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ANJOS NOTURNOS – Vol. 1.

Asas Indomáveis
Jéssica Caroline Zanette
11 de março de 2010
PRÓLOGO

Sacrifício é um termo usado metaforicamente para descrever atos de


altruísmo, abnegação e renúncia em favor de outrem. Há circunstâncias na
vida em que a dignidade humana pode exigir grandes sacrifícios, até,
heroísmo.

Mas para mim sacrifício tem outro significado, a glória.

Quando se cresce esperando o momento em que você será útil para


alguém, o sacrifício não parece ser uma renuncia que você terá de fazer,
mas sim o momento em que sua vida terá, finalmente, algum sentido.
Assim sou eu.
Capítulo 1 – Identidades

“Você cresce ouvindo histórias sobre o bicho papão, monstro do


armário, fantasmas e tudo mais, e quando se é criança acredita-se em todos
esses seres. Depois você cresce e descobre que aquelas histórias que seus
pais lhe contaram eram todas de mentira, eles só queriam colocar medo em
você para que você fosse mais fácil de controlar.

E realmente é verdade, bicho papão, monstros do armário não


existem. O que existe é muito pior.

É, você leu isso mesmo. Existem muito mais coisas entre o céu e a terra
que os olhos humanos podem ver. Algumas pessoas nascem com a
capacidade de enxergar o “oculto” para os outros, e essas pessoas são tão
especiais que necessitam de proteção.

Toda pessoa algum dia já teve medo do escuro, algumas o tem até
hoje, eu realmente invejo essas pessoas e concordo plenamente com elas, a
melhor coisa que alguém pode fazer é ficar longe do escuro.

Quando seus olhos não vêem mais a luz e seu corpo se alarma todo
não é só um medo bobo que aparece, seu sangue se enche de adrenalina
que é um mecanismo para deixar seu corpo esperto e avisá-lo que ali tem
perigo.

Eu sei disso porque esse é basicamente o primeiro ensinamento que


pessoas como eu recebem: É no escuro que as coisas más se escondem.
Meu nome é Jéssica e meu trabalho é proteger os seres humanos que
possuem uma visão mais aguçada.

Deixe-me explicar direito. Eu cresci recebendo treinamento para


proteger os humanos, e quando eu falo “os humanos” é porque eu não
estou nesse grupo, definitivamente não estou.

Algumas pessoas nos chamam de protetores, guardiões, até de anjos


já fomos chamados, mas a verdade é que nem Deus sabe o que nós somos
direito.

Não que anjos não existam, eles existem, e são ótimos guerreiros devo
dizer, o problema é que eles só podem trabalhar de dia.

Existe um equilíbrio na Terra. Durante o dia o sol toca todas as coisas


em determinada parte da Terra, e esse é o domínio dos anjos, eles podem
sair e manter a ordem. Porém à noite, as únicas luzes que se tem são dos
postes de luz, então os malditos seres infernais saem para criar o caos e os
anjos não podem fazer muita coisa, já que os poderes deles vêm da luz, é aí
que eu saio para trabalhar.

Sou um tipo de serviço terceirizado, deu para entender?

Sou filha de uma humana com um anjo. Pelas minhas veias corre a
força dos anjos, mas o meu corpo pode andar pela escuridão
tranquilamente.

Estaria tudo perfeito, se eu já tivesse recebido a minha missão...

Eu não cheguei a conhecer a minha mãe, desde que eu me lembro


vivo no Instituto, aqui existem várias pessoas como eu que vêm sendo
treinadas a vida inteira para algum dia servir como protetora de alguém,
esse é nosso destino, nossa meta de vida!

A diretora do Instituto, senhora Vânia, diz que eu sou muito ansiosa por
ficar enchendo o saco dela todo o tempo para sair para uma missão.

“Eu estou pronta e você sabe disso.” Eu repito sem parar todos os dias.
Como resposta ela só me diz que eu sou muito nova para correr um
risco tão grande.

“Você não faz idéia de como é difícil lá fora, você não está pronta,
precisa de mais treino.”

Juro que algum dia eu fujo e protejo o máximo de pessoas que eu


conseguir.

Eu tenho 16 anos! São 16 anos dentro do Instituto treinando! E ela me


diz que não estou pronta!

O que me deixa com muita raiva é saber que ela me prende aqui e o
motivo não é porque eu sou nova demais ou fraca demais. Eu sou a primeira
da turma. Conheço todas as artes marciais, técnicas de luta, técnicas para
matar demônios, vampiros e caçadores de almas! Duque, um garoto de 15
anos já foi mandado para duas missões, duas missões! E eu ainda nada!

“Calma garota, sua hora vai chegar.” Milla, minha melhor amiga, fala
para mim todos os dias.

Milla é muito parecida comigo, não só pela história dela, mas na


aparência também. Ela está no Instituto desde que era criança como eu, só
que ela conheceu a mãe. Bom, antes não tivesse conhecido, a mãe dela a
abandonou aqui e nunca mais veio visitá-la.
Milla tem o cabelo castanho e olhos grandes como os meus, mas o
cabelo dela é curto e os olhos são castanhos, enquanto o meu cabelo é
enorme e meus olhos são verdes.

Bom talvez se você me conhecesse diria que meus olhos não são tão
grandes, na verdade eles são, mas eu fico a maior parte do tempo com
cara de sono então eles parecem menores.

Eu e ela somos as coordenadoras de todas as turmas, eleitas já fazia 5


anos, somos as garotas populares, Milla por ser a garota que arrasa corações
e eu por ser a garota que quebra qualquer nariz que se meter no meu
caminho.

E há 5 narizes que eu teria o prazer de quebrar, os narizes de Lyra e


suas amiguinhas.

Lyra é filha de uma mulher insignificante que se casou com o maior


ricaço da região, ele é dono de umas reservas de petróleo, como se fosse
um Sultão Árabe. Desde então Lyra acha que pode comandar as pessoas
de dentro do Instituto e roubar o namorado de quem quiser.

Ela é loira, bonita e magra, mas em compensação, é a pessoa mais


nojenta que você poderia conhecer, ela acha que a atração magnética
que ela exerce sobre os garotos é tão forte que todos estão aos pés dela,
mas a única coisa que ela me atrai é enjôo.

De duas semanas, uma eu passo na detenção, e a maior culpada é


ela. Somos completamente diferentes, como água e óleo, fogo e gelo,
simplesmente não nos misturamos e também não conseguimos conviver,
onde ela está eu não consigo ficar, não é implicância minha, foi o destino
que quis assim.

Eu estou na 9° fase do treinamento, o sistema de ensino aqui é


diferente do que numa escola normal. Aqui se aprende feitiços, magia e
luta, e conforme você vai ficando pronta, eles vão lhe passando de fase. No
total são 10, eu passei pelas 7 primeiras muito rapidamente, levando menos
um ano para concluir cada uma delas. Quando cheguei na oitava continuei
me saindo muito bem, mas por algum motivo a Senhora Vânia pediu que me
fizessem repetir de ano, 4 vezes! E agora que estou no 9º ano, já estou
perdendo as esperanças de algum dia chegar ao 10º, já repeti esse ano 3
vezes mesmo sendo sempre a primeira da turma. Começo a achar que a
senhora Vânia me odeia ou coisa parecida.

Até a inútil da Lyra já foi mandada para uma missão, claro que ela é
tão ruim que precisou que alguém a resgatasse, e eu, que sou a melhor do
Instituto, estou presa aqui. Eu já prometi a mim mesma, se minha primeira
missão não sair em 6 meses eu fujo! Não queria ter de fazer isso, mas se for o
único jeito...”

“Não acredito que você está escrevendo nesse caderninho de novo!”


Milla sentou-se ao meu lado enquanto tomava o meu diário das minhas
mãos. “Fugir não é a solução Jess, você sabe.”

“Você só fala isso porque já foi mandada para uma missão.” Respondi
tomando o meu diário das mãos dela e fechando-o. “A senhora Vânia tem
implicância comigo!”

“Ela teria motivos para ter, cada semana você arranja uma briga
nova!” Ela não precisava me lembrar disso. “Mas eu acho que ela só se
preocupa com você.”

Sobre uma coisa Milla estava certa, a senhora Vânia nunca me punia
pelas minhas brigas, se fosse outra pessoa no meu lugar, ela mandava para
o forno na hora e o forno é, sem dúvida, o pior lugar para se estar no mundo.
Você fica preso dentro dele por uma semana só recebendo água, de baixo
de um sol de 40°, muitas pessoas saem de lá desmaiadas.

“Não quero falar sobre isso agora,” Terminei com a conversa pois sabia
onde ela iria dar. “Tenho que ir para aula de Kung-Fu.”

“Por que você ainda faz essa aula? É do primeiro ano! Ainda mais com
essa calça de couro!” Milla arregalou os olhos grandes.

“Adoro couro e adoro Kung-Fu.” Virei as costas e saí.

Fui correndo para a sala tentando não me atrasar, tarde demais. O


senhor Hung nem precisou virar o rosto para saber que era eu que estava na
porta, me mandou entrar com uma cara mal-humorada.

Notei que havia um aluno novo na turma.

“Jéssica,” Sr. Hung não tinha mais formalidades comigo. “Quero que
ensine os passos básicos ao Sr. John, ele é novato e está assustado comigo.”

Qualquer pessoa se assustaria com Sr. Hung a primeira vista. Ele é um


velho alto, musculoso com uma cicatriz enorme na cara, além disso ele é
muito bruto no modo de falar e gosta de diminuir as pessoas. Eu já aprendi a
lhe dar com ele, mas no começo foi difícil.

Devo admitir que eu também não sou muito delicada.

Cheguei perto do garoto e comecei a passar-lhe as posições. Para


minha surpresa, ele se saiu muito bem para o primeiro dia.
Durante o treinamento eu dei tantos golpes nele que eu duvidava que
na próxima semana ele iria querer que eu o ensinasse ainda. Como eu disse,
não sou muito delicada.

Durante toda a semana o garoto ficou longe de mim, no refeitório ele


só dava um aceno de longe com um sorriso torto. Milla me xingava o tempo
todo, dizendo que eu não deveria ter pego tão pesado.

“Você nem pediu o nome dele! Nem a idade...” Ela falava colocando
a mão na testa. “Você nunca vai arrumar um namorado.”
Capítulo 2 – Telhado de vidro

“Doze dias e ele ainda não falou comigo,” Falei para Milla, colocando
os pés em cima da mesa, referindo-me ao aluno novato. “Algum dia ele vai
perceber que foi o melhor para ele.”

Milla não respondeu nada, só continuou olhando para um ponto fixo


como ela estava fazendo antes. Eu a conhecia como a palma da minha
mão, havia alguma coisa errada com ela nos últimos três dias.

Geralmente Milla sorria o tempo todo, piscava para os garotos


bonitões e vivia fazendo piada sobre as minhas roupas de “Roqueira”. Porém
já fazia três dias que ela não conversava direito comigo, tentava não me
olhar nos olhos, como se estivesse escondendo algo, isso não entrava na
minha cabeça. Nós sempre nos contávamos tudo, se ela estivesse realmente
escondendo alguma coisa, esse segredo devia ser muito importante.

“Milla, o que é que você tem?” Perguntei aumentando a voz, o que


deu um susto nela.

“Nada,” Ela respondeu com um sorrisinho torto, “Só ando cansada”.

Cansada estava eu de ficar naquele Instituto rodeada sempre pelas


mesmas pessoas, e agora para melhorar, minha melhor amiga parecia uma
zumbi.

“Eu enxergo através de você, é bom que você me conte ou então


vou ter que descobrir sozinha. Dependendo do que for, eu vou perder a
confiança em você.”

Talvez eu tenha sido muito dura, Milla era a única pessoa que eu tinha
como família lá dentro, e eu sabia que ela só tinha a mim. Mas eu tinha que
dizer algo que surtisse efeito, e realmente o resultado foi rápido, lágrimas
caíram dos olhos dela.

“Droga Jess,” Sua voz era uma mistura de raiva e dor. “Eu ia contar
para você, mais cedo ou mais tarde. Eu só não quero que você faça nada
de idiota!”

“Alguém bateu em você?!” Senti o meu sangue ferver nas veias.

Somente a idéia de alguém batendo em Milla já era motivo suficiente


para eu acabar com a vida dessa pessoa.
“Não!” Ela falou alto. “Viu, é disso que eu estou falando! Se eu contar o
que eu sei para você não sei o que você vai fazer, eu estava me
preparando pra contar de um modo diferente, com mais calma.”

O que poderia ser pior que alguém batendo em Milla? Sinceramente,


na minha situação atual, eu achava que nada.

“Eu juro não fazer nada idiota,” Menti. “Só preciso que você seja
sincera comigo.”

Ela respirou fundo como se estivesse juntando forças para me dar a


grande notícia.

“Você se lembra daquela noite que eu fui entregar o nosso relatório


sobre as turmas para a senhora Vânia?”

Antes que eu respondesse a pergunta, ela continuou.

“Então, eu cheguei até a sala dela mas ela parecia estar conversando
com alguém, então eu fiquei esperando eles terminarem a conversa do lado
de fora. Sra. Vânia estava conversando com o Sr. Hung sobre as aulas e tudo
mais...”

Ela parou para respirar novamente.

“Até que ele tocou em um assunto...” No rosto de Milla somente havia


angústia. “Ele começou a falar sobre você Jess, coisas sem sentido, então eu
cheguei mais perto da porta para ouvir melhor. Ele disse que você estava
mais do que pronta para uma missão, e que a Sra. Vânia tinha que parar de
lhe proteger.”

“Viu, até o senhor Hung concorda comigo!” Falei sorrindo.

Mas Milla não parecia feliz.

“Eu não terminei,” Ela me interrompeu. “A Sra. Vânia então explodiu


com o Sr. Hung, ela disse a ele que jamais conseguiria ver você correndo
perigo...”

Não fazia o menor sentido, todo mundo tinha missões, por que eu não
podia ter uma também?

“O Sr. Hung,” Continuou Milla. “Bateu forte na mesa da diretora e


gritou com ela dizendo que ela estava quebrando as regras.”

Milla nesse momento ficou branca, mais do que o normal, já que eu e


ela éramos consideradas translúcidas de tão brancas. Dessa vez ela estava
com um aspecto abatido, seus olhos castanhos que sempre eram tão
quentes e reconfortantes pareciam mortos.

“O que você quer me contar?” Perguntei rapidamente. “Sem mais


rodeios por favor.”

Eu não suportava mais aquele rodeio todo. O papo para mim tinha
que ser direto e reto, aprendi com a vida que quando uma pessoa rodeia
demais ou ela está inventando história, ou ela está tentando achar uma
forma de aliviá-la.

Eu apostava que Milla não estava inventando nada. Então o que de


tão grave ela teria para me contar que a fazia sofrer daquela forma?

“A Sra. Vânia te protege porque ela gosta mais de você do que dos
outros alunos”. Ela agora fechou os olhos. “Ela é sua mãe Jess.”
...

Eu tinha ouvido direito?

Eu não tinha mãe, não uma respeitável pelo menos.

Minha vida inteira eu fui criada dentro desse Instituto para gente meio-
humana, meio-anjo. Os humanos normais conheciam o nosso Instituto como
um centro de ensino para crianças superdotadas, bom, mas isso não
interessa.

O que eu sei é que eu havia sido abandonada pela minha mãe assim
que nasci e tive sorte de vir parar no Instituto. Pessoas como eu, fora do
Instituto, não costumam durar muito. Demônios acabam com a maioria das
crianças meio-anjo que estão por aí, são um alvo fácil já que ninguém
acredita nelas quando elas dizem que vêm monstros e elas também não
tem treino. Então é melhor matá-las antes que elas aprendam certo?

Então o que Milla acabara de dizer não fazia o mínimo sentido.

“Que brincadeira de mal gosto é essa Milla?” Minhas mãos estavam


tremendo sem parar. “Juro que não tem graça.”

Milla virou-se para mim com os olhos cheios de lágrimas.

“Queria eu que fosse brincadeira. Maldita hora que eu fui até lá levar
aqueles papéis e...”

“Cala a boca,” A interrompi. “O que você está falando não faz o


menor sentido.”
“Jess pense bem,” Ela agora segurava as minhas mãos. “A Sra. Vânia
sempre te elogiou como a melhor aluna do Instituto, porém nunca deixou
você fazer uma missão de verdade. Você e ela são muito parecidas, agora
eu percebo que vocês têm os mesmos olhos e...”

“Me solta.” Forcei a minha voz para que ela saísse. “Eu vou lá tirar essa
história a limpo.”

Eu tentei me soltar, mas as mãos de Milla pareciam grudadas nos meus


pulsos. Eu evitei olhar para os olhos dela, com certeza isso me faria chorar e
pessoas como eu, nunca choram.

Durante todos esses anos que eu estive no Instituto, a única vez que eu
chorei de verdade foi no dia do meu aniversário. As únicas pessoas que
lembraram foram Milla, Sr.ª Vânia, e Tyller, o garoto mais legal daqui, na
minha concepção.

Mas ninguém me viu chorando, chorei sozinha, trancada no quarto,


abafando o choro com o travesseiro.

Aquela tarde foi terrível! Escolheram Lyra ao invés de mim para uma
missão muito importante, era a missão que eu havia pedido a Deus todos os
dias, e mandaram aquela múmia no meu lugar.

“Milla, me solta.” Falei mais alto.

Antes que me soltasse, ela suspirou e disse:

“Só não faça nada idiota.”

“Qual é,” Eu respondi forçando um sorriso. “Quando que eu fiz algo


idiota?”

Foi bom ela não ter respondido.

Levantei-me e comecei a correr para achar a Sra. Vânia. Se tudo


aquilo que Milla acabara de me contar fosse verdade, eu teria muitas coisas
para dizer para a diretora.

No caminho trombei com o aluno novo, aquele que eu dei uma surra.
Ele pareceu assustado em me ver. Ficou mais assustado ainda quando eu
pedi desculpas por ter esbarrado nele.

“Tudo bem.” A voz dele era tão baixa que se eu não tivesse me
esforçado para ouvir, com certeza não ouviria.

Continuei o meu caminho, agora caminhando.


“O que eu vou falar para ela?” Minha cabeça não parava de se fazer
essa pergunta.

Na verdade, eu pouco me importava o que falar. Se tudo fosse


verdade, eu iria embora do Instituto, então não importava o que eu iria dizer.

“Hey gata,” Tyller passou um braço pelo meu ombro. “Aonde vai com
tanta pressa?”

Juro que eu gostava do Tyller, mas odiava quando ele me chamava


de “gata”, naquele momento eu quis socar ele.

Mas me controlei.

“Realmente não te interessa Ty.” Respondi secamente.

“Wow! Vejo que alguém acordou com os dois pés esquerdos!” Ele
continuava sorrindo, como sempre. “Eu vou com você.”

“Você não vai!” Parei virando-me para ele. “Você nem sabe o que eu
vou fazer!”

Ele abriu um sorriso debochado e, devo dizer, lindo.

“É, não sei e não me interessa. Mas eu vou com você, me empeça se
puder.”

Eu teria dado uma chave de braço nele naquele momento se eu não


tivesse visto a Sra. Vânia vindo na nossa direção. A briga contra Tyller teria
que esperar mais um pouco, agora eu pretendia brigar com a diretora.

“Vânia!” Gritei ignorando totalmente Tyller. “Posso conversar com você


por um instante?”

Ela chegou mais perto de mim.

“Você deveria se referir a mim como senhora,” Ela falou


educadamente. “Todos os alunos me chamam assim.”

“Eu decido do que vou te chamar depois que nós conversarmos.”

“Você pode ser suspensa por isso!” Falou Tyller com os olhos
arregalados.

“Eu duvido muito,” Falei cinicamente. “Não me deixam sair daqui nem
para uma missão, quem dirá em uma suspensão. Estou certa diretora?”
O brilho nos olhos dela era mortal, ela devia estar com muito ódio de
mim.

“Vamos conversar na minha sala senhorita Jéssica.” Ela falou virando


as costas e dirigindo-se para a sua sala.

“Ótimo!” Respondi e comecei a segui-la.

Enquanto andávamos ouvi Tyller dizer em voz alta:

“Essa garota pirou de vez!”

Talvez eu estivesse mesmo pirada. Certa da cabeça eu nunca fui


mesmo, quem sabe agora eu sairia do Instituto, nem que fosse chutada.

Bom, se ela fosse mesmo a minha... Mãe, eu sairia de lá por vontade


própria, nunca tive mãe e não seria agora que eu iria precisar de uma.

Minha única preocupação era como eu iria manter contato com Milla.

“Droga, se eu sair ela vai ficar sozinha!” Meus pensamentos estavam a


mil.

Talvez eu ficasse, mas somente pela Milla.


Do outro lado Heniack sorria enquanto tomava seu copo de vinho tinto
esticando as pernas sobre a mesinha de centro do seu escritório.

“Então a garota concordou?” Ele pergunta para seu servo mais fiel.
“Posso mandar o dragão para lá?”

James era servo de Heniack há muitas eras, devia a ele a sua


eternidade. Quando era humano tinha tantas dívidas que sua carne estava
prometida para uns agiotas, recebia mais ameaças de morte por dia do que
sua mente pode suportar. Ele foi um alvo fácil para Heniack. Com a
promessa de ter suas dívidas pagas e uma vingança completa sobre quem
tanto o aterrorizou, James, literalmente, vendeu sua alma ao demônio.

Heniack era poderoso, um dos demônios mais poderosos de Nova


Iorque, havia quem dissesse que ele só estava abaixo do próprio Lúcifer.
Heniack possuía a maior frota de dragões conhecida de todos os tempos, o
inferno ficava mais seguro com ele sendo o protetor. Porém, Heniack sabia
que demônios não eram seres muito confiáveis, precisava moldar um servo,
precisava roubar a alma de um humano, James foi o escolhido.

“Ela só teve uma condição meu Senhor,” James falou curvando-se ao


seu superior. “Que ninguém do Instituto fosse ferido.”

Com as palavras do servo, Heniack riu alto.

“Deixe que ela pense que ninguém será ferido. Que garota tola, por
que eu mandaria um dragão ao Instituto? Para ele dar um passeio? Eu quero
a cabeça da filha da diretora em uma bandeja de prata.”

O demônio então, levantou-se e foi até James, se aproximou até que


sua boca estivesse perto da orelha do servo.

“Pegue o dragão mais forte do momento... Eu quero que ele frite a


garota.”

“Sim Senhor.” Disse James enquanto se retirava da sala.

Heniack permaneceu alguns minutos em silêncio, sorrindo sozinho.


Tudo estava acontecendo como o planejado, logo tudo estaria sobre o seu
controle, logo o equilíbrio estaria abalado e então ele faria o que tivesse que
fazer. Lúcifer sentiria orgulho dele.
Capítulo 3 – Leão de bronze

A sala da diretora Vânia era antiga conhecida minha. Milla costumava


dizer que eu passava mais tempo na sala da diretora do que na sala de
aula.
Claro que isso era um grande absurdo!

Eu ia a todas as aulas, a culpa não era minha se a diretora interrompia


a minha aula para me chamar para sua sala.

Na verdade, a culpa era um pouco minha, mas você tem que


entender, não é fácil estudar no mesmo lugar que Lyra e as amigas dela,
nada fácil.

Eu tentava encarar esse fato como um obstáculo do destino. Todos


tem alguém que atrapalha a vida não é mesmo? Então comigo não seria
diferente.

Mas teve uma vez que eu passei o dia todo na sala da diretora e
adivinha só quem foi a grande culpada por isso? Se você disse Lyra, acertou.
Eu, Milla e Tyller estávamos no refeitório descansando quando Lyra
chegou e sentou-se bem na minha frente.

“E aí Jess,” Sua voz era fina e irritante. “Você pode me contar como
você chegou aqui mesmo?”

Eu não respondi, não me dei o trabalho nem de levantar a cabeça.


“O que você quer?” Milla perguntou para Lyra.

Lyra deu uma daquelas risadas que faz o seu sangue ferver.

Eu não me importava se ela me odiava, eu também não gostava


dela, então quando o sentimento é mútuo as pessoas não saem
machucadas.

“Vamos Jess, conta para mim.” Ela insistiu olhando para suas amigas.

“Entrei aqui como qualquer um.” Disse eu tentando controlar a voz.

“Nãããão,” Falou ela longamente. “Você não sabe como chegou


aqui, você não sabe nem quem é a sua mãe.”

Eu realmente não sabia, mas de que isso importava?


Não me interessava se a mãe de Lyra era casada com um Shake, se
tinha feito plástica no nariz ou se tivesse feito uma lipoaspiração. Realmente
não me interessava. Mas Lyra adorava jogar na minha cara que eu não
tinha mãe, que eu tinha vindo de lugar nenhum e que eu talvez nem fosse
filha de um anjo mesmo.

“Realmente eu não sei quem é a minha mãe,” Respondi friamente.


“Pelo menos eu não tenho uma mãe que está com um velho de sessenta
anos só pelo dinheiro, prefiro não ter mãe a ter uma com metade do corpo
feita por um bisturi, uma mãe que nem demonstra carinho para a filha. Você
também não tem uma grande mãe.”

Os olhos dela brilharam de raiva e seu corpo jogou-se em cima do


meu para iniciar uma briga, eu sempre fui melhor que Lyra nas lutas. Só
precisei dar um soco no meio da cara dela para ela cair chorando. Sim, eu
havia quebrado o nariz dela. Depois disso, ela saiu correndo acompanhada
das amiguinhas.

Tyller e Milla olhavam para mim com uma cara assustada.

“Que é?” Falei dando uma mordida no sanduíche. “Vocês viram que
eu estava quieta. E depois, ela vai gostar de eu ter quebrado o nariz dela,
assim ela pode fazer uma reconstrução naquela coisa horrenda!”

“Gata, a diretora Vânia vai comer seu fígado.” Tyller sempre foi
exagerado.

“Eu não falo mais nada Jess, você não tem jeito mesmo.” Milla disse
escorando a cabeça entre as mãos.

Dez minutos depois eu estava na sala da diretora, peguei 3 semanas


de trabalhos extras. Nunca fui para o forno, mesmo tendo uma média de
uma briga por semana.

Dessa vez a sala da diretora parecia mais majestosa que o normal, o


grande leão de bronze que ficava ao lado da poltrona que eu sempre
sentava estava olhando para mim, como se entendesse o que eu tinha ido
fazer naquela sala.

O tapete vermelho estava sempre impecável e as cortinas sempre


abertas, dando à sala um ar arejado. Porém, ao entrar na sala, a primeira
coisa que a diretora Vânia fez foi fechar as cortinas.

Sentei-me ao lado do leão e comecei acariciá-lo como se ele fosse


um animal de verdade.

“Chá?” Perguntou a Sra. Vânia oferecendo-me uma xícara.


“Não, obrigada. Odeio chá.”

Ela deu um sorrisinho torto, mas genuíno.

“Eu também odeio isso, mas todos sempre querem chá.”

Deu-se então um minuto de silêncio até ela se sentar na minha frente.

“Você pode me explicar o que foi aquilo lá fora?” Ela perguntou me


fitando com os olhos.

Só agora eu conseguia perceber que seus olhos eram da mesma cor


que os meus.

“Um ato de rebeldia,” Respondi naturalmente. “Estou precisando de


explicações.”

Ela deu um grande suspiro.

“Faça-me as perguntas certas que eu responderei tudo o que você


quiser minha querida. Só não me falte com respeito.”

Talvez isso não fosse possível. Apesar de manter meu sangue gelado
como o de um crocodilo, eu não conseguia garantir que não voaria em seu
pescoço.

“Por que você nunca me deixa sair daqui?” Perguntei rapidamente. “E


não me venha com o papo Você não está preparada para isso, porque é
tudo baboseira. Você, eu e todo mundo sabe que eu estou mais que
preparada para isso.”

“Aqui é mais seguro para você. Você não tem idéia o quanto eles
iriam querer te caçar lá fora, seria algo além do normal Jess. Você é valiosa
demais para se deixar perder.” Eu sentia que ela estava sendo sincera.
Eu tinha essa grande habilidade, eu sabia quando alguém estava
mentindo ou escondendo alguma coisa só de olhar.

“Por que sou tão especial?” Dessa vez eu a encarava. “Pensei que
aqui todos fossem iguais, meio-gente, meio-anjo e só, não vejo o porquê de
eu ser especial. Por eu saber lutar mais que os outros? Ser mais rápida e
esperta? Isso não seria motivo para eu sair lá e acabar com um clã de
vampiros sozinha?”

“Você não entende.” Ela soltou como se fosse um suspiro.

“Agora você está me escondendo algo,” Falei apontando para ela.


“Se eu não entendo, por que você não me explica?”
Ela ficou em silêncio.

Eu havia chegado onde queria chegar desde o começo. Ela estava


sem saída, apesar de eu achar que ela não iria me contar com todas as
palavras, ela não iria negar se eu pedisse com todas as palavras certas.

“Seria por que você é minha mãe?” Falei cerrando os dentes.

O olhar dela que sempre era imponente, desmoronou. Sra. Vânia não
era mais a diretora do Instituto naquele momento, era uma criança que teve
o seu maior segredo descoberto. Nos olhos dela havia angústia e medo.

Eu não precisava mais de palavras, aquele olhar confirmou tudo o que


eu queria saber.

Sim, Sra. Vânia era a minha mãe. Uma mãe ausente, mentirosa e sem
um pingo de consideração pela filha, o que eu mais temia acabara de
acontecer... A minha mãe era parecida com a mãe de Lyra, menos na
parte das cirurgias plásticas.

Sem me dar conta do que estava acontecendo, senti lágrimas


escorrerem por meus olhos.

“Droga,” Falei com uma voz chorosa. “Droga, droga!”

A Sra. Vânia tentou aproximar-se de mim, mas conforme ela vinha


para perto eu me afastava. Então ela tentou tocar em mim.

“Não encosta em mim,” Falei batendo na mão dela. “Essas lágrimas


são de raiva, não de felicidade por ter encontrado a minha mãe. Você
nunca vai ser minha mãe de verdade, sabe por quê? Porque você teve 16
anos para agir como uma mãe e desperdiçou seu tempo.”

Agora minhas lágrimas rolavam incontrolavelmente, Deus como eu


odiava chorar!

“Agora tudo o que eu quero é que você se afaste de mim, se eu


estiver andando por um corredor e vir você nele eu vou desviar. Não tente
falar comigo, não me chame mais pra essa droga de sala! Mande-me direto
pro forno se eu fizer algo errado e se o medo que está nos seus olhos é por
motivo de achar que eu vou fugir, não precisa temer. Eu não vou fugir, não
por enquanto, Milla precisa de mim se é que você entende o que isso
significa.”

Minha raiva estava tomando conta do meu corpo.


“E mais uma coisa,” Falei dirigindo-me até a porta. “Se aparecer uma
missão para mim é melhor você me deixar ir.”

Saí pela porta e fechei-a logo atrás de mim.

No corredor havia alguns alunos, maioria calouros, mas eles já estavam


no Instituto tempo o suficiente para me conhecer e saber que eu nunca
chorava. Assustaram-se ao me ver sair da sala da diretora com os olhos
marejados.

Se eu pudesse matar alguém, naquele momento eu mataria. A raiva


era tanta que eu nem estava preocupada com as lágrimas.

Saí correndo para o jardim, nunca ninguém ficava lá fora por medo. O
jardim era o limite entre o Instituto e o mundo exterior. Nenhum animal das
trevas poderia penetrar no Instituto, a não ser que fosse convidado. O jardim
era um lugar seguro, mas todos o evitavam.

Chegando lá, percebi que nem todos. Tyller estava lá, sentado na
grama olhando para o nada.

Eu nunca havia percebido como o Tyller aparecia de repente quando


eu estava em um momento crítico. Na verdade eu nunca havia reparado
muito nele. Geralmente ele falava tanto que deixava você tonta, não dava
tempo de olhar para ele direito. Mas lá, sentado no jardim ele parecia tão
sereno e bonito.

Tyller era alto e forte, vivia com o cabelo bagunçado. As roupas que
ele usava eram de grife, mas ele as colocava de um jeito tão desleixado que
pareciam roupas normais, Milla odiava isso, eu achava “estiloso”.

Lá, sentado no jardim ele parecia tão frágil. Estava com os cotovelos
apoiados nos joelhos, uma posição defensiva devo dizer. Eu finalmente havia
descoberto onde ele ficava na maior parte do tempo. Tyller às vezes sumia,
e ninguém sabia onde ele se enfiava, agora eu havia descoberto.

“Hey Ty,” Falei sentando-me do lado dele. “Desculpa roubar seu lugar,
mas preciso de um momento de reflexão também.”

“Tudo bem,” Falou ele abrindo-me um sorriso. “Eu gosto da sua


companhia.”

Aquilo foi muito estranho, Tyller geralmente me chamava de “gata”, o


que eu odiava, e sempre falava com uma voz alegre, como se a vida dele
fosse somente festa. Não dessa vez, Tyller falou com uma voz baixa, fora dos
padrões que ele sempre apresentava. Mas por incrível que pareça, aquele
foi o momento mais verdadeiro de Tyller que eu já havia visto. Ele falou a
verdade quando disse que gostava da minha companhia.

“Você está chorando?” Perguntou ele olhando para mim.

“É.” Foi o que eu consegui responder.

Então sem falar nada ele passou um dos seus braços por meus ombros,
como sempre costumava fazer, só que dessa vez me puxou mais para perto.
Eu escorei minha cabeça no seu ombro.

Eu não sei por que motivo aquilo me emocionou tanto, só sei que me
desatei a chorar. Eu Jéssica, que nunca antes havia chorado na frente de
ninguém, agora havia chorado duas vezes no mesmo dia.

Tyller, para minha surpresa, não perguntou o motivo do meu choro, e


nem ficou dizendo coisas como Você não deve chorar, você é Jéssica, vá lá
e quebre o nariz do desgraçado que te fez isso. Não, ele simplesmente me
abraçou e me ouviu chorar como um bom amigo faria.

Passamos um bom tempo naquela posição, tempo suficiente para eu


parar de chorar. Tyller continuava abraçado em mim, era impressionante
como aquele gesto dele me dera segurança.

“Desculpe por tudo Ty,” Disse eu enxugando as lágrimas. “Eu não


queria vir aqui te atrapalhar.”

“Nenhum incomodo,” Disse ele sorrindo. “Você pode vir aqui sempre
que quiser, pode falar comigo sempre que precisar.”

“Você parece tão diferente.”

“Não é diferente,” Ele me explicou. “Esse é o meu normal.”

Eu não entendi o que ele quis dizer, mas realmente eu concordava.


Gostava muito mais daquele Tyller do que do carinha que só me chamava
de gata.

“Eu sou assim Jess,” Continuou ele. “Aquele Tyller é quem ou outros
querem que ele seja. Sabe, ser capitão do time não é fácil, os jogadores
exigem confiança de você. Todos os seus amigos querem que você pareça
descolado, alegre e forte...”

“Aqui é o seu lugar de ser você mesmo,” Completei a frase dele. “E se


você quer saber Tyller, prefiro muito mais o Ty do jardim.”

Ele sorriu e me deu um soco no ombro.


“Não que você seja detestável do outro jeito,” Continuei a
brincadeira. “Mas pelo amor de Deus, eu não agüento você me chamando
de gata o tempo todo.”

Caímos numa grande gargalhada.

“Essa é a parte que eu gosto do Tyller jogador,” Ele disse arregalando


os olhos. “Poder chamar você de gata é a melhor parte.”

Eu sabia que ele estava brincando, mas mesmo assim eu me senti


encabulada. Então resolvi mudar de assunto.

“Se você ou o outro Tyller contar para alguém que eu chorei no seu
colo feito criança, você vai ser um Tyller morto.”

“Nunca que eu contaria,” Ele imitou uma voz ofendida. “Para você ter
chorado, o motivo deve ter sido forte. Obrigado por confiar em mim.”

“Na hora certa eu te conto tudo,” Falei levantando-me. “Agora eu


preciso encontrar a Milla, te vejo depois jogador.”

Ele respondeu com breve aceno e depois voltou para a posição de


conforto na qual eu o encontrara.

Entrei pelas portas do Instituto muito mais tranqüila do que quando saí
por elas. Eu tinha que encontrar Milla e contar a ela tudo o que tinha
acontecido, ela devia estar morrendo de preocupação.

Corri pelo grande salão central e olhando para o chão reparei no meu
reflexo. O piso do salão era tão brilhoso que funcionava como um espelho,
olhando bem o meu reflexo percebi o quanto eu parecia com a diretora.
Como eu nunca tinha percebido isso antes?

Levantei minha cabeça e continuei correndo, pensando na conversa


com a Sra. Vânia, se ela cumpriria as minhas especificações.

Realmente eu esperava que sim, principalmente a parte de me deixar


sair do Instituto. Ou era isso, ou eu sairia por mim mesma.

Não vi Milla em nenhum lugar. Então fui procurar no nosso dormitório.


Lá estava ela, deitada na cama lendo um livro chamado 1001 livros para se
ler antes de morrer.

Eu sempre achei estranho ela ler um livro como esse, o livro realmente
citava 1001 nomes de outros livros, e cada vez que um livro era citado, ela
saía feito louca atrás daquela obra para lê-la. Resultado: Ela já havia lido 24
livros citados naquele imenso guia literário e ainda não tinha terminado o
próprio guia.

Quando ela me viu entrando no quarto saltou da cama e veio me


abraçar, sem perguntar nada.

“Eu tenho sorte de ter você,” Sussurrei no ouvido dela. “Ainda estou
aqui por você.”

Prometi que não choraria mais, e não chorei. Já Milla desabou em


lágrimas.

“Ah Jess,” Ela falava em meio a soluços. “Desculpe-me, deve ser difícil
pra você.”

“Tudo bem,” Eu tentava confortá-la. “Ela continuará sendo somente a


diretora Vânia, só isso. Não quero comentários sobre isso, eu estou bem
assim.”

“Orgulho-me de ser sua amiga Jess.”

Eu não precisei dizer nada, ela sabia o quanto eu era honrada por ter
a amizade dela.

Passamos o resto do dia no quarto, conversando até a exaustão nos


mandar dormir.

Aquela noite me rendeu sonhos muito estranhos. Sonhei com Lyra


caminhando pelo Instituto de mãos dadas com sua mãe, e de repente a
mãe dela virava uma caçadora de almas. Aquilo não fazia o mínimo
sentido, nunca um ser daqueles poderia adentrar os portões do Instituto, era
contra as leis, a não ser que ele fosse convidado.

Acordei na manhã seguinte suando feito louca.

“Preciso de uma aspirina.” Falei sozinha.

Até mesmo meio-anjos precisam de um remédio para dor de cabeça


as vezes.
Capítulo 4 – Confiança

As únicas pessoas que sabiam que a diretora Vânia era minha mãe
era eu, Milla, a própria diretora, e o Sr. Hung. E eu preferia que continuasse
assim, já que eu não a considerava como uma mãe, não faria nenhuma
diferença os outros saberem ou não.

Mas eu sabia que devia explicações a alguém, Tyller. Ele havia


aguentado o meu choro desesperado sem fazer pergunta alguma, ele
merecia uma boa explicação.

“Como você está hoje?” Pediu Milla assim que acordamos.

“Cheia de dores das aulas de Jiu-Jitsu e você?”

“Não é disso que eu estou falando,” Ela fingiu ser indiferente. “Estou
falando de você e da sua...”

“Eu como, ando, falo, respiro...” Interrompi-a. “Faço todas as minhas


funções biológicas, não graças a ela. Não quero tocar nesse assunto se for
possível.”

Peguei a minha mochila e comecei a sair do quarto.

“Onde você vai com esse pijama?” Ela perguntou arregalando os


olhos.

“Para aula de Misturas Químicas, para onde mais eu iria?” Zombei da


cara dela.

“Sim, mas de pijama?”

“Eu só durmo lá mesmo,” Falei mexendo a mão. “Já vi essa aula mais
de mil vezes, você acha que eu preciso realmente dela?”

Milla sabia que eu não precisava mais de aula alguma, possivelmente


eu já poderia dar aula naquele Instituto.

“Se alguém pedir,” Milla continuou. “Eu não te vi sair do quarto desse
jeito, vão achar que eu estou ficando louca como você.”

Eu abri um sorriso, um daqueles que eu não abria desde o incidente,


um sorriso sincero, e saí do quarto.
Por onde eu passava todos olhavam para mim. Devia ser por causa do
pijama, mas eu já estava acostumada com os olhares alheios, eu era a única
aluna daquele Instituto que usava cal ça de couro e camisetas de bandas
de rock para lutar, podem falar que isso é desconfortável, mas cara...
Realmente vocês não sabem o quanto é bom sentir o coro na sua pele
enquanto você bate em alguém.

Entrei na sala onde teria a aula, a professora Curlin me olhou


atravessado.

Eu realmente não me importei, ela era uma professora com várias


expressões faciais e de poucas palavras. Naquela olhada ela me “disse”: Eu
deveria te mandar para a suspensão nesse momento. Mas ela nunca
tomava atitudes como essa. Por isso a aula dela era a aula com menos
ação.

Tudo o que se aprendia fazer era reconhecer agentes químicos que


podem te proteger, ou derreter a cara de um vampiro por aí. E devo dizer
que é muito estranho.

Vampiros são mortos somente se forem incinerados ou então se


tiverem a cabeça arrancada, e sabe o que atrai eles? Enxofre, amônio ou
sangue. Os dois primeiros de mau cheiro, o que comprova a minha teoria
que eles não passam de porcos imundos, e o último é obvio, já que vampiros
têm sua dieta baseada em sangue.

Demônios também adoram essas coisas estranhas e de mau cheiro,


porém são mais difíceis de se matar. Somente com uma espada de prata
pura enfiada diretamente no coração, ou então exorcismo mesmo, o que
para mim era perca de tempo já que geralmente os corpos onde os
demônios se alojam ficam em frangalhos por si só.

Aí também têm os caçadores de alma, os comedores de gente, os


manipuladores... Todos esses são de uma raça inferior, geralmente
mandados pelos demônios.

O único problema é que não se pode matar um caçador de alma ou


um manipulador, só se pode espanta-los com sal ou então prendê-los em
algum recipiente, eles não são feitos de matéria só de uma força negativa.
Quando você toma alguma decisão má, pense duas vezes você pode estar
sendo manipulado!

Comedores de gente são nojentos, como diz o nome, eles se


alimentam de carne humana. São tão esfomeados e burros que é fácil você
matar um, só quebrar o pescoço e o serviço está feito.
No final das contas se você é um lutador você sobrevive, então eu
não entendia o porquê da aula de química.

“Você tem problemas psicológicos,” Lyra falou sentando-se no lugar


atrás de mim. “Não conseguiu mais nada para chamar atenção?”

Eu pensei em ignorá-la, mas eu precisava de uma válvula de escape


para o meu estress.

“Eu pensei em fazer plástica no nariz e vir com metade da minha


calcinha aparecendo,” Disse virando-me para trás. “Mas espere, você já fez
isso.”

Coloquei a mão na boca como se estivesse escapado, o que na


verdade não escapou, eu quis dizer mesmo, e voltei a olhar para frente.

Eu ouvi alguns resmungos depois da minha resposta, mas Lyra não


voltou a falar diretamente comigo, só ronronava algo como Um dia ela vai
ver, vou acabar com ela... Coisas que se diz quando se está com raiva.

“Jess.” Ouvi uma voz aguda me chamando.

Procurei pela voz e quando encontrei quase não acreditei em quem


estava falando comigo: Pearl Watz, uma das melhores amigas da Lyra, que
diabos ela queria comigo? E quem deu a intimidade para ela me chamar
de Jess?

Fiquei olhando para ela até que ela começou a falar.

“Queria saber se você quer ir numa festa que vai ter no meu
dormitório.” Ela parecia nervosa por falar comigo. “Vai ser divertido.”

“E por que você está me convidando?” Falei direcionando o meu


olhar para Lyra. Para minha surpresa, ou não, Lyra parecia já saber que esse
pedido aconteceria.

“É só que,” A voz dela tremia. “Você é popular, as pessoas te


respeitam, seria bom ter uma pessoa como você na festa.”

Aquele papinho nunca ia colar comigo, mas talvez fosse divertido ver
as patricinhas e os machões do Instituto juntos, aquilo ia feder a hormônios,
mas eu estava interessada em ver como pareceria.

“Ok.” Falei abrindo um sorriso. “Quando é?”

Isso sim surpreendeu Lyra, mas ela parecia aliviada em eu ter aceitado
a proposta.
“Hoje as sete no meu dormitório.” Ela respondeu retribuindo o sorriso e
depois saiu da sala.

Aquela aula tinha que terminar logo para eu poder contar para Milla
as novidades, eu não sabia como seria a reação dela.

Bom, ela sempre dizia que eu tinha que me enturmar com as pessoas,
ser mais simpática, sociável. Eu sempre achei tudo isso uma besteira e
sempre deixei bem claro isso para Milla, ela iria se surpreender em me ver
indo a uma festa, ainda mais uma festa que Lyra estaria.

Mas para o meu descontentamento, aquela aula parecia ser


interminável!

“Há treze coisas que vocês devem saber sobre um dragão...” A


professora falava com a voz longe.

Os minutos não passavam! A volta do relógio pareceu infinita, o tempo


realmente não passava.

“... Uma perfuração na cabeça...” Ela continuava falando.

Nem sei quanto tempo se passou. Eu já estava cansada de olhar para


o relógio e juro que até sono eu estava sentindo, quando eu ouvi as gloriosas
palavras.

“Por hoje é só.”

Peguei a minha bolsa e saí correndo para o dormitório, quase atropelei


a professora que estava no meu caminho.

Eu geralmente não era tão mal educada, sempre era a última a sair
da sala sempre por preguiça de levantar rapidamente, mas você tem de
convir que minha pressa era por uma boa causa!

Cheguei ao dormitório em menos de um minuto, encontrei Milla


deitada na cama lendo um livro estranho. Provavelmente um livro que
estava indicado no outro livro, confuso não?

“Levanta daí,” Falei jogando minha mochila em cima dela. “Temos


uma festa para ir.”

Ela me olhou por cima do livro com os olhos arregalados.

“O que você acabou de dizer?” Ela perguntou.


“Isso que você acabou de ouvir, temos uma festa para ir.” Abri um
grande sorriso para ver se ela tinha alguma reação. “Adivinha festa de
quem?”

Ela continuou a me olhar com aqueles olhos arregalados, pobrezinha


ficou em choque.

“Pearl Watz.” Falei esperando alguma reação.

Funcionou. Ela deu um salto da cama como se fosse um gato.

“Você só pode estar brincando,” Ela pôs uma mão na minha testa.
“Você está com febre não está?”

“Não,” Falei tirando a mão dela de perto de mim. “A Pearl está dando
uma festa e me convidou, na verdade eu acho que a Lyra mandou ela me
convidar, então eu quero ver o que está reservado pra mim lá. E eu não vou
a lugar algum sem você, então se arruma e... Ajude-me a escolher uma
roupa.”

“Ok, eu vou nessa festa com você,” Ela falou rapidamente. “Mas você
tem que prometer não arranjar briga lá.”

Cruzei os dois dedos na minha frente e os beijei como sinal que ela
poderia confiar em mim. Eu não pretendia brigar mesmo.

Depois o meu gesto, Milla correu para o banheiro tomar banho. Ela era
a única NERD que eu conhecia que gostava realmente de festas. Eu deveria
gostar de festas, provavelmente gostasse se vivesse em algum lugar normal,
se e fosse normal, mas já que a vida não permitiu ser assim me transformei
em uma “festafóbica”.

Eu não era de muitos amigos, na verdade os únicos amigos que eu


podia confiar eram Milla e Tyller, então o que eu faria numa festa se eu sabia
que metades das pessoas que estariam lá me odeiam, e a outra metade
tem medo de mim?

Tenho que admitir que eu criei essa imagem temerosa, e até gosto
dela. Quando as pessoas temem você, elas o respeitam. Ser durona foi o
modo que encontrei de poder levantar a cabeça no Instituto, e deu muito
certo, ninguém era melhor do que eu lá.

Milla saiu do banheiro enrolada em uma toalha.

“Já sei o que vou vestir, e já sei o que você vai vestir!” Ela falou abrindo
o armário com uma mão enquanto segurava a toalha com a outra.
“E o que é que eu vou vestir?” Falei entrando no banheiro.

“Esse vestido de couro!”

“Você só pode estar brincando,” Saltei para fora do banheiro


imediatamente. “Eu de vestido? De onde você tirou isso?”

“Vestido e salto!” Ela disse jogando o vestido em cima da minha


cama. “Se você quiser que eu vá junto, essa é a minha condição.”

“Ok,” Entrei novamente no banheiro. “Mas só vou com o vestido, nos


pés eu vou de tênis.”

“Isso é completamente...”

Eu sabia que ela iria iniciar uma lição de moda, então a interrompi.

“Uma coisa por vez. Hoje o vestido, um dia quem sabe o salto.”

Ela sabia que eu nunca usaria salto, mas não se opôs, a vontade de ir
à festa era maior que os seus caprichos.

No banho comecei a refletir se o que eu estava para fazer era a coisa


certa, talvez não fosse, mas eu queria pagar para ver.
Capítulo 5 – Uma festa nada divertida

Sim, eu estava vestida como uma garota de programa.

Eu não tinha vestidos, nunca gostei deles, eles me faziam sentir


desconfortável, mas Milla tinha muitos deles e para a minha tristeza, ela tinha
me obrigado a colocar o vestido mais sexy que ela tinha no armário, um
negócio de couro que ficava totalmente grudado no corpo.

“É um tubinho e é sexy!” Ela pestanejava toda vez que eu dizia que


estava parecendo uma prostituta. “Todo mundo sabe quem você é, nunca
confundiriam você com uma prostituta.”

Não era o que eu pensava.

Definitivamente eu me sentia desconfortável naquele vestido,


normalmente eu adorava peças de couro, elas me faziam sentir poderosa,
mas aquele vestido tomara que caia me deixava totalmente insegura.
Minha impressão era que o vestido cairia a qualquer momento.

“Ficou perfeito em você.” Milla me encorajava.

“Se ele cair no meio da festa eu te mato.” Era a frase que eu repetia.

Para a minha alegria, Milla não me obrigou a usar um sapato de salto


alto, bem que ela queria, mas eu disse a ela que iria com meu Converse e
pronto.

“Um vestido desses e você coloca tênis.” Ela falava revirando os olhos.
Eu não me importava.

Milla era apegada com essas coisas sobre moda, ela dizia que a
primeira coisa para conquistar um garoto é a aparência e por isso ela
sempre estava impecável. Eu me perguntava as vezes porque ela ainda era
solteira.

Você sabe, ela era uma garota bonita, divertida e muito inteligente,
sempre estava paquerando alguém mas nunca tinha arranjado um
namorado de verdade.

“Os caras certos vêm na hora certa.” Era o lema de Milla.

Apesar de achar que eu nunca teria um namorado, eu concordava


com ela.
“São quase sete,” Falei colocando meus tênis. “Deveríamos ir.”

“Só uma coisinha.” Ela falou puxando o palito japonês que estava no
meu cabelo.

Meu cabelo caiu como uma cortinha sobre meus ombros. Ela sorriu.

“Agora vamos.”

Ela foi andando na minha frente enquanto eu fechava a porta


revirando os olhos.

O dormitório da Pearl não era muito longe do nosso. Ao contrário de


mim e Milla, ela tinha um quarto somente para ela. Não sei quanto ela havia
pagado por essa exclusividade.

O quarto era grande e tinha portas de vidro que davam para uma
calçada externa de onde dava para ver o jardim. Ser rico no Instituto te
dava algumas mordomias, como quartos melhores, camas melhores, tudo
melhor. Mas eu não ligava muito para essas coisas de conforto. Tendo um
lugar para dormir já era o suficiente.

Chegamos até a frente da porta do quarto, de lá já dava para ouvir a


vibração da música.

Batemos na porta e ficamos esperando alguém vir atendê-la.

Pearl apareceu com um copo de uma bebida que parecia ser


ponche.

“Oi garotas,” Ela falou sorrindo. “Entrem e fiquem a vontade.”

Para minha surpresa o sorriso dela parecia ser genuíno.

“Ela está bêbada.” Disse Milla me puxando pelo braço.

“Pensei que não era permitido bebida alcoólica aqui dentro.” Falei
acompanhando-a.

“E não é.”

Ótimo! Eu estava em uma festa ilegal.

Andamos pelo quarto tentando não esbarrar nas pessoas, o que foi
muito difícil. Praticamente todos os veteranos do Instituto estavam lá: Os
jogadores, as patricinhas, os emos e os nerds. Como ela tinha conseguido
enfiar tanta gente num só quarto?
“É aqui que eu me divirto.” Falou Milla se soltando de mim.

“O que? Você vai me deixar aqui sozinha.” A segurei.

“Eu vou estar bem ali com o John.” Falou ela apontando para o
atacante do time de futebol. “Se precisar é só vir me chamar.”

Que bela amiga que eu tinha, na primeira oportunidade ela me


abandonou pra ficar com um brutamonte.

Comecei a andar pela festa procurando algum lugar para me sentar,


para minha tristeza todas as poltronas estavam ocupadas. Eu poderia muito
bem chegar lá e expulsar alguém para que eu pudesse me sentar, mas eu
havia prometido para Milla que iria me comportar.

Então eu vi a porta que dava para a calçada aberta e segui até lá.

Por onde eu passava as pessoas me encaravam. As garotas me


olhavam como se não me reconhecessem e os garotos me olhavam como
se eles fossem cachorros famintos e eu fosse o pedaço de carne suculenta.
Eu iria matar Milla depois que a festa acabasse.

Chegando ao lado de fora me senti aliviada, ali também tinha muita


gente, mas pelo menos havia um ar fresco para se respirar.

Olhei para a direita e vi Tyller escorado em uma cerca, ele estava


rodeado de garotas, como sempre.

Ele parecia descontraído mexendo no próprio cabelo, as vezes ele


sorria de alguma piada idiota. Ele virou um pouco o rosto e acabou me
vendo. Foi estranho a forma que ele me olhou, foi um olhar fixo. As garotas
que o rodeavam acompanharam o olhar dele para ver o que havia de tão
interessante. Então em um minuto estavam todos olhando para mim.

Ele se afastou delas pedindo licença e começou a se aproximar de


mim. Quando ele chegou perto eu senti seu perfume.

“Veja só quem saiu da toca,” Falou ele beijando-me a bochecha.


“Fico feliz que você tinha vindo.”

“Você sabia que eu viria?” Perguntei levantando uma sobrancelha.

“Havia boatos, acho que perdi uma grade de cerveja.” Ele estava
bagunçando o cabelo com uma cara de preocupado.

“Como assim?” Perguntei sem entender nada.


“Apostei com o Carlos que você não viria.”

A história da festa havia se espalhado rápido mesmo, mal eu havia


recebido o convite e já havia pessoas fazendo apostas sobre mim.

“Se você quiser eu finjo que não vim,” Falei cruzando os braços. “Acho
tudo isso uma besteira mesmo.”

“Não.” Ele falou me pegando pelo braço. “Gosto da sua companhia.”

Eu tinha que admitir que gostava da companhia dele também, Tyller


era um cara muito legal.

“Você pode voltar para suas amigas se quiser.” Falei gesticulando com
a cabeça.

“Você está brincando?” Ele ergueu uma sobrancelha. “Eu não


agüentava mais elas, são todas umas oferecidas.”

Isso me fez sorrir, era a mais pura verdade. Todas as garotas de lá


queriam namorar com Tyller, ele era bonito e capitão do time de futebol,
tinha popularidade e dinheiro. E apesar de ter tudo isso, ele parecia simples
para mim.

Ele me guiou até um banco em um canto da festa, finalmente um


lugar para sentar!

Sentamos lá e começamos a respirar ar puro.

“Onde está Milla?” Ele perguntou virando-se para mim.

“Pegando o John.” Falei ajeitando o vestido.

“Cara, eu já disse pra ela que ele não presta.” Ele se esparramou no
banco.

Eu só sorri. Era verdade, John não prestava. Ele era apenas uma
montanha de esteróides.

“Sabe,” Continuou ele. “Eu quase não te reconheci com esse vestido.”
Senti minha face corar.

“Nem eu não estou me reconhecendo!” Falei esparramando-me no


banco também. “Eu falei para Milla que eu estava parecendo uma prosti...”

“Não,” Ele me interrompeu. “Você está linda, eu só achei que eu


nunca fosse ver você usando um vestido.”
Voltei a sorrir.

Aquele momento lembrou-me do dia em que eu havia descoberto


quem era a minha mãe. Eu estava revoltada com a vida naquele dia e Tyller
havia me oferecido o ombro para chorar, e desde aquele dia ele não havia
me pedido o porquê eu havia chorado.

“Ty,” Falei virando-me para ele. “Aquele dia que eu...”

“Que você chorou.” Ele completou calmamente.

“É...” Eu respondi suspirando. “Eu quero que você saiba o motivo, mas
não sei por onde começar.”

“Se não quiser contar não precisa.”

“Não, eu quero.” Eu falava a verdade. “Só que é muito complicado.”

Ele ficou me olhando e entendeu o meu sofrimento ao tocar no


assunto.

“Ás vezes Jess o que parece complicado é mais simples do que


parece.”

Era verdade, a história não era complicada, mas aquilo retorcia dentro
de mim. Se eu não ligava para quem era a minha mãe, então por que eu
me sentia assim?

“Eu meio que... Descobri de onde eu vim.”

“Mas isso deveria ser uma coisa boa.” Falou ele com uma voz confusa.

“Não no meu caso,” Respirei fundo. “Eu sempre conheci minha mãe
Ty, mas ela nunca teve coragem de admitir que eu era sua filha, nunca me
deu um abraço e ela sempre esteve perto de mim.”

“Mas você está aqui desde que eu me conheço por gente,” Ele
parecia mais confuso. “Eu lembro de quando você chegou, eu era pequeno
mas eu lembro de você bebezinha.”

“É, falaram para mim que eu havia sido abandonada aqui, mentiram
para mim minha vida toda!”

Minha voz tremia, mas não por vontade de chorar, por raiva.

“A Sra. Vânia mentiu para mim...”


Aquele nome saia rasgando a minha garganta como se fosse navalha.

“Descobri que ela é minha mãe Tyller.”

Ele arregalou os olhos, realmente ele não esperava por aquilo.

“Mas isso é expressamente proibido.” Ele falou olhando para mim. “Um
meio anjo não pode se relacionar com outro anjo, é arriscado demais.”

Essa era uma das primeiras regras. Meios anjos nunca poderiam se
relacionar com outros anjos, o resultado poderia ser filhos muito especiais,
que seriam caçados o resto da vida.

“É por isso que ela não me deixa sair daqui,” Falei cerrando os dentes.
“Ela tem medo que me matem lá fora, como se ela se importasse de
verdade.”

“Ela se preocupa com você Jess.” Ele disse ajeitando o meu cabelo
atrás da orelha.

“Ela não se importa comigo Ty, ela só tem medo de eu morrer porque
então ela terá o meu sangue nas mãos.”

Tyller me abraçou. Eu senti que iria chorar de novo, mas segurei as


lágrimas com toda a força que eu tinha.

“Você vai ficar bem Jess, você tem a mim.” Ele segurou meu rosto
entre as mãos.

“Tenho sorte de ter você e a Milla.”

Tyller então abriu um sorriso lindo e continuou a me segurar entre as


mãos. Ele havia caprichado para a festa, se alguma emissora de televisão o
visse naquele momento, com certeza o contrataria para fazer uma novela.

Naquele momento eu me senti feliz, soube que tudo ficaria bem


enquanto tivesse Tyller e Milla comigo.

“Me lembre de agradecer a Milla depois.” Ele disse me soltando.

“Agradecer pelo quê?” Perguntei confusa.

“Por fazer você usar esse vestido,” Ele sorriu. “Nunca vou esquecer
disso.”

Senti minha face corar novamente.


“Você deveria calar a boca e pegar alguma coisa pra gente beber.”
Falei dando um soco no ombro dele.

“Com álcool ou sem?” Disse ele levantando-se.

“Sem, álcool é proibido aqui!”

Ele pareceu se divertir do que eu tinha acabado de falar, então ele


curvou o braço querendo que eu o acompanhasse. Lá se ia o meu lugar no
assento.

Entramos no quarto com alguma dificuldade, havia chegado mais


gente ou era só impressão minha?

Não me surpreendia ela ter me convidado para aquela festa, ela


havia convidado TODO MUNDO!

Então eu percebi que Lyra não estava lá. Isso não cheirava bem.

“Você viu a Lyra?” Perguntei para Tyller.

“Não,” Disse ele pegando um refrigerante. “Estranho né?”

Era mais do que estranho. Uma das suas melhores amigas dá uma
festa e não convida você, ou então ela não quis ser convidada. Isso não
fazia sentido, todos, absolutamente todos os veteranos estavam lá. Inclusive
todo o grupo de amizade e Lyra, menos a comandante do grupo que era a
própria Lyra.

Cheguei a pensar se ela havia morrido, não que alguém fosse sentir
falta, mas era muito estranho.

De repente houve um estrondo que fez o chão tremer. Não era como
um terremoto, mas sim como uma pequena vibração sísmica sobre os meus
pés. Talvez somente eu tivesse sentido, já que as outras pessoas continuavam
a dançar sem problema nenhum.

Outro tremor, mais forte.

Soltei-me de Tyller e fui correndo até a porta de vidro do quarto para


ver o que estava acontecendo lá fora. Passei por todos os convidados que
pareciam não ligar para o quase terremoto que havia acabado de
acontecer.

Cheguei até a porta e vi que Tyller havia me seguido. Quase não


acreditei ao olhar para fora.
“Isso é impossível!” Falei para Tyller.

Ele estava pálido, parecia que ia desmaiar. Havia um dragão


quebrando o portão principal do Instituto, isso ia totalmente contra tudo o
que havíamos aprendido.
“Nada pode entrar aqui, nada pode passar pelo jardim.” Era o que o
professor Hung sempre nos dizia.

Nada poderia passar pelo jardim, mas o dragão já estava no portão


principal do Instituto, já havia passado pelo jardim e agora estava destruindo
o portão reforçado!

Subi em cima de uma poltrona expulsando um garoto que estava lá


sentado, ele saiu me olhando como se os olhos dele pudessem me fuzilar.

“A festa acabou.” Gritei, mas ninguém me ouviu.

Tyller então desligou a música e todos olharam para mim.

“A festa acabou!” Repeti mais alto. “Todos para os seus dormitórios,


tem um dragão lá fora!!!”

A princípio eles riram de mim, até ouvirem o segundo estrondo.

O dragão havia entrado.

“Droga,” Desci da poltrona e fui correndo até o saguão principal.

Fiquei feliz ao perceber que o vestido não me atrapalhava para correr


e não estava caindo.

Chegando ao saguão principal, percebi que metade dos


participantes da festa haviam me seguido, inclusive Milla e Tyller.

“Vocês são idiotas?” Perguntei a eles. “Aquele bicho vai comer


vocês!”

Alguns saíram correndo para se esconder, mas Milla e Tyller


permaneceram no lugar em que estavam. De repente o dragão entrou de
vez, ele tinha um olhar furioso, e por algum motivo, ele estava olhando
diretamente para mim.

“O que está acontecendo aqui?” Ouvi a voz da diretora.

Ela se calou ao ver aquele monstruoso dragão vermelho de 5 metros.


“Jesus!” Milla falou. “Você tem que sair daí Jess, ele está olhando para
você.”

O monstro começou a correr em minha direção com as narinas


inflamadas, eu me posicionei para o ataque. Ouvi passos além das passadas
do dragão.
Milla estava correndo ao encontro do monstro. Eu sabia que ela tinha
treinamento para isso, Milla era ótima nas aulas, eu e ela fazíamos uma boa
dupla. Mas agora era diferente, era real.

E eu senti medo.

Milla estava se aproximando do dragão quando ele lhe acertou um


golpe com a cauda lançando-a uns contra uma parede que estava a uns 3
metros dele. Ela bateu contra a parede com a cabeça e caiu desmaiada.

Corri até ela e joguei-me no chão para apoiar a cabeça dela no meu
colo. Notei que os olhos do dragão continuavam grudados em mim.

Milla estava ferida, eu estava com raiva e o dragão estava


completamente ferrado.

Depois de eu conseguir tirar Milla do caminho e apoiá-la em um lugar


seguro, o dragão começou a correr atrás de mim a toda velocidade. A
senhora Vânia começou a gritar de pavor, talvez o lado maternal tivesse
aflorado nela, o que eu não acreditava que fosse verdade.

Eu não tinha tempo para ouvir gritos naquele momento, eu tinha que
correr para algum lugar.

“Droga,” Falei alto e comecei a fugir.

As passadas do dragão eram muito maior que as minhas, mesmo assim


eu era rápida, eu era uma meio-anjo, corria muito rápido, não precisava de
asas para voar baixo.

Corri pelos corredores e tudo o que eu ouvia era a destruição que o


dragão estava causando, ele era largo demais e os corredores não eram
tão largos assim, então enquanto ele passava ia derrubando tudo que
estava preso a parede. Lá se foram os quadros de avisos que eu e Milla
tínhamos posto na parede para que os alunos vissem, lá se foram duas
semanas de trabalho.

Meu cérebro estava a mil, eu sentia adrenalina em cada parte do


meu corpo, cada segundo eu lembrava de Milla com o sangue escorrendo
pela cabeça. Então eu decidi que iria matá-lo por ter machucado Milla.
Tomei a direção da sala de armas, fiquei feliz por ela estar mais perto
do que eu me lembrava. Abri a porta e joguei-me para dentro, tranquei a
porta rapidamente para que ele não entrasse.

Naquele momento eu agradeci pela porta ser tão reforçada. O


dragão estava cuspindo fogo, literalmente, o calor perto da porta era
insuportável. Como eu iria sair dali?

Olhei para os meus pés e fiquei feliz por estar de tênis, teria sido
completamente impossível correr tudo aquilo que eu havia corrido de salto.
Lembrei-me de Milla novamente.

Olhei para as paredes e vi espadas e escudos pendurados. Me


aproximei, peguei um escudo pendurando-o nas costas, uma espada
segurei na mão esquerda e consegui achar um arco e flecha, o arco
pendurei no meu ombro esquerdo e a flecha eu coloquei na parte de trás
do meu vestido.

Agora só faltava eu sair de lá.

Olhei para a janela, pedi a Deus que me desse tempo para pular pela
janela e dar a volta pelas salas para encontrar o dragão e pegá-lo de
surpresa. Apoiei a espada em uma mesa e senti que o calor vindo da porta
estava cada vez mais intenso.

“É agora.” Pensei.

Peguei uma cadeira e joguei-a contra a vidraça. O vidro se estilhaçou


em milhões de pedaços. Eu dei impulso e joguei-me pela vidraça quebrada.
Respirei fundo e comecei a correr, eu tinha de ser rápida, rápida o suficiente
para matar o dragão sem ele perceber.

Enquanto eu corria, tentava lembrar do que a professora Curlin havia


dito sobre dragões. O destino é irônico não? E eu que achava que aquela
aula não iria servir para nada.

Lembrei-me que ela tinha dito algo sobre perfurar a cabeça do


dragão, eu esperava que fosse isso que matasse um e não que fosse só uma
cirurgia neurológica, porque era justamente isso que eu iria fazer.

Corri até meu coração quase explodir. Meu sangue pulsava tão
rapidamente por minhas veias e minha respiração estava ofegante, eu havia
nascido para aquilo que eu iria fazer, eu era uma máquina que havia sido
feita para caçar.

Cheguei até a fera, ela estava olhando fixamente para um ponto.


Segui os olhos dela e vi que ela olhava para Tyller.
Tyller estava tentando, sem muito sucesso, lutar com o dragão. Aquele
monstro não iria machucar outra pessoa por minha causa.

“Hei!” Gritei auto, chamando a atenção da fera.


Ele se virou para mim, eu pude ver o fogo nos olhos dele.

Tyller tentava atrair a atenção da fera para ele, mas eu já havia


notado que o dragão tinha ido até o Instituto com apenas um intuito: me
matar, era a mim que ele queria.

O dragão se preparou para cuspir fogo em mim, aquele era o


momento.

Instintivamente joguei o escudo o mais forte que pude, ele foi


rodopiando até que cravou na carne do rosto do dragão. O monstro se
contorcia de dor enquanto eu corria até alcançar as costas do animal, eu
não havia chegado tão perto dele ainda, ele era simplesmente enorme e
assustador, sua pele tinha um aspecto escamoso e ao mesmo tempo
grotesca, como a de um crocodilo.

Subi pela calda do bicho com muita dificuldade, eu tive de me


agarrar várias vezes na pele do dragão, a pele era tão quente quanto o
fogo que ele cuspia pelas ventas. O monstro se retorcia muito e foi difícil
conseguir ficar de pé.

Quando consegui me apoiar sobre os pés armei o arco com a única


flecha que eu havia pego, estiquei o máximo que pude meu braço para
que a flecha saísse com a maior velocidade possível e mirei onde deveria
estar o coração do dragão.

Soltei o batente do arco e a flecha logo penetrou na pele do dragão,


perfurando profundamente.

Para minha tristeza, o animal ainda estava de pé, e desta vez se


contorcendo mais do que nunca. O sangue escorria e atingia o chão,
formando uma poça vermelha a baixo de mim e do dragão. Segurei-me
firme na pele do dragão e fui escalando até chegar em cima da grande
cabeça.

“Agora você vai morrer.” Falei baixinho, como se ele pudesse me


entender.

Pode ter sido coisa da minha imaginação, mas naquele momento ele
parou de se retorcer, como se estivesse esperando a morte que era certa,
como se quisesse morrer com dignidade.
Então eu retirei a espada de trás do meu vestido e cravei no seu
crânio.
Senti que o grande dragão havia perdido o espírito e seu corpo estava
sucumbindo. Saltei de cima da cabeça do animal antes que ele caísse e me
esmagasse junto. O grande dragão estava morto e eu o havia matado.

Fiquei parada somente observando a fera inerte, minhas mãos


estavam tremendo e eu não sabia ao certo se era por ter matado aquele
monstro ou se era pela idéia de alguém tê-lo mandado para me matar e
alguém do Instituto tinha deixado aquele dragão entrar.
Alguém queria me ver morta, e eu tinha que descobrir quem.

Senti braços envolvendo o meu corpo, só então percebi que era Tyller
me abraçando, tudo havia acabado, deixei o peso do meu corpo se apoiar
no corpo de Tyller.

“Eu o matei.” Minha voz saía como um sussurro. “Eu...”

“Você foi ótima,” Ele respondeu prontamente. “Vamos temos que sair
daqui.”

Tyller começou a guiar-me pelo saguão então eu percebi que havia


uma platéia paralisada me olhando. Corri os olhos por eles, lembrei de Milla.

“Milla...” Comecei.

“Ela está na enfermaria, ela vai ficar bem.” Tyller parecia falar a
verdade.

Senti um enorme alívio por Milla estar bem, se algo acontecesse à ela
eu não saberia o que fazer, se Milla tivesse morrido, ela teria morrido por mim,
somente esta idéia me embrulhava o estômago.

Continuei a olhar para quem estava ao meu redor, vi a Sra. Vânia com
os olhos cheios de lágrimas. Eu não me importava se ela estava chorando,
eu não me importava com ela. Ao lado dela estava Lyra, para minha
surpresa ela não estava pasma e nem paralisada, ela parecia normalmente
tranqüila, como se nada tivesse acontecido. Do outro lado estava o Sr. Hung,
me olhando com orgulho, com tanto orgulho que seus olhos brilhavam.

Parei bruscamente, Tyller me olhou nos olhos.

“Tudo faz sentido...” Falei baixinho.

“O que você...” Ele começou.


“Lyra!” Gritei interrompendo Tyller. “Está feliz? Milla está na enfermaria
por SUA causa!”
A raiva percorria meu corpo e pulsava mais forte do que meu coração
havia pulsado antes, tentei avançar nela, mas Tyller me impediu.

“O que você está fazendo?” Tyller pedia desesperadamente tentando


me segurar.

“Você não entende?” Eu disse com lágrimas nos olhos. “Aquela


desgraçada armou tudo, ela deixou o dragão entrar, ela armou a festa,
ela...”

Eu queria me soltar de Tyller, mas ele havia me prendido muito


fortemente. A impossibilidade de quebrar a cara de Lyra me fez sucumbir,
deixei que meu corpo caísse no chão. Eu estava cansada, com raiva e
ninguém estava acreditando em mim.

“Ela é louca,” Lyra zombava de mim. “Perdeu completamente o juízo.”

Eu iria mostrar para ela quem havia perdido o juízo quando


conseguisse me levantar. Para minha tristeza eu estava sem forças e chorava
igual a um bebê no saguão principal do Instituto com todos os alunos
olhando para mim.

Ninguém acreditava em mim, muito provavelmente nem Tyller e Milla


acreditariam. Eu tinha de sair de lá, eu tinha que provar que não estava
louca.
Capítulo 6 – A Ovelha Perdida.

Milla havia se machucado muito, e eu não me perdoava por isso, eu


não perdoava Lyra. Minha melhor amiga estava internada há 3 dias, e eu
estava ao lado dela durante todo o tempo.

“Você está péssima,” Falei tirando uma mecha de cabelo do rosto de


Milla. “Você não deveria ter feito aquilo.”

“Ele ia te atacar,” A voz dela era fraca e frágil. “O que eu poderia ter
feito?”

“Me deixar morrer,” Disse brincando, mas no fundo era verdade.


“Agora você está aí, com um traumatismo e duas costelas quebradas.”

“Hei, eu sou filha de um anjo, nada pode me matar.”

Mesmo deitada em uma cama de hospital ela continuava a alegre


Milla de sempre.

“Ela vai me pagar pelo que fez com você.”

Eu havia contado a minha teoria para Milla. Ela não riu de mim como
eu imaginava que seria, mas me disse para esquecer dessa paranóia.

“Você nem sabe se foi realmente ela...”

Era verdade, eu não tinha provas que Lyra havia deixado o dragão
entrar pelos portões, mas algo me dizia que eu estava certa.

“Você não acha que eu estou louca né?” Pedi com a voz baixa.

“Jess, alguém deixou aquele animal entrar. Pode ter sido Lyra, como
pode ter sido qualquer outra pessoa, só estou dizendo que você não tem
certeza.”

Milla estava certa, como sempre.

“Tyller não quer me deixar bater nela,” Falei pesarosa. “Vou bater nela
e nele também!”

Milla agora estava sorrindo, eu adorava vê-la sorrir.

Nunca ninguém mais a machucaria, eu havia feito uma promessa


para mim mesma que a protegeria de todas as formas, mesmo que isso
significasse eu me afastar dela.
“Agora tenho que ir, tenho aula de kung-fu.” Menti.

“Você ainda vai nesse lixo?” Ela perguntou virando os olhos.

“Eu adoro kung-fu!” Isso era verdade.

Dei um beijo na testa dela, como se fosse um beijo de despedida, se


meu minha fuga desse certo eu não a veria por muito tempo, eu nem sabia
se a veria de novo.

Eu iria escrever uma carta de despedida para ela, Milla era minha
melhor amiga, porém eu não conseguiria despedir-me dela pessoalmente,
me mataria ver ela magoada.

“Só... se cuida ok?” Falei com a voz embargada.

“Você fala como se fosse morrer!” Ela juntou as sobrancelhas


formando uma linha tensa e dura.

Eu espero que não. Essas palavras foram ditas apenas no meu


pensamento enquanto eu saía pela porta da enfermaria fingindo um sorriso
no rosto.

Do lado de fora estava Tyller, ele agora havia virado a minha sombra
desde que eu havia contado a ele meus planos de fuga.

“Você não tem mais o que fazer?” Pedi dando um leve empurrão
nele.

“Tenho que impedir você de fazer besteiras, fazer o que...” Ele


respondeu com um sorriso torto no rosto.

Continuei andando como se eu estivesse sozinha, Tyller não disse uma


palavra até chegarmos em frente ao meu quarto.

“Você não espera que eu te convide pra entrar.” Supus. Ele não
respondeu. “Olha, eu vou tomar um banho e dormir Ok? Estou muito
cansada e... Amanhã a gente se vê.”

Ele ficou com os olhos grudados no meu rosto como se ele estivesse
me analisando.

“Ok,” Ele respondeu colocando as mãos nos bolsos da calça. “E pare


de pensar besteira.”

Fechei a porta antes de dizer um “Adeus” formal. Eu sentiria falta dele.


Tyller era um grande amigo.
Na verdade eu sentiria falta de tudo. Comida de graça, lugar
aconchegante para dormir, amigos para conversar... O Instituto era um bom
lugar para se viver, eu não sabia o que encontraria lá fora, mas também não
estava muito preocupada com isso, o que me deixava mais preocupada era
como eu iria conseguir as coisas lá, você sabe, como eu iria pagar por
comida e por um quarto para dormir. Eu não tinha dinheiro, não muito pelo
menos. Eu tinha uma poupança, na qual eu nunca depositei dinheiro, eu
apostava que ela estava zerada, mas eu teria de conferir assim que saísse de
lá.

Entrei no chuveiro com o coração pesado.

“Último banho quente...” Pensei enquanto colocava minha cabeça


debaixo da água, deixando que ela escorresse por meu corpo.

Nunca fui muito de rezar, na verdade eu nunca rezava, mas naquele


momento senti a necessidade de uma proteção maior.

“Deus, eu sei que Você existe e eu sei também que não posso exigir
nada de Você, já que eu não tenho sido exatamente uma pessoa fiel à
oração, mas se for possível... Eu preciso de proteção.” Meu corpo relaxava
conforme eu ia dizendo as palavras, a água escorrendo pela pele. “Talvez
essa seja a maior burrada que eu farei na minha vida, mas eu preciso fazer
entende? Não quero colocar em risco as pessoas que amo, não quero... Não
quero elas feridas por minha causa... Então se for possível, eu peço que o
Senhor as proteja também, Milla sabe se cuidar sozinha, mas não sei como
ela vai ficar com a minha ausência e o Tyller... Bom, faça com que Tyller
continue sendo do jeito que é.”

Aquele deve ter sido o banho mais longo da minha vida, pois quando
saí debaixo do chuveiro notei que meus dedos estavam enrugados.

“Droga, por que dói tanto? Fazer as malas não deveria abrir um
buraco no meu peito, ou talvez sim. Coloco agora a minha amada calça de
couro, que ela me dê sorte, que os ventos me levem para o lugar correto.

Milla, não quero que você fique brava comigo, eu disse a você que
algum dia fugiria daqui! Está certo que nem eu pensava que faria algum dia
isso de verdade, mas agora eu tenho um motivo real, e não se preocupe, eu
nasci para fazer isso, nasci para proteger os outros, vou conseguir me
proteger.
Tyller, por favor cuide da Milla e seja você mesmo, mande o “Tyller
capitão do time” embora, você é muito melhor que isso.
Sra. Vânia, não coloque ninguém atrás de mim, eu vou saber, eu
voltarei quando for a hora, não me deixe mais decepcionada com você do
que já estou.
Lyra... Vá se ferrar!

Milla, Ty eu amo vocês.


Ass: Jess”

O bilhete havia ficado bom. Não consegui expressar tudo o que


queria, mas estava bom. Coloquei o bilhete pendurado no quadro de avisos
que havia na parede acima da cama de Lyra, lá havia muitas coisas que
havíamos feito uma para a outra, evitei olhar para o quadro, simplesmente
preguei o bilhete lá e virei as costas.

Eu estava pronta para fugir.

Agradeci pela existência de um toque de recolher no Instituto pela


primeira vez na vida. Olhei para o relógio, era 23:27 hrs... Nem tão tarde, nem
tão cedo, a hora perfeita para dar um passeio.

Todos já estavam dormindo por causa do toque de recolher, e eu


poderia escapar sem maiores problemas. Subi na minha cama e olhei pela
janela do quarto, dava direto para o grande muro de trás do Instituto. Seria
fácil pular o muro, levando em conta que eu tinha uma impulsão angelical.

Abri a janela com cuidado, evitando fazer qualquer barulho, obtive


sucesso.

Passei pela janela e estendi meus braços para dentro do quarto para
pegar minha mochila com algumas roupas, meu diário, meu cartão do
banco, e algumas barras de cereais que eu tinha roubado do refeitório,
também tinha um cantil com água, uma faca de prata e três canivetes que
eu também tinha roubado. Eu tinha pensado em roubar uma espada e um
arco com algumas flechas, talvez um machado, mas seriam muito difíceis de
carregar, eu dava um jeito de conseguir algo do estilo quando estivesse lá
fora.

Fechei a janela sem fazer qualquer som, coloquei a mochila nas costas
e corri em direção ao muro.

Cada passo que eu dava em direção ao muro fazia meu coração


pular pela garganta, e o mais estranho de tudo era que eu gostava da
sensação.
Gostava de quebrar as regras pelo menos uma vez, gostava de correr
para a liberdade, as estrelas pareciam mais brilhantes, porém a lua me
olhava como se eu estivesse fazendo algo muito errado. Não me importei
com a lua, ela estava sempre no mesmo lugar, brilhando e observando
todos os seres da Terra, não havia como ela me compreender.

“Droga! Primeiro estágio: Loucura.” Falei para mim mesma enquanto


jogava minha mochila para o outro lado do muro. “Falar com a lua como se
ela se importasse com você não me parece uma coisa que gente normal
faça.”

Pessoas normais também não falavam consigo mesmas.

Tudo bem, eu realmente não era normal, pessoas normais não tem ¾
de sangue angelical correndo pelas veias.

Um arrepio percorreu meu corpo quando ouvi minha bagagem


caindo do outro lado do muro. Levou um tempo até que foi possível ouvir o
baque, o que só me lembrava de quanto o muro era alto.

Parei por um momento e fiquei olhando para cima.

“Nesses momentos agradeço por não ser humana.” Continuei


conversando comigo mesma.

Mas havia verdade naquelas palavras, nenhum humano conseguiria


pular um muro de 10 metros de altura, não em um pulo só.

Tomei distância para pegar embalo, comecei a correr, o vento


balançando meu cabelo. Quando o muro estava próximo o bastante, fechei
meus olhos e tomei impulso.

Era como voar, aquela sensação de liberdade eu nunca esqueceria.

Abri meus olhos enquanto ainda estava no ar, aliviada por ver o muro
embaixo de mim e não na minha frente.

Foi quando eu vi um vulto perto da minha mochila, não consegui


identificar quem era, porém percebi que era alguém muito rápido.

Caí alguns metros à frente de onde minha bagagem estava, virei-me


rapidamente e corri para perto das minhas coisas, não havia mais ninguém
ali.

Abaixei-me para conferir se tudo estava ali, e estava. Levantei-me,


senti um toque no meu ombro.
“Jesus!” Gritei de susto quando vi Tyller com a mão direita apoiada no
meu ombro. “O que? O que você está fazendo aqui???”

Tyller respirou fundo, como se estivesse reunindo as palavras para me


responder.

“Você é um idiota!” Explodi. “Se você está pensando que eu vou


entrar por aquele portão agora, você está enganado.”

Ele continuava sem dizer nada, aquilo fez meu sangue ferver.

“Você quer uma luta?” Uma risada forçada saiu da minha boca.
“Acho que não, você nunca ganharia...”

Ele fechou a minha boca com dois dedos de sua mão, seu olhar
pesaroso.

“Jess, você não deveria estar fazendo isso.” Tentei falar mas ele
manteve os dedos sobre minha boca. “Aqui fora é muito diferente, você não
duraria muito tempo...”

Tirei a mão dele de perto de mim com um tapa.

“Eu vou morrer se ficar ali dentro com todo mundo olhando para mim
como se eu fosse uma louca!” Senti minha garganta trancar. “Você não
entende, nunca entenderá não é mesmo?”

Uma sobrancelha dele se ergueu.

“Não venha me falar sobre as pessoas lá de dentro, você cresceu com


eles, cresceu comigo Jess, e agora nada mais presta para você.” Ele se virou
de costas. “Eu não posso deixar você partir...”

Um sorriso apareceu em meus lábios.

“Tente me impedir.”

“Cale a boca,” Ele falou. “Você nunca me deixa terminar... Eu não


posso deixar que você parta sozinha, eu vou com você.”

Juro que no momento não entendi o significado do que ele havia


acabado de dizer, parecia simplesmente impossível. Quando eu percebi o
peso que aquelas palavras dele tinham, comecei a rir, rir
descontroladamente.

“Você é mesmo um idiota,” Joguei minhas mãos para cima. “Eu não
preciso da sua ajuda!”
“A é?” Ele se virou para mim com uma voz de ceticismo. “Quanto
dinheiro você tem para comer, se alojar? Ou pretende roubar comida
também como você fez com a faca e as outras coisas?”

Como...

“Eu cuido da sala de armas Jess, eu sei o que entra e o que sai de lá.”

Ótimo, havia sido pega no meio da minha fuga por causa de umas
facas idiotas. Bem que me falavam que o crime não compensa.

“Eu posso me virar.” Foi o que eu respondi.

“Você não duraria dois dias sozinha.”

Fiquei feliz por ele fazer uma estimativa tão alta sobre a minha
duração, no Instituto as pessoas falavam que o máximo que um meio-anjo
poderia durar no mundo exterior era meio dia, pois quando chegasse a
noite, já estaria morto.

“Eu vou com você.” Continuou ele, sua voz determinada.

Coloquei minha mochila nas costas e comecei a andar, deixando


Tyller conversando consigo mesmo.

“Onde você vai?” Falou ele, indo atrás de mim com passos pesados.
“Pegar o trem, onde mais?”

“Você tem que esperar eu pegar as minhas coisas para eu ir com


você.”

Eu dei risada, o que no mundo fazia ele pensar que ele iria comigo, ou
melhor, que eu o esperaria para ele ir comigo. Continuei andando sem olhar
para trás.

“Droga!” Ele gritou, ainda me seguindo. “Ok, meu cartão de crédito


deve bastar pra manter a gente abastecido.”

“Está frio,” Falei ainda rindo. “Você vai congelar sem um casaco
decente.”

“Você ta achando isso muito engraçado, não é?” Ele já estava ao


meu lado, com os braços cruzados. “Sorte que a linha do trem está perto.”

“Eu não pedi pra você vir junto Tyller, se você morrer de frio, a culpa
não será minha.”
“Você vai me agradecer depois, você vai ver!” Disse ele.

Eu não me lembrava da última vez que havia caminhado tanto, até


porque o Instituto não era muito grande, e não tinha muitos lugares para se
caminhar e ninguém saía pelos portões para fazer um cooper.

Eu não sabia ao certo quantos quilômetros havíamos andado, mas


com certeza tinha passado dos 10.

“Você falou que a linha do trem era perto?” Cuspi ironicamente.

“Faz muito tempo desde que eu saí para a minha última missão ok?”

Aquelas palavras de Tyller fizeram meu sangue ferver. Ele havia saído
para várias missões, nenhuma muito importante, mas as missões permitiam a
ele sair do Instituto, respirar ar puro, ver o mundo como realmente é...

E ele nem sequer lembrava da distância entre o Instituto e o trem.

“Você vai realmente fazer isso, não vai?” Perguntei respirando fundo.

“Isso o quê?” Tyller estava especialmente retardado naquela noite.

“Ir comigo para onde eu for.” O jeito que essas palavras soaram,
parecia mais um filme romântico, não a tragédia grega que aquilo estava
sendo.

“Pode apostar.” Foi o que ele respondeu.

Uns dois quilômetros depois e chegamos à tão esperada linha de trem.


A sorte nos ajudou, o trem estava lá e logo iria sair.

“Você pode jogar esse saco de carvão em outro lugar?” Um homem


gritava para outro do outro lado do trem.

“Vou enfiar ele na sua garganta se você não parar de reclamar.”

Os ânimos estavam alterados, ótimo.

Chegamos perto do homem que havia gritado. Ele pareceu nervoso


em nos ver.

“O que vocês querem aqui?”

Ele parecia ser muito rabugento, sua testa tinha mais dobras que o
caroço de um pêssego, sua barba era torta e estava suja de carvão, assim
como todo o seu rosto. Porém, ele tinha belos olhos azuis.
“Somos do Instituto há alguns quilômetros daqui...” Falei olhando-o nos
olhos. “Estamos precisando de uma carona, se for possí...”

“Não queremos nenhum daqueles arruaceiros aqui!” Ele esbravejou.


“Aquele lugar é uma seita do demônio, eu sei que é!”

Eu quis socá-lo no rosto. Tyller segurou a minha mão.

“É isso mesmo!” Falou Tyller de repente, me deixando sem entender.


“Por isso estamos fugindo de lá, nem consegui pegar meu casaco!”

Para um jogador de futebol, até que Tyller era bem inteligente. O cara
nunca nos levaria para algum lugar se pensasse que tínhamos algum tipo de
pacto com o diabo.

“O que está acontecendo aí?” O outro homem se aproximou.

Este era diferente do primeiro. Ele era alto, tinha expressões faciais
leves, e parecia ser muito simpático. Porém, também estava sujo de carvão.

“Esses dois estão dizendo que fugiram daquele antro do demônio que
tem há alguns quilômetros daqui.” Era muito estranho ouvir aquele homem
falar dessa forma sobre o lugar onde você viveu sua vida toda, mas eu não
podia fazer nada. “Eles querem uma carona.”

“Hmm,” Murmurou o outro homem, mexendo no queixo. “Sabe, está


meio apertado, há vários sacos de carvão nos vagões, você sabe, é um
trem de carga, não para transporte de passageiros.”

“Não nos importamos,” Respondi fazendo o meu melhor rosto de


sofrimento. “Só precisamos fugir daqui.”

Isso era verdade.

“Eu acho que tem um espaçozinho para vocês...”

“Seu idiota! Já estamos atrasados, você pára cada pouco pra ajeitar
essas sacas e agora quer levar bagagem a mais?” Eu daria um soco na cara
daquele velho depois.

“Para onde vocês querem ir?” O homem pediu ignorando o velho.

Tyller olhou para mim esperando que eu respondesse. Eu não tinha a


mínima idéia de onde ir.
Capítulo 7 – Lua Cheia

“Ty,” Comecei passando as mãos pelos cabelos. “Esqueci de


agradecer sobre antes.”

O trem deslizava sobre os trilhos enferrujados fazendo um barulho


ensurdecedor, mas eu não podia reclamar, ao menos estávamos em um
trem, e não graças a mim.

Tyller tinha ajudado muito, para falar a verdade, somente graças a ele
é que estávamos em um trem seguindo para “A boca do inferno”, ou como
é conhecida pelos humanos, Nova Iorque.

Hei, não me pergunte o porquê de eu estar indo para lá. Simplesmente


Tyller disse que, se eu estava procurando demônios para responder minhas
perguntas, seria melhor começar procurando por Nova Iorque que é de
onde a maioria deles vêm.

Deus que nos ajude.

“Agradecer sobre o que?” Tyller interrompeu meu devaneio.

“Sobre tudo,” joguei minhas mãos para o ar como se estivesse fazendo


uma oração. “Sobre a história da seita, eu nunca teria pensado nisso... E
também por me dizer aonde ir.”

E por estar comigo nesse momento... Porém isso, eu não falei.

Ele começou a rir, e eu fiquei sem entender nada.

Era bom que ele não estivesse debochando de mim, porque eu iria
jogá-lo para fora do trem em movimento e veria seu corpo se estraçalhar
pelos trilhos.

“Do que você está rindo?” Falei irritada. “Você sabe o quanto é difícil
pra mim... Eu nunca agradeço ninguém por nada, e quando eu resolvo
bancar a boazinha vem um idiota como você e começa a rir da minha
cara, eu sou muito boba mesmo.” Após dizer isso me virei de encontro com a
parede do vagão e escorei minhas costas em um dos sacos de carvão.

“Alguém já disse que você é muito estressada?” Tyller começou. “Eu


estava rindo dos caras, e da história da seita, não de você.”
Fazia sentido, mas não voltei a sentar de frente para ele.

“Nas outras missões foi a mesma coisa. Sempre que chegamos até eles
e dizemos que somos do Instituto o cara velho inventa uma história: seita,
tráfico de órgãos... Cada vez é uma diferente.”

“Você está me dizendo que já passou por isso?” Perguntei ainda de


cara para a parede.

Tyller não respondeu na hora.

Ouvi seus passos vindo em direção a mim, e logo depois ele estava
sentado do meu lado.

“Todos nós que saímos para missões somos orientados a pegar o trem,”
Tyller olhava para o nada, assim como eu. “Os dois homens são loucos
apesar de só um parecer. Há muitos anos eles transportam carvão, há muitos
anos eles dão carona para gente como nós, e nunca se lembram de nada.”

“Interessante.” Falei escorando a cabeça no saco de carvão. “Mesmo


assim, obrigada.”

Tyller não respondeu, simplesmente voltou para o seu lugar.

Continuei olhando para a madeira podre do vagão. Comecei a


pensar. Respirei. O que eu faria em Nova Iorque?

Nada. Tudo.

Minha cabeça estava monossilábica, não conseguia pensar em


nenhuma atitude a ser tomada, só conseguia pensar em socar o responsável
por ter machucado Milla.

Uma formiga sobe pela madeira carregando um pedacinho de pão.


Um pedaço muito pequeno para mim, mas que era pelo menos o triplo do
tamanho da formiga. Como ela conseguia? Onde ela havia arranjado
aquele pedaço de pão no meio de todo esse carvão?

Sempre me perguntei como as formigas encontravam tão


rapidamente algum doce que você deixa por aí, quero dizer, elas são tão
pequenas como podem ter um faro tão bom? E como podem ser tão
insistentes?

Milhares delas morrem todos os dias, mortas por pés humanos ou pelos
venenos que as pessoas colocam por aí para matar a “praga”, isso me faz
pensar o quão egoístas e egocêntricos os humanos conseguem ser. Tudo o
que uma formiga quer é uma migalha de pão, e mesmo assim são mortas.
“Hey, o que você tanto olha nessa parede?” Tyller falou de repente,
dando-me um baita susto.

“Nada, coisas insignificantes.” Na verdade a formiga era incrível,


perfeita e batalhadora, e naquele momento eu a admirava, mas eu não
diria isso para Tyller.

“Vem aqui ver uma coisa...”

O que eu poderia ver em um trem como aquele além de uma


formiga? Carvão?

Isso eu já tinha visto o bastante.

Mesmo assim, resolvi levantar e ir até Tyller. De repente o som do trem


nos trilhos não era mais tão ensurdecedor, acho que eu tinha me
acostumado com o barulho.

“Que é?” Falei sentando-se ao lado de Tyller, observando ele


esfregando os braços de frio.

“A lua,” ele começou com a voz baixa. “Acho que faz muito tempo
que eu não olho pra lua quando ela está cheia, bonita não é mesmo?”

A lua lembrou-me de quando eu pulei o muro de Instituto, e quando


eu ganhei a minha liberdade e ao mesmo tempo assumi uma
responsabilidade.

Olhei para a lua, ela realmente era muito bonita. Ela estava cheia
naquela noite, especialmente grande devo dizer, parecia que se você
esticasse o braço conseguiria tocá-la.

“Quanta sorte os anjos têm,” Falei deixando minha mente me guiar.


“Você sabe, poder voar, tocar a lua.”

“Eles não são tão sortudos assim,” Disse Tyller, agora abraçando as
pernas. “Eles podem tocá-la, mas não podem senti-la. Anjos não sentem
nada pelo corpo todo. Que graça tem em você tocar algo e não sentir
isso?”

Realmente não devia ter graça alguma.

Levantei-me e andei em direção a minha mochila. Tyller me


acompanhou com os olhos como se eu estivesse pulando do trem.

“O que você está fazendo?” Ele perguntou com os olhos arregalados.


Tirei um moletom da mochila e joguei para Tyller.
Ele pegou aquilo na mão e ficou analisando.

“Sua sorte que eu não costumo usar coisas muito femininas,” Disse
sentando-me de novo ao lado dele. “É grande para mim, deve ficar bom
em você e, por favor, cuide desse moletom.”

“Por quê?” Tyller falou se enfiando dentro da peça de roupa.

“É o meu favorito.”

De repente Tyller deu um soco no meu braço, como sempre


costumava fazer.

“O que foi?” Falei devolvendo o soco. “Quer que eu tome meu


casaco de volta?”

“Eu só estava pensando,” Ele virou de frente para mim. “Se você tinha
esse moletom desde o começo, por que não me ofereceu ele enquanto
caminhávamos e eu disse que estava com frio.”

Eu sorri com metade da boca.

“Eu tinha esperanças que você desistisse de me acompanhar.”

Ele virou os olhos.

“Eu devia bater em você!”

“Você sabe que não consegue,” Respondi sua impertinência com


ironia. “Sou muito mais forte que você.”

“Você se acha muito superior não é mesmo?” Ele agora tinha um


sorriso de deboche na cara.

“É você quem está dizendo isso, não eu.” Dizendo isso lancei-me para
trás em um saco de carvão.

De repente, não parecia uma idéia tão má ser acompanhada com


Tyller nessa minha missão própria. Era bom conversar com ele.

Fiquei imaginando como seria se eu estivesse sozinha. Provavelmente


nem teria conseguido pegar o trem.

Inútil, essa era a palavra que me descrevia.


E se, somente se, eu tivesse conseguido pegar o trem, não teria tanta
graça. Ter alguém com quem discutir era bom. Acho que é por isso que as
pessoas namoram.

“Fico feliz.” Deixei escapar essas palavras.

“Feliz com o que?” Maldito curioso. Mas eu não podia culpá-lo, eu


também teria perguntado se estivesse em seu lugar.

“Feliz por você não ter desistido.”

Dizendo isso, virei de lado, encolhendo minhas pernas para perto de


mim, em posição fetal.

“Boa noite Tyller.” Sussurrei baixinho, tive dúvidas se ele tinha ouvido
realmente.

“Boa noite Jess.” Ele respondeu quase em um suspiro.

A viagem seria longa, levaria pelo menos um dia inteiro.

Um dia inteiro dentro de um vagão barulhento cheio de carvão. Um


dia inteiro somente com Tyller ao meu lado. Um dia para refletir.
O paraíso era um lugar onde poucos podiam entrar. Nele estavam o
arcanjo e alguns anjos ouvindo os pensamentos da humanidade. Esse era
uma grande vantagem que os seres divinos possuíam sobre os seres das
trevas, quando Lúcifer foi expulso do paraíso perdeu o dom que só é dado
aos anjos, perdeu o dom de ler mentes, como conseqüência, seus filhos
também nasceram sem esse dom.

“Há algo de muito errado aqui,” O anjo Cam disse para Samuel. “Eu
escuto... James, o pau mandado de Heniack, ele está aprontando alguma
coisa, eu não consigo dizer o quê, ele está me bloqueando. E tem outra voz,
uma garota, não consigo tirar da minha cabeça.”

Samuel o arcanjo olhou para Cam, seu semblante não parecia


preocupado. Samuel sabia que nada acontecia por acaso e também sabia
que James não tinha poderes suficientes para fazer nada sozinho, a não ser
que fosse a mando de Heniack. Ele tomaria conta daquilo sozinho, não
havia motivos para perturbar Cam nesse momento.

“Pare de bisbilhotar James.” Samuel repreendeu Cam. “E a garota,


você irá conhecê-la na hora certa, não seja um anjo tão apressado.”

“Ela é o meu par?” Cam perguntou engolindo a última palavra a seco.

“E se for?” Samuel nunca respondia totalmente uma pergunta. “Pare


de ficar pensando besteira, vá para Sacramento, você precisa treinar mais.”

Cam, apesar de ser um anjo muito novo, tinha grande potencial,


Samuel sabia disso, também sabia que a voz que Cam tanto ouvia na
cabeça era sim do seu par. Porém, Cam só deveria saber disso no momento
certo, no momento que a garota estivesse preparada para assumir o seu
lugar no mundo, o seu lugar entre os anjos.

Sem mais perguntas, Cam bateu as asas com impaciência para voar
até Sacramento, o mistério dos arcanjos o irritavam completamente, mas ele
sabia que não havia nada a ser feito, tudo acontecia no momento que
devia acontecer e blá, blá, blá. A única coisa que ele podia fazer era
esperar, com muita paciência, que seu destino fosse mais excitante do que
ser apenas um mensageiro de segunda classe... Enquanto o dia não
chegava, ele iria bisbilhotar a mente de James um pouco mais, Samuel
podia até pensar que aquilo não era nada, já que seres ruins só pensam em
coisas ruins, mas algo dizia a Cam que aquele pensamento em especial
oferecia algum risco a todos, algum risco, talvez, mortal.
Capítulo 8 – De onde os anjos vêm?

A noite foi longa, não consegui dormir direito.

O barulho do trem parecia ter impregnado no meu cérebro e eu havia


descoberto que os dois homens tinham hábitos noturnos.

Eu não sei ao certo o que eles ficaram fazendo a noite inteira, mas eles
gritaram. Riram. Provavelmente beberam.

Graças a Deus que não estávamos em um carro, se aqueles dois


tivessem que dirigir algo de verdade, provavelmente espatifariam o carro na
primeira árvore que tivesse os galhos secos.

Tyller, para a minha surpresa, não roncava. O que me deixou muito


feliz.

Que horas devem ser? Minha cabeça não desligou um momento se


quer durante toda a noite, e agora que os primeiros raios de sol tocavam o
trem, ela parecia ter entrado em um estado caótico de pensamentos.

Olho para Tyller. Me lembro de uma criança do Instituto. Christtian, o


nome era Christtian, as primeiras semanas dele no Instituto foram difíceis, ele
não conseguia se adaptar e, frequentemente, dormia sobre as carteiras.

Tão sereno dormindo, uma peste quando acordado.

Igualzinho a Tyller.

Você pode me chamar de egoísta, mas se eu não conseguia dormir,


também não deixaria Tyller ficar dormindo ao meu lado.

“Hey Bela Adormecida,” Falei cutucando a cabeça dele. “Hora de


acordar.”

Tudo que ele disse foi:

“Hmmmm...”

Bom, não sei realmente se aquilo poderia ser considerado uma fala,
estava mais para um gemido.

“Acorda Tyller, o sol já nasceu!”


“Jess devem ser 6 da manhã.” Tyller falou erguendo a cabeça.

“E...?” Continuei batendo na cabeça dele. “Acorda, preciso de


alguém para tomar café da manhã comigo.”

“Nem temos café!” Ele falou virando a cabeça para outro lado, e
voltando a dormir.

OK! Pensei comigo mesma. Se ele não queria comer, pois então que
não comesse. Eu iria comer minhas barras de cereal deliciosas, e ele que
passasse fome.

Andei até a minha mochila e peguei uma barra de cereal.

Abri a embalagem e comecei a mastigar. Eu não sei se era porque eu


estava com fome, mas aquela barra parecia melhor que o normal.

Sentei-me na beirada da porta aberta do trem, fiquei vendo a


paisagem passar sobre meus pés enquanto eu saboreava a barra de cereal.

“Lindo não é?” Uma voz fez-me dar um pulo de susto.

Olhei para todos os cantos mas não vi ninguém, até que virei meus
olhos para cima.

Sentado em cima do trem estava, nada mais nada menos que, um


anjo.

Eu nunca tinha visto um assim, tão de perto, não tinha percebido o


quão grande anjos poderiam ser.

Aquele anjo em especial parecia enorme, tinha as asas abaixadas de


forma que a sua resistência com o vento diminuísse, elas formavam uma
concha ao redor dele, uma concha dourada que escondia grande parte
das suas vestimentas.

Seus cabelos não eram loiros como eu havia imaginado que todos os
anjos possuíssem. Ele era ruivo e seus olhos eram de um azul cintilante,
daqueles que você reconheceria como azul mesmo no escuro.

“Você quase me fez cair do trem,” Falei assim que meu


deslumbramento diminuiu. “Agora vou ter anjos me seguindo, é isso?”

Ele abriu um grande sorriso o que me fez gostar dele imediatamente.


Fiquei refletindo se todo anjo é capaz de encantar as pessoas daquela
forma.
“Não menina, só tenho uns recados para você.” A voz dele era como
um estrondo vindo do céu, porém um estrondo que lhe dava confiança.

“Então diga.” Respondi mordendo a barra de cereal.

“Você fugiu do Instituto e ninguém ficou muito feliz com isso, porém, eu
tenho ordens expressas para manter você protegida o quanto for possível.”

“Não preciso da proteção de ninguém,” falei tentando parecer


convincente. “Derrubei um dragão sozinha.”

“Você não deveria ser tão pretensiosa querida, se você me irritar posso
mandar você e seu amigo de volta para o Instituto nesse instante, só me
exigiria um farfalhar de asas.” Seu semblante não era tão duro quanto suas
palavras.

Então percebi que mesmo se eu o irritasse ele não me levaria de volta,


ele estava ali pois precisava de algum favor meu.

“Mas você não me levará certo?” Disse oferecendo um pedaço de


cereal. “Me diga o que você realmente quer.”

O anjo então abriu as asas, e eu pude vê-las em toda a sua extensão.


Eram enormes, como ele. As penas externas eram douradas e as internas
eram brancas como algodão.

Ele estava vestido com uma armadura, como se fosse um guerreiro


medieval, não um anjo.

“Somos guerreiros de Deus menina, não somos tão delicados quanto


você pensa.”

Ele podia ler meu pensamento?

“Sim.”

“Ah ótimo saber disso.” Falei com uma voz sarcástica.

“Eu gostei de você garota,” o anjo desceu de onde estava e veio


para dentro do vagão, sentando-se ao meu lado. “Eu não preciso ler seus
pensamentos para saber o que você está querendo, você logo diz. Somente
fala o que pensa.”

“E eu falaria o que?”
“Existem pessoas que pensam uma coisa e dizem outra totalmente
diferente, minha cara,” disse ele fechando as asas novamente. “E devo lhe
dizer que a maior parte delas faz isso.”

“Você não deveria ter saído do Instituto.” Adicionou ele com uma voz
pesarosa.

“Um dragão não deveria ter entrado lá sem ser convidado.” Rebati.

O anjo olhou-me como se estivesse me estudando por um breve


segundo e então falou.

“E ele não entrou,” Seus olhos agora possuíam dor. “Ele foi convidado.”

Aquela era a confirmação que eu precisava. Minha missão fora do


Instituto, afinal, tinha sentido.

“É por isso que eu não vou te mandar de volta para onde você veio.”
Ele falou. “Não até você descobrir direito o que Heniack está planejando.”

“Quem é Heniack?” Perguntei dando a última mordida na barra de


cereal.

“O demônio responsável pelos dragões...”

Fiquei esperando ele continuar com a resposta, mas ele não o fez.

“E por que vocês não descobrem isso e pronto? São tão grandes,
guerreiros e tudo mais, com um soco tenho certeza que você derrubaria
qualquer dragão.”

“Tens razão menina,” Normalmente eu odiava que me chamassem de


menina, porém aquele anjo parecia dizer aquilo de forma carinhosa. “Eu
poderia matar um dragão só com o empalar da minha espada, porém... Eu
não consigo aproximar-me de um, não posso sair a noite que é quando as
criaturas noturnas saem. Mas você pode.”

“E o que supostamente eu devo fazer?” Perguntei antes que ele


pudesse ler meus pensamentos.

“Ir para Nova Iorque e conversar com Amanda Petterson.”

Aquilo, definitivamente, me confundiu. Eu devia ir para a boca do


inferno e conversar com uma humana?

O que uma humana poderia entender disso?


“Nada,” ele respondeu os meus pensamentos. “Porém, você está
precisando de dinheiro e ela tem para dar a você. Ela vê o que os outros
não vêem e entende o que não entendem, ela poderá ajudá-la de diversas
formas se você agradar a ela.”

Um momento de silêncio para eu assimilar as informações.

“Diga a ela que Samuel Orjacan pediu para que a procurasse, ela
entenderá. Agora menina, que já dei meu recado, devo ir. Seu amigo
acordará em 32 segundos e eu recebi ordens para que só você me visse.”

“Mas e onde eu...” Comecei a falar mas ele me interrompeu.

“Até logo menina, quando tudo estiver escuro não esqueça da luz que
há dentro de você.”

E assim o anjo se foi, batendo as asas como se fosse um pássaro até


desaparecer entre as nuvens.

Fiquei a olhar para o céu, perdendo a noção do tempo que havia se


passado.

“Ai cara, tive um sonho muito estranho.” Tyller finalmente havia


acordado.

Algo me dizia que só haviam se passado 32 segundos.

Fingi não ter ouvido a parte do sonho. Na verdade, fiquei com medo
de perguntar e ouvir a seguinte resposta: “Sonhei com você falando com um
anjo ruivo e enorme.”

Tyller fazia muito barulho quando acordava. Passava uns 20 minutos se


espreguiçando e entre um alongamento e outro ele fazia uns barulhos
estranhos com a boca.

“Sabe do que me lembrei agora?” Ele disse fazendo sua última seção
de alongamento.

“Hum?” Foi mais um gemido do que uma pergunta.

“Da carta que você escreveu e deixou no Instituto...”

Mas como ele sabia da carta? Eu tinha deixado no painel de recados


da Milla.
“Você invadiu o meu quarto antes de me seguir?” Perguntei com a
voz cheia de maus sentimentos. “O que você pensa... Onde você deixou o
bilhete?”

“Calma gata,” Tyller falou abrindo um sorriso. “Eu notei a falta de facas
na sala de armas, então fui verificar se você estava no quarto, e você não
estava. Então eu vi aquele bilhete lá, e li. Depois coloquei de volta no lugar e
saí correndo atrás de você.”

“Você pôs de volta no lugar?” Perguntei com alívio.

“Do jeitinho que você tinha deixado.” Respondeu ele.

Agora ele mexia na minha mochila a procura de alimento.

“Onde está a comida de verdade?” Ele falou pegando uma barra de


cereal na mão. “Isso aqui nem bovino não come!”

“O que tinha o meu bilhete?” Interrompi a reclamação dele.

Ele então, soltou a mochila e sorriu, sorriu de uma forma marota que,
juro para vocês, me deixou preocupada. Quando Tyller fazia aquela cara só
poderia significar duas coisas...

1 – Ele estava interessado por mim e queria me beijar, ou;

2 – Ele achava que eu estava interessada por ele, e ele queria me


beijar.

Depois de anos de convivência vendo Tyller pegar uma garota por


final de semana e depois abandoná-la por aí só porque “a garota não era
interessante o suficiente”, fez meus sentidos se alarmarem toda vez que Tyller
fazia cara de garanhão ou que chegasse perto demais.

Eu gostava muito dele, isso é verdade, mas era um gostar de amizade


você entende? Era bom abraçar Tyller quando eu precisava de um abraço,
era bom abraçá-lo sem compromissos e depois, ele era um cara que dava
conselhos muito bons quando não estava tentando parecer um capitão de
time idiota.

“Nada,” Ele interrompeu meus pensamentos. “Eu só gostei do que


você escreveu.”

“O que eu escrevi?” Eu faria ele falar, nem que para isso tivesse que o
amarrar e ameaçar jogá-lo para fora do trem.
“Você disse que eu sou muito melhor que um capitão de time idiota.”
Ele falou se aproximando de mim. “E também disse que me ama.”

Eu havia escrito aquilo?

Oh Deus, era verdade, eu tinha escrito: “Milla, Ty eu amo vocês...”

“Eu, eu...” Eu não sabia o que dizer.

“Relaxa Jess, eu entendi o que você quis dizer.” Cada vez que ele se
aproximava eu me afastava.

“Entendeu?” Como ele havia entendido se nem eu não sabia o


porquê que havia escrito aquilo.

“Você ama a mim como ama Milla,” Nesse momento eu parei e deixei
que ele chegasse mais perto. “Eu sei que é só amizade, mas mesmo assim,
gostei de saber que você me ama de alguma forma.”

Tyller então me abraçou, e eu fiquei sem palavras.

Droga, eu odiava ficar sem palavras.

“Uhum.” Foi o que eu consegui proferir.

Ele me soltou de seu abraço aconchegante e então sorriu.

“Fala sério, tanta coisa para pegar naquela cozinha e você me pega
barras de cereais, pensei que você fosse mais inteligente que isso Jess.”

Naquele momento eu soube que o assunto da carta tinha acabado.

“Mais inteligente que isso?” Falei apontando para a mochila. “Barras


doces e nutritivas que não perecem tão facilmente. Você queria que eu
pegasse o quê? Uma torta de chocolate? Antes de eu chegar no trem ela já
estaria podre!”

Ele então pegou uma das barras, abriu e mordeu.

Eu poderia estar enganada, mas o rosto de Tyller parecia demonstrar


que ele tinha gostado do que havia provado.

“E então?” Perguntei eu, cruzando os braços sobre meu peito.

“Ah, tanto faz.” Ele respondeu não dando o braço a torcer.


“Estamos chegando?” Perguntei enquanto ele comia uma deliciosa
barra de cereal.

“Onde?”

Ou Tyller tinha faltas momentâneas de léxico muito frequentemente ou


ele simplesmente gostava de me irritar.

“Para onde estamos indo Tyller?” Perguntei colocando a mão no rosto


e respirando fundo.

Ele sorriu.

“Amanhã cedo chegamos com toda certeza.”

Realmente, ele só gostava de me irritar.


Capítulo 9 – Quanto mais se pensa, menos se sabe.

Nascida de uma mistura nada convencional a garota cresce e


aprende cedo que não precisa de ninguém para sobreviver, ninguém para
se apegar, ninguém para viver por ela.

É uma pessoa de poucos amigos e muita desconfiança. Sua criação a


ensinou a ser assim.

Nada é o que parece, e tudo de ruim que pode acontecer, uma hora
ou outra, acontecerá.

Da desconfiança ela tirou a sobrevivência, sobrevivendo no mundo


obscuro ela ganhou o respeito de todos, não se importava com o que os
outros pensassem dela desde que não interrompessem a sua vida e nem
tentassem mudá-la.

Rara é a palavra que a define. Não há nenhum outro no mundo igual


a ela, na realidade, seu nascimento foi um atentado contra a regra onde,
nenhum meio-anjo poderia ter filhos com outro anjo, é uma mistura perigosa,
poderosa demais. E os inimigos sabem disso.

Eles nunca parariam se descobrissem que a menina é especial, não


parariam até que ela estivesse morta.

E Tyller sabia disso.

Soube disso desde o primeiro momento que Jess contou a ele a


verdade sobre a sua origem. Ele compreendeu então a atitude da Sra.
Vânia em “prender” sua filha no Instituto. Soube também que Jess, depois do
atentado com o dragão, pensaria em fugir e resolver tudo com as próprias
mãos. Era da natureza impulsiva dela, e Tyller sabia que não conseguiria
convencê-la de permanecer no Instituto em segurança.

Quando ele notou o sumiço de facas e canivetes na sala de armas,


sabia o que tinha acontecido, só precisou ir até o quarto de Jess para
confirmar suas suspeitas.

Com as suspeitas confirmadas, ele sabia o que teria de fazer.

Ir junto com ela para protegê-la, nem que isso custasse sua própria
vida.
Ele teria de fazer isso não só por Jess ser única no mundo inteiro, isso
com certeza era um fato muito importante, contudo, ele tinha que protegê-
la por ela ser importante demais para ele.

Ele não se via em um mundo onde Jess não existisse, e ele nunca
entendeu direito esse sentimento. Tyller sabia que existia uma grande
amizade entre eles, e que sempre poderia contar com Jess para o que fosse
e vice-versa, porém o sentimento que ele teve quando percebeu que a
durona Jéssica tinha fugido, foi algo além do seu próprio entendimento.

Sentiu-se como se um buraco negro em seu peito estivesse sugando


toda a sua vitalidade para um lugar onde nem o mais inteligente físico sabia
onde era, se sentiu vazio e morto, sim, morto.

Ficar no Instituto não teria mais sentido se Jess não estivesse lá, e ele só
percebeu isso quando estava a ponto de perdê-la.

Será que isso era amor?

Não, não poderia ser.

Tantas garotas caídas por ele naquele lugar e ele ia se apaixonar justo
pela qual não o via como outra coisa a não ser um amigo. Seria muito azar.

Mas quem entende essas coisas do coração?

Se alguém algum dia já compreendeu o coração por completo, esse


alguém morreu levando consigo o segredo.

Maldito egoísta, isso sim!

Poderia ter evitado todas as dores de amor, dor de cotovelo, paixões


platônicas, e loucuras que os maníacos que dizem “amar demais” cometem.

Se Tyller estivesse mesmo apaixonado por Jess, seria a maior prova que
o mundo é um lugar totalmente injusto.

Mas ninguém nunca disse que a vida é fácil. Na verdade, todas as


crianças que cresceram no Instituto sabiam disso mais do que ninguém.

Não é justo um demônio influenciar um pai de família até o ponto que


este mate todos os filhos e depois morra de arrependimento na cadeia,
sabendo que o arrependimento não mudará nada.

Muito menos justo são as guerras que acontecem o tempo todo entre
os humanos por motivos absurdos. Qualquer objeto insignificante é motivo
para briga. As pessoas brigam para ver quem é melhor no trabalho, quem é
melhor amigo, enfim, para ver quem é melhor, e não percebem que, se elas
aceitassem uns aos outros como eles realmente são, não só a vida se
tornaria mais justa, como o mundo se tornaria melhor.

A tolerância resolveria muitos dos problemas mundiais. Mas como nem


todos possuem tal qualidade, as crianças do Instituto continuariam saindo
por aí para tentar fazer do mundo um lugar melhor.
Capítulo 10 – Contratando uma advogada.

Tédio foi o que senti durante o resto da viagem.

Os dois homens que estavam no comando do trem tiveram outra


briga, dessa vez mais barulhenta do que a outra. Cheguei a pensar que um
jogaria o outro contra os trilhos do trem em movimento.

Quando eu saísse do trem, pediria a eles o porquê deles brigarem


tanto.

Eu e Tyller passamos o resto da viagem sentados nas sacas de carvão


e rindo um da cara do outro.

Fizemos aquela brincadeira onde um tem que olhar para o outro e


permanecer sério, quem conseguir ganha o jogo.

Como não tínhamos muito o que apostar, estávamos apostando sacas


de carvão. Claro que ninguém reivindicaria o prêmio, nós não iríamos sair
pela cidade com sacas de carvão nas costas, ou melhor, eu não iria sair por
aí com sacas nas costas, já que eu ganhei todas as vezes.

O tempo passou relativamente rápido, era bom me distrair um pouco,


assim eu parava de pensar no que poderia dar errado.

A única coisa que eu não conseguia tirar da minha cabeça era Milla.

Como será que ela estava naquele momento? Ela já teria saído da
enfermaria?

E o mais importante...

Ela conseguiria perdoar a minha fuga?

Milla era uma garota com o coração muito bom e no Instituto sempre
estávamos juntas.

Eu sabia que ela era muito mais sentimental que eu, então se para
mim estava sendo difícil a nossa distância, quanto estaria sendo para ela?

Eu realmente esperava que ela compreendesse a minha missão


particular. Se houvesse outro jeito, eu nunca a teria deixado sozinha lá,
nunca teria fugido sem dizer um adeus decente.
Ui! Essa palavra “adeus” me dá arrepios, talvez fosse melhor usar um
“até logo”, é... Assim está bem melhor.

“Adeus” faz você pensar que não voltará mais e eu realmente


pretendia voltar.

Chegando em Nova Iorque meu coração começou a disparar.

É aqui, pensei comigo mesma.

Vagarosamente o trem foi parando. Quando o trem estava totalmente


inerte, os dois homens vieram nos despejar.

“Agora caiam fora seus garotos sarnentos!” O homem rabugento não


tinha melhorado de humor desde o início da viagem. “Peguem suas trouxas
e se mandem para bem longe antes que eu me arrependa de ter sido tão
bondoso.”

Ele podia partir para cima de mim a hora que quisesse. Eu poderia
acabar com ele com uma mão, não, com as duas mãos amarradas nas
costas. Um chute no rosto dele era o suficiente para deixá-lo inconsciente
por um bom tempo.

“Cale a boca animal!” O outro interveio. “Garotos, aqui é o mais perto


da cidade que podemos deixar vocês, não há trilhos lá no meio.”

“Obrigada por tudo,” Eu falei ignorando o rabugento. “Se houvesse


como pagá-los...”

“Você poderia...” Começou o mais velho antes do homem simpático


pará-lo.

“Não diga uma coisa dessas, esse cara aqui é um bêbado. Ele
cobraria tudo em bebidas.”

Tyller deu risada.

A situação não me parecia muito engraçada, mas ele deve ter se


lembrado de algo, outra hora eu perguntaria.

“Agora vão crianças, boa sorte no que vos espera.”

Eu e Tyller acenamos enquanto os dois homens voltavam para o trem.

Como eles podiam se esquecer toda vez dos alunos do Instituto?


“O homem mais velho,” Tyller começou a falar com um sorriso torto na
boca. “Sempre pede bebida como pagamento.”

“Era disso que você estava rindo?” Perguntei enquanto andávamos


em direção a enorme cidade.

Ele simplesmente confirmou com a cabeça.

Andamos até chegar no maior complexo de carros e pessoas que eu


já tinha visto na vida. Claro que isso é óbvio, eu nunca tinha visto nada
parecido no Instituto.

Confesso a vocês que o primeiro sentimento que eu tive foi de


encantamento, até ver o que andava no meio das pessoas.

“O que são aquelas coisas nas sombras?” Perguntei, já imaginando a


resposta.

“Não fique olhando diretamente para eles,” Tyller falou me puxando.


“Eles podem perceber que nós os vemos.”

“São demônios, não são?” Perguntei abaixando a voz.

Tyller confirmou com a cabeça.

“Mas não os chefes,” Ele afirmou. “São simples operários, os chefes


nunca saem da toca.”

Eram muitos, em cada sombra que havia na cidade tinha demônios,


você pode imaginar a quantidade?

Cada sombra de um carro, de um prédio, todas, em todas havia pelo


menos um.

“Nunca imaginei que fossem tantos.” Falei em um sussurro.

Tyller pode ver pela expressão do meu rosto que eu estava


decepcionada. Tantos demônios e nenhum anjo por perto. A humanidade
realmente corria riscos.

“Não se preocupe,” disse Tyller me reconfortando. “Esses demônios são


só arruaceiros, não chegam a fazer coisas realmente ruins. Eles bagunçam
um pouco a cidade, estouram um hidrante as vezes, mas nada que você
precise se preocupar, a polícia geralmente resolve essas coisas.”
Era bom que alguém não estivesse tão preocupado quanto eu.
Mesmo se aqueles demônios fossem moscas e não fizessem nada eu teria
ficado chocada, eram muitos.

“Como você pode dizer isso?” Perguntei pra Tyller olhando-o nos olhos.
“O inferno simplesmente subiu para a terra e eu sou a única que me
importo? Não tem um puto de um anjo aqui pra cuidar dessa gente e
ficavam me mantendo naquela porcaria de Instituto!”

“Anjos tem coisas mais importantes para fazer Jess...”

Aquelas palavras me indignaram profundamente.

O que nesse mundo de Deus era mais importante que proteger os


humanos?

“Tipo o quê? Lustrar a armadura?” Perguntei indignada.

“Anjos não tem armadura...” Ele respondeu sarcástico. “Os com


armaduras são os Arcanjos, esses só cuidam de assuntos superiores,
provavelmente você nunca vá ver um pessoalmente.”

Samuel Orjacan era um Arcanjo.

Claro, Orjacan... Como eu não vi isso antes? Samuel me deu um


sobrenome falso, onde as letras formavam um perfeito anagrama de
Arcanjo.

Se Arcanjos só tratavam de assuntos superiores significava que o


assunto de Samuel comigo foi superior? Então eu procurar a tal de Amanda
era mesmo importante.

“Eu tenho que encontrar com uma pessoa,” Falei de repente,


surpreendendo Tyller. “Uma pessoa que alguém me disse que poderia nos
ajudar.”

“Com quem você andou conversando?” Tyller parecia desconfiado.

“Com ninguém que você conheça.” Tentei ser dura, para ver se o
assunto acabava por aí. “Precisamos achar uma cabine telefônica.”

Dizendo isso eu comecei a andar em linha reta, como se não houvesse


nada ao meu redor.

“Jess,” Tyller me chamou e eu olhei para ele. “Tem uma cabine


telefônica aqui do lado, na esquina.”
Ok, ele tinha acabado com a minha saída trágica, mas era bom saber
que a cabine telefônica estava mais perto do que eu imaginava.

Amanda Petterson, o que essa mulher tinha de tão importante?

Chegando na cabine telefônica, senti-me aliviada em ver uma lista


telefônica, era justamente o que eu estava procurando.

Tyller ficou me olhando enquanto eu passava rapidamente as páginas


da lista telefônica.

De repente eu parei de folhar.


“Achou o que queria?” Tyller perguntou para mim com uma voz
cansada.

“Sim,” eu respondi. “Amanda Petterson é quem a gente precisa


procurar e isso me dá uma breve noção de onde ela está.”

Mostrei para ele a página onde a lista estava aberta, lá havia um


anuncio de meia página:

AMANDA PETTERSON’S ADVOCACIA


Broadway, New York
Próximo ao MC Donalds

“Eu não tenho dinheiro suficiente para contratar uma advogada.”


Tyller falou sorrindo, com a mão no bolso.

“Você não precisa ter tanto dinheiro, só o suficiente para um táxi.” Eu


sorri de volta para ele. “É por isso que deixei você vir, você tem dinheiro.”

Tyller agora ria.

“Vocês mulheres só querem o nosso dinheiro mesmo,” Ele falou se


dirigindo até a beira da rua e erguendo a mão para chamar um táxi. “E eu
achando que você me amava de verdade.”

“Você nunca vai conseguir um táxi com a mão levantada assim...”


Falei enquanto me dirigia até a rua.

Carros iam e vinham como se fossem hemácias correndo pelas veias,


os táxis estavam com muita pressa, a maioria deles já tinha clientes dentro,
aquilo era uma loucura e de repente uma forte dor de cabeça me atingiu
como se uma bigorna de 200 kg tivesse caído sobre minha cabeça.

“Droga,” Falei colocando uma mão na cabeça e a outra no ombro


de Tyller. “Eu só quero um táxi.”

Milagrosamente, um táxi parou na nossa frente, e o mais estranho... A


dor de cabeça passou.

“Viu, você disse que eu nunca conseguiria um táxi com o meu aceno.”
Tyller se divertia com a sua conquista.

Apesar de eu não saber se tinha sido realmente ele que tinha


conseguido o bendito táxi.

Eu simplesmente virei meus olhos e entrei no táxi. Tyller me


acompanhou.

“Escritório de Amanda Petterson na Broadway,” Falei ao motorista. “E


por favor, vá depressa.”

Eu estava impaciente. Queria conhecer logo Amanda, algo me dizia


que ia ser um encontro interessante.

E depois, qualquer ajuda que ela pudesse nos dar seria um grande
passo.

“O que você quer com ela?” Tyller perguntou curioso.

“Primeiramente, um banho!” Falei escorando-me no encosto do táxi.


“Um banho urgente.”
Capítulo 11 – Terras neutras

O taxista nos levou até a Broadway rapidamente, o mais interessante é


que ele nos deixou bem enfrente ao escritório de Amanda Petterson, pelo
jeito ela era uma pessoa bastante conhecida, e rica, levando em conta o
tamanho do prédio dela.

Era um prédio de três andares com um designe muito futurista. A maior


parte do prédio era cromada, onde não havia metal havia vidro, eram
vidraças espelhadas enormes, permitindo que só as pessoas que estivessem
lá dentro vissem o que se passava do lado de fora.

Descendo do táxi eu observei enquanto Tyller pagava pelos serviços


do taxista. Tyller havia trazido bastante dinheiro, possivelmente dinheiro para
manter nós dois.

“Você veio preparado não é?” Perguntei quando ele apareceu ao


meu lado.

“Eu pensei que fossemos precisar.”

E ele havia pensado certo.

Eu não tinha dinheiro algum, somente um cartão de crédito de uma


conta que, provavelmente também não tinha dinheiro. Eu não tinha
pensado em como me manter na cidade grande antes de fugir e,
sinceramente, não estava muito preocupada com essas coisas.

Quero dizer, pessoas sobrevivem sem nada o tempo todo, só em


busca de favores e essas coisas, eu acreditava que eu poderia viver um
tempo assim. Mesmo porque eu não pensava em ficar fora muito tempo,
somente tempo o suficiente para entender o que estava acontecendo com
o equilíbrio entre céu e inferno, quem tinha convidado o maldito dragão
para entrar no Instituto e, cara, eu estava realmente realizada por ter saído
daqueles portões pelo menos uma vez na vida.

Na entrada do prédio havia dois seguranças, daqueles enormes que


você vê nos filmes.

Ao nos aproximarmos eles foram para frente da porta como se


quisessem impedir nossa entrada.

“Preciso falar com Amanda Petterson.” Falei com uma voz decidida.
“Vocês tem hora marcada?” Pediu o maior deles, aquele cara devia
tomar esteróides.

Hora marcada, quem precisava de hora marcada? Um arcanjo tinha


mandado eu falar com a mulher, queriam ordem maior?

“Ela está me esperando.” Falei com a maior cara-de-pau.

Então o outro segurança puxou um celular do bolso e ligou para ela.

“Qual o seu nome garota?”

“Jéssica,” Respondi firmemente. “Diga a ela que Samuel Orjacan me


mandou.”

O homem no mesmo instante desligou o aparelho celular.

Com os olhos arregalados ele se afastou para que eu pudesse passar


pela porta.

Interessante como os dois brutamontes ficaram impressionados


somente com o nome do arcanjo. Quem sabe os seres do céu impunham
algum respeito mesmo na Terra.

“Quem é Samuel?” Tyller perguntou para mim enquanto entrávamos


no prédio.

“Ninguém importante,” Menti. “O amigo que me disse para vir aqui.”

Sem mais perguntas, percorremos o grande salão do prédio em passos


longos.

Ao lado do elevador havia uma placa com a planta do prédio,


dizendo onde era o escritório particular de Amanda.

Fiquei impressionada pelo brilho da placa, parecia feita em ouro, e


refletia perfeitamente tudo que estivesse a sua frente como se fosse um
espelho.

Dei uma olhada na minha aparência, não estava tão má quanto eu


pensava, minha calça de couro parecia que recém tinha sido colocada e
não que havia passado uma noite inteira em cima de sacas de carvão.

“Arranjando um tempo para a vaidade?” Tyller perguntou com um


sorriso maroto.
“Checando a minha calça,” Respondi prontamente sem desviar o
rosto da placa. “Se algo acontecesse com ela, eu não sei o que seria de
mim.”

Terceiro andar.

No terceiro andar estava o escritório da mulher misteriosa.


Agradeci por ter um elevador naquele prédio. Eu já estava cansada
de caminhar, quanto mais subir escadas.

“Terceiro andar.” Repeti, agora em voz alta.


Apertei o botão para chamar o elevador e Tyller e eu ficamos
aguardando.

O elevador desceu rápido. Entramos.

Dentro do elevador também havia detalhes dourados. Com certeza


Amanda tinha mania de grandeza.

O elevador subiu assim como o frio da minha barriga.

Eu estava ansiosa, mas não deixei isso transparecer para Tyller, ele iria
me encher de perguntas e tudo mais.

Chegando ao terceiro andar, nos dirigimos até a última sala, que era a
de Amanda.

Curiosamente, as outras portas não tinham placas de identificação,


somente a de Amanda, o que dava a impressão que o prédio todo estava
desocupado, que só havia ela lá.

Talvez fosse isso mesmo, eu não tinha visto nenhuma alma viva, muito
menos morta, desde que entramos no prédio. Não tinha um recepcionista,
nada. Somente aqueles dois seguranças na porta principal.

O nome dela também estava escrito em dourado. O que me fez


lembrar da armadura do arcanjo.

Antes que eu pudesse bater na porta, ela estava aberta, e uma


mulher ruiva, que exaltava poder estava ao lado dela.

“Só uma pessoa pode entrar,” ela ordenou. “Não é necessário mais de
duas pessoas para uma conversa fluir, mande o garoto ficar fora.”

Olhei para Tyller para ver se ele tinha entendido o recado.


Ele me olhou com uma cara de: estarei esperando aqui quando você
sair. Então eu entrei na sala.

Era, sem sombra de dúvidas, a sala mais esquisita que eu já havia visto.

Metade da sala estava pintada com tinta preta, e metade com tinta
branca, mas ambas as partes tinham adornos dourados.

A cadeira onde Amanda sentava estava bem entre a linha do branco


com o preto.

“Olá,” Disse ela me estendendo a mão, parecendo bem mais


simpática dessa vez. “Eu sou Amanda Petterson.”

“Jéssica,” Respondi devolvendo o aperto de mão.

“Jéssica de quê?”

“Somente Jéssica, não me lembro de ter um sobrenome minha vida


toda.”

“O que você disse para os seguranças para eles deixarem vocês


subir?”

Amanda Petterson era uma mulher bonita. Ruiva, alta e de olhos azuis
que enxergavam no mais profundo da sua alma. Você poderia sentir o
poder que vinha dela mesmo se estivesse longe. Parecia não ter problemas
em falar com as pessoas, o que ela falava era lei.

“Disse a verdade,” Respondi sentando-me em uma das poltronas de


couro branco. “Disse que Samuel me mandou.”

“O arcanjo não é?” Disse ela, mas como uma afirmação do que como
uma pergunta.

Então ela sorriu.

“E o que você quer de mim?” Perguntou ela cruzando os braços na


frente do peito.

“Ele disse que você poderia me ajudar,” Fiquei impressionada por


minha voz continuar firme. “Um dragão entrou no Instituto, machucou
pessoas, gostaria de saber quem é o responsável.”

Ela então sentou-se na poltrona que ficava entre as partes branca e


preta.
“Ele te disse quem eu sou?”

Balancei a cabeça negativamente.

“Típico dele,” Ela respondeu sorrindo. “Bom Jéssica, você sabe que
existe o céu, o inferno e um equilíbrio entre os dois. Eu faço parte do controle
do equilíbrio, então resumindo... Sou neutra. Meu trabalho é manter a ordem,
tanto anjos quanto demônios devem informar tudo o que acontece a mim.
Eu não posso favorecer nenhum dos lados, mas também não posso deixar
que um lado seja injustiçado, você entendeu?”

“Sim,” Respondi. “Apesar de achar ridícula a idéia de alguém ser


neutra e conversar com demônios de boa.”

Eu e minha boca grande. Apesar da minha ofensa, Amanda sorriu.

“Depois de um tempo você se acostuma,” Falou ela, mexendo nos


longos cabelos. “Então se você veio do Instituto, você é a tal de Jess, filha da
diretora Vânia que fugiu de lá, estou certa?”

“Como você...” Ela não esperou eu terminar minha pergunta.

“Eu sei de tudo querida, sabia seu nome antes de você me contar,
mas achei melhor perguntar para iniciar uma conversação mais informal. O
negócio é, você nem deveria estar viva. Quando fiquei sabendo que Vânia,
que já tem metade de sangue angelical dentro dela, tinha ficado grávida
de outro anjo, dei a ela duas opções: 1 – Ela se desfazia de você antes que
isso interferisse no equilíbrio; 2 – Ela te segurava presa no Instituto para que
você nunca pudesse interferir no equilíbrio. Levando em conta que você
está aqui fora, acho que ela não conseguiu cumprir nenhuma das minhas
propostas.”

Aquela mulher falava com simpatia e ao mesmo tempo frieza, sabia


mais sobre minha vida do que eu mesma e pelo modo que falava, não se
importava muito com ela.

“Então o arcanjo me mandou aqui para você me dizer que eu deveria


estar morta?” Perguntei fuzilando-a com os olhos. “Você quer saber? Eu
estou pouco me lixando para o equilíbrio! Cresci e fui ensinada a matar tudo
o que pode prejudicar a raça humana, não tive infância, minha vida sempre
foi como estar em um campo militar, sendo treinada, cada vez mais e mais
até atingir a perfeição. Odeio gente morna como você, que não toma lado
nenhum e nesse momento, odeio aquele arcanjo também! Você acha que
eu não sei que eu deveria estar morta? Pois bem, eu sei. Mas também sei
que me acham importante o suficiente para me manter viva! Eu posso fazer
coisas que nem o arcanjo consegue, mas se isso não serve para você me
ajudar, então eu vou embora.”

“Calma garota, sente-se agora,” Amanda disse enquanto eu me


levantava da poltrona. “Eu disse para você que sua mãe não cumpriu
nenhuma das minhas condições, se ela tivesse cumprido, você deveria estar
morta. Mas como não foi o que aconteceu e os tempos mudaram, fico feliz
que você esteja aqui falando comigo nesse momento.”

Eu não entendia mais nada, primeiro ela havia dito que eu não devia
nem existir, depois falou que estava feliz por eu ainda existir. Amanda
Petterson teria que se decidir.

“Você vai me ajudar ou não?” Perguntei impaciente.

“Claro, em nenhum momento eu disse que não ajudaria.” Disse ela


abrindo um sorriso. “Mas que fique bem claro que eu só estou possibilitada
de fazer isso pelo motivo que o inferno está armando um golpe, posso sentir
isso, mandar um dragão ao Instituto, que são terras abençoadas, não foi
uma coisa legal. E eu não permiti nada disso.”
Fiquei em silêncio enquanto ela continuava.

“Você e seu amigo podem ficar aqui no prédio por enquanto, a sala
aqui ao meu lado tem uma suíte com um banheiro e tudo. Vocês estão meio
cansados então sugiro que não saiam feito uns adoidados por aí atrás do
Heniack nesse momento. Vão amanhã, depois de descansar um pouco.
Heniack fica em um prédio do subúrbio, eu darei as coordenadas certas
para vocês quando for a hora. Ele não fará nenhum mal a vocês, o
problema não é Heniack em si, mas sim seus guardas. Se vocês conseguirem
chegar até ele, terão todas as respostas que procuram, o problema é
chegar. Não querendo lhe desanimar moça, mas nunca ouvi falar de
alguém que tenha conseguido...”

“Muito encorajador.” Falei ironicamente.

“Mas também nunca ouvi falar de uma 2/3 de sangue angelical indo
até lá.” Ela parou um pouco, puxando uma grande corrente de ar. “Na
verdade, nunca ouvi falar da existência de um, não até hoje. É contra o
protocolo.”

“Sinceramente,” Eu disse apoiando minha cabeça entre as mãos.


“Não percebi nada de muito diferente em mim até agora, só sou um pouco
mais rápida e forte que o normal...”

“Você não sabe o que fala garota.” Amanda levantou-se enquanto se


dirigia até a janela. “Você deve saber fazer tudo o que um anjo faz, menos
voar claro.”
“O que exatamente um anjo faz?” Ergui uma sobrancelha.

“Lê mentes, sabe quando estão mentindo para ele, faz com que as
coisas aconteçam com a simples força do pensamento, tem a capacidade
de matar demônios fracos com um simples olhar e... Tem o olhar divino sobre
eles, você nunca estará sozinha Jéssica, pode acreditar.”

Eu nunca havia feito nada daquilo, não que eu me lembrasse.

Bom, de algum modo eu sempre soube quando as pessoas mentiam


para mim e aquela coisa do táxi foi muito estranha, porém, eu nunca havia
lido a mente de ninguém e sempre me senti sozinha.

“Eu acho que meu lado anjo é falhado então.” Falei secamente.

“Você ainda é nova garota, nem 18 anos você tem ainda. Os poderes
vem com o tempo, só tente ficar viva até lá.” Amanda se dirigiu até a porta
para abri-la. “Se for só isso, acho que você e seu amigo podem se
acomodar no quarto. Tenho muito trabalho para fazer. Pegue tudo o que
quiser no quarto, o frigobar está abastecido também, então tenham uma
boa noite de sono.”

Aposto que sim, respondi mentalmente.

Amanda tinha sido uma pessoa muito legal, mas eu ainda não me
conformava com o fato que, uma pessoa com o poder dela, fosse neutra
nessa história toda. Se eu estivesse no lugar dela, daria um golpe de Estado e
mandaria os demônios para... o inferno?

Quando eu passei pela porta, Amanda dirigiu-me um sorriso e


entregou-me a chave do quarto, então fechou a porta logo atrás de mim.
Tyller estava sentado no chão, parecia entediado.
“Qual é a dela de me deixar de fora da conversa?” Tyller perguntou se
levantando rapidamente.
“Vai ver que ela percebeu que você veio de intrometido.”
“Ok, essa doeu.” Tyller fingiu ter levado um soco no estômago, mas
logo se recompôs. “Então, o que vai ser?”
“Vamos descansar um pouco, ela ofereceu um quarto para a gente,”
Falei mostrando as chaves. “Eu vou tomar banho primeiro, depois a gente
dorme. De manhã ela irá nos dizer para onde temos que ir.”
“Todo aquele tempo lá dentro e ela só te falou isso?” Tyller parecia
impaciente.
“Não,” Fiz cara de deboche. “Nós terminamos a conversa, então
fizemos tranças uma no cabeço da outra...”
Percebendo a minha brincadeira, Tyller revirou os olhos.
“Ela me explicou umas coisas e me deu um nome: Heniack,” Não
contei o detalhe que Samuel, o arcanjo já tinha me dado esse nome antes.
“Assim que eu tiver tomado um banho te conto tudo.”
“É só um quarto para nós dois?” Tyller perguntou parecendo gostar da
idéia.
“Sim, o que tem demais?” Eu não via o porquê de toda aquela
empolgação.
“Nada só achei interessante.” Tyller sorriu.
“Tyller, cala a boca!” Falei, empurrando ele para dentro do quarto.
Finalmente eu teria o meu merecido banho, e uma noite de sono em
um colchão confortável, com ou sem Tyller, aquilo era o máximo e ele não
iria conseguir estragar a minha noite.

Já dentro do quarto, enquanto Tyller se deitava na cama, eu peguei


minha mochila e fui direto para o banheiro.

Tirei a roupa e fiquei tão feliz em me libertar delas. Olhei para a minha
pele no espelho, tão branca e sem nenhuma marca que eu parecia ter sido
feita de algodão. Liguei a torneira para a banheira encher.

Cheguei mais perto do espelho, para me olhar nos olhos.

Deus como eu estava cansada, eu tinha olheiras enormes, mais de


preocupação do que por falta de sono.

Meus cabelos, com alguns fios chocolate e outros cobre, estavam


sujos, batidos. Molduravam o meu rosto, deixando o meu olhar mais
profundo, mais cansado.

Eu vou conseguir, de repente eu pensei. Vou conseguir por todos, não


só por Milla.

Pensar em Milla me lembrou que eu deveria ligar para o Instituto, para


ver como andavam as coisas. Se Milla estava bem, se tudo estava em
ordem, para matar a saudade também.

Entrei na banheira e imergi a minha cabeça sob a água.

Como aquilo era bom, era como se todos os problemas desgrudassem


da sua pele e se dissolvessem como sais de banho.

Por que tinha de ter um equilíbrio?


Por que eu tinha que ser tão fraca a ponto de não conseguir matar
todos os demônios de uma vez?

Por que o mal era tão... excitante?


Na história de toda a humanidade, todos os grandes problemas,
inclusive as Grandes Guerras, foram causadas pela cobiça. O Que tornava o
mal tão atraente devia saber sobre os desejos humanos, dos quais, eu
compartilhava.

Talvez eu fosse mais resistente aos 7 pecados capitais que um humano


comum, mas com toda a certeza já tive meus muitos momentos de orgulho,
gula, preguiça, meus acessos de ira que aconteciam o tempo todo e, o mais
freqüente deles, a luxúria.

Apesar de parecer totalmente indiferente a assuntos sexuais, eu tinha


meus sonhos, sonhos freqüentes, onde eu era tomada pelos braços de um
homem forte, quente, com um aroma incrível e era beijada... eu desejava
não ter que acordar mais.

Nunca diria isso a ninguém, nem Milla sabia desses meus sonhos
sexuais, nem nunca saberia de minha luxúria. Muito menos de quem me
acompanhava no sonho, só de pensar no assunto eu já ruborizava, a água
da banheira queimando contra minhas bochechas.

Saber que ele estava tão perto e tão inalcançável me matava por
dentro, eu me odiava por sonhar com ele.

Nem ao menos eu o tinha beijado, não tinha beijado ninguém, nem


tinha certeza se um dia faria isso. Homens como Tyller definitivamente não se
apaixonavam por meninas como eu, e eu não beijaria alguém só para
satisfazer meus desejos sexuais, eu queria que fosse algo real, que fosse
alguém que gostasse de mim ao me beijar.

Droga, o que você está pensando? Perguntei a mim mesma como se


houvesse algo que conflitasse os meus desejos.

Em resposta minha mente respondeu:

Dane-se, sou meio-humana, posso pecar.

Essa idéia me deixou doente, era exatamente isso que os humanos


usavam como desculpa pelos seus atos. Sou humano, eu erro, eu peco.

Deslizei a esponja cheia de espuma pelos meus ombros, depois segui


até o fim do braço esquerdo.

Amanhã seria um dos dias mais difíceis da minha vida e eu aqui, em


uma banheira, pensando em Tyller!

Chegava ser ridícula a idéia que isso transparecia. Amanhã eu iria falar
com Heniack, nem que para isso eu tivesse que passar por um exército de
coisas ruins, não me importava. Mesmo que meu corpo se rasgasse, se eu
ainda conseguisse andar e estivesse consciente o suficiente para fazer
perguntas a Heniack eu o faria.

Minha vontade era de matar todos, inclusive o poderoso chefão, mas


isso afetaria o equilíbrio em proporções inimagináveis.

E eu não queria ser a causadora do apocalipse.

“Você vai sair desse banho ou não?” Perguntou Tyller batendo


firmemente na porta.

Não! Minha mente gritou. “Já estou saindo.” Respondi em voz alta.

“Bom mesmo.” Ouvi ele dizer em alto e bom som.

“O que você disse?” Perguntei, me impressionando da impertinência


de Tyller.

“Eu não disse nada ok?” Falou ele, sua voz se afastando da porta. “O
que há de errado com ela?”

Essa última voz parecia ser dita dentro da minha cabeça.

O que havia de errado comigo? Estava imaginando coisas agora?

Terminei meu banho e levantei-me da banheira, peguei a toalha e me


enrolei nela, sequei-me e procurei alguma roupa confortável. Coloquei um
jeans, um top e uma camiseta do The Runaways que eu tinha desde que
comecei a ter bom gosto para música.

Saí do banho, secando o cabelo com a toalha.

“Uau.” A voz de Tyller atingiu meu cérebro como um soco.

Virei-me para olhá-lo, ele estava com os olhos fixos em mim. Mas com
a boca totalmente fechada.

Que diabos ela está me olhando?

Então eu percebi o que estava acontecendo, Tyller não estava


dizendo nada, mas eu o ouvia, de alguma forma o ouvia.
Eu devo ter ficado com uma cara totalmente espantada, Tyller seguiu
até mim, o que me fez dar 3 passos para trás.

O que há de errado? Tyller perguntou, embora fosse só o pensamento,


eu respondi.
“Está começando,” Falei para Tyller. “Estou virando uma aberração da
natureza!”

Eu estava histérica, minha vontade era sair correndo porta a fora e me


jogar de baixo do primeiro caminhão que passasse.

Amanda disse que isso aconteceria, eu não quis acreditar. A parte de


sangue angelical que eu tinha dentro de mim estava começando a fazer
mais efeito sobre mim, me tornando diferente de tudo e todos que eu
conhecia, e agora eu estava assustada. Não tinha certeza se queria ser tão
diferente.

Tyller me olhava sem entender nada, seu pensamento confuso se


misturava com o meu dentro da minha cabeça. Deus aquilo iria me
enlouquecer.

“Pare de pensar!” Falei alto, largando a toalha e colocando as mãos


sobre os ouvidos. “Eu posso ouvir droga, estou virando uma maldita
aberração!”

“Você está dizendo que...” Tyller começou.

“Apenas pare de pensar tão rápido, cante uma música, conte até 25
milhões bem devagar, mas pare com essa confusão que está na sua
cabeça!”

De repente Amanda entrou no nosso quarto.

Que gritaria é essa?

Ela não precisou dizer em voz alta para que eu reconhecesse a sua
“voz”.

Ótimo, agora eu tinha dois seres perturbados dentro do mesmo quarto


que eu, e eu conseguia ouvir o pensamento de todo mundo. Uma dor
começou a atingir minha cabeça tão fortemente que eu pensei que fosse
desmaiar, caminhei até a cama e lá me sentei.

“Amanda... Estou ouvindo... vozes... pensamento.” Falei com


dificuldade.

Ela arregalou os olhos e então veio correndo até o pé da cama onde


eu estava, sua cabeça repetia algumas palavras que eu não sabia que
língua era, muito menos o que significava tudo aquilo.

Mas de alguma forma eu gostei daquilo, me acalmava.


A dor de cabeça foi passando, e o tom das vozes foi abaixando, cada
vez mais até que eu só conseguisse ouvir as palavras pronunciadas de forma
doce, como se estivessem sendo ditas realmente.

“Está melhor?” Disse ela, e eu balancei a cabeça positivamente. “Eu


disse que esse tipo de coisa ia acontecer, só não imaginei que fosse tão
rápido.”

“O que, o que você fez?” Eu estava me recompondo aos poucos.

“Sangue de anjo só se acalma com palavras angelicais,” Amanda


disse se afastando e ajeitando a roupa como se fosse uma executiva. “É a
língua que os anjos conversam entre si, na verdade isso que eu acabei de
falar foi um, como eu posso dizer? Encantamento? É, encantamento me
parece bom.”

Ela parecia ter dificuldades em achar palavras para explicar o que


havia feito comigo, e eu agradeci por ela ter desligado o meu receptor de
pensamentos alheios naquele momento, a cabeça dela devia estar uma
confusão.

“Olha, eu não sei como funciona direito,” Ela falou colocando uma
das mãos na cintura. “O que sei é que, com essas palavras que eu disse,
você não vai mais ouvir o pensamento de todo mundo que passar por perto
de você, a não ser que você queira, porém os pensamentos de anjos você
ouvirá, sempre que eles forem redirecionados a você. Agradeça ao seu
amigo Samuel por ter me ensinado isso, ele me disse que aconteceria algum
dia e que você precisaria disso, ou então teria que conviver com milhões de
vozes dentro da sua cabeça até que você aprendesse a controlar. O que
eu, particularmente, acho muito mais interessante.”

Dizendo isso, ela direcionou um aceno para mim e fechou a porta.

“O que foi isso?” Perguntou Tyller com os olhos arregalados.

“Ela me avisou que aconteceria,” Falei me jogando para trás na


cama, Tyller veio até mim e sentou-se do meu lado.

Resolvi fazer um teste para ver se tinha controle absoluto do meu novo
dom. Desejei poder ouvir o pensamento de Tyller uma só vez, e então
começou.
... Agora não tenho privacidade nem nos meus pensamentos!

Eu ri, a grande preocupação de Tyller era que eu invadisse sua


cabeça e nunca mais o deixasse ter um pensamento que fosse totalmente
dele. O que era uma idéia muito interessante, porém não era o correto a ser
feito.

“Juro não ficar fuçando na sua cabeça,” Disse para ele fechando os
olhos. “A não ser que precise muito!”

“Viu só! Você já estava fazendo isso!!!”

Eu me divertia enquanto Tyller tentava ter certeza de que eu não


estava em sua cabeça.

“Feche os olhos,” Disse ele de repente. “Feche os olhos, eu vou pensar


em fazer uma coisa. Eu quero ter certeza que você já saiu da minha
cabeça.”

Fechei os olhos como ele mandou, era tão tranqüilizante aquele


silêncio. Porém, até silêncio demais era preocupante, mesmo assim
permaneci de olhos fechados, não queria perder a confiança de Tyller.

De repente senti os lábios de Tyller encostar nos meus, quentes, macios


e, deliciosos. O susto me fez rastejar para trás. Eu o olhava com os olhos
arregalados e com uma das mãos encostadas na minha boca.

“Você não estava lendo meus pensamentos.” Tyller sorriu. “Bom


saber.”

Então ele pegou uma muda de roupa que ele tinha encontrado,
provavelmente no closet do quarto, e foi para o banheiro, me deixando
totalmente estática.
Capítulo 12 – Morrerão juntos

Provavelmente aquela havia sido a noite mais estranha da minha vida,


eu dormi com um cara, na mesma cama, mas não fizemos nada se é isso
que você está pensando. Muito pelo contrário, eu deixei bem claro que
queria Tyller longe de mim, então dormimos os dois na mesma cama, mas
cada um em uma extremidade. Na manhã seguinte eu não dirigi uma
palavra sequer a Tyller e ele fez o mesmo, deixando um total silêncio entre
nós.

Que diabos tinha sido aquele beijo? Se ele só quisesse saber se eu


estava realmente cumprindo a minha palavra ao me manter longe da
mente dele não precisava ter feito uma coisa assim, poderia ter
simplesmente pensado um número e ter me mandado adivinhar.

O que me deixava mais fora de mim era que, apesar de inesperado,


eu tinha gostado do beijo, e passei a noite inteira com os lábios fornicando. E
eu sei disso, pois não havia dormido a noite inteira.

Quem conseguiria dormir sabendo que no outro dia iria encontrar com
um bando de demônios em um antro de perdição?

Não, Amanda ainda não havia me dito onde exatamente eu poderia


encontrar Heniack, mas eu supus que não seria em alguma igreja ou coisa
assim. E minhas expectativas se confirmaram quando ela me passou o
endereço em cima estava escrito.

Boate Mercarry

Ok, eu estava indo em uma boate pela primeira vez na vida, e nem
sequer era para diversão.

Ou talvez fosse...

Eu esperava que aquela boate estivesse realmente cheia de seres da


sombra, de todas as espécies. Fazia um bom tempo que eu não lutava kung-
fu, então eu tinha bastante energia guardada em mim.

Pensar nisso me fez lembrar o Sr. Hung. Engraçado como você


começa sentir falta das pessoas quando você está longe, eu nunca antes
tinha sentido a falta do Sr. Hung, na verdade, já tinha desejado que ele
explodisse milhões de vezes. Ele era um professor muito exigente,
principalmente comigo. Sempre pegava no meu pé, e quando eu chegava
ao meu limite, ele forçava-me a ir além. Ele tinha me ensinado várias coisas,
vários estilos de luta, mas tinha me ensinado, principalmente o amor pelo
kung-fu, que só aumentou quando ele disse que eu tinha o melhor estilo
Hung gar (Garra de Tigre) que ele já tinha visto, tirando ele mesmo claro.

Aquele elogio vindo dele me fez querer ser a melhor de todos os estilos,
e depois de muito treinamento eu consegui.

Sr. Hung sabia que eu era filha da Sra. Vânia, sabia que eu tinha mais
sangue angelical em mim que o normal, não que ser filho de anjo fosse
normal... Devia ser por isso que ele sempre exigiu tanto de mim, a ponto de
me fazer odiá-lo uma época.

Ele tinha feito eu treinar muito, treinar até a exaustão, eu não me


agüentava mais sobre minhas pernas, e ele me intimou para uma luta.

“Você não é tão boa assim...” Ele tinha falado, fazendo sua posição
de Louva-Deus.

Aquilo era um desafio, e eu adorava desafios.

Nós começamos a lutar, e devo dizer que foi uma briga feia. Na
época eu não sabia que tinha um poder tão grande dentro de mim e
admito que, mesmo se eu soubesse, não teria mudado em muita coisa a
nossa luta. Hung era um cara bem fortão, ele conseguia me agarrar pelo
pescoço com freqüência, mas eu sempre dava um jeito de me livrar dos
braços dele e revidar.

A briga só acabou quando ele me derrubou no chão de vez e veio


até mim para ver como eu estava, eu estava com raiva naquele momento,
tinha perdido uma briga, como eu deveria estar?

Então em um impulso eu soquei a cara dele e quebrei um dos seus


dentes. Resultado da briga: Não fui mais as aulas de kung-fu por um mês, até
que o Sr. Hung tivesse parado de me odiar totalmente.

Agora eu vivia uma situação totalmente diferente, mas me sentia da


mesma forma, era um desafio, e eu adorava desafios.

Eu sei que desta vez se eu fosse derrubada ninguém se importaria com


o meu estado físico ou me ofereceria ajuda, eu seria pisoteada ou sufocada
até a morte. Desta vez eu não poderia errar, eu não iria errar.

No banheiro, vesti minha calça de batalha, sim a de couro, coloquei


uma jaqueta, também de couro, respirei fundo e fui até o quarto.
Tyller estava sentado, já havia trocado de roupa. Tinha os cotovelos
apoiados nos joelhos e a cabeça baixa, parecia preocupado, apreensivo, e
com razão.

“Eu não acho que você deveria ir,” Eu disse a ele, quebrando o
silêncio que pairava entre nós. “É muito perigoso.”

Tyller levantou a cabeça, olhando-me diretamente nos olhos. Nunca o


olhar de Tyller teve tanto significado para mim, aquele olhar mostrava o
quanto ele estava preocupado comigo, e também dizia que não importava
o que fosse acontecer, ele iria comigo.

“Tudo bem,” Eu tinha entendido o recado. “Só acho que você não
deveria se arriscar assim por mim.”

“Você não entende mesmo né?” Tyller soltou essa pergunta no ar, e eu
não tinha certeza se era para eu responder.

“Eu posso entrar na sua mente se você quiser.” Eu disse.

Tyller levantou, veio até mim e me deu um abraço forte, quente e


aconchegante. Segurou-me perto dele por alguns segundos, então me
afastou.

“Eu estou aqui por você Jess, e essa história se tornou muito maior do
que era no começo, eu acho que uma guerra está para começar e eu não
sei o que fazer,” Tyller falava calmamente, com sabedoria. “Você é a chave
para tudo, se não fosse, os anjos não a teriam deixado viva, e eu vou te
proteger entendeu?”

Eu sinalizei que sim e o abracei novamente.

“Você está com medo?” Perguntei enquanto escorava minha cabeça


no seu ombro.

“Não.” Ele respondeu com uma risadinha sarcástica. “E você?”

“Eu esperei por isso minha vida toda,” O soltei do abraço, mas
continuei segurando suas mãos. “Tudo vai dar certo, você sabe, um de nós
pelo menos vai sobreviver pra contar isso pra alguém! Um de nós tem que
sobreviver, prometa para mim que, se eu morrer, você vai fugir.”

Ele tapou a minha boca com a mão.

“Não diga uma coisa dessas,” Tyller tinha dor no olhar, era como se eu
o tivesse atingido direto no estômago. “Eu e você sairemos vivos, voltaremos
para o Instituto e puniremos o traidor.”
Algumas batidas e então a porta se abriu, era Amanda.

“O táxi está lá embaixo esperando, ele vai deixá-los na frente do local,


eu desejo boa sorte a vocês, tomem cuidado. Ficar namorando aí não vai
ajudar muito.” Então ela fechou a porta.

Eu ergui uma sobrancelha e Tyller abaixou a mão que estava em


minha boca.

Amanda não tinha sido muito animadora nas palavras dela, mas eu
entendia o lado dela. Ela não queria tomar partido, ela não podia tomar
partido. A ajuda que ela estava nos dando já deveria ter me deixado grata
a ela, porém eu esperava que, pelo menos, ela nos abraçasse antes de
irmos.

Tyller e eu descemos de elevador até o hall do prédio e mãos dadas.


O edifício continuava inabitado, somente os dois seguranças estavam na
entrada como da primeira vez que eu os havia visto.

“Eu gosto daqui,” Falei enquanto andava com Tyller em direção ao


táxi. “Quem sabe eu peça um quarto para a Amanda quando tudo
terminar.”

Tyller riu, e soltou a minha mão para que eu pudesse entrar no carro,
logo em seguida ele entrou. O motorista então deu a partida, sem dizer uma
palavra, ele sabia onde tinha que nos levar, não havia motivo para
iniciarmos uma conversa.

Enquanto o táxi percorria as ruas de Nova York eu via a quantidade de


demônios que existiam.

“Tyller, olha um anjo lá,” Falei baixinho para que o motorista não
ouvisse. “Finalmente vi um!”

Tyller sorriu. Ver o anjo naquele momento me deu esperança, eu não


sabia direito o porque, porém, só de ver aquele anjo eu me enchi de
confiança e por um breve minuto eu tive a certeza que tudo daria certo. Até
eu ver o prédio.

Um letreiro luminoso anunciava que tínhamos chegado ao lugar certo.

Boate Mercarry
Só de ver aquelas palavras de novo eu tive arrepios. O motorista do
táxi parou e esperou até que descêssemos, Amanda já havia pago pela
nossa corrida, então, assim que descemos do carro, o motorista deu a
partida com um cantar de pneus, como se quisesse sair logo daquele lugar,
como se soubesse o que existia ali.

Ao descer do táxi, analisei o local. Estava localizado em um beco


qualquer, um beco escuro, e gente de todos os tipos andavam por ali mas
principalmente os punks, acho que gente assim gosta de lugares escuros.

Haviam demônios disfarçados de seres humanos e eu conseguia sentir


o cheiro que os vampiros emanavam deles.

Os vampiros tinham um jeito interessante de se vestir, usavam couro


assim como eu e pareciam ter a pele muito gelada, eram tão brancos
quanto qualquer albino e todos tinham um aspecto misterioso, sedutor e
mortal.

Eu sentia o cheiro de sangue. Provavelmente aqueles vampiros recém


tinham se alimentado, talvez se eu procurasse direito achasse as carcaças
humanas espalhadas atrás de latas de lixo. Isso era um problema, vampiros
quando recém alimentados ficavam mais fortes.

Tyller tinha o rosto impassível, porém a sua mão estava gelada, eu


soube disso quando ele segurou a minha. Eu apertei a dele para dizer que
estava tudo bem, mesmo eu não tendo certeza se isso era realmente
verdade.

Eu não via jeito nenhum de entrar no edifício sem chamar atenção, já


que dois vampiros guardavam a entrada, e o lugar estava rodeado de
humanos, não teria como eu sair matando monstros sem que eles vissem.
Droga de humanos!

“O que vamos fazer?” Tyller perguntou baixinho no meu ouvido.

Eu olhei bem a entrada da boate, pessoas entravam e saiam de lá o


tempo todo, era impressionante como, já de manhã, as pessoas
freqüentavam lugares como esses.

“Vamos entrar.” Falei puxando-o pela mão. “Me segue.”

Caminhei até os dois vampiros enormes que se colocavam ao lado da


entrada da boate arrastando Tyller comigo. Eu rezei para que eles não
pudessem sentir os nossos cheiros assim como eu podia sentir o deles, o
cheiro de sangue.

Ao tentar entrar direto, os dois fecharam a entrada colocando os


braços na minha frente. Como eu queria poder quebrar aqueles braços.
“Vai a algum lugar?” O vampiro da esquerda falou dando uma risada
sarcástica.

Agora eu entendia como humanas caíam em suas armadilhas. Além


de serem totalmente lindos e atraentes, os vampiros possuíam vozes
maravilhosas. Tudo neles cheirava a sexo, a mistério, a aventura.

Eu o puxei pelo colarinho para que pudesse olhar bem no fundo dos
olhos dele. Ele pareceu gostar do meu gesto, abriu um sorriso grande, porém
não revelou-me as presas. Eu entrei no jogo dele, percebi que aquele seria o
método mais fácil de entrar.

“Preciso falar com o gerente.” Eu disse ainda segurando-o pelo


colarinho.

O outro vampiro deu risada, como se o que eu havia dito fosse ridículo.

“Ninguém fala com o gerente, a não ser os funcionários,” O vampiro


que estava preso a mim disse colocando as mãos no meu quadril. “Você
pode conversar comigo se quiser.”

“Talvez depois,” Eu disse acariciando o rosto gelado do vampiro, eu


não acreditava que estava fazendo aquilo. “Eu realmente preciso falar com
o gerente, quero um emprego.”

“E ele?” Disse o outro vampiro apontando para Tyller.

“Ele só está me acompanhando, ele que me indicou o lugar.”

Então o vampiro que estava agarrado a mim, soltou-me e abriu


passagem para que eu e Tyller pudéssemos entrar. Os dois monstros sorriram
um para o outro diante da idéia de alguém como eu trabalhar na boate.
Pelos seus rostos eu poderia jurar que eles me imaginaram fazendo um streap
tease.

“Boa sorte,” Disse o vampiro que antes havia me agarrado enquanto


dava um tapa na minha bunda. “Realmente espero que você consiga o
emprego.”

Tudo que eu fiz foi responder com um sorriso falso e entrar na boate,
levando Tyller comigo.

Na boate haviam muitas pessoas. No interior do estabelecimento nem


era possível distinguir se ainda era dia, ou se já era noite. Era tudo muito
escuro, apenas iluminado com algumas luzes vermelhas. Havia um bar, onde
a maioria das pessoas estavam bebendo e também haviam sofás de couro
preto espalhados por todos os cantos, onde alguns aproveitavam para
descansar, fumar, e outros aproveitavam para transar.

“O que foi aquilo lá fora?” Tyller perguntou, puxando-me para perto


para que eu pudesse ouvir, já que a música estava com um volume
ensurdecedor.

“Se você ver algum alarme de incêndio me avisa.” Respondi


ignorando totalmente a pergunta.

Tyller continuou me olhando por um tempo, como se esperasse a


resposta. Quando ele viu que era inútil, começou a procurar o dispositivo do
alar me de incêndio.

Eu olhei em todos os cantos, mas não consegui achar.

Talvez alguém soubesse onde estava, talvez eu pudesse ler algumas


mentes...

Comecei a me concentrar para ouvir algumas mentes, mas aquilo


parecia um turbilhão, eu ouvia todas as vozes ao mesmo tempo, não
conseguia distinguir o que era pensamento, ou o que era dito, então tive
que fechar os olhos e procurar pela palavra “incêndio” ou qualquer coisa do
gênero.

Me apoiei em Tyller para que pudesse me concentrar totalmente em


buscar alguma resposta nas mentes alheias, me apoiando nele, eu não tinha
que me preocupar com equilíbrio ou nada do gênero.

Alguns minutos depois eu ouvi uma voz feminina que parecia dizer:

“Que merda, encostei no alarme de incêndio, sorte que não


disparou!”

Me concentrei mais, para tentar localizar de onde vinha a voz. Até


que consegui, a moça estava encostada na parede a nossa esquerda.

“Achei,” Falei para Tyller ao mesmo tempo que abri os olhos e desliguei
aquela loucura de leitura mental. “Vem comigo.”

“O que você pretende fazer?” Tyller perguntou enquanto me seguia.

“Vá até aquele sofá ali,” Eu disse apontando para um dos sofás pretos
perto do alarme de incêndio. “Fique por ali como se estivesse me esperando,
eu vou passar pelo alarme, tocar, então eu te encontro, esperamos as
pessoas saírem então trancamos as portas por dentro.”
“Você tem...” Tyller começou.

Antes que ele terminasse de falar eu o empurrei, mostrando que eu


tinha certeza do que devia fazer, eu estava preparada, e aquele era o
momento.

Fiquei olhando enquanto Tyller se posicionava. A luz vermelha


refletindo nos seus cabelos bagunçados, se Tyller fosse totalmente humano,
ele poderia ter sido um modelo com toda a certeza.

Assim que ele chegou ao lugar combinado eu comecei a me deslocar


em direção ao alarme de incêndio, tentando desviar da massa de pessoas e
monstros que ali existiam. O cheiro tinha um toque de enxofre, misturado
com ovo podre, se os humanos conseguissem sentir o cheiro que eu sentia,
com toda certeza não freqüentariam mais aquele lugar.

Passei por muita gente, sem esbarrar em ninguém. Chegando até o


alarme de incêndio, eu fiz um movimento muito sutil, e o acionei. No mesmo
momento as pessoas começaram a correr para fora da boate gritando, os
alarmes soando, a cada sinal a quantidade de pessoas ia diminuindo, eu
caminhei até Tyller e o segurei na mão para que andássemos atrás da
massa.

Os funcionários, todos monstros, não se mexeram do lugar.

Assim que todos os humanos haviam se retirado, eu e Tyller


rapidamente trancamos as portas com uma trava enorme que tinha em um
dos cantos.

Eu conseguia sentir os olhares afiados nas minhas costas e também


podia ouvir algumas risadas vinda de alguns monstros, como se a diversão
estivesse para começar.

“Eu sabia,” Disse um demônio que estava em uma carcaça humana.


“Eu consegui sentir o cheiro do garoto, mas eu duvidei que eles fossem
loucos o suficiente para fazer uma coisa dessas, e você menina, o que você
é? Não consigo entender o seu cheiro.”

“Deve ser porque você está com o cheiro de merda que esse lugar
tem impregnado no seu nariz.” Respondi secamente. “E então como vai ser?
Vão me deixar falar com Heniack por bem?”

Dizendo isso, o demônio que antes falava comigo atravessou, em um


salto só, o salão da boate, e tentou me dar um soco. Naquele momento eu
soube que o papo furado tinha terminado, e que eu tinha trabalho a fazer.
Desviei do soco com facilidade e abri minha jaqueta para puxar a
minha faca de prata. Fiquei de costas para Tyller, para que ele pudesse
proteger a minha retaguarda, assim como eu poderia proteger a dele.

Havia pelo menos sete monstros para cada um de nós, e eles


atacavam em grupos de três.

Tyller também havia pegado uma das minhas facas na minha mochila,
e agora ele a manejava como se ela fosse uma extensão do seu braço.
Desviando dos golpes e cortando os demônios sempre que podia.

Três deles, dois demônios e um vampiro me cercavam. Eles tinham um


sorriso idiota no rosto, como se a luta já estivesse acabada e eu fosse a
perdedora.

O sorriso logo desapareceu quando o demônio que estava a minha


esquerda me atacou e eu o empalei com a faca de prata bem no coração,
sem se quer olhar para ele. Eu não precisei olhar para saber que ele estava
vindo para cima de mim, eu soube que ele atacaria quando ele pensou
nisso. Devo dizer que estava começando a gostar da minha capacidade de
ler mentes, em uma batalha ela seria muito útil.

“Que é? Medo, nesse momento, não vai te ajudar.” Falei para o


vampiro que parecia firme por fora, mas em seu pensamento ele estava se
borrando nas calças.

Chequei a cabeça de Tyller, ele estava se dando bem na luta dele.


Era interessante ver o mundo dos olhos de Tyller, tudo parecia mais
emocionante do que visto dos meus próprios olhos. Ao contrário de mim, Ty
não podia ler mentes para prever os movimentos do adversário, e mesmo
assim ele estava levando vantagem na briga.

O vampiro, nervoso com as minhas palavras, resolveu atacar, correndo


para cima de mim como se fosse um kamikaze.

Eu saltei por cima dele em um mortal, segurei sua cabeça com as


duas mãos e com um movimento rápido a desloquei e puxei com toda a
força para que ela fosse arrancada.

Eu realmente odiava que vampiros só pudessem ser mortos


decapitados ou então queimados. Queimar dava muito trabalho e eu não
tinha nada inflamável naquele momento, então a única forma possível foi
decapitá-lo brutalmente.

“Tyller,” Eu disse assim que li os pensamentos de um demônio que o


atacaria. “O da sua direita.”
Seguindo as minhas palavras, Tyller virou-se para empalá-lo, porém o
demônio foi mais rápido, e o segurou pelo pescoço.

Eu corri para salvar Tyller, todos os outros monstros que estavam na sala
me atacaram, eu fui desviando dos golpes e cheguei até o demônio que
estava segurando Tyller.

Eu olhei profundamente nos olhos dele, ele estava usando um corpo


humano mas eu consegui ver os olhos do demônio dentro dele. O segurei
pelo pescoço, assim como ele fazia com Tyller. Minhas mãos começaram a
esquentar e fumaça começou a sair do corpo do demônio como se eu o
estivesse queimando. Ele gritava de dor, e eu por alguma razão, não me
importava com a dor que ele estava sentindo, eu só queria matá-lo.

Os outros ficaram horrorizados olhando a cena, eu via no pensamento


deles o medo, eles cheiravam a medo. Apertei mais forte então o corpo
parou de se mexer, e eu soltei-o.

“Mas o que é que está acontecendo aqui?” Ouvi uma voz vindo do
topo da escada que levava para o segundo andar.

Lá estava um demônio, ou devo dizer o demônio?

Aquele devia ser Heniack, o poder era exalado de dentro dele. Ele
estava em um corpo muito longilíneo e forte, vestido com um terno
possivelmente italiano. Ao ouvir a voz dele, todos os outros monstros se
ajoelharam.

“Ah sim,” Heniack disse olhando para mim. “A garota que matou o
meu dragão. Eu gostava dele menina, você sabe disso? Eu deveria lhe
arrancar a cabeça por isso.”

Ele falava de uma forma mortal, mas ao mesmo tempo muito


controlada, como se seus sentimentos não condissessem com suas palavras.

Tyller estava ofegante atrás de mim, deu dois passos para se


aproximar, como se quisesse me proteger. O corpo do demônio, antes
caído, começou a se mexer, mas ele não cheirava mais a enxofre. Eu, de
algum modo, havia retirado a coisa ruim que estava dentro daquela pessoa,
e agora ela havia levantado, como se tivesse despertado de um sonho
muito estranho.

Ao abrir os olhos, ela se assustou, vendo todos aqueles monstros.


Ótimo, um humano que conseguia ver os demônios. Não me surpreendia
que ele havia sido escolhido para ser a carcaça de um demônio.
“Calma Ty, e você humano... saia daqui,” Eu disse a ele. “Heniack não
vai ferir ninguém.”

“Diga por si mesma garota!” Heniack descia as escadas calmamente


olhando para os seus servos. “Eu vou arrancar a cabeça de todos vocês seus
incompetentes! São duas crianças, pela raiva de Lúcifer!” Acariciando as
suas fontes, Heniack fez um gesto com a mãos para que os seus monstros se
retirassem.

Obedecendo como bichinhos de estimação, os demônios e vampiros


saíram cabisbaixos e assustados. Enquanto o humano saiu, tropeçando nos
próprios pés pela porta, ele teve certa dificuldade para abri-la, mas
conseguiu.

“Você interrompeu a luta porque viu que era inútil não é mesmo?”
Perguntei para Heniack lendo seus pensamentos. “E também porque você
não me quer morta, quer?”

“Oh, muito bom garota!” Heniack aplaudia frouxamente. “Duas coisas


que eu admiro nessa minha eternidade são pessoas inteligentes e pessoas
mortais. Sabe garota, não existem muitas pessoas como você por aí, na
verdade, não deveriam existir, é contra o protocolo. Veja seu amigo, está
quase morrendo de medo, não consegue respirar, e só teve uma lutinha sem
graça. Você pelo contrário é uma pessoa corajosa, inteligente... E
intrometida! Malditos sejam os arcanjos que permitiram que você vivesse,
maldito seja esse seu poder de ler mentes!”

Heniack fez um gesto para que nos sentássemos em um dos sofás. Nós
recusamos.

“Você poderia muito bem trabalhar para mim,” Heniack pegou uma
taça e a encheu de wiskey. “Eu lhe daria dinheiro, poder e você não
precisaria ficar trancada naquela joça de Instituto, o povo de lá não sabe o
que é vida. E os que conhecem, realmente, o mundo exterior não voltam
para lá.”

“Do que você está falando?” Tyller perguntou.

“De idiotas como você garoto,” Heniack balançava o copo, para


espalhar o líquido pelas paredes. “Existem alguns que são um pouco mais
espertos e saem daquela porcaria. Alguns colegas seus trabalham para mim
sabia?”

Heniack só poderia estar blefando, apesar de não haver sinal de blefe


na sua mente. Aquilo que ele estava falando era impossível, pessoas como
nós não poderiam trabalhar para ele, nunca... era completamente contra o
protocolo.
Contra o protocolo, aquilo me fez rir, eu também ia contra o
protocolo, e mesmo assim eu existia

“Garota, você tem muita fé em coisas que não existem... Você


realmente acha que ainda existem pessoas boas? Realmente acha que seus
queridos anjos podem consertar esse mundo decrépito?” Heniack estava
sentado no sofá com as pernas cruzadas. “Pois eu lhe digo garota, ninguém,
ninguém é confiável, nem mesmo os que você mais ama. Alguns meio-anjos
trabalham para mim sim... os mais espertos.”

Eu não amava muitas pessoas, mas aquelas que eu amava eu sabia


que podia confiar plenamente. Tyller e Milla nunca fariam nada para me
prejudicar, eu os conhecia mais do que a mim mesma, e não existia
desconfiança entre nós.

“Você só fala isso porque é um demônio, filho de chocadeira que


nunca soube o que é amar alguém...” Respondi friamente. “Tyller e Milla são
sim, muito confiáveis.”

Heniack sorriu.

“Metade do que você disse é verdade, metade não. Tyller, suponho


eu que seja esse garoto ao seu lado, é... Ele me parece bastante confiável.”
Heniack mexia as mãos em círculos. “Agora Milla, quem será Milla?”

O nome de Milla, saindo da boca daquele demônio pareceu sujo,


aquilo ferveu meu sangue. Heniack não tinha nem se quer o direito de dizer
o nome dela.

“Por que ficou tão irritada querida?” Heniack me olhava com um


sorriso torto, de deboche. “Eu conheço as pessoas, eu sei dizer o quão
confiáveis elas são, e eu posso lhe afirmar que essa tal de Milla está com um
valor 0 de confiança em uma escala de 1 a 10.”

“Você não a conhece,” Eu disse tentando controlar a minha fúria que


agora explodia dentro de mim. “Você não me conhece, não a conhece... É
apenas um imbecil que não sabe o que fala.”

Heniack então se levantou em um salto e agarrou-me pelo pescoço.


Tyller tentou impedi-lo, mas Heniack fez um movimento com a mão que
jogou Tyller contra a parede oposta.

Lá estava eu, presa na mão de um demônio, e ele estava gostando


daquilo, eu podia ver nos olhos dele, na mente dele.

“Você se acha muito espertinha porque sabe ler mentes não é


mesmo,” Heniack tinha um sorriso frio nos lábios, tão frios que fez com que
minha espinha congelasse. “Então leia isso: Sua amiguinha Milla é uma
traidora, foi ela que deixou meu dragão entrar. E não diga que é impossível,
nenhuma pessoa é confiável, mesmo sendo meio-anjo.”

Dizendo isso ele me soltou, eu caí tentando recuperar o ar, meu


pescoço doía onde antes estavam as suas mãos. Tyller também estava se
recuperando, com mais dificuldades do que eu.

“Não pode ter sido Milla,” Eu disse com a voz rouca, lendo cada canto
da mente daquele demônio. “Ela... Ela se machucou, eu tenho certeza que
foi a Lyra...”

“Querida...” Heniack disse com a voz afiada. “Sua amiga Milla é


inteligente, você sabe disso, ela apenas tomou o partido que tem mais
poder, no caso o nosso. Ela tem um trato conosco, nós destruíamos tudo,
anjos, Instituto, humanos e em troca deixávamos vocês, meio-anjos viver
normalmente, desde que vocês não se colocassem contra nós... É um trato
justo, já que os humanos não valem nada mesmo.”

Tyller lançou um olhar frenético para mim, eu nem precisei entrar na


cabeça dele para saber que ele estava tão pasmo quanto eu. Aquilo
simplesmente não podia ser verdade, não Milla, a garota tão legal e
confiável da qual eu havia crescido junto. Simplesmente não fazia sentido.

“Pense um pouco,” Heniack falava andando de um lado para o outro.


“Por que vocês precisam proteger os humanos? Se você não sabe a
resposta é porque ela não existe, simplesmente não há um porquê de vocês
fazerem o que fazem. Os humanos são maus, cruéis, nós nem precisamos
influenciá-los tanto, eles fazem as próprias decisões. Humanos não têm
compaixão e simplesmente não têm respeito nem por nós, muito menos
pelos anjos... Merecem morrer...”

“Você não é ninguém para dizer quem merece morrer ou não,” Falei
com a voz áspera. “Ninguém que eu conheça é capaz de fazer isso.”

Heniack agora ria, uma risada zombeteira que me fez querer matá-lo e
dar o seu coração para os cachorros.

“Me diga, o que a humanidade fez de bom para vocês para merecer
proteção... Nada.” Essa era uma verdade. “Sua amiga Milla foi
abandonada, tratada como escrava a vida toda, aliás a maioria de vocês
passou por isso, e quando ganham a liberdade para sair do Instituto é para
quê? Para guardar a alma dos infelizes que os abandonaram. Tenha
paciência, os humanos merecem que suas almas queimem no fundo do
mais quente inferno, Milla sabe disso por isso que fez o trato comigo.”
“O que exatamente isso implica?” Eu perguntei com medo de ouvir a
resposta.

“O fim do equilíbrio,” Os olhos de Heniack brilhavam. “Sem humanos,


sem equilíbrio, sem serviço para vocês, carta branca para matarmos quantos
anjos quisermos. Guerra minha querida, guerra... A única coisa que os
humanos tanto prezam.”

“Seria o fim dos tempos,” Tyller gaguejou do outro lado. “Mais ou


menos como o Apocalipse da bíblia.”

“Se você quiser entender dessa forma...” Heniack colocou as mãos no


bolso da calça. “Então o que me diz, você está dentro ou fora?”

“Eu não posso deixar isso acontecer,” Falei mais para mim mesma do
que para Heniack. “Você pode esquecer que haverá essa guerra... Os anjos
vão trucidar vocês quando ficarem sabendo disso, e eu ajudarei.”

“É uma pena,” Heniack agora olhava para o relógio. “Outra pena que
eu não possa te matar agora, não eu pelo menos... Mas duvido que você
sobreviva até chegar ao Instituto.”

Sem falar nada, fui até Tyller que estava parado perto da porta,
segurei na mão dele e assim saímos da boate, Heniack ficou lá parado, nos
olhando sair.

Você sabe ler mentes querida, leia isso: Você não ficará viva muito
tempo, demônios...

Os pensamentos de Heniack mandavam seus servos nos atacar, e eu


sabia que viriam muitos.

“Droga,” Eu falei segurando mais forte na mão de Tyller. “Temos que


correr...”

Começamos a correr feito loucos, sem direção aparente, todos os táxis


que chamávamos não paravam e eu sabia que um táxi não era um lugar
seguro para se estar naquele momento.

Os primeiros demônios começaram a aparecer, eles vinham de todos


os lados, de cima dos prédios, de trás das latas de lixo e em menos de um
minuto eu e Tyller estávamos rodeados de milhares de demônios sedentos
por sangue, pelo nosso sangue.

Foi ótimo enquanto durou, o pensamento de Tyller não era nada


positivo. Não sei se estou pronto para morrer.
“Não vamos morrer,” Eu falei não muito certa disso. “Simplesmente não
podemos deixar que uma guerra estoure, não podemos...”

Meu coração começou a ficar apertado, lágrimas ameaçavam rolar


pelo meu rosto. Eu não podia morrer, não agora, não pelas mãos de
demônios, não pelas mãos de Milla...

Sim, porque tudo aquilo havia acontecido por causa de Milla, minha
única amiga, a única pessoa que eu realmente confiava estava prestes a
matar, por intermédio de outros, a sua melhor amiga.

Você nunca estará sozinha...

As palavras de Amanda ecoavam pela minha cabeça. Naquele


momento eu só tinha Tyller, nenhum dos meus superpoderes novos me
ajudariam o suficiente para escapar daqueles milhares de demônios e, pelo
jeito, o olhar divino havia me abandonado. Realmente, ter mais sangue
angelical que o normal não iria me adiantar de nada naquele momento. Eu
estava caminhando direto para a morte, o meu sangue e o de Tyller
lavariam a calçada depois que os demônios nos tivessem desmembrado.

De repente, o tempo pareceu parar, os demônios pararam de se


aproximar e tudo se movia tão lentamente, isso quando se movia. Eu olhei
para cima, de onde parecia vir uma luz muito forte, lá estava Samuel o
arcanjo.

“Mas que merda é essa...” Disse Tyller arregalando os olhos.

“Não sei,” Eu disse sorrindo. “Mas tenho certeza que ele é muito melhor
que uma bazuca.”

Samuel desceu e parou entre nós e os demônios, ele abriu um belo


sorriso para mim. O arcanjo exibia toda a sua glória e magnitude pela sua
armadura dourada, Samuel era simplesmente lindo e eu tinha certeza que
nada de mal nos aconteceria enquanto ele estivesse lá.

“Fechem os olhos...” Samuel ordenou.

Depois disso, eu só pude ouvir Samuel falando algumas palavras


estranhas, provavelmente pronunciadas em latim, e ver por minhas
pálpebras um grande clarão.

“Está tudo bem,” Samuel disse tocando na minha face. “Eu levarei
você e seu amigo até o Instituto, não tenha medo pequena, eu não iria te
abandonar nunca.”
Todos os demônios que antes nos rodeava, haviam sumido, todos. Um
arcanjo é um guerreiro de Deus eu me lembrei, e com certeza Samuel era
um ótimo guerreiro.

“Samuel foi Milla,” Eu comecei gaguejando. “Milla, minha melhor


amiga.”

“Eu sei criança,” Ele falou me abraçando, e eu me senti minúscula em


seus braços. “Eu estava na sua cabeça o tempo todo quando você falou
com Heniack. A vida é complicada Jéssica e o mundo nem sempre é o que
parece, ou o que nós queremos que ele seja, mas você sabe... No fundo
sempre existe uma razão para tudo.”

“Existem traidores,” Eu disse com a voz rouca. “Gente como eu que


mudou de lado, isso é totalmente errado, vai totalmente contra o nosso
protocolo!”

“Não existe alguém que seja como você pequena,” Samuel agora me
soltou dos seus braços. “Você é a única do seu tipo. Agora, você e o garoto,
nas minhas costas, agora.”

Tyller pareceu receoso em subir nas costas do arcanjo, mas eu o


encorajei. Eu sentei na frente, e Tyller sentou-se atrás de mim.

“Você segura na raiz da asa,” Samuel nos deu a instrução. “E você


garoto, segura na menina.”

Tyller sorriu, eu corei. Tyller me envolveu com seus braços, e eu me senti


aliviada, segura. Segura por ter um arcanjo perto de mim, segura por estar
com Tyller.

Então o arcanjo levantou vôo. Cada batida da asa dele fazia com
que uma quantidade imensa de ar se deslocasse, nos impulsionando cada
vez mais para cima, cada vez mais rápido. Era confortável voar nas costas
dele, eu tinha certeza que era a melhor, e mais rápida, forma de viajar do
mundo.

“Chegaremos logo,” O arcanjo disse com sua foz triunfante. “Estejam


preparados para o que vão enfrentar.”

“Samuel, realmente obrigada por tudo...”

“Garota, não agradeça a mim, existe gente lá em cima que gosta


muito de você.”

Eu não sabia ao certo a quem ele se referia, mas eu fiquei feliz com a
idéia de ter seres no céu que regiam por mim.
“O que foram aquelas palavras que você disse?” Eu perguntei curiosa.
“Aquelas palavras estranhas.”

Samuel parecia estar sorrindo, mas eu não tive certeza por não
conseguir ver seu rosto.

“Morrerão juntos criaturas do inferno, assim como nasceram. A luz


consumirá os seus espectros enquanto sua carne será renovada.”

“Profundo,” Eu fiz pouco caso. “Um pouco trágico demais.”

“Você não deveria zombar de palavras sagradas,” Samuel disse


endurecendo a voz. “Um dia você as aprenderá, e pode ter certeza que
elas costumam ser muito úteis.”

“Eu vou poder explodir milhões de demônios de uma só vez como


você fez?” Eu perguntei com meus olhos brilhando.

“Eu não os explodi,” Samuel explicou. “Só mandei para o inferno. E


não, isso é uma coisa de arcanjo.”

Eu tinha certeza que ele estava rindo de mim, fazendo pouco caso.
Ótimo, um arcanjo irônico havia se juntado a turma também.

Seguimos em direção ao Instituto. Meus cabelos ao vento, Tyller me


abraçando e o sol se pondo.

Quando o sol se põe eles saem para caçar,


É a hora mais perigosa,
Até o rei sol se esconde para não ver a barbárie,
Nem mesmo a beleza da lua é capaz de apagar o que é feito...
Quanto o sol se põe eles saem para caçar,
Cuidado criança,
Sua alma é forte, mas o corpo é frágil.
Fique perto dos seus pais,
Ore antes de dormir,
Ore para o sol nascer logo.
Capítulo 13 – A serpente falsa...

Durante a viagem de volta eu quase não pude acreditar que tudo


aquilo realmente tinha acontecido, eu quero dizer, uma guerra estava para
acontecer, o equilíbrio iria se partir, eu queria chegar no Instituto o mais
rápido possível para bolar um plano, não sei, convencer Milla que aquela
não era a resposta para os problemas, arranjar um jeito de tudo voltar a ser
como era, mas cada vez mais eu percebia que aquilo era uma missão quase
impossível.

Minha cabeça estava a mil, meu coração mais ainda. A única coisa
boa que havia acontecido até aquele momento foi que eu pude,
finalmente, ter uma missão, eu só não esperava que fosse algo tão grande.

Voando alguns metros depois, eu ouvi um pensamento desconhecido


da minha mente.

Desde a batalha eu não tinha desligado aquela coisa, percebendo o


quão útil ela pode ser. Claro que eu me mantive fora da cabeça de Tyller,
eu havia prometido isso a ele, e eu não pretendia quebrar a minha
promessa.

“Samuel,” Eu falei baixo. “Alguém está se aproximando.”

“Eu sei,” Samuel deu um sorriso torto. “É Cam, eu o chamei, não se


preocupe, ele é um anjo e está comigo.”

Alguns segundos depois de Samuel terminar de dizer aquilo eu avistei


um anjo saindo por entre as nuvens que estavam acima de nós. Ele era tão
jovem, dezoito, no máximo dezenove anos... E mesmo assim era um anjo, um
anjo lindo, com as asas brancas e um corpo invejável, seu abdômen tinha
mais divisões do que eu podia contar e ele usava apenas uma calça jeans.

“Aqui estou Sam...” O anjo abriu um grande sorriso.

Agora ele estava tão perto que eu podia ver a cor dos olhos dele,
olhos pretos, pretos como carvão e os cabelos não tinham cor diferente. Os
olhos e cabelos contrastavam contra a sua pele branca, lisa e sem defeito
algum.

“Samuel, por favor,” O arcanjo colocou a mão sobre a testa como


protesto. “Eu já disse a você que você tem que me respeitar, pelo menos na
frente das pessoas.”
Cam ergueu uma sobrancelha e deu um sorriso torto, se divertindo da
situação. Tudo estava bem, senão pelo fato que uma guerra estava prestes
a começar.

“Qual é a da garota?” Cam perguntou olhando para mim. “Por que


ela cheira igual ao Rise?”

O arcanjo pousou a mão sobre a testa novamente. Eu não sabia


quem Rise era, mas por algum motivo aquele nome irritou Samuel, Tyller
também havia apertado mais o abraço, como se estivesse me defendendo
do anjo.

“Eu devia mandar costurarem a sua boca,” Samuel deu uma profunda
suspirada. “Ela cheira como Rise porque é filha dele, o nome dela é Jess e foi
por ela que lhe chamei, quando chegarmos ao Instituto explico tudo para os
dois, nem adianta vocês fazerem leitura mental, não vai colar comigo.”

Eu tentei, juro que tentei ler a mente do arcanjo, ele conhecia o meu
“pai”, eu realmente queria saber mais dele, mas tudo que eu conseguia
ouvir era a mente de Cam, enviando as mesmas perguntas para Samuel.

Cam olhou-me com aquele mesmo sorriso torto e uma cara de “fazer
o quê?”, eu fiz o mesmo gesto para ele. Tyller me segurou mais firme. Qual
era o problema dele? Ele queria quebrar uma das minhas costelas ou o quê?

Me contorci um pouco para ele afrouxar o laço, obtive sucesso, mas


Tyller continuou tenso. Ele tinha um mal pressentimento sobre o anjo e eu não
entendia o por quê, era um anjo, que mal ele poderia nos fazer?

Depois de um longo silêncio e muito vento batendo em minha cara,


eu finalmente consegui ver o Instituto.

De repente eu me sentia triste pelo vôo ter acabado, eu tinha gostado


da sensação, gostado do vento no rosto, de ver o mundo inteiro de cima, de
tirar os meus pés do chão por algumas horas... Voar era divino, e naquele
momento eu entendi porque apenas anjos podiam voar, mesmo assim, eu
trocaria uma perna minha por um par de asas.

O arcanjo pousou dentro do pátio do Instituto, Cam pousou ao seu


lado, misteriosamente as asas de Cam sumiram, mas não as de Samuel. Tyller
e eu descemos das costas de Samuel. Logo que meus pés tocaram o chão,
eu soube o que eu tinha que fazer, eu tinha que achar Milla. Corri em
encontro à porta principal, todos os outros me seguiram.

As portas se abriram sozinhas, como se a estrutura do Instituto me


dessem as boas-vindas, era bom voltar para casa, apesar de as
circunstâncias não serem as melhores. O Instituto parecia diferente, não
haviam sido feitas mudanças, porém eu me sentia diferente em relação a
ele, como se eu tivesse me libertado dele, como se meu corpo não
pertencesse mais àquelas paredes, porém, alguma parte do meu coração
ainda dizia que eu pertencia aquele lugar.

Correndo pelos corredores, eu encontrei alguns alunos, vi algumas


caras novas. Todos eles me olhavam como se eu fosse uma aparição, e eu
não os culpava, a maioria deles tinham pensado que eu não voltaria, não
com vida pelo menos.

Lá estava ela, Milla, sentada na mesa do refeitório onde eu e ela


costumávamos sentar. Diminuí o passo, não havia mais necessidade de
correr, eu havia encontrado meu objetivo e, naquele instante, eu não sabia
se conseguiria falar com ela. Por um momento, tudo o que Heniack havia
falado tinha ficado para trás, Milla era tão doce, o semblante dela não
expressava culpa, Cam tinha menos cara de anjo do que ela, talvez ela
pudesse ser um anjo.

Me aproximei, com o coração na mão. Milla estava com a cabeça


apoiada entre as mãos, olhando para baixo, como se estivesse perdida.

“Oi,” Eu disse, pondo-me à sua frente. “Eu disse que voltaria.”

Milla ergueu os olhos, uma mistura de confusão e alegria estava


estampada em sua face. Ela levantou em um pulo, e me abraçou. Não
importava o que ela havia feito, ela tinha sentido a minha falta, Milla nunca
tinha sido falsa em relação a nossa amizade.

“Olha,” Eu falei afastando-a de mim. “Precisamos conversar, é sério.”

Milla olhou para o lado, na direção onde o arcanjo, o anjo e Tyller


estavam. Ela arregalou os olhos, com medo, aquilo com certeza era medo.
O medo demonstrou a sua culpa. Quem não deve não teme. A voz de Cam
dizia na minha mente.

Eu olhei para ele. Os pensamentos dele estavam sendo enviados para


a minha mente, eu não sabia que aquilo era possível. Bom, aquele não era o
momento certo para eu refletir sobre isso, haviam coisas muito mais
importantes para se tratar.

“Me diz que você não fez aquilo Milla,” Eu segurava as lágrimas. “Me
diz que você não traiu a todos nós.”

Milla deu dois passos para trás, olhando para a multidão que
começava a se formar ao nosso redor. A notícia que eu havia voltado se
espalhou rapidamente, talvez a velocidade tenha sido aumentada pelo fato
de eu ter voltado com dois anjos junto.
“Traição?” Lyra perguntou no meio do público. “Eu disse a você que
eu não tinha nada a ver com o dragão, engoliu suas palavras Jess...”

“Cale a boca,” Tyller gritou, respondendo à provocação de Lyra. “Se


não você vai engolir os seus dentes.”

Milla estava assustada, ficou pior quando viu os professores se


aproximando, junto com eles a Sra. Vânia.

Ótimo, eu pensei. Tudo que eu precisava era a Sra. Vânia olhando


para mim com uma cara de maternidade.

Ignorei-a completamente e voltei a olhar para Milla. Algum dia eu teria


que conversar com a diretora, algum dia eu teria que abaixar a guarda, mas
algo me dizia que isso não seria agora, e nem tão cedo.

“Não foi traição,” Milla disse com a voz alterada. “Simplesmente uma
solução, para todos nós. Não era para o dragão ter ferido ninguém.”

Eu não acreditava no que tinha acabado de escutar, a minha melhor


amiga acabara de confessar uma traição, um acordo que ela fizera com
Heniack, que não é o diabo, mas estava bem perto.

“Eu não posso acreditar,” Eu disse secando uma lágrima. “Realmente


Milla, você acha que essa é a solução?”

“Pense comigo Jess,” Milla agora me olhava diretamente nos olhos. “A


coisa mais racional a se fazer é acabar com o equilíbrio. Que equilíbrio é
esse onde os humanos, e somente os humanos são beneficiados? Passamos
a nossa vida inteira trancados aqui, não conhecemos Paris, nem o Coliseu,
por quê? Porque estamos aqui treinando para proteger uma raça
totalmente inferior. Os humanos são fracos Jess, tanto espiritual quando
fisicamente... Nós que somos mais espertos, mais fortes, não deveríamos
gastar todo o nosso tempo para proteger um povo que abandona seus
próprios filhos, um povo que escolhe fazer o que é ruim sem ao menos ser
coagido por um demônio. Me diz, para que trabalhamos tanto?”

“Porque a Terra pertence a eles,” Cam respondeu com sua voz


imponente. “Deus criou a todos nós, anjos, humanos e os demônios foram
criados quando Lúcifer foi expulso do paraíso. Aos anjos ele deu o céu, ao
demônios ele deu o submundo, e as humanos a Terra. Acontece que, a
partir do momento que os demônios subiram para sucumbir com a raça
humana, nós tivemos que descer para não deixar que isso acontecesse, e aí
o equilíbrio foi formado, aí que vocês foram criados.”

“Esse mundo não pertence a nós,” Samuel completou. “Nem aos


demônios, pertence aos humanos, e é assim que deve continuar sendo.”
“Você sabe que não poderá mais ficar aqui, não sabe?” Eu perguntei
para Milla. “Você sabe que não seremos mais amigas se você continuar do
lado que está...”

“Eu sei.” Ela respondeu com a voz firme. “Mas eu não vou mudar de
idéia, não vou proteger a mesma raça da mulher que me jogou aqui dentro
sem sequer me amar um pouco...”

“Você terá que se retirar do Instituto,” Sra. Vânia tomou a palavra. “A


partir de agora, você não pertence mais a esse lugar, suas decisões não
influenciam mais o Instituto, não poderá mais entrar aqui sem ser convidada,
muito menos convidar alguém.”

“Heniack está vindo me buscar,” Disse Milla. “Ele falou que quando isso
acontecesse ele viria.”

“Se você não quiser você não precisa ir, você pode mudar de idéia.”
Minha voz estava cheia de esperança, eu não queria perder minha amiga,
não queria que ela se transformasse em minha inimiga. “Eu não quero lutar
contra você Milla, não faça isso.”

“Então não lute,” Ela falou com os olhos brilhando. “Venha comigo,
você sabe que eu estou certa.”

“Não, não está...” Foi só o que respondi.

O silêncio total pairou sobre o salão do refeitório, alunos com as mãos


na boca de surpresa, Sr. Hung balançava a cabeça negativamente o
tempo todo, lamentando a perda que estávamos prestes a ter.

“Então assim será,” Disse Milla, abrindo um sorriso forçado. “Eu vou
embora, mas não esperem piedade de mim quando eu estiver com a
espada apontada para os seus pescoços durante a guerra. Não esperem
que eu poupe a vida de vocês. Nem mesmo você Jess, você não me apóia
agora, eu não hesitarei em tirar a sua vida.”

Aquelas palavras cortaram o meu coração mais profundamente do


que a espada que eu imaginei que Milla seguraria na batalha. Se me
matassem naquele momento, não faria diferença, a dor era tanta que eu
nem saberia o momento que a lâmina tinha entrado. Milla não tinha
qualquer resquício de arrependimento no olhar, era como se tivessem feito
lavagem cerebral nela.

O pior de tudo é que eu sabia que ela estava falando a verdade, ela
não hesitaria em me matar. O que me deixava com mais raiva era que eu
não podia dizer o mesmo, eu não sabia se conseguiria matar Milla quando
chegasse o momento, não queria fazê-lo.

“Adeus Milla,” Eu disse enquanto as lágrimas rolavam por meu rosto.


“Eu realmente espero que um dia você veja a cagada que fez.”

Ela sorriu, um sorriso torto... Um sorriso sem sentimento algum. Depois,


andou em direção à porta, até que estava totalmente fora dos limites do
Instituto.

Eu a segui, com esperança que ela se arrependesse no meio do


caminho e voltasse correndo. Esperança inútil! Um dragão alado de Heniack
pousou na frente do Instituto, então Milla montou nele como se fosse um
simples cavalo. Ela não olhou para trás.
Capítulo 14 – O céu na terra.

Confiança é uma via de duas mãos, você só confia em quem confia


em você. Milla me traíra, traíra a todos nós, e nem ao menos cogitou a
possibilidade de estar errada.

Os dias passariam mais de vagar a partir daquele momento, eu, que


antes já não tinha muitos amigos, tinha acabado de perder uma das, se não
a mais importante pessoa da minha vida. Milla.

Minha mãe não era o maior exemplo de espírito materno, e minha


melhor amiga acabou agindo pior do que Lyra, quem eu sempre achei que
possuía a culpa. O mundo estava desabando e não havia nada que eu
pudesse fazer.

Uma mão pesada se apoiou no meu ombro, era Samuel com os seus 3
metros de altura à minha direita, Cam se aproximou e ficou à minha
esquerda.

Você vai ficar bem... Cam mandou novamente seus pensamentos


para mim.

“Eu não tenho tanta certeza disso.” Eu respondi.

Samuel retirou a mão do meu ombro e começou a andar em direção


a diretora Vânia. A cada passo, ele se aproximava mais ou menos 2 metros
dela. Virei-me para olhar Samuel, tão grande perto de nós.

“Vânia, a quanto tempo não nos víamos não?” Ele sorriu


amigavelmente. “Detesto ter que fazer isso, mas eu tenho que fazer, sou um
arcanjo ao final das contas.”

A diretora possuía dor nos olhos, ela sabia sobre o que ele estava
falando, apesar de eu não estar muito certa sobre o assunto.

“Eu sabia que esse momento ia chegar,” A diretora sorriu, mas seus
olhos não. “Vocês vão cuidar bem dela não vão?”

“O que você quer dizer com isso?” Tyller arregalou os olhos, fitando-
me.

“Ela quer dizer que Jess vai embora conosco entendeu rapaz?” Cam
falou com voz ríspida. “Ela não pode ficar aqui, não é seguro. E a última
coisa que queremos é vê-la morta, concorda?”
“Eu tomo conta dela,” Tyller disse com a voz pesada. “Eu fiz isso até
agora, posso fazer isso sempre.”

Tyller me amava, eu podia ver aquilo nos olhos dele. Eu o amava


também, mas de uma forma totalmente diferente, ele era o meu amigo,
agora... meu único amigo. E a última coisa que eu queria era feri-lo. Porém,
nada eu poderia fazer, eu sabia que teria de ir embora com os anjos, eu
sabia que era o melhor para todos nós. Ficando, eu colocaria em risco a
todos, colocaria Tyller em risco.

“Tyller,” Eu disse caminhando em direção a ele. “Eu... Eu acho que eles


estão certos, eu simplesmente... simplesmente sou diferente, você sabe, esse
não é o meu lugar.”

Tyller olhou-me com o olhar pesado, e eu me senti como se tivesse 300


quilos nas minhas costas.

“Jess, por favor...” Tyller gaguejou enquanto chegava mais perto.

“Eu tenho que ir...” Foi o que consegui responder.

Tyller então, pegou-me em seus braços e me abraçou como se fosse a


última coisa que ele faria na vida. Eu sentiria falta dele, sentiria falta de Tyller.
Depois disso, ele pegou meu rosto com uma das mãos e virou minha face
para cima, em direção a dele, então ele me beijou.

Eu não lutei contra aquilo. O beijo de Tyller era quente, e enviou ondas
de calor por todo o meu corpo, porém, meu coração permaneceu
inalterado. Eu não amava Tyller, não da forma que ele me amava. Talvez eu
não fosse realmente capaz de amar, talvez o meu gene de anjo não me
deixava sentir o mesmo por ele.

Quando o beijo terminou, eu sorri para ele. Um sorriso de boca


fechada, lábios cerrados.

“Adeus Ty.” Eu falei me dirigindo até onde Cam estava, e Samuel, o


arcanjo, me seguia.

Ignorei os pensamentos que vinham de todos da sala, apesar de me


surpreender a falta que alguns expressavam por mim, resolvi não ouvir mais
nada, a não ser a voz de Cam na minha cabeça, uma que eu não
conseguia afastar.

“Vamos,” Eu falei pegando na mão de Cam, e uma corrente elétrica


percorreu o meu corpo a partir de onde nos tocamos, apenas o toque no
anjo fez-me sentir mais viva do que o beijo de Tyller. “Não quero mais ficar
aqui.”

Seu pedido é uma ordem, ele falou em pensamento enquanto me


pegava no colo. Segure-se firme do meu pescoço.

Assim que ele tirou-me do chão, eu senti como se meu corpo não
pesasse nada, Cam era forte o suficiente para me erguer sem esforço e eu
apostava que ele conseguiria erguer muito mais peso se precisasse.

Fazendo o que o anjo ordenou, meu rosto ficou muito próximo ao de


Cam, e eu pude ver as linhas de perfeição do seu rosto. Nenhum humano no
planeta Terra conseguiria algum dia ter uma beleza daquela.

Levantamos vôo, Cam comigo no colo e o arcanjo logo atrás.

“Como você manda pensamentos para a minha cabeça?” Perguntei


a Cam, tentando não olhar diretamente para ele, já que estávamos tão
perto, mas era impossível. “Eu te escuto, mesmo quando não quero.”

“Ele é o seu par,” Samuel respondeu no lugar de Cam. “Todos nós


anjos temos um par, você tem tanto sangue nosso dentro de você que
também nasceu com um, Cam irá instruir você, ensinar tudo o que você
precisa para poder lutar conosco, você será nosso intermédio, precisa estar
preparada.”

“Par, par?” Eu perguntei confusa. “Como Adão e Eva?”

Na verdade, bem assim mesmo, eu só espero que você não escute a


serpente. Tudo o que você pensa eu consigo ler também querida, Cam
pensou. Inclusive a parte que você me achou um deus grego.

Eu corei. Ótimo, agora eu teria que tomar cuidado com os meus


pensamentos, pois alguém sempre os estaria observando.

“A guerra está para estourar. Você ficará conosco a partir de agora,”


Samuel fez com que minha atenção voltasse para ele. “Creio que a guerra
não começará, por enquanto, Heniack gosta de tudo preparado, mas você
tem que estar preparada quando começar. E não,” Disse ele lendo os meus
pensamentos. “Nós não vamos ficar no céu, mas sim em um prédio no
centro de Sacramento, CA. Eu, você, Cam e mais alguns anjos que estão por
lá treinando.”

“Eu não sei que importância eu posso ter em uma guerra dessas.” Eu
falei encostando minha cabeça no peito de Cam, sentindo o seu cheiro de
almíscar.
“Você entenderá quando o treino estiver acabado,” Cam respondeu.
“Acredite em seu potencial garota, eu acredito nele.”
Eu ficaria algum tempo no meio de anjos, e nem sequer havia morrido
ainda. Lendo isso você pode pensar que é sorte, na verdade eu achava a
pior coisa do mundo, não morar com anjos, mas sim o motivo que me levaria
a morar com eles.

O mundo estava desabando, realmente, como uma casa interditada,


na qual você não sabe quando ela vai cair, mas tem certeza que um dia
acontecerá.

Assim estava minha vida naquele momento, eu sabia que ela iria
desabar a qualquer momento, só não queria pensar em como, só esperava
que não fosse pela espada de Milla. Só me restava esperar e, de algum
modo, estar pronta para tudo, estar pronta para o Apocalipse.

A corda está esticada,


Tão esticada que quase estoura,
De um lado, a mão de Deus segura,
Do outro, a mão que ninguém quer tocar,
A menina está sobre o meio da corda,
É difícil manter o equilíbrio,
Cair ela irá?
E então ela acorda,
E vê que nada começou,
Ainda.

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