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RESENHA

HERTEL, Patricia. The Crescent Remembered: Islam and Nationalism on the Iberian
Peninsula. Eastbourne: Sussex Academic Press, 2015. 233p.

O Crescente lembrado:
Islã e nacionalismo na Península Ibérica
FELIPE FREITAS DE SOUZA*

principalmente devido à presença


islâmica entre os séculos VIII e XV,
presença essa que teve continuidade no
imaginário político. O objetivo da obra
será investigar a relação que as
civilizações ibéricas estabeleceram com
essa herança islâmica.
A autora, professora de História
Europeia na Universidade de Basel,
Suécia, vem focando suas pesquisas na
história religiosa, política e cultural do
Sul da Europa. O livro originalmente é a
tradução do alemão para o inglês de sua
tese, na qual investiga a relação que
diferentes agentes culturais ibéricos
estabeleceram, em suas obras
produzidas nos séculos XIX e XX, com
o legado islâmico. A bibliografia arrola
obras em português, espanhol, inglês,
francês e alemão, cobrindo pesquisas
em nacionalismos e em religião em
Na presente obra, o processo de múltiplos contextos, além de elencar as
exclusão e integração do passado fontes documentais da autora. O
islâmico às narrativas nacionais é o caderno de imagens complementa a
tema que Hertel prioriza para observar a leitura, mostrando alguns elementos
religião em suas interações com os dessa apropriação do Islã: imagens de
nacionalismos. A elaboração de Hertel festividades, cartazes, produtos,
demonstra o quanto a religião do Outro propagandas, jornais, etc. Apesar de a
pode ser elemento mobilizador dos obra relacionar Portugal e Espanha
sentimentos nacionalistas. A concepção devido a terem um passado islâmico em
dos nacionalismos em Portugal e comum, a autora afirma que nesses dois
Espanha ocorreu de modo singular países não ocorreram processos
frente ao restante da Europa exatamente iguais no tocante a lidar

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com o passado. São processos reflexão orientalista teve como mote
semelhantes de confrontação com o moldar o legado islâmico à concepção
passado islâmico recente, mas que se dos nacionalismos cristãos. Aborda-se a
distinguem em seus tempos, agentes e institucionalização dos estudos arabistas
resultados. Encerrando cada capítulo, e a tensão que a arquitetura islâmica
como uma síntese, há uma retomada das causou aos que tentaram caracterizar a
convergências e divergências entre as História das nações ibéricas enquanto
apropriações em Portugal e Espanha, fenômeno unicamente cristão. Na
preparando o leitor para uma conclusão Espanha, enalteceu-se a herança
que propõe uma importante visigoda mais do que a islâmica, apesar
periodização das posturas perante o Islã do surgimento do argumento favorável
na Península Ibérica. a um Islã Espanhol. O orientalismo
português também teve seus momentos
As divisões do livro remetem a um
de repulsa e apropriação do Islã;
itinerário de pesquisa que encara as
todavia, o conceito de Islã Português
representações do Islã em diferentes
não foi aventado, dando lugar à retórica
momentos. Os métodos da história
do Ecumenismo Português. O interesse
cultural são aplicados a partir de
pela pesquisa do Islã com a intenção de
diferentes ângulos em diferentes
defini-lo pela voz daquele que teria um
manifestações da rememoração do
pretenso acesso ao pensamento
Crescente. Ao longo do tempo, o Islã
universal, o europeu, se manifesta no
foi concebido de maneira distinta, mas
XIX e mantém-se enquanto marca da
sempre enquanto um grande Outro
tradição interpretativa Ocidental desde
civilizacional em oposição à Europa.
então.
Tal apreensão ainda se faz presente na
retórica analítica, sendo fruto das O Islã como o “Outro Colonial” relata
condições do campo historiográfico. o interesse espanhol pela “pátria dos
mouros” no Norte da África após a
O primeiro capítulo, Islã como Inimigo
perda de suas colônias no XIX. A
Histórico, aborda a historiografia pós
campanha contra o Marrocos realizada
1492, ano da Reconquista. A
pela Espanha foi seguida da propaganda
heterogeneidade de visões sobre o Islã
da benevolência da metrópole via
variou das posturas que apreendem
publicações populares, como a revista
desde a presença islâmica como
Africa. Já Portugal, enfraquecido pela
descontinuidade das verdadeiras nações
independência do Brasil, terá no Estado
ibéricas ao reconhecimento do legado
Novo a identificação do Islã enquanto
civilizacional. Enquanto na Espanha os
religião inferior ao cristianismo e,
conteúdos das narrativas variavam
posteriormente, como ameaça às suas
menos do que o modo como eram
colônias restantes. Identifica-se também
narrados, em Portugal o adversário
no período a emergência de uma
islâmico teve um papel proeminente nos
retórica liberal, que enaltece o progresso
mitos de fundação. O Outro,
e a civilização frente ao Islã, se
muçulmano, seria tratado integralmente
distinguindo da retórica católica,
enquanto inimigo imaginado não só de
repulsiva aos muçulmanos. Na
Portugal e Espanha, mas da civilização
impossibilidade de vencer o Inimigo
europeia.
Histórico, intelectuais portugueses e
O segundo capítulo, Islã como um espanhóis passaram a localizar o Islã
Objeto de Pesquisa, relata o surgimento enquanto interlocutor pouco qualificado
dos arabistas e orientalistas ibéricos. A frente à grandeza da civilização

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europeia, ameaçador da cristandade quando lidamos com as ideias de
espanhola e da grandeza portuguesa. Europa e Islã indicarão divergências ou
convergências de acordo com a situação
Em Islã como Lição Nacional, temos
do campo historiográfico de uma dada
considerações sobre o modo como o Islã
época, variando em um processo
foi projetado enquanto um elemento a
dinâmico. Será necessário abandonar-se
ser ensinado tanto a partir de sua
as percepções de que Islã e Europa são
escolarização quanto a partir de
conceitos estáticos ou autoexplicativos:
encenações públicas. Nessas
tratam-se de categorias ambíguas na
representações, o Islã era tratado ora
descrição do passado e do presente,
como um episódio glorioso, mas
estando abertos para apropriação pelas
passado, da vida nacional, ora como
narrativas, nacionalistas ou não. Quando
uma ameaça perene à civilização. As
essas categorias são definidas,
festividades e encenações públicas
demonstrarão o pertencimento
garantiriam que as representações
ideológico de seus elaboradores em suas
estabelecidas sobre o Islã circulassem
proposições de diálogo ou de
em todos os estratos sociais, permeando
imposição.
as sociedades portuguesa e espanhola de
uma percepção negativa, salvo raras
exceções, da religião e seus membros. Refletir como se formam as
O capítulo Islã como Invenção dos representações do Islã e seus seguidores
Folcloristas estabelece uma é uma ação importantíssima na
continuidade com o capítulo anterior ao contemporaneidade. Por fim, o livro é
abordar as festividades e comemorações uma excelente contribuição para
quanto à expulsão dos muçulmanos, historiadores e acadêmicos do Islã na
focando como o repertório islâmico foi Europa e das relações entre religião e
apropriado nas festividades locais. Tais nacionalismo. Os posicionamentos
festividades agem como tradições sobre o Islã variam de acordo com o
inventadas, como conceitua Hobsbawm, período e os interesses políticos: a
ao longo do XVIII e XIX, sendo presente obra é um estudo diacrônico e
mobilizadas ou influenciadas pelos comparativo cuja proposta
poderes instituídos, principalmente no metodológica pode ser estendida para
século XX. Por exemplo, a ideia de outros casos de formação de identidades
convivência entre as culturas ganhou nacionais.
apelo no setor turístico espanhol,
enquanto que os portugueses
Recebido em 2017-02-15
caracterizavam o mouro como aquele Publicado em 2017-05-04
do qual se retomou a terra usurpada.
Nesse capítulo, assim como no
primeiro, há um aprofundamento da
discussão sobre a etimologia das
palavras mourisco, mouro e moro.
Na Conclusão, as concepções sobre Islã
*
são periodizadas e a autora compara a FELIPE FREITAS DE SOUZA é
Península Ibérica e a Península Mestre em Educação Tecnológica pelo Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas
Balcânica enquanto zonas de contato Gerais; aluno no Instituto Latino Americano de
com os povos muçulmanos. A distinção Estudos Islâmicos e membro do Grupo de
entre “sua História” e “nossa História” Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes.

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