira pessoa do singular (eu) como sujeito do discurso (BEZERRA-
JÚNIOR, 1992, p. 159).

Nesta direção, o autor adverte que é importante que o terapeuta, frente à variação

social dessas qualidades não confunda atitude cultural com atitude defensiva.

Nas narrativas dos nossos entrevistados, dois momentos de produção são

percebidos como cruciais no engajamento ao trabalho terapêutico por parte dos

usuários. O primeiro relaciona-se à produção de demandas a partir do ponto de vista dos

demais profissionais (geralmente, assistentes sociais, enfermeiras e psiquiatras) que

encaminham os usuários para o atendimento psicológico, o que pressupõe uma

primeira construção interpretativa sobre as queixas dos usuários, traduzidas ou não

na necessidade de um tratamento psicológico. Temos aqui a demanda médica, a de

180
triagem e a espontânea, ou sem intermediário. De alguma forma, estes tipos de demanda

são vistas pelo psicólogo como problemáticas e, muitas vezes, aparecem como

refletindo negativamente na adesão ao tratamento psicológico, não sendo reconhecidas

como necessidades. O segundo diz respeito à relação desenvolvida, desde o primeiro

encontro - por vezes, só no primeiro - entre o usuário e o psicólogo. Há uma certa

expectativa por parte do último de que a queixa transforme-se em demanda

psicológica, e ele possa, então contribuir para o tratamento do usuário.

Dentro do primeiro grupo de demandas, que configuram os encaminhamentos

externos pelos profissionais não-psicólogos, temos:

a) demanda de triagem, na qual o encaminhamento pode ser feito porque o usuário

solicitou diretamente o atendimento psicológico, ou porque o profissional que faz a

triagem percebe que a queixa pode ser amparada com o auxílio do atendimento

psicológico. Para esta categoria, a variação encontrada é a da demanda institucional,

onde o encaminhamento ocorre apenas para que o usuário não fique sem algum tipo de

atendimento (―tapa buraco‖);

b) demanda espontânea, ou sem intermediário, na qual o usuário vai diretamente ao

Serviço de Atendimento Médico - SAME - e solicita o atendimento psicológico, e que é

considerada pelos psicólogos como a que tem mais chances de levar a cabo o tratamento

psicológico61. Há, para este tipo, uma variação que os psicólogos denominam de

“demanda familiar”, quando é um apelo de algum membro da família, ou mesmo, de

um vizinho do usuário que o incentiva a buscar um psicólogo, tornando mais difícil,

segundo eles, a adesão ao tratamento. Outra variação muito significativa é a

denominada ―demanda diferenciada”, que implica na busca espontânea de uma

determinada parcela da população (―classe média empobrecida‖, ―mais esclarecida‖,

61
A demanda espontânea é menos freqüente no CSM-H (implementado mais recentemente em área mais periférica
de Salvador) e cada vez mais freqüente no CSM-F (área periférica intermediária), principalmente, no CSM-G (área
mais central).

181
―nível de compreensão mais elevado‖), com um pedido que tende à ―busca de

autoconhecimento‖ e que, na opinião dos psicólogos, tem aderido mais ao tratamento

psicológico.

Ainda dentro do primeiro grupo de demandas, encontra-se o encaminhamento

interno que pode ocorrer quando o psiquiatra, ou outro profissional, julga que o seu

paciente poderá obter ganhos com o atendimento psicológico.

c) Este tipo de encaminhamento, no entanto, pode não passar de uma ―demanda

médica”, que não se reflete nos usuários quando do contato direto com os psicólogos.

De acordo com os entrevistados, são aqueles usuários que insistem em solicitar

medicamentos, ou queixarem-se da falta dos mesmos, e que vão ao psicólogo, porque

são ameaçados pelos outros profissionais de não poderem pegar o remédio caso não

compareçam à consulta psicológica.

Na visão dos psicólogos, há uma parcela das pessoas encaminhadas por

demanda médica que não entende sequer qual é a proposta do trabalho psicoterapêutico,

mesmo que o psicólogo a explique didaticamente. Este seria, talvez o problema de

encaminhamento mais difícil de manejar e que culmina no abandono do usuário e na

insatisfação do profissional.

De um modo geral, os encaminhamentos para o atendimento psicológico são

vistos como problemáticos porque: a) são realizados por profissionais não treinados

para a atuação em saúde mental; b) há envio de usuários com problemas qualificados

como mais socioeconômicos do que psicológicos; c) o estado físico ou psíquico do

usuário é um empecilho, por exemplo, aqueles que se encontram em ―surto‖, ou com

―debilidade física‖; d) há aprazamento das consultas que deveriam ser realizadas pelos

psiquiatras e a estratégia é distribuí-los entre outros profissionais; e) não se considera a

verbalização do usuário de que ―só querem a medicação‖, e não querem outro tipo de

182
tratamento; f) há rejeição do usuário a algum tipo de tratamento que requeira muito

investimento de tempo, entre outros:

tem uma triagem e tem também um problema muito grande nessa triagem
[...] é uma especificidade, a pessoa [triador] vem sem ter treinamento
absolutamente nenhum e aí esse encaminhamento, por isso até que tem
muitos equívocos, tem encaminhamentos que vem, por exemplo, do próprio
serviço social pra psicoterapia e que eu volto a encaminhar, porque eu
percebo que é só o problema da pessoa é um problema socioeconômico
mesmo. Tem gente [TI] que não consegue trabalho, até pelo estado, muitas
vezes, de debilidade, debilitação física e as outras pessoas com, que estejam
em surto, que o psicólogo não tem, na verdade, muito o que fazer numa
situação dessa. [Priscilla, Psi XV-G: 4 anos]

A pessoa precisa de um atendimento urgente de um psiquiatra, marque


pra daqui a não sei quantos meses, e aí manda pro psico... a impressão
que a gente tem, eu tenho, eu digo a gente, porque nós já conversamos sobre
isso, eu, [fulana, psicóloga] e [cicrana, psicóloga], é que eles colocam como
um tapa buraco, um psiquiatra não pode atender agora então, vai pro
psicólogo [TI] fosse dessa forma, é um equivoco quanto ao trabalho do
psicólogo. [Priscilla, Psi XV-G: 4 anos]

Então realmente tem casos que realmente... eu vejo mais como assim: fazer
um acompanhamento desse paciente, porque ele não é ali um processo
psicoterapêutico, eu só estou ali para acompanhar, para dar um suporte,
porque a consulta que ele tem com o médico dele às vezes é seis meses, oito
meses, ou então um ano, então assim, é como se... porque o médico não tem
condições de tá vendo se o paciente, acompanhando melhor, ele acaba
mandando para o psicólogo. [...] [Neuza, Psi XVIII-H; 4 anos]

a pessoa [usuário] vem com uma queixa, todo mundo que vem pra cá vem
com uma queixa ligada a saúde mental e aí, meio que
indiscriminadamente “ah, vai pro psicólogo, psicólogo, psicólogo”, até
porque o aprazamento dos médicos tá uma distância de seis meses, então tipo
assim, manda pro psicólogo porque o psiquiatra vai demorar muito, mas o
que a gente vê em alguns casos são pacientes que não têm a menor
demanda pra o atendimento psicológico, por quê? porque só vem mesmo
querendo a medicação ou não tem compreensão ou rejeita outros tipos
de atendimentos, não acredita ou porque acha que é muito investimento
de tempo, ―eu não tenho tempo pra vim pra cá, eu não tenho dinheiro pra
vim pra cá‖, então quem vem só em busca da medicação, mas que, na
triagem, não se apura, não se verifica isso, manda pro psicólogo, pra daí o
psicólogo, após o primeiro atendimento vá [PI] se tem algum interesse, então
muitas vezes a gente, né, atende aquele paciente pra depois o paciente dizer,
―ah, porque eu queria era remédio, eu pensei que a senhora ia tá passando
remédio pra mim; eu não tenho tempo, não posso, eu não tenho dinheiro, eu
tenho que cuidar dos filhos, eu enfim‖, então assim, não há muito uma
triagem no sentido de perceber se aquela pessoa, além dela ter a queixa,
se ela tem a demanda né, porque tem a queixa, então vai pro psicólogo, mas,
muitas vezes, o próprio paciente verbaliza não ter interesse, então há muitas
vezes uma perda de tempo pro paciente ia dizer tudo que já disse na triagem e
pra gente que poderia estar atendendo outra pessoa que estivesse talvez mais
interessada, tivesse um aproveitamento melhor. [Carla, Psi XVII-H: 4 anos]

O estudo de Macedo e Neves (1995 apud TENÓRIO, 2001) descreveu o

processo específico de triagem para psicoterapia de um ambulatório de saúde mental no

183
Rio de Janeiro. Alguns pontos que caracterizam a problemática que envolve

encaminhamentos são destacados como: 1) a demora do primeiro atendimento, não tem

sido registrado nenhum encaminhamento direto à psicoterapia na primeira ida do

usuário ao referido serviço; 2) o primeiro atendimento estava previsto para ser realizado

num período nunca inferior a dois meses. Estas constatações têm como principais

conseqüências: a) a falta de acolhimento do usuário, considerando que a sua procura

pelo serviço está motivada pelo fato do mesmo não dispor mais de recursos pessoais

para apaziguar o seu sofrimento; supõe-se que este período longo de espera pode

culminar na agudização do quadro, que pode até levar à internação; b) a natureza da

escuta, ou seja, os critérios orientadores do processo de triagem. Particularmente, sobre

este segundo aspecto, os autores ressaltam que os encaminhamentos para a psicoterapia

ocorriam em função: a) da estrutura psíquica do usuário: os psicóticos só eram enviados

caso a medicação não estivesse resolvendo; não é vislumbrado a possibilidade da

psicoterapia trazer algum benefício para os mesmos; o tratamento medicamentoso é

visto como o principal recurso, ou mesmo o único capaz de lidar com a psicose; no caso

dos neuróticos, ou menos graves, a indicação de psicoterapia está condicionada ao grau

de escolaridade; os analfabetos são encaminhados apenas para o tratamento

medicamentoso, além disso, os encaminhamentos são feitos porque os psicólogos

teriam supostamente mais tempo do que os psiquiatras para conversarem como o

usuário.

Macedo e Neves (1995 apud TENÓRIO, 2001, p. 94) concluem que a triagem

está preocupada exclusivamente com a classificação diagnóstica imediata, tornando a

fala do paciente não como demanda, mas como veículo de apresentação de sinais e

sintomas que permitam ao médico deliberar, com base nessa primeira entrevista, qual a

indicação terapêutica. Neste terreno, ―o modo de fazer e pensar a psiquiatria [revela]

184
que a clínica está reduzida ao manejo farmacológico dos sintomas‖; o médico não tem

tempo para conversar com o seu paciente, por sua vez, a chamada psicoterapia não

passa de uma indicação burocrática (TENÓRIO, 2001, p. 94).

Nesta mesma direção, nas narrativas dos nossos entrevistados aparece uma

metonímia entre o medicamento e o cuidado psiquiátrico-psicológico, que parece ser

corrente em outros ambulatórios de saúde mental. Esta metonímia pode também ser

reforçada pela demonstração trazida em números, no estudo de Cammarota (2000). A

distribuição de procedimentos realizados nos três centros de saúde mental de Salvador,

considerando o procedimento utilizado no dia da entrevista, revela que a grande maioria

dos usuários fazia uso de dois procedimentos: consulta médica e recebimento de

remédio. Dos 822 entrevistados, 96,4% fizeram consulta médica e 93% pegaram

medicação, enquanto que 7,2% foram à psicoterapia individual, 4,1% foram à

psicoterapia de grupo e 0,6% foram à psicoterapia familiar (CAMMAROTA, 2000)

(Tabela 21, ver ANEXO B). O autor ainda ressalta que praticamente todos que fizeram

consulta médica receberam medicação e poucos foram encaminhados para outras

formas de tratamento.

Bezerra-Júnior (1992, p. 139) descreve a crescente demanda nos ambulatórios de

saúde mental como um produto social. Neste terreno, alerta-nos para o fato de não a

tomarmos como natural, e sim como ―forjada pela condição de miséria e exploração

impostas à maioria da população que, sem alternativas políticas adequadas, adoece [...]‖

o que pode implicar na ―psicologização dos problemas sociais e na individualização de

mal-estares coletivos‖.

A demanda médica é considerada uma das mais truncadas; o que a delimita

não é o fato de vir de um psiquiatra, pois que pode vir de outro profissional. Os

psicólogos pinçam, das falas dos usuários, o caráter de barganha do medicamento que

185
orienta o encaminhamento para o tratamento psicológico, que é utilizado pelos mesmos

como um dos motivos principais para buscarem o psicólogo. Do ponto de vista dos

entrevistados, este tipo de demanda inviabiliza previamente qualquer envolvimento do

usuário com o tratamento psicológico e expressa a falta de conhecimento do profissional

sobre o que é uma psicoterapia:

E, às vezes assim, o profissional que encaminha também é como se também


não entendesse o que é uma psicoterapia... e às vezes encaminha um
paciente assim ―você tem que ir lá fazer a sua psicoterapia, porque senão
não vai ganhar mais, pegar medicação‖ [risos], né, aí fica complicado,
porque é como se dissesse ―eu tô aqui por uma obrigação, porque meu
médico disse que era para eu vir para o psicólogo, senão eu não pego
mais a medicação”, e aí fica meio complicado você dizer ―não, volte lá para
o seu médico‖ [risos], né. [Neuza, Psi XVIII-H; 4 anos]

Sim, percebo sim e até eu tava comentando com a outro colega o fato assim
que às vezes você propõe num primeira consulta, primeiro atendimento pro
paciente e muitas vezes eu tenho ouvido coisas assim, ―ah, possa ser, vamos
ver, vamos tentar né, o médico mandou‖ [narra com ar de descaso], então
assim, há muito aquela coisa assim, é de graça, mandaram eu vim, então
vamos ver no que é que dá, entendeu. Então assim, muitas vezes não há
mesmo a demanda pra uma psicoterapia, mas assim, o paciente veio
encaminhado, quer experimentar, quer tentar e muitas vezes assim, aquela
coisa da falta, porque ele não tá pagando nada. [Carla, Psi XVII-H: 4 anos]

Os aspectos sinalizados aparecem de modo contundente nas narrativas das

psicólogas que trabalham no CSM-H, em grau menos elevado nas demais entrevistadas

dos outros dois centros. Dentre os signos que caracterizam a demanda médica

podemos destacar o fato do sujeito ir à consulta psicológica para garantir a medicação e

por obediência ao médico. Bezerra-Júnior (1992, p. 150) descreveu este fato como

demanda de medicamento, que não é algo que deva ser tomado como natural ou

espontâneo, pois tem ―raízes solidamente fincadas em um completo sistema de idéias,

expectativas, representações acerca da doença, da saúde e do tratamento‖, que difere

entre os atores e contextos sociais.

Então, e muitos não sabem que tem psicólogo e fica assim ―ah, quem é o
psicólogo mesmo?‖ aí ele senta aí, né e fica parado. ―Sim, pois não, como é
que a gente pode ajudar o senhor, o senhor gostaria de falar?‖. ―Falar o
que?‖. ―Bom, o senhor veio para a terapia, na terapia a gente, o psicólogo
ouve mais do que fala‖. ―Sim, doutora, e eu vou dizer o que?‖. ―Sim, o
senhor vai dizer o que te angustia, o que te estressa, o que te tira o sono‖.
Aí você não pode dizer assim, ir direto, sabe. Você tem que ir pelas bordas

186
né, para que ele consiga começar a pensar. ―Sim, doutora, e o que é
psicólogo?‖, aí você tem que explicar. ―Ah, é médico, né?‖ aí eu digo ―não,
não é médico, psicólogo não é médico‖, ―ah, doutora, pra mim é tudo igual,
eu vim pro médico. A senhora vai marcar minha consulta quando, o médico
aí é pra quando?‖. Eu digo assim ―mas eu não sou médico, eu sou psicóloga‖,
―ah, é muito difícil esse negócio aí, é médica‖ [Dirce, Psi VIII-F: 19 anos].

A reprodução de um diálogo estabelecido entre um usuário e uma psicóloga, em

suas próprias palavras, nos faz questionar até que ponto podemos aceitar a demanda

médica como o principal impeditivo da adesão ao tratamento psicológico, sem

consideramos os empecilhos impostos pelos próprios psicólogos. É visível a não

familiaridade do usuário com o processo psicoterapêutico e o seu não compartilhamento

com as crenças (―o senhor vai dizer o que te angustia, o que te estressa, o que te tira o

sono‖) da psicóloga em relação ao modo de buscar sentidos para o que lhe faz sofrer,

apesar do seu esforço canhestro de ser didática em relação à psicoterapia.

Por fim, a demanda espontânea, ou sem intermediário, é vista como a que

pode mais facilmente indicar um trabalho psicoterapêutico mais proveitoso, no sentido

de não favorecer o surgimento, a priori, de pedidos insustentáveis como os trazidos por

determinados encaminhamentos destacados acima.

E tem pessoas, que eu acho que assim, tem o conteúdo, tão ali buscando
realmente assim se compreender, se conhecer, compreender a doença, o
que traz. [Neuza, Psi XVIII-H; 4 anos]

No entanto, o fato das pessoas se encontrarem com algum ―problema de saúde‖,

a exemplo da depressão, pode se sobrepor à busca do autoconhecimento; apesar de

virem espontaneamente, muitas vezes, não entram no processo psicoterapêutico. No

caso de psicóticos, que são os familiares que trazem, é bem mais provável que eles não

se engajem no processo como visto na narrativa abaixo:

Olha, as pessoas vêm assim, vêm encaminhadas, ou vêm... tem demanda


espontânea, né. Eu acho que assim, a grande demanda ali são de pessoas
que... apesar assim da demanda ser espontânea, vem assim, porque está
com algum problema de saúde mesmo. Porque aí não vai buscar um
processo de psicoterapia, pra buscar o auto-conhecimento, né, mas vai, eu
acho que assim, sempre assim, tem uma doença, aí pronto, tá com o processo
de depressão, né, ou então... eu acho que tem uma demanda muito grande das

187
pessoas que estão com depressão, com ansiedade difusa, generalizada e em
psicose, que aí já são os familiares que levam. [Neuza, Psi XVIII-H; 4
anos]

É importante ressaltar que os psicólogos não se opõem ao tratamento

farmacológico, apenas estão visivelmente atentos ao excesso de medicalização dos

sintomas, percebendo a necessidade de que, em alguns casos (lembrar que eles atendem

principalmente neuróticos), essa seja uma etapa do processo a ser vencida a partir do

envolvimento no trabalho psicológico. As atuações psicológicas têm contribuído para

este processo, sejam nas vertentes das psicoterapias ou das para-psicoterapias, como

apresentaremos no próximo capítulo.

Neste sentido, o que parece escapar aos entrevistados, quando refletem sobre as

demandas psicológicas dos usuários, é em parte o que descreveremos como os efeitos

da ―escuta psicológica asséptica‖, no próximo capítulo. Por enquanto, é importante

considerarmos que a construção da demanda psicológica é influenciada também pela

dificuldade dos próprios psicólogos no contato com as dimensões de significação dos

problemas apresentadas pelos usuários, que parecem não fazer sentido para os mesmos.

Além disso, cabe sinalizar que, muitas vezes, a falta de demanda psicológica, que

aparece na expressão ―fica muito na questão da queixa‖, pode espelhar não só a

dificuldade do usuário de ter insight, mas também a capacidade pouco acurada do

psicólogo de romper os limites da distância sociocultural:

Sim, é, algumas pessoas que são encaminhadas pelo médico, ou que ele
acha que tem uma demanda, muitas vezes são pessoas que não... não dá
pra se fazer uma psicoterapia mesmo. Elas não entram no processo
psicoterapêutico, porque não têm o insight pra aquilo que a gente está
tentando buscar trabalhar, conteúdos. Não traz conteúdos pra serem
trabalhados, então fica muito na questão da queixa, né, e aí por mais que
você tente puxar pra trazer alguma coisa mais, assim, as pessoas parecem que
não compreendem ainda o processo psicoterapêutico, né. [Neuza, Psi XVIII-
H; 4 anos]

No caso das pessoas que buscam o CSM-H, com demanda de triagem, ou

médica, ou mesmo espontânea, manter o envolvimento e aproveitamento esperado no

188
trabalho psicológico não é muito comum, apesar da quantidade de encaminhamentos.

Algumas pessoas são beneficiadas com algumas das variações da atuação das para-

psicoterapias, no entanto, muitas são as que abandonam62 o tratamento, algumas logo no

início do processo, outras somem e depois reaparecem, sendo novamente acolhidas pelo

psicólogo:

Olha, de maneira geral, existe um índice muito grande de abandono de


tratamento, né, tanto dos pacientes que tão vindo logo no início, como aquele
paciente que já faz atendimento no psiquiatra há muito tempo. Eu não teria
talvez um dado mais completo pra te dizer quem abandona mais o
tratamento assim, teria que primeiro fazer uma avaliação disso. Há um
índice muito, gente tanto que, assim, as gerentes estão se questionando,
porque, apesar de terem novos pacientes marcados, às vezes vêm cinco ou
seis, né, porque falta muito, às vezes retornam, né? e por falar... e me
abordam ―ah, eu quero voltar pro tratamento‖, some três, quatro, cinco meses
depois quer voltar, isso é muito freqüente. E tem aqueles que abandonam
logo assim, porque não se adapta mesmo né, vem, quer só fazer a queixa,
quando a gente começa com determinado nível de questionamento, ou de
aprofundar o trabalho, aí param, né, então há um grande índice de
abandono. [Carla, Psi XVII-H: 4 anos].

em caso de depressão, por exemplo, ocorre, tem ocorrido adesão


significativa, de modo geral ocorre muita evasão, isso de modo geral, até
porque tem muitas situações que a pessoa na verdade vem e vem
encaminhado por aquilo. Em outros casos por dificuldade financeira mesmo,
o pessoal não tem dinheiro do transporte e coisas que ocorre na psicoterapia,
tem também a subjetividade de cada um [Priscilla, Psi XVIII-H: 4 anos]

Outros aspectos apresentados pelo usuário como justificando sua falta às

sessões, ou que influenciam a sua adesão ao tratamento psicológico são: a falta de

dinheiro para se locomover até o centro, a impossibilidade de se ausentar de casa, por

não ter com quem deixar os filhos, entre outros. No entanto, há casos em que mesmo

frente a tais obstáculos os usuários utilizam alternativas que exibem o seu esforço no

que diz respeito a ir andando de um bairro a outro, para não perderem a sessão, o que,

para os psicólogos, demonstram seu comprometimento com o tratamento psicológico:

Uma pessoa que não dispõe de tempo, muitas vezes, pode ter um trabalho,
pode não estar faltando o trabalho. É a pessoa que, quando não tem trabalho
não tem dinheiro pra vir, como já ocorreu muitas vezes; tem pessoas que
vêm, mas que faltam e quando faltam duas, três sessões quando retornam
justificam “olha, eu não pude vir porque eu não tinha o dinheiro da

62
Nas UBSs e nos CSMs considera-se abandono do tratamento psicológico após a terceira falta
consecutiva sem aviso para desmarcar o atendimento.

189
passagem, ou eu comprava pão ou pagava a passagem”; tem pessoas que
vem aqui pegam... chegam aqui mais tarde que o horário comum, normal, e
justificam que pegaram no Subúrbio Ferroviário pegaram um trem, saltaram
na Calçada e tiveram que vir andando até aqui, porque não tinham
dinheiro pro transporte. E vem, vem andando da Calçada até aqui, debaixo
de um sol escaldante. [risos] coisa confusa da gente ta precisando, porque tá
muito ligado, muito vinculado um fator a outro [Priscilla, Psi XVIII-H: 4
anos].

Em vários fragmentos narrativos podemos perceber que inúmeros aspectos

conjugados influenciam na adesão e no aproveitamento do usuário em relação aos

benefícios do tratamento psicológico, configurando uma realidade de abandono e

desistência do tratamento psicológico como algo freqüente e não apenas decorrente de

aspectos ―objetivos‖. Vejamos como os psicólogos, atuando nos centros de saúde

mental mais antigos, lidam com esta problemática, de modo a termos um contraponto

também diacrônico63.

Chama atenção a força com que aparece, nas narrativas dos psicólogos que

trabalham no CSM-H, o problema do abandono e da desistência do tratamento

psicológico em relação aos que trabalham nos CSM-F e CSM-G. Além disso, os

encaminhamentos aí são vistos como trazendo menos repercussões negativas para a

atuação psicológica. Este aspecto pode relacionar-se ao fato da presença do profissional

de psicologia, nos primeiros, estar mais assimilada pelos outros profissionais de saúde,

inclusive pelos que fazem a triagem. Isso é reforçado quando se evidencia que, no

CSM-G, a psicoterapia é vista pelos psicólogos como um marcador explícito da cultura

organizacional:

Mas todo mundo aqui nesse centro sempre trabalhou com eh.... Talvez aqui
seja um dos poucos lugares onde a gente trabalhe realmente com
psicoterapia, a nível de... de Estado, não sei se têm outros, né. Eu acho até

63
É preciso ressaltar que as pontuações feitas aqui não têm a pretensão de serem uma análise diacrônica
estrito senso, uma vez que o delineamento desse projeto de tese não permite estes tipos de conclusões. No
entanto, levando em conta o tempo de implantação dos CSM-G e F, que foi na década de 1980, e a do
CSM-H que ocorreu no final da década de 1990 e o tempo de serviço dos psicólogos, que no caso do
CSM-H é muito inferior as demais, estamos considerando que há maior familiaridade dos profissionais
não psicólogos e dos próprios usuários ao discurso e práticas psicológicas nos primeiros centros. O CSM-
F é atualmente cenário de problemas, que antigamente eram muito presentes nos outros dois, mas que
foram reconfigurados ao longo dos anos através da seleção da clientela, a exemplo da introdução da
demanda diferenciada.

190
que tem, mas aqui no [diz o nome do CSM] a gente sempre fez um trabalho
assim de trabalhar mesmo com psicoterapia [Roberta, Psi XIII-G: 17 anos]

Outro aspecto digno de nota é a mudança significativa em relação às

características da clientela atendida pelos psicólogos nos CSMs F e G, que inclui o que

descrevemos como demanda diferenciada. Nestes centros, tem crescido a procura de

pessoas de ―classe média empobrecida‖, estes têm disputado os horários dos

atendimentos psicológicos, tanto individual quanto grupal e, de modo geral, se adequam

mais ao tratamento psicológico. As descrições que acompanham as pessoas que

constituem a demanda diferenciada são: as que têm maior escolaridade, formação

cultural mais elevada, que podem estar passando por um momento de dificuldade

financeira, ou desempregadas. Geralmente, são estudantes universitários, funcionários

públicos ou mesmo profissionais liberais, com nível superior, que buscam terapia de

autoconhecimento, até quando são encaminhadas, como podemos perceber nas

narrativas transcritas abaixo e ao longo desse capítulo:

Você encontra de tudo, né?! Eu tenho, eh... Uma vez até me procurou aqui
um professor de filosofia, pra você ver, tem pessoas que têm mestrado que
vêm pra cá, que tão passando por uma situação difícil que não podem, né,
pagar uma psicoterapia fora e têm pessoas analfabetas, semianalfabetas,
que assinam só o nome, né. [Roberta, Psi XIII-G: 17 anos]

e a classe social desse paciente também conta, que a gente passou a ter
uma demanda de classe média, classe média baixa e classe baixa muito
pobre. [...] È, no atendimento psicológico, hoje eu tenho pessoas que, há
muitas pessoas formadas com nível universitário, um grupo dia de
quinta- feira de tarde que praticamente todos têm nível universitário,
uns tão fazendo pós-graduação, fazendo mestrado, eu tenho uma jornalista
mesmo que já fez pós, tá fazendo mestrado, tem jornalista, tem psicólogo,
tem estudante de medicina, estudante de Direito. [Bruna, Psi XIV-G: 20
anos]

Muitos desses pacientes que procuram o centro... pacientes que têm, que
trabalham, são profissionais liberais, que trabalham lá fora, inclusive
muitos que trabalham na prefeitura de Salvador... [...] entendeu
Assistentes sociais, psicólogos, médicos e que vêm e que são atendidos. E
a gente não vai dizer o nome, nem divulgar nada, claro, mas são atendidos...
[Lorena, Psi IX-F: 20 anos]

Atendo muito pouco, mas tem muita procura [classe média]! Inclusive
pra terapia de adultos, tem muito estudante universitário que me
procura aqui, que não tem como pagar, né. Então tem essa questão de ser
alto, o custo do serviço lá fora é alto. Mas a gente não pode inflacionar isso!

191
Você não pode deflacionar, na verdade, você não dizer vou cobrar 20 reais,
porque também você fica muito longe da realidade, apesar de que alguns
convênios também já estão por aí, pagando 17, 18 reais, às vezes, as pessoas
até negociam, 25 essas coisas, tal. [Lindinalva, Psi VII-F: 18 anos].

No caso descrito, a escuta psicológica é garantida pela capacidade de

compreensão do processo psicológico e conseqüentemente do envolvimento dos

mesmos no processo, sendo que o enquadre é criativamente resolvido.

pacientes de classe média que não têm, hoje, condição de pagar terapia lá
fora... [...] procuram! E muito! E muito! Eu tenho vários pacientes
aqui..(Hum...)... e que estão bem, trabalhando e que não faltam. Eu puxo
a cadeira, encosto a mesa pra cá... é o máximo que eu posso fazer,
entendeu Porque não tem nenhuma... nenhuma sala...que seja: ―essa sala é
só pra atendimento psicoterápico‖; não tem. Tudo isso tinha que ser visto
pelo distrito. O mínimo!. Ninguém está pedindo sofás pra fazer psicanálise,
que eu acho que nem comporta e nem é o caso; é um trabalho muito longo.
Mas pelo menos, uma estrutura mínima, que o paciente se sinta confortável,
mais confortável. [Lorena, Psi IX-F: 20 anos]

É preciso ressaltar que os psicólogos estão descrevendo pessoas que têm maior

poder contratual (KINOSHITA, 2001), que podem ter perdido temporariamente, ou ter

comprometido, sua contratualidade no cenário do trabalho ou de troca de bens. Apesar

disso, nestes casos, o poder contratual parece ser contrabalançado a partir de outras

trocas como as de mensagens e afetos. A noção de poder contratual apresentada por

Kinoshita (2001: 55) ressalta a importância de propormos ações em saúde mental que

restituam o direito e a capacidade das pessoas de realizarem trocas em relação aos bens,

as mensagens e os afetos no contexto social em que vivem. O autor destaca que este

seria o objetivo da abordagem psicossocial dos problemas psiquiátricos, particularmente

se remetendo ao resgate da cidadania do louco. Percebemos esta noção como

emblemática, a despeito da gravidade do problema psicológico-psiquiátrico apresentado

pelo usuário, que pode orientar a atuação psicológica. No caso do tratamento

psicológico em relação à escuta acreditamos que cabe particularmente ao psicólogo não

barrar a possibilidade de trocas de mensagens e afetos dos usuários nos encontros

clínicos, nem dos que continuamente comprometeram seu poder contratual nem dos que

192
o comprometeram temporariamente. Nesta direção, quando não é possível proceder a

uma escuta do sofrimento do usuário, porque o modo dele expressá-lo é pouco familiar,

percebemos que o próprio trabalho psicológico diminui o poder contratual do usuário

em relação à troca de mensagens e de afetos.

No entanto, podemos vislumbrar que a ―classe média empobrecida‖ não é a

principal clientela que aflui nos serviços públicos de saúde. Podemos ter uma idéia do

perfil, em termos quantitativos, dos usuários que são atendidos nos centros estudados,

recorrendo ao recente estudo de Cammarota (2000). A distribuição por sexo é

praticamente igual para os três centros de saúde mental. Entre os 822 entrevistados, 45

% eram do sexo masculino e 55% eram do sexo feminino, mantendo a tendência de

serem mais as mulheres do que os homens a buscarem os serviços de saúde. Quanto ao

estado civil dos usuários, observou-se que 51% eram solteiros, 22% casados, 12%

separados, 10% viviam maritalmente e 5% eram viúvos; aqui também não há muita

diferença por centro freqüentado. As faixas etárias preponderantes foram as de 30 a 39

anos (26%), de 40 a 49 (52%) e de 50 a 59 (19,05%), considerando os três centros. Em

relação ao nível de instrução formal, 49% dos entrevistados podem ser considerados de

baixa instrução64, quando se soma os sem instrução (18%) e os que tinham o primário

(31%) (Tabela 3 ver ANEXO B).

Seguindo o raciocínio do autor, podemos considerar algumas diferenças por

centros em relação ao grau de instrução. O CSM-H tem o maior índice de usuários com

baixa instrução (55%), seguido pelos 51% que se encontram vinculados ao CSM-G e

pelos 44% em atendimento no CSM-F. Neste sentido, os usuários que apresentam maior

escolaridade freqüentam o CSM-F e CSM-G, respectivamente 19% e 15% (Tabela 3 ver

64
O autor utilizou o termo baixa instrução para especificar o grupo com ―reduzida capacidade para a
compreensão da linguagem por meio das palavras escritas, bem como para sua articulação-motora-fina
na transcrição das mesmas, sugerindo um estágio de educação formal precário e próximo ao
analfabetismo‖ (CAMMAROTA, 2000, p. 49)

193
ANEXO B). Caracterização que corrobora com a tendência apresentada nas narrativas

de nossos interlocutores e que reflete um padrão socioeconômico distinto entre os

distritos sanitários. No entanto, o estudo de Cammarota (2000) parece não ter captado a

entrada dos usuários que formam a demanda diferenciada e que identificamos em nosso

estudo, através de métodos não estruturados.

Segundo Cammarota (2000), o nível de renda é baixo entre os usuários dos

serviços, 45% deles não possuem qualquer fonte de renda pessoal, seguido pelo

percentual de 45,7% que contam com uma renda que varia entre um e cinco salários

mínimos, sendo que boa parte deles freqüenta o CSM-H, representando 54% da sua

clientela (Tabela 5 ver ANEXO B).

Considerado o perfil dos usuários por tipo de ocupação podemos perceber que

35,6% estão aposentados e 45,7% estão desempregados. No CSM-G concentra-se o

maior índice dos que não trabalham (49%) e o menor de aposentados (29%) em relação

aos outros dois centros (Tabela 6 ver Apêndice B). Aspecto que se torna,

particularmente, problemático se lembrarmos que há concentração de usuários

freqüentando os centros na idade considerada de maior produtividade,

predominantemente nas faixas etárias de 30 a 39 e 40 a 49 anos.

Os dados expostos brevemente acima nos fazem perceber que a maioria dos

usuários, que freqüenta os serviços de saúde visitados, tem baixo poder contratual em

relação a trocas de bens. Além disso, sinalizam que os mesmos podem ter sua

capacidade de trocas de mensagens comprometida caso tomemos como referência a

linguagem formal apreendida e incorporada com a escolarização, o que, na mesma

direção, pode, ou não, comprometer sua capacidade de troca de afetos, aspecto que

dependerá da habilidade dos profissionais de saúde, ou seja, de como ocorre a sua

escuta.

194
Esses elementos apontam para o fato de que temos que ficar atentos para não

excluirmos cada vez mais os usuários de baixo poder contratual da possibilidade de

receberem assistência psicológica, se tendemos a oferecer e reforçar um modelo que não

responde bem às suas queixas, demandas e formas de expressão do sofrimento

psicossocial.

O relato de caso, abaixo descrito, mostra a eficácia da atuação psicológica para o

que chamamos demanda diferenciada, que apresenta, como um dos benefícios visíveis,

a possibilidade de diminuir a medicalização:

Tem um, um rapaz, inteligente, classe média, mora na Pituba, mas não tem
condição de pagar, não tem plano de saúde, não tem condição de pagar e os
planos de saúde não cobrem psicoterapia, ‗cê sabe disso...(É)... Então, ele
veio pra cá e... já tem quatro meses que ele não usa...e tem quatro meses que
ele não usa cocaína nenhuma; ainda usa maconha. Se ele ficar com ela pouco
tempo, pouco, de uso... pouco uso, mas que não está usando mais nenhum
ansiolítico, só tá usando antidepressivo e a dosagem está sendo
diminuída aos poucos. E é conversado com o psiquiatra, essas coisas, essas
questões. [Lorena, Psi IX-F: 20 anos]

O próximo relato demonstra a mesma tendência à mudança de clientela atendida,

em outro tipo de atuação psicológica. Trata-se da procura da classe média empobrecida

de crianças e pré-adolescentes com queixas de ―problemas escolares‖. Do ponto de vista

da entrevistada, é necessário, frente ao aumento do fluxo dessa clientela nos serviços

públicos de saúde em busca de tratamento psicológico, controlar o seu acesso:

E agora a classe média procura. [...] Aqui o Centro. Então você ver assim...
eu já tive casos de filhos de dentista, que o pai não tem a menor condição de
pagar um tratamento, mesmo que seja simbólico, mesmo que seja uma
coisa... mas não tem a menor, porque está numa pior. Então assim... vem...
Eu atendo muito pouco essa clientela, porque eu sinto assim “poxa, se eu
preencho a minha clientela daqui, que já é limitada, com o pessoal de
classe média, eu vou tirar vaga daquele que não tem nada, entende?‖.
Então assim, já atendi eventuais crianças que aparecem, a mãe chega assim
muito mal. Às vezes, chega a certo ponto que a gente diz assim: a gente
investiga essas pessoas pra saber ―e aí, dá pra você pagar alguma coisa?‖
Levo até o consultório, por conta desse pode pagar e fica numa vaga aqui. Eu
jogo um pouquinho nisso assim. [Lindinalva, Psi VII-F: 18 anos].

A presença dessa demanda diferenciada amenizou muito uma das grandes

dificuldades que acometia sua atuação e dos demais profissionais desde o final da

195
década 1980 e início da de 1990: o abandono do tratamento psicológico. Neste período,

este era tão intenso que motivou Bruna junto com outros profissionais, inclusive

psiquiatras, a fazer uma ―pesquisa interna‖ para conhecer os seus motivos, a qual

revelou uma inadequação do tratamento ao tipo de queixa apresentada, uma queixa

social:

Tinha, o setor tinha suas normas e a gente atendia o paciente uma vez por
semana, fazia uma psicoterapia individual, não existia nessa época [final de
80 início de 90] psicoterapia de grupo; com o decorrer do tempo se via que
existia uma evasão muito grande dos pacientes e a gente não entendia por
que, por que que esses pacientes iam embora, a gente resolveu fazer uma
pesquisa interna, o paciente chegava, se dizia angustiado, tinha aquela
queixa e se passa a perceber que o paciente tinha muito mais uma queixa
social do que na verdade psico-social, psíquica entendeu! [...] e nós
fizemos essa pesquisa e o paciente muitas vezes nem sabia o que é o
psicólogo, não sabia da existência do psicólogo, não sabia o que era uma
terapia, não sabia por que que ele tava ali [...] [Bruna, Psi XIV-G: 20
anos]

Este levantamento do perfil dos usuários lhe deu clareza de que algo mais do que

a resistência e a transferência (conceitos psicanalíticos), fenômenos comuns ao processo

psicoterapêutico que fazem parte do manejo clínico, atrapalhavam uma atuação mais

proveitosa para os que buscavam ajuda, uma vez que são as pessoas que apresentam as

características citadas há pouco, que tendem a ter mais benefício como o tipo de

tratamento psicológico oferecido.

ficam, ficam, essas pessoas [mais esclarecidas] ficam no tratamento, lógico,


sempre tem quem não fique né, até mesmo aquele que vem com um desejo
próprio, uma demanda realmente espontânea. Mas a demanda da gente é
uma demanda médica, mas o que eu vejo de mais interessante nesse meu
tempo aqui no [diz o nome do centro], vamos dizer assim, as características
dessa demanda mudou, mudou muito. [Bruna, Psi XIV-G: 20 anos]

Outra idéia trazida nos relatos de Bruna merece ser destacada. Ela parte do

pressuposto de que a demanda é sempre médica, porque o contexto de trabalho é o

centro de saúde mental, e não o consultório privado. O que distingue a demanda

diferenciada das demais categorizadas é que, na primeira, prevalece o desejo do sujeito

de fazer um trabalho psicoterapêutico, não havendo menção nas narrativas dos

196
entrevistados que sugiram que eles estão ali por imposição de outros profissionais de

saúde.

O desejo do sujeito, como um outro aspecto da demanda diferenciada, não deve

ser entendida como um atributo exclusivo das pessoas de classe média empobrecidas,

pois que os mais pobres ―com certa sensibilidade‖ podem buscar, ou permanecer no

tratamento psicológico, mesmo se encaminhados, quando o tomam como um espaço

para terem acesso a um ―pensamento mais refinado‖, um espaço para ter um outro nível

de escuta:

tenho muito...eu tenho um que fica, coitado... e o pior é que eu tenho


achado... você conheceu até ele, [diz o nome do paciente]. Eu acho que ele
fica dizendo que ele não está bem, porque ele vem para cá ser escutado de
uma outra forma. Essas pessoas... o pessoal pobre, de um meio mais rude,
que têm uma certa sensibilidade, M., é terrível. Eles precisam adoecer para
ter um outro acesso a uma outra forma de pensamento; eu tenho sentido isso
aqui. É interessante isso, para ter uma outra forma de pensamento,
porque o meio onde eles convivem e as pessoas de uma forma geral são
muito embrutecidas, eu tenho reparado isso. Então, neguinho diz ―não,
doutora, eu não estou tão bem não‖. Você vê que essa pessoa já está
melhor, já está trabalhando, já está numa boa e o medo dele de que haja
uma alta e de que ele perca esse lugar daqui. Então, o benefício da doença
dessa pessoa paciente aqui. Ele está comigo ha cinco anos. Eu digo ―meu
Deus, a nível público as pessoas não ficam boas‖, mas é muito por causa
disso, de ter um espaço para ter um outro nível de escuta, um outro nível de
pensamento, eu percebo isso aqui. [Cristina, Psi III-B, 15 anos].

Como ressaltado acima, são pacientes com longa permanência em tratamento

psicológico em serviço público, cinco anos, e que não querem alta em função dos

benefícios que recebem com este tipo de trabalho.

Se considerarmos a introdução da demanda diferenciada é significativo ressaltar

que parece haver um novo arranjo com as necessidades de tratamento psicológico

oferecido, que anuncia menor distância entre os desejos e as demandas (NUNES e

outros, 2002) desses usuários, introduzidos aos poucos na rede pública de saúde.

Neste caso, mais uma vez as condições socioculturais interferem no processo de

permanecer, ou não, no tratamento, sendo que, nesse caso, aparecem associadas a outras

197
dificuldades, por exemplo, o fato de ser visto no centro de saúde mental e ser tomado

por ―maluco‖:

o importante é você ter conhecimento que a demanda mudou, eu acho que


isso é super interessante, é que o objetivo é você atender pessoas de classe
baixa, que hoje você não atende pessoas aqui de classe baixa,
praticamente a nível da psicologia, não atende, eu acho que os pacientes de
classe baixa, eles tão vindo somente quando não tem jeito. Agora Nordeste de
Amaralina [bairro popular], Pituba [bairro classe média], não, como é, ... vem
pra psiquiatria. Mas assim, eu tenho poucos pacientes de psicologia que
moram perto, eles têm vergonha, não querem vir porque alguém conhecido
pode passar, você tem esse dado também que eu não coloquei, ele muitas
vezes fala assim, ―ah, não vou, só tem maluco, então como é que eu vou
pra lá fazer terapia, chega uma pessoa conhecida minha”, e se escondem,
entendeu. Eu não tenho muitos pacientes que estão ligados, pertinho assim
entendeu, é Nordeste, é Alto da Redenção aqui, Cruz né, Santa Cruz da
Redenção [considerados bairros populares em torno do CSM-H], esses
lugares mais próximos, aqui, Vasco da Gama, muito pouco, é incrível [Bruna,
Psi XIV-G: 20 anos].

Todos esses relatos nos fazem perceber que tem havido uma diminuição da

escuta psicológica de usuários com ―queixa social‖ e aumentado a daqueles que têm

uma queixa explicitamente reconhecida enquanto ―psico-social ou psíquica‖. Podemos

perceber ainda que as pessoas com maior poder contratual têm se beneficiado com os

atendimentos psicológicos e que, de fato, se opera uma seleção sócio-econômica e

culturalmente informada.

Nas falas dos nossos entrevistados, percebemos, inclusive, o empenho de se criar

alternativas para resolver ou amenizar esse impasse, vislumbrando-se uma tentativa de

oferecer um serviço mais compatível com o perfil da clientela menos afeita ao

tratamento psicológico. Quando as razões concretas socioeconômicas são associadas à

dificuldade de acesso, por falta de dinheiro para chegar até o centro, por exemplo, as

soluções têm sido a de realizar encontros quinzenais, em vez de semanais. Quando são

consideradas as características sociais da clientela, sua forma de expressão e

sociabilidade, o que tem sido aventado, principalmente, é a inclusão da terapia de

grupo em vez da psicoterapia individual:

198
a coisa dos pacientes evadirem e depois a gente de sentir a necessidade de
fazer um levantamento pra saber o que seria, e se detectou que os pacientes
não tinham conhecimento do que era terapia, como é que funcionava, porque
que ele tava ali, vinham porque o amigo indicava, porque o medico dizia que
ele tinha que ir, então é isso, e vinha e muitas vezes ele não queria, ele queria
só falar o que tava passando na mente, falou, se sentiu melhor, vai embora ou
porque eu não tenho dinheiro pra pagar toda semana, então nós resolvemos
formar psic... e essa demanda aumentava, também aumentava muito o
número de pessoas que procurava o [diz o nome do centro] aumentava
muito a cada ano, e nós então percebemos que deveríamos criar os
grupos de terapia, foi um dos motivos que nós criamos, foi pra absolver a
demanda e tinham grupos que inicialmente pela esp..., formamos grupos de
pessoas que tivessem características, que não tinham condição de pagar,
que não tinham condição, não entendiam o que era o trabalho, não
porque que eles estavam ali, nós formamos um grupo com esse tipo de
característica, inicialmente esse grupo que era de quinze em quinze,
justamente por causa da própria dificuldade do transporte, depois por si só ele
foi crescendo e foi, eu tive essa experiência, porque eu que investi nisso,
porque eu tive uma performance, fiz parte desse levantamento, entendeu
[Bruna, Psi XIV-G: 20 anos]

Observamos claramente, no relato dos entrevistados, que a modalidade de

terapia em grupo tem sido principalmente realizada para lidar com as demandas

institucionais e médicas (quantidade de usuários e natureza dos pedidos), ou

psicologicamente falando, com as faltas delas (transformação da queixa em reflexão

sobre esta). Dessa forma, há uma tendência a organizar a atuação psicológica para o

trabalho em grupo, introduzindo, muitas vezes, técnicas corporais e de relaxamento,

particularmente os psicólogos não-psicanalistas.

No CSM-F não há psicólogos atuando no enquadre grupal, não há imposição da

gerência e nem desejo dos profissionais para este tipo de trabalho. Onde há imposição

da atuação psicológica no enquadre de grupo por parte da gerência, exclusivamente para

conter a grande demanda (quantidade de usuários), podemos perceber a indignação dos

psicólogos, e impõe a reprodução de narrativa tão extensa:

Portanto, não sei se pensam que nós somos ingênuos ao ponto de


acreditarmos, há algo como que quisessem nos convencer, inclusive que esse
trabalho que nós fazemos por exemplo, psicoterapia... é uma demanda
grande? É, mas na instituição há também espaço pra grupo e para individual,
há pessoas que têm um perfil pra atendimento em grupo e tem pessoas
que têm perfil pra serem atendidas [TI] há lugar assim para uma coisa e
pra outra. Então eu acho que há uma necessidade das duas coisas e o que eu
percebi, foi assim, tentativa mesmo de desqualificar esse trabalho
individual, os efeitos desse trabalho, que foi dito claramente, que é um
trabalho que tem uma diferença cultural muito grande entre profissional

199
e cliente e isso seria um impasse, [TI] de opera-se um tratamento, uma
psicoterapia. São coisas que assustam a gente, por que? Porque, há quanto
tempo vem se realizando dessa forma, e se se pensa, quem está à frente
pensa que é assim, por que que se permitiu que isso acontecesse por
tanto tempo? Na verdade, não se trata disso; na minha opinião, trata-se
simplesmente de que não convém mais que seja assim, então querem nos
fazer acreditar que isso não funciona, que não é eficaz, quando na verdade, eu
que tenho experiência, na minha prática, que eu tive experiência de ver o
quanto é importante... e esse... Retorno das pessoas, inclusive, pessoas até
dizerem que adiaram o tratamento desse tipo por muito tempo por
medo, por preconceito, que não imaginava que seria tão importante na
vida delas, que iria operar mudanças tão importantes na vida delas...
[Priscila, Psi XVI-H: 4 anos]

Nesta direção, em um dos fragmentos narrativos destacado acima percebemos

bem que a imposição de atuação psicológica em enquadre de grupo é vista como

ameaça que desqualifica o trabalho psicológico individual, quando os argumentos

pautam-se na ―diferença cultural‖ entre os psicólogos e a clientela, no sentido de

impossibilitar este benefício a algumas pessoas que buscam o serviço. É de fundamental

importância ressaltar que os psicólogos atendem pessoas pobres e com menor

escolaridade que se beneficiam com as psicoterapias, ou, ao menos, com as para-

psicoterapias. Reconhece-se uma clientela que é beneficiada pela psicoterapia individual

no serviço público e admite-se a existência de clientelas afeitas às duas modalidades de

intervenção terapêutica. O que é criticado é a postura autoritária e distanciada da

gerência, cuja orientação é marcada por desconhecimento e preconceito com relação à

prática psicológica.

No entanto, a ênfase dada à postura da gerência na interpretação da entrevistada

sobre os limites da psicoterapia individual em serviços públicos de saúde tende a

negligenciar a realidade de diversidade cultural com uma explicação frágil, quando o

argumento principal se remete à temporalidade da sua oferta, que há muito tempo está

entre as práticas terapêuticas realizadas nos serviços públicos de saúde.

Em síntese, podemos considerar que a psicoterapia em grupo foi introduzida

por duas circunstâncias complementares: a) institucional: grande demanda de usuários

200
e a dificuldade dos psicólogos de darem conta dos dispositivos institucionais 65, que

inclui tempo disponível para realização da sessão individual e as exigências de

produtividade: b) técnica: frente à inadequação do instrumental teórico-prático das

psicoterapias individuais para as demandas e caracterização da população atendida, mas

em alguns casos também como opção de atuação profissional.

8.1 Psicoterapia de grupo: demanda institucional ou necessidade de saúde?

Entre os entrevistados, é preciso ressaltar que a estratégia de trabalho em grupo é vista

como eficaz, pois que há garantia de princípios da psicoterapia; neste sentido não se

trata de ―grupo de auto-ajuda‖, nem de ―grupos informativos‖ e devem ser realizados

pelo psicólogo, não sendo uma tarefa que se estenda a qualquer profissional de saúde:

Quando eu fazia o grupo de mulheres mesmo, que eu trabalho assim com


relaxamento, com outros trabalhos corporais, mas, mesmo ali nesse grupo, eu
acho que todas as mulheres eram usuárias de ansiolíticos ou... porque assim,
as queixas desse grupo era assim, insônia, dor de cabeça, às vezes depressão,
às vezes, não era assim, que estava em processo de depressão, mas às vezes
tinha momento de depressão. E pessoas assim que, com muitos conflitos
familiares... conflitos familiares, social. Então a gente percebe assim que o
quanto essas outras questões interferem mesmo na sua saúde. Então assim,
talvez assim, algumas pessoas ali, quando você faz o trabalho, não só o
individual, o grupal, eu acho que... talvez seja um caminho assim pra que
elas possam se saindo mais dessa questão da medicação. Porque o meu
trabalho, quando eu faço, eu introduzo meu trabalho corporal, é porque eu
tenho trabalhado dentro de uma visão sistêmica, do ser, integrando nível
físico, mental, social, espiritual. Então procuro trabalhar dentro dessa linha...
[Neuza, Psi XVIII-H: 4anos]

Nessa modalidade, não se abdica de princípios básicos da psicoterapia, ou seja,

de trabalhar com os conteúdos trazidos pelas pessoas que formam o grupo. Emprega-se

65
Os entrevistados informam que há uma norma que diz que o psicólogo deve atender 12 pacientes no
turno, de seis horas. De modo geral, eles se recusam a cumpri-la, a partir do argumento de que é
humanamente difícil atender com qualidade esta quantidade de usuários em período tão limitado de
tempo, em se tratando de trabalho psicológico. Há, além da recusa de cumprir esta norma, os ajustes de
tempo de sessão que é diminuída em 10 minutos, apesar de todos acharem que deve ser de no mínimo 30
min, como em consultório particular. Por outro lado, nos centros onde é imposto marcar 12 consultas por
turno, os psicólogos contam com o fato de não irem todos os usuários, o que não é um fato incomum, ou
indo todos os usuários permanecem em serviço até cumprirem a agenda diária. Neste sentido, sempre
atendem individualmente durante 30 min.

201
a mesma noção de demanda psicológica e envolvimento do usuário no trabalho

psicológico, como discutido nas linhas precedentes:

Olha, não. Faço tanto de grupo quanto individual, entendeu, mais em grupo.
Por exemplo, que eu tenho quatro grupos aqui e é um trabalho em
psicoterapia mesmo, a gente trabalha em cima da demanda, eu trabalho
em cima da demanda do paciente, tá certo? [...] E eu tenho visto assim, pelo
menos nos meus clientes, né, eu tenho visto assim que eles têm uma
evolução, né. Eles têm uma evolução, né, formam vínculo com o grupo, né,
formam vínculo comigo também, né, eu vejo realmente que existe [Roberta
Psi XIII-G: 17 anos].

Trata-se então de uma estratégia para lidar com a produtividade exigida pela

avaliação da assistência em saúde mental (que está atrelada à liberação de verbas), sem,

no entanto, desprezar as noções básicas (manejar a demanda, a transferência, etc.) que

lhe conferem o caráter psicoterapêutico:

E então o grupo não, você pode ter um tempo maior para o grupo. Então
como eu gosto muito, adoro trabalhar com grupo e eu acho que o grupo é um
trabalho que você pode ir pro profundo também, sabe, quando você
direciona bem o grupo, quando você conduz bem o trabalho de grupo. Então,
uma das soluções, eu acho que é esse trabalho de grupo pra você poder dar,
cumprir com a questão da produtividade, né. Tem esse lado, agora tem um
lado também, porque eu acredito, porque, se eu não acreditasse no
trabalho de grupo, eu também não faria, cê tá entendendo? [Roberta Psi
XIII-G: 17 anos]

E ... tem pessoas que adoram trabalhar em grupo, tem pessoas que realmente
gostam muito. O grupo, eu acho que um é trabalho muito rico na verdade.
Por quê? Porque você vê que a sua realidade pode ser muito parecida
com a de outras pessoas, o grupo é um espaço onde se aprende muita
coisa, né, você pode trabalhar até com a questão da transferência, né, fica
mais diluída com, com.... é muito, eu acho muito interessante trabalhar com
grupo, eu sou meio que apaixonada, sabe? (risos) E eu acho que é bom a
nível da demanda daqui, que é muito grande e você pode fazer um trabalho...
[Roberta Psi XIII-G: 17 anos]

Nas narrativas aparecem indícios de que um dos aspectos importantes que

diferencia a psicoterapia de grupo da individual repousa no fato dele se estabelecer em

um espaço de trocas entre iguais, ou mais próximos, uma vez que a realidade retratada

por um dos usuários do grupo pode ser mais parecida com as dos outros membros.

Neste sentido, o atendimento psicológico em grupo aumentaria o poder contratual

(KINOSHITA, 2001) intransponível numa relação dual no que diz respeito as vertentes

202
de trocas de afeto e de mensagem, ampliando o potencial de benefício psicoterapêutico

para os usuários.

Dito de outra maneira, as pessoas que formam o grupo, com suas atitudes

idiossincráticas nem sempre controláveis pelo profissional, por questionarem

diretamente as pessoas do grupo, impulsionam a escuta psicológica para um enfoque

mais sociocultural dos problemas de saúde.

Poucas pessoas que... mas tem. Agora a gente trabalha no consultório


algumas pessoas também procuram, que eu tô lembrando agora de algumas
pessoas, mas aí, quando a gente consegue mostrar e ela consegue chegar a
conclusão de que tem coisas delas também, né, aí realmente... Aqui também,
né .... eh... tem ... como eu atendo muito em grupo, muitas vezes o grupo
também bota a pessoa em cheque (risos), entende!? Muito mais, às vezes
até do que a gente, né, mas de uma forma assim mais direta assim, né ....
mas ... eh... Eu acho que essas pessoas [que explicam seu sofrimento
incluindo conteúdos mágicos-religiosos] abandonam com mais facilidade.
Eu não sei, talvez se a gente não tenha... [Roberta, Psi XIII-G: 17 anos].

Bezerra-Júnior (1992), discutindo as terapêuticas ambulatoriais de serviços

públicos de saúde no contexto carioca, descreve a inclusão das psicoterapias breves e

terapias grupais, alternativas à inadequação das psicoterapias individuais, como

atuações que podem propiciar a inclusão de outras dimensões de significação da

experiência humana. Um dos seus argumentos nos parece muito útil para corroboração

dos nossos achados:

Colocado entre pares o paciente poderá exprimir os sentimentos e cotejar sua


experiência com um conjunto de pessoas que compartilham com ele do
mesmo universo sociocultural. A palavra do parceiro do grupo talvez
contenha maior plausibilidade, isto é, talvez possa veicular modelos de
identificação mais próximos, mais apreensíveis, do que o oferecido pelo
terapeuta (BEZERRA-JÚNIOR, 1992: 167).

O papel do terapeuta não é menos imprescindível e importante. Ele deve

funcionar como um

Elemento aglutinador, o fornecedor e mantenedor das regras de comunicação


no grupo, que irão permitir, não só a troca entre os componentes, mas,
sobretudo, a possibilidade de que os conflitos tornados sintomas (e portanto
transformados em linguagem não compreensível e não partilhável) encontrem
um caminho de expressão verbal que abra as portas à sua elaboração
(BEZERRA-JÚNIOR, 1992: 167).

203
Mais uma vez podemos nos remeter à estratégia grupal como uma possibilidade

de engajamento da clientela que busca os serviços públicos de saúde. Trata-se da clínica

da recepção, descrita por Figueiredo (1997) como tendo maior resolutividade em casos

onde o usuário não se adapta ao tratamento individual por poder contar e escolher entre

as duas modalidades de tratamento.

Percebemos, com as orientações de Bezerra-Júnior (1992), que o sucesso da

mudança de estratégia de intervenção está condicionada a uma certa disposição para

uma escuta mais cautelosa. O espaço da escuta nos serviços públicos de saúde está em

aberto e por ser conquistado. Pode ser preenchido por outros profissionais nos CSMs e

UBSs, e aí temos, ainda que não exclusivamente, a possibilidade de atuação dos

psicólogos. Considerando o primeiro caminho identificado para a compreensão da

―demanda‖, temos que reconhecer que os problemas enfrentados nos atendimentos

psicológicos não passam apenas pelos encaminhamentos externos, advindos do

processo de triagem, ou internos, ocorridos entre os profissionais de saúde. No entanto,

este é um ponto importante, uma vez que há uma tendência dos psicólogos em

atribuírem a não permanência do usuário no tratamento psicológico à natureza do

encaminhamento. Por outro lado, um dos principais processos que se opera em relação a

esses problemas é a seletividade socioeconômica e culturalmente informada da

clientela, decorrente da escuta psicológica asséptica.

204
9. SIGNOS E SIGNIFICADOS DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS

DESENVOLVIDAS EM SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

Muitos são os termos utilizados pelos psicólogos quando solicitados a falarem das

atividades que desenvolvem nos serviços públicos de saúde: psicoterapia, psicanálise,

psicoterapia de base psicanalítica, psicoterapia breve, orientação, aconselhamento

psicológico (individual ou em grupo), acompanhamento psicológico, terapia, terapia

breve, (de) apoio, de suporte e de grupo. No entanto, independentemente do tipo de

prática psicológica oferecida, é a escuta que fornece o élan entre as mesmas do ponto de

vista desses profissionais.

Podemos considerar que a psicoterapia [De psic(o)- + -terapia.], apesar de não

ser a única atividade desenvolvida pelos psicólogos nos serviços estudados, oferece um

atributo que define, de modo mais geral, a função desse profissional, sem que

precisemos dizer a sua orientação teórica. Para explorar a polissemia desse termo,

partiremos da seguinte definição disponível na língua portuguesa para psicoterapia:

1. Forma de tratamento em que se empregam meios mentais (sugestão,


persuasão, etc.), visando restabelecer o equilíbrio emocional perturbado de
um indivíduo. [A psicoterapia de apoio utiliza, em especial, técnicas
sugestivas, persuasivas, reeducativas, tranqüilizantes, enquanto a psicoterapia
profunda recorre a técnicas catárticas que variam da psicanálise clássica ao
psicodrama.] (AURÉLIO, 2003)

No terreno das psicoterapias, um jargão que se tem tornado muito caro ao campo

disciplinar da psicologia é ―escuta‖, usado freqüentemente entre seus pares para

qualificar e diferenciar sua prática de outras desenvolvidas por outros profissionais

(incluindo os psi). Do dicionário de língua portuguesa, como ponto de partida,

encontramos para esta palavra as seguintes acepções:

Escuta [Dev. de escutar.]


1. Ato de escutar. 2. Lugar onde se escuta.
S. 2 g. 3. Pessoa que escuta; escutador. 4. Pessoa encarregada de escutar as
conversas dos outros.

205
À escuta. 1. Em estado, postura ou atitude de atenção, de vigilância
(AURÉLIO, 2003)

Dentre todas as ferramentas terapêuticas mencionadas, particularmente à escuta

é atribuído um caráter mais refinado, uma certa curiosidade desvelada em um estado de

permanente atenção requintada por parte do psicólogo. Os psicólogos remetem-se a esta

ação básica do seu trabalho fornecendo à escuta uma qualidade de ação, de alerta, de

interesse sobre a fala significativa, que remonta à história dos sujeitos, revelada a partir

de seus sentimentos, emoções, desejos, conflitos.

Desta forma, elegem os encontros clínicos como lugares privilegiados de acesso

à subjetividade, de busca de autoconhecimento e crescimento, estabelecendo entre ele e

os clientes papéis diferentes e bem definidos. Duas das descrições sobre a escuta

psicológica podem ser lidas abaixo, ambas expressando o lugar da subjetividade no

processo de saúde-doença-cuidado, presentes nas narrativas de nossos interlocutores:

alguém [psicólogo] que ouça um certo lado dele, que outras pessoas não
estão acostumados a ouvir. Estão ouvindo lados importantes, como a
comida, como a dormida, mas tem esse lado da subjetividade que não...
alguém que não tenha preconceito com eles, [...] alguém que não julgue
[...] começou a aprofundar e eu fui favorecendo... o quê?, uma associação
livre dele, né? e ali sem julgamento, ―é mesmo? Quero saber mais, quero
saber mais‖. É difícil alguém chegar querendo ouvir mais. [...] Eu estava
ali para ele abrir aquilo que, aparentemente, não estava incomodando, o
cara era presidiário, pode dar problema na [diz o nome da instituição]. mas
dentro dele está a ferida lá... [Flávio, Psi XX-J, 7 anos]

pobre tem subjetividade, entendeu, não precisa de só informação, não


precisa só de grupo operativo. Pobre gosta de sentar numa sala sozinho e
falar da vida e isso melhora a vida dele, entendeu? Mesmo que ele não
possa dar jeito nas condições de saúde e de vida dele, isso traz um alívio,
entendeu? [Carmem Psi VI-E, 10 anos]

Nesta perspectiva, podemos defini-los como potenciais espaços de abertura, no

sentido de serem um lugar de liberdade e construção de subjetividade para o usuário,

contemplando dimensões de significação do sofrimento que os outros profissionais não

estão preparados para ouvir. A garantia desse espaço como marcador da natureza do

206
trabalho psicológico é o que motiva a defesa dos psicólogos em relação à importância

da sua atuação, muitas vezes desvalorizada dentro dos serviços públicos de saúde.

Feitas estas primeiras considerações, estamos nos propondo a refletir até que

ponto os encontros clínico-psicológicos e a escuta aí proporcionada podem funcionar

como espaços de ―transições instauradoras‖ de modos de subjetivação (FIGUEIREDO,

1995), considerando que, do ponto de vista da comunidade psi, esta escuta é orientada

por um determinado modelo de expressão da subjetividade (COSTA, 1989; BEZERRA-

JÚNIOR, 1993; FIGUEIREDO, 1995) que, em situações concretas, pode ampliar ou

limitar a própria expressão do sofrimento.

Nesta direção, a partir do referencial teórico-metológico que nos orienta,

pareceu-nos mais produtivo não considerarmos os termos utilizados pelos psicólogos

para se referirem a suas atividades como sinônimos, ou nos apoiarmos apenas nas

definições encontradas nos livros e manuais acadêmicos. Uma leitura mais cuidadosa

possibilitou-nos capturar os signos agregados a esses termos e as práticas psicológicas

que lhes são associadas e conhecermos os significados atribuídos às mesmas. Neste

terreno, partimos, mais uma vez, do que e como fazem os psicólogos a partir de casos

concretos.

As categorias apresentadas foram definidas, considerando o modo como os

psicólogos lidam com as dimensões de significação dos problemas de saúde

apresentados pelos usuários que buscam atendimento psicológico. Nesta direção,

distinguimos duas vertentes de atuação psicológica: psicoterapias e as para-

psicoterapias. Além disso, observamos duas modalidades da escuta psicológica: a

primeira vertente, que denominamos escuta cautelosa, e a outra, de escuta asséptica.

Estas últimas referem-se, grosso modo e respectivamente, a uma postura terapêutica

mais ou menos culturalmente sensível. Todas essas categorias serão paulatinamente

207
apresentadas e definidas à medida que realizarmos a leitura interpretativa das narrativas

dos nossos interlocutores.

9.1 Psicoterapias e Para-psicoterapias: vertentes da atuação psicológica.

ESQUEMA 02 PSICANÁLISE

ESCUTA PSICOLÓGICA
PARA-
PSICOTERAPIA PSICOTERAPIA

Em relação às práticas desenvolvidas pelos psicólogos, a psicoterapia, além de ocupar

um caráter de ―ideal de atuação‖ hierarquicamente superior, está sempre no plano da

possibilidade, é sempre um vir a ser. O usuário é sempre recebido pelo psicólogo como

um possível candidato à psicoterapia, seja através de encaminhamento interno (no

CSMs inclui a triagem), ou externo (demanda espontânea). A maioria dos psicólogos

organiza seu trabalho em torno da possibilidade de uma psicoterapia de base analítica;

as outras práticas são variações necessárias e circunstanciais, em certa medida

legitimadas quando há impedimentos à realização da psicoterapia. De certa forma, estas

últimas são tratadas pelos próprios profissionais como práticas menos importantes,

porém mais adequadas ao perfil de uma parcela da clientela, e são rotuladas aqui como

para-psicoterapias. Estas categorias foram definidas, considerando principalmente por

quem, como e onde são realizadas, a quem se destinam e suas funções terapêuticas e,

por fim, a influência dos dispositivos institucionais sobre as mesmas.

Os psicólogos, ao utilizarem o termo psicoterapia, apresentam os seguintes

signos e significados atribuídos ao mesmo: terapia de autoconhecimento, de

competência exclusiva do psicólogo, realizada a partir dos conteúdos trazidos

espontaneamente pelo usuário, baseada na capacidade interna e individual do usuário de

208
adequar-se à produção de um discurso psicológico tomado como modelo desde a

graduação do profissional.

Segundo esses profissionais, as psicoterapias realizadas nos CSMs e UBSs não

são ―análise‖ nem ―psicanálise‖. Um grande marcador que as diferencia, quando

realizadas no serviço público em relação ao consultório privado, é o fato de o psicólogo

―interferir muito mais‖, ser ―mais incisivo‖, característica que vai incidir na análise da

sua própria identidade de psicólogo-psicanalista:

Olha, a gente utiliza o referencial, né... é... psicanalítico aqui. E alguns


pacientes, dependendo do tipo, da problemática do paciente e da estrutura
desse paciente - quando eu falo de estrutura, quer dizer estrutura psíquica –
eu interfiro muito mais... do que interferiria no consultório, né? Por ser,
inclusive uma... uma... por haver, inclusive, uma possibilidade, não, uma
exigência, uma necessidade – é a palavra exata – de... esse trabalho ser no
menor tempo possível. Então, eu tenho que fazer um trabalho mais
incisivo e, às vezes, eu sou mui to menos... é... psicanalista aqui do que no
consultório. Eu não fiz a formação total em psicanálise, eu não concluí; mas
é o meu referencial, é o que eu trabalho; é com esse referencial que eu
trabalho. Agora, aqui, eu utilizo esse referencial, mas de outra... (Fim Lado
A) mais firmes e mais constantes, entendeu , até como uma forma de dar
uma sacudida no paciente pra poder ele caminhar melhor [Lorena, Psi IX-F:
20 anos].

Entre outros fatores que influenciam a não realização da ―análise‖ ou

―psicanálise‖ estão os derivados:

a) da estrutura institucional inadequada (sala, falta de divã, etc), mas este tipo de

questão é mais facilmente resolvido;

b) dos dispositivos institucionais (tempo e números de sessão, pressão para alta

psicológica e a predeterminação de quantidade de usuários a serem atendidos).

Acho que a gente não tem nenhum... nenhuma estrutura pra fazer um
trabalho psicoterápico bom aqui dentro. A gente faz um trabalho, que eu
chamo muito mais de uma psicoterapia de apoio. Apesar de a psicoterapia
de apoio ser considerada uma psicoterapia breve, eu tenho alguns pacientes
que já têm mais de três anos comigo, que eu não vejo condições de mexer, de
afastá-los. [Lorena, Psi IX-F, 20 anos]

Depreende-se que tais características estruturais precisam ser adequadas a

situações de trabalho em saúde pública na realização da psicoterapia: o número de

209
sessões que precisa ser imutável, uma vez por semana na melhor das hipóteses (porque,

no CSM-H, por exemplo, as sessões individuais são quinzenais), a duração da sessão

(que pode variar de 20 a 30 min, dependendo da pressão institucional), tudo isso

considerando exclusivamente a alta procura de usuários aos centros, e não a necessidade

do usuário ou a definição técnica do profissional. Esses aspectos são descritos como

causando prejuízo ao trabalho psicológico, embora os psicólogos busquem manter o

tempo de 30 minutos da sessão a todo custo, prevendo que as primeiras sessões, as

entrevistas preliminares, passam requerer uma hora, ou uma hora e meia. Destacamos a

citação abaixo, sublinhando que esta disposição para a escuta, traduzida no tempo de

duração da mesma e na crença na eficácia de um tratamento sistemático, não é incomum

nas narrativas de outros psicólogos:

a forma de atendimento é mais ou menos a mesma, só muda o mobiliário, só


muda a estrutura, só muda... o tempo, o tempo não da terapia diária: se no
consultório eu atenderia duas vezes por semana, três vezes por semana; aqui,
eu só posso uma vez por semana. Se nesse... no consultório são duas, três
vezes por semana, com trinta minutos de duração, quarenta, dependendo,
aqui eu atendo trinta minutos mesmo. A não ser as duas primeiras entrevistas,
que eu chego a passar de uma hora, que não é o normal pra nenhuma prática
dentro de um... trabalho público, mas eu chego a ficar até uma hora e meia
com o paciente numa primeira entrevista, segunda entrevista. Mesmo adultos,
eu chamo pai e mãe, quando necessário, certo , esposa, quando é
necessário... [Lorena, Psi IX-F: 20 anos].

Um terceiro fator nos parece, no entanto, bem mais significativo:

c) a inadequação das técnicas dos psicólogos a uma parte da população que busca os

serviços, seja por conta da estrutura psíquica do usuário, das expressões de sofrimento

incomuns, das condições socioeconômicas da população e, principalmente, do

distanciamento da clientela a um estilo intimista e introspectivo de expressar emoções e

sentimentos:

Acho que a gente não tem nenhum... nenhuma estrutura pra fazer um
trabalho psicoterápico bom aqui dentro. A gente faz um trabalho, que eu
chamo muito mais de uma psicoterapia de apoio. Apesar de a psicoterapia
de apoio ser considerada uma psicoterapia breve, eu tenho alguns pacientes
que já têm mais de três anos comigo, que eu não vejo condições de mexer, de
afastá-los. [Lorena, Psi IX-F, 20 anos]

210
É muito, muito eclético isso, um exercício de, é como eu falo pras minhas
colegas fora daqui assim, que eu já vi aqui, nesses quatro anos que eu tô
trabalhando, coisas que assim, eu acho que não chegariam num consultório
particular, entendeu? Assim, todo tipo de patologia, todo tipo de rede familiar
que você possa imaginar, e tal assim, é aí que você percebe que é uma
realidade completamente diferente, que você que tem que se adaptar
àquele, e não você querer que o paciente se adapte ao seu referencial,
entendeu? [Carla, Psi XVII-H: 4anos]

Nesta direção, dois aspectos são importantes de serem destacados em relação à

percepção dos entrevistados sobre a realidade dos serviços públicos de saúde. O

primeiro diz respeito à maior diversidade clínica e de redes familiares mais difíceis

de serem encontradas no consultório particular. O segundo aspecto está relacionado à

necessidade de adaptação da atuação psicológica para dar conta dessa realidade. A

maioria dos usuários parece não apresentar determinadas características que favoreçam

o engajamento que o trabalho psicológico exige. Um bom exemplo aparece no relato

abaixo quando se afirma que é a incapacidade de compreensão da população ao

tratamento psicológico que exige o ajuste:

Porque, desde quando a psicanálise começou, eu acho que tem muito a ver
com a história né, começou em uma época que quem procurava eram pessoas
realmente, era elite, começou com uma forma muito elitizada e, talvez por
conta disso, se criou uma ilusão de que, pra funcionar tem que ser
daquela forma, mas com o passar do tempo, com a necessidade, a
diversidade também, né, as pessoas foram ousando mais, ousando e
fazendo experiências tanto variar, extrapolar aquelas normas, romper
com algumas coisas, e, a partir daí, acho que se descobriu que é possível sim
fazer um trabalho. [Priscilla, Psi XVI-H: 4 anos]

É uma coisa assim que eu até criticava muito, assim que eu acho que aquela
coisa de referencial teórico, sempre criticava muito essas pessoas que
faziam desse modelo um monte de coisa, mas, ao chegar aqui, eu percebi
que eu tinha que me flexibilizar mesmo assim um pouco, porque senão eu
não ia tá podendo atender nem cinco por cento dessa população, né, eu ia tá
oferecendo um serviço mui-to elitizado pra o que essa população pede e
solicita, tem capacidade assim, às vezes, de compreensão, então. Meu
referencial teórico mudou, eu tive que passar a ler outras coisas assim, [Carla,
Psi XVII-H: 4 anos]

Em relação a este ponto, chama à atenção o fato de o profissional ter a

necessidade de mexer no próprio referencial clínico de base, seja incluindo outras

leituras, escolhendo determinadas técnicas em detrimento de outras que julga mais

211
pertinentes, ou mesmo vislumbrando a mudança, por vezes levada a cabo, para outra

abordagem teórica incompatível com a anterior66. A despeito desse fazer cotidiano, essa

necessidade de adaptação não passa por um questionamento profundo da capacidade do

profissional de ter uma escuta mais sensível aos desafios encontrados e tentar resolvê-

los do interior do seu próprio referencial teórico, sem tender a naturalizá-los como

sendo impostos pela pouca adesão da clientela.

Que mecanismos poderiam estar por trás dessa aparente dissonância entre

orientação teórica dos psicólogos e as demandas dos pacientes? Neste sentido, Figueira

(1978) buscou compreender como os pacientes orientavam-se no processo de busca

terapêutica frente à diversidade de sistemas simbólicos 67 disponíveis. O autor

identificou três estilos de relação de um sujeito com os sistemas simbólicos, a saber: o

isolamento, a relativização e a desorientação. Como o que nos interessa nessa tese é a

perspectiva dos profissionais, tomaremos de empréstimo estes estilos, invertendo o

sujeito de referência da análise realizada por Figueira (1978), dos que buscam o

tratamento (usuários) para os que o oferecem (psicólogo)68. Nesta direção,

consideramos que os psicólogos têm disponível uma gama de sistemas simbólicos,

ainda que circunscrita ao seu próprio campo disciplinar 69, podendo lançar mão desse

66
Aqui podemos citar um dos casos onde o profissional de formação psicanalítica, que atende a partir
desse referencial, disse estar fazendo formação em psicologia junguiana. Bastaria nos remeter a um único
conceito, o de inconsciente, para percebermos a distância entre tais sistemas simbólicos.
67
A partir da leitura de Peter Berger, Figueira (1978) trabalha com a seguinte definição de sistema
simbólico: ―matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A sociedade
histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro
deste universo‖ (p. 58). Outro aspecto importante de ressaltar é que Figueira complementa esta definição,
dizendo que o seu ―caráter nômico ou ordenador fornece, ao sujeito que o adote, uma perspectiva
coerente para a apreensão subjetiva das diferentes fases de sua biografia‖ (p. 59). A psicanálise e a
umbanda, objetos de estudo do autor, são consideradas sistemas simbólicos, capazes de fornecerem, em
momento de crise ou de episódios de doença, ―uma versão (interpretação, explicação), derivada de uma
Weltanschauung que lhes é própria, e a terapia, apoiada na versão enquanto procedimento diagnóstico,
para as dificuldades de um sujeito, permitindo-lhes saná-las (p. 59).
68
Esta operação não foi sugerida pelo autor, apesar de a leitura do seu texto ter nos feito cogitar esta
possibilidade. Ao contrário, ele sinaliza que o fato de o trabalho dos terapeutas estar inspirado pelo
―princípio de neutralidade‖, torna esta idéia um tanto quanto absurda.
69
Não houve referência espontânea de busca de recursos teóricos ou técnicos em áreas fora da própria
psicologia, a exemplo, da antropologia ou sociologia.

212
arsenal ao se depararem em sua trajetória profissional com questões que dificultam a

realização do seu trabalho.

Na relação de isolamento, o sujeito se orientaria totalmente por um específico

sistema simbólico. Este ―fornece ao sujeito uma weltanschauung capaz de dotar o

mundo e sua experiência social de sentido e lógica, não deixando brechas por onde

possa insinuar-se o desconhecido‖ (FIGUEIRA, 1978, p. 63). O estilo de relativização

permite que o sujeito mantenha uma relação mais amistosa com outros sistemas. Há

―possibilidade de relativizar a própria visão de mundo, captando-lhe os delineamentos,

limites, potencial explicativo e vantagens‖ (FIGUEIRA, 1978, p. 64). No outro extremo,

temos a desorientação - por motivos mais diversos, os sujeitos ―se encontram

impotentes diante da pluralidade, oscilam entre visões de mundo, conjunto de normas e

grupos de referência contraditórios, o que vem acompanhado de um estraçalhamento de

fidelidade e aliança‖ (FIGUEIRA, 1978, p. 65).

Não pretendemos caracterizar as trajetórias profissionais dos nossos

entrevistados a partir dos estilos definidos pelo autor. No entanto, levando-os em conta,

podemos considerar que os próprios profissionais, frente aos desafios encontrados para

a realização do seu trabalho, podem vir a desenvolver uma certa relativização ou

desorientação em relação ao seu próprio sistema simbólico, ao sinalizarem a

necessidade de flexibilização e adequação da sua atuação.

Uma das hipóteses de Figueira (1978) é que a relação de isolamento do paciente

estabelecida com um determinado sistema simbólico aumenta o poder de benefício do

mesmo, no que diz respeito ao aproveitamento do tratamento psicológico. A nossa

hipótese segue um caminho contrário, o estilo de isolamento do profissional pode

dificultar ou mesmo inviabilizar o maior ganho psicoterapêutico do paciente,

particularmente daqueles que se distanciam do sistema simbólico do terapeuta, já que

213
apostamos que um estilo de relativização pode apurar a sua escuta psicológica,

tornando-a mais sensível aos conteúdos socioculturais.

Dito de outra maneira, do ponto de vista do terapeuta, ou mais particularmente

dos nossos entrevistados, estas categorias nos parecem profícuas ao sinalizarem que o

contato dos mesmos com as explicações sobre os problemas de saúde construídas pelos

usuários, supostamente diferentes das interpretações sustentadas pelo seu sistema de

base, pode conduzi-lo a expressar um estilo de relativização ou mesmo de

desorientação. O desenvolvimento de tais estilos pode ainda decorrer da percepção do

profissional de que há lacunas dentro do seu sistema simbólico e de que não há

respostas adequadas para a superação de obstáculos interpretativos sobre as experiências

de sofrimento dos seus pacientes. No caso de isolamento justificaria a introdução de

leituras e mesmo de técnicas não propostas pelo seu sistema simbólico de origem, mas

complementares; no segundo caso de desorientação, vislumbrar-se-ia a mudança de um

sistema para outro teoricamente incompatível.

A conjugação de fatores destacados acima, que aparecem nas narrativas dos

nossos interlocutores como reforçando uma determinada prática em detrimento da outra,

vai conformar o uso do que denominados para-psicoterapias. No sentido utilizado aqui,

a princípio as para-psicoterapias70 [orientação, aconselhamento, terapia breve, (de)

apoio, (de) suporte, acompanhamento] correspondem a variações da atuação psicológica

―ideal‖.

Esta categorização de psicoterapia e de para-psicoterapia tem como pano de

fundo a própria cultura psicológica da assistência à saúde mental hierarquizada a partir

de uma crença de que o tratamento medicamentoso é tábua de salvação dos pacientes

psiquiátricos (melhor seria dizer, em termos técnicos, de ―compensação‖ ou

70
[par(a)- [Do gr. pará.] significa 'proximidade', 'ao lado de', 'ao longo de'; 'elemento acessório,
subsidiário'; 'funcionamento desordenado ou anormal'; 'semelhante'; 'oposição']:(AURÉLIO, 2003)

214
―estabilização‖71), estando as mesmas entre as terapêuticas de importância e de

eficácia secundárias ou complementares ao tratamento psiquiátrico.

Do ponto de vista dos nossos entrevistados, esta categorização sinaliza um outro

nível hierárquico dentro das intervenções psicológicas desenvolvidas pelos psicólogos.

Neste caso, decorrente do fato de ser necessário adequar a atuação psicológica em

resposta a determinadas particularidades apresentadas pela população atendida. Neste

particular, cabe destacar que o discurso de muitos usuários sobre os seus problemas de

saúde, de acordo com os nossos informantes, é fortemente marcado por problemas

socioeconômicos e culturais específicos. Neste terreno, a diferença entre as

psicoterapias e as para-psicoterapias que buscamos explicitar é muito sutil e complexa,

não estando atrelada exclusivamente aos cânones teóricos e técnicos de enquadramento

que legitimam a psicoterapia breve 72.

Em síntese, a nossa hipótese é que, em situações concretas de escuta psicológica,

o que pode contribuir para a compreensão da realização de uma prática psicoterápica em

71
Jucá (2003), em recente estudo sobre os sentido da cura em saúde mental, discute duas categorias,
compensados e estabilizados, utilizadas pelos profissionais para qualificarem o quadro do paciente. Em
detrimento da riqueza da sua discussão, destacamos que ―o paciente compensado é aquele que: está como
sintomas controlados; assim mantido através do uso de uma determinada medicação (em dosagem
específica); e tem possibilidades de conviver socialmente (o que não implica integrar-se na sociedade de
modo ativo‖ (p. 104). Em relação à ―estabilização (ou quadro/ paciente estável) diria respeito aos casos
em que existe sempre a persistência de um quadro sintomático que resiste à intervenção médica [...] os
pacientes podem até ter seus sintomas intensificados em um dado momento, mas como o uso da
medicação, o resultado máximo obtido seria levar ao retorno do quadro ―de base‖ (p. 104).
72
Percebemos o quão difícil é estabelecer parâmetros precisos que diferenciem as psicoterapias das para-
psicoterapias, do modo como as descrevemos aqui. No entanto, não seria difícil encontrar contradições se
optássemos em seguir os aspectos que caracterizam as psicoterapias-breves de orientação psicanalítica da
corrente que lhe dá sustentação (a psicanálise). No fragmento de narrativa descrito, percebemos a
contradição na descrição da entrevistada quando diz fazer psicoterapia de apoio, como vertente da
psicoterapia breve, com o tempo superior ao indicado na literatura especializada. Considerando apenas a
temporalidade do tratamento (BRAIER, 1997), podemos considerar psicoterapia de apoio como sinônimo
de breve quando a escuta psicológica dura três anos? Ver no Anexo C, o quadro comparativo de algumas
características teórico-técnicas da psicanálise e da psicoterapia breve de orientação psicanalítica,
elaborado por Braier (1997: p. 39). Chamamos atenção aqui para a questão da duração ou
temporalidade, descrita pelo autor como ―prolongada e indeterminada‖ , ―fixa previamente, curta de
alguns meses‖, respectivamente. Além disso, o autor destaca os seguintes aspectos: fins terapêuticos e
técnica, a última composta por itens como: trabalho com conflitos, regressão e dependência,
desenvolvimento e análise da neurose de transferência, análise de resistência, insight, elaboração,
fortalecimento e ativação das funções egóicas, focalização, multiplicidade dos recursos terapêuticos e, por
fim, planejamento.

215
detrimento de outra, ou da conjugação de teorias e de técnicas diferentes, parte do modo

como os psicólogos lidam e interpretam as demandas dos usuários, ou seja, as

dimensões de significação dos problemas de saúde apresentados por uma

população menos afeita ao ideário individualista, apostando no atravessamento da

cultura psicológica na nossa sociedade e frente às dificuldades intrínsecas e decorrentes

do mesmo para levar a cabo uma escuta mais culturalmente sensível.

9.2 ATUAÇÕES PSICOLÓGICAS: dimensões de significação e função

psicoterapêutica

ESQUEMA 03
PSICANÁLISE

ESCUTA PSICOLÓGICA
PSICOTERAPIA
PARA-
PSICOTERAPIA

DIMENSÕES DE
SIGNIFICAÇÃO

INDIVIDUAL COLETIVA

Podemos perceber duas grandes dimensões de significação atreladas às práticas

psicológicas e, conseqüentemente, fonte potencial de guia da escuta psicológica.

Dimensões de significação de um problema de saúde referem-se a um conjunto de

aspectos qualitativamente importantes e valorados por quem interpreta um determinado

problema de saúde, atribuindo-lhes algum significado e sentido, aos quais podemos

relacionar para compreendermos o problema e as respostas elaboradas para o seu

manejo 73.

Observamos dois componentes principais que marcam principalmente as

atribuições presentes nessa dimensão de significação. Um deles caracterizaria o que

73
Este termo foi utilizado, primeiramente, no projeto de dissertação de Lima (2000), quando buscou
compreender os signos e significados da experiência depressiva e as práticas utilizadas para o seu manejo,
a partir do ponto de vista das pessoas deprimidas e da sua rede de apoio.

216
chamamos de dimensão individual (psíquica e biológica), podendo ser definida a partir

da estrutura psíquica do usuário (psicótica ou neurótica) ou pelo tipo e gravidade da

doença propriamente dita (transtornos mentais leves, moderados e graves); geralmente

são aspectos que se remetem a interpretações de cunho mais interno dos problemas de

saúde. O outro componente diz respeito à dimensão de significação coletiva, melhor

caracterizada pelos aspectos socioeconômicos e culturais evidenciados nas

interpretações dos psicólogos; a princípio, tudo aquilo a que não se poderia dar

respostas clínicas, mas que está em jogo na produção de sentido do sofrimento

(ESQUEMA 03).

Esses dois componentes e a sua distinção guardam uma interessante

correspondência com conceitos como illness e disease, desenvolvidos no interior da

antropologia médica norte-americana (KLEINMAN, 1977; KEYES, 1985; YOUNG,

1990). Esses conceitos foram desenvolvidos no intuito de ampliar a compreensão de

como as pessoas, em contextos socioculturais específicos, produzem significados sobre

os episódios de doenças e como buscam os tratamentos disponíveis. Neste sentido, é

possível distinguir duas maneiras de entender a doença: a) ―disease, que é entendida

como mau funcionamento ou má adaptação de processos biológicos ou psicológicos‖:

b) ―illness que é considerada pessoal, interpessoal e como uma reação cultural à

doença‖ (KLEINMAN, 1977: 9).

A fim de situar esses conceitos, explicitando em que contexto principal eles se

inscrevem, Kleinman (1978) chamou atenção para três tipos de arenas sociais que

podem compor um sistema de cuidados em saúde: a popular (contexto familiar, rede

social e atividades comunitárias); a folk (curadores especialistas não-profissionais); a

profissional (cientistas profissionais ocidentais ou cosmopolitas e curadores

tradicionais). Essas arenas são construídas a partir de distintas formas de realidade

217
social e organizadas como subsistemas de opiniões legitimados socialmente, ou seja,

diferentes realidades clínicas, na medida em que estão relacionadas às expectativas, às

regras, aos relacionamentos, às experiências pessoais peculiares, produzindo diversas

formas terapêuticas.

A partir dessa categorização de Kleinman (1978), subentende-se que a idéia de

disease corresponde à visão da arena profissional. A concepção de illness está

associada à arena popular, ou seja, às pessoas comuns, aos pacientes e seus familiares.

Embora a arena folk se apresente como sendo estruturada de acordo com o uso do

conhecimento tradicional de um determinado grupo e de domínio de alguns agentes

terapêuticos privilegiados, na visão de Kleinman, ela não estaria associada nem a uma

visão de illness nem de disease, sendo claramente marcada pela cultura. Ora, para

autores como Keyes (1985) e Young (1990), esta compreensão pode conduzir à noção

reducionista de que apenas as concepções de doença da arena popular, ou mesmo a folk,

são influenciadas pela cultura.

Para Keyes (1985), disease se constitui em uma interpretação de um terapeuta

que percebe e rotula uma anormalidade dentro do seu sistema nosológico específico,

não necessariamente um mau funcionamento biológico. Deste ponto de vista, tanto

disease como illness seriam construções orientadas socioculturamente, podendo ser

aceitas como partindo de arenas sociais diferentes. Na mesma direção, a crítica de

Young (1990: 200), em relação a estes conceitos, é de que os mesmos podem conduzir à

idéia equivocada de que illness vem de um ―conhecimento dominado pela subjetividade

e pela cultura‖ e disease pelo ―conhecimento livre do domínio cultural‖.

Estivemos atentos a este possível equívoco. Neste particular, buscamos

explicitar teoricamente, no capítulo dois, em relação ao conceito de cultura psicológica,

mais particularmente à psicanalítica, que há um eidos, um ethos e mesmo um dialeto

218
(FIGUEIRA, 1985; 1988) que é específico dessa arena profissional, que anuncia a

presença de uma específica lógica para o pensamento, indicando a busca de explicações

para os acontecimentos fora do aparente e no domínio pessoal, que sinaliza a existência

de um código para o controle e a expressão das emoções e, por fim, para a

incorporação da linguagem psicanalítica em contextos cada vez mais amplos da

sociedade, respectivamente. O que implica pensar, como dissemos, em um específico

modo de subjetivação no domínio dessa cultura particular, que pode ser diferente se

considerarmos os distintos pólos que lhe sustentam: os produtores e os consumidores,

que têm papéis diferenciados no processo de construção e difusão da cultura

psicológica. Isso sem deixar de reconhecer que os consumidores se apropriam de modo

particular dos signos e significados elaborados pelos produtores (SILVA, 1995) e ainda

produzem muitos outros.

A distinção proposta por Kleinman pode ser útil para ressaltar que múltiplas

interpretações surgem a partir de olhares diferentes sempre influenciadas pela cultura de

origem de seus atores. O que vale a pena ressaltar é que o próprio Kleinman (1977) não

se furtou a afirmar que as interpretações do paciente e da sua família e aquelas do

médico nem sempre estão em concordância, dificultando o processo de comunicação e

interação entre o médico e o paciente.

Nesta direção, Uchôa e Vidal (1994) concordam que a noção de modelo

explicativo de doença, advindos de grupos diferentes, seja o ―científico‖ ou o ―popular‖,

ajuda a compreender cada um dos elementos do sistema cultural de saúde, oferecendo

subsídios para avaliar a distância que separa os modelos oficiais de saúde dos métodos

populares encontrados em um contexto cultural específico, permitindo a realização de

intervenções adequadas segundo as nuanças socioculturais, facilitando a comunicação

entre as pessoas de diferentes setores.

219
Em termos da utilidade do ponto de vista antropológico apresentado para a

prática clínica, podemos pensar que há necessidade de os profissionais aprimorarem a

competência cultural, ou seja, terem habilidade suficiente para conseguir o maior

entendimento psicológico culturalmente informado do paciente (HUNG-TAT e FUNG

2003).

Após tais esclarecimentos, buscaremos caracterizar mais sistematicamente as

psicoterapias e as para-psicoterapias, considerando como os psicólogos lidam com as

dimensões de significação que aparecem nas queixas e nas demandas dos usuários, ora

valorizando, ora desvalorizando determinados aspectos solidamente imbricados nos

problemas por eles apresentados, conferindo função psicoterapêutica para direcionar o

seu tratamento psicológico.

9.2.1 ATUAÇÕES PSICOLÓGICAS: dimensão de significação individual

Uma das perspectivas da dimensão de significação individual que orienta a atuação

psicológica diz respeito à relação entre o tipo e a gravidade da doença, e não a pessoa

doente. Neste sentido, os problemas graves de saúde mental, como as esquizofrenias, as

depressões e ansiedades acentuadas seriam mais adequadas, ao tratamento por meio das

para-psicoterapias, tais como abaixo classificadas:

Psicoterapia como suporte ou apoio

Algumas são... têm, também são atendidas por psiquiatras e fazem uso de
medicação, não todas, né, só aquelas que necessitam. Pessoas em... crise
muito acentuada, crise de ansiedade muito forte, depressão muito também
acentuada, então fazem uso de medicação e a psicoterapia fica mais como
um suporte assim, mais como um apoio, né. [Guilherme, Psi XV-G: 17
anos]
Orientação

220
E em alguns casos inclusive, alguns que têm, pessoas com esquizofrenia em
tratamento psiquiátrico lógico! Porque chegam compensadas, têm tido assim
um retorno assim positivo, por que? porque é um trabalho mais assim de
orientação, até pra uma organização mesmo do dia-a-dia, de questões
práticas. [Priscila, Psi XVI-H: 4 anos]

As para-psicoterapias comumente aparecem descritas em situações em que o seu

emprego envolve uma função psicoterapêutica secundária quando comparadas à

atuação idealizada, representada pelas psicoterapias de base analítica (ESQUEMA 03).

Como referido anteriormente, do ponto de vista dos psicólogos, podemos também

perceber que o uso de medicação é um marcador com potencial hierárquico que coloca

as para-psicoterapias em segundo plano em relação à sua capacidade de trazer

benefícios palpáveis aos usuários. Neste sentido, a ―compensação‖ seria uma

precondição, não sendo muito concebível a idéia de que o próprio tratamento

psicológico venha a favorecer o processo compensatório. O estudo de Jucá (2003) nos

ajuda a entender este argumento.

Jucá (2003) identificou e discutiu os principais promotores - o trabalho, a família

e a medicação - de compensação ou descompensação de pacientes com problemas

psiquiátricos, concluindo que eles podem operar ora para um lado, ora para o outro.

Neste processo, a interrupção da medicação teria um peso enorme, sua suspensão

conduzindo à saída do estado de ―equilíbrio‖ do paciente, o que é verbalizado por todos

os profissionais psi e familiares entrevistados pela autora. Outros agentes

descompensadores são o ―cotidiano‖, a ―pressão social‖ ou as ―expectativas sociais‖ não

alcançáveis pelos usuários. Dentre os agentes compensadores estão ―o desejo de não

adoecer‖ e a ―relação terapêutica‖. A autora discute este último agente compensador, a

relação terapêutica, quando apresenta o trabalho de manutenção 74 realizado pelo

psiquiatra, que inclui as consultas periódicas, a função do médico que se reduz cada vez

74
―termo utilizado para designar o tratamento ambulatorial destinado aos pacientes considerados
―compensados‖ (JUCÁ, 2003, p. 138)

221
mais a um papel de emissor de receitas e o ―auxílio‖75 de outras terapêuticas. Nesta

perspectiva, conclui que ―é visível a tendência de hierarquizar as várias terapêuticas,

onde o psiquiatra aparece no ápice e as outras intervenções se caracterizam como

trabalhos de ‗apoio‘‖ (JUCÁ, 2003, p. 154).

No primeiro momento, a leitura do estudo de Jucá (2003) chamou a atenção pela

constatação da ausência do trabalho psicológico como um dos agentes

compensadores no discurso dos profissionais psi. Paradoxalmente, se encontre, no

discurso dos usuários entrevistados, o indicativo de que há ganho terapêutico quando se

pode dispor de acompanhamento psicoterápico, interpretado pela autora como espaço

possível para os usuários ressignificarem sua condição de “doente mental”,

concomitante ao trabalho de manutenção. No segundo momento, a única menção feita

por um dos psiquiatras por ela entrevistado remete à idéia de que o trabalho psicológico,

neste caso psicanalítico, pode funcionar como um fator indiretamente

descompensador. Segundo Jucá (2003, p. 155), o entrevistado mostra-se:

reticente com relação às psicologias de base mais interpretativa, como a


psicanálise, e fundamenta sua desconfiança, lembrando pacientes seus que
interromperam a medicação que vinham utilizando por seguir o
conselho de seus psicoterapeutas [ênfase nossa]. Segundo o psiquiatra, isto
aconteceria principalmente nos quadros de depressão, onde a ―posição
reflexiva‖ adotada pelo paciente reforçaria a crença de que, nestes casos, a
psicoterapia seria suficiente.

É interessante notar que, do ponto de vista dos profissionais, este tipo de atributo

descompensador seja atribuído ao papel que a religião tende a exercer nos usuários que

aderem a algum tipo de tratamento religioso, que, ao seguirem os conselhos dos

pastores, interrompem o uso do medicamento, aspecto discutido por Jucá (2003).

Do ponto de vista dos nossos interlocutores, há uma tendência de a psicoterapia

ser vista como mais indicada para alguns casos específicos, geralmente coincidindo com

75
Ênfase atribuída pela autora.

222
as demandas trazidas pelos neuróticos, principalmente para os psicólogos que não estão

preparados para atender a clientela de psicóticos, que é a maioria dos profissionais:

e eu vejo, até com relação ao profissional de psicologia, uma limitação


mesmo com esse trabalho [psicoterapia] com psicótico; não que não seja
possível, é possível. [Priscilla, Psi XVI-H: 4 anos]

Por outro lado, há casos em que a escuta psicológica é vista como um ―apoio‖,

qualificada aqui como para-psicoterapia, mas que não desautoriza um trabalho

psicológico, mesmo para psicóticos:

porque é mais um apoio que eu dou a ela; é uma escuta, claro, eu escuto, ela
fala!... Tem um discurso, inclusive, espontâneo, apesar de desorganizado,
porque ela tem uma estrutura bem comprometida, mas ela não aceita
[interromper, ter alta]. Ela vem toda semana. [Lorena, Psi IX-F, 20 anos]

O relato acima, do ponto de vista do usuário, parece colocar o tratamento

psicológico como um espaço de ressignificação da sua condição de doente mental, para

usar o termo desenvolvido por Jucá (2003), em estudo sobre os sentidos da cura em

saúde mental. Vejamos um pouco mais sobre a história dessa paciente atendida por

Lorena. Ela começou a ser atendida há três anos atrás, tem 33 anos, fez a primeira crise

de esquizofrenia aos 19 anos e tem um filho. Foi encaminhada pelo psiquiatra para o

tratamento psicológico. Em algum momento foi morar em Arembepe e recomendada

pela psicóloga a continuar seu tratamento na cidade para a qual estava se mudando.

Apesar da distância, esta proposta não foi bem aceita pela usuária, que continuou

comparecendo ao ambulatório em busca de dar continuidade ao seu atendimento

psicológico, sendo acolhida pela psicóloga:

Tenho, por exemplo, o caso de uma paciente aqui que eu... que ela foi morar
em Arembepe com a mãe dela. Ela tem um filho... ela teve um filho...
adoeceu com 19 anos, é jovem e... veio pra mim, encaminhada pelo
psiquiatra. E eu comecei um trabalho com ela e tudo mais... consegui,
inclusive, ligar as trompas dela fora daqui, fazer uma busca com um
pessoal conhecido... na [diz o nome do hospital] pra... porque senão ela ia ter
criança todo ano, parir todo ano, porque ela não tem nenhuma censura, não
sabe nada do... quer é sair, fugir de casa e é aquela confusão toda. E essa
paciente foi morar em Arembepe com a mãe. E, aí, eu resolvi conversar com
ela e dizer que ela deveria ficar sendo atendida lá em Camaçari, que era

223
bem mais perto. E a mãe achou bom. E, inclusive, conseguimos um
psiquiatra pra ela lá, a nível de atendimento ambulatorial, e encaminhamos
pra uma psicóloga também lá em Camaçari. Duas semanas depois, ela
volta chorando... e voltou pra cá e está de novo aqui comigo e eu recebi de
volta. E ela ficava vindo de Arembepe toda semana e não perdia o
atendimento e voltou pro psiquiatra daqui também. Porque ela não... não...o
vínculo dela é aqui, com os profissionais daqui e não com os de lá; ela não
fez o vínculo lá, não conseguiu. E chorava e pedia. Eu não ia deixar essa
paciente sem atendimento. [...] Ah! É isso que eu digo. Depois do retorno, ela
já „tá comigo tem mais de três anos, porque... e ela não falta! [Lorena, Psi
IX-F, 20 anos]

No relato acima, podemos perceber que a psicóloga qualifica o tratamento

psicológico como um apoio. Esta adjetivação decorreria do fato de se tratar de uma

pessoa com estrutura psicótica, ou por incluir estratégias pouco convencionais76 à

atuação de um psicólogo? Estimular a produção de discurso espontâneo, apesar de

―desorganizado‖, e desenvolver um acompanhamento sistemático através de ―escuta‖

(que ocorre uma vez por semana) não dariam a esta atuação psicológica um status de

psicoterapia? Tudo isso considerando que a usuária parece se beneficiar com o

tratamento psicológico associado ao psiquiátrico, estabelecendo vínculo com ambos os

profissionais.

Três pontos merecem ser ressaltados aqui. O primeiro diz respeito à

consideração de que talvez o caso da usuária exija inserção em outro tipo de dispositivo

de cuidado em saúde mental, a exemplo do CAPS, que viabiliza o acompanhamento

mais intensivo que o seu problema parece requerer. Segundo, que o ambulatório, apesar

do empenho de alguns profissionais, não tem como dar conta de determinados casos,

mas que visivelmente há um esforço significativo dos mesmos, considerando os

investimentos diários para o exercício da sua função, em situações de trabalho às vezes

muito precárias. Terceiro, e mais importante, o tipo de laço e benefício específico do

processo de escuta, que aparece na para-psicoterapia oferecida, demonstra que é

76
Articular com pessoas conhecidas para viabilizar cirurgia de ligadura de trompas de uma paciente, por
exemplo.

224
necessário apostar na conjugação entre a clínica e as intervenções psicossociais

(GOLBBERG, 1994; TENÓRIO, 2001; BEZERRA-JÚNIOR, 2001). Neste sentido, não

percebemos justificativas que possam vir a qualificar este tipo de atuação psicológica

como secundária no tratamento da paciente se não as decorrentes de uma visão

reducionista do transtorno mental, que tenderia a desqualificar o cuidado da saúde

mental pautado no manejo da subjetividade.

Há uma tendência, que aparece nas narrativas dos psicólogos, de que a

psicoterapia seja mais adequada ao tratamento de neuróticos do que de psicóticos, muito

mais pela consciência em relação ao despreparo individual de cada profissional em

tratar os últimos77. No entanto, podemos encontrar aqueles cuja concepção defendida

remete à idéia de que a própria prática desenvolvida pelos psicólogos não tem alcance

psicoterapêutico para os psicóticos.

Por que é comum que os psicólogos, como um dos representantes da

comunidade psi, que entram para atuar justamente em centros de saúde mental, não

atendam psicóticos ou neuróticos graves? O estudo de Nicácio (1996) sobre o padrão de

distribuição da clientela entre os serviços de psicologia e psiquiatria de um ambulatório

indica que este fato pode ocorrer em decorrência da diferenciação de formas típicas de

sofrimento psíquico. Os ‗doentes dos nervos‘ e os ‗loucos‘ são atendidos pelos

psiquiatras, sendo submetidos exclusivamente a tratamento medicamentoso. Por sua

vez, os ‗sujeitos psicológicos‘, ou seja, aqueles aptos a tematizarem verbalmente o

sofrimento, são encaminhados para psicoterapia, embora paralelamente possam fazer

uso de psicofármacos.

77
É necessário considerar a hipótese de que os psicólogos, mesmo em consultório particular, não têm os
psicóticos como clientela principal. Esta suposição é recorrente na comunidade psicológica, mas não
temos nenhuma referência em literatura especializada sobre atendimento psicológico na clínica particular,
ao menos para Salvador-Bahia. Isto nos faz chamar a atenção do leitor para a possibilidade de que a
seleção da clientela por estrutura psíquica não se restringe ao contexto dos serviços público de saúde.

225
Podemos buscar hipóteses que justifiquem não só o despreparo como o

desinteresse dos psicólogos no cuidado a este tipo de clientela na ênfase dada na

graduação à prática da clínica-escola, nos moldes da clínica tradicional, em duas

direções: a) a formação clínica concentrada nestes espaços não facilita a inclusão de

pacientes com problemas psíquicos graves; b) o contato com a dimensão clínica e os

aspectos psicossociais que envolvem os pacientes com transtorno mental parece não ser

uma experiência suficientemente motivadora que desperte nos estudantes e nos futuros

profissionais de psicologia a curiosidade e interesse para o aperfeiçoamento a posteriori

para o cuidado aos pacientes com transtornos graves.

Ainda em relação à estrutura psíquica, se deslizarmos o olhar para os ―não-

psicóticos‖, encontraremos outro tipo de seleção socioculturalmente orientada em

relação aos próprios neuróticos, já que estes formam a clientela básica dos psicólogos

nos serviços visitados. No caso dos neuróticos, esta seleção recai na capacidade de

compreensão do tratamento psicológico por parte do usuário, que pressupõe que as

pessoas por serem ―mais informadas e mais esclarecidas‖, estariam mais aptas à

psicoterapia.

Uma das nossas hipóteses para explicar este acontecimento é corroborado com a

reflexão trazida por Bezerra-Júnior (1993). É possível que esta ―seleção‖ esteja

operando por causa da confusão entre competência psicológica e a capacidade universal

de expressar conflitos psíquicos (BEZERRA-JÚNIOR, 1993). Confusão revelada pela

expectativa do profissional de que haja, por parte do usuário, a capacidade de descrição

detalhista e minuciosa dos sentimentos e emoções associados ao sofrimento e à

tendência de buscar explicações fora do aparente, recorrendo ao seu mundo interno,

típica da competência psicológica. As palavras de Costa (1989, p. 33), transcritas

abaixo, apontam o prejuízo de se esperar um paciente ideal:

226
O preconceito do sujeito ideal paciente e o sujeito ideal terapeuta finge que o
indivíduo com problemas psíquicos não tem estatuto sociocultural. Deste
modo, cria impedimentos ao exercício da psicoterapia [ênfase nossa],
cujos fundamentos últimos não são as técnicas, mas a criação da
possibilidade de que o inconsciente se manifeste e produza seus efeitos.

Nesse particular, entra em jogo mais explicitamente a segunda perspectiva

atribuída à dimensão individual: é a pessoa, e não só a doença, que define o sentido

atribuído às práticas psicológicas. O significado atribuído à prática ocorre a partir da

capacidade individual do sujeito, ou, nas palavras de Bezerra-Junior (1993), da sua

competência psicológica, podendo, então, exercer função psicoterapêutica principal. Os

relatos abaixo nos remetem a signos específicos que qualificam determinadas pessoas

mais aptas à psicoterapia:

Eh... é assim, eu acho que as pessoas mais informadas e mais esclarecidas


tendem a aceitar melhor e entender melhor a psicoterapia, né, e a
freqüentarem e serem mais assíduas e demorarem mais... Freqüentando o
Centro, né?! Oh ... eh ... as pessoas... eh ... [Guilherme, Psi XV-G: 17 anos]

Nas narrativas dos nossos entrevistados, a descrição de pessoas que

supostamente têm demanda psicológica, ou competência psicológica, para a

psicoterapia, freqüentemente inclui as seguintes características: ―passar da queixa à

demanda‖; ―determinado nível de questionamento, aprofundamento‖; ―ter insight‖;

―trazer conteúdos para serem trabalhados‖; ―busca o potencial que tem dentro dele‖; ―se

questiona‖; ―interesse de fazer uma auto-avaliação‖; ―compreender melhor as coisas‖;

―buscar o autoconhecimento‖; ―capacidade pra elaborações‖.

Por outro lado, caso não exista esta capacidade de compreensão do processo

psicoterapêutico, ou se ele não preencher determinados pré-requisitos acima destacados,

mesmo frente ao empenho do psicólogo, a psicoterapia ficará no vir a ser, como uma

possibilidade frustrada. As narrativas abaixo são exemplares em descrever que o tipo de

prática oferecida está em função de uma determinada característica da pessoa, que, se

não conduzem a explicações deterministas, ao menos trazem subjacentes uma

227
associação que buscamos aqui explicitar. Ou seja, oferece-se orientação,

acompanhamento e terapia breve para os menos aptos a uma produção discursiva de

estados emocionais e sentimentos, distantes da linguagem da intimidade. Alguns dessas

descrições de atuação psicológica são apresentadas abaixo, dando força interpretativa

aos nossos argumentos.

Orientação

que tem um nível de esclarecimento menor e tudo mais... se satisfazem


muito com a orientação, digamos assim, né. Querem mais ser orientadas,
querem saber como lidar com os problemas práticos, como resolver, eh ...
como se posicionar frente a determinadas dificuldades, né. É mais nesse
sentido assim. [Guilherme, Psi XV-G: 17 anos]
Terapia breve

Olha, no Serviço Público a gente não trabalha... a gente trabalha com uma
abordagem psicanalítica, mas a gente não trabalha com psicanálise, tá. A
gente introduz a psicanálise, mas, aqui não tem nem um espaço físico que
permita isso, né, e também, [diz o nome da entrevistadora], você sabe, fazer
um tipo de terapia com um aprofundamento maior, exige o quê, um nível
intelectual, um nível de associação mais elaborado, que a nossa clientela
nem sempre apresenta. Outra coisa, é o tempo que a gente tem aqui, de um
ano. Então de um ano, a gente tem que fazer uma terapia breve, a gente não
pode focar na questão principal que é a que o usuário traz [...] A: Mas
sem descartar o inconsciente. [Dirce, Psi VII-F: 19 anos]

aí ao me apresentar, eu me dei conta dessa realidade, de que não tinha nada


estruturado, então foi uma adaptação, assim, até porque assim, era uma
população que não tinha a menor informação do que era um serviço de
psicologia, o que era um psicólogo, vinha procurar o psicólogo em busca
de medicação. Então assim... teve que se trabalhar também esse lado, de
explicar a necessidade do atendimento, a importância de se ter, o que é que
era, né ,de um esclarecimento nesse sentido assim, então foi assim, pela
realidade do local, junto a isso tinha uma cronificação muito grande de
pacientes, tinha a questão financeira que é fundamental na população que
você atende, então eu não pude aplicar o meu conhecimento de
psicoterapia, aí, eu tive que modificar assim tá trabalhando às vezes com
psicoterapia de apoio, às vezes psicoterapia breve, em alguns momentos
tá trabalhando a questão do suporte mesmo familiar e tal. [Carla, Psi
XVII-H: 4 anos]

Várias narrativas, algumas destacadas acima, nos levam a concluir que, pela

seleção da clientela para tratamento psicológico, perpassam critérios muito delicados,

uma vez que sugerem que uma boa parte dos usuários encontra-se em um nível elevado

de ―alienação mental‖, não têm capacidade de auto-avaliação. Elas evidenciam ainda

228
que a psicoterapia requer, como condição para sua realização satisfatória, a presença de

pessoas com maior capacidade de associação de idéias, que tenham nível intelectual

elevado, o que, segundo alguns informantes, não coincide necessariamente com maior

nível econômico.

Tais ponderações feitas pelos entrevistados sobre como os aspectos

socioeconômicos determinam a natureza e a expressão do sofrimento psíquico

demonstram a complexidade que envolve a qualificação da escuta psicológica, e exigem

a relativização de como os critérios que compõem cada uma das categorias aqui

definidas mantêm entre si uma espécie de borrosidade mais do que de determinação

unilateral.

têm outras pessoas que têm escolaridade básica, ou nenhuma e que ficam
também. Eu acho que é uma coisa muito mais, assim, interna, da
formação do sujeito, da pessoa, do questionamento, da relação que teve
com a vida pregressa, familiar, com a família de origem. Acho que é uma
coisa muito mais, assim claro que o nível intelectual entra também, mas eu
não generalizaria, não diria que é por isso. Porque têm outras pessoas... por
exemplo, tem uma moça, aqui, que eu atendo, uma senhora ela é lavadeira,
não teve nem primeiro grau, è uma pessoas super sofrida, veio do
interior, né?! uma coisa muito delicada a situação dela, e ela tem, assim,
uns insights fantásticos, ela tem umas colocações muito boas, ela se
questiona, ela è muito envolvida no trabalho, no atendimento,
comprometida mesmo. Então, eu não conseguiria fazer essa generalizações.
Não sei se e por isso, se esse é o motivo. Sem dúvida, interfere, mas não sei
se é o motivo. [Psi I-A, 7 anos]

Nesta direção, na narrativa destacada acima, podemos também perceber, que há

pessoas que não têm escolaridade alta, mas que conseguem permanecer e obter

benefícios do processo psicoterápico. Há, ainda, em algumas narrativas, a preocupação

de tomar vários aspectos como conjugados e não atribuir a adesão e a melhora de um

paciente a um motivo isoladamente. No entanto, é visível a tendência de atribuir os

benefícios psicoterápicos a uma certa capacidade interna da pessoa de lidar com os seus

problemas, que particulariza um dado modo de se relacionar com o contexto familiar e

com a sua vida pregressa, como mais importantes para a adesão à psicoterapia.

229
Além disso, há os usuários que não estão interessados no trabalho psicológico,

ou não são compatíveis com as exigências que a psicoterapia requer e nem podem ser

absorvidos com algum dos tipos de para-psicoterapia, devendo ser reencaminhados a

outro tipo de terapêutica, como ao serviço de terapia ocupacional:

Eu tava comentando exatamente com uma colega ontem isso, eu tenho


poucos pacientes que eu posso dizer que estão em processo de psicoterapia,
tenho alguns em acompanhamento psicológico, a maioria, mas no processo
de psicoterapia de se comprometer de vir e tal são poucos mesmo. Então,
eu não acho que existe muitos assim, e também pelo fato, não só pelo serviço
ser público, eu acredito que aqui a gente atende uma parcela da população
com, eu acho, que talvez o menor nível econômico e educacional de
Salvador, que é a população do subúrbio, então não é só a questão de ser
público, é questão de ser mesmo... a total ausência às vezes de um hábito
ou de um interesse de fazer, de fazer uma auto-avaliação, de
compreender melhor as coisas, um nível de alienação mental muito
grande, entendeu, então que não se adequa, na maioria das vezes, a uma
terapia individual, talvez se adequem mais um TO [terapia ocupacional], a
uma oficina, alguma coisa assim. Porque é uma psicoterapia que, muitas
vezes, a gente dá início, mas a gente percebe que não vai ter um rendimento
muito grande e aquele paciente acaba abandonando mesmo, é o que acaba
acontecendo mesmo com boa parte dessa população. [Carla, Psi XVII-H: 4
anos]

Nesta direção, para alguns, o comprometimento psíquico ou físico acentuado do

usuário pode desautorizar qualquer intervenção psicológica, no sentido de ganho

psicoterapêutico, ao menos no sistema ambulatorial 78:

Tem gente [TI] que não consegue trabalho, até pelo estado, muitas vezes, de
debilidade, debilitação física e as outras pessoas com, que estejam em surto,
que o psicólogo não tem na verdade muito o que fazer numa situação dessa.
A pessoa precisa de um atendimento urgente de um psiquiatra, marque pra
daqui a não sei quantos meses, e aí manda pro psico... [Priscilla, Psi XVI-H:
4 anos]

Todos os psicólogos consideram a dimensão biológica do sofrimento como

garantia de que é preciso intervenção medicamentosa para diminuir o sofrimento; às

vezes, a intervenção medicamentosa é condição sine qua non para entrada dos usuários

com problemas psíquicos graves no trabalho psicológico. Por outro lado, do ponto de

78
Para contextualizar os nossos argumentos, lembramos as ressalvas feitas no capítulo três, a partir dos
estudos de Tenório (2001) e de Goldberg (1994), entre outros, sobre o alcance das práticas clínicas psi
para o cuidado de pacientes graves em nível ambulatorial, quando discutem a importância e a natureza do
CAPS. Os autores se remetem aos pacientes que requerem acompanhamento sistemático e investimentos
clínicos e ―extra-clínicos‖ conjugados.

230
vista dos psicólogos, depois do emprego do trabalho psicológico, a suspensão ou

diminuição dos psicofármacos é um marcador da melhora do paciente e da eficácia

do processo psicoterapêutico 79. Esta afirmação segue um sentido contrário à visão

descompensatória defendida por alguns psiquiatras em relação à função exercida pela

atuação psicoterapêutica no tratamento do usuário, como vimos acima, no estudo de

Jucá (2003).

Continuo achando que, pros serviços públicos, psicólogo ainda é aquele que
atende pouco, porque dá pouca produção. Sem ver a qualidade do trabalho
que ele faz. Eu tenho... vamos dizer assim... pra fazer uma média de... por
exemplo, hoje, que eu atendi seis pacientes e ainda tenho uma pra atender,
que já deve ter chegado. Seis pacientes; desses seis, só duas... duas fazem uso
de medicação; as outras não [...] já fizeram...já. Não são psicóticas; as outras
são. Aliás, essas duas que fazem não são psicóticas; são neuróticas graves.
[...] de medicação, e fazem... um quadro de depressão, fazem uso de anti-
depressivo e precisam, certo , mas dessas seis, só duas; as outras quatro
não... [...] não fazem mais... de nada. [...] já fizeram! e hoje não usam nada! E
isso é o quê Eu pergunto pro serviço público, pra gerência do distrito, pra
prefeito, pra secretário de saúde: isso é pouca produtividade, ou é qualidade
da produção [Lorena, Psi IX-F: 20 anos]

No relato acima, podemos perceber uma análise da entrevistada para assegurar o

lugar do tratamento psicológico como exercendo função significativa para a melhora

dos usuários. No entanto, está evidente que os psicólogos utilizam a suspensão paulatina

ou diminuição dos medicamentos como marcador positivo apenas para usuários não-

psicóticos.

Outro aspecto que merece especial consideração é o fato de existir uma

propensão à mudança do perfil da clientela atendida pelos psicólogos nos centros mais

antigos, descrita como uma ―demanda diferenciada‖. Neste particular, observa-se que há

uma inclusão mais recente da ―classe média empobrecida‖, ou pessoas ―mais

esclarecidas‖, que têm buscado atendimento psicológico nos serviços públicos de saúde,

79
De acordo com os entrevistados, este aspecto, muitas vezes, não é levado em consideração para medir
a qualidade da atuação psicológica, desenvolvida pelos psicólogos nas avaliações institucionais, que
prezam, exclusivamente, pela produtividade (quantidade de pacientes atendidos).

231
considerada mais apta à psicoterapia. Introduz-se aí, com mais evidência, a dimensão

social da seleção dos pacientes para esse tipo de atendimento.

9.2.2 ATUAÇÕES PSICOLÓGICAS: dimensão de significação coletiva

A dimensão de significação coletiva inclui os aspectos socioeconômicos e culturais

dos problemas de saúde, que podem ser percebidos como qualitativamente relevantes

para a compreensão dos mesmos. Em sua perspectiva socioeconômica, é interpretada

pelos interlocutores como um entrave às práticas psicológicas (ESQUEMA 03). Neste

sentido, a atuação psicológica realizada nos serviços públicos de saúde não tem função

psicoterapêutica:

tem muito caso, até mesmo pela região muito pobre, então tem muito caso
que a gente vê é que uma pessoa tá encaminhada, muitas vezes não é nem a
questão da psicoterapia, mas a questão é de fome, questão de falta de
trabalho, da dignidade mesmo... [Priscilla, Psi XVI-H: 4 anos]

A narrativa abaixo traz uma descrição muito emblemática sobre a determinação

do contexto socioeconômico desfavorável de uma família para o comprometimento do

desenvolvimento psicológico de uma pessoa (no caso, de uma criança), do ponto de

vista de um dos nossos entrevistados. O relato sugere muitas questões importantes, em

detrimento da sua riqueza, destacamos a percepção da psicóloga sobre o limite da

atuação psicológica oferecida para lidar com o problema de saúde, que tem como palco

um contexto típico de uma parcela das classes populares. Nestes casos, a identificação

do que se pode psicologicamente fazer é colocado em cheque; o objetivo da intervenção

psicológica acaba se restringindo a torná-la (a criança) mais resignada, no sentido de

aceitar a falta de amor da mãe, que não tem tempo de demonstrar amor frente à sua

condição de trabalhadora pobre, ainda que justificada pela estrutura social em que ela e

232
seus pais vivem. O significado atribuído à dimensão social é restritivo e determinista em

relação à sua influência sobre o estar no mundo de pessoas que pertencem as classes

populares e possíveis comprometimentos psicológicos:

A gente trabalha muito com esse lado, que pai e mãe não atentam muito,
sabe... Trabalha, é empregada doméstica, sai, tem que deixar mesmo o filho
em casa, deixa o filho sozinho, aí o filho se vira, esquenta a comida, ela deixa
a comida pronta, o menino esquenta de qualquer forma, ou não esquenta, ou
não come, ou então o menino sai, vai jogar bola e não sabe nem para onde é
que foi, que horas que volta... E tem uma coisa assim, que é uma questão
social séria, que muitas vezes durante este tempo, me dá meio desespero,
assim! Porque você não tem muito o que fazer. Você alerta os pais, você
orienta os pais, você discute, trabalha com eles a questão da relação pai-filho,
mãe-filho. Mas, e aí? Ele não tem a condição de melhorar isso, porque não
tem tempo, a mãe chega em casa de noite, vai fazer o quê? Vai cozinhar para
o outro dia, vai fazer isso, isso e aquilo. Qual é o tempo que a mãe tem de
colocar o filho do lado, deitar a cabecinha no colo ―e aí, filho, o que quê você
fez hoje?‖ Entendeu? Não tem... Ela tá morta de cansada, trabalhou o dia
todo. Tá trabalhando ainda, só pensa em cama, em dormir e acabou. Acordar
no outro dia e começar tudo de novo. Final de semana é o quê? Lavar a
roupa, cuidar da casa, fazer faxina, então são umas coisas assim, essas
questões de estrutura social, que a gente trabalha a criança por que? O que eu
tenho trabalhado, aqui, é pra ela conviver bem com isso. Saber conviver
com essas questões, mas... ele vai sentir falta, vai sentir falta, vai ficar essa
defasagem, vai ficar defasado, vai sentir essa falta de amor, de carinho, de
atenção. Eu não sei como é que vai ser isso, não é, mais tarde? [Lindinalva,
Psi VII-F: 18 anos]

Quando percebemos que a atuação psicológica que desenvolvemos, ou que nos

incentivam a desenvolver, não responde adequadamente às demandas de pessoas em

sofrimento, que têm fome, não têm trabalho, estão sem dignidade, com problema

socioeconômico, com menor nível econômico e educacional, debilidade, debilitação

física, estamos contribuindo para uma abordagem ética em saúde mental? Não

estaríamos resumindo o sofrimento psíquico a uma única dimensão, às vezes dando

ênfase à biológica, e em outras à psíquica, em detrimento da importância do contexto

social como constituinte desse sofrimento?

A categoria etnográfica neurose social descrita por Nunes (1993) merece ser

retomada aqui, pela riqueza com que contempla a compreensão problemática da

dimensão social do sofrimento do ponto de vista dos profissionais psi entrevistados.

233
Neste estudo, a autora analisa esta categoria em dois aspectos, que buscaremos

apresentar de modo sucinto.

O primeiro aspecto destacado deriva dos sentidos do adjetivo ‗social‘ atribuídos

pelos seus informantes. Um deles remete a interpretações da neurose social como sendo

apresentada por aquele que sofre apenas de privação econômica, cultural, intelectual,

sendo um termo utilizado em oposição ao comprometimento de ordem biológica e, ou

mesmo, de ordem psicológica. Neste particular, os significados atribuídos à neurose

social conduzem a três tipos de problemas: a) reduzem ou eliminam o caráter social da

doença em sua complexidade; b) negligenciam os significados culturais presentes nas

experiências do indivíduo no seu contexto de origem; c) desconsideram as

particularidades das narrativas do sujeito que sofre de neurose social em relação à

possibilidade de serem a expressão de sua subjetividade (NUNES, 1993).

Segundo Nunes (1993), tanto na perspectiva psicológica quanto na mais

biologicista, o ―social‘ que adjetiva a neurose, encontrado nas narrativas dos

profissionais entrevistados, estabelece uma relação patológica ou deformadora da

“realidade da subjetividade” e da “realidade da doença”. Na vertente psicológica, há

forte ligação entre a lógica da ausência do discurso psicológico nas classes populares e a

lógica da ―privação cultural‖. Esta lógica interfere na percepção dos próprios agentes

terapêuticos (psiquiatras e psicólogos) no que diz respeito à adequação daquele que

sofre do que eles próprios chamam de neurose social, ou seja, de problemas advindos da

sua condição de pobreza, a determinados tipos de terapêuticas, particularmente, a

psicoterapia (NUNES, 1993). Em suas próprias palavras:

[...] quase sempre os valores ou comportamentos presentes nas classes


populares são valorados de forma negativa e, quando não tomados como
produtores de problemas, são vistos como dificultadores de uma melhora, no
que interfeririam em escolhas terapêuticas inadequadas, incapacidade ou falta
de motivação de seguir aquelas adequadas (NUNES, 1993, p. 211).

234
Esta inadequação de uma atuação reducionista dos profissionais de darem ênfase

a determinados aspectos da fala dos usuários em detrimento de outros, ou de

negligenciarem a priori determinados aspectos com o quais estão menos familiarizados,

está em conformidade com a leitura das narrativas dos nossos interlocutores, quando

buscamos descrever as dimensões de significação dos problemas de saúde, do ponto de

vista dos psicólogos entrevistados.

O segundo aspecto, analisado por Nunes (1993), problematiza o entendimento

da neurose social enquanto deformação da realidade da doença. Nesta direção, a autora

busca entender o lugar da neurose social na nosologia psiquiátrica e o que está em jogo

na delimitação do grupo de pessoas que lhe são vulneráveis 80, formado por aqueles que

têm baixo nível socioeconômico.

De acordo com Nunes (1993), as interpretações produzidas pelos seus

informantes enfatizam que este tipo de sofrimento: a) se circunscreve no campo das

neuroses e não das psicoses, devido a sua natureza menos biológica, tendo como

conseqüência a maior possibilidade de sofrer interferência do social; b) se classifica

como reativa, reforçando o caráter de exterioridade do social em relação à doença e, por

fim, c) remete-se a uma singular distinção entre sintoma e doença.

Em relação à última característica, a neurose social seria mais um sintoma social

do que propriamente uma doença, já que é difícil identificar o seu comprometimento

biológico. Neste particular, a neurose social seria difícil de ser encaixada no quadro

nosológico psiquiátrico disponível, sendo considerada o ―resíduo alimentado pela

permanência da problemática social‖, que acomete pessoas das camadas populares, para

80
A caracterização dessas pessoas aparece assim nas narrativas de um dos informantes de Nunes (1993,
p. 212): ―são pessoas extremamente limitadas, e aqui o psiquiatra, que é o meu caso, faz estritamente uma
medicina química, biológica, medicamentosa, [...] essas pessoas não têm condições de fazer uma
elaboração de suas dificuldades para tentar reverter o quadro neurótico[neuroses sociais] que ela
apresenta. Se você me perguntar assim uma sintomatologia específica de qualquer desses pacientes, eu
não vou saber lhe dizer, porque eu tenho uma noção genérica [...].

235
as quais, tendo pouco o que fazer, restam-lhes apenas as intervenções medicamentosas

(NUNES, 1993, p. 215).

Entre as narrativas dos nossos interlocutores, há ainda, para esta dimensão de

significação coletiva, um outro aspecto que diz respeito a expressões culturais de

sofrimento distantes da visão de mundo psicologizada, que autorizam uma escuta

psicológica muitas vezes truncada, quando não a desautorizam totalmente. No primeiro

caso, o psicólogo tenta aproximar este ―texto‖ de descrições mais conhecidas, a

exemplo do discurso do deprimido, mas que não parece trazer muitos ganhos para o

processo psicoterapêutico:

essa depressão, que elas chamam de um nervoso, vamos dizer assim, né,
todo esse texto, eu tô sentindo um nervoso. Esse nervoso indefinido, que eu
acho que é mais uma coisa depressiva, que é a minha clientela básica
(risos) [...] agora eu não sei identificar um caso, ou um exemplo. Mas é
muito assim, mulheres que não sabem o que fazer da sua vida, que não, que
tão angustiadas, porque tão em casa e aí, maridos, né, que bebem, ou que têm
a vida deles, ou que têm outra mulher, entendeu? Então a vida delas se
resume a quê, né, a cuidar da casa, dos filhos, né, não têm um parceiro,
enfim... ou quando tem, às vezes têm um parceiro mais legal e tudo, elas
sentem um vazio que não sabem explicar por quê, entendeu? Aí acham que é
porque deixaram de estudar, deixaram de ter uma profissão, entendeu,
abriram mão da vida, enfim... Enfim, eu acho que é uma coisa que a gente já
sabe, né, que é a falta de perspectiva mesmo... Mas, o que é que eu teria
mais pra falar sobre isso, que eu não sei? (risos) [...] É um nervoso
indefinido, né? É uma vontade de bater nos meninos sem saber por quê,
vamos dizer assim, eh (...) uma insônia, entendeu. Em alguns casos, uma
agitação, sabe? Um gritar sem saber por quê, começa a gritar com as pessoas,
tem isso... [Carmem, Psi IV-C, 10 anos].

Outro aspecto que chama atenção é o fato de ser tão difícil para a psicóloga

relatar um único caso acompanhado, ainda que sejam essas mulheres a principal

clientela dos serviços. Nesta perspectiva, é razoável inferir que a entrevistada parece

tomar os discursos de sofrimento das usuárias que atende excluindo qualquer outra

possibilidade de significação que esteja além das suas dificuldades concretas de vida.

Possivelmente, porque os conteúdos trazidos pelas suas pacientes não fazem sentido

para a escuta oferecida.

236
No relato abaixo, Neuza descreve um dos grupos de mulheres que acompanhou

que, geralmente, faz uso de ansiolíticos, mas a riqueza e diversidade dos sintomas, cujas

descrições estão também próximas ao idioma cultural de nervoso, trazem dificuldades

em precisar um diagnóstico psiquiátrico. No entanto, arrisca-se a aproximá-la de um

processo depressivo, como vimos anteriormente:

eu acho que todas as mulheres eram usuárias de ansiolíticos ou... porque


assim, as queixas desse grupo era assim, insônia, dor de cabeça, às vezes
depressão, às vezes, não era assim, que estava em processo de depressão, mas
às vezes tinha momento de depressão. E pessoas assim que, com muitos
conflitos familiares... conflitos familiares, social. Então a gente percebe
assim o quanto essas outras questões interferem mesmo na sua saúde.
[Neuza, Psi XVIII-H; 4 anos]

Em outros momentos, quando não é possível a ancoragem de um texto menos

familiar em um outro mais conhecido, pode haver a criação de uma nova categoria, por

exemplo, os discursos de sofrimento rotulados como ―neuroses de dona de casa‖:

A gente percebe muito aqui no ambulatório aquelas neuroses das donas de


casa, aquela ―ah doutora, eu não durmo, porque meu marido está com outra‖,
―eu não durmo, porque meu filho, sei lá o que, eu não sei mais o que fazer‖.
Outras coisas assim. O que eu sempre falo é que, de uns tempos para cá, eu, a
gente, tem visto muitos casos de depressão. [Dirce, Psi VII-F, 19 anos]

A ―neurose de donas de casa‖ como categoria etnográfica, encontrada entre os

nossos interlocutores, padece do mesmo mal das neuroses sociais descritas por Nunes

(1993). A princípio, este tipo de expressão de sofrimento, nervoso ou neuroses de dona

de casa, tende a ser desqualificado. Alguns dos chavões que se pode ouvir são que as

pessoas que buscam os serviços ―só fica[m] na queixa‖ ou ―não têm demanda‖, ou seja,

não conseguem ter um nível profundo de questionamento.

Como vimos em momento oportuno, um dos termos do senso comum mais

utilizado pelos informantes de Cammarota (2000) quando se remetem à sua doença é o

―nervosismo‖ (24,6%), muito superior à menção da terminologia técnica, onde se

identificam entre os mais utilizados: depressão, com 16,3%, e epilepsia, com 13%

237
(TABELA 9, ver ANEXO B). Estes dados reforçam a importância do fenômeno do

nervoso para a população que busca os referidos serviços. No entanto, essa referência ao

nervoso, muitas vezes, é vista apenas como indicadora de ―desinformação ou negação‖

da doença por parte dos usuários, hipótese levantada, inclusive, por Cammarota (2000),

para entender a prevalência registrada.

Na literatura antropológica, como vimos no capítulo dois, o nervoso é

considerado um idioma cultural típico das classes populares. Geralmente é algo

―indefinido‖, que inclui queixas físicas e psíquicas, extremamente fundidas à realidade

cotidiana do labor, da casa, da família, experienciadas de modo peculiar por parcela

significativa da população (DUARTE, 1986; COSTA, 1989; BEZERRA-JÚNIOR,

1993; RABELO e ALVES, 1999; SILVEIRA, 2000). A despeito dessa coincidência

com os relatos dos entrevistados, ele é considerado um idioma extremamente

sofisticado e merecedor de análises interpretativas complexas.

A seguir, destacamos alguns comentários de Silveira (2000), entre os estudos

acima citados, por ser um trabalho que incluía o interesse de discutir o código do

nervoso em termos da sua importância para o cuidado clínico médico. Segundo a autora,

que acompanhou mulheres que se diziam, sobretudo, nervosas e que buscavam

atendimento em serviços públicos de saúde, numa cidade ao sul do Brasil, o nervoso

pode ser entendido como um idioma com usos e finalidades importantes para a conduta

médica. Do seu ponto de vista, o idioma do nervoso pôde revelar experiências

semanticamente significativas e criadas dentro de redes de interação social particulares,

onde foi possível destacar papéis e funções sociais que sustentam a vida das pessoas,

incluindo as experiências de sofrimento. As queixas de nervoso remeteram à opressão

da ou na vida diária, problemas da sexualidade, dificuldades de relacionamento social,

entre outros, justificando a pertinência em relacionar suas causas aos seus significados,

238
reafirmando que a doença não é um acontecimento meramente biológico, mas um

acontecimento que demonstra uma conjuntura pessoal, social e política adversa. Em

suas próprias palavras:

Narrando suas dores e mal-estares, as pacientes mostram que sua vida é um


caleidoscópio de sintomas cujos significados giram com eles e se
recombinam na mesma medida, gerando a cada episódio uma nova
interpretação ou uma nova necessidade. Nesse ponto, na representação do
drama da existência concreta da vida de cada uma, é que parece situar-
se a grande diferença entre nervos e o diagnóstico médico que o reduz à
histeria e trata-o com toda a carga dos preconceitos historicamente
acumulados [ênfase nossa] (SILVEIRA, 2000, p. 90).

No caso da nossa pesquisa, é paradoxal como este tipo de sofrimento faça tão

pouco sentido à escuta psicológica e que seja tão difícil relatar um caso de nervoso,

quando se tem estes, ou melhor, elas como ―clientela básica‖, caracterizando o que foi

descrito por Costa (1989) como uma certa ―miopia etnocêntrica‖. Por outro lado,

quando, além das queixas de nervoso, outras expressões de sofrimento atípicas ao

quadro categorizado nos manuais científicos fazem algum sentido, tendem a ser

reduzidos apenas ao processo psicopatológico típico de estruturas psíquicas

severamente desorganizadas:

Sim, tem sim, o psicótico ele traz muito isso também, né?! Mas... tem, tem ...
eh... Porque eu falei assim que eu não atendo paciente psicótico aqui, mas, às
vezes, chega pra você porque ... eh... não se pode fazer, a assistente social faz
uma triagem antes, né, mas vem com certeza têm muitos que ... explicam a
sua doença por questões mágicas, né?! Mas isso tem muito mais a ver, eu
acho, com a questão de psicopatologia. Por exemplo, ah é ―foi macumba,
que porque fizeram macumba em cima de mim e aí por isso eu fiquei desse
jeito‖ [Roberta, Psi XIII-G: 17 anos]

O relato acima convida-nos a tecer uma consideração sobre o lugar ocupado

pelos conteúdos religiosos quando estes surgem como causas dos conflitos psicológicos.

Uma posição reducionista da compreensão da complexa relação entre conteúdos

religiosos e a expressão de sofrimento psicológico é atribuir-lhes caráter eminentemente

psicopatológico. Dito de outra maneira, é associar conteúdos culturais a estruturas

239
psíquicas gravemente desorganizadas, como se esta associação inviabilizasse um maior

poder interpretativo.

Podemos recorrer à categoria etnográfica ―divindades imaginadas‖ 81, típicas de

pessoas psicóticas adeptas do idioma do candomblé, descrita em Nunes (s/d), como

sendo possível devolver aos conteúdos religiosos uma função menos restritiva.

Segundo a autora, as divindades imaginadas funcionam como referências

identificatórias e são de fundamental importância nas vidas de pessoas psicóticas, não

como atributo apenas sintomatológico, mas como uma das dimensões que orienta uma

determinada maneira subjetiva de se orientar no mundo.

Por sua vez, os conteúdos mágico-religiosos podem vir dos que têm estrutura

psíquica menos comprometida, e não é possível mais ancorá-los do mundo das

alucinações e delírios, da desrazão, propriamente dita. No entanto, pode-se ler:

Sim é, a maior parte [tem algum tipo de psicopatologia severa], entende?.


Mas não todas, mas tem também, às vezes, as pessoas [sem transtorno
severo] acham que foi trabalho que alguém fez pra elas, mesmo “por isso
eu fiquei deprimida desse jeito, doutora” (risos), entendeu? Mas ou estão
com ... ―foi olhado que colocaram em mim‖ (risos), né, bem, claro, mas não
que eu vou dizer com uma grande freqüência, entendeu? [Roberta, Psi XIII-
G: 17 anos]

A nossa hipótese é de que as pessoas que sofrem de nervoso, e que sofrem por

conseqüência de olhado, constroem seus ―textos‖ alicerçados em uma visão de mundo

pouco individualista, por isso pouco sensível aos ouvidos inadvertidos dos psicólogos.

Neste sentido, cabe mais uma pergunta para a reflexão: por que é difícil ouvir e

acreditar que se pode ajudá-las através de uma escuta psicológica?

Eu acho que essas pessoas [que explicam seu sofrimento com conteúdos
mágico-religiosos] abandonam com mais facilidade. Eu não sei talvez se a
gente não tenha [...] Pensando agora, né? Talvez a gente devesse ter assim
uma abertura maior, né, pra toda essa questão da religiosidade, né, da pessoa
que tem... embora, eu acho até que eu tenho uma boa abertura pra isso aí,

81
Esta é uma variação encontra na diversidade de categorias de divindades presentes no idioma do
candomblé, por exemplo, ―de herança‖, ―de nascença‖, que oferecem aos seus adeptos possibilidades
complexas de ―referentes identificatórios‖ (NUNES, s/d).

240
inclusive quando a gente trabalha com o grupo, a gente.. num dos contratos é
aqui a gente não discute muito essa questão da religião em si, a não ser que
isso... mas ninguém tem que tá convencendo um ao outro que tem que
trocar de religião, a religião é uma coisa que a gente tem que ter respeito
cada um. Então é uma das coisas que... é um dos contratos, né, que eu faço
com o grupo. [Roberta Psi XII-G: 17 anos]

O uso das para-psicoterapias é um marcador que demonstra a busca dos

entrevistados de exercerem o seu trabalho da melhor maneira possível, ainda que

estejamos aqui no papel de quem descreve as repercussões menos aparentes e negativas

da escuta oferecida. Aqui, parece operar o que foi descrito por Good (1994) como

formação simbólica, que esvazia de sentido aspectos fora da escuta treinada durante a

formação.

O longo fragmento narrativo, transcrito abaixo pela sua riqueza, retrata a

dificuldade dos psicólogos em lidarem com um discurso muito diferente do que estão

acostumados a receber na clínica particular, e que já haviam se familiarizado desde a

graduação. A busca de supervisão clínica demonstra o empenho de alguns psicólogos e

a própria necessidade de estarem mais atentos a esses impasses:

Não, mas eu acho assim, poxa, eu tenho que dar a uma pessoa, que não pode
me procurar a nível particular, a mesma qualidade no atendimento que eu dou
a uma que pode. Eu não me permito fazer essa diferença. Que eu acho que
você, tipo... Eu tinha um colega aqui que ele dizia: ―[diz seu nome], mas eu
não vou atender a essa senhora, porque ela não sabe nem falar. Ela só
vem falar que não tem dinheiro, que ela... das questões sociais dela”. Aí
ele virou para mim e, esse colega meu que dava supervisão aqui falou assim:
―e ela não tem... você... ela não merece ser ouvida por conta disso?‖,
entendeu. Ela merece o mesmo nível de atenção que você dá a um que
consegue um nível de elaboração, que ela não tem, ela não alcança. Tá ouvir
as questões sociais, você tá tratando essa pessoa. Você está tratando dentro
dos limites dela. [Dirce, Psi VIII-F: 19 anos].

Em relação a como lidar com conteúdos religiosos, faz parte do

desenvolvimento da identidade profissional do psicólogo, no que concerne a uma

postura ética, o respeito à religião do cliente, o que, muitas vezes, se traduz na prática

apenas em não convencer ninguém a mudar de religião, muito menos impor sua própria

ao cliente; ouvem-se estas recomendações importantes durante todo o curso de

241
psicologia. No entanto, fora isso, não se é formado para atribuir sentido aos conteúdos

culturais para a construção de diferentes modos de expressão da subjetividade.

A estratégia de lidar com os conteúdos religiosos destacada acima, tomada como

―uma certa abertura‖ para lidar com a religiosidade, é a inclusão da garantia de respeito

à religião de cada um dos membros do grupo, instrução tipicamente aprendida no curso

de psicologia. Não estaríamos, com este procedimento, justamente controlando a

emergência de conteúdos culturais, por exemplo?

Não seriam o ―nervoso‖, ou as ―neuroses de dona de casa‖, ou o sofrer de

―olhado‖, maneiras de sentir, pensar e produzir, provenientes de modelos diferentes de

subjetividade? Quais as vantagens de se considerar tal hipótese? Que tipo e natureza da

atuação devemos fomentar desde a formação dos psicólogos para contemplar esses

aspectos da realidade psicocultural? Segundo Verztman (1999 apud OLIVEIRA e

DIAS, 1994), entre os motivos que podem explicar a inabilidade dos terapeutas em lidar

com as repercussões do ―nervoso‖ na clínica, estão: a) o desconhecimento dessa

bibliografia pelos que estão nos serviços públicos de saúde e b) a ignorância dos

próprios professores-supervisores sobre o tema.

Em suma, o modelo interpretativo 82 que buscamos construir ao longo desse

capítulo pode ser compreendido por analogia a um circuito elétrico (ESQUEMA 04). A

fonte de energia alternada é alimentada pelas dimensões biológicas, psicológicas,

sociais e culturais de significação dos problemas de saúde, independentemente do

controle consciente dos seus protagonistas. De certo que a posição ocupada pelo

psicólogo no circuito se diferencia em relação à posição do usuário em decorrência da

função de ―controle‖ que o primeiro deve estar habilitado a exercer. No entanto, este

controle ocorre em graus variados e, de acordo com o raciocínio que defendemos, o

82
Remete-se a noção de objeto-modelo apresentado no Sssp (ver capítulo 4).

242
estilo de relativização (FIGUEIRA, 1978) parece o mais indicado para diminuir a

distância cultural entre usuários e psicólogos. Neste sentido, a escuta psicológica pode

seguir duas vertentes:

1) a primeira vertente, a escuta cautelosa, é aquela cuidadosa e prudente, que inclui as

―impurezas‖ no sentido de compreender a visão de mundo daquele que produz a fala,

considerando a competência psicológica como marcador social e não como selecionador

da clientela;

2) a segunda vertente, a escuta asséptica, que elimina, a priori, conteúdos

―psicologicamente pouco refinados‖, está marcada pela miopia etnocêntrica. É

justamente aquela que não encontra função psicoterapêutica nas experiências de

sofrimentos onde incidem fortemente tais particularidades das dimensões de

significação que se apresentam no discurso de parte dos usuários menos afeitos ao

ideário individualista quando relatam seus problemas de saúde.

CAUTELOSA ASSÉPTICA
BIOLÓGICO

PSICANÁLISE
PSICOLÓGICO
ESCUTA PSICOLÓGICA
PSICOTERAPIA SOCIAL
PARA-
PSICOTERAPIA
CULTURAL
DIMENSÕES DE
SIGNIFICAÇÃO

INDIVIDUAL COLETIVA

As para-psicoterapias, ainda que toscamente, parecem-nos um reflexo de uma

tentativa de não excluir definitivamente uma grande parte das pessoas que buscam os

serviços públicos de saúde, pouco afeitas ao tipo de ―refinamento‖ da psicoterapia. Dito

243
de outra maneira, uma possibilidade truncada de absorver pessoas em cujo discurso

aparecem, mais explicitamente, elementos socioeconômicos e culturais distantes de um

certo modelo interpretativo do sofrimento psíquico.

É visível que algo que autoriza a ―impureza‖ da prática psicológica (que não é

psicanálise, mas sim de base, referendado...), bem pode ser o tão conhecido ―jeitinho‖

brasileiro (DaMATTA, 1989). É notório entre os profissionais que entrevistamos que,

mesmo correndo o risco de ser amaldiçoada e colocada fora do clã, surge uma que

revela uma percepção de que é preciso fazer outra coisa para lidar com as problemáticas

encontradas nos serviços e que se trata de um procedimento eficaz:

Eu não posso lhe dizer jamais que eu faço psi-ca-ná-li-se aqui, eu faço um
trabalho que tem, [risos] muitos psicanalistas até têm assim, uma
verdadeira, um verdadeiro pavor de ouvir esse tipo de coisa, mas um
trabalho norteado, referenciado na psicanálise e isso é possível, isso é
possível, felizmente!. Talvez pela necessidade mesmo, por essa inserção do
psicólogo no serviço público, né, e de muitos psicólogos terem esse perfil ou
essa formação, esse perfil na psicanálise, e começarem a trabalhar, buscarem
trabalhar com isso e o resultado ser eficaz. [Priscilla, Psi XVI-H: 4 anos]

A autorização para a utilização de para-psicoterapias, a que estamos nos

referindo, vem da maneira como esta se dá na experiência concreta, ou seja, do encontro

face a face entre o usuário e o psicólogo [supostamente representantes de modelos de

subjetivação diferentes]. Não estamos nos remetendo à autorização orientada pela

literatura especializada que define o que é uma psicoterapia breve e quais são os seus

objetivos e procedimentos básicos, porque os efeitos do emprego da psicoterapia breve,

de apoio, de suporte, ou seja, lá o nome que lhes atribuamos, também pode

desconsiderar, na sua práxis, estas dimensões de significação, às quais estamos nos

referindo.

244
9.3 ESCUTA PSICÓLOGICA e MODOS DE SUBJETIVAÇÃO: abrindo questões.

Muitos são os termos empregados pelos psicólogos quando se referem aos usuários que

buscam, ou que estão em atendimento psicológico, além dos que demarcam gênero

(mulher e homem), etapa do desenvolvimento (adultos, adolescentes, pré-adolescentes,

crianças), estrutura psíquica (neuróticos leves e graves, psicóticos), categoria

socioeconômica (pobres, empobrecidos, ricos). Além disso, recorrem aos termos

sujeito, pessoa, cliente, paciente, usuário, nunca utilizam indivíduo.

Por princípio, usuários são todos aqueles que desfrutam de algum serviço

público por direito de uso83. Por outro lado, esta denominação pode ser vista como um

questionamento, no âmbito político, da noção de paciente, que, apesar de referir-se a

alguém que padece, ou que está sob cuidados médicos, pode ser criticado por dar idéia

de alguém resignado e conformado. A noção de cliente, na área da saúde, foi

incorporada também nesta mesma direção, no entanto, muito mais utilizado para os que

adoecem e buscam assistência no setor privado.

Poucas vezes, os psicólogos utilizam o termo usuário para referir-se àqueles a

que atendem. Aqueles que têm contato com o dispositivo CAPS, algumas vezes, o

utilizam. No entanto, fazem uso freqüente do termo paciente e, muitas vezes, de cliente

e abusam do termo pessoa, e raramente utilizam sujeito. Por sua vez, o termo indivíduo

não é utilizado e, de fato, entre algumas das idéias que lhe estão associadas na nossa

sociedade, temos a de marginalidade. É um termo utilizado por policiais, por exemplo,

quando se referem a alguém que fez algo, ou é suspeito, fora da lei.

Como discutido anteriormente, pensar em atuações psicológicas compatíveis

com a diversidade e riqueza das demandas da população que busca os serviços públicos

83
Um dos princípios do SUS é que todos têm o direito à saúde e este tem como meta proporcionar o acesso universal.

245
de saúde é ampliar a noção da própria clínica e rever seus limites e alcances. Neste

particular, é também considerar a multipresença de modelos de subjetividade, ou seja,

de ―modelos novos através dos quais os sujeitos se pensam, se sentem, se produzem de

forma diferente‖ (BEZERRA, 2001: 141) e refletir como os encontros clínicos podem

ser considerados como espaços de transições instauradoras de modos de subjetivação

(FIGUEIREDO, 1995), considerando os conceitos de identidade psicológica e conflito

subjetivo, desenvolvidos por Costa (1989) nos seus estudos sobre o alcance da escuta

psicanalítica aos menos afeitos ao ideário individualista.

O relato abaixo sobre uma paciente atendida em uma UBS é emblemático para

fazermos algumas breves considerações sobre como a dimensão de significação externa,

em sua vertente cultural, é acolhida na escuta psicológica oferecida. É preciso destacar

que o nosso objetivo é buscar argumentos possíveis para entender como a escuta

psicológica pode estar socioculturalmente orientada. Na perspectiva que

desenvolvemos ao longo dessa tese, esta orientação tem a ver com o fato de como as

duas amplas dimensões de significação dos problemas de saúde guiam a escuta

psicológica.

Trata-se de uma jovem que tinha, do ponto de vista da psicóloga, uma ―coisa

bissexual‖, que, apesar do seu esforço em incentivá-la na análise das identificações com

o homem e com a mulher, dizia que a ―questão da bissexualidade tinha a ver com um

santo‖. Neste sentido, parecia não se responsabilizar por suas práticas homoeróticas,

pois que atribuía a tais encontros íntimos a influência do santo que a ―pegava‖. De

modo a facilitar a nossa interpretação, reproduzimos abaixo o longo trecho da entrevista

que descreve este caso:

ficam... (risos) interessante isso não sei como consegue fazer, mas fica [ficar
na psicoterapia ou em análise apesar de serem espíritas ou ligados à
umbanda]. E é interessante porque funciona... assim... numa coisa meia
paralela, viu. Eu tinha uma paciente que ela tinha uma coisa bissexual e ela
achava que essa questão dela ser bissexual é porque ela tinha, ela tem um tal

246
de um santo que parece que passava... o santo tem essa característica
bissexual. Então, ela achava que a questão da bissexualidade dela tinha a
ver com esse santo. Mas, independente disso, a gente tratava isso aqui de
forma bem analítica fora a crença dela, quais as identificações dela com o
santo homem, quais as identificações dela com o santo mulher. Agora, chega
um ponto em que há uma encruzilhada mesmo ou você abre mão de um
tipo de raciocínio para entrar em outro, ou então, você rompe com a análise.
E, normalmente, se rompia, porque acho que esse outro dado era mais
forte. Não o lado da crença mesmo, o gozo de não querer entrar em
outros conteúdos. Porque, repare bem, o que existe é o seguinte na medida
em que você não tem mais o benefício da dúvida, não dá mais para você ser
hipócrita com algumas crenças que se tem não dá mais para chegar e achar
que isso é porque o santo pegou ele e ele foi ser mulher, ou foi ser homem
naquele momento. Então, ela teve um relacionamento homossexual, porque o
santo pegou. Então, vai começar a ver que há um desejo mesmo disso, que
é dele, que é independente do santo vir, e começar a trabalhar com isso.
Ou ele aceita, começa a trabalhar que há um desejo, que há um compromisso
dele nisso e de alguma forma rompe com essa coisa de que é algo externo,
ele pode ate associar o externo, com o interno. Ou ele faz isso, essa
conciliação, ou ele vai romper, esse sujeito vai romper [Cristina, Psi III-B, 15
anos].

Podemos destacar alguns aspectos da problemática narrada acima: a) as

explicações da psicóloga e da usuária sobre o que alimenta o conflito subjetivo vêm de

sistemas simbólicos diferentes (psicanálise e candomblé); b) a psicóloga toma a

explicação da usuária como vindo de uma ―crença‖, e não como uma crença diferente

da sua própria, nesta perspectiva a desqualifica quando lhe atribui o sentido de

―hipocrisia‖; c) também admite que é preciso compartilhar de uma determinada crença

de que é o desejo que orienta o comportamento para que haja benefícios

psicoterapêuticos; d) há indícios de que existem perspectivas diferentes sobre a

problemática e que é preciso escolher uma delas, nomeada como a ―encruzilhada‖; e) o

rompimento da usuária com a sua análise é atribuído exclusivamente ao ―gozo do

sintoma‖84; f) há uma relação reducionista entre os conteúdos culturais no que diz

84
Em Lacan, gozo, definido a partir do conceito de energia psíquica em Freud, ―é a energia que se
desprende quando o inconsciente trabalha‖ (NASIO, 1993, p. 33). Há três estados do gozar: a) o gozo
fálico corresponde a ―energia dissipada durante a descarga parcial, tendo como efeito um alívio relativo,
um alívio incompleto da tensão inconsciente‖; b) o mais-gozar ou gozo residual corresponde ao gozo
retido no interior do sistema psíquico... é o excedente que aumenta constantemente a intensidade da
tensão interna‖ ; c) o gozo do Outro ―estado fundamentalmente hipotético que corresponderia à situação
ideal em que a tensão fosse totalmente descarregada, sem entrave de nenhum limite‖ (NASIO, 1993, p.
27). Uma das imagens do gozo é o efeito libertador e apaziguador do sintoma. O sujeito goza com o
sintoma quando desfruta de uma satisfação, ou seja, ao encontrar alívio do seu sofrimento inconsciente

247
respeito a sua importância para a constituição da subjetividade, logo para o conflito

subjetivo.

Vamos nos aventurar a abrir algumas questões a partir das referências teóricas

apresentadas ao longo da tese. Algumas das nossas premissas são: 1) os encontros

psicoterapêuticos podem funcionar como instâncias instauradoras de modelos de

subjetividade; 2) podemos trabalhar com a perspectiva de a usuária operar

subjetivamente como os meros indivíduos (FIGUEIREDO, 1995), uma vez que transita,

ainda que de modo conflituoso, por dois sistemas simbólicos diferentes um mais holista

(candomblé) e outro mais individualista (psicanálise).

Em relação à experiência conflituosa vivenciada pela usuária, podemos supor, ao

menos, duas direções do seu tratamento, considerando que a mesma lida com dois

sistemas simbólicos diferentes (o candomblé e a psicanálise). Nesta perspectiva, ela

parece funcionar a partir do estilo de relativização, no sentido de manter uma relação

mais amistosa com sistemas simbólicos diferentes (FIGUEIRA, 1978), considerando

que se dispõe ao tratamento psicanalítico, apesar de ser ―adepta‖ a explicações

desenvolvidas dentro do idioma religioso do candomblé. Diferentemente, a psicóloga

funciona no estilo denominado de isolamento, pois se orienta totalmente por um

específico sistema simbólico (FIGUEIRA, 1987)85.

Na primeira direção, os conteúdos trazidos pela paciente para explicar seus

―sintomas‖ vêm de uma tradição hierárquica que é aquela presente no candomblé; neste

sentido, sua bissexualidade corresponde a uma identidade posicional (o ―santo‖ lhe

(NASIO, 1993). A relação entre desejo e gozo lê-se na máxima lacaniana ―não ceder em seu desejo‖, que
significa ―um lembrete prudente de que não se abandone o desejo, única defesa contra o gozo‖, pois ―ao
nos satisfazemos de maneira limitada e parcial com sintomas e fantasias, garantimos nunca encontrar o
pleno gozo máximo‖ [gozo do Outro] (NASIO, 1993, p. 35).
85
O estilo de relativização implica em ―relativizar a própria visão de mundo, captando-lhe os
delineamentos, limites, potencial explicativo e vantagens‖ (FIGUEIRA, 1978, p. 64). E o de isolamento
―fornece ao sujeito uma weltanschauung capaz de dotar o mundo e sua experiência social de sentido e
lógica, não deixando brechas por onde possa insinuar-se o desconhecido‖ (FIGUEIRA, 1978, p. 63).

248
confere a priori uma determinada característica, um lugar no panteão)86. Na segunda

direção, a implicação do desejo e da auto-responsabilização pela orientação sexual

sugere o reforço a uma identidade idiossincrática (FIGUEIREDO, 1995). Neste caso,

acreditar que é o desejo que se desvela no comportamento de ter práticas homoeróticas e

que se deve buscar explicações para o mesmo nas experiências mais tenras, remetendo-

se aos conflitos e vivências familiares.

Do ponto de vista da escuta psicológica oferecida, a usuária precisaria optar por

uma das racionalidades vindas de sistemas simbólicos divergentes. Considerando as

noções desenvolvidas por Figueira (1995), optar por seguir no processo de

assujeitamento e tender a operar como sujeito, implicando a sua orientação sexual em

uma lei auto-imposta. No entanto, podemos considerar a hipótese de que a paciente

pode solicitar um processo psicoterapêutico que a conduza à personalização, ou seja, a

uma forma outra de subjetivação, a de pessoa (mantendo sua identidade posicional), na

direção de manter a ordem para a totalidade.

Considerando as discussões realizadas por Costa (1989), vamos entender como

se dá a construção do conflito subjetivo no referido caso. Podemos supor que o conflito

subjetivo da paciente, ancorado na identidade psicológica, corrompe a integridade da

―identidade sexual‖, no que se refere a ser bissexual. Dito de outra maneira, ser mulher

e operar como bissexual pode ser vivenciado como fora do normal e, por isso, pode ser

qualificado como conflito subjetivo, numa sociedade preconceituosa em relação às

orientações sexuais não hegemônicas. As explicações trazidas pela paciente se remetem

à identidade religiosa, que pode muito bem estar superposta à psicológica, aumentando
86
As menções do ―santo‖ parecem estar relacionadas com o orixá denominado Oxumaré, da tradição do
candomblé iorubá, que tem como característica principal a possibilidade de estar no trânsito entre os
mundos feminino e masculino. Verger (2002, p. 207) assim descreve o arquétipo de Oxumaré: ―Oxumaré
é o arquétipo das pessoas que desejam ser ricas; das pessoas pacientes e perseverantes nos seus
empreendimentos e que não medem sacrifícios para atingir seus objetivos. Suas tendências à
duplicidade podem ser atribuídas à natureza andrógina de seu deus [ênfase nossa]. Com o sucesso
tornam-se facilmente orgulhosas e pomposas e gostam de demonstrar sua grandeza recente. Não deixam
de possuir certa generosidade e não se negam a estender a mão em socorro àqueles que necessitam‖.

249
em muito o conflito subjetivo. Ancorar a orientação bissexual, fonte do conflito, no

campo da identidade religiosa pode resultar numa estratégia menos individualista e mais

holista de construção de pessoa, pois que a mesma está caucionada dentro de uma

tradição que remete à totalidade, no entanto tender-se-ia a diminuir o conflito

psicológico, como buscaremos argumentar ao longo da nossa interpretação.

A interpretação do discurso da paciente que acabamos de seguir sugere uma

escuta psicológica asséptica ou cautelosa em relação à dimensão de significação

cultural? A princípio podemos pensar numa escuta que tende a ser cautelosa, mas que,

no entanto, demonstra o seu alcance como sendo representante de um único modelo de

subjetivação: o do sujeito na tradição ocidental moderna. Sua eficácia estará

subordinada ao grau de variação da entrada dos usuários, ou seja, dos meros-indivíduos

no processo de ―assujeitamento‖, ou, como diz Figueiredo (1997), contar com a força do

atravessamento cultural proveniente da difusão da psicanálise. E este pode ser um

caminho...

Na tradição do candomblé, Nunes (s/d) 87 destaca que há duas grandes vertentes

teóricas em relação à noção de pessoa presente: 1) uma que está centrada no modelo

não-individualista de pessoa independente do contexto cultural no qual ele se apresenta

(GOLDMAN, 1987); 2) a outra considera que o candomblé é uma religião que se adapta

ao ideário individualista (PRANDI, 1991; LÉPINE, 1981). A primeira posição reforça a

idéia de que o ―eu possui um caráter múltiplo que se opõe à concepção de unicidade do

eu que caracterizaria o pensamento ocidental‖ (NUNES, s/d). A segunda aposta na

influência do modelo individualista de pessoa que a sociedade moderna brasileira vem

sofrendo e que também atravessa os cultos religiosos, atraindo inclusive os indivíduos

87
Neste artigo, Nunes (s/d) busca discutir como os ―referentes identificatórios‖ presentes no idioma do
candomblé são utilizados pelas pessoas para construírem suas identidades de forma progressiva e flexível;
não houve a intenção explícita de situar o reflexo da noção de pessoa na clínica psicológica a partir desses
elementos.

250
que não encontram respostas satisfatórias para resolverem seus problemas dentro da

racionalidade moderna (NUNES, s/d).

Nesta arena, Nunes (s/d) posiciona-se no sentido de aceitar que, no candomblé,

está presente uma linguagem que ainda que predomine uma noção sociocêntrica de

pessoa, dispõe de potencialidades individualizantes. Dito de outra maneira, os adeptos

do candomblé utilizam o ―idioma religioso‖, cuja linguagem dispõe de dispositivos de

individuação, existentes no interior do próprio modelo sociocêntrico, particularmente

quando respondem às demandas de contextos culturais urbanos e cosmopolitas.

Esta é uma discussão muito mais profícua do que conseguiríamos sintetizar aqui;

ao mencioná-la, queremos sinalizar a complexidade que subjaz na ocorrência de um

modelo mítico de tradição hierárquica e holista no processo psicoterápico como

marcador identitário (no caso da paciente, representado pelo orixá oxumaré) quando da

tentativa de precisar em qual modo de subjetivação ele surge e quais repercussões disso

para a escuta psicológica. Uma das posições sobre a relação operada entre modelos

míticos88 e a experiência vivida é citada por Nunes (s/d). Nesta perspectiva, a identidade

mítica não é sentida como um modelo exterior, ao qual a pessoa precisa se subjugar;

trata-se de uma síntese entre o duplo e a metamorfose (AUGRAS, 1992 apud NUNES,

s/d). Dito de outra maneira, o processo de identificação da pessoa com seu orixá de

cabeça ou modelo mítico é proveniente de um jogo dialético, composto pelo o que o

mito traz e o que ele desperta na pessoa (NUNES, s/d).

No entanto, cabe ressaltar o ponto de vista de Nunes (s/d) quanto ao desfecho

identificatório de pessoas que recorrem ao idioma da possessão. Ela defende a hipótese

de que ―a disponibilidade de modelos míticos no seio de uma cultura favorece um jogo

com as diferentes dimensões do eu, segundo um processo mais dinâmico que aquele que

88
Definido como ―tipos psicológicos que oferecem às pessoas um modelo de pensamento e de
comportamento‖ (AUGRAS, 1992 apud NUNES, s/d)

251
sugere a substituição de um ―eu inautêntico‖ por um ―eu reprimido‖. Neste sentido, a

autora se distancia do que qualifica como reducionismo psicologizante, elaborado por

Augras (1992), quando esta última sugere que a compreensão da relação entre a pessoa

e o seu orixá remete-se a um conflito de identidade vivido pela mesma e que sua

resolução deve ser buscada na descoberta do ―eu oculto‖ representado pelo respectivo

Orixá de cabeça (NUNES, s/d).

No entanto, podemos ler algumas das unidades narrativas, apostando no

processo do assujeitamento por parte do mero-indivíduo, como a que temos nos termos

da psicóloga: ―Ou ele aceita, começa a trabalhar que há um desejo, que há um

compromisso dele nisso e de alguma forma rompe com essa coisa de que é algo externo,

ele pode ate associar o externo, com o interno... Ou ele faz isso, essa conciliação, ou ele

vai romper, esse sujeito vai romper‖. Se assim o fazemos, a princípio este pedido de

―conciliação‖ da escuta psicológica pode parecer cautelosa, mas atribui o conteúdo

religioso (ser do santo bissexual) a algo externo à pessoa e o desejo (ser bissexual) ao

âmbito interno ao sujeito, como algo que lhe escapa pela negação da sua

responsabilização. Não seria limitador tomar a visão de mundo religioso que sustenta

sua posição subjetiva de bissexual como algo ―externo‖, no sentido de não lhe atribuir

um papel constitutivo de um certo modo de subjetividade mais holista?

Nunes (s/d) nos convida a interpretar a exterioridade da constituição da pessoa

em outra direção. O processo de iniciação da maioria das pessoas vinculadas ao

candomblé é percebido como ―uma obrigação à qual ela deve se submeter‖. Tanto a

pessoa quanto a sua família são lembradas pela divindade do seu compromisso como a

ordem cosmológica da qual fazem parte. Neste sentido, ―o fato de adotar modelos

míticos mobilizados pelo Candomblé é percebido como o efeito de um desejo situado

no exterior da pessoa – um desejo da própria divindade‖. Um tal movimento é

252
extremamente legítimo dentro de um contexto sociocêntrico, a ordem sendo seguir a

exterioridade do chamado se auto-responsabilizando através da iniciação.

Nesta direção, podemos questionar até que ponto a indicação da nossa

entrevistada de que sua paciente deve aceitar, independentemente da sua identidade

mítica, que há um desejo ou um compromisso dela mesma em relação à sua ―inclinação

homoerótica‖ e romper com esta ―coisa externa‖ poderia descambar facilmente para o

retorno dessa concepção de um ―eu reprimido‖. Ainda neste sentido, sua orientação

sexual fundida ao modelo mítico poderia ser considerado o ―eu inautêntico‖, o que

reduziria em muito a experiência relatada pela usuária.

Podemos, então, supor que o incentivo da fala da paciente, fazendo a menção

aos referentes identificatórios do idioma do candomblé (NUNES, s/d) e garantindo a sua

presença no processo de tratamento, e não como diz a entrevistada ―independente da

crença dela‖, parece tender à inclusão da dimensão de significação cultural, situando o

discurso da paciente de modo mais adequado ao seu contexto sociocultural de origem.

Por outro lado, o tratar de ―forma bem analítica‖ o conflito subjetivo da usuária parece

eliminar a priori esta possibilidade, quando busca explorar as suas identificações

independentemente da crença, ou seja, fora do idioma que lhe dá sentido.

É possível considerar o encontro clínico psicológico como um espaço de

―transição instauradora‖ de modos de subjetivação (FIGUEIRA, 1995), interpretando os

conflitos subjetivos de um ―mero-indivíduo‖ fora do idioma cultural que lhe fornece

significado e sentido? Arriscamos um categórico não. Tenderíamos a colocar nosso

sistema elétrico em curto-circuito, ao ligarmos a fonte de alimentação diretamente ao

terra (ESQUEMA 03), atingindo o mais alto grau de assepsia da escuta psicológica.

Uma escuta psicológica mais cautelosa apostaria na potencialidade

individualizante (NUNES, s/d) de outros idiomas culturais, o que implica em entender o

253
processo identitário de um ―mero-indivíduo‖ dentro de um determinado idioma

cultural de origem e não a sua revelia.

Do ponto de vista da nossa entrevistada e da sua orientação teórica, o fato de

suportar o processo de análise não é para todos os que procuram atendimento

psicológico nos serviços públicos de saúde, nem no consultório particular. Para que ele

funcione, é preciso que a pessoa tenha capacidade de ―lidar com certos conteúdos em

um nível muito subjetivo‖, aspecto que independe da classe social, pois há os que

suportam o trabalho analítico e outros não, indo atrás de soluções que trabalham com o

corpo, ou desenvolvendo um circuito de busca de analistas onde subjaz a dor e o seu

apaziguamento temporário:

porque a gente sabe que a psicanálise não é universal, ela precisa, inclusive,
que o sujeito que está assujeitado a ela tenha uma certa possibilidade de
lidar com certos conteúdos num nível muito subjetivo. Quem não é, não
fica e não fica nem aqui, e não fica lá [consultório particular] (fim do Lado
A) [...] e há esse embate... ou ultrapassa isso... E, também, eu vejo assim
passa um, dois meses. Se der para ultrapassar isso, aí fica, senão... vai
embora, porque começa a ver como é difícil. [...] independe da classe social.
Independe, de qualquer forma. Há uns que suportam ficar, de lidar com
certos conteúdos, outros não. E aí eu acho mesmo que vai em busca de
outras soluções, de um trabalho de corpo, ou sei lá, de uma coisa dessa que
acha que está apaziguando aquela dor. E há pessoas que querem mexer e
outras que não querem mesmo, que não querem sair. E aí, tem o gozo do
sintoma, a gente não pode esquecer disso, né?, de que apaziguou aquilo um
pouquinho. Então, é só isso que eu quero e aí, vai e volta, vai e volta,
procura um analista aqui, outro ali, aí vai fazendo seu circuito, né? [Cristina,
Psi III-B: 21anos].

Do nosso ponto de vista, uma escuta psicológica mais socioculturalmente

orientada ao contexto de origem do usuário é garantida não apenas pela sua capacidade

de ―lidar com certos conteúdos num nível muito subjetivo‖, mas pela habilidade do

profissional em acompanhar esta tarefa complexa e trabalhosa de tornar-se sujeito,

considerando as várias dimensões de significação do seu problema como originárias de

contextos muito diferentes aos seus próprios.

254
10. ATUAÇÃO PSICOLÓGICA COLETIVA EM UBS: um ponto de partida para uma

renovação do trabalho psicológico.

Em meados de 2003, já havíamos terminado o trabalho de campo. No entanto,

freqüentávamos, periodicamente, uma das UBSs visitadas para o desenvolvimento da

presente pesquisa, no intuito de implantarmos estágio observacional 89 em psicologia da

saúde coletiva para graduandos do curso de psicologia. O tipo de estágio que

percebíamos como pertinente para este espaço de trabalho não tinha sido possível de

implantar, porque a atuação dos psicólogos que aí trabalhavam estava baseada,

principalmente, no trabalho psicoterápico individual 90, mais adequado ao nível

secundário de assistência à saúde (SILVA, 1992; LO BIANCO, e outros1994; SPINK,

2003),

Em meados de 2004, nos conduzimos mais uma vez à referida UBS para marcar

uma vista técnica. Com surpresa ouvimos da gerente da unidade: ―acho que, finalmente,

chegou o tipo de psicóloga que você procurava‖. Buscamos, a partir desse retorno

imprevisto ao contexto da presente pesquisa, levar a cabo um objetivo mais ambicioso

do que a implementação de estágio, ou seja, tecer considerações sobre que tipo de

atuação psicológica deveria ser compatível com as atribuições de uma UBS, já que

poderíamos contar com uma experiência concreta.

Entrevistamos Bárbara, a referida psicóloga, seguindo o percurso teórico-

metodológico adotado nas primeiras fases da coleta de dados. Através da entrevista

89
É uma modalidade de estágio continuado em psicologia, a partir dos Parâmetros Nacionais
Curriculares, que incentiva a aproximação paulatina dos graduandos a áreas de atuação, implantado no
projeto pedagógico de um dos cursos de psicologia da rede privada de Salvador. No caso particular do
estágio observacional em psicologia da saúde os graduandos fazem observações sistemáticas éticas de
atuações de psicólogos que trabalham nos serviços públicos de saúde, particularmente, em situações
sócio-educativas. Discutem as ações que foram desenvolvidas pelo psicólogo responsável em orientação.
90
Neste particular, podemos generalizar que se tratava de psicoterapia institucional nos serviços públicos
de saúde e esta não era o tipo de atuação que vislumbrávamos dentro do campo da psicologia da saúde,
como campo de conhecimento e de atuação (ver SPINK, 2003), além da familiaridade que tínhamos a
partir da formação em pós-graduação em saúde coletiva.

255
semi-estruturada, incentivamos a reconstrução da sua recente trajetória profissional em

serviços públicos de saúde, identificando as práticas psicológicas desenvolvidas e os

significados que lhes atribuía. Tínhamos como contraponto as demais trajetórias

profissionais das UBSs e as dos CSMs, que tanto enriqueceram as discussões sobre a

atuação psicológica, ousamos rascunhar alguns caminhos que pudessem avalizar o que

denominamos de atuação psicológica coletiva (APC).

Por este termo pretendemos designar o processo contextual de identificação de

demandas, de planejamento e de execução de necessidades de atendimento

psicológico socioeconômico e culturalmente orientado, passíveis de serem

desenvolvidas pelo psicólogo na área de saúde coletiva, individualmente ou em

conjunto com outros profissionais, não restritas ao setor saúde. Este processo deve

levar em consideração as críticas e as orientações surgidas dentro e fora do próprio

campo disciplinar da psicologia, marcado pelo seu intercâmbio indispensável com o

campo da saúde coletiva. A APC poderia ser ainda entendida como uma ―estratégia‖ de

organização contextualizada da atuação psicológica para prevenir doenças e promover

saúde em UBS. Neste sentido, este esforço alicerçou-se por noções significativas que

envolvem os campos da psicologia e da saúde coletiva, alguns apresentados no capítulo

três, dos quais podemos sumarizá-los nesta definição:

A atuação psicológica coletiva deve estar orientada pelo compromisso social


(BOCK, 1999; 2003) no sentido de incorporar e avançar em proposições que
alimentem práticas socialmente contextualizadas para o psicólogo como
profissional de saúde;
A atuação psicológica coletiva deve estar pautada nas diretrizes e princípios do
SUS (PAIM, 1999), nas habilidades descritas como imprescindíveis à função de
um profissional de saúde (PAIM e ALMEIDA-FILHO, 2000) e nos aspectos
fundamentais para o trabalho do psicólogo no SUS, em ações pertinentes à
atenção primária à saúde sugeridas por Dimenstein (1998). Além disso, deve
considerar os aspectos descritos por Lo Bianco e outros (1994) como

256
advertências e indicações significativas para a organização do trabalho do
psicólogo na rede básica de saúde.
A atuação psicológica coletiva deve se pautar criticamente no conceito de saúde
explicitado na Constituição Federal de 1988 e na superação de qualquer tipo de
reducionismo que lhe seja decorrente, advinda do movimento pela Reforma
Sanitária Brasileira (PAIM, 1999; LACERDA, 1998), como meio balizador das
práticas psicológicas planejadas e desenvolvidas para um fim que não se esgota
no indivíduo nem é de exclusividade do setor saúde para serem promovidas;
A formação do profissional de psicologia para a atuação na área de saúde
pública deve estar atenta às indicações alternativas de Bastos e Achcar (1994)
para formação pautada no compromisso social da profissão, no sentido de
diminuir os efeitos negativos da aplicação indiscriminada dos conhecimentos
advindos da clínica tradicional.

Por fim, a atuação psicológica coletiva tem como ferramenta principal à escuta

psicológica cautelosa, ou seja, aposta em uma conduta profissional socioculturalmente

orientada, reafirmando a importância da subjetividade no processo de saúde-doença-

cuidado. Nessa perspectiva, contempla dois aspectos para a escolha e para a organização

das necessidades de atendimento psicológico, seja o de cunho preventivo ou de

recuperação. O primeiro busca compreender as demandas do usuário considerando as

dimensões de significação individual e coletiva que lhes dão significado e sentido; o

segundo, diz respeito à definição de práticas individuais ou grupais congruentes com os

objetivos dos níveis de assistência à saúde e necessárias para a mudança na concepção

de atenção à saúde.

10.1 TRAJETÓRIA PROFISSIONAL EM UBS: de abertura e renovação.

A entrada na rede de saúde e a formação profissional

Bárbara começou a trabalhar em uma UBS, que tem como foco de ação a prevenção em

DST/AIDS, em 2003. Ela ressalta que parte dos psicólogos convocados, seus

257
contemporâneos na graduação, escolheu trabalhar no centro de saúde mental, quando

tinha a opção de ir para a referida UBS, onde se inseriu. É significativo pontuar que, do

seu ponto de vista, esta vaga na UBS foi mais difícil de ser preenchida, porque o

trabalho que envolve a problemática da AIDS não é cobiçado pela categoria, muito em

função do ―preconceito‖ dos próprios psicólogos e da não familiaridade com as questões

que envolvem a soropositividade para o HIV, tema que percebe como pouco explorado

durante a graduação.

Diferentemente das outras interlocutoras que se formaram antes do início da

década de 1990, Bárbara concluiu o curso de psicologia em 2001, tendo ingressado na

universidade em 1996. Por outro lado, sua visão em relação ao papel da universidade

não difere da maioria dos entrevistados. Bárbara enfatiza que esta é mais um espaço de

―convivência‖ e ―trocas não só acadêmicas‖, que se aprende muito tanto nas salas de

aulas quanto fora delas, por propiciar maior diversidade cultural. Por sua vez, chama

atenção o fato de, com a mudança curricular do curso de psicologia, ela ter cursado a

disciplina ―psicologia da saúde‖, diferentemente das outras entrevistadas, aspecto que

apresenta com tendo lhe instrumentalizado, já que teve oportunidade de ter contato

direto como os postos de saúde e informações sobre a reforma sanitária brasileira e a

psiquiátrica e sobre a organização do SUS.

Atualmente faz formação em psicologia social, trabalhando com a perspectiva de

grupos operativos. Destaca que esta abordagem, através do trabalho em grupo, busca

incentivar o profissional a ―fazer parcerias‘ com a comunidade, identificar os conflitos e

funcionar como um facilitador da ―reflexão crítica‖. Podemos perceber, pelo relato da

entrevistada, a confluência da sua abordagem teórico-prática com o princípio de

participação social, cara à organização do SUS. A impressão que ainda acompanha

Bárbara sobre a referida UBS é que ela está ―desconectada‖ da comunidade, sendo

258
necessário desenvolver nos potenciais usuários uma postura mais participativa; aspecto

que buscou contribuir em dois sentidos: a) nas atividades terapêuticas propriamente

ditas; b) na divulgação e fomento para criação do conselho de saúde local91.

O posto é da comunidade, isso é que essa comunidade não entende, não cobra
por isso, não luta por isso, né?!. Então se eles estivessem dentro do posto,
sabendo o que a gente passa enquanto profissional né, até pra lutar com a
gente, né!?. A gente tá tentando formar um conselho local de saúde e não
consegue e por quê? Porque há uma portaria que diz que o presidente do
conselho é... o gerente do posto deve ser presidente do conselho. [...] Aí
claro, assim, a gerente do posto não concorda com isso. E o Conselho
também não vai se formar, sabendo que o presidente já está escolhido e é
uma pessoa com cargo de confiança da Secretaria né?! Aí a gente fez
reuniões e pediu que ele se manifestasse contra isso. E até hoje eles não se
manifestaram, que eles não têm essa mobilização [...] no posto e eu tentei
fazer esse trabalho.

O relato acima demonstra a preocupação da entrevistada com a implantação do

Conselho Local de Saúde, a partir da mobilização da própria comunidade, o que merece

destaque como uma das possíveis atuações de um psicólogo, ainda que não nos

detenhamos em analisá-las em profundidade, que o tema merece.

A inserção na UBS e as atividades desenvolvidas

A chegada na unidade foi acolhedora por parte da gerente. Como já havia uma outra

psicóloga aí inserida, oferecendo psicoterapia, soube através da gerente que ―não havia

demanda para as duas‖ realizarem o mesmo tipo de atividade. Bárbara relata que se

sentiu ―aliviada‖ com esta informação, porque não tinha como proposta de trabalho

organizá-lo em torno da psicoterapia, ainda que não tivesse claro, naquele momento, o

que iria propor.

Do seu ponto de vista, o psicólogo sendo um profissional incomum nas unidades

básicas de saúde, não deve ficar à disposição de uma demanda baixíssima. No

primeiro momento, percebemos que o sentido atribuído à demanda vai além da

quantidade de usuários, que é descrita pela entrevistada como alta. No segundo


91
Considerado um dos mecanismos oficiais mais sofisticados para o exercício do controle social.

259
momento, inclui o significado da demanda psicológica propriamente dita, baseada no

argumento de que as pessoas não aderem à psicoterapia [neste caso, de base

psicanalítica]92, ainda que ela não saiba explicar os motivos associados à não

permanência dos usuários no tratamento psicológico. Enfatiza esse argumento ao

descrever a referida atuação psicológica como ineficaz e pouco prática, como

apresentamos no fragmento abaixo:

[...] é um profissional raro na unidade de saúde, o psicólogo, e que fica à


disposição de uma demanda baixíssima, né?. A demanda era até alta, mas
as pessoas não ficam para o tratamento [psicoterapia]... Eu não posso dizer
por que, porque eu não faço, não sei... Mas eu sinto que não, não é eficaz,
prático. E porque, também, eu tenho condições de fazer (PI), primeiro,
promoção e prevenção né? A gente tem que... e se você tem tão poucos
[psicólogos] né ?[...] e uma demanda grande [usuários] [...] Porque eu
acredito, se você fizesse um grupo, as discussões seriam, né? terapêuticas.
Porque é sintoma, também. E, também, você atingiria um maior número de
pessoas, criaria um vínculo entre elas, né?

A justificativa para o tipo de atuação que irá propor se rascunha já no relato

acima, tendo como contraponto a atuação psicológica tradicional (LO BIANCO e

outros, 1994). A sua proposta de trabalho só é possível, porque a interlocutora se sente

habilitada para desenvolver as ações de prevenção e promoção de saúde, que acha

compatíveis com o referido nível de assistência, no qual está se inserindo. Nesta

direção, considerando a escassez do profissional de psicologia, adota uma postura

pragmática de otimizar o tempo e o esforço da atuação psicológica para o trabalho

grupal de cunho preventivo, que contemple problemas prevalentes na área de saúde

pública, a exemplo, da diabetes e da hipertensão, o que podemos acompanhar no

fragmento transcrito abaixo:

acho que tinha que ele [psicólogo] tinha que otimizar o tempo dele... eu, eu
acredito que seria mais adequado... que não, não fosse... porque se a gente
começasse a olhar mesmo todas as áreas... não (TI) a gente tem muito que se
olhar... problema de diabetes, problemas de hipertensão, a gente só trata o

92
É importante ressaltar que não aparece nada no seu relato que desqualifique a psicoterapia de base
psicanalítica, muito menos a atividade desenvolvida pela outra psicóloga nesta unidade, a não ser as
restrições apontadas em relação à adequação ao nível de assistência em questão.

260
diabético e o hipertenso, não trata a pessoa que está propensa a ser diabética
ou hipertensa né? Fazendo um trabalho de prevenção... todos, eu, eu acho
que tem esse olhar...

No que diz respeito à sua relação com os outros colegas de trabalho, comenta

que sua postura causou um certo estranhamento, quando lhe foi oferecida uma agenda

para marcação de consultas e ela explicou que não precisaria desse material, pois não

atenderia individualmente, em trabalho psicoterapêutico. Aos poucos foi se

aproximando e demonstrando aos mesmos outras possibilidades de atuação do

psicólogo, que na sua opinião, têm sido bem aceitas. O momento de ambientação com

as atividades já oferecidas na unidade parece ter sido um período significativo para a

inserção da entrevistada.

É interessante sinalizar que o envolvimento da psicóloga com as práticas

associadas comumente a outros setores da unidade será algo permanente na sua

trajetória, particularmente o de vacinação, não se tratando de uma ―obrigação‖ imposta

pela gerência. A noção de atendimento integral parece funcionar como pano de fundo

para a organização do seu trabalho, orientado de modo mais integrado, como visto no

fragmento abaixo:

aí já tem a visão que eles trabalham em equipe que... preciso de algumas


informações, que eu não tenho, que gostaria que eles passassem para os
adolescentes, essa coisas, os adultos... e o pessoal da, da... vacinação já não...
mas, agora eles já estão mais tranqüilos... quando eles [os usuários] ficam no
preservativo [aconselhamento individual com entrega de preservativos], aí
encaminho para vacinação, também. Aí eles falam ―no dia que [Bárbara]
está atendendo tem mais vacina‖. Porque eu, eu mando vacinar. Eu pego o
cartão da pessoa... e eu olho... se precisa vacinar. Se eu vejo assim algum
ferimento, eu mando... fazer o curativo né? Porque entendendo que não
posso tá atendendo tudo... Se tem uma pessoa [outro profissional] ali, né?. E
se ele precisar do outro serviço que o posto possa oferecer, porque ele já tá
aqui dentro. A pessoa que sai não vai voltar no outro dia. Diz que vai
voltar e não volta. É mais ou menos esse questionamento que as pessoas
[profissionais de saúde] têm de que eu trabalho e não trabalho sozinha.

Outro aspecto que podemos destacar, no relato acima, é o fato dos outros

profissionais perceberam a diferença em relação à quantidade de encaminhamento de

usuários para a vacinação ou curativo quando ela está fazendo o aconselhamento

261
individual em DST/AIDS para uma demanda espontânea93 que flui no serviço. No

entanto, há aqueles que questionam sua postura de buscar uma atuação mais integrada

como os outros setores da unidade:

O questionamento que eu tinha, que até hoje é assim: [Bárbara] é assim...


[Bárbara] procura trabalho pra gente, [Bárbara] trabalha e ainda inventa
trabalho pra gente... Esse é o questionamento básico: ―por que você não vai
fazer sua palestra sozinha e me deixa e deixa a vacinação em paz?‖. Aí,
eu tenho que explicar a esses [não são todos os profissionais] que estamos
lidando com adolescente... que a saúde é uma coisa mais é completa. [...]
Eles acham que eu tenho que fazer o meu trabalho e não preciso envolver
curativo, não preciso envolver isso, no meu trabalho, né?

Os argumentos utilizados pela interlocutora, que avalizam o empenho em

realizar o trabalho mais conjunto, incluem as particularidades do lidar como o

adolescente, que, do seu ponto de vista, é de difícil abordagem; além disso, de se ter

uma visão mais completa de saúde. Aproveitando uma discussão realizada por

Goldberg (2001) em relação à cristalização dos papéis profissionais impeditivos à

renovação do cuidado em saúde mental, podemos perceber que a trajetória profissional

em evidência parece não sofrer do que o autor qualifica como preconceito

tecnológico94. Há de fato uma abertura na conduta profissional de Bárbara que pode

facilitar renovação da atuação psicológica nas UBSs.

Dentre as principais práticas psicológicas desenvolvidas por Bárbara relativas à

problemática das DST, HIV e AIDS, podemos citar: a) palestra em uma escola

municipal, acompanhamento do programa de vacinação; b) aconselhamento

individual para uma demanda espontânea; b) trabalho de grupo com adolescentes.

De acordo com Bárbara, o trabalho conjunto com o setor de vacinação teve

como objetivo tornar a unidade um local de referência para os adolescentes da

93
Por demanda espontânea entende-se a busca livre da população por serviços de saúde, tanto no setor
público quanto no privado, sendo uma das características do modelo assistencial privatista de saúde,
hegemônico no Brasil (PAIM, 1999).
94
Segundo Goldberg (2001), por preconceito tecnológico enfatiza-se uma certa maneira de se realizar
práticas, que cada profissional adota, a partir de um repertório comportamental modelado por sua
profissão, sem se preocupar com o sujeito que está sob os seus cuidados, muitas vezes blindado num não
tratar tudo o que se fizer fora deste repertório.

262
comunidade, através da parceria com uma escola, reforçando os princípios da

humanização do atendimento e o de intersetorialidade.

O segundo está regulado pelo conceito de aconselhamento95, de acordo com a

Coordenação Nacional de DST e AIDS, entendido como

um processo de escuta ativa, individual e centrado no cliente. Pressupõe a


capacidade de estabelecer uma relação de confiança entre os interlocutores,
visando ao resgate dos recursos internos do cliente para que ele mesmo tenha
possibilidade de reconhecer-se como um sujeito de sua própria transformação
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000, p. 11).

O aconselhamento deve ser regido por três componentes: a) o apoio emocional;

b) o apoio educativo e c) pela avaliação de riscos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000).

Segundo a entrevistada, no aconselhamento individual oferecido há discussão sobre

aspectos da vida sexual do usuário,96 incluindo os de risco e os de proteção, o incentivo

para incorporação de práticas sexuais seguras e a distribuição de preservativos

masculinos e femininos. A partir da descrição das pessoas atendidas, é importante

ressaltar que se trata de uma clientela com baixo nível de informação, que tem muitas

dúvidas em relação aos sintomas e sinais das DSTs, além do uso correto dos

preservativos, ao contrário do que mostram em relação à AIDS, sobre a qual dizem estar

bem informados.

A terceira atividade desenvolvida por Bárbara merecerá um maior detalhamento,

por três razões: a) remete-se de modo mais evidente a uma reflexão da necessidade de

renovação da atuação psicológica; b) exibe disposição do profissional para superar

obstáculos; c) pode ser entendida como original, não estando centrada na doença, e se

sim na saúde.

95
O conceito de aconselhamento, adotado pelo Ministério da Saúde, foi elaborado pela psicologia em sua
vertente humanista, seu representante teórico clássico é Carl Roger (MOSKOVICS, 2000).
96
A demanda espontânea que procura esta unidade é composta, particularmente, por: profissionais do
sexo, usuários de drogas injetáveis, soropositivos, algumas mulheres casadas e pouquíssimos
adolescentes. Diferentemente da clientela atendida por outros psicólogos em outras UBS, a entrevistada
diz que a sua clientela é composta, basicamente, por homens, inclusive, alguns moradores de rua.

263
Inicialmente, a interlocutora propôs dois grupos para adolescentes com o

objetivo de fomentar o protagonismo juvenil e formar agentes multiplicadores em

relação à problemática da DSTs/AIDS, dentro das instalações da unidade97. A escolha

por trabalhar com o adolescente é apontada em três sentidos: a) sua experiência prévia

de elaborar e executar projetos com este período do desenvolvimento humano; b) pela

maior vulnerabilidade do adolescente em relação às DSTs/AIDS 98; c) o cumprimento de

uma meta da unidade de vacinar os adolescentes para Hepatite B99.

Do seu ponto vista, não houve adesão dos adolescentes às ―oficinas‖ oferecidas

pelos seguintes motivos: a) a ida pouco freqüente do adolescente ao posto de saúde; b)

acham que sabem tudo e que como eles não vai acontecer nada, definido na literatura

como ―pensamento mágico‖; b) têm vergonha ou pouco interesse de participarem de

―oficinas‖ que tenham com tema ou apresentem no título: ―sexualidade‖,

―autoconhecimento‖, ―crescimento pessoal e social‖ 100. Quando questionada sobre este

último ponto, a interlocutora conclui que parte do problema ocorria também porque

estes termos não pareciam ter muito significado para os mesmos. Podemos inferir que,

inicialmente, a diferença de linguagem e de interesse foi um dos marcadores que

revelou uma dificuldade em organizar seu trabalho em torno da prevenção e da

promoção de saúde para esta clientela. Disposta a convocá-los, Bárbara utilizou outra

estratégia, descrita a seguir, se responsabilizando por contribuir com uma meta que a

unidade deveria cumprir, aspecto que contempla o princípio da resolutividade,

buscando ações condizentes com o perfil epidemiológico.

97
É importante ressaltar que a segunda tentativa de desenvolver este trabalho foi oferecê-lo para os
estudantes de uma escola pública, circunvizinha a unidade, também sem sucesso.
98
Ver Ayres, e outros (2003)
99
A vacinação dos adolescentes para Hepatite B foi uma determinação do Ministério da Saúde, a partir do
perfil epidemiológico para esta faixa etária em DSTs/AIDS, oferecidas na maioria das UBS brasileiras, de
acordo com a gerente da referida unidade.
100
A entrevistada diz ter trocado o título da oficina, algumas vezes, de modo a torná-la mais atrativa ao
adolescente. Por fim, concluiu que deveria investir em outra proposta de trabalho.

264
A estratégia adotada pela entrevistada para superar o que diz ter sido seu

primeiro grande desafio foi propor um ―curso introdutório de telemarketing‖ para os

adolescentes, conjugado a temáticas importantes de serem discutidas a partir da

―reflexão crítica‖ com esta clientela, além de oferecer os outros serviços que a unidade

disponibiliza. Neste sentido, buscou parceria com uma ONG que oferecia atividades

educativo-artísticas para jovens carentes, considerando a noção de territorialidade. O

grupo foi fechado facilmente com 25 adolescentes, sendo realizado nas instalações da

ONG101.

A seguir apresentamos uma longa narrativa de reconstrução da tática

desenvolvida pela entrevistada, destacando os fragmentos que refletem alguns dos

aspectos considerados por Dimenstein (1998) como pontos fundamentais que devem

estar presentes no trabalho do psicólogo no SUS, particularmente em UBSs:

Identificar os problemas que requerem atenção prioritária na comunidade. A

preocupação de ir paulatinamente percebendo os problemas prioritários aparece

desde a sua chegada à unidade, onde se destaca inclusive a desarticulação

unidade – comunidade:

uma ONG que tem aqui na [UBS] e que fiz uma proposta de saúde, eu sinto
que ele [UBS] é desconectado com a comunidade, né? Ele é um posto que
não tem vivência na comunidade, essa era uma chance de a gente estar
com a comunidade. Pra que a comunidade saber mais, da nossa vizinhança...

Propor ações de saúde em parceria, mediante participação da comunidade,

oferecendo procedimentos terapêuticos diversos:

E aí a gente fez um trabalho, a gente ia fazer nessa ONG, né? Nessa


parceria... e... aí tivemos alguns sucessos. No começo do planejamento, que
eu queria fazer igual do [escola municipal], mas não tinha público, os
adolescentes não se inscreviam, né... só no sistema de saúde. E então eu tive
a idéia de fazer um curso que chamasse eles e que, também, é... servisse
ao nosso interesse de saúde aqui. Foi quando eu planejei fazer o curso
telemarketing, que era uma experiência que eu tinha. E aí teve uma grande

101
Não há espaço físico suficiente na unidade básica para realização de atividades desse porte, fato que,
de acordo com a entrevistada, já impossibilitou o trabalho com outro grupo de usuários.

265
procura na inscrição, que a gente, quando começou o curso, explicou que eu
era psicóloga no posto de saúde. Então precisava que eles fossem vacinados,
que é... tínhamos o programa de preservativos, tínhamos nutricionista...

Executar atividades a partir de temas significativos ao mundo do adolescente e

ao perfil socioeconômico e epidemiológico para o público-alvo:

E então é... o trabalho feito era assim: são oito encontros de uma hora e meia.
Os primeiros 45 minutos são apenas relativos a noções de telemarketing,
né?. [No segundo momento] a gente tem uma lista e eles escolhem [os temas
de interesse]. O que mais apareceu [...] e a gente trabalhou: DST-AIDS,
gravidez na adolescência, drogas, uso e abuso de substâncias
psicoativas... hum... deixa eu me lembrar, relação de gênero apareceu e...
projeto de vida, tem mais algum, mas agora não estou me lembrando...

Tornar a UBS um local de referência para o adolescente. Ressaltamos que este

se tornou um objetivo mais geral do trabalho descrito:

Então essa fase acabou, essa turma acabou... Aí eles vêm aqui no posto,
tomaram as vacinas de hepatite, principalmente de hepatite, porque o público
jovem é o nosso alvo, alguns foram para nutricionista, umas duas meninas
que estavam com peso acima... E todos agora participam do trabalho do
DST; mês e mês, depois que terminou eles vêm pegar o preservativo.

Esta estratégia distancia-se de um padrão encontrado nas outras trajetórias

profissionais, em dois pontos, que percebemos como ressaltando a força da noção de

prevenção e de promoção de saúde desse trabalho, mas que não permite comparações

sobre a sua eficácia em relação às atividades oferecidas pelos demais psicólogos: a) não

eram encaminhados ―adolescentes problemas‖, por exemplo, com queixas escolares ou

comportamentais; b) o foco não era resolver um ―problema psicológico‖ restrito ou

reforçado pelo contexto socioeconômico desfavorável. Esta tática nos aparece

emblemática, porque trata os problemas possíveis de serem encontrados entre os

adolescentes, tendo como centro difusor a saúde e não a doença. Nesta direção, conjuga,

por exemplo, o trabalho preventivo de vacinação e do aconselhamento em DST/AIDS,

eficiente e caro à saúde coletiva à expectativa de estar refletindo sobre o projeto de vida,

tendo como local de difusão a unidade básica de saúde, mas que não se limita a ela.

266
Além disso, percebemos o interesse de identificar precocemente problemas de saúde e

fazer o encaminhamento necessário para resolvê-lo.

Tomando esta reconstrução como ponto de partida, podemos concluir que a

atuação psicológica, em pauta, não tem como foco encontrar ou garantir um emprego

para o adolescente nem tutelá-lo. Parece estar socioeconômica e culturalmente orientada

ao proporcionar um espaço de reflexão e de troca, que tem como objetivo tornar o

adolescente mais atento para as dificuldades que encontra no seu dia a dia, inclusive em

relação aos riscos intrínsecos às experiências cotidianas, de ordem não só sexual, mas

sobretudo psicosssocial. Na narrativa abaixo, destaca-se o procedimento adotado pela

entrevistada para levar a cabo sua atuação:

trabalhar em grupo, né? De dar fala a todo mundo, de saber que você é um
facilitador, que você não está coordenando nada, está facilitando a reflexão
crítica, né? Sempre buscar a reflexão crítica dos adolescentes, principalmente
né? Eles têm muito esse imperativo do padrão de beleza, eu sempre
converso com eles. Assim, quando ele está no mercado de trabalho sempre
surge a questão de ser negro... [...] de seguir um padrão de beleza, que não é
um padrão de beleza nosso, não é? Não é um padrão estético, genético da
nossa raça... dos baianos. Então, eu acho que sempre puxava pra questão
crítica, pra questão crítica... isso tem me ajudado muito... na formação que eu
faço [psicologia social].

Podemos perceber durante a entrevista que as noções de telemarkting

disponibilizadas eram transmitidas com seriedade, já que a interlocutora tinha

experiência prévia em treinamento, mas que era também utilizada com um pretexto para

discutir discriminação étnica, relações de gênero, através de atividades simples e ricas,

por exemplo, preparar um currículo com foto 102. Estas noções eram apresentadas nos

primeiros 45 minutos da oficina e os demais 45 eram reservados às questões pertinentes

à prevenção de problemas de saúde. Ao longo dos oito encontros, de acordo com a

102
Esta atividade foi relatada em outro momento de contato com a entrevistada, consistia em discutir
quais informações deveriam constar no currículo e como deveriam ser apresentadas. Uma das questões
polêmicas foi a apresentação da fotografia, o tipo de reflexão proporcionado possibilitou a discussão
sobre o ―receio‖ dos adolescentes de se apresentarem como negros e não conseguirem a suposta vaga, do
uso de fotos inadequadas (por exemplo, em trajes de laser) para apresentação de currículo e quais os
significados desse uso inadvertido, do conflito psicológico de não corresponderem ao ―padrão estético‖
hegemônico socialmente, entre outros aspectos psicossociais.

267
interlocutora, no processo avaliativo, o ―momento da saúde‖, como os adolescentes

assim denominavam, começou a ser esperado com muito entusiasmo, sendo que apenas

duas pessoas desistiram, uma delas por ter conseguido um trabalho no mesmo horário

da realização da oficina e a outra não apresentou justificativa para o desligamento.

Para concluirmos a reflexão aqui proposta sobre a pertinência de determinadas

práticas psicológicas para as UBs em detrimento de outras, além dos textos teóricos que

apresentamos, podemos cita um dos raros relatos descritivos de atuação clínica em

serviços de saúde desenvolvido no contexto soteropolitano. Trata-se do estudo de

Chaves (1995) 103. Em uma unidade básica de saúde, após negociação com a instituição

para atividade de extensão universitária, a autora disponibilizou dois tipos de atuação: a)

atendimentos psicológicos104; b) grupos educativos105.

1) em relação aos atendimentos psicoterápicos: dos 11 atendimentos realizados, houve

sete desistências, além disso, oito usuários encaminhados por outros profissionais de

saúde da referida unidade nunca apareceram. A autora, frente a estes dados questiona:

havia, realmente, demanda destes usuários para a psicoterapia? Ela chama atenção

de uma variável de natureza social, uma vez que, particularmente, quatro usuários

compareceram a uma sessão e relataram ser impossível ter folga para irem às sessões

futuras e o contato que teve com um deles ficou mais evidente não existir uma demanda

individual para a psicoterapia. Os três que compareceram a três sessões foram

103
Este estudo visou ―descrever uma experiência docente de atuação profissional e de avaliação de
condições para a realização de estágios em uma instituição que presta assistência à saúde‖ (CHAVES,
1995, p. 110)
104
Dos onze atendimentos realizados, quatro foram concluídos: uma psicoterapia e três avaliações com
posterior encaminhamento para serviços especializados de psicologia. Com relação aos demais
atendimentos, houve sete desistências: quatro compareceram a apenas uma sessão, um compareceu a duas
e dois a três sessões.
105
Este era composto por 14 adolescentes, com idade de 10 a 14 anos, que se reuniam quinzenalmente
com uma equipe muldisciplinar. Seu objetivo principal era, como ―via de educação para a saúde, criar um
espaço para os adolescentes selecionarem temas vinculados às suas experiências, discutirem aspectos de
suas histórias de vida e receberem informações que ampliem seus graus de conhecimento, possibilitem
mais alternativas de escolhas e orientem seus comportamentos na direção da minimização ou eliminação
de fatores de risco (CHAVES, 1995, p. 110).

268
encaminhados em decorrência de violência sexual. Nestes casos, a desistência é

apontada como freqüente pela literatura especializada, dadas as implicações que surgem

no contexto familiar, esclareceu a autora;

2) Em relação ao grupo educativo, a autora descreve sua maior pertinência e

efetividade, baseada nos seguintes argumentos: a) apesar de não haver obrigatoriedade

de presença às reuniões, a freqüência dos 14 adolescente foi superior a 80%; b) os seus

responsáveis em contato com os técnicos verbalizaram o ―alto grau de motivação‖ de

seus filhos para irem aos encontros e o desapontamento quando da sua finalização; c) no

momento da avaliação final do grupo educativo, os próprios adolescentes respaldaram o

grau de motivação descrito.

O tipo de atividade desenvolvida por Chaves (1995) é vista pela própria autora

como podendo oferecer aos graduandos de psicologia, as habilidades e competências

úteis para uma atuação psicológica, que, do nosso ponto de vista, está muito próxima ao

que descrevemos como atuação psicológica coletiva. Estas serão apresentadas a seguir

na íntegra de modo a proporcionar sua maior publicização: a) possibilidade concreta de

análise da inadequação da aplicação do modelo tradicional às demandas de saúde

pública; b) possibilidade concreta de identificação de demandas compatíveis com a

prevenção primária e secundária; c) possibilidade de reformulação da concepção

tradicional de psicologia clínica; d) formas de atuação a partir da unidade teoria-prática,

ação-reflexão, prática como fonte de investigação; e) treinamento em atuação

multidisciplinar; f) contato com formas de atuação de outros profissionais da área de

saúde, identificação de demandas, realização de intervenções e avaliações, visando

modificações no seu exercício profissional e no de outros profissionais; g)

desenvolvimento de competências básicas para atuação em programas de saúde

comunitária; h) contato com políticas de saúde pública, com os recursos governamentais

269
disponíveis, com os recursos humanos disponíveis, que são fontes de referências para

posterior atuação em projetos de implementação de políticas de saúde.

Por fim, dentre as sugestões da nossa entrevistada, outros aspectos que devem

orientar a formação de um psicólogo para atuação em unidades básicas de saúde, são os

seguintes: a) ter noções de procedimentos de segurança utilizados dentro da unidade em

setores de vacinação e curativo; b) saber como funciona uma comunidade e buscar atuar

conectado à mesma; c) conhecer a organização do SUS, seus princípios e diretrizes; d)

conhecer as estratégias oficiais do SUS, a exemplo do PSF e PACS, buscando trabalho

mais integrado.

Além disso, a entrevistada ressalta a falta de contato entre os psicólogos que

estão atuando nos serviços públicos de saúde: não se sabem onde estão, o que fazem e

quais as dificuldades e sucessos nesse contexto de trabalho. Até o momento, parece não

haver, em Salvador, um espaço institucionalizado pela própria categoria para este fim,

aspecto que aparece nas narrativas dos demais entrevistados, sinalizando a nossa

histórica falta de organização.

270
11. O LUGAR DO PSICÓLOGO E DA ESCUTA PSICOLÓGICA NOS SERVIÇOS

PÚBLICOS DE SAÚDE: últimas considerações

Gostaria que houvesse alguém


que ouvisse minha confissão:
não um padre – não quero que me digam meus pecados;
não minha mãe – não quero causar tristeza;
não uma amiga – não entenderia bastante;
não um amante – seria parcial demais;
não Deus – ele é tão distante;
mas alguém que fosse ao mesmo tempo o amigo, o amante,
a mãe, o padre, Deus e ainda um estranho – não
julgaria nem interferiria, e quando tudo já tivesse sido
dito desde o início até o fim, mostraria a razão das coisas,
daria força para continuar e para resolver tudo à minha
*
própria maneira.

Nesta tese, buscamos compreender como os psicólogos atuam e quais significados

atribuem às práticas psicológicas desenvolvidas nos serviços públicos de saúde.

Aludimos o nosso problema de pesquisa, em vários momentos da nossa escrita,

destacando conceitos, noções, modalidades e categorias que sintetizamos no modelo

abaixo.

ESQUEMA 05

C SOCIO
O CULTURALMENTE S
M ORIENTADA A
P DIMENSÕES DE SIGNIFICAÇÃO
U
R D
O E
M ATUAÇÃO ESCUT DEMANDA
I PSICOLÓGICA S
S A C
S DIVERSIDADE O
O DE PRÁTICAS L
CONTEXTO CONTEXTO PSICOLÓGICAS E
S SOCIAL CULTURAL T
O I
C V
I FORMAÇÃO E TRAJETORIAS NIVEIS DE
ASSISTÊNCIA A
A PROFISSIONAIS
L À SAÚDE

No primeiro momento, da apresentação dos resultados e das discussões,

descrevemos as trajetórias profissionais dos psicólogos nos serviços públicos de saúde.


*
Poema de uma americana de quinze anos, publicado em 1916 em The Little Review, traduzido por
Grayna Drabik (ver FIGUEIRA, 1988, p. 131).

271
Foram identificadas três modalidades: a) de conflito, que tende à ociosidade do

profissional; b) de reprodução, que conduz ao isolamento típico da assistência

ambulatorial; e c) de construção, que demonstra uma certa abertura para a busca de

atuação fora da clínica tradicional.

Nas trajetórias de conflito e de reprodução, podemos identificar uma

tendência à compreensão restrita do fenômeno psicológico, onde o foco das descrições

narrativas dos problemas de saúde dos usuários está, predominantemente, centrado em

aspectos intra-individuais. Na trajetória de construção há uma abertura no sentido do

uso de outras técnicas de intervenção mais educativas e o trabalho em grupo. Podemos

perceber aqui uma compreensão menos restrita do fenômeno psicológico: proveniente

de narrativas que incluem as condições de vida e aspectos sociais das demandas trazidas

pelos usuários como aspectos que influenciam nos seus problemas de saúde.

As modalidades de trajetórias profissionais descritas diferenciam-se pela

natureza da intervenção e se unem pela forte influência da psicanálise como visão de

mundo, que orienta as práticas psicológicas desenvolvidas pela maioria dos

profissionais. Esta categorização tem como ponto de partida uma dicotomia marcada: a)

pela diferença de enquadre da atuação em individual ou grupal; b) pela influência da

orientação teórica e dos recursos utilizados, pelo atravessamento do grau de ―pureza‖ da

psicanálise aplicada. Em certo sentido, consideramos que o profissional, que busca

organizar o trabalho no enquadre grupal e ampliar os recursos técnicos para a

intervenção, que ensaia trabalhos mais integrados e de cunho mais preventivo e de

promoção da saúde dentro de UBSs, tende aqui a ser percebido como apresentando uma

certa abertura para construir um modelo de atuação psicológica apontado como mais

adequado ao nível de assistência primário, sendo um tipo convergente do que

denominamos atuação psicológica coletiva.

272
Respaldados nas análises apresentadas nos capítulos oito e nove e em uma

experiência concreta definimos que a atuação psicológica coletiva deve: a) ter como

ferramenta principal a escuta psicológica cautelosa, ou seja, apostar em uma conduta

profissional socioculturalmente orientada; b) reafirmar a importância da subjetividade

no processo de saúde-doença-cuidado; c) se configurar como necessidades de

atendimento psicológico seja o de cunho preventivo ou de recuperação, buscando a

articulação com outras atividades dentro do serviço; d) ter finalidade congruente com os

objetivos dos níveis de assistência à saúde e necessárias para a mudança na concepção

de atenção à saúde.

Vimos que não há muita diferença entre os tipos de práticas psicológicas

oferecidas em UBSs e CSMs, predominantemente são as psicoterapias individuais de

base psicanalítica. Em relação à orientação teórica dos entrevistados, percebemos a forte

influência da psicanálise para a definição da sua identidade profissional, sendo possível

caracterizá-los em três grupos distintos: os psicólogos-de-base-psicanalítica, os

psicólogos-psicanalistas e os psicólogos-não-psicanalistas. Todos os psicólogos

(UBSs e CSMs), independentemente da orientação teórica, apontam a necessidade de

adequar de algum modo sua atuação para atender a população que busca os serviços

públicos de saúde, ressaltando que a ―visão de mundo‖ é o que prevalece mais do que a

técnica. Grosso modo, os psicólogos-psicanalistas parecem ser mais resistentes em

realizarem um trabalho mais integrado com as outras atividades vistas como necessárias

para os serviços, ou que impliquem em pretextos mais socioeducativos. Os psicólogos

de base psicanalítica são mais flexíveis na inclusão de técnicas e mais abertos à

participação em outras atividades em desenvolvimento nos serviços ou extra-muros.

Neste particular, a hipótese discutida foi que a formação simbólica e o preconceito

tecnológico dificultam que os profissionais realizem práticas fora do repertório

273
comportamental modelado pela sua profissão. Esta dificuldade é revelada pela ausência

de diálogo com outras áreas de saúde, na direção de fazer um trabalho mais integrado ou

mesmo de organizar uma atuação mais compatível com a realidade dos serviços

públicos de saúde.

A fusão identitária psicólogo-psicanalista, quando desenvolvida dentro do

contexto dos serviços de saúde públicos, é marcada pelo fato dos profissionais poderem

estar mais ou menos psicanalistas do que são nos consultórios particulares. Esta

assertiva decorre do fato de que tal atuação psicológica exige uma modelagem particular

no que se refere aos ajustes no enquadre clínico e no próprio papel do profissional na

direção do tratamento, que pode assumir curiosamente uma postura mais incisiva ou

diretiva. A busca dos significados atribuídos às práticas psicológicas oferecidas pelos

psicólogos nos conduziu a defender a hipótese de que esta adequação ou flexibilização

da atuação deve ser compreendida a partir da relação complexa entre a escuta

psicológica oferecida e as dimensões de significação dos problemas de saúde dos

usuários.

No segundo momento, entendemos melhor esta necessidade de adequação da

atuação psicológica, quando buscamos identificar e relacionar as demandas com as

necessidades de atendimento psicológico. O ponto de partida foi destacar alguns

elementos que estão associados às queixas dos usuários, considerando os significados

que tais queixas assumiam aos ouvidos dos nossos entrevistados. Percebemos então que

a transformação da queixa em demanda psicológica é a base da autorização para o

atendimento psicológico, caracterizada pelo fato do usuário ir em busca de respostas

subjetivas para a compreensão do problema apresentado. Este processo é um dos nós

críticos do atendimento psicológico.

274
Nesta direção, explorar o caráter polissêmico do termo demanda nos relatos dos

entrevistados, nos conduziu a caracterizar as demandas de triagem, espontânea,

médica e diferenciada em relação à psicológica, em sua conversão para uma

necessidade de atendimento psicológico. Em detrimento da riqueza dos significados

atribuídos às mesmas, que não pretendemos retomar aqui, as hipóteses discutidas daí

decorrentes foram: a) o processo de construção da demanda psicológica é influenciada

também pela dificuldade dos próprios psicólogos no contato com as dimensões de

significação dos problemas apresentadas pelos usuários, que parecem não fazer sentido

para os mesmos. A falta de demanda psicológica, que aparece categoricamente em

expressões como ―fica muito na questão da queixa‖, espelha não só a dificuldade do

usuário de ter insight, mas também a capacidade pouco acurada do psicólogo de romper

os limites da distância sociocultural com determinados usuários menos afeitos à

linguagem da intimidade; b) quando o modo do usuário expressar seu sofrimento é

pouco familiar, percebemos que o próprio trabalho psicológico diminui o poder

contratual do usuário em relação à troca de mensagens e de afetos. Como conseqüência,

tem havido uma diminuição da escuta psicológica de usuários com ―queixa social‖ e

aumentado a daqueles que têm uma queixa explicitamente reconhecida enquanto ―psico-

social ou psíquica‖; d) os usuários com maior poder contratual têm se beneficiado com

os atendimentos psicológicos, operando uma seleção socioconômica e culturalmente

informada da clientela.

Em relação ainda ao tipo de tratamento psicológico oferecido, podemos

considerar que a psicoterapia em grupo foi introduzida por duas circunstâncias

complementares: a) institucional: grande quantidade de usuários e a dificuldade dos

psicólogos de darem conta dos dispositivos institucionais; b) técnica: frente à

inadequação do instrumental teórico-prático das psicoterapias individuais para as

275
demandas e caracterização da população atendida, mas em alguns casos também como

opção de atuação profissional. Discutimos que a diferença entre os enquadres individual

e grupal repousa no fato de que no último há mais chance de se proporcionar um espaço

de trocas entre iguais, considerando o fato dos relatos dos usuários surgirem de

realidades socioculturais mais similares entre eles e distantes da do profissional. A

hipótese discutida ressalta que o atendimento psicológico em grupo aumentaria o poder

contratual intransponível numa relação dual. Os usuários que formam o grupo, com

suas atitudes idiossincráticas nem sempre controláveis pelo profissional, por se

questionarem diretamente entre si, tenderiam a impulsionar a escuta psicológica para

um enfoque mais sociocultural dos problemas de saúde.

No terceiro momento, buscamos aprofundar nossa discussão em relação aos

signos e aos significados atribuídos às práticas psicológicas incorporando e

desenvolvendo uma série de categorias que operam de modo complexo e articulado, de

modo que pudéssemos compreender o que pode ser uma escuta psicológica

socioculturalmente informada. Em detrimento do tipo de prática psicológica oferecida, a

escuta é a ferramenta terapêutica que melhor caracteriza o trabalho do psicólogo. À

escuta é atribuído um caráter mais refinado, uma certa curiosidade desvelada em um

estado de permanente atenção requintada por parte do profissional. Esta competência

está associada à ação básica do seu trabalho, caracterizada pela habilidade do psicólogo

de manter-se alerta, ter interesse sobre a fala significativa, que remonta à história dos

sujeitos, revelada a partir de seus sentimentos, emoções, desejos, conflitos. Os

encontros clínicos psicológicos são lugares privilegiados de acesso à subjetividade, de

busca de autoconhecimento e crescimento pessoal: o lugar da subjetividade no

processo de saúde-doença-cuidado. A reivindicação legítima dos profissionais em

relação à importância do seu trabalho e do cuidado dos problemas de saúde a partir do

276
manejo da subjetividade não ocorre sem tropeços e obstáculos, no que diz respeito aos

desafios e dificuldades encontradas no oferecimento de atendimentos psicológicos nos

serviços públicos de saúde.

Distinguimos duas vertentes de atuação psicológica: as psicoterapias e as para-

psicoterapias, considerando o modo como os psicólogos lidam com as dimensões de

significação dos problemas de saúde apresentados pelos usuários que buscam

atendimento psicológico. Observamos duas modalidades assumidas pela escuta

psicológica realizada: a primeira vertente, que denominamos escuta cautelosa, e a

outra, de escuta asséptica. Estas últimas referem-se, grosso modo e respectivamente, a

uma postura terapêutica mais ou menos culturalmente sensível.

A psicoterapia ocupa um caráter de ―ideal de atuação‖ hierarquicamente

superior às demais atividades. A maioria dos psicólogos organiza seu trabalho em torno

da possibilidade de uma psicoterapia de base analítica; as outras práticas são variações

necessárias e circunstanciais, em certa medida legitimadas quando há impedimentos à

realização da psicoterapia. De certa forma, estas últimas são tratadas pelos próprios

profissionais como práticas menos importantes, porém mais adequadas ao perfil de uma

parcela da clientela, e são rotuladas aqui como para-psicoterapias.

As psicoterapias realizadas nos serviços públicos de saúde não se configuram em

―análise‖ nem ―psicanálise‖. Entre outros fatores que possibilitam esta diferença estão

os derivados; a) da estrutura institucional inadequada; b) dos dispositivos institucionais;

c) da inadequação das técnicas dos psicólogos a uma parte da população que busca os

serviços, seja por conta da estrutura psíquica do usuário, das expressões de

sofrimento incomuns, das condições socioeconômicas da população e, principalmente,

do distanciamento da clientela em relação a um estilo intimista e introspectivo de

expressar emoções e sentimentos.

277
Esta categorização de psicoterapia e de para-psicoterapia tem como pano de

fundo a própria cultura psicológica da assistência à saúde mental hierarquizada a partir

de uma crença de que o tratamento medicamentoso é tábua de salvação dos pacientes

psiquiátricos, estando as mesmas entre as terapêuticas de importância e de eficácia

secundárias ou complementares ao tratamento psiquiátrico.

Nesta direção, discutimos a hipótese de que, em situações concretas de escuta

psicológica, o que pode contribuir para a compreensão da realização de uma prática

psicoterápica em detrimento de outra, ou da conjugação de teorias e de técnicas

diferentes, parte do modo como os psicólogos lidam e interpretam as demandas dos

usuários, ou seja, as dimensões de significação dos problemas de saúde

apresentados por uma população menos afeita ao ideário individualista, apostando

no atravessamento da cultura psicológica na nossa sociedade. Descrevemos duas

grandes dimensões de significação atreladas às práticas psicológicas e,

conseqüentemente, fonte potencial de orientação da escuta psicológica. Observamos

dois componentes principais que marcam principalmente as atribuições presentes nessa

dimensão de significação. Um deles caracterizaria o que chamamos de dimensão

individual (psíquica e biológica), podendo ser definida a partir da estrutura psíquica do

usuário (psicótica ou neurótica), ou pelo tipo e gravidade da doença propriamente dita

(transtornos mentais leves, moderados e graves); geralmente são aspectos que se

remetem a interpretações de cunho mais interno dos problemas de saúde. O outro

componente diz respeito à dimensão de significação coletiva, melhor caracterizada

pelos aspectos socioeconômicos e culturais evidenciados nas interpretações dos

psicólogos; a princípio, tudo aquilo a que não se poderia dar respostas clínicas, mas que

está em jogo na produção de sentido do sofrimento.

278
Há uma tendência, que aparece nas narrativas dos psicólogos, de que a

psicoterapia seja mais adequada ao tratamento de neuróticos do que de psicóticos, muito

mais por uma consciência em relação ao despreparo individual de cada profissional em

tratar os últimos. No entanto, podemos encontrar aqueles cuja concepção defendida

remete à idéia de que a própria prática desenvolvida pelos psicólogos não tem alcance

psicoterapêutico para os psicóticos.

Ainda em relação à estrutura psíquica, se deslizarmos o olhar para os ―não-

psicóticos‖, encontraremos outro tipo de seleção socioculturalmente orientada em

relação aos próprios neuróticos, já que estes formam a clientela básica dos psicólogos

nos serviços visitados. No caso dos neuróticos, esta seleção recai na capacidade de

compreensão do tratamento psicológico por parte do usuário, que pressupõe que as

pessoas por serem ―mais informadas e mais esclarecidas‖, estariam mais aptas à

psicoterapia. Discutimos a hipótese de que esta ―seleção‖ esteja operando por causa da

confusão entre competência psicológica e a capacidade universal de expressar conflitos

psíquicos. Partimos da descrição dos entrevistados de que as pessoas que supostamente

têm demanda psicológica, ou competência psicológica, para a psicoterapia,

apresentam determinadas características: passam da queixa à demanda, têm determinado

nível de questionamento, têm insight, trazem conteúdos para serem trabalhados, buscam

o potencial que têm dentro de si, questionam-se, auto-avaliam-se, compreendem melhor

as coisas, buscam o autoconhecimento, apresentam capacidade de elaborações.

Caso não exista esta capacidade de compreensão do processo psicoterapêutico,

ou se ele não preencher determinados pré-requisitos, mesmo frente ao empenho do

psicólogo, a psicoterapia ficará no vir a ser, como uma possibilidade frustrada. A

hipótese trabalhada é a de que se oferece orientação, acompanhamento e terapia breve

para os menos aptos a uma produção discursiva de estados emocionais e sentimentos.

279
Todos os psicólogos consideram a dimensão biológica dos problemas de saúde

como garantia de que é preciso uma intervenção medicamentosa para diminuir o

sofrimento; às vezes, a intervenção medicamentosa é condição sine qua non para

entrada dos usuários com problemas psíquicos graves no trabalho psicológico. Por outro

lado, do ponto de vista dos psicólogos, depois do emprego do trabalho psicológico, a

suspensão ou diminuição dos psicofármacos é um marcador da melhora do paciente

e da eficácia do processo psicoterapêutico.

Outro aspecto discutido que nos pareceu relevante é o fato de existir uma

propensão à mudança do perfil da clientela atendida pelos psicólogos nos centros mais

antigos em relação ao oferecimento de psicoterapia, descrita como uma demanda

diferenciada. Observamos que há uma inclusão mais recente da ―classe média

empobrecida‖, ou pessoas ―mais esclarecidas‖, que têm buscado atendimento

psicológico nos serviços públicos de saúde, considerada mais apta à psicoterapia,

apoiando a nossa hipótese de que há seleção dos pacientes para esse tipo de

atendimento, considerando a dimensão social da seleção.

A dimensão de significação coletiva inclui os aspectos socioeconômicos e

culturais dos problemas de saúde, que podem ser percebidos como qualitativamente

relevantes para a compreensão dos mesmos. Em sua perspectiva socioeconômica, é

interpretada pelos interlocutores como um entrave às práticas psicológicas. Neste

sentido, a atuação psicológica realizada nos serviços públicos de saúde não teria função

psicoterapêutica. Entre as narrativas dos nossos interlocutores, há ainda, para esta

dimensão de significação coletiva, um outro aspecto que diz respeito a expressões

culturais de sofrimento distantes da visão de mundo psicologizada, que autorizam

uma escuta psicológica muitas vezes truncada, quando não a desautorizam totalmente.

280
Estes tipos de expressão de sofrimento, ―nervoso‖ ou ―neuroses de dona de

casa‖, tendem a ser desqualificados pelos profissionais no processo de escuta. Encontra-

se diminuído seu potencial de significação que se restringe às dificuldades concretas de

vida, provavelmente retratando uma certa miopia etnocêntrica passível de ser

encontrada entre parte dos entrevistados. A análise de casos concretos relatados pelos

nossos entrevistados possibilitou que definíssemos duas vertentes para a escuta

psicológica: a) escuta cautelosa, é aquela cuidadosa e prudente, que incorpora as

―impurezas‖ dos discursos, no sentido de compreender a visão de mundo daquele que

produz a fala, considerando a competência psicológica como marcador social e não

como selecionador da clientela; b) a escuta asséptica, que elimina, a priori, conteúdos

―psicologicamente pouco refinados‖, está marcada por uma incompreensão do problema

de saúde dentro do idioma sociocultural do usuário. As para-psicoterapias, ainda que

toscamente, parecem-nos um reflexo de uma tentativa de não excluir definitivamente

uma grande parte das pessoas que buscam os serviços públicos de saúde, com uma

produção discursiva que retrata elementos socioculturais distantes de um certo modelo

interpretativo do sofrimento psíquico, tomado como padrão.

Defendemos que pensar em atuações psicológicas compatíveis com a

diversidade e riqueza das demandas da população que busca os serviços públicos de

saúde é ampliar a noção da própria clínica e rever seus limites e alcances. Nesta direção,

trabalhamos em cima da hipótese de que os encontros clínicos podem ser considerados

como espaços de transições instauradoras de modos de subjetivação, inclusive para os

mais distantes de um ideário individualista de construção de pessoa. Tomamos um caso

de uma paciente em psicoterapia, atendida em uma UBS, como emblemático e tecemos

algumas considerações sobre como a dimensão de significação externa, em sua vertente

cultural, pode ser acolhida na escuta psicológica oferecida. Em detrimento da riqueza de

281
detalhes que conseguimos retratar na árdua tarefa de qualificar a escuta psicológica em

asséptica ou cautelosa, nosso objetivo foi buscar argumentos possíveis para definir o

que entendemos por escuta psicológica socioculturalmente orientada, como

ferramenta principal de trabalho do psicólogo no contexto da saúde coletiva. Na

perspectiva que aqui desenvolvemos, esta orientação tem a ver com o fato de como as

duas amplas dimensões de significação dos problemas de saúde guiam a escuta

psicológica de modo a diminuir a distância cultural entre os envolvidos no tratamento

psicológico. Uma escuta psicológica mais cautelosa apostaria na potencialidade

individualizante de outros idiomas culturais, o que implica em entender o processo

identitário do usuário dentro de um determinado idioma de origem e não à sua

revelia. Concluímos que a escuta psicológica mais socioculturalmente orientada ao

contexto de origem do usuário é garantida não apenas pela sua capacidade de ―lidar com

certos conteúdos num nível muito subjetivo‖, mas pela habilidade do profissional em

acompanhar esta tarefa complexa e trabalhosa de tornar-se sujeito, considerando as

várias dimensões de significação do seu problema como originárias de contextos muito

diferentes daqueles dos psicólogos.

Após esta síntese das nossas principais hipóteses e argumentos interpretativos,

resta-nos ainda apresentar, sucintamente alguns dos desdobramentos possíveis dessa

tese, além disso apontar alguns dos limites dessa investigação, explicitando algumas das

repercussões das nossas decisões teórico-metodológicas.

Os critérios adotados para diferenciar as modalidades de trajetórias profissionais

refletem outros dois pontos de vista que devem ser problematizados: a) de considerar

inapropriado oferecer psicoterapia individual ou em grupo neste nível de assistência,

como atividade exclusiva (nas UBSs); b) de reforçar uma ligação, no mínimo

melindrosa, de que a orientação psicanalítica subjacente à oferta dessas práticas é o

282
problema em si, no sentido de justificar o descompasso entre as demandas e as

necessidades de atendimento psicológico nos serviços públicos de saúde.

O primeiro aspecto decorrente da problematização de quais práticas devem ser

pertinentes para qual nível de assistência à saúde não busca associar inadvertidamente

uma exclusiva abordagem psicológica teórico-prática como a mais adequada do que

outras. Neste sentido, é que precisamos sinalizar que o que denominamos atuação

psicológica coletiva como condizente ao trabalho do psicólogo em UBS não está

necessariamente atrelada à orientação em psicologia social na vertente do trabalho em

grupos operativos, apesar daquela nos ter possibilitado análises profícuas.

Considerando o alcance do nosso estudo, buscamos discutir com maior propriedade a

postura do profissional em seu fazer psicológico frente aos problemas de saúde

enfrentados cotidianamente ao apenas sobrevoarmos os fundamentos das suas

orientações teóricas.

O segundo ponto está relacionado ao fato de haver uma fusão identitária

psicólogo-psicanalista entre os nossos entrevistados. Este aspecto merece

desdobramentos com o objetivo de reconstruir sistematicamente esta relação no

contexto baiano, onde se inclua a importância da entrada e enraizamento da psicanálise

dentro do âmbito universitário, destacando ainda o papel fundamental do mundo

paralelo das instituições psicanalíticas e dos seus precursores e seguidores para a

difusão da psicanálise e a devoção dos psicólogos soteropolitanos à referida abordagem.

Estudos devem ser conduzidos na perspectiva de entender a difusão e a construção da

cultura psicológica do ponto de vista dos psicólogos, o que nos impediria de tomar as

análises realizadas em outro cenários a priori como nossas.

O terceiro aspecto é que o fato de não haver diferença significativa no tipo e

natureza do trabalho desenvolvido entre as várias UBSs e os diversos CSMs nos parece

283
um ponto, paradoxalmente, que deu força e fraqueza ao presente estudo. No caso das

UBSs, esta constatação reforçou a problemática apresentada na literatura, por isso deu-

lhe força. Por outro lado, tornou-a fraca quando da impossibilidade de encontrar

experiências novas implantadas, das quais pudéssemos nos valer e discutir aspectos para

uma proposta renovadora da atuação psicológica. Neste particular, insistimos em levar a

cabo esta tarefa descrevendo uma única trajetória profissional, que nos pareceu trazer,

de modo mais visível, alguns dos aspectos apontados na literatura como possíveis de

sustentarem uma atuação psicológica mais adequada para as UBSs.

Esta insistência nos conduziu a considerar que a escuta psicológica cautelosa deve

orientar uma atuação psicológica coletiva como uma de suas ferramentas principais,

reafirmando a importância da subjetividade no processo de saúde-doença-cuidado e a

possibilidade dos psicólogos de proporem práticas individuais ou grupais congruentes

com os objetivos dos níveis de assistência à saúde.

Temos clareza que as considerações tecidas no capítulo dez sobre a atuação

psicológica coletiva, de fato, não incorporaram a complexidade das várias dimensões

que, ao longo da tese, buscamos ressaltar como necessárias para a mudança na

concepção de atenção à saúde mental do ponto de vista psicológico dentro do campo da

saúde coletiva. Eis um terreno fértil não só para fazermos pesquisas como também para

arriscarmos propor e implementar ações novas que possam, finalmente, contribuir para

a adequação das demandas às necessidades de atendimento psicológico, a partir de um

processo reflexivo pertinente ao referido nível de assistência à saúde. No que diz

respeito à atuação psicológica desenvolvida nos CSMs, o apelo para a renovação vem

de uma ordem um pouco diferente da anterior. Não há dúvida de que os ambulatórios

são espaços para a oferta de psicoterapia e procedimentos técnicos ―mais sofisticados‖:

mais ou menos sofisticados aos olhos dessa categoria.

284
As discussões que nos remeteram aos conceitos de escuta cautelosa e asséptica

podem ser estendidas para outros sistemas simbólicos não-psicanalíticos, no que

concerne as ponderações que fizemos na interpretação sobre a relação das dimensões de

significação dos problemas de saúde com a escuta psicológica. No entanto, ao

considerarmos as orientações psicológicas como sistemas simbólicos não podemos

atribuir homogeneidade entre elas, ao tempo em que não podemos nos privar de lembrar

que os profissionais fazem uso particular das suas orientações de modo muito mais rico

na práxis. Podemos apontar mais um desdobramento que requer futuras investigações:

as que tomem a clínica psicológica em outras vertentes teóricas como objeto de estudo

em relação à sua adequação para o cuidado das pessoas que sofreram menor influência

da cultura psicológica.

Um outro aspecto que não nos escapou, mas requer maior aprofundamento, diz

respeito à necessidade de desenvolvimento de estudos que busquem discutir a

pertinência da conjugação do trabalho clínico desenvolvido por psicólogos para

usuários com problemas graves, considerando a ética da abordagem psicossocial em

saúde mental.

Por fim, gostaríamos de tecer alguns comentários em relação à organização dos

capítulos. Quando descrevemos as trajetórias profissionais dos psicólogos os separamos

por nível de assistência, apesar de constatarmos que não havia diferença significativa no

tipo e na natureza de atividade. Quando identificamos as demandas e necessidades de

atendimentos psicológicos e descrevemos seus significados, acabamos por privilegiar

narrativas vindas de um dos contextos de trabalho mais do que do outro, no caso dos

CSMs. Este caráter excepcional também pode ser percebido no capítulo que tratamos

mais diretamente das práticas psicológicas e dos significados atribuídos às mesmas.

285
Este procedimento foi mantido por dois motivos que gostaríamos de explicitar

aqui: 1) tínhamos a pretensão de obter algumas indicações ou contra-indicações nas

experiências relatadas que nos conduzissem a um ―modelo‖ de atuação psicológica

pertinente para UBS, fato que foi levado a cabo com mais consistência por ter havido

uma trajetória profissional no retorno imprevisto ao campo de estudo; 2) gostaríamos de

tecer considerações sobre a atuação psicológica nos ambulatórios de saúde mental, a

partir das indicações condizentes à reforma psiquiátrica, no que tange ao lugar da

clínica, talvez por isso tenhamos privilegiado as narrativas daí, somado ao fato delas

serem mais abundantes.

Estas duas razões foram suficientes para mantermos o caráter duplo do texto,

que ora descamba para um lado ora para o outro, o que pode sugerir apenas um deslize,

e não uma decisão metodológica. Temos consciência de que poderíamos escrever uma

tese escolhendo um dos dois níveis de atuação, mas não abdicamos de assegurar a maior

diversidade possível sobre as práticas psicológicas ao incluirmos todos os serviços onde

havia psicólogos atuando, buscando sempre maior profundidade na interpretação. Neste

terreno, se acabamos por perder um pouco na força da análise para articular às práticas

psicológicas desenvolvidas aos níveis de assistência à saúde, por outro julgamos que

obtivemos maior riqueza e diversidade para compreensão da atuação psicológica, no

que diz respeito à descrição do lugar do psicólogo e da escuta psicológica no campo da

saúde coletiva. É justamente sobre este aspecto que gostaríamos de fechar a presente

tese, partindo mais uma vez de um fragmento narrativo, sem nome, no sentido de exigir

um lugar para todos:

Mas o serviço público não reconhece isso e não... e não valoriza esse
trabalho, principalmente o distrito hoje, eu continuo afirmando, pelo... pouco
conhecimento, ou nenhum conhecimento do trabalho que... em saúde mental.
Eu sou revoltada com isso e não é à toa que em vinte anos de serviço público,
eu não tivesse ainda... E aí você diz assim: ―cê continua como ‖ Continuo.
Eu não vou pedir demissão. Mas é difícil trabalhar, porque revolta, chateia,
angustia, mas... um paciente que você consegue que ele caminhe sozinho e
que um dia ele volta aqui – como já aconteceu várias vezes – no Natal, com

286
um vaso de flor na mão, de uma planta, que ele até cultivou e diz assim: ―Eu
me lembrei de você‖, depois de dois anos que não aparecia e vim lhe trazer.
Ah! Compensa! entendeu

O lugar do psicólogo e da escuta psicológica é quase um não-lugar na ameaça

freqüente de desqualificação da função do psicólogo; provavelmente este atributo

decorre desse imaginário vulgar que nos acompanha de estarmos historicamente à

disposição da elite. Por outro lado, seria mais oportuno ampliar o foco para a atenção

assistência mental e falar de um não-lugar para a subjetividade dos usuários como fonte

e meio de cuidado. Reinscrevemos os psicólogos como mais um dos representantes da

comunidade psi, que com melhores condições de trabalho deveriam poder fazer jus a

um espaço para a atenção mais integral da saúde mental.

Por fim, a nossa interpretação não cedeu à desvalorização fácil da atuação

psicológica por apontar seus limites e alcances, e sim intercedeu para que possamos

perceber a sua importância e devolver um lugar, ainda que conflituoso, turvo e

desafiador. Neste sentido, nos ocupamos da atuação psicológica para sinalizar o quanto

ela nos é cara e o quanto achamos que pode sair desse não-lugar no contexto da saúde

coletiva.

287
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13. ANEXO A

295
13. ANEXO A

296
13. ANEXO A

297
13. ANEXOS B

298
Tabela 9: Distribuição dos usuários de saúde mental segundo o diagnóstico referido. USM/SMS –
Salvador 10 sem de 2000.

CSM-G106 CSM-H CSM-F N


Diagnóstico referido N. % N. % N. % N. %
Nervosismo 95 25,0 54 24,0 53 25,0 202 24,6
Prob. de cabeça 36 9,0 20 9,0 9 4,0 65 7,9
Lesão no cérebro 23 6,0 14 6,0 6 3,0 43 5,2
Doença mental 11 3,0 5 2,0 7 3,0 23 2,8
Falta de o2 no cérebro 0 0,0 0 0,0 0 0,0 11 0,0
Dor de cabeça 6 2,0 13 6,0 4 2,0 23 2,8
Prob. relacionamento 28 7,0 20 9,0 10 5,0 58 7,1
Prob. Emocionais 5 1,0 2 1,0 2 1,0 9 1,1
Insônia 16 4,0 6 3,0 25 11,0 47 5,7
Juízo fraco 8 2,0 2 1,0 5 2,0 15 1,8
Depressão 58 15,0 42 19,0 34 16,0 134 16,3
Epilepsia 53 14,0 27 12,0 27 13,0 107 13,0
Esquiz/psicose 24 6,0 3 1,0 19 9,0 46 5,6
Neurose 1 0,0 0 0,0 0 0,0 1 1,0
Loucura 3 1,0 8 4,0 2 1,0 13 1,6
Perda de memória 13 3,0 4 2,0 7 3,0 24 2,9
Outros 5 1,0 2 1,0 5 2,0 12 1,5
Não sabe 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0
N. 385 100,0 222 100,0 215 100,0 822 100,0
Fonte: (CAMMAROTA, 2000)

Tabela 19: Distribuição dos usuários de saúde mental segundo o motivo da procura pelos serviços.
USM/SMS –Salvador 10 sem de 2000.

CSM-G CSM-H CSM-F N


Motivos N. % N. % N. % N. %
Consulta médica 39 10,0 8 4,0 9 4,0 56 7,0
Pegar remédio 28 7,0 32 14,0 7 3,0 67 8,0
C.médica + remédio 3003 79,0 161 73,0 172 80,0 636 77,0
Psic. Individual 3 1,0 16 7,0 9 4,0 28 3,0
Psic. Grupo 10 3,0 2 1,0 17 8,0 29 4,0
Psic. Família 1 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,0
Outros 1 0,0 3 1,0 1 1,0 5 1,0
N 385 100,0 222 100,0 215 100,0 822 100,0
Fonte: (CAMMAROTA, 2000)

Tabela 21 – Distribuição de procedimentos realizados nos dias de entrevista pelos 822 usuários
pesquisados USM/SMS – Salvado 10 sem 200.

SERVIÇOS N. (%)
Consultas médicas 792 96,4
Psicoterapia individual 59 7,2
Psicoterapia de grupo 34 4,1
Recebimento de remédio 771 93,8
Psicoterapia familiar 5 0,6
Outros 4 0,5
Fonte: (CAMAMROTA, 2000)

106
Substituímos os nomes dos centros pelas siglas utilizadas no presente estudo para diferenciar os
contextos da pesquisa, apenas no sentido de mantermos as mesmas considerações éticas estabelecidas.

299
Tabela 3: Distribuição dos usuários de saúde mental por nível de instrução. USM/SMS – Salvador 10 sem
de 2000.

CSM-G CSM-H CSM-F N


Nível de instrução N. % N. % N. % N. %
Sem instrução 68 18,0 41 19,0 43 20,0 152 18,0
Primário 125 33,0 79 36,0 52 24,0 256 31,0
1 grau incompleto 76 20,0 43 19,0 45 21,0 164 20,0
1 grau completo 24 6,0 19 9,0 14 7,0 57 7,0
2 grau incompleto 29 8,0 14 6,0 19 9,0 62 8,0
2 grau completo 55 13,0 25 10,0 33 15,0 113 14,0
Nível superior 8 2,0 1 1,0 9 4,0 18 2,0
N. 385 100,0 222 100,0 215 100,0 822 100,0
Fonte: (CAMMAROTA, 2000)

Tabela 5: Distribuição dos usuários de saúde mental por nível de renda. USM/SMS – Salvador 10 sem de
2000.

CSM-G CSM-H CSM-F N


Nível de renda N. % N. % N. % N. %
Sem renda 180 47 93 42,0 97 45,0 370 45,0
1 salário mínimo 25 7,0 4 2,0 32 15,0 61 7,4
Entre 1 a 5 sal. mín. 174 44,0 121 54,0 81 38 376 45,7
Entre 5 – 10 sal. 6 2,0 4 2,0 2 1,0 12 1,5
mín.
10 sal. mínimos 0 0,0 0 0,0 3 1,0 3 0,4
N. 385 100,0 222 100,0 215 100,0 822 100,0
Fonte: (CAMMAROTA, 2000)

Tabela 6: Distribuição dos usuários de saúde mental por tipo de ocupação. USM/SMS –Salvador 10 sem
de 2000.

CSM-G CSM-H CSM-F N


Ocupação N. % N. % N. % N. %
Autônomo (ec. inf.) 56 15,0 19 9,0 30 14,0 105 12,8
Func. Público 10 3,0 4 2,0 4 2,0 18 2,3
Pr. Liberal N. Sup. 4 1,0 1 1,0 0 0,0 5 0,6
Pr. Liberal N. Médio 13 3,0 9 4,0 3 1,0 25 3,0
Aposentado 113 29,0 103 46,0 77 36,0 293 35,6
Não trabalha 189 49,0 86 38,0 101 47,0 376 45,7
N. 385 100,0 222 100,0 215 100,0 822 100,0
Fonte: (CAMMAROTA, 2000)

13. ANEXO C

300
Quadro sintético comparativo de algumas características teórico-técnicas que
diferenciam a psicanálise da psicoterapia breve de orientação psicanalítica (BRAIER,
1997, p 39).

14. APÊNDICE A

301
ROTEIRO DE ENTREVISTA PARA OS PSICÓLOGOS EMPREGADOS NOS
SERVIÇOS DE SAÚDE.

1. Identificação
UR:
Nome:
Ano de entrada no UR:
Ocupação/função:
Carga Horária na UR:
Trabalho em outras Unidades de Saúde:
Outras atividades profissionais:
Ingresso no curso de Psicologia: Término: Local do curso:
Abordagem teórico-prática de referência:

1. O(a) senhor(a) poderia falar sobre a sua entrada (inserção) profissional no


serviço público de saúde ?

2. O(a) senhor(a) poderia falar sobre as suas atividades desenvolvidas nessa


Unidade? [explorar a rotina de trabalho na Unidade; a relação com os demais
profissionais de saúde/gestores e com os usuários].

3. O(a) senhor(a) poderia falar sobre as dificuldades encontradas para realização


das suas atividades nessa Unidade? Elas ainda existem? Em sua opinião quais os
aspectos que estimulam tais dificuldades?

4. O(a) senhor(a) poderia falar um pouco sobre o funcionamento dessa unidade? (e


depois da municipalização?) E em relação ao desempenho das suas funções
houve alguma mudança? [pertinente só para os CSM]

5. O que o(a) senhor pensa sobre as novas propostas para assistência às pessoas
com problemas de saúde mental?

Explorar o processo de desospitalização, implantação de CAPS


Explorar o papel da psicologia para favorecer estes tipos de iniciativa]
[particularmente para os psicólogos que trabalharam nos CSMs]

6. O(a) senhor(a) poderia falar sobre a sua formação universitária e a preparação


para atuação nos serviços públicos de saúde mental?

Explorar quais as linhas teóricas preponderantes no momento da graduação; linha


teórica de preferência;
Explorar se há particularidades da atuação em serviços públicos e privados; quais as
relações entre a formação do psicólogo e a prática desenvolvida em diferentes
contextos. [Foi aplicada apenas aos psicólogos das UBS, após qualificação do projeto a
banca sugeriu focalizar mais o objeto de estudo, excluindo perguntas que remetessem
formação acadêmica]

302
7. O(a) senhor(a) poderia falar sobre a sua atuação psicológica nesta unidade e no
seu consultório a partir do relato de casos concretos atendidos [psicoterapia,
aconselhamento, apoio, suporte, termos utilizados pelos psicólogos, que foram
incluídas, ao longo da pesquisa] ou de situações concretas de trabalho:

Explorar a relação entre abordagem teórico-prática de referência e os tipos de


clientelas atendidas;

Explorar as particularidades da atuação em serviços públicos e consultórios


privados, a partir de casos concretos;

Explorar as principais queixas dos usuários; a natureza dos conteúdos trazidos pelos
usuários (inclusive, os culturais, por exemplo, mágico-religiosos e os sociais, condições
de vida, escolaridade, etc.)

Explorar as queixas com o comprometimento e adesão ao tratamento psicológico,


quando estas poderiam ser qualificadas em demandas psicológicas.

303
14. APÊNDICE
Universidade Federal da Bahia B
Instituto de Saúde Coletiva

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Declaro ser de livre vontade que participo da pesquisa sobre a participação e


as práticas desenvolvidas pelos psicólogos vinculados ao sistema público de saúde,
concedendo entrevista para pesquisadora, Mônica Lima de Jesus, doutoranda do
Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva –
ISC/UFBA, sob orientação do Prof. Carlos Caroso 107, tendo sua garantia do uso ético
das informações, que se restringirão à prática acadêmico-científica para o
desenvolvimento da referida tese.
Quando da solicitação da minha participação na pesquisa na qualidade de
informante, a pesquisadora ofereceu-me todos os esclarecimentos sobre seu conteúdo
e objetivos. Assegurando-me que o estudo não apresenta qualquer risco de danos
físicos ou morais para os participantes, e que as informações que lhe forem
fornecidas não serão utilizadas para quaisquer outros propósitos diferentes daqueles
que me foram comunicados. O sigilo das informações será assegurado por sua
cuidadosa guarda e criterioso uso dos dados obtidos com seu estudo.
Ressalto finalmente, que foi esclarecido que poderei ter acesso aos dados da
minha própria entrevista, que será gravada e transcrita na íntegra, e aos resultados
finais do estudo, após defesa e aprovação da tese de doutorado. Além disso, ficou
assegurado o anonimato do respondente nas publicações advindas da presente tese de
doutorado. Assim sendo, aceito participar da pesquisa, sem ter sido submetida à
coação, indução ou intimidação por parte de quaisquer dos seus participantes.

Nome do entrevistado

Assinatura:

Data:

107
A coleta dos dados ocorreu no período em que eu ainda estava sob orientação do referido professor.

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