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Brasilidade e Concepção Sonora em Nicanor Teixeira: o lugar da cultura e a cultura do lugar

UFRJ/Novembro de 2008

Prof. Dr. Luiz Otávio Braga, Diretor do Instituto Villa-Lobos, UNIRIO

O título deste encontro remete-nos imediatamente a já tradicional discussão sobre a cultura

brasileira, este conceito que se cria na virada do século XIX, por oposição, em ritmo galopante, aos

imperativos culturalizantes europeus herdados das nossas condições de colonização.

Os historiadores, ramo de estudantes ao qual mais recentemente me filiei, já apontaram a

questão nacional, ou melhor, o desenvolvimento dos nacionalismos, como determinado pelos

problemas que cada nação enfrentou ao se defrontar com a necessidade de realização de um destino

comum, provendo auto-identificação e sentido de pertença à sua população. Mesmo correndo o

risco de superficialidade é possível, no entanto, centrar algumas reflexões partindo por exemplo, da

chamada “geração 1870”, no que se refere ao esforço da intelectualidade brasileira no sentido de

elaborar uma tradição. Foi assim que homens de ciências como Silvio Romero, Nina Rodrigues,

Euclides da Cunha, Tobias Barreto e outros, dedicaram-se vida a fora ao esforço de elaboração de

tal tradição brasileira. Nesse esforço, progressivamente fez-se indispensável, cada vez mais, ouvir

“as vozes das ruas”. O caminho das teorias racialógicas, importadas da ciência de então e

representadas por Tayne, Renan, Le Bon, e o “abominável” conde Gobineau, só para citar alguns,

operou nesses homens, dialeticamente, o sentido de atualização necessária – ao qual é intimamente

devedor, por exemplo, o ideal republicano. É provável que “ecos” dessas vozes tenham empurrado

a necessidade da “música popular” até , Lèvy, Nepomuceno e outros autores “proto-nacionalistas”.

Para além de Grieg.

Sabe-se que a empreitada romântica colocou em cheque, no XIX, pressupostos caros ao

Iluminismo. Seja ela interpretada junto aos preceitos defendidos por Herder (que constrói a nação a

partir da “recuperação dos valores pertencentes à tradição de grupos primários”, isto é, no espaço da

“cultura”), ou aos de Rousseau – que constrói a nação no espaço de uma nova “civilização”, o fato é
que no Brasil o efeito da junção é constatável e operou lado a lado, a meu ver. E quando a “cultura”

entrou na ordem do dia, as vozes das ruas multiplicaram-se.

Discutir a cultura brasileira como cultura popular, dizia, há poucas linhas, é tradição. Em

1911 saía no Jornal do comércio o folhetim de Lima Barreto O Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Referia-se ao período do governo do Mal. Floriano (1891-1894) e o major Quaresma era

peremptório: “ É preconceito supor que todo homem que toca violão é um desclassificado”. A

expressão poético-musical brasileira seria a Modinha e, o violão, o instrumento indissociável dela.

Indubitavelmente as inclinações do modernismo da década de 1920, não ele, estavam

amadurecidas pelas discussões precedentes. Em 1919, uma homenagem póstuma a Afonso Arinos,

pela montagem dramático-musical do seu romance O Contratador de Diamantes é exemplar no que

respeita às idéias que misturavam no mesmo bojo, cultura e sociedade. A iniciativa teve “um

elenco musical estupendo, com duas orquestras, uma grande no poço, outra menor no palco. A

menor era regida por Francisco Mignone, caracterizado como ‘Mestre Plácido”, envergando

“casaca a Luiz XV, de bofes de renda e de cabeleira empoada. A orquestra maior (...) teria como

regente o maestro Francisco Braga, também compositor das músicas do espetáculo (...). Mas é claro

que nada causou tanto escândalo quanto a apresentação no palco do Municipal dos referidos “pretos

de verdade”.

Poucos dias antes da Semana de 1922 Coelho Neto lançara, no Rio de Janeiro,via Liga da

Defesa Nacional, um concurso para os compositores brasileiros. “Dez contos de réis” era o prêmio

para a melhor realização do poema sinfônico Brasil. O libreto, claro, fora escrito pelo romancista e

a obra seria apresentada na abertura da exposição do Centenário. Ideologia pura: “Eis o tema.

Ofereço aos músicos (como inculcaria uma paisagem a um pintor ou doaria um bloco de mármore a

um pintor) para que o fecundem, tirando dela uma criação” – disse, na ocasião, o escritor.

O Brasil da virada do XIX e das primeiras décadas do XX, inequivocamente, estava na

ordem do dia. Idéias sobre o ser brasileiro adensavam cada vez mais os discursos sobre uma

inadiável arte nacional. Mário de Andrade, no Ensaio de 1928, deplorava o divórcio da “música
artística brasileira” em relação à “entidade racial”. Afirmava que se existia algo na vida cultural já

completamente brasileiro, isso estaria na música popular. A História da Música Brasileira, de

Renato Almeida, é de 1926. A virada antropológica dos anos 30 – com destaque para a tese de

Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala e o trabalho de Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes

do Brasil – confirmam a tese aludida acima e, mais que isso, afirmam a tradição da equação cultura

brasileira = cultura popular, ou seja, entre os intelectuais brasileiros discutir cultura brasileira

sempre foi, em última análise, discutir cultura popular. Pelo menos no caso modernista.

Mas o que diz a cultura popular sobre o assunto?

Li em algum lugar um ensaio de Roger Chartier, no qual afirma que a cultura popular é uma

categoria erudita. Resumidamente, e recorrendo ao historiador inglês Peter Burke, a cultura popular

é esquiva ou seja, não fala dela própria, através de seus artífices. Fala da cultura popular o seu

outro: o intelectual; um sujeito metido como eu, ou Turíbio Santos, ou o maestro Edino; mesmo que

todos nós tenhamos vindo dos confins mais humildes deste país. Este é o meu caso, por exemplo,

um mundurucus que foi para a universidade e agora deita falação sobre assunto indômito. A

verdade é que as vozes são tímidas: um Gonçalves Pinto ali, um Vagalume, acolá, confirmam a

regra. Modernamente, os órgãos públicos, tipo Museu da Imagem e do Som, se esforçam em coligir

depoimentos, não raro deploravelmente levados a cabo sem o necessário design prévio para tal. Seja

o que for, para a cultura popular, o seu “lugar de fala”, outro conceito acadêmico, está fora dela.

Prevalece, portanto, a tese. E a Etnomusicologia parece ser, pelo menos neste momento, a

disciplina/ferramenta que talvez melhor se aproxime do que Michel de Certeau recomenda, como

perspectiva historiográfica: perceber as práticas.

Constatar a esquivez da cultura popular no Brasil, todavia, merece considerações mais

cuidadosas. Para não se induzir dicotomização excessiva daquilo que Burke, ao estudar a cultura

popular na idade moderna, chama de “pequena tradição” e “grande tradição”. Nesse sentido,

Mikhail Bakhtin enfatiza que o que deve ser relevado é a dinâmica interativa entre as duas. Parece-

nos que também no nosso país, pelo menos em grande parte do século XX, a praça, as ruas, a
carnavalização, foram os pontos notáveis de encontros e de inversões de hierarquias. A tese de

Bakhtin assume, no entanto, contornos mais exagerados. Nosso passado ou ausência de “passado

clássico’, nos condena (no bom sentido). Daí que nossos boêmios nacionais parecem jamais ter

aberto mão do violão, esse bordador de identidades em épocas bem recentes. São esticadas as

oportunidades para encontros, multiplicamos os festejos como o Cristo aos peixes, o carnaval é

repassado à alma. Para além da era radiofônica o problema assume outro patamar, porque as “vozes

das ruas”, dos “compositores de assobio” entram casa a dentro sem ter que pedir licença, mas não

muda de figura. Se à era do som sucede-se a da imagem nem por isso, parece, deixa a cultura

popular a sua esquivez.

Entendo tardiamente uma afirmação de Chico Buarque que, num primeiro momento, odiei.

Perguntado porque não gostava de Chopin (ou pergunta semelhante), teria ele respondido: “O

Brasil não tem tradição de música erudita”. Ou seja, escutar as vozes musicais das ruas seria a nossa

constância.

Já se disse muito do intercâmbio salão-rua, rua-salão quando se trata da modinha e do

lundu; Villa-Lobos tratou de escrever verdadeira mitologia dessa relação na sua música, com o

Choro urbano, com o hinterland, fantasiou-se grotescamente entre os foliões no Sodade do Condão;

Guerra-Peixe e Edino Krieger tiveram pais músicos na tradição do Choro e dedicaram-se

identicamente ao convívio, pesquisa e diálogo profundo com as “raízes populares” da música do

Brasil; Francisco Mignone e Radamés Gnattali foram homens de salas de concertos e das emissoras

de rádio; José Siqueira, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro e tantos outros confirmam-na.

Florestan Fernandes, aliás, já chamara a atenção para o fato de que no Brasil , ao contrário da

Europa, ao se instaurar uma sociedade de massas, seria improcedente falar em dicotomização entre

uma esfera de bens restritos e outra de bens consumíveis. Exemplarmente: onde se alocaram os

homens de letras nacionais? No jornal. Olavo Bilac, o Príncipe dos Poetas Brasileiros, bem que se

escondeu em pseudônimos para escrever nos jornais, em linguagem bastante longínqua do

parnasianismo que lhe foi tão caro. Mignone foi Chico Bororó quando compunha sambas-canções e
outras “modas”; Radamés, foi Vero; Cláudio Santoro musicou Vinícius de Moraes. O maestro

Edino, não sei. Tal “dinâmica interativa” - inaugurada a chamada Era de Ouro da Música Popular

Brasileira, intensificada em função da chegada nos 1930, das modernas técnicas de gravação, da

radiofonia, do sistema de ondas curtas, num processo que se estendeu aos nossos dias – como se dá

hoje? É uma pergunta só aparentemente simples. O lugar da cultura é o da cultura popular?

Preciso encurtar essas reflexões; mas acho que já posso lançar um axioma. Isto implicará,

necessariamente em inverter o título deste encontro. Porque a concepção sonora em Nicanor

Teixeira é a brasilidade. A brasilidade é a estrutura, no sentido Straussiano do termo, o produto

final, a invariância encontrável em toda e qualquer operação já feita pelos intelectuais, pelos artistas

populares (o que seria o intelectual?), pelos diletantes, necessária para construir uma tradição. É a

operação de reconstrução histórica. É isso que têm feito um Radamés, um Edino, Guerra-Peixe,

Turíbio Santos, ao reerguer João Pernambuco, Villani Cortes, tantos de nós. E Nicanor Teixeira que

pereniza lições aprendidas com Dilermano Reis, as imagens das terras do Beberibe e Capibaribe.

Repito: é necessário inverter. Concepção sonora em Nicanor é a história viva do violão brasileiro;

de um fazer musical eminentemente brasileiro, com todos os ingredientes que o termo congrega ao

se representar. Pois “Nica” chegou ao Rio de Janeiro em 1928. Pinião era sucesso; até o presidente

Epitácio Pessoa fazia o seu “lá menor” – dizia Orestes Barbosa. Nas obras de Nicanor Teixeira,

mormente quando ele as interpreta, estão nas interpretações as memórias dessa construção de

brasilidade, devedora a tanta gente; aquelas constâncias de que falam Mário de Andrade e Renato

Almeida.

Certa vez, o meu amigo e violonista Maurício Carrilho, ao comentar certa interpretação de

um grande violonista amigo nosso, o Doutor Sérgio, disse, muito ingênua mas sabiamente: “Eles

tocam tudo mais lento; mais gemido; mais sofrido; os ralentandos...as fermatas... são diferentes. E

os vibratos?”.

Conheci Nica na loja de Mario Montenegro. Na Barata Ribeiro. Não existe mais. O “seu”

Mário provavelmente já foi desta p’rá melhor. Tinha ido lá p’rá comprar cordas. Era 1974, eu e
Afonso Machado, bandolinista. Depois formaríamos o conjunto Galo Preto. Nica dava aulas lá.

Quando cheguei estava tocando um daqueles choros dele. Fiquei chocado. Era um “Nazareth do

violão”. Foi a minha primeira impressão. Fiquei ali calado o tempo todo ouvindo. Depois que ele

parou e parecia se retirar, peguei as cordas e fui embora. Naquele dia eu vi que precisava estudar. E

muito.

Certamente muito do que se pode entender sobre a música brasileira está no registro

saboroso da obra de Nicanor Teixeira. Muito do jeito que toco devo certamente àquela tarde em que

vi Nicanor tocar. Pena que naquela ocasião eu não tivesse a menor condição de estudar com ele.

Mas tratei de aprender mais adiante o Carioca No. I. Depois, anos mais tarde, gravei uma peça dele,

em duo com o violonista Marcos Farina. Nas aulas de violão popular que ministro na UNIRIO

utilizo-me de vários de seus estudos e peças didáticas. Recentemente ganhei de presente um lindo

CD só com obras de Nica, gravados pela minha colega e grandíssima violonista Maria Haro. Ao

ouvi-lo, recupero através dela, o tempo que perdi. E aproveito para ensinar, já que preciso aprender.

Em muitas ocasiões, tenham sido instadas por perguntas de estudantes, diletantes ou por

músicos estrangeiros, costumava usar como resposta que se se quisesse conhecer a tão chamada

música popular do Brasil seria suficiente ouvir Nazareth, Pixinguinha, Garoto, Jacob do

Bandolim,Cartola e Antonio Carlos Jobim. Claro, é uma presunção, uma escolha muitíssimo

pessoal, um encurtamento do caminho, mas jamais uma bobagem. Permitam-me incluir nessa

resposta, a obra para violão de Nicanor Teixeira, a quem eu digo muito obrigado pela música

brasileiríssima. Obrigado por ser mais uma dessas vozes da rua que desenharam e desenham, em

rica e perene negociação, as identidades do Brasil.

Nicanor, tu poderias me dar cópias dos teus manuscritos? Lugar de fala do violão brasileiro.

Literatura recomendada

Andrade, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. Ed. Martins. S. Paulo:1962
Bakhtin, Mikhail. A Cultura Popular Na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François
Rabelais. Editora Universidade de Brasília, 3a. edição. 1977
Certeau, Michel de. A Cultura no Plural. Papirus. S. Paulo: 1998
Roger Chartier in “Cultura Popular”: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos
Vol. 8 No.16, Rio de Janeiro: 1995, p. 177-328.
Da Matta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rocco, 7ª ed. 1984
Sussekind, Flora. Cinematógrafo de Letras: Literatura, Técnica e Modernização no Brasil S. Paulo
Companhia das Letras: 1987
Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Ed. Record, 30ª edição
Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence. a invenção das tradições. Paz e Terra. S. Paulo, 1997
Holanda, S. Buarque. Raízes do Brasil. Companhia das Letras, 1996
Moritz, Lilia. O Espetáculo das Raças Companhia das Letras S. Paulo: 1995
Oliveira, Lúcia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República. Ed. Brasiliense, 1990
Ortiz, Renato A Moderna Tradição Brasileira Cultura Brasileira e Indústria Cultura Ed Brasiliense,
S. Paulo: 1995 (5a. Ed)
Ortiz, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. Ed. Brasiliense S. Paulo: 1994 (4a.
Edição)
Romero, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Livraria José Olímpio, Rio de Janeiro, 1949,4a.
edição, tomo I, pág. 173.
Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão. Brasiliense. S Paulo: 1989
________________ Orfeu Extático na Metrópole. S. Paulo sociedade e cultura nos frementes anos
20. Cia. Das Letras. S. Paulo: 1992
________________ (Org.) História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era
do Rádio. Cia. Das Letras. S.Paulo:1998
Velloso, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. FGV. Rio de Janeiro: 1996
Wisnik, José Miguel. O Coro dos Contrários: a música em torno da semana de 22. S. Paulo:1983.
Livraria Duas Cidades.

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