Você está na página 1de 104

O Estrangeiro Negro

(por Robert E. Howard)

1) Os Homens Pintados

Por um instante, a clareira estava vazia; no momento seguinte, um


homem se encontrava cautelosamente posicionado no limite das
moitas. Não houvera nenhum som para avisar os esquilos cinzentos
da sua chegada. Mas os pássaros de cores alegres, que voavam ao
redor, sob o sol do espaço aberto, se assustaram diante de sua súbita
aparição e se ergueram numa ruidosa nuvem. O homem franziu a
testa e olhou rapidamente para trás do caminho pelo qual viera,
como se temendo que o vôo deles tivesse traído sua posição para
alguém invisível. Então, ele andou furtivamente pela clareira, pisando
com cuidado. Apesar de sua constituição pesada, ele se movia com a
flexível resolução de uma pantera. Estava nu, exceto por um farrapo
enrolado nos quadris; e seus membros estavam riscados, em linhas
cruzadas, por arranhões de sarças e empastados com lama seca.
Uma atadura, incrustada de marrom, estava amarrada ao redor de
seu musculoso braço esquerdo. Sob a emaranhada cabeleira negra,
seu rosto estava contraído e sombrio, e seus olhos brilhavam como
os de uma pantera ferida. Mancava levemente, enquanto seguia a
trilha quase invisível que levava de um lado a outro do espaço
aberto.

No meio da clareira, ele parou abruptamente e girou tão rápido


quanto um gato, encarando o caminho pelo qual viera, quando um
grito longo reverberou pela floresta. Para outro homem, pareceria
meramente o uivo de um lobo. Mas este homem sabia que não era
lobo. Ele era um cimério e entendia as vozes da selva, do mesmo
modo que um homem da cidade reconhece a voz de seus amigos.

A fúria queimou vermelha em seus olhos injetados de sangue,


enquanto ele voltava mais uma vez e se apressava pelo caminho, o
qual, depois do declive, seguia ao longo do limite de uma densa
moita que se erguia numa espessa massa de verdor, entre as árvores
e as moitas. Um pesado tronco caído de árvore, profundamente
encaixado na terra de grama, estava paralelo à margem da moita,
situado entre esta e o caminho. Quando o cimério viu este tronco,
parou e olhou para trás, por toda a clareira. Para o olho comum, não
havia sinais de sua passagem; mas havia sinais visíveis para seus
olhos aguçados pela selva, e portanto para os igualmente agudos
olhos daqueles que o perseguiam. Ele rosnou silenciosamente, a fúria
vermelha crescendo em seus olhos – a fúria berserk de uma fera
caçada, pronta para ser encurralada.

Desceu a trilha com relativo descuido, esmagando aqui e ali uma


folha de capim, com o pé. Logo, quando alcançou a extremidade do
tronco, ele pulou sobre o mesmo, virou-se e correu
despreocupadamente de volta, ao longo dele. A casca havia sido
desgastada há muito tempo pelos elementos. Ele não deixou sinal
que mostrasse ao mais aguçado olho daquela floresta que ele havia
dobrado em seu caminho. Quando alcançou o ponto mais denso da
moita, ele desapareceu como uma sombra, dificilmente o balanço de
uma folha marcando-lhe a passagem.

Os minutos se arrastaram. Os esquilos cinzas tagarelavam


novamente nos galhos – logo, aplanaram os corpos e ficaram
subitamente mudos. Novamente a clareira era invadida. Tão
silenciosamente quanto aparecera o primeiro homem, outros três
homens se materializaram no canto leste da clareira. Eram escuros,
de baixa estatura, com peitos e braços musculosos. Usavam tangas
de pele de gamo, enfeitadas por contas, e uma pena de águia estava
enfiada na negra cabeleira de cada um. Estavam pintados com
desenhos hediondos, e pesadamente armados.

Haviam esquadrinhado cuidadosamente a clareira, antes de


aparecerem em campo aberto, pois saíram dos matagais sem
hesitação, em fila única e compacta, andando tão suavemente quanto
leopardos e se curvando para olharem atentamente o caminho.
Estavam seguindo a trilha do cimério, mas não era trabalho fácil,
mesmo para estes sabujos humanos. Se moviam devagar pela
clareira, e logo um deles se empertigou, grunhiu e apontou, com sua
perfurante lança de lâmina larga, para uma folha pisada de capim, na
qual a trilha adentrava novamente a floresta. Todos pararam
instantaneamente, e seus olhos, negros como contas, procuraram
pela muralha verde. Mas sua caça estava bem escondida; não viram
nada que lhes despertasse a suspeita, e dali a pouco, se moveram
novamente, seguindo as tênues marcas, que pareciam indicar que
sua presa estava ficando descuidada, devido à fraqueza ou ao
desespero.

Eles mal haviam passado pelo ponto onde a moita ficava mais perto
da antiga trilha, quando o cimério saltou para dentro do caminho
atrás deles e cravou sua faca entre as espáduas do último homem. O
ataque foi tão rápido e inesperado, que o picto não teve chance de se
salvar. A lâmina estava em seu coração, antes dele perceber que
corria perigo. Os outros dois se voltaram com a instantânea rapidez
dos selvagens, mas, mesmo enquanto o seu punhal afundava, o
cimério deu um tremendo golpe com o machado de guerra em sua
mão direita. O segundo picto estava se virando, quando o machado
caiu. Este abriu-lhe o crânio até os dentes.

O picto remanescente – um chefe, a julgar pela ponta escarlate de


sua pena de águia – atacou selvagemente. Estava dirigindo uma
punhalada ao peito do cimério, enquanto este puxava o machado da
cabeça do morto. O cimério arremessou o cadáver contra o chefe, e
em seguida atacou tão furiosa e desesperadamente quanto a
investida de um tigre ferido. O picto, cambaleando sob o impacto do
cadáver contra ele, não tentou desviar o machado que caía. Com o
instinto de matança submergindo até mesmo o de viver, ele dirigiu
ferozmente a lança ao peito largo do inimigo. O cimério tinha a
vantagem de uma inteligência maior, e uma arma em cada mão. A
machadinha, detendo seu movimento para baixo, desviou a lança
para o lado, e a faca na mão direita do cimério foi para o alto,
rasgando a barriga pintada.

Um uivo medonho saiu dos lábios do picto, enquanto ele caía


estripado – um grito, não de medo ou de dor, mas de fúria frustrada
e bestial, o guincho de morte de uma pantera. Ele foi respondido por
um coro selvagem de gritos, a alguma distância a leste da clareira. O
cimério olhou convulsivamente e girou, se agachando como uma
coisa selvagem encurralada, os lábios rosnando e sacudindo o suor
do rosto. O sangue lhe escorria do antebraço sob a bandagem.

Com uma praga arfante e desconexa, ele deu meia-volta e fugiu para
oeste. Ele não retomou seu caminho, mas correu com toda a
velocidade de suas longas pernas, apelando para todas as
inesgotáveis reservas de resistência, que são a compensação da
Natureza para uma existência bárbara. Atrás dele, por um espaço de
tempo, a mata estava em silêncio; logo, um uivo demoníaco explodiu
no ponto que havia abandonado recentemente, e ele ficou ciente de
que seus perseguidores encontraram os corpos de suas vítimas. Não
teve fôlego para amaldiçoar as gotas de sangue que ficaram
espalhadas pelo chão, vindas de seu ferimento recém-aberto,
deixando um rastro que até uma criança poderia seguir. Ele pensara
que talvez aqueles três pictos fossem os únicos que ainda o
perseguiam, do bando de guerra que o havia seguido por mais de mil
e seiscentos quilômetros. Mas ele deveria saber que estes lobos
humanos nunca abandonam um rastro de sangue.

As árvores estavam quietas novamente, e aquilo significava que


estavam correndo atrás dele, observando-lhe a trilha pelas traiçoeiras
gotas de sangue que ele não conseguia deter. Um vento, vindo do
oeste, soprou-lhe no rosto e estava carregado por uma umidade
salina que ele reconheceu. Ele ficou imediatamente espantado. Se
estava tão perto do mar, a longa perseguição havia sido ainda mais
longa do que imaginara. Mas estava quase terminada. Mesmo sua
vitalidade lupina estava diminuindo, devido ao terrível esforço físico.
Ele ofegava e havia uma dor aguda em seu lado. Suas pernas
tremiam de cansaço, e a que mancava doía como o corte de uma faca
nos tendões, a cada vez que ele punha o pé no chão. Ele seguira os
instintos da selva que o havia gerado, forçando todos os nervos e
tendões, e exaurindo todas as astúcias e artifícios para sobreviver.
Agora, em seu limite, ele estava obedecendo outro instinto,
procurando um lugar para fazer frente aos perseguidores e vender
sua vida por um preço sangrento.

Ele não abandonou a trilha para ir às profundezas emaranhadas do


outro lado. Sabia que era inútil ter esperanças de escapar de seus
perseguidores agora. Correu pela trilha, enquanto o sangue lhe
pulsava cada vez mais forte nos ouvidos, e cada respiração era um
doloroso ofego de secar os lábios. Atrás dele, irrompeu um louco
latido grave, dando a impressão de que eles estavam próximos aos
seus calcanhares e na expectativa de alcançarem rapidamente sua
presa. Chegariam agora tão rápidos quanto lobos famintos, uivando a
cada salto.

Impetuosa e abruptamente, ele saiu da espessura das árvores e viu,


à sua frente, o solo se erguendo de forma abrupta, e a antiga trilha
enroscando saliências rochosas para o alto, entre matacões
irregulares. Tudo se aglomerava diante dele numa vertiginosa bruma
vermelha, mas era uma colina que ele tinha de alcançar – um áspero
penhasco, que se erguia abruptamente da floresta que lhe cercava a
base. E a tênue trilha serpenteava para o alto, até uma vasta
saliência próxima ao cume.

Aquela saliência seria um lugar tão bom para morrer quanto qualquer
outro. Subiu manquejando pela trilha, usando mãos e joelhos nos
locais mais íngremes, a faca entre os dentes. Ele ainda não alcançara
a saliência, quando uns quarenta selvagens pintados saíram correndo
entre as árvores, uivando como lobos. Ao verem sua presa, seus
gritos se ergueram a um crescendo diabólico, e correram em direção
ao pé do penhasco, lançando flechas enquanto se aproximavam. As
setas choveram sobre o homem, que escalava obstinadamente, e
uma delas se fincou na barriga de sua perna. Sem interromper sua
subida, ele a puxou e lançou para um lado, sem se importar com os
projéteis menos precisos que se estilhaçavam nas rochas ao seu
redor. Implacavelmente, ele se arrastou para cima da beirada da
saliência e girou ao redor, puxando sua machadinha e erguendo o
punhal na mão. Deitou-se na beirada, olhando ferozmente para seus
perseguidores; somente sua cabeleira emaranhada e olhos ardentes
estavam visíveis. Seu peito ofegava, enquanto sorvia o ar em
grandes e trêmulos ofegos, e ele apertou os dentes ao sentir náusea.

Somente umas poucas flechas assobiavam em sua direção. A horda


sabia que sua presa estava encurralada. Os guerreiros avançaram
uivando, pulando agilmente sobre as rochas ao pé da colina, com os
machados de guerra nas mãos. O primeiro a alcançar o penhasco era
um bravo musculoso, cuja pena de águia estava manchada de
escarlate como um sinal de sua condição de chefe. Ele parou
brevemente, um dos pés na trilha inclinada, flecha entalhada e
parcialmente puxada para trás, a cabeça lançada para trás e os lábios
abertos para um grito exultante. Mas sua seta jamais foi disparada.
Ele ficou subitamente imóvel, e a sede de sangue em seus olhos
negros deu lugar a um olhar de surpreendente reconhecimento. Com
um grito, ele recuou, abrindo bem os braços para deter o avanço de
seus bravos uivantes. O homem que se agachava na saliência acima
deles entendia a língua picta, mas estava muito longe para entender
o significado das frases ditas bruscamente pelo chefe de plumas
escarlates.

Mas todos pararam com seus ganidos e, em silêncio, olharam


fixamente para o alto – não para o homem na saliência, parecia-lhe.
Então, sem maior hesitação, eles desarmaram os arcos e os enfiaram
nos estojos de pele de gamo, em seus cintos; viraram as costas e
correram pelo espaço aberto, para sumirem dentro da floresta sem
olharem para trás.

O cimério olhou assombrado. Ele conhecia muito bem a natureza


picta para não entender a finalidade expressa na retirada. Sabia que
eles não voltariam. Estavam se dirigindo para suas aldeias, 1600 km
a leste.

Mas ele não conseguia entender. O que havia lá, ao redor de seu
refúgio, para fazer um bando de guerreiros pictos abandonar uma
perseguição, que eles seguiram tão longe com toda a fúria de lobos
famintos? Ele sabia haver lugares sagrados, pontos situados à parte
como santuários pelos vários clãs, e que um fugitivo, se refugiando
num destes santuários, estava a salvo do clã que o erguera. Mas as
diferentes tribos raramente respeitavam santuários de outras tribos;
e os homens que o perseguiram certamente não tinham pontos
sagrados pertencentes a eles nesta região. Eram homens dos Águias,
cujas aldeias ficavam bem distantes a leste, vizinhas à região dos
pictos Lobos.
Foram os Lobos que o haviam capturado, numa incursão contra os
povoados aquilonianos ao longo do Rio Trovão, e dado-o aos Águias,
em troca de um chefe Lobo capturado. Os Águias tinham uma dívida
de sangue contra o gigante cimério, e agora ela ficou ainda mais
sangrenta, pois sua fuga custara a vida de um notável chefe de
guerra. Foi por isso que eles o haviam seguido tão implacavelmente,
sobre largos rios e colinas, e através de longas léguas de florestas
sombrias, os territórios de caça de tribos hostis. E agora, os
sobreviventes daquela longa perseguição viraram as costas, quando
seu inimigo estava pego na armadilha. Ele sacudiu a cabeça, incapaz
de entender.

Ele se ergueu cautelosamente, atordoado pelo longo esforço, e pouco


capaz de compreender que havia acabado. Seus membros estavam
rígidos e seus ferimentos, doloridos. Cuspiu secamente e praguejou,
esfregando os ardentes olhos injetados em sangue com as costas de
seu grosso pulso. Piscou e olhou ao seu redor. Sob ele, as selvas
verdes ondulavam e se encapelavam numa massa sólida; e, acima de
sua orla ocidental, se erguia uma névoa azul como aço, a qual ele
sabia estar suspensa sobre o oceano. O vento agitava-lhe a cabeleira
negra, e o penetrante odor salgado da atmosfera o reviveu. Ele
estufou o enorme peito e o aspirou.

Logo, ficou rígido e dolorido, rosnando devido à pontada na barriga


de sua perna, e foi investigar a saliência onde se encontrava. Atrás
dela, se erguia um penhasco rochoso até a crista do mesmo, uns
nove metros acima dele. Uma estreita escada de mão havia sido
escavada dentro da rocha. E, a pouca distância do pé dela, havia uma
fenda na rocha – larga e alta o suficiente para um homem entrar.

Ele claudicou até a fenda, olhou atentamente para dentro e grunhiu.


O sol, no alto da floresta ocidental, se inclinava sobre a fenda,
mostrando uma caverna em forma de túnel além dela, e descansava
numa reveladora viga no arco onde o túnel acabava. Naquele arco,
havia uma pesada porta de carvalho, revestida com ferro!

Isto era espantoso. Esta região era uma selva uivante. O cimério
sabia que, por mais de mil e seiscentos quilômetros, esta costa
ocidental era nua e inabitada, exceto pelas aldeias das ferozes tribos
do litoral, que eram ainda menos civilizadas que suas irmãs das
florestas.

Os povoados de civilização mais próximos eram os assentamentos ao


longo do Rio Trovão, centenas de milhas a leste. O cimério sabia ser
o único homem branco a cruzar a selva que ficava entre o rio e a
costa. No entanto, aquela porta não era trabalho dos pictos.

Sendo inexplicável, era motivo de desconfiança, e desconfiadamente


ele se aproximou, com o machado e a faca preparados. Então,
quando seus olhos injetados em sangue ficaram mais acostumados à
suave escuridão que se escondia em ambos os lados da estreita haste
de luz solar, ele percebeu algo mais: grossas arcas cobertas de ferro
se enfileiravam ao longo das paredes. Um brilho de compreensão
apareceu em seus olhos. Curvou-se sobre uma, mas a tampa resistiu
a seus esforços. Ergueu seu machado para despedaçar a antiga
fechadura, mas logo mudou de idéia e manquejou em direção à porta
arcada. Seu comportamento estava mais confiante agora, suas armas
estavam penduradas em seus lados. Ele empurrou a porta
adornadamente esculpida, e ela girou para dentro sem resistência.

Então, sua atitude mudou novamente, com a brusquidão de um


relâmpago: ele recuou, praguejando assustadoramente, com a faca e
o machado reluzindo ao assumirem posições defensivas. Por um
instante, ficou parado ali, como uma estátua de ameaça feroz,
esticando o sólido pescoço para olhar através da porta. Era mais
escuro, na grande câmara natural para onde estava olhando, mas um
brilho fraco emanava da grande jóia, que estava sobre um diminuto
pedestal de marfim, no centro da grande mesa de ébano, ao redor da
qual se sentavam aquelas formas silenciosas, cuja aparência havia
surpreendido o intruso daquela forma.

Não se moviam; não viraram as cabeças em direção a ele.

- Bom – ele disse asperamente –, vocês estão bêbados?


Não houve resposta. Ele não era um homem fácil de se embaraçar,
embora naquele momento se sentisse desconcertado.

- Vocês poderiam me oferecer um copo desse vinho que estão


bebendo. – rosnou, com sua truculência natural despertada pelo
embaraço da situação – Por Crom, vocês têm uma maldita falta de
cortesia com um homem de sua própria irmandade. Vocês vão...?

Sua voz se arrastou até se calar, e em silêncio ele ficou encarando


por um instante aquelas figuras bizarras, que se sentavam tão
silenciosamente ao redor da grande mesa de ébano.

- Não estão bêbados. – murmurou pouco depois – Não estão sequer


bebendo. Que brincadeira dos diabos é esta?

Ele adentrou a soleira e, no momento seguinte, estava lutando por


sua vida, contra os invisíveis dedos assassinos que lhe agarravam a
garganta.

2) Homens do Mar

Belesa agitava ociosamente uma concha marinha, com um gracioso


dedão calçado com chinelo, comparando mentalmente suas delicadas
bordas cor-de-rosa com a primeira névoa rosa do amanhecer, que se
erguia sobre as praias brumosas. Não estava amanhecendo agora,
mas o sol se erguera há não muito tempo, e as leves nuvens verde-
pérola, que se arrastavam sobre as águas, ainda não tinham sido
dispersas.

Belesa ergueu sua cabeça esplendidamente formada, e olhou


fixamente para uma cena que lhe era estranha e repelente, embora
sombriamente familiar em cada detalhe. De seus pés graciosos, as
areias amarelas corriam para encontrar as suaves ondas envolventes,
que se estendiam para oeste, até se perderem na bruma azul do
horizonte. Ela se encontrava na curva meridional da grande baía, e ao
sul dela, a terra subia até um baixo cume, que formava um chifre
daquela baía. Daquele cume, ela sabia, dava para olhar na direção
sul, pelas águas nuas – até distâncias de infinidade tão absoluta
quanto a vista para oeste e norte.

Olhando apaticamente em direção à terra, ela distraidamente


esquadrinhou a fortaleza que tem sido sua casa no último ano.
Contra um vago céu da manhã pérola e azul, pairava a bandeira
dourada e escarlate de sua casa – uma insígnia que não despertava
entusiasmo em seu peito jovem, embora a mesma houvesse sido
desfraldada sobre vários e sangrentos campos de batalha, no Sul
distante. Ela notou as figuras de homens trabalhando nos jardins e
campos que se amontoavam próximos ao forte, parecendo evitarem o
abrigo sombrio da floresta que demarcava a faixa aberta sobre o
leste, se estendendo para o norte e sul até onde sua visão podia
alcançar. Ela temia aquela floresta, e aquele medo era compartilhado
por todos naquele pequeno povoamento. Não era um medo fútil – a
morte se escondia naquelas profundezas sussurrantes; morte rápida
e terrível; morte lenta, horrenda, oculta, pintada, incansável e
implacável.

Ela suspirou e caminhou apaticamente até a beira d’água, sem


nenhum objetivo fixo na mente. Os dias que se arrastavam eram
todos de uma só cor, e o mundo das cidades, cortes e alegrias
parecia estar, não apenas a milhares de quilômetros, mas a longas
eras de distância. Mais uma vez, tentou em vão entender o motivo
que levara um conde de Zingara a fugir, com seus empregados, para
esta costa selvagem, a mais de 1600 quilômetros da terra que o
gerara, trocando o castelo de seus ancestrais por uma cabana de
troncos de árvore.

Seus olhos se suavizaram com o leve ruído de pequenos pés nus


sobre as areias. Uma jovem garota veio correndo sobre o cume baixo
e arenoso, completamente nua, seu corpo esguio molhado e seu
cabelo loiro umidamente emplastado em sua pequena cabeça. Seus
olhos ansiosos estavam arregalados de agitação.

- Lady Belesa! – ela gritou, exprimindo as palavras zíngaras com um


suave sotaque ophiriano – Oh, Lady Belesa!
Sem fôlego, devido à sua correria, ela gaguejou e fez gestos
incoerentes com as mãos. Belesa sorriu e pôs um dos braços ao redor
da criança, sem se importar por seu vestido de seda ter se encostado
no corpo molhado e morno. Em sua vida solitária e isolada, Belesa
aplicava a delicadeza de uma índole naturalmente carinhosa na pobre
criança abandonada, que ela tirara das mãos de um amo brutal,
encontrado naquela longa viagem desde as costas meridionais.

- O que está tentando me dizer, Tina? Recupere o fôlego, criança.

- Um navio! – gritou a menina, apontando para o sul – Eu estava


nadando numa piscina que a maré deixou na areia, do outro lado do
cume, e o vi! Um navio, vindo do sul!

Ela puxou timidamente a mão de Belesa, seu corpo delgado todo


trêmulo; e Belesa sentiu o próprio coração bater mais rápido, diante
do mero pensamento de um visitante desconhecido. Elas não tinham
visto um navio, desde que chegaram a essa costa árida.

Tina correu na frente dela, sobre as areias amarelas, contornando as


pequenas piscinas que as marés haviam deixado em rasos bancos de
areia. Subiram o baixo cume ondulante, e Tina se equilibrou ali –
uma delgada figura branca destacada contra o céu que clareava, o
loiro cabelo molhado soprado contra seu rosto esguio, um delicado
braço trêmulo esticado.

- Veja, milady!

Belesa já tinha visto: uma ondulante vela branca, preenchida pelo


refrescante vento sul que batia ao longo da costa, a umas poucas
milhas do ponto. Seu coração pulava. Uma coisa pequena pode ficar
grande, em vidas isoladas e sem cor; mas Belesa sentiu uma
premonição de acontecimentos estranhos e violentos. Sentiu que não
era por acaso que este navio estava subindo esta costa solitária. Não
havia cidade portuária ao norte, embora já se tivesse viajado para as
longínquas praias geladas; e o porto mais próximo ao sul ficava a
mais de 1600 quilômetros. O que trazia este forasteiro à solitária Baía
de Korvela?
Tina se apertou contra sua senhora, a apreensão afligindo-lhe as
feições esguias.

- Quem pode ser, milady? – gaguejou, com o vento colorindo-lhe as


bochechas pálidas – É o homem a quem o conde teme?

Belesa olhou para baixo em direção a ela, com a testa ensombrecida.

- Por que diz isso, menina? Como sabe que meu tio teme alguém?

- Deve temer – respondeu Tina singelamente –, ou jamais viria se


esconder neste lugar solitário. Veja, milady, como ele vem rápido!

- Temos que ir e informar meu tio. – sussurrou Belesa – Os barcos de


pesca ainda não saíram, e nenhum dos homens viu ainda aquele
navio. Vista-se, Tina. Depressa!

A criança desceu correndo o cume baixo, até a piscina natural onde


tomava banho quando avistara a embarcação, e pegou os chinelos,
túnica e cinto que deixara sobre a areia. Subiu de volta o cume, aos
pulos, saltando grotescamente enquanto vestia as roupas escassas
em meia-fuga.

Belesa, observando ansiosamente o navio que se aproximava, tomou-


lhe a mão, e elas correram em direção ao forte. Poucos momentos
após adentrarem o portão da paliçada de troncos de árvores, que
cercava a construção, o clangor estridente da trombeta sobressaltou
os trabalhadores nos jardins, e aos homens que acabavam de abrir as
portas dos abrigos dos barcos, para empurrarem os botes de pesca
pelos cilindros de rolagem até a beira d’água.

Todos os homens do lado de fora do forte abandonaram suas


ferramentas, ou qualquer coisa que estivessem fazendo, e correram
para a paliçada, sem pararem para olhar ao redor, por causa do
alarme. As linhas dispersas de homens em fuga convergiram ao
portão aberto, e todas as cabeças se curvavam por cima dos ombros,
para olharem, temerosas, a fronteira escura de floresta ao leste.
Nenhum olhou para o mar.

Se aglomeraram através do portão, gritando perguntas às sentinelas


que patrulhavam as brilhantes saliências, construídas sob as pontas,
perfiladas para cima, dos troncos verticais da paliçada.

- O que é? Por que estão nos chamando para dentro? Os pictos estão
chegando?

Como resposta, um taciturno homem armado, vestido em couro


desgastado e aço enferrujado, apontou para o sul. De sua posição
elevada, o navio agora estava visível. Os homens começaram a
galgar as saliências, olhando para o mar.

Numa pequena torre de vigia, no teto da casa feudal, que era feita de
troncos como as outras construções, o Conde Valenso observava o
navio que se aproximava, enquanto este rodeava o ponto do chifre
meridional. O conde era um homem magro, duro e flexível como
arame, de estatura mediana e no final da meia-idade. Era moreno, de
expressão sombria. Os calções e o casaco eram de seda negra; a
única cor ao redor de seus trajes eram as jóias, que brilhavam no
cabo de sua espada, e o manto cor de vinho, lançado
negligentemente sobre o ombro. Torceu nervosamente o fino bigode
preto, e virou os olhos sombrios para seu senescal – um homem de
feições coriáceas, vestido em aço e cetim.

- O que acha, Galbro?

- Uma nau. – respondeu o senescal – É uma nau, adornada e


equipada como uma embarcação dos piratas barachos... olhe ali!

Um coro de gritos abaixo deles lhe ecoou a exclamação; o navio se


afastara do ponto, e estava girando para dentro da baía. E todos
viram a bandeira que subitamente se desdobrou do mastro: uma
bandeira negra, com uma caveira escarlate brilhando ao sol.

As pessoas que estavam dentro da paliçada arregalaram


involuntariamente os olhos, diante do terrível emblema; então, todos
os olhos viraram para o alto, em direção à torre, onde o senhor do
forte se erguia, sombrio, seu manto lhe batendo ao redor no vento.

- É baracha mesmo. – grunhiu Galbro – E, a menos que eu esteja


louco, é o Mão Vermelha, de Strom. O que ele está fazendo nesta
costa desolada?

- Ele pode não significar nenhum bem para nós. – resmungou o


conde.

Uma olhada para baixo o mostrou que os portões maciços haviam


sido fechados, e que o capitão de seus soldados, brilhando em aço,
estava dirigindo seus homens, alguns para as saliências e alguns para
as seteiras. Ele estava concentrando sua força principal ao longo da
muralha oeste, no meio da qual ficava o portão.

Valenso fora seguido no exílio por cem homens: soldados, vassalos e


servos. Destes, uns 40 eram soldados, que usavam elmos e trajes de
malha, armados com espadas, machados e bestas. Os demais eram
trabalhadores sem armadura, exceto por camisas de couro
endurecido, mas estes eram robustos e vigorosos, e habilidosos no
uso de seus arcos de caça, machados de lenhador e lanças para
javalis. Tomaram seus lugares, franzindo as testas diante dos seus
inimigos hereditários. Os piratas das Ilhas Barachas, um pequeno
arquipélago próximo à costa sudoeste de Zingara, vinham pilhando o
povo do continente por mais de um século.

Os homens na paliçada agarraram seus arcos ou lanças de caça, e


olharam sombriamente para a nau que balançava-se em direção à
costa, com seu acabamento em latão brilhando ao sol. Podiam ver as
formas aglomeradas no convés, e ouvir os gritos vigorosos dos
homens do mar. O aço cintilava ao longo do parapeito.

O conde havia se retirado da torre, enxotando a sobrinha e a ansiosa


protegida desta, e, tendo colocado o elmo e a couraça, se dirigiu até
a paliçada para comandar a defesa. Seus súditos o observavam com
fatalismo melancólico. Pretendiam vender suas vidas tão caro quanto
pudessem, mas tinham pouca esperança de vitória, apesar de sua
posição privilegiada. Eram oprimidos por uma convicção de destino.
Um ano naquela costa desolada, com a ameaça preocupante daquela
floresta assombrada por demônios, que avultava constantemente às
suas costas, havia nublado suas almas com presságios sombrios.
Suas mulheres estavam em silêncio, nas portas de suas cabanas,
construídas dentro da paliçada, e tranqüilizavam a gritaria de suas
crianças.

Belesa e Tina observavam ansiosamente, de uma janela mais alta na


casa feudal, e Belesa sentia o pequeno corpo tenso da criança se
tremendo todo, dentro da curva de seu braço protetor.

- Eles vão ancorar perto da casa dos barcos. – murmurou Belesa –


Sim! Lá vem a âncora, a uns 90 metros da praia. Não trema assim,
criança! Eles não podem tomar o forte. Talvez queiram apenas água
fresca e suprimentos. Talvez uma tempestade os tenha trazido para
estes mares.

- Estão vindo à praia em longos botes! – exclamou a menina – Oh,


milady, estou com medo! São homens grandes em armaduras! Veja
como o sol brilha em suas lanças e elmos! Eles vão nos comer?

Belesa explodiu de rir, apesar da apreensão.

- Claro que não! Quem colocou essa idéia em sua cabeça?

- Zingelito me disse que os barachos comem mulheres.

- Ele estava caçoando de você. Os barachos são cruéis, mas não são
piores que os renegados zíngaros, que se autodenominam
bucaneiros. Zingelito foi um bucaneiro no passado.

- Ele era cruel. – murmurou a criança – Estou feliz que os pictos


tenham cortado fora a cabeça dele.

- Cale a boca, criança. – Belesa tremeu ligeiramente – Você não deve


falar desse jeito. Veja, os piratas alcançaram a praia. Estão se
enfileirando lá, e vindo em direção ao forte. Aquele deve ser Strom.
- Ô do forte! – veio uma chamada, numa voz borrascosa como o
vento – Venho sob uma bandeira de trégua!

A cabeça protegida do conde apareceu sobre as pontas da paliçada;


seu rosto severo, emoldurado em aço, examinava sombriamente o
pirata. Strom havia parado bem ao alcance dos ouvidos. Era um
homem grande, com a cabeça descoberta e o cabelo claro soprado
pelo vento. De todos os piratas que freqüentavam as Ilhas Barachas,
nenhum era mais famoso por suas crueldades do que ele.

- Fale! – ordenou Valenso – Tenho pouca vontade de conversar com


alguém da sua espécie.

Strom riu com os lábios, e não com os olhos.

- Quando seu galeão escapou de mim, naquele temporal perto de


Trallibes no ano passado, nunca pensei em reencontrá-lo na Costa
Picta, Valenso! – ele disse – Embora na ocasião, eu tivesse
curiosidade em saber do seu destino. Por Mitra, se eu soubesse, teria
lhe seguido na época! Fiquei sobressaltado, há pouco, quando vi seu
falcão escarlate ondulando sobre uma fortaleza, onde eu havia
imaginado não ver nada, exceto praia nua. Você já o encontrou,
naturalmente.

- Encontrei o quê? – retrucou impacientemente o conde.

- Não tente ser hipócrita comigo! – A natureza violenta do pirata se


mostrou por um momento, num lampejo de impaciência – Eu sei por
que você veio aqui... e vim pela mesma razão. Não pretendo ser
impedido. Onde está seu navio?

- Não é da sua conta.

- Você não tem nenhum. – afirmou o pirata com convicção – Vejo


pedaços de mastros de um galeão nessa paliçada. Deve ter
naufragado, de algum modo, depois que você desembarcou aqui. Se
você tivesse um navio, já teria navegado para longe daqui, com sua
pilhagem, há muito tempo.

- Do que está falando, maldito? – vociferou o conde – Minha


pilhagem? Acaso sou um baracho, para queimar e saquear? Mesmo
assim, o que eu iria saquear nesta costa desolada?

- Aquilo que você veio encontrar. – respondeu friamente o pirata – A


mesma coisa que eu busco... e pretendo ter. Mas serei bondoso e
negociarei: apenas me dê a pilhagem, e seguirei meu caminho e lhe
deixarei em paz.

- Você deve ser louco. – rosnou Valenso – Vim para cá a fim de


encontrar o isolamento e a solidão, dos quais desfrutei até você sair
rastejando do mar, seu cão de cabelos amarelos. Vá embora! Não
pedi nenhuma negociação com inimigos, e estou cansado desta
conversa vazia. Leve sua corja e sigam seus caminhos.

- Quando eu for, deixarei esta choupana reduzida a cinzas


fumegantes! – rugiu o pirata, num arrebatamento de fúria – Pela
última vez: vai me dar o saque em troca de suas vidas? Tenho você
encurralado aqui, e 150 homens prontos para lhes cortarem as
gargantas sob minhas ordens.

Como resposta, o conde fez um gesto rápido com a mão, sob as


pontas da paliçada. Quase instantaneamente, uma fecha zuniu
virulentamente através de uma seteira e se estilhaçou na couraça de
Strom. O pirata gritou ferozmente, pulou para trás e correu em
direção à praia, com flechas assobiando ao seu redor. Seus piratas
urraram e se juntaram a ele feito uma onda, as lâminas lampejando
ao sol.

- Maldito seja, cão! – rugiu o conde, derrubando o ofendido arqueiro


com seu punho vestido em ferro – Por que não atingiu a garganta
dele? Depressa com seus arcos, homens... lá vêm eles!

Mas Strom havia alcançado seus homens, impedindo-lhes a investida


precipitada. Os piratas se espalharam numa longa linha, que cobria
parcialmente as extremidades da parede oeste, e avançaram
cautelosamente, soltando as setas à medida que chegavam. Sua
arma era o arco longo, e sua arte de atirar com arco e flecha era
superior à dos zíngaros. Mas os últimos estavam protegidos por sua
barreira. As longas flechas se curvavam sobre a paliçada e
estremeciam verticalmente na terra. Uma delas atingiu a soleira da
janela sobre a qual Belesa observava, arrancando um grito de medo
de Tina, que se encolheu para trás, seus olhos grandes fixos na
maligna seta vibrante.

Os zíngaros mandaram seus dardos e suas flechas de caça em


resposta, apontando e soltando sem muita pressa. As mulheres
haviam levado suas crianças para dentro de suas cabanas, e agora
aguardavam, qualquer que fosse o destino que os deuses lhes
reservavam.

Os barachos eram famosos por seu furioso e temerário estilo de


batalha, mas eram tão cautelosos quanto furiosos, e não pretendiam
desperdiçar sua força em vão, em ataques diretos contra as
trincheiras. Eles mantinham sua formação bem espalhada, se
arrastando e tirando vantagem de cada depressão natural e pedaço
de vegetação – a qual não era muita, pois o chão fora desmatado em
todos os lados do forte, para evitar traiçoeiros ataques pictos.

Uns poucos corpos jaziam na terra arenosa, pedaços de


empunhaduras brilhando ao sol, setas se erguendo de axilas ou
pescoços. Mas os piratas eram ágeis como gatos, sempre mudando
suas posições, e estavam protegidos por suas armaduras leves. Seus
tiros constantes eram uma ameaça contínua para os homens na
paliçada. Contudo, era evidente que, se a batalha permanecesse uma
troca de tiros de flechas, a vantagem permaneceria com os
protegidos zíngaros.

Mas, descendo para o abrigo de barcos na praia, havia homens


trabalhando com machados. O conde praguejou exaltado, ao ver a
destruição que estavam fazendo entre os barcos dele, os quais
haviam sido laboriosamente feitos com pranchas tiradas de toras
sólidas.
- Os malditos estão fazendo um mantelete! – ele esbravejou – Um
ataque agora, antes que eles o completem... enquanto ainda estão
espalhados...

Galbro sacudiu a cabeça, olhando para os mal-armados homens de


confiança e suas lanças toscas.

- Suas flechas nos deixariam crivados, e não somos páreos para eles
na luta corpo-a-corpo. Devemos ficar atrás de nossos muros e confiar
em nossos arqueiros.

- Boa idéia... – rosnou Valenso – Se conseguirmos mantê-los do lado


de fora dos nossos muros.

Logo, a intenção dos piratas se tornou aparente para todos, quando


um grupo de uns 30 homens avançou, empurrando diante deles um
grande escudo, feito com as pranchas dos barcos, e as madeiras que
a compunham o próprio abrigo de barcos. Haviam encontrado um
carro de boi, e montado o mantelete sobre as rodas – grandes discos
sólidos de carvalho. Enquanto o rolavam pesadamente diante deles,
ele os escondia da visão dos defensores, exceto por vislumbres de
seus pés em movimento.

Ele rolou até o portão, e a fileira irregular de arqueiros convergiu até


ele, atirando enquanto seguiam caminho.

- Atirem! – gritou Valenso, pálido – Parem-nos, antes que alcancem o


portão!

Uma tempestade de flechas zuniu pela paliçada, e os emplumou sem


machucá-los, dentro da madeira grossa. Um grito zombeteiro
respondeu à rajada. Setas encontravam seteiras agora, enquanto o
resto dos piratas se aproximava, e um soldado cambaleou e caiu da
beirada, arfando e asfixiado, com uma flecha de mais de 90
centímetros atravessada na garganta.

- Atirem nos pés deles! – gritou Valenso, e logo: – Quarenta homens


para o portão, com lanças e machados! O resto, defenda o muro!
Flechas furavam a areia diante do escudo móvel. Um uivo sanguinário
anunciou que uma delas havia encontrado seu alvo sob a borda, e um
homem cambaleou à vista, praguejando e saltando, enquanto lutava
para retirar a seta que lhe espetava o pé. Num instante, ele estava
emplumado por uma dúzia de flechas de caça.

Mas, com um grito profundamente gutural, o mantelete foi


empurrado até o muro, e um pesado pau-de-carga com ponta de
ferro, enfiado através de uma abertura no centro do escudo, começou
a ribombar no portão, empurrado por braços musculosos e recuado
com fúria sanguinária. O portão maciço estalou e tremeu, enquanto,
da paliçada, flechas choviam numa saraivada contínua, e algumas
alcançavam o alvo. Mas os selvagens homens do mar estavam
incendiados pela ânsia de batalha.

Com gritos intensos, eles balançavam o aríete e, de todos os lados,


os outros se aproximavam, enfrentando corajosamente os tiros
debilitados que vinham das muralhas, e atirando rápida e
vigorosamente.

Praguejando como um louco, o conde pulou da muralha e correu para


o portão, desembainhando a espada. Uma massa de soldados
desesperados se juntou atrás dele, agarrando suas lanças. A qualquer
momento, o portão iria ceder, e eles deveriam vedar o espaço com
seus corpos vivos.

Então, uma nova nota adentrou o clamor do combate. Era uma


trombeta, soando estridente do navio. Nos vaus reais, uma figura
abanava os braços e gesticulava selvagemente.

Aquele som adentrou os ouvidos de Strom, mesmo enquanto ele


usava sua força no aríete balouçante. Empregando os músculos
poderosos, ele resistiu ao vagalhão de outros braços, firmando as
pernas para deter o aríete em seu balanço para trás. Virou a cabeça,
o suor pingando do rosto.

- Esperem! – ele rugiu – Esperem, malditos! Escutem!


No silêncio que se seguiu àquele bramido de boi, o clangor da
trombeta foi claramente ouvido, assim como uma voz que gritava
algo ininteligível para as pessoas dentro da paliçada.

Mas Strom entendeu, pois sua voz se ergueu novamente em


comando blasfemo. O aríete foi abandonado, e o mantelete começou
a recuar do portão, tão rapidamente quanto avançara.

- Veja! – gritou Tina, em sua janela, pulando em impetuosa


empolgação – Estão correndo! Todos eles! Estão correndo para a
praia! Veja! Abandonaram o escudo para longe do alcance! Estão
pulando para dentro dos botes e remando para o navio! Oh, milady,
nós ganhamos?

- Acho que não! – Belesa olhava fixamente para o mar – Olhe!

Ela afastou as cortinas para um lado e se inclinou na janela. Sua voz


clara e jovem se ergueu acima dos gritos empolgados dos
defensores; eles viraram as cabeças na direção em que ela apontou.
Lançaram um grito intenso, ao verem outro navio contornar
majestosamente a ponta sul. Mesmo enquanto olhavam, ele
desdobrou a dourada bandeira real de Zingara.

Os piratas de Strom estavam se amontoando nos lados de sua nau e


levantando âncora. Antes que o estranho houvesse avançado meio
caminho na baía, o Mão Vermelha estava desaparecendo ao redor da
ponta do chifre norte.

3) A Vinda do Homem Negro

- Para fora, rápido! – disse bruscamente o conde, puxando


violentamente as trancas do portão – Destruam esse mantelete,
antes que estes estranhos possam desembarcar!

- Mas Strom fugiu – advertiu Galbro –, e o outro navio é zíngaro.


- Faça como eu mando. – rugiu Valenso – Nem todos os meus
inimigos são estrangeiros! Saiam, cães! Trinta de vocês, com
machados, e façam uma boa lenha com aquele mantelete. Tragam as
rodas para dentro da paliçada.

Trinta homens com machados correram para baixo, em direção à


praia – homens musculosos, em túnicas sem mangas, seus machados
brilhando ao sol. O ar de seu lorde havia sugerido uma possibilidade
de perigo naquele navio que chegava, e havia pânico na pressa deles.
O estilhaçar das madeiras, sob seus velozes machados, chegava
claramente até as pessoas dentro do forte, e os homens com
machados estavam correndo de volta pela areia, rolando as grandes
rodas de carvalho diante deles, antes que o navio zíngaro ancorasse
onde o navio pirata havia estado.

- Por que o conde não abre o portão e desce para encontrá-los? –


perguntou Tina – Ele receia que o homem a quem teme possa estar
naquele navio?

- O que quer dizer, Tina? – indagou Belesa, inquieta. O conde nunca


havia se dignado a dar uma razão para seu auto-exílio. Ele não era o
tipo de homem que fugia de um inimigo, embora tivesse muitos. Mas
a convicção de Tina era inquietante; quase sobrenatural.

Tina parecia não ter ouvido sua pergunta.

- Os homens com machados estão de volta à paliçada. – ela disse – O


portão está fechado e trancado novamente. Os homens ainda
mantêm seus lugares ao longo da muralha. Se aquele navio estava
perseguindo Strom, por que não foi atrás dele? Mas não é um navio
de guerra. É uma nau, como o outro. Veja, um bote está chegando à
praia. Estou vendo um homem na proa, envolto num manto escuro.

Após o bote alcançar terra firme, este homem veio subindo


calmamente as areias, seguido por outros três. Era um homem alto,
magro e vigoroso, vestido em seda negra e aço polido.

- Parados! – rugiu o conde – Negociarei sozinho com o líder de vocês!


O mais alto dos estranhos removeu o capacete e se curvou
majestosamente. Seus companheiros pararam, puxando os longos
mantos ao redor de si mesmos, e atrás deles, os marujos se
curvaram sobre os remos e olharam para a bandeira que ondulava
sobre a paliçada.

Ao chegar ao portão, bem ao alcance dos ouvidos:

- Ora! Certamente – ele disse – não deveria haver desconfiança entre


cavalheiros nestes mares desolados!

Valenso olhou desconfiado para ele. O estranho era escuro, com um


magro rosto de rapina e um fino bigode preto. Um cacho de renda
estava dobrado em seu pescoço, e havia renda em seus pulsos.

- Eu lhe conheço. – disse Valenso lentamente – Você é Zarono Negro,


o bucaneiro.

Mais uma vez, o estranho se curvou com majestosa elegância.

- E ninguém falharia em reconhecer o falcão vermelho dos Korzettas!

- Parece que esta costa se tornou o ponto de encontro de todos os


velhacos dos mares do sul. – rosnou Valenso – O que deseja?

- Ora, vamos, por favor, senhor! – protestou Zarono – Esta é uma


acolhida rude para alguém que acabou de lhe prestar um serviço.
Não era aquele cão argoseano que estava há pouco tempo trovejando
em seu portão? E ele não saltou de volta para o mar, quando me viu
contornar o cabo?

- Verdade. – grunhiu o conde, de má vontade – Embora haja pouca


diferença entre um pirata e um renegado.

Zarono riu sem ressentimento e torceu rapidamente o bigode.

- Você é áspero no falar, milorde. Mas desejo apenas ancorar em sua


baía, para que meus homens procurem caça e água em suas
florestas, e talvez, eu próprio beber um copo de vinho à sua mesa.

- Não vejo como posso hospedá-lo. – rosnou Valenso – Mas entenda


isto, Zarono: nenhum homem de sua tripulação entra nesta paliçada.
Se algum deles se aproximar menos de 30 metros, terá
imediatamente uma flecha no estômago. E eu recomendo não
causarem dano aos meus jardins ou ao gado nos currais. Três bois
serão suficientes como carne fresca, e nada mais. E podemos
defender este forte contra seus rufiões, caso você pense o contrário.

- Vocês não o estavam defendendo prosperamente contra Strom. – o


bucaneiro salientou, com um sorriso zombeteiro.

- Você não encontrará madeira para fazer manteletes, a não ser que
derrube árvores, ou a arranque de seu próprio navio. – assegurou
sombriamente o conde – E seus homens não são arqueiros barachos;
não são melhores arqueiros que os meus. Além disso, o pouco saque
que você acharia neste castelo não valeria o preço.

- Quem está falando de saque e guerra? – protestou Zarono – Não,


meus homens estão ansiosos para estirarem as pernas em terra
firme, e quase com escorbuto por mastigarem carne de porco
salgada. Eu garanto a boa conduta deles. Eles poderiam descer à
praia?

Valenso, de má vontade, manifestou satisfação, e Zarono se curvou,


ligeiramente sardônico, e se recolheu com um passo tão regular e
imponente, como se andasse no polido chão cristalino da corte real
de Kordava, onde de fato, a menos que os boatos mentissem, ele
outrora havia sido uma figura familiar.

- Não deixe homem algum abandonar a paliçada. – Valenso ordenou


a Galbro – Não confio naquele cão renegado. O fato de ele ter
expulsado Strom do nosso portão não garante que ele não nos
cortaria as gargantas.

Galbro assentiu com a cabeça. Ele era bastante sabedor da inimizade


que existia entre os piratas e os bucaneiros zíngaros. Os piratas
eram, em sua maioria, marinheiros argoseanos que se tornaram
foras-da-lei. À antiga rixa entre Argos e Zingara somava-se, no caso
dos flibusteiros, a rivalidade de interesses opostos. Ambas as raças
pilhavam navios e cidades costeiras; e pilhavam uma à outra com
igual voracidade.

Deste modo, ninguém se retirou da paliçada, enquanto os bucaneiros


vinham à praia – homens de rostos escuros, em seda flamejante e
aço polido, com faixas amarradas ao redor das cabeças e argolas de
ouro nas orelhas. Acamparam na praia, mais de 170 deles, e Valenso
notou que Zarono postou sentinelas em ambas as pontas. Não
molestaram os jardins, e somente os três bois escolhidos por
Valenso, que gritava da paliçada, foram mandados e abatidos.
Fogueiras foram acesas na praia, e um barril de cerveja foi trazido à
terra e aberto.

Outros barris menores foram enchidos com a água da fonte que


jorrava a uma curta distância ao sul do forte, e os homens
começaram a se espalhar em direção à floresta, com bestas nas
mãos. Vendo isto, Valenso foi levado a gritar para Zarono, que
caminhava de um lado a outro do acampamento:

- Não deixe seus homens adentrarem a floresta. Peguem outro boi


nos currais, se não tiverem carne suficiente. Se pisarem na floresta,
poderão se deparar com os pictos.

“Todas as tribos dos demônios pintados vivem por trás da floresta.


Rechaçamos um ataque logo após desembarcarmos; e desde então,
seis de meus homens foram assassinados na floresta, num momento
ou outro. Há paz entre nós no momento, mas ela pende por um fio.
Não se arrisque provocando-os”.

Zarono lançou um olhar sobressaltado à mata ameaçadora, como se


esperasse ver hordas de figuras selvagens se escondendo lá. Então,
ele se curvou e disse:

- Agradeço-lhe o aviso, milorde.


E gritou para seus homens voltarem, numa voz áspera que
contrastava estranhamente com o elegante tom de voz dirigido ao
conde.

Se Zarono pudesse penetrar a máscara de folhas, estaria mais


apreensivo; se pudesse ter visto a figura sinistra lá escondida, que
observava os forasteiros com olhos inescrutáveis – um guerreiro
horrendamente pintado, nu exceto por uma longa tanga de pele de
corça, com uma pena de tucano pendendo sobre a orelha esquerda.

Quando o anoitecer se aproximou, um fino deslizamento cinza se


arrastou para o alto, vindo da linha do mar, e escureceu o céu. O sol
se pôs num lamaçal escarlate, tingindo as pontas das ondas negras
de sangue. A neblina se arrastou do céu e se enrolou aos pés da
floresta, se enroscando ao redor da paliçada em pequenos feixes
fumegantes. As fogueiras na praia brilhavam num vermelho fosco
através da bruma, e o canto dos bucaneiros parecia amortecido e
distante. Eles haviam trazido velhas lonas do navio, e feito com elas
abrigos ao longo da costa, onde a carne ainda estava assando, e a
cerveja concedida a eles por seu capitão estava distribuída
economicamente.

O grande portão estava fechado e trancado. Soldados caminhavam


impassíveis nas saliências da paliçada, lança no ombro e gotas de
orvalho brilhando em seus gorros de aço. Olhavam inquietos para as
fogueiras na praia, miravam mais fixamente em direção à floresta –
agora uma vaga linha escura na névoa que se arrastava. O pátio
interno estava vazio; um espaço nu e escurecido. Velas brilhavam
fracamente através das fendas das cabanas, e a luz brotava das
janelas da casa feudal. Havia silêncio, exceto pelo caminhar das
sentinelas, o gotejar da água dos telhados e o canto distante dos
bucaneiros.

Um fraco eco deste canto adentrava o grande salão, onde Valenso


sentava-se para beber vinho, com seu convidado não-solicitado.

- Seus homens se divertem, senhor. – grunhiu o conde.


- Eles estão contentes em sentir outra vez a areia sob seus pés. –
respondeu Zarono – Foi uma viagem cansativa... sim, uma longa e
severa perseguição.

Ele ergueu gentilmente o copo de vinho para a garota não-receptiva,


que se sentava à direita do anfitrião, e bebeu cerimoniosamente.

Criados impassíveis se alinhavam pelas paredes, soldados com lanças


e elmos, servos com casacos de cetim. A casa de Valenso nesta terra
selvagem era um vago reflexo da corte que possuía em Kordava.

A casa feudal, como ele insistia em chamá-la, era uma maravilha


para aquela costa. Cem homens haviam trabalhado noite e dia,
durante meses, construindo-a. Seu exterior, com paredes de troncos
de árvores, era destituído de ornamentação; mas, por dentro, era
uma cópia tão fiel quanto possível do Castelo de Korzetta. Os troncos
que compunham a parede do salão eram escondidos por pesadas
tapeçarias de seda, trabalhadas a ouro. Vigas do navio, tingidas e
polidas, formavam as vigas do teto alto. O chão era coberto por ricos
tapetes. A larga escada que subia do salão era igualmente atapetada,
e sua sólida balaustrada havia sido outrora um parapeito do galeão.

Uma fogueira, na grande lareira, dissipava a umidade da noite. Velas


no grande candelabro de prata, no centro da grande mesa de mogno,
iluminavam o salão, lançando longas sombras na escada. O Conde
Valenso se sentava na cabeceira daquela mesa, presidindo uma
comitiva composta por sua sobrinha, seu convidado pirata Galbro e o
capitão da guarda. A pequenez da comitiva realçava as proporções da
enorme mesa, onde cinqüenta convidados poderiam se sentar
confortavelmente.

- Você seguia Strom? – perguntou Valenso – Você o enxotou para


este local tão distante?

- Eu seguia Strom – riu Zarono –, mas ele não estava fugindo de


mim. Strom não é homem que foge de qualquer um. Não; ele veio à
procura de algo; algo que também desejo.
- O que poderia atrair um pirata ou um bucaneiro a esta costa
desolada? – resmungou Valenso, olhando para o conteúdo
borbulhante de seu copo de vinho.

- O que poderia atrair um conde de Kordava? – retrucou Zarono, e


uma luz ávida brilhou por um momento em seus olhos.

- A corrupção de uma corte real pode enojar a um homem de honra.


– comentou Valenso.

- Os Korzettas de honra suportaram a corrupção dela com


tranqüilidade, por muitas gerações. – disse Zarono, sem cerimônia –
Milorde, satisfaça minha curiosidade: por que vendeu suas terras,
encheu seu galeão com mobílias de seu castelo e viajou pelo
horizonte, sem o conhecimento do rei e dos nobres de Zingara? E por
que se instalou aqui, quando sua espada e seu nome poderiam cavar
um lugar para você em qualquer terra civilizada?

Valenso manuseou distraidamente a corrente dourada em seu


pescoço.

- Por que deixei Zingara – ele disse –, é assunto meu. Mas foi o azar
que me deixou encalhado aqui. Eu havia trazido toda a minha gente
para a terra firme, e muitas das mobílias que você mencionou, para
construir habitação temporária. Mas meu navio, ancorado lá fora na
baía, foi lançado contra os rochedos da ponta norte e destroçado por
uma súbita tempestade que veio do oeste. Tais tempestades são
bastante comuns em certas épocas do ano. Depois daquilo, não havia
nada para se fazer, exceto ficar e fazer o melhor que pudesse.

- Então, você retornaria à civilização se pudesse?

- Não para Kordava. Mas talvez para alguma região distante... para
Vendhya ou Khitai...

- Você não acha este lugar tedioso, milady? – perguntou Zarono, pela
primeira vez se dirigindo diretamente a Belesa.
A ânsia de ver um novo rosto e ouvir uma nova voz havia trazido a
jovem para o grande salão, nesta noite. Mas agora, ela desejaria ter
permanecido no quarto de dormir, com Tina. Era inconfundível o
significado do olhar que Zarono lançou para ela. Sua fala era
decorosa e formal; sua expressão, serena e respeitosa. Mas não
passava de uma máscara, através da qual se vislumbrava o espírito
violento e sinistro do homem. Ele não conseguia afastar o ardente
desejo dos olhos, quando mirava a aristocrática beleza jovem, em
seu vestido de gola baixa e seu cinto cravejado de jóias.

- Há pouca diversão aqui. – ela respondeu em voz baixa.

- Se você tivesse um navio – Zarono perguntou abruptamente –,


abandonaria esta instalação?

- Talvez. – admitiu o conde.

- Tenho um navio. – disse Zarono – Se pudéssemos chegar a um


acordo...

- Que tipo de acordo? – Valenso ergueu a cabeça, para olhar


desconfiado para seu convidado.

- Uma partilha por igual. – disse Zarono, pondo a mão sobre a mesa,
com os dedos bem abertos. O gesto lembrava curiosamente uma
grande aranha. Mas os dedos palpitavam com uma curiosa tensão, e
os olhos do bucaneiro brilhavam com uma nova luz.

- Partilhar o quê? – Valenso o fitou, em evidente perplexidade – O


ouro que eu trouxe comigo afundou em meu navio; e, ao contrário
das pranchas quebradas, ele não foi lançado à costa.

- Não é isso! – Zarono gesticulou impacientemente – Vamos ser


francos, milorde. Consegue fingir que foi o azar que lhe fez
desembarcar neste determinado ponto, com mil milhas de costa para
serem escolhidas?
- Não tenho necessidade de fingir. – respondeu Valenso friamente –
O capitão de meu navio era Zingelito, outrora um bucaneiro. Ele
havia navegado nesta costa e me persuadido a desembarcar aqui, me
dizendo ter uma razão que ele mais tarde revelaria. Mas ele nunca
divulgou este motivo, porque no dia seguinte ao nosso desembarque,
ele desapareceu dentro da floresta, e seu corpo decapitado foi achado
mais tarde por um grupo de caçadores. Obviamente, foi emboscado e
morto pelos pictos.

Zarono olhou fixamente para Valenso por um intervalo de tempo.

- Bom – disse ele, finalmente –, eu acredito em você, milorde. Um


Korzetta não tem habilidade para mentir, apesar dos seus demais
talentos. E lhe farei uma proposta. Admito que, quando ancorei na
baía, eu tinha outros planos em mente. Supondo que você já
houvesse obtido o tesouro, eu pretendia tomar estrategicamente este
forte e cortar todas as suas gargantas. Mas as circunstâncias me
fizeram mudar de idéia... – ele dirigiu um olhar para Belesa, cujo
rosto mudou de cor e ergueu a cabeça, indignada.

- Tenho um navio para lhe tirar do exílio – disse o bucaneiro –, com


sua família e os dependentes que você escolher. Os restantes podem
se sustentar sozinhos.

Os criados ao longo das paredes lançaram olhares apreensivos de


esguelha, uns para os outros. Zarono prosseguiu, brutalmente cínico
demais para dissimular suas intenções.

- Mas primeiro você deve me ajudar a obter o tesouro, pelo qual


naveguei mil milhas.

- Que tesouro, em nome de Mitra? – reclamou o conde furiosamente


– Você agora está falando igual àquele cão do Strom.

- Já ouviu falar em Tranicos O Sanguinário, o maior dos piratas


barachos? – perguntou Zarono.

- Quem não ouviu? Foi ele quem assaltou a ilha do castelo do exilado
príncipe Tothmekri, da Stygia, passou as pessoas no fio da espada e
levou o tesouro que o príncipe havia trazido consigo, quando fugira
de Khemi.

- Sim! E a história daquele tesouro levou os homens da Irmandade


Vermelha a se aglomerarem feito abutres atrás de carniça: piratas,
bucaneiros e até mesmo os corsários negros do Sul. Temendo ser
traído por seus capitães, ele fugiu para o norte num navio, e
desapareceu do conhecimento dos homens. Isso foi há quase cem
anos.

“Mas a história insiste que um homem sobreviveu àquela última


viagem, e retornou às Barachas, apenas para ser capturado por um
navio de guerra zíngaro. Antes de ser enforcado, ele contou sua
história e desenhou um mapa com seu próprio sangue, num
pergaminho, que contrabandeara de alguma forma, longe do alcance
de seu captor. Esta foi a história que ele contou: Tranicos viajara
para muito além dos caminhos de navegação, até chegar a uma baía
numa costa desolada, e lá ancorou. Desembarcou, levando seu
tesouro e onze de seus capitães mais confiáveis que o haviam
acompanhado em seu navio. Seguindo-lhe as ordens, o navio partiu,
para retornar dentro de uma semana e buscarem o almirante dele, e
seus capitães. Nesse meio tempo, Tranicos pretendeu esconder o
tesouro em algum lugar nos arredores da baía. O navio retornou no
tempo marcado, mas não havia sinal de Tranicos e seus onze
capitães, exceto a tosca residência que eles haviam construído na
praia.

“Esta havia sido demolida, e havia rastros de pés nus ao redor dela,
mas nenhum sinal de luta. Nem havia lá qualquer sinal do tesouro,
nem algum indício que mostrasse onde ele estava escondido. Os
piratas mergulharam na floresta para procurarem por seu chefe e os
capitães dele, mas foram atacados pelos selvagens pictos e
mandados de volta ao navio. Desesperadamente, içaram âncora e
fugiram navegando, mas antes que se aproximassem das Barachas,
uma terrível tempestade fez o navio naufragar, e somente um
homem sobreviveu.
“Esta é história do Tesouro de Tranicos, ao qual os homens têm
procurado em vão por quase um século. Sabe-se que o mapa existe,
mas seu paradeiro continua sendo um mistério.

“Só tive um único vislumbre daquele mapa. Strom e Zingelito


estavam comigo, e um nemédio que navegava com os barachos.
Estávamos observando-o na choupana de uma certa cidade portuária
zíngara, na qual nos escondíamos, disfarçados. Alguém derrubou o
candeeiro e alguém uivou no escuro; e, quando acendemos a luz
novamente, o velho sovina que possuía o mapa estava morto com
um punhal no coração, o mapa havia desaparecido, e os vigias
noturnos desciam ruidosamente a rua com suas lanças, para
investigarem o grito. Nos dispersamos, e cada um seguiu seu próprio
caminho.

“Durante os anos posteriores, Strom e eu ficamos de olho um no


outro, um achando que o outro tinha o mapa. Bom, não sei no que
resultou, mas recentemente me veio a notícia de que Strom havia
partido para o norte, e então eu o segui. Você viu o fim daquela
perseguição.

“Tive apenas um vislumbre do mapa, quando ele estava na mesa do


velho sovina, e não sei dizer nada sobre ele. Mas os atos de Strom
mostram que ele sabe ser esta a baía onde Tranicos ancorou.
Acredito que esconderam o tesouro em algum lugar nessa floresta e,
ao retornarem, foram atacados e mortos pelos pictos. Os pictos não
conseguiram o tesouro. Homens têm subido e descido um pouco esta
costa, sem saber nada do tesouro, e nenhum ornamento de ouro ou
jóia rara foi visto entre os bens das tribos costeiras.

“Esta é a minha proposta: vamos unir nossas forças. Strom está em


algum lugar ao alcance, mantendo distância. Ele fugiu porque temia
ser pego entre nós dois, mas irá voltar. Mas, aliados, nós podemos rir
dele. Nós podemos trabalhar fora do forte, deixando homens
suficientes aqui para defendê-lo se ele o atacar. Acredito que o
tesouro esteja escondido por perto. Doze homens não conseguiriam
carregá-lo para longe. Vamos encontrá-lo, colocá-lo em meu navio e
viajar para algum porto estrangeiro onde eu possa encobrir meu
passado com ouro. Estou cansado desta vida. Quero voltar para uma
terra civilizada e viver como um nobre, com riquezas, escravos e um
castelo... e uma esposa de sangue nobre”.

- Como? – indagou o conde, com os olhos semicerrados de suspeita.

- Dê-me sua sobrinha como minha esposa. – demandou o bucaneiro,


sem cerimônias.

Belesa protestou abruptamente e ficou de pé. Valenso também se


levantou, lívido, os dedos se juntando convulsivamente ao redor do
copo de vinho, como se ele pretendesse lançá-lo em seu convidado.
Zarono não se moveu; continuou sentado, com um braço sobre a
mesa e os dedos curvados como garras. Seus olhos ardiam
discretamente de paixão e com uma profunda ameaça.

- Como ousa?! – exclamou Valenso.

- Você parece esquecer que caiu de sua alta condição, Conde


Valenso. – rosnou Zarono – Você não está na corte kordava, milorde.
Nesta costa desolada, a nobreza é medida pelo poder dos homens e
das armas. E lá estou. Estranhos caminham pelo Castelo Korzetta, e
a fortuna Korzetta está no fundo do mar. Você morrerá aqui, como
um exilado, a menos que eu lhe conceda o uso de meu navio.

“Você não terá motivo para se arrepender da união de nossas


famílias. Com um novo nome e uma nova fortuna, descobrirá que
Zarono Negro pode tomar o lugar dele entre os aristocratas do
mundo, e ser um genro do qual nem mesmo um Korzetta precisa ter
vergonha”.

- Você é louco para pensar nisso! – exclamou violentamente o conde


– Você... o que há?

Um tropel de pés, deslizando suavemente, distraiu sua atenção. Tina


chegou apressadamente ao salão, hesitou quando os olhos do conde
se fixaram furiosamente nela, fez uma profunda mesura e caminhou
de lado ao redor da mesa até enfiar suas mãos pequenas entre os
dedos de Belesa. Ela ofegava levemente, seus chinelos estavam
molhados e o cabelo loiro emplastrado na cabeça.

- Tina! – exclamou Belesa, apreensiva – Onde você esteve? Pensei


que estivesse no seu quarto há horas.

- Eu estava – respondeu a criança, ofegante –, mas perdi meu colar


de coral, que você me deu... – Ela o levantou; uma bugiganga sem
importância, mas valorizada mais do que suas outras posses, pois
havia sido o primeiro presente de Belesa para ela – Eu tinha medo de
você não me deixar ir, caso soubesse... a esposa de um soldado me
ajudou, do lado de fora da paliçada, e voltamos... por favor, milady,
não me faça contar quem era ela, porque prometi não fazê-lo.
Encontrei meu colar próximo à poça onde tomei banho esta manhã.
Por favor, me castigue, se eu errei.

- Tina! – suspirou Belesa, abraçando a criança – Não vou lhe castigar.


Mas você não deveria ter ido para o lado de fora da paliçada, com
aqueles bucaneiros acampados na praia, e sempre uma possibilidade
dos pictos estarem se escondendo ao redor. Deixe eu lhe levar para
seu quarto e trocar essas roupas molhadas...

- Sim, milady – murmurou Tina –, mas primeiro deixe-me contar pra


você sobre o homem negro...

- O quê? – A surpreendente interrupção foi um grito que explodiu dos


lábios de Valenso. Seu copo de vinho caiu ruidosamente ao chão,
enquanto ele segurava a mesa com ambas as mãos. Se um raio o
tivesse atingido, o porte do senhor do castelo não teria sido alterado
de forma mais aguda e aterradora. Seu rosto estava lívido, e seus
olhos quase saltando de sua cabeça.

- O que disse? – ele ofegou, olhando furiosa e selvagemente para a


criança que se encolheu para trás, encostando-se em Belesa e
desconcertada – O que você disse, menina?

- Um homem negro, milorde. – ela gaguejou, enquanto Belesa,


Zarono e os criados o fitavam, pasmados – Quando desci à poça para
pegar meu colar, eu o vi. Havia um estranho gemido no vento, e o
mar choramingava feito uma coisa com medo, e então ele veio. Eu
estava com medo, e me escondi atrás de uma baixa saliência de
areia. Ele veio do mar, num estranho bote negro, com fogo azul
tremulando por todo o seu redor, embora não houvesse tocha. Ele
puxou seu bote até as areias sob a ponta sul, e caminhou em direção
à floresta, parecendo um gigante na bruma... um homem grande e
alto, negro como um kushita...

Valenso cambaleou como se tivesse recebido um golpe mortal.


Apertou a própria garganta, quebrando a corrente dourada em sua
violência. Com a careta de um louco, ele cambaleou sobre a mesa e,
com um grito agudo, arrancou a criança dos braços de Belesa.

- Sua pequena vadia. – ele arfou – Está mentindo! Você me ouviu


resmungar em meu sono, e disse esta mentira para me atormentar!
Diga que está mentindo, senão lhe arranco a pele das costas!

- Tio! – gritou Belesa, em ultrajado assombro, tentando soltar Tina


dele – Está louco? O que há com você?

Com um rosnado, ele puxou-lhe a mão do braço e a fez girar,


trêmula, para os braços de Galbro, que a recebeu com um olhar de
soslaio, o qual fez pouco esforço para disfarçar.

- Piedade, milorde! – soluçou Tina – Eu não menti!

- Eu disse que você mentiu! – rugiu Valenso – Gebbrelo!

O impassível criado agarrou a menina trêmula e despiu-a com um


puxão violento e brutal, que arrancou-lhe as roupas sumárias do
corpo. Girando, ele puxou-lhe os braços delgados acima dos seus
ombros, erguendo-lhe bem acima do chão o corpo que se contorcia.

- Tio! – guinchou Belesa, se contorcendo em vão no aperto lascivo de


Galbro – Você está louco! Você não pode... oh, você não pode!...

A voz ficou presa na garganta dela, quando Valenso pegou um


chicote para cavalos, com o cabo cravejado de jóias, e o desceu
sobre o frágil corpo da criança, com uma força cruel que deixou um
vergão vermelho em suas costas nuas.

Belesa gemeu, nauseada com o tormento no grito estridente de Tina.


O mundo ficou subitamente louco. Como num pesadelo, ela viu os
rostos impassíveis dos soldados e criados, rostos de animais, rostos
de bois, que não refletiam piedade nem simpatia. O rosto levemente
zombeteiro de Zarono era parte do pesadelo. Nada naquela névoa
escarlate era real, exceto o desnudo corpo branco de Tina, marcado
com rubros vergões cruzados, dos ombros aos joelhos; nenhum som
era real, exceto os agudos gritos de agonia da criança, e os ofegos de
Valenso, enquanto ele chicoteava com os olhos arregalados de um
louco, gritando de forma estridente:

- Você mente! Você mente! Maldita seja, você mente! Admita sua
culpa, ou esfolarei seu corpo teimoso! Ele não pode ter me seguido
aqui...

- Oh, tenha piedade, milorde! – gritava a menina, se contorcendo em


vão nas musculosas costas do servente; desesperada demais pelo
medo e dor para ter a prudência de se salvar mentindo. O sangue
escorria em pingos escarlates por suas coxas trêmulas – Eu o vi! Não
estou mentindo! Clemência! Por favor! Ahhhh!

- Seu imbecil! Imbecil! – gritou Belesa, quase de lado – Não vê que


ela está dizendo a verdade? Ah, seu animal! Animal! Animal!

Subitamente, certo fragmento de sanidade pareceu retornar ao


cérebro do Conde Valenso Korzetta. Deixando o chicote cair, ele
cambaleou para trás e se esbarrou na mesa, agarrando cegamente a
beirada da mesma. Ele tremeu como se estivesse febril. Seu cabelo
estava emplastrado por toda a testa, em fios molhados, e o suor
pingava de sua fisionomia pálida, que estava igual a uma esculpida
máscara de Medo. Tina, solta por Gebbrelo, deslizou até o chão numa
pilha choramingante. Belesa se desvencilhou de Galbro, correu
soluçando até ela e caiu de joelhos, colhendo a lastimosa criança
abandonada nos braços. Ela lançou um olhar terrível ao tio,
derramando sobre ele os vasos cheios da sua ira – mas ele não a
estava olhando. Ele parecia ter esquecido tanto ela quanto sua
vítima. Atordoada pela incredulidade, ela o ouviu dizer ao bucaneiro:

- Aceito sua oferta, Zarono. Em nome de Mitra, vamos encontrar este


maldito tesouro e partiremos desta costa amaldiçoada!

Diante disto, o fogo de sua fúria decaiu em cinzas aflitas. Num


silêncio atordoado, ela ergueu a criança soluçante nos braços e
carregou-a, subindo a escada. Um olhar para trás mostrou Valenso se
agachando, mais do que se sentando, à mesa e engolindo vinho
sofregamente, numa enorme taça à qual agarrava com as mãos
trêmulas, enquanto Zarono se erguia sobre ele feito um sombrio
pássaro de rapina – perplexo com o rumo dos acontecimentos, mas
rápido em tirar vantagem da chocante mudança que acontecera com
o conde. Estava conversando numa voz baixa e resoluta, e Valenso
balançava a cabeça em mudo acordo, como se mal prestasse atenção
no que estava sendo dito. Galbro estava atrás das sombras, o queixo
entre o indicador e o polegar; e os criados ao longo das paredes
olhavam furtivamente uns aos outros, perplexos com o colapso de
seu senhor.

Lá em cima, em seu quarto, Belesa deitou a menina semi-desmaiada


na cama e se sentou para lavar e aplicar suaves ungüentos nos
vergões e cortes de sua pele tenra. Tina se entregou, em completa
submissão, às mãos de sua senhora, gemendo fracamente. Belesa
sentia como se seu mundo tivesse caído ao redor de seus ouvidos.
Estava nauseada e perplexa, extremamente agitada, os nervos
palpitando por causa do brutal sobressalto do qual fora testemunha.
O medo e o ódio por seu tio lhe cresceram na alma. Ela nunca o
amara; ele era rude e aparentemente desprovido de afeição natural,
ganancioso e avarento. Mas ela o considerava justo e destemido.
Uma reviravolta de sentimentos a sacudiu, ao lembrar dos olhos
arregalados e rosto pálido. Foi algum medo terrível que havia
despertado aquele frenesi; e, por causa deste medo, Valenso havia
sido brutal com a única criatura a quem ela amava e tratava com
carinho; por causa daquele medo, ele a estava vendendo, sua
sobrinha, para um infame fora-da-lei. O que havia por trás daquela
loucura? Quem era o homem negro que Tina havia visto?

A criança murmurou, num semi-delírio:

- Eu não menti, milady! Não menti mesmo! Era um homem negro,


num bote negro que ardia como fogo azul na água! Um homem alto,
escuro como um negro e envolto numa capa preta! Tive medo
quando o vi, e meu sangue gelou. Ele deixou seu bote na areia e
entrou na floresta. Por que o conde me chicoteou por tê-lo visto?

- Silêncio, Tina. – disse Belesa, suavemente – Fique quieta. A dor


logo vai passar.

A porta se abriu atrás dela, e ela girou rapidamente, agarrando uma


adaga cravejada de jóias. O conde parou na porta, e a pele dela se
arrepiou ao vê-lo. Ele parecia anos mais velho; seu rosto estava
cinzento e contraído, e seus olhos estavam arregalados de uma
maneira que despertava medo no peito dela. Ela nunca esteve perto
dele; agora, se sentia como se um abismo os separasse. Não era o
tio dela que estava ali, mas um estranho que vinha ameaçá-la.

Ela ergueu a adaga.

- Se você tocá-la novamente – ela sussurrou, com os lábios secos –,


eu juro diante de Mitra que afundarei esta lâmina em seu peito.

Ele não prestou atenção a ela.

- Coloquei uma forte guarda ao redor da casa feudal. – ele disse –


Zarono trará seus homens para dentro da paliçada amanhã. Ele não
zarpará até encontrar o tesouro. Quando ele achá-lo, navegaremos
imediatamente para algum porto que ainda não foi escolhido.

- E você me venderá para ele? – ela sussurrou – Em nome de Mitra...

Ele cravou nela um olhar sombrio, no qual todas as considerações –


exceto o seu próprio interesse pessoal – haviam sido dispersadas. Ela
se encolheu diante disso, vendo nisso a desvairada crueldade que
possuiu o homem, em seu medo misterioso.

- Você vai fazer o que eu mandar. – ele logo disse, com não mais
sentimento humano em sua voz do que o bater da pedra no aço. E,
virando-se, ele deixou o quarto. Cega por um súbito ataque de
horror, Belesa caiu desmaiada ao lado da cama onde Tina estava
deitada.

4) Soa um Tambor Negro

Belesa nunca soube por quanto tempo ficou oprimida e sem sentidos.
Sua primeira percepção foi a dos braços de Tina ao seu redor e do
soluço da criança em seu ouvido. Mecanicamente, ela se endireitou e
pôs a menina entre seus braços; e se sentou lá, com os olhos secos e
mirando invisivelmente a vela que tremulava. Não havia ruído no
castelo. As canções dos bucaneiros na praia haviam parado. De forma
cega e quase impessoal, ela reavaliou seu problema.

Valenso estava louco, desvairado pela história do misterioso homem


negro. Era para escapar deste forasteiro que ele desejava abandonar
o estabelecimento e fugir com Zarono. Isso era óbvio. Igualmente
óbvio era o fato de que ele estava pronto para sacrificá-la, em troca
de uma oportunidade para escapar. Na escuridão espiritual que lhe
cercava, ela não viu brilho de luz. Os serventes eram insensíveis ou
friamente brutos; suas mulheres, estúpidas e apáticas. Ela estava
completamente desamparada.

Tina ergueu-lhe o rosto manchado de lágrimas, como se estivesse


ouvindo o apelo de alguma voz interna. O entendimento que a
criança tinha dos pensamentos mais íntimos de Belesa era quase
sobrenatural, assim como seu reconhecimento do inexorável rumo do
Destino e da única alternativa deixada para o fraco.

- Temos que ir, milady! – ela sussurrou – Zarono não lhe terá. Vamos
para bem longe floresta adentro. Devemos ir até onde não pudermos
mais, e então cairmos e morrermos juntas.
A trágica força que é o último refúgio do fraco adentrou a alma de
Belesa. Era a única escapatória das sombras, que estavam se
fechando sobre ela desde o dia em que haviam fugido de Zingara.

- Nós iremos, criança.

Ela se levantou e estava procurando por um manto, quando uma


exclamação de Tina a sobressaltou. A menina estava de pé, um dedo
pressionado aos lábios, os olhos arregalados e brilhando de terror.

- O que é, Tina? – A expressão de medo na criança induziu Belesa a


entoar sua voz num sussurro, e uma apreensão sem nome fervilhou
sobre ela.

- Alguém lá fora, no salão. – sussurrou Tina, agarrando-lhe


convulsivamente o braço – Ele parou na nossa porta, e logo seguiu,
em direção ao quarto do conde, na outra extremidade.

- Seus ouvidos são mais agudos que os meus. – murmurou Belesa –


Mas não há nada de estranho nisso. Era talvez o próprio conde, ou
Galbro.

Ela se moveu para abrir a porta, mas Tina lançou desvairadamente os


braços ao redor de seu pescoço, e Belesa lhe sentiu o pulsar
desenfreado do coração.

- Não, não, milady! Não abra a porta! Não sei por que, mas sinto que
alguma coisa maligna está se escondendo perto de nós!

Impressionada, Belesa a afagou de forma tranqüilizante, e esticou


uma das mãos em direção ao disco de ouro, que disfarçava o
pequeno buraco no centro da porta.

- Ele está voltando! – disse a garota, tremendo – Estou ouvindo-o!

Belesa também ouviu algo – um curioso e furtivo caminhar que, ela


percebeu com um calafrio de medo sem nome, não era o passo de
ninguém a quem conhecesse. Nem era o passo de Zarono, ou de
qualquer homem calçado. Poderia ser o bucaneiro, deslizando ao
longo do saguão, com os pés descalços e furtivos, para matar seu
anfitrião enquanto este dormia? Ela se lembrou dos soldados, que
estariam de guarda lá embaixo. Se o bucaneiro tivesse permanecido
na casa feudal à noite, um homem armado seria posto diante da
porta de seu quarto. Mas, quem seria essa pessoa furtiva ao longo do
corredor? Ninguém dormia no andar superior, a não ser ela, Tina e o
conde, exceto Galbro.

Com um movimento rápido, ela apagou a vela, de modo que não


brilhasse através do buraco na porta, e empurrou o disco de ouro
para o lado. Todas as luzes estavam lá fora, no salão, o qual era
comumente iluminado por velas. Alguém estava se movendo pelo
corredor escurecido. Ela sentiu mais do que viu um vulto indistinto,
passando por sua porta, mas não conseguiu perceber nada de sua
forma, exceto que ela era humana. Mas uma onda fria de terror caiu
sobre ela; então, se agachou emudecida, incapaz de soltar o grito
que congelou atrás de seus lábios. Não era um terror como aquele
que seu tio agora lhe causava, ou medo como o que sentia por
Zarono, ou mesmo pela floresta que pairava. Era um terror cego e
irracional, que punha uma mão gelada em sua alma e lhe congelava a
língua no céu da boca.

A figura passou pelo topo da escada, onde ficou momentaneamente


delineada contra a fraca incandescência que vinha de baixo; e, ao
vislumbre daquela indistinta imagem negra contra o vermelho, ela
quase desmaiou.

Ela se agachou ali, na escuridão, esperando o tumulto, o qual


anunciaria que os soldados no grande salão haviam visto o intruso.
Mas a casa feudal continuou em silêncio; em algum lugar, um vento
gemeu estridente. Era tudo.

As mãos de Belesa estavam molhadas de suor, quando ela tateou


para reacender a vela. Ainda estava abalada de horror, embora não
conseguisse determinar o que havia naquela figura negra, destacada
contra a incandescência vermelha, que despertara esta repugnância
desvairada em sua alma. Ele era humano na forma, mas o contorno
era extremamente estranho – anormal –, embora ela não pudesse
definir claramente essa anormalidade. Mas ela sabia que não era um
ser humano o que tinha visto, e sabia que aquela visão lhe roubara
toda a resolução recém-adquirida. Ela estava desmoralizada, incapaz
de agir.

A vela brilhava, delineando o rosto branco de Tina na incandescência


amarela.

- Era o homem negro! – sussurrou Tina – Eu sei! Meu sangue gelou,


como na hora em que eu o vi na praia. Há soldados no andar de
baixo; por que eles não o viram? Devemos ir e informar o conde?

Belesa sacudiu a cabeça. Ela não queria que se repetisse a cena que
se seguira à primeira menção de Tina sobre o homem negro. De
qualquer forma, ela não ousava se aventurar em direção àquele
corredor escurecido.

- Não devemos adentrar a floresta! – disse Tina, horrorizada – Ele


estaria escondido lá...

Belesa não perguntou à menina como ela sabia que o homem negro
estaria na floresta; era o esconderijo razoável para qualquer coisa má
– homem ou demônio. E ela sabia que Tina estava certa: elas não
ousariam deixar o forte agora. Sua decisão, que não havia vacilado
diante da perspectiva da morte certa, se desfez diante do
pensamento de atravessar algumas florestas sombrias, com aquela
negra criatura cambaleante à solta entre elas. Sem saber o que fazer,
ela se sentou e afundou o rosto nas mãos.

Tina dormiu logo depois, na cama, choramingando ocasionalmente


em seu sono. Lágrimas brilhavam em seus longos cílios. Ela movia o
corpo dolorido de forma inquieta, em seu sono agitado. Ao se
aproximar a aurora, Belesa estava consciente de um atributo
sufocante na atmosfera. Ela ouviu um baixo ribombar de trovão, em
algum lugar fora da direção do mar. Apagando a vela, que havia
queimado até seu encaixe, foi até uma janela, na qual podia ver
tanto o oceano quanto uma faixa da floresta atrás do forte.
A bruma havia desaparecido, mas uma massa escura saía do mar e
se erguia do horizonte. Um relâmpago saía dela, palpitando, e o
trovão baixo rosnava. Um ribombar veio das florestas escuras, em
resposta. Sobressaltada, ela se virou e olhou para a floresta: uma
melancólica trincheira negra. Uma estranha cadência rítmica lhe
chegou aos ouvidos – uma monótona reverberação, que não era o
ribombar de um tambor picto.

- O tambor! – soluçou Tina, abrindo e fechando espasmodicamente os


dedos em seu sono – O homem negro... batendo um tambor negro...
nas florestas negras! Oh, salvem-nos...

Belesa estremeceu. Ao longo do horizonte leste, corria uma fina linha


branca que anunciava o amanhecer. Mas aquela nuvem negra, na
orla ocidental, se contorcia e encapelava, engrossando e se
expandindo. Ela arregalava os olhos, assombrada, pois tempestades
eram praticamente desconhecidas naquela costa àquela época do
ano, e ela nunca tinha visto uma nuvem como aquela.

Vinha fluindo para cima sobre a orla do mundo, em grandes massas


agitadas de negrume, riscadas com fogo. Rolava e se encapelava com
o vento em seu bojo. Seu trovejar fez com que o ar vibrasse. E outro
som se misturava terrivelmente com as reverberações do trovão – a
voz do vento, que corria antes de sua chegada. O horizonte escuro
era rasgado e abalado nos clarões relampejantes; no mar distante,
ela viu as ondas de topo branco correrem diante do vento. Ouviu seu
rugido monótono, aumentando de volume à medida que se
arrastavam em direção ao litoral. Mas nenhum vento se movia na
terra. O ar estava quente e parado. Havia uma sensação de
irrealidade ao redor do contraste: lá fora, vento, trovão e caos se
arrastando da terra; mas aqui, uma sufocante quietude. Em algum
lugar abaixo dela, um postigo se fechou estrondosamente,
assustando no tenso silêncio, e a voz de uma mulher se ergueu,
aguda de sobressalto. Mas quase todas as pessoas do forte pareciam
dormir, inconscientes do vendaval que se aproximava.

Ela percebeu que ainda ouvia aquela misteriosa e monótona batida de


tambor, e olhou fixamente em direção à floresta negra, com a pele
arrepiada. Não conseguia ver nada, mas algum instinto obscuro, ou
intuição, a levou a imaginar uma figura negra e horrenda se
acocorando sob galhos negros e entoando um encantamento sem
nome, que soava feito um tambor...

Desesperadamente, ela se livrou da convicção vampiresca, e olhou


em direção ao mar, enquanto a chama de um relâmpago dividia todo
o céu. Perfilados contra seu clarão, ela viu os mastros do navio de
Zarono; viu as tendas dos bucaneiros na praia, as elevações de areia
da ponta sul e os rochedos da ponta norte tão claramente como sob o
sol do meio-dia. Cada vez mais alto se erguia o rugido do vento, e
agora a casa feudal estava acordada. Pés caminhavam apressados
pela escada, e a voz de Zarono gritava, aguçada pelo medo.

Portas batiam e Valenso respondia a ele, gritando para ser ouvido


acima do rugido dos elementos.

- Por que não me avisou que haveria uma tempestade, vinda do


oeste? – urrou o bucaneiro – Se as âncoras não segurassem...

- Nunca veio tempestade do oeste antes, nesta época do ano! –


guinchou Valenso, saindo apressadamente de seu quarto, com sua
roupa de dormir, o rosto pálido e o cabelo se arrepiando – Isto é obra
de... – Suas palavras foram afogadas, enquanto ele subia loucamente
a escada que levava à torre de vigia, seguido pelo bucaneiro que
praguejava.

Belesa se curvava em sua janela, atemorizada e ensurdecida. O


vento se erguia cada vez mais sonoro, até abafar todos os outros
sons – todos, exceto aquele enlouquecido som grave, que agora se
elevava num canto inumano de triunfo. Rugiu em direção à costa,
arrastando diante de si uma espumante e longa crista branca de uma
légua – e então, todo o inferno e destruição foram lançados naquela
costa. A chuva caiu em torrentes, varrendo as praias num frenesi
cego. O vento batia feito uma trovoada, fazendo as vigas do forte
estremecerem. A rebentação rugiu sobre a areia, afogando os
carvões das fogueiras que os homens do mar haviam feito. No clarão
do relâmpago, Belesa viu, através da cortina de chuva cortante, as
tendas dos bucaneiros serem rasgadas em tiras e arrastadas pelas
águas; viu os próprios homens cambaleando em direção ao forte,
quase derrubados à areia pela fúria da torrente e do vendaval.

E, delineado contra o clarão azul, ela viu o navio de Zarono,


arrancado de seu ancoradouro e lançado de ponta-cabeça contra os
penhascos denteados que se salientavam para recebê-lo...

5) Um Homem da Selva

A tempestade havia esgotado sua fúria. A aurora se erguia livre, num


claro céu azul e sem chuva. Enquanto o sol se levantava com um
brilho de ouro fresco, pássaros de cores brilhantes se erguiam, num
coro volumoso, das árvores nas quais folhas largas, com gotas de
água, brilhavam como diamantes, estremecendo na suave brisa
matinal.

Num pequeno curso d’água, que serpenteava sobre a areia,


escondido por uma orla de árvores e moitas, um homem se curvava
para lavar as mãos e rosto. Ele fazia suas abluções à maneira de sua
raça, grunhindo luxuriosamente e chapinhando como um búfalo. Mas,
em meio a essas pancadas na água, ele levantou subitamente a
cabeça, seu cabelo claro pingando e a água correndo em fios pelos
ombros musculosos. Agachou-se para escutar, por uma fração de
segundo; logo estava de pé e olhando para dentro, espada na mão,
tudo em um só movimento. Então, ele se congelou, olhando
ferozmente com a boca aberta.

Um homem tão grande quanto ele caminhava em sua direção sobre a


areia, sem se preocupar em ser furtivo; e os olhos do pirata se
arregalaram, enquanto fitava-lhe as calças justas de seda, as botas
de cano alto, o casaco de aba larga e o chapéu de cem anos atrás.
Havia um largo sabre de abordagem na mão do forasteiro, e um
propósito inconfundível em sua aproximação.

O pirata ficou pálido, enquanto o reconhecimento lhe brilhava nos


olhos.

- Você! – exclamou, incrédulo – Por Mitra! Você!

Pragas escorreram de seus lábios, enquanto erguia o sabre. Os


pássaros se ergueram das árvores, numa saraivada flamejante,
quando o estrondo do aço lhes interrompeu o canto. Faíscas azuis
voavam das lâminas cortantes, e a areia rangia e era moída sob os
triturantes calcanhares das botas. Então, o entrechocar do aço
terminou sob o rangido de um corte, e um homem caiu de joelhos
com um arquejo sufocado. O cabo da espada lhe caiu da mão frouxa,
e ele deslizou de corpo inteiro sobre a areia, que se avermelhou com
seu sangue. Com um esforço moribundo, ele remexeu o cinto e
puxou algo do mesmo, tentando levá-lo à boca, e em seguida se
enrijeceu convulsivamente e amoleceu.

O vencedor curvou-se, e implacavelmente separou os dedos


enrijecidos do objeto que eles amarrotaram em seu desesperado
aperto.

Zarono e Valenso estavam na praia, olhando para a madeira flutuante


que seus homens estavam recolhendo – vergas, pedaços de mastros,
pranchas quebradas. A tempestade batera tão selvagemente o navio
de Zarono contra os baixos rochedos, que muito do que foi salvo era
madeira estilhaçada. A pouca distância deles se encontrava Belesa,
ouvindo-lhes a conversa e com um braço ao redor de Tina. A garota
estava pálida e apática, indiferente a qualquer Destino reservado a
ela. Escutava o que os homens diziam, mas com pouco interesse.
Estava esmagada pela compreensão de que ela não era mais que um
peão no jogo, não importava qual fosse – fosse para ter uma vida
infeliz, prolongada naquela costa desolada, ou um retorno, realizado
de alguma forma, a alguma terra civilizada.

Zarono praguejou rancorosamente, mas Valenso parecia atordoado.

- Esta não é a época do ano para tempestade vindas do oeste. –


murmurou, mirando com olhos perturbados os homens que
arrastaram os destroços até a praia – Não foi o acaso que trouxe
aquela tempestade das profundezas para estilhaçar o navio no qual
eu pretendia fugir. Fugir? Estou capturado, como um rato numa
ratoeira. Não, somos todos ratos numa ratoeira...

- Não sei do que está falando. – rosnou Zarono, puxando


malevolamente o bigode – Sou incapaz de lhe entender, desde que
aquela vadia loira lhe perturbou com a história desvairada de homens
negros saindo do mar. Mas tenho a certeza de que não vou passar
minha vida nesta costa amaldiçoada. Dez de meus homens foram
para o inferno neste navio, mas ainda tenho mais de 160. Você tem
100. Há ferramentas em seu forte, e muitas árvores naquela floresta
lá. Construiremos um navio. Colocarei homens para derrubarem
árvores, assim que tirarmos estes restos do alcance das ondas.

- Levará meses. – murmurou Valenso.

- Bom, há outra forma melhor de empregarmos nosso tempo?


Estamos aqui... e, se não fizermos um navio, nunca sairemos.
Teremos de equipar algum tipo de serraria, mas ainda não achei nada
que me impedisse. Espero que essa tempestade tenha esmagado
Strom em pedaços... aquele cão argoseano! Enquanto construirmos o
navio, caçaremos a pilhagem do velho Tranicos.

Nós nunca completaremos o navio. – disse Valenso sombriamente.

- Você teme os pictos? Temos homens suficientes para resistir a eles.

- Não falo dos pictos. Falo do homem negro.

Zarono se voltou para ele, zangado:

- Você fala sério? Quem é este maldito homem negro?

- Maldito mesmo. – disse Valenso, olhando fixamente para o mar –


Uma sombra de meu próprio passado ensangüentado, erguida para
me perseguir até o inferno. Por causa dele, fugi de Zingara,
esperando que ele perdesse meu rastro no grande oceano. Mas eu
deveria saber que ele finalmente me farejaria.

- Se tal homem veio à praia, deve estar escondido na floresta. –


rosnou Zarono – Vamos esquadrinhar a selva e descobri-lo.

Valenso riu rudemente.

- Procure por uma sombra, empurrada por uma nuvem que cobre a
lua; tateie na escuridão por uma cobra; siga uma névoa que sai do
pântano à meia-noite.

Zarono lhe dirigiu um olhar vago, obviamente duvidando da sua


sanidade.

- Quem é este homem? Você não está sendo claro.

- A sombra de minhas próprias e loucas crueldade e ambição; um


horror, vindo de eras perdidas; nenhum homem de carne e sangue
mortais, mas...

- Vela à vista! – berrou a sentinela na ponta norte.

Zarono girou, e sua voz cortou o vento.

- Você conhece?

- Sim! – a resposta veio fracamente – É o Mão Vermelha!

Zarono praguejou feito um selvagem.

- Strom! O diabo leve seu dono! Como ele conseguiu navegar naquele
vendaval? – A voz do bucaneiro se ergueu a um grito que se alastrou
pela praia – De volta ao forte, seus cães!

Diante do Mão Vermelha, de aparência um pouco batida e abrindo


caminho ao redor da ponta, a praia estava desprovida de vida
humana, a paliçada encrespada de cabeças com elmos e faixas. Os
bucaneiros aceitaram a aliança, com a fácil adaptabilidade dos
aventureiros; e os homens de confiança, com a apatia dos servos.

Zarono arreganhou os dentes, quando uma lancha se dirigiu


ociosamente para a praia, e ele avistou o cabelo claro de seu rival na
proa. O bote chegou à terra firme, e Strom caminhou sozinho em
direção ao forte.

A certa distância, ele parou e gritou num berro bovino de claro


alcance, na manhã calma:

- Ô do forte! Quero conferenciar!

- Bom, por que diabos não vem? – rosnou Zarono.

- Na última vez que me aproximei sob uma bandeira de trégua, uma


flecha se quebrou em meu peito! – rugiu o pirata – Quero uma
promessa de que isso não acontecerá novamente!

- Você tem minha promessa! – gritou sardonicamente Zarono.

- Dane-se a sua promessa, seu cão zíngaro! Quero a palavra de


Valenso.

Havia ainda certo grau de dignidade no conde. Também havia uma


borda de autoridade em sua voz, quando respondeu.

- Venha, mas mantenha seus homens lá atrás. Você não será


flechado.

- É o bastante para mim. – disse Strom instantaneamente – Não


importa as ofensas de um Korzetta; uma vez que sua palavra é dada,
você pode confiar nele.

Ele caminhou para a frente e parou sob o portão, rindo do semblante


obscurecido de ódio que Zarono lhe estocava.

- Bem, Zarono – ele escarneceu –, você está um navio mais escasso


que na última vez que o vi! Mas vocês, zíngaros, nunca foram
marinheiros.

- Como salvou seu navio, seu cão-de-sarjeta messântio? – rosnou o


bucaneiro.

- Há uma enseada, algumas milhas ao norte, protegida por um braço


de terra de alta elevação, que quebrou a força do temporal. –
respondeu Strom – Eu estava ancorado atrás dele. Minhas âncoras se
arrastaram, mas me mantiveram longe do litoral.

Zarono franziu sombriamente a testa. Valenso não disse nada. Ele


não sabia daquela enseada. Havia feito pouca exploração de seu
território. Medo dos pictos e falta de curiosidade o haviam mantido –
e a seus homens – próximo ao forte. Os zíngaros não eram, por
natureza, nem exploradores nem colonizadores.

- Venho para negociar. – disse Strom, tranquilamente.

- Não temos nada para negociar com você, exceto golpes de espada.
– rosnou Zarono.

- Eu penso de outra forma. – sorriu Strom, com seus lábios finos –


Você revelou seus planos, quando assassinou Galacus, meu primeiro-
imediato, e o roubou. Até esta manhã, eu achava que Valenso tivesse
o tesouro de Tranicos. Mas, se um de vocês o tivesse, não teria se
dado ao trabalho de me seguir e matar meu imediato para conseguir
o mapa.

- O mapa? – exclamou Zarono, enrijecendo.

- Ora, não finja! – riu Strom, embora a fúria lhe ardesse azul nos
olhos – Eu sei que você o tem. Pictos não usam botas!

- Mas... – começou o conde, perplexo, mas ficou em silêncio quando


Zarono o cutucou.

- E, se tivermos o mapa – disse Zarono –, que negociação você tem,


que nós possamos precisar?
- Deixe-me entrar no forte. – sugeriu Strom – Aí, nós podemos
conversar.

Ele não era tão óbvio, quando olhou para os homens que observavam
ao longo do muro, mas seus dois ouvintes entenderam. E os homens
também. Strom tinha um navio. Aquele fato iria figurar em qualquer
negócio, ou luta. Mas ele não carregaria todos, independente de
quem o comandasse; independente de quem zarpasse nele, alguns
seriam deixados para trás. Uma onda de tensa especulação correu
pela multidão silenciosa, na paliçada.

- Seus homens vão ficar onde estão. – avisou Zarono, apontando


tanto o bote na praia quanto o navio ancorado no lado de fora da
baía.

- Sim. Mas não pense que pode me capturar e me manter como


refém. – Ele riu sombriamente – Quero a palavra de Valenso, de que
terei permissão para deixar o forte com vida e ileso, dentro de uma
hora, independente de chegarmos ou não a um acordo.

- Você tem minha garantia. – respondeu o conde.

- Tudo bem, então. Abra o portão, e vamos conversar com franqueza.

O portão se abriu e fechou, os líderes sumiram de vista, e os homens


comuns de ambos os grupos reassumiram a silenciosa análise que
faziam uns dos outros: os homens da paliçada e os que se
acocoravam ao lado do bote, com uma grande extensão de areia
entre eles; e, atrás de uma faixa de água azul, a nau, com chapéus
de aço brilhando ao longo de todo o parapeito.

Na escada larga, acima do grande salão, Belesa e Tina se


agachavam, ignoradas pelos homens abaixo. Estes estavam sentados
ao redor da grande mesa: Valenso, Galbro, Zarono e Strom. Mas,
para eles, o salão estava vazio.

Strom tragava vinho e colocava a taça vazia sobre a mesa.


A sinceridade, sugerida por suas fisionomias francas, era desmentida
pelas luzes dançantes de crueldade e traição em seus olhos grandes.
Mas ele falava com franqueza suficiente.

- Todos nós queremos o tesouro, que o velho Tranicos escondeu em


algum lugar próximo a esta baía. – ele disse abruptamente – Cada
um tem o que os outros precisam. Valenso tem trabalhadores,
suprimentos e uma paliçada para nos proteger dos pictos. Você,
Zarono, tem meu mapa. Eu tenho um navio.

- O que eu gostaria de saber – comentou Zarono – é isto: se você


tinha aquele mapa todos estes anos, por que não foi logo atrás da
pilhagem?

- Eu não o tinha. Foi o cão do Zingelito, que esfaqueou o velho sovina


no escuro e roubou o mapa. Mas ele não tinha navio nem tripulação,
e demorou mais de um ano para consegui-los. Quando foi atrás do
tesouro, os pictos lhe impediram, e seus homens se amotinaram,
fazendo-o navegar de volta a Zingara. Um deles roubou-lhe o mapa,
e me vendeu recentemente.

- É por isso que Zingelito reconheceu a baía. – murmurou Valenso.

- Aquele cão lhe trouxe para cá, conde? Eu devia ter imaginado. Onde
ele está?

- No inferno, sem dúvida, já que ele um dia foi bucaneiro. Os pictos


mataram-no, evidentemente enquanto ele estava procurando pelo
tesouro na floresta.

- Bom! – aprovou Strom, com sinceridade – Bem, eu não sei como


você descobriu que meu imediato estava levando o mapa. Eu
confiava nele, e os homens confiavam mais nele do que em mim, de
modo que eu o deixei guardá-lo. Mas, nesta manhã, ele se aventurou
em terra com alguns outros, se separou deles, e o encontramos
morto com um golpe de espada, perto da praia, e o mapa sumiu. Os
homens logo me acusaram de tê-lo matado, mas mostrei aos idiotas
as pegadas deixadas por seu matador e provei a eles que meus pés
não as deixariam. E eu sabia que não era ninguém de minha
tripulação, porque nenhum deles usava botas que fizessem aqueles
tipos de pegadas. E pictos absolutamente não usam botas. Desse
modo, só pode ter sido um zíngaro.

“Bem, você tem o mapa, mas não adquiriu o tesouro. Se você o


tivesse, não me deixaria adentrar a paliçada. Eu tenho você
encurralado neste forte. Você não pode sair para procurar pelo
tesouro, e mesmo que o fizesse, não tem navio para ir embora.

“Agora, eis a minha proposta: Zarono, me dê o mapa. E você,


Valenso, me dê carne fresca e outros suprimentos. Meus homens
estão quase com escorbuto, após a longa viagem. Em troca, levarei
três homens seus, Lady Belesa e a menina dela, e lhes desembarcarei
próximos a algum porto zíngaro... ou desembarcarei Zarono perto de
algum ponto-de-encontro de bucaneiros, vez que alguma armadilha
sem dúvida o espera em Zingara. E, para firmar meu negócio, darei a
cada um de vocês uma parte da divisão do tesouro”.

O bucaneiro puxou meditativamente o bigode. Ele sabia que Strom


não manteria nenhum pacto, quando feito. Zarono nem sequer
considerou a possibilidade de concordar com sua proposta. Mas
recusar rudemente seria forçar a questão para um entrechocar de
armas. Usou seu cérebro ágil, num plano para passar a perna no
pirata. Ele queria o navio de Strom tão ansiosamente quanto
desejava o tesouro perdido.

- O que nos impediria de lhe manter prisioneiro, e obrigar seus


homens a nos dar seu navio em troca de você? – ele perguntou.

Strom riu diante dele.

- Pensa que sou algum idiota? Meus homens têm ordens de levantar
âncoras e partir daqui, caso eu não reapareça em uma hora, ou se
eles suspeitarem de traição. Eles não lhe dariam o navio, se você me
esfolasse vivo na praia. Além disso, tenho a palavra do conde.
- Minha promessa não é ninharia. – disse sombriamente Valenso –
Chega de ameaças, Zarono.

Zarono não respondeu; seu pensamento estava totalmente


mergulhado no problema em tomar posse do navio de Strom, e em
continuar a negociação sem trair o fato de que não tinha o mapa. Ele
se perguntava quem, em nome de Mitra, tinha o maldito mapa.

- Deixe-me levar meus homens comigo em seu navio, quando


embarcarmos. – ele disse – Não posso abandonar meus fiéis
seguidores...

Strom riu.

- Por que não pede meu sabre, para cortar minha garganta com ele?
Desista de seus fiéis... bah! Você abandonaria seu irmão ao diabo, se
pudesse ganhar algo com isso. Não! Você não levará homens
suficientes a bordo, para ter chance de se amotinar e levar meu
barco.

- Nos dê um dia para refletirmos a respeito. – insistiu Zarono.

O punho pesado de Strom bateu com força sobre a mesa, fazendo o


vinho dançar nos copos.

- Não, por Mitra! Dê a minha resposta agora!

Zarono estava de pé, com sua fúria negra lhe submergindo a astúcia.

- Seu cão baracho! Vou lhe dar sua resposta... em suas tripas...

Lançou o manto para um lado e agarrou o punho da espada. Strom


se levantou com um urro, sua cadeira se espatifando para trás, no
chão. Valenso ergueu-se de um pulo, esticando os braços entre os
dois, enquanto eles se olhavam reciprocamente pela borda, com as
mandíbulas salientadas e fechadas, lâminas meio desembainhadas e
os rostos contraídos.
- Senhores, chega! Zarono, ele tem minha palavra...

- Demônios imundos mastiguem sua palavra! – rosnou Zarono.

- Afaste-se de nós, milorde! – rosnou o pirata, sua voz engrossada


pela ânsia de matar – Sua palavra era a de que eu não deveria ser
tratado traiçoeiramente. Não será considerada violação de sua
promessa, se este cão e eu cruzarmos espadas numa luta justa.

- Bem falado, Strom!

Era uma voz profunda e poderosa atrás deles, vibrante em sombrio


divertimento. No alto da escada, Belesa se ergueu, com uma
exclamação involuntária.

Um homem saía, a passos largos, das cortinas que cobriam a porta


de um quarto, e avançava em direção à mesa, sem pressa ou
hesitação. Instantaneamente, ele dominou o grupo, e todos sentiram
o lugar subitamente carregado por uma atmosfera nova e dinâmica.

O forasteiro era tão alto quanto ambos os flibusteiros, e mais


poderosamente constituído que qualquer um, embora, apesar de todo
o seu tamanho, se movesse com a flexibilidade de uma pantera sobre
suas botas altas e deslumbrantes. Suas coxas estavam envolvidas em
calças justas de seda branca; seu casaco, de aba larga e cor azul-
celeste, aberto para mostrar uma camisa branca de seda com a gola
aberta e a faixa escarlate que lhe envolvia o cinto. Havia botões
prateados, em forma de bolotas, no casaco, e este era adornado com
punhos trabalhados a ouro nas mangas e nos bolsos, e uma gola de
cetim. Um chapéu envernizado completava um vestuário em desuso
há quase um século. Um pesado sabre lhe pendia do quadril.

- Conan! – exclamaram juntos os flibusteiros, e Valenso e Galbro


prenderam a respiração diante daquele nome.

- Quem mais? – O gigante caminhava em direção à mesa, rindo


sarcasticamente diante do assombro deles.
- O que... o que faz aqui? – gaguejou o senescal – Como vem aqui,
sem ser convidado nem anunciado?

- Subi a paliçada no lado leste, enquanto vocês, tolos, estavam


discutindo no portão. – Conan respondeu – Todos os homens no forte
estavam esticando o pescoço para oeste. Adentrei a casa feudal,
enquanto Strom estava entrando no portão. Fiquei naquele quarto lá,
desde então, ouvindo às escondidas.

- Pensei que estivesse morto. – disse Zarono, lentamente – Três anos


atrás, o casco despedaçado de seu navio foi visto próximo a uma
costa de recifes, e nunca mais se ouviu falar de você em alto-mar.

- Não me afoguei com minha tripulação. – respondeu Conan – Seria


preciso um oceano maior que esse para me afogar.

No alto da escada, Tina apertava Belesa em sua agitação, e olhava


através do corrimão, com os olhos bem arregalados.

- Conan! Milady, é Conan! Veja! Oh, veja!

Belesa estava olhando. Era como encontrar uma figura lendária em


carne e osso. Quem, de todos os povos do mar, não ouvira as
histórias selvagens e sangrentas, ditas a respeito de Conan, o pirata
selvagem que fora uma vez um capitão dos piratas barachos e um
dos maiores flagelos do mar? Umas vinte baladas celebravam suas
proezas ferozes e audaciosas. O homem não podia ser ignorado.
Irresistivelmente, ele adentrava a cena de forma majestosa, para
formar outro elemento dominante na complicada trama. E, em meio à
sua assustada fascinação, o instinto feminino de Belesa sugeriu a
especulação sobre a atitude de Conan em relação a ela... seria como
a brutal indiferença de Strom, ou o desejo violento de Zarono?

Valenso estava se recuperando do choque, de encontrar um


forasteiro dentro do próprio salão. Ele sabia que Conan era um
cimério, nascido e criado nos ermos do norte distante, e portanto não
estava exposto às limitações físicas que controlavam homens
civilizados. Não era tão estranho ele ter sido capaz de entrar no forte
sem ser detectado, mas Valenso se amedrontou diante do
pensamento de que outros bárbaros pudessem reproduzir aquela
façanha – os escuros e silenciosos pictos, por exemplo.

- O que você quer aqui? – ele indagou – Veio do mar?

- Vim da floresta. – O cimério moveu bruscamente a cabeça para


leste.

- Estava vivendo com pictos? – Valenso perguntou friamente.

Uma ira momentânea palpitou azul nos olhos do gigante.

- Mesmo um zíngaro deveria saber que nunca houve paz entre pictos
e cimérios, e nunca haverá. – ele retrucou, com uma praga – Nossa
rixa é mais velha que o mundo. Se você tivesse dito isso para um de
meus irmãos mais selvagens, já estaria com a cabeça rachada. Mas
vivi entre vocês, civilizados, por tempo suficiente para entender sua
ignorância e falta habitual de cortesia... a grosseria que indaga a
ocupação de um homem que aparece à sua porta, vindo de mil
milhas de selva. Não importa.

Ele se voltou para os dois flibusteiros, que olhavam mal-humorados


para ele.

- Pelo que ouvi – ele citou –, concluí que há alguma discórdia sobre
um mapa!

- Não é nada de sua conta. – rosnou Strom.

- É isto? – Conan sorriu maliciosamente, e puxou do bolso um objeto


amarrotado; um pedaço quadrado de pergaminho, marcado com
linhas escarlates.

Strom arregalou impetuosamente os olhos, empalidecendo.

- Meu mapa! – ele exclamou – Onde você conseguiu?


- De seu imediato, Galacus, quando o matei. – respondeu Conan,
com deleite sombrio.

- Seu cão! – rugiu Strom, se voltando para Zarono – Você nunca teve
o mapa! Você mentiu...

- Eu não disse que o tinha. – rosnou Zarono – Você se iludiu. Não


seja idiota. Conan está sozinho. Se ele tivesse uma tripulação, já
teria cortado nossas gargantas. Tomaremos o mapa dele.

- Vocês nunca o terão! – Conan riu ferozmente.

Os dois homens pularam em direção a ele, praguejando. Andando de


marcha a ré, ele amassou o pergaminho e o arremessou dentro dos
carvões incandescentes da lareira. Com um berro incoerente, Strom
arremeteu atrás dele, para se deparar com um golpe na orelha, que o
deixou estendido e semi-inconsciente no chão. Zarono sacou a
espada, mas antes que pudesse estocá-la, o sabre de Conan
arrancou-a de sua mão com um golpe.

Zarono cambaleou contra a mesa, com todo o inferno nos olhos.


Strom se levantou lentamente, os olhos vidrados e o sangue
pingando da orelha machucada. Conan se inclinou levemente sobre a
mesa, o sabre estendido e tocando naquele momento o peito do
Conde Valenso.

- Não grite por seus soldados, conde. – disse suavemente o cimério –


Nenhum ruído de você... nem de você também, cara de cão!

Seu nome era Galbro, e ele não demonstrou intenção de lhe desafiar
a ira.

- O mapa virou cinzas, e seria inútil derramar sangue. Sentem-se,


todos vocês.

Strom hesitou, fez um gesto frustrado ao cabo da espada, depois


encolheu os ombros e caiu sombriamente numa cadeira. Os outros o
seguiram adequadamente. Conan continuou de pé diante da mesa,
enquanto seus inimigos miravam-no com os olhos amargos de ódio.

- Vocês estavam negociando. – ele disse – Isso é tudo o que eu vim


fazer.

- E o que você tem para negociar? – zombou Zarono.

- O tesouro de Tranicos!

- O quê? – Todos os quatro homens se levantaram, inclinando-se em


sua direção.

- Sentem-se! – ele rugiu, batendo fortemente sua larga lâmina na


mesa. Eles recuaram, tensos e pálidos de agitação.

Ele sorriu em grande satisfação, com a sensação que suas palavras


haviam causado.

- Sim, eu o encontrei antes de adquirir o mapa. É por isso que o


queimei. Não precisei dele. E agora, ninguém irá encontrá-lo, a
menos que eu mostre onde está.

Eles o olhavam, com homicídio nos olhos.

- Está mentindo. – disse Zarono, sem convicção – Você disse que


veio da floresta, embora diga que não estava vivendo com os pictos.
Todos sabem que esta região é uma selva, habitada apenas por
selvagens. Os povoados mais próximos da civilização são os
assentamentos aquilonianos no Rio Trovão, centenas de milhas a
leste.

- Foi de lá que eu vim. – respondeu Conan, imperturbavelmente –


Creio que sou o primeiro homem branco a cruzar as Selvas Pictas.
Cruzei o Rio Trovão para seguir um bando de incursores que estava
pilhando a fronteira. Eu os segui até as profundezas dos sertões e
matei seu líder, mas fui derrubado sem sentidos pela pedra de uma
funda, durante a luta, e os cães me capturaram vivo. Eram homens
do Clã do Lobo, mas eles me deram ao clã dos Águias em troca do
chefe deles, que os Águias haviam capturado. Os Águias me
carregaram por quase mil e seiscentos quilômetros na direção oeste,
para me queimarem na aldeia de seu líder, mas eu matei o chefe-de-
guerra deles e mais uns três ou quatro, numa noite, e fugi.

“Não pude voltar. Estavam atrás de mim, e continuavam me


enxotando para oeste. Há poucos dias, me livrei deles, e por Crom, o
lugar onde me refugiei era justamente o esconderijo do tesouro do
velho Tranicos. Encontrei tudo: arcas com vestimentas e armas...
onde achei estas roupas e esta lâmina... pilhas de moedas, gemas e
ornamentos dourados; e, no meio de tudo isso, as jóias de
Tothmekri, brilhando como a luz congelada das estrelas! E o velho
Tranicos e seus onze capitães, sentados ao redor de uma mesa de
ébano e olhando para ela, como estiveram olhando por cem anos!”.

- O quê?

- Sim! – ele riu – Tranicos morreu em meio ao seu tesouro, e todos


com ele! Seus corpos não estavam decompostos nem enrugados.
Estavam sentados lá, com suas botas altas, camisas com abas e
chapéus envernizados, com seus copos de vinho nas mãos rígidas,
exatamente como ficaram durante um século!

- Não é coisa do acaso! – murmurou Strom, inquieto, mas Zarono


rosnou: – De que serve isso? É o tesouro que queremos. Prossiga,
Conan.

Conan se sentou à mesa, encheu um copo de vinho e o bebeu em


grandes goles, antes de responder.

- O primeiro vinho que bebi desde que abandonei Conawaga, por


Crom! Os malditos Águias me caçavam tão de perto pela floresta, que
eu mal tinha tempo para comer as nozes e raízes que achava. Às
vezes, eu pegava rãs e as comia cruas, pois eu não ousava acender
uma fogueira.

Seus ouvintes impacientes o informaram, praguejando, que não


estavam interessados em suas aventuras antes do achado do
tesouro.

Ele sorriu asperamente e continuou:

- Bem, depois de me deparar com o tesouro escondido, me deitei e


descansei uns poucos dias, fiz armadilhas para pegar coelhos e deixei
meus ferimentos se curarem. Vi fumaça no céu ocidental, mas pensei
que fosse alguma aldeia picta na praia. Eu estava perto, mas
enquanto isso ocorria, a pilhagem estava oculta num lugar que os
pictos evitam. Se alguém me espionasse, eles não iriam se mostrar.

“Noite passada, parti na direção oeste, pretendendo encontrar a


praia, algumas milhas a norte do ponto onde eu tinha visto a fumaça.
Eu não estava longe do litoral, quando caiu a tempestade. Me
abriguei sob uma rocha, e esperei até que fosse embora. Depois, subi
uma árvore para procurar por pictos, e de lá eu vi sua nau, Strom, e
seus homens vindo ao litoral. Eu estava me dirigindo ao seu
acampamento na praia, quando encontrei Galacus. Enfiei uma espada
nele, porque havia uma velha rixa entre nós. Eu nunca saberia que
ele tinha um mapa, se não tivesse tentado comê-lo antes de morrer.

“Eu o reconheci, claro, e estava ponderando sobre o uso que poderia


fazer dele, quando o restante dos seus cães chegou e achou o corpo.
Eu estava deitado num matagal, a menos de onze metros de
distância, enquanto vocês discutiam com seus homens sobre o
assunto. Julguei que o momento não era adequado para me
mostrar”.

Ele riu diante da raiva e humilhação, reveladas no rosto de Strom.

- Bom, enquanto eu me escondia lá, ouvindo sua conversa, percebi o


sentido da situação, e soube, pelas coisas que você deixou escapar,
que Zarono e Valenso estavam a poucas milhas ao sul da praia.
Assim, quando ouvi você dizer que Zarono devia ter sido o matador e
tomado o mapa, e que você pretendia ir negociar com ele, buscando
uma oportunidade de matá-lo e consegui-lo de volta...

- Cão! – rosnou Zarono.


Strom estava pálido, mas riu desoladamente:

- Acha que eu jogaria limpo com um cão traiçoeiro feito você?


Prossiga, Conan.

O cimério sorriu. Era óbvio que ele estava deliberadamente atiçando


as chamas de ódio entre os dois homens.

- Depois disso, nada de mais. Saí diretamente de dentro da floresta,


enquanto você contornava a costa, e achei o forte antes de você. Sua
suposição, de que a tempestade destruiu o navio de Zarono, foi
boa... mas, nesse caso, você conhecia a configuração desta baía.

“Bom, eis a história. Tenho o tesouro, Strom tem um navio, Valenso


tem suprimentos. Por Crom, Zarono, não sei como você se encaixa
no plano, mas para evitar conflito, incluirei você. Minha proposta é
muito simples.

“Dividiremos o tesouro em quatro partes. Strom e eu zarparemos,


com nossas partes a bordo do Mão Vermelha. Você e Valenso pegam
as suas, e continuam lordes das selvas, ou constroem um navio com
troncos de árvores, se desejarem”.

Valenso recuou e Zarono praguejou, enquanto Strom sorria


silenciosamente.

- Você é tolo o bastante para ir à bordo do Mão Vermelha, sozinho


com Strom? – rosnou Zarono – Ele cortará sua garganta, antes que
você se afaste muito da terra!

Conan riu, com prazer evidente:

- Isto é como o problema da ovelha, do lobo e do repolho. – admitiu


– Como convencê-los a atravessar o rio, sem que devorem uns aos
outros?

- E isso apela para seu senso cimério de humor. – queixou-se Zarono.


- Não vou ficar aqui! – gritou Valenso, com um brilho selvagem nos
olhos escuros – Com ou sem tesouro, eu devo partir!

Conan o mirou, com os olhos semicerrados em especulação.

- Bem, então – ele disse –, sobre este plano: nós dividiremos a


pilhagem como sugeri. Então, Strom zarpa com Zarono, Valenso e os
membros da casa do conde que ele escolher, me deixando no
comando do forte e do restante dos homens de Valenso, e de todos
os de Zarono. Construirei meu próprio navio.

Zarono parecia levemente nauseado.

- Tenho a opção de permanecer aqui, exilado, ou abandonar minha


tripulação e ir sozinho para o Mão Vermelha, para ter minha garganta
cortada?

A risada de Conan ressoou borrascosa pelo salão, e ele bateu com


alegria nas costas de Zarono, ignorando a morte negra no olhar feroz
do bucaneiro.

- É isto, Zarono! – disse ele – Fique aqui, enquanto eu e Strom


zarpamos, ou zarpe com Strom, deixando seus homens comigo.

- Prefiro levar Zarono. – disse Strom, com franqueza – Você voltaria


meus próprios homens contra mim, Conan, e cortaria minha garganta
antes que eu pudesse alcançar as Barachas.

O suor pingava do rosto lívido de Zarono.

- Nem eu, nem o conde, nem sua sobrinha alcançaremos a terra


vivos, se embarcarmos com esse demônio. – ele disse – Vocês estão
todos sob meu poder neste salão. Meus homens o cercam. O que me
impede de liquidá-los?

- Nada... – admitiu Conan alegremente – Exceto pelo fato de que, se


você fizer isso, os homens de Strom irão zarpar e lhes deixar
abandonados nesta costa, onde os pictos irão em breve cortar todas
as suas gargantas; o fato de que, comigo morto, vocês nunca
acharão o tesouro; e o fato de que racharei seu crânio até o queixo,
se você tentar chamar seus homens.

Conan riu enquanto falava, como se estivesse em alguma situação


cômica, mas mesmo Belesa sentiu que ele falava sério. Seu sabre
estava sobre os joelhos, e a espada de Zarono estava sob a mesa,
fora do alcance do bucaneiro. Galbro não era um lutador, e Valenso
parecia incapaz de decidir ou agir.

- Sim! – disse Strom, com uma praga – Nós dois não seríamos presa
fácil para você. Estou disposto a concordar com a proposta de Conan.
O que diz, Valenso?

- Eu tenho que deixar a costa! – sussurrou Valenso, olhando para o


vazio – Tenho que me apressar... tenho que ir... ir para longe...
rápido!

Strom franziu a sobrancelha, intrigado com o estranho


comportamento do conde, e se voltou para Zarono, com um sorriso
maldoso: – E você, Zarono?

- O que posso dizer? – rosnou Zarono – Deixe-me levar meus três


capitães e 40 homens a bordo do Mão Vermelha, e o negócio está
feito.

- Os capitães e 30 homens!

- Muito bem.

- Feito!

Não houve aperto de mãos, nem ingestão protocolar de vinho para


selar o pacto. Os dois capitães olharam ferozmente um para o outro,
feito lobos famintos. O conde puxou o bigode com uma mão trêmula,
absorto em seus próprios pensamentos sombrios. Conan se
espreguiçou feito um grande gato, bebeu vinho e sorriu satisfeito na
reunião, mas era o sorriso sinistro de um tigre à espreita. Belesa
sentiu os propósitos homicidas que reinavam ali e as intenções
traiçoeiras que dominavam a mente de cada homem. Nenhum deles
tinha qualquer intenção de cumprir sua parte no trato, exceto talvez
por Valenso. Cada um dos flibusteiros pretendia possuir tanto o navio
quanto o tesouro inteiro. Nem ficaram satisfeitos com menos. Mas
como? O que se passava na mente astuta de cada um? Belesa se
sentiu oprimida e sufocada pela atmosfera de ódio e traição. O
cimério, apesar de sua violenta sinceridade, não era menos astuto
que os outros... e era até mais feroz. Seu domínio da situação não
era apenas físico – embora seus ombros enormes e membros sólidos
parecessem grandes demais, mesmo para o salão vasto. Havia uma
vitalidade férrea ao redor do homem, que obscurecia até mesmo o
sólido vigor dos outros piratas.

- Leve-nos ao tesouro! – demandou Zarono.

- Espere um pouco. – respondeu Conan – Vamos deixar nossas forças


igualmente equilibradas, de modo que um não possa tirar vantagem
dos outros. Faremos da seguinte forma: os homens de Strom
desembarcarão, com exceção de meia dúzia, mais ou menos, e
acamparão na praia. Os homens de Zarono sairão do forte, e também
acamparão na costa, dentro do alcance visual deles. Portanto, cada
tripulação pode verificar a outra, para ver que ninguém virá atrás de
nós, que vamos atrás do tesouro, para nos emboscar. Os que ficarão
a bordo do Mão Vermelha o levarão para o centro da baía, fora do
alcance de ambos os grupos. Os homens de Valenso permanecerão
no forte, mas deixarão o portão aberto. Virá conosco, conde?

- Ir para dentro daquela floresta? – Valenso estremeceu e puxou o


manto em volta dos ombros – Nem por todo o ouro de Tranicos!

- Tudo bem. Serão necessários cerca de 30 homens, para carregar o


espólio. Pegaremos quinze de cada tripulação e começaremos o mais
breve possível.

Belesa, intensamente alerta para cada ângulo do drama que se


desenrolava lá, sob ela, viu Zarono e Strom lançaram olhares furtivos
um para o outro, e depois baixarem seus olhares tão rápido quanto
erguiam os copos, para esconderem a negra intenção em seus olhos.
Belesa viu a fraqueza fatal no plano de Conan, e se perguntou como
ele conseguia não notá-la. Talvez ele confiasse demais e
arrogantemente na própria maestria pessoal. Mas ela sabia que ele
jamais sairia vivo daquela floresta. Uma vez de posse daquele
tesouro, os outros formariam uma aliança entre velhacos, longa o
bastante para se livrarem do homem que ambos odiavam.
Estremeceu, fitando morbidamente o homem que ela sabia estar
condenado; era estranho ver aquele poderoso lutador sentado ali,
rindo e bebendo vinho a longos tragos, em pleno vigor e força, e
saber que ele já estava condenado a uma morte sangrenta.

Toda a situação estava prenhe de presságios obscuros e agourentos.


Zarono enganaria e mataria Strom se pudesse, e ela sabia que Strom
já havia marcado Zarono para morrer e, sem dúvida, ao seu tio e
também a ela. Se Zarono ganhasse a luta final de sagacidades, suas
vidas estariam a salvo – mas, olhando para o bucaneiro, enquanto
ele se sentava lá, mastigando o bigode, com todo o mal inflexível de
sua natureza se mostrando nu em seu rosto moreno, ela não
conseguiu decidir o que era mais detestável: a morte ou Zarono.

- Qual a distância? – indagou Strom.

- Se partirmos dentro de uma hora, podemos voltar antes da meia-


noite. – respondeu Conan. Ele esvaziou o copo, se levantou, ajustou
o cinto e olhou para o conde.

- Valenso – ele disse –, você é louco, para matar um picto em sua


pintura de caça?

Valenso se sobressaltou.

- O que quer dizer?

- Quer dizer que não sabe que seus homens mataram um caçador
picto na floresta, noite passada?
O conde sacudiu a cabeça.

- Nenhum dos meus esteve na floresta, noite passada.

- Bem, alguém esteve. – grunhiu o cimério, mexendo num bolso – Eu


vi a cabeça dele, pregada numa árvore, perto do limite da floresta.
Ele não estava pintado para a guerra. Não achei nenhuma pegada de
botas, de modo que julguei que ela foi pregada antes da tempestade.
Mas havia muitos outros sinais... rastros de mocassim no chão
molhado. Pictos estiveram lá e viram aquela cabeça. Eram homens de
outro clã, do contrário a teriam tirado de lá. Se eles estiverem em
paz com o clã ao qual o morto pertencia, irão até sua aldeia para
contar à sua tribo.

- Talvez o tenham matado. – sugeriu Valenso.

- Não. Mas eles sabem quem o matou, pela mesma razão que eu sei.
Esta corrente estava amarrada ao redor do coto do pescoço cortado.
Você deveria estar completamente louco, para identificar seu trabalho
desse jeito.

Ele puxou algo para a frente e lançou na mesa, diante do conde, o


qual se ergueu, cambaleando e chocado, enquanto a mão se lançava
à própria garganta. Era a corrente de ouro que ele costumava usar ao
redor do pescoço.

- Reconheci o selo Korzetta. – disse Conan – A presença dessa


corrente mostraria, a qualquer picto, que aquilo foi obra de um
estrangeiro.

Valenso não respondeu. Ficou olhando a corrente, como se fosse uma


serpente venenosa.

Conan o olhou com a testa franzida, e mirou interrogativamente os


outros. Zarono fez um gesto rápido, para mostrar que o conde não
estava totalmente bom da cabeça.

Conan embainhou o sabre e pôs o chapéu envernizado.


- Tudo bem. Vamos.

Os capitães engoliram seu vinho e se levantaram, pegando os cabos


de suas espadas. Zarono pôs a mão no braço de Valenso e o sacudiu
levemente. O conde se sobressaltou e olhou ao redor, e logo os
seguiu, como que atordoado, a corrente lhe pendendo dos dedos.
Mas, nem todos deixaram o salão.

Belesa e Tina, esquecidas na escada e espreitando entre os


balaústres, viram Galbro ficar para trás dos outros, se demorando até
a pesada porta se fechar atrás deles. Então, ele se apressou até a
lareira e mexeu cuidadosamente nos carvões quentes, porém
apagados. Caiu de joelhos e fitou algo bem de perto, por um longo
intervalo. Logo, se ergueu e, com um ar furtivo, saiu do salão por
uma outra porta.

- O que será que Galbro viu no fogo? – sussurrou Tina.

Belesa sacudiu a cabeça e logo, seguindo os impulsos de sua


curiosidade, levantou-se e desceu para o salão vazio. No instante
seguinte, estava ajoelhada onde o senescal se ajoelhara, e viu o que
ele vira.

Eram os restos queimados do mapa que Conan lançara dentro da


fogueira. Estava a ponto de se esmigalhar a um simples toque, mas
linhas vagas e trechos de escrita ainda eram discerníveis sobre ele.
Ela não conseguia ler a escrita, mas conseguia perceber os contornos
do que parecia ser a figura de uma colina – ou um penhasco –,
cercada por marcas que obviamente representavam árvores densas.
Não conseguiu deduzir nada, mas, pela atitude de Galbro, acreditou
que ele a reconheceu como o retrato de alguma cena, ou
característica topográfica que lhe era familiar. Ela sabia que o
senescal havia adentrado a terra mais do que qualquer outro homem
do estabelecimento.

6) A Pilhagem dos Mortos


Belesa desceu a escada e parou ao ver o Conde Valenso sentado à
mesa, mexendo na corrente quebrada em suas mãos. Ela o olhava
sem amor, e com mais do que pequeno medo. A mudança que
ocorrera nele foi aterradora; parecia trancado num mundo sombrio
exclusivamente seu, com um medo que fustigou todas as
características humanas para fora dele.

A fortaleza se encontrava estranhamente quieta, no calor do meio-dia


que se seguira à tempestade do amanhecer. As vozes das pessoas
dentro da paliçada soavam baixas e abafadas. A mesma quietude
sonolenta reinava na praia lá fora, onde as tripulações rivais estavam
em suspeita armada, separadas por poucas centenas de metros de
areia nua. Lá no meio da baía, o Mão Vermelha estava ancorado, com
um punhado de homens à sua bordo, prontos para arrebatá-lo para
longe da vista, ao mais leve sinal de traição. A nau era o trunfo de
Strom, sua melhor garantia contra a trapaça de seus sócios.

Conan havia planejado astutamente para eliminar as chances de


evitar uma cilada na floresta, vinda de qualquer um dos grupos. Mas,
até onde Belesa podia enxergar, ele havia falhado totalmente em se
proteger contra a traição de seus companheiros. Havia desaparecido
floresta adentro, guiando os dois capitães e seus trinta homens, e a
jovem zíngara estava certa de que não mais o veria vivo.

Logo, ela falou, e sua voz estava fatigada e áspera aos seus próprios
ouvidos.

- O bárbaro levou os dois capitães para dentro da floresta. Quando


tiverem o ouro nas mãos, eles irão matá-lo. Mas, quando voltarem
com o tesouro, o que acontecerá? Iremos à bordo do navio? Podemos
confiar em Strom?

Valenso sacudiu a cabeça distraidamente.

- Strom mataria a todos nós por nossas partes do espólio. Mas


Zarono me sussurrou as suas intenções secretamente. Não
embarcaremos no Mão Vermelha, se não formos donos dele. Zarono
se encarregará de que a noite surpreenda a expedição para o
tesouro, de modo que sejam forçados a acamparem na floresta.
Encontraremos um meio de matar Strom e seus homens enquanto
dormem. Então, os bucaneiros avançarão furtivamente até a praia.
Logo antes do amanhecer, mandarei secretamente alguns dos meus
pescadores saírem do forte, para nadarem até o navio e se
apoderarem dele. Strom nunca pensou nisso, nem Conan. Zarono e
seus homens sairão da floresta e, com seus bucaneiros acampados
na praia, cairão sobre os piratas na escuridão, enquanto lidero meus
soldados desde o forte, para completar a derrota. Sem seu capitão,
eles estarão desmoralizados e, superados em número, serão presa
fácil para Zarono e eu. Depois, partiremos no navio de Zarono, com
todo o tesouro.

- E quanto a mim? – ela perguntou, com os lábios secos.

- Já lhe prometi a Zarono. – ele respondeu asperamente – Se não


fosse por minha promessa, ele não nos levaria.

- Nunca irei me casar com ele. – ela disse, sem saber o que fazer.

- Você irá. – ele respondeu sombriamente e sem o menor toque de


simpatia. Ergueu a corrente, de modo a refletir a luz do sol, que
adentrava obliquamente uma janela – Deve ter caído na areia. – ele
murmurou – Ele esteve tão perto... na praia...

- Você não a deixou cair na praia. – disse Belesa, numa voz tão
desprovida de piedade quanto a dele próprio; a alma dela parecia ter
se tornado pedra – Você o arrancou do pescoço acidentalmente, na
noite passada, neste salão, quando chicoteou Tina. Eu o vi, brilhando
no chão, antes de deixar o salão.

Ele olhou para cima, o rosto acinzentado por um medo terrível.

Ela riu amargamente, sentindo a pergunta muda nos olhos dilatados


dele.

- Sim! O homem negro! Ele esteve aqui! Neste salão! Deve ter
encontrado a corrente no chão. Os guardas não o viram. Mas ele
esteve diante de sua porta na noite passada. Eu o vi, andando pelo
saguão superior.

Por um instante, ela achou que ele cairia morto de puro terror. Ele
caiu para trás em sua cadeira, a corrente escapulindo de seus dedos
flácidos e caindo com um tinido sobre a mesa.

- Na casa feudal! – ele sussurrou – Pensei que flechas, trancas e


guardas armados pudessem mantê-lo distante... como fui idiota! Não
posso me proteger dele mais do que escapar! Na minha porta! Na
minha porta! – O pensamento o esmagava de horror – Por que ele
não entrou? – ele gritou em voz estridente, puxando a renda sobre a
gola, como se a mesma o estrangulasse – Por que ele não pôs um fim
nisto? Eu havia sonhado que acordava em meu quarto escuro, para
vê-lo se acocorar sobre mim, com o fogo azul do inferno ondulando
ao redor de sua cabeça com chifres! Por que...

O ataque passou, deixando-o fraco e trêmulo.

- Entendo! – ele ofegou – Ele está brincando comigo, como um gato


com um rato. Ter me matado na noite passada, em meu quarto, seria
fácil demais, piedoso demais. De modo que destruiu o navio no qual
eu poderia ter escapado dele, matou aquele picto miserável e deixou
minha corrente nele, para os selvagens acharem que eu o havia
matado... eles tinham visto aquela corrente em meu pescoço várias
vezes.

“Mas, por quê? Que perversidade engenhosa ele tem em mente, que
propósito diabólico ao qual nenhuma mente humana pode alcançar ou
entender?”.

- Quem é este homem negro? – perguntou Belesa, com um medo frio


se arrastando ao longo da espinha.

- Um demônio libertado por minha ambição e cobiça, para me


atormentar por toda a eternidade! – ele sussurrou. Estirou seus
dedos longos e magros sobre a mesa diante dele, e fitou-a com olhos
cavernosos e estranhamente luminosos, que pareciam não vê-la, mas
olharem através dela, e para bem distante, até algum destino
obscuro.

- Na minha juventude, tive um inimigo na corte. – disse, como se


falando mais para si mesmo do que para ela – Um homem poderoso,
que estava entre eu e minha ambição. Em minha ânsia por riqueza e
poder, procurei ajuda do povo das artes negras... um mago negro,
que, a meu pedido, invocou um demônio dos golfos externos da
existência e forneceu a ele a forma de um homem. Ele subjugou e
matou meu inimigo; obtive grandeza e poder, e ninguém conseguia
se opor a mim. Mas pensei em trapacear meu demônio, do preço que
um mortal deve pagar a quem chama o povo negro para fazerem o
que lhes ordena.

“Através de suas artes negras, o feiticeiro enganou o vagabundo


desalmado da escuridão, e o aprisionou no inferno, onde uivaria em
vão... imaginei que por toda a eternidade. Mas, como o feiticeiro
tinha dado ao demônio a forma de um homem, ele nunca conseguiu
quebrar o elo que o ligava ao mundo material; nunca totalmente
próximo aos corredores cósmicos, pelos quais havia ganhado acesso
a este planeta.

“Um ano atrás, em Kordava, me veio a notícia de que o mago, agora


um homem idoso, havia sido assassinado em seu castelo, com
marcas de dedos demoníacos na garganta. Então, soube que a
criatura negra havia escapado do inferno onde o mago o aprisionara,
e que ele procuraria vingança contra mim. Numa noite, vi seu rosto
demoníaco me olhando furtivamente, das sombras no salão de meu
castelo...

“Não era seu corpo material, mas seu espírito, mandado para me
atormentar... seu espírito, que não conseguiria me seguir pelas águas
expostas ao vento. Antes que ele conseguisse alcançar Kordava em
carne e osso, embarquei para colocar vastos mares entre eu e ele.
Ele tem suas limitações. Para me seguir pelos mares, ele deve
permanecer em seu corpo humano de carne. Mas aquela carne não é
carne humana. Ele pode ser morto, eu acho, por fogo, embora o
feiticeiro que o invocou não tivesse poderes para matá-lo... sejam
quais forem os limites impostos aos poderes dos bruxos.

“Mas a criatura negra é astuta demais para ser capturada ou morta.


Quando se esconde, homem nenhum consegue achá-lo. Move-se
furtivamente feito uma sombra pela noite, indiferente a flechas ou
grades. Ele cega os olhos dos guardas com o sono. Pode invocar
tempestades, e comandar as serpentes das profundezas e os
demônios da noite. Eu esperava ter afogado meu rastro nas
ondulantes desolações azuis... Mas ele encontrou, para reclamar sua
penalidade sombria”.

Os estranhos olhos se iluminaram palidamente, como se ele olhasse


além das paredes atapetadas, para horizontes distantes e invisíveis.

- Vou enganá-lo novamente. – ele sussurrou – Deixe-o adiar o ataque


esta noite... ao amanhecer, estarei com um navio sob meus
calcanhares, e mais uma vez colocarei um oceano entre mim e sua
vingança.

- Fogo do inferno!

Conan parou bruscamente, olhando para cima. Atrás dele, os marujos


pararam – duas massas compactas deles, com arcos nas mãos e
suspeita em suas atitudes. Estavam seguindo uma velha trilha, feita
por caçadores pictos e que levava diretamente para leste; e, embora
houvessem avançado menos de 30 metros, a praia não estava mais
visível.

- O que é? – indagou Strom, desconfiado – Por que estamos


parando?

- Está cego? Olhe para lá!

Do galho grosso de uma árvore que pendia sobre a trilha, uma


cabeça arreganhava os dentes para eles, que estavam abaixo – um
escuro rosto pintado, emoldurado em abundante cabelo negro, no
qual uma pena de tucano pendia sobre a orelha esquerda.

- Peguei essa cabeça e a escondi nas moitas. – rosnou Conan,


esquadrinhando estreitamente as árvores ao redor deles – Que idiota
poderia tê-la pregado novamente aqui? É como se alguém estivesse
tentando fazer o pior, para atrair os pictos para o assentamento.

Os homens olharam sombriamente uns para os outros, um novo


elemento de suspeita somado ao já fervilhante caldeirão.

Conan escalou a árvore, pegou a cabeça e a levou para dentro das


moitas, onde lançou-a dentro de um rio e a viu afundar.

- Os pictos, cujas pegadas estão ao redor desta árvore, não eram


Tucanos. – ele rosnou, voltando pela mata espessa – Já naveguei por
estas costas o suficiente para saber alguma coisa sobre as tribos
marinhas. Se interpretei corretamente as marcas de seus mocassins,
eram Cormorões. Espero que estejam em guerra contra os Tucanos.
Se estiverem em paz, irão diretamente para a aldeia dos Tucanos, e
haverá problemas. Não sei qual a distância daquela aldeia... mas
assim que souberem deste assassinato, virão pela floresta como
lobos famintos. Esse é o pior insulto possível para um picto... matar
um homem que não está pintado para a guerra, e fincar sua cabeça
no alto de uma árvore para que os abutres a comam. Coisas malditas
e esquisitas estão acontecendo ao longo desta costa. Mas isso
sempre acontece, quando homens civilizados adentram a selva. Eles
são infernalmente loucos. Vamos.

Homens desembainhavam as lâminas e tiravam as flechas das aljavas


à medida que adentravam a floresta. Homens do mar, acostumados
às vastidões ondulantes de água verde, estavam pouco à vontade
com as verdes e misteriosas muralhas de árvores e trepadeiras que
os cercavam. A trilha serpenteava e se retorcia, até muitos deles
perderem rapidamente o senso de direção, e já não sabiam sequer
para que lado ficava a praia.

Conan estava desconfortável por outra razão. Continuou examinando


a trilha atentamente, e por fim grunhiu:
- Alguém passou recentemente por aqui... não mais do que uma hora
à nossa frente. Alguém com botas, sem experiência com a floresta.
Será que foi ele o idiota que encontrou a cabeça do picto e a fincou
novamente, naquela árvore? Não, não poderia ter sido ele. Não
encontrei suas pegadas sob a árvore. Mas quem foi? Não achei
nenhum rastro aqui, exceto aquele dos pictos, que eu já tinha visto. E
quem é este camarada que se apressou à nossa frente? Algum de
vocês, bastardos, mandou um homem à frente de nós, por qualquer
motivo?

Tanto Strom quanto Zarono negaram ruidosamente qualquer ato


desse tipo, olhando um para o outro com descrença mútua. Nenhum
homem conseguia enxergar os sinais. Conan apontou: as marcas
indistintas que ele viu, na trilha sem capim e bem batida, eram
invisíveis para os olhos destreinados deles.

Conan apressou o passo, e eles se apressaram atrás dele, com novos


tições de suspeita somados ao fogo latente de desconfiança. Dali a
pouco, a vereda se desviou para norte, e Conan a abandonou,
começando a atravessar seu caminho por entre as densas árvores
numa direção sudeste. Strom lançou um olhar furtivo e inquieto para
Zarono. Aquilo podia obrigar a uma mudança em seus planos. A
algumas dezenas de metros da trilha, ambos estavam
irremediavelmente perdidos e convencidos das suas faltas de
habilidade em acharem o caminho de volta à vereda. Estavam
estremecidos pelo medo de que, apesar de tudo, o cimério tivesse
uma força sob seu comando, e os estivesse levando para uma
emboscada.

Esta suspeita aumentou à medida que avançavam, e ela havia quase


alcançado proporções aterradoras, quando saíram das árvores densas
e viram, logo à frente deles, um penhasco desolado que se sobressaía
do chão da floresta. Uma trilha pouco visível, que saía de entre as
árvores na direção leste, seguia entre um agrupamento de matacões
e serpenteava para o alto, numa escada de plataformas de pedra, até
uma saliência achatada perto do cume. Conan parou – uma figura
bizarra em sua roupa pirata.
- Esta trilha é a que eu segui, correndo dos pictos Águias. – ele disse
– Ela sobe para uma caverna, atrás daquela saliência. Naquela gruta
estão os corpos de Tranicos e seus capitães, e o tesouro que ele
saqueou de Tothmekri. Mas só uma palavra, antes de subirmos atrás
dele: se me matarem aqui, vocês nunca acharão o caminho de volta
à trilha que seguimos desde a praia. Eu conheço vocês, marinheiros.
Estão indefesos na floresta densa. Claro que a praia fica exatamente
a oeste, mas se tiverem que abrir caminho pela mata emaranhada,
levará horas... talvez dias. E não creio que esta floresta será muito
segura para homens brancos, quando os Tucanos souberem do
caçador deles.

Ele riu diante dos sorrisos medonhos e sem graça, com o qual lhe
acolheram o reconhecimento de suas intenções quanto a ele. E ele
também entendeu o pensamento que passou pela mente de cada um:
deixar o bárbaro proteger o tesouro para eles, e levá-los de volta à
trilha para a praia, antes que eles o matassem.

- Todos vocês fiquem aqui, exceto Strom e Zarono. – disse Conan –


Nós três bastamos para carregarmos o tesouro da caverna.

Strom sorriu sem alegria.

- Subir sozinho, com você e Zarono? Pensa que sou idiota? Pelo
menos um homem virá comigo! – E ele escolheu seu contramestre,
um gigante musculoso, de rosto severo, nu até o largo cinto de
couro, com argolas de ouro nas orelhas e uma faixa vermelha
amarrada ao redor da cabeça.

- E meu carrasco vem comigo! – rosnou Zarono. Ele chamou um


pirata magro, com um rosto que parecia uma caveira coberta por um
pergaminho, e que carregava uma grande cimitarra desembainhada
sobre o ombro ossudo.

Conan encolheu os ombros:

- Muito bem. Sigam-me.


Estavam próximos a seus calcanhares, enquanto ele subia, a passos
largos, a trilha serpenteante e galgava a saliência. Eles se
aglomeravam próximos a ele, enquanto ele passava pela fenda na
parede que ficava atrás, e respiraram com cobiça entre os dentes,
quando ele chamou-lhes a atenção para as arcas cobertas de ferro,
em ambos os lados da curta caverna em forma de túnel.

- Um rico carregamento aqui. – ele disse, despreocupadamente –


Sedas, rendas, roupagens, ornamentos, armas... a pilhagem dos
mares do sul. Mas o verdadeiro tesouro está depois dessa porta.

A pesada porta estava parcialmente aberta. Conan franziu a


sobrancelha. Ele se lembrava de ter fechado aquela porta antes de
deixar aquela caverna. Mas não disse nada a respeito para seus
companheiros ansiosos, enquanto a abria para deixá-los olharem.

Eles olhavam para dentro de uma grande caverna, iluminada por um


brilho azul, que reluzia através de uma névoa fumegante em forma
de bruma. Uma grande mesa de ébano se encontrava no meio da
caverna; e, numa cadeira entalhada, com recosto alto e braços
largos, que possivelmente esteve outrora no castelo de algum barão
zíngaro, sentava-se uma figura gigante, fabulosa e fantástica – lá
estava Tranicos, a grande cabeça afundada no peito, uma mão forte
ainda agarrando um copo, cravejado de jóias, no qual o vinho ainda
brilhava; Tranicos, em seu chapéu envernizado, seu casaco bordado a
ouro, com botões adornados de jóias que cintilavam na chama azul,
as botas reluzentes, e a correia trabalhada a ouro, que sustentava
uma espada, com cabo adornado de jóias, numa bainha dourada.

E, ao longo da beirada, todos com o queixo repousando no peito


adornado de renda, sentavam-se os onze capitães. O fogo azul
tremulava estranhamente sobre eles e seu almirante, enquanto fluía
da enorme jóia no pequeno pedestal de marfim, refletindo lampejos
de fogo congelado da pilha de gemas fantasticamente lapidadas, que
brilhavam diante do lugar de Tranicos – a pilhagem de Khemi, as
jóias de Tothmekri! As pedras, cujo valor era maior que a de todas as
jóias conhecidas no mundo, colocadas juntas!
Os rostos de Zarono e Strom ficaram pálidos no brilho azul; sobre
seus ombros, seus homens abriam a boca, embasbacados.

- Entrem e levem-nas. – convidou Conan, se virando de lado, e


Zarono e Strom se apinharam avidamente atrás dele, quase
empurrando um ao outro em sua pressa. Seus seguidores estavam
pisando-lhes os calcanhares. Zarono escancarou a porta
abruptamente; e parou no meio de um passo na soleira, ao ver uma
figura no chão, anteriormente escondida da visão pela porta
parcialmente coberta. Era um homem, deitado de bruços e
contorcido, a cabeça puxada para trás entre os ombros, o rosto
branco contorcido num sorriso de agonia mortal e agarrando a
própria garganta com os dedos curvados.

- Galbro! – exclamou Zarono – Morto! O que... – Com súbita


desconfiança, enfiou a cabeça pela soleira, dentro da névoa azulada
que preenchia a gruta interna. E gritou, sufocado: – Há morte na
fumaça!

Mesmo enquanto ele gritava, Conan arremessou seu peso contra os


quatro homens aglomerados no vão da porta, mandando-os,
cambaleantes – mas não de ponta-cabeça –, para dentro da caverna
brumosa, como havia planejado. Eles estavam recuando diante da
visão do homem morto e da descoberta da cilada; e seu violento
empurrão, embora os tivesse desequilibrado, não surtiu o efeito que
ele desejava. Strom e Zarono se estatelaram de joelhos sobre a
soleira, o contramestre tropeçou nas pernas deles, e o carrasco
carambolou contra a parede. Antes que Conan pudesse dar
prosseguimento à sua implacável intenção, de lançar os homens
caídos para dentro da caverna e segurar a porta contra eles até que a
névoa venenosa cumprisse seu trabalho mortífero, ele teve que se
virar e defender-se contra o ataque espumante do executor, que foi o
primeiro a recuperar o equilíbrio e o entendimento.

O bucaneiro perdeu um tremendo golpe, com sua espada de


decapitador, quando o cimério se esquivou e a grande lâmina bateu
com força na parede de pedra, lançando fagulhas azuis. No instante
seguinte, sua cabeça de rosto de caveira rolava no chão da caverna,
sob o golpe do sabre de Conan.

Nas frações de segundo que esta rápida ação tomou, o contramestre


se ergueu e caiu sobre os golpes cadentes do cimério, com um sabre
que esmagaria um homem menor. Sabre encontrou sabre, com um
retinir de aço que era ensurdecedor na caverna estreita. Os dois
capitães recuaram da soleira, com ânsia de vômito e arfando, com as
faces roxas e muito sufocadas para gritarem, e Conan redobrou os
esforços, numa tentativa de se desfazer do antagonista e se livrar
dos rivais, antes que eles pudessem se recuperar dos efeitos do
veneno. O contramestre pingava sangue a cada passo, e foi jogado
para trás diante do ataque feroz; e começou a berrar
desesperadamente pelos companheiros. Mas antes que Conan
pudesse dar o golpe final, os dois chefes – ofegantes, mas
sanguinários – alcançaram-no com as espadas nas mãos, grasnando
por seus homens.

O cimério saltou para trás e pulou para fora, sobre a saliência. Ele se
sentia páreo para todos os três, embora todos fossem espadachins
famosos; mas não queria ser pego pelas tripulações, que viriam
atacando caminho acima, ao som do combate.

Estes, no entanto, não vinham com tanta rapidez quanto ele


esperava. Estavam perplexos com os ruídos e gritos abafados que
saíam da caverna acima deles, mas nenhum ousava subir o caminho,
por medo de uma espada nas costas. Cada bando encarava
tensamente o outro, agarrando suas armas, mas incapazes de
decidir; e, quando viram o cimério saltar sobre a saliência, ainda
hesitavam. Enquanto eles permaneciam com as flechas apontadas,
ele subiu correndo as reentrâncias, num nicho localizado na rocha
próxima à fenda, e se lançou de bruços no cume do penhasco, fora
da vista deles.

Os capitães saíram pela saliência, rugindo e brandindo suas espadas,


e seus homens, vendo que seus líderes não estavam cruzando
espadas, pararam de ameaçar uns aos outros e abriram a boca,
perplexos.
- Cão! – gritou Zarono – Você planejava nos envenenar! Traidor!

Conan zombou deles, lá no alto.

- Bem, o que esperavam? Vocês dois estavam planejando cortar


minha garganta, assim que eu lhes conseguisse a pilhagem. Se não
fosse por aquele idiota do Galbro, eu teria pego vocês quatro e
explicado a seus homens como vocês se lançaram distraidamente às
suas condenações.

- E com todos nós mortos, teria tomado meu navio e toda a pilhagem
também! – espumou Strom.

- Sim! E o direito de escolha de cada tripulação! Esperava durante


meses voltar para alto-mar, e esta era uma boa oportunidade!

“Foram as pegadas de Galbro que eu vi na vereda. Pergunto-me


como o imbecil soube desta caverna, ou como ele esperava arrastar a
pilhagem sozinho”.

- Se não víssemos aquele corpo, teríamos andado direto para aquela


armadilha mortal. – murmurou Zarono, com o rosto moreno ainda
lívido – Aquela fumaça azul parecia dedos invisíveis, esmagando
minha garganta.

- O que farão? – seu algoz invisível gritou sarcasticamente.

- O que faremos? – Zarono perguntou a Strom – A caverna do


tesouro é cheia daquela bruma venenosa, embora, por alguma razão,
ela não saia da soleira.

- Vocês não conseguirão obter o tesouro. – Conan os assegurou com


satisfação, do alto de seu ninho de águia – Aquela fumaça
estrangulará vocês. Ela quase me pegou, quando entrei lá. Escutem,
e eu lhes contarei uma história que os pictos falam em suas cabanas,
quando as fogueiras ardem pouco! Certa vez, há muito tempo, doze
homens desconhecidos vieram do mar, acharam uma caverna e
abarrotaram-na com ouro e jóias. Mas um xamã picto fez mágica, e a
terra tremeu, a fumaça saiu da terra e os estrangulou onde se
sentavam para tomar vinho. A fumaça, que era do fogo do inferno,
ficou aprisionada dentro da caverna pela magia do feiticeiro. A
história foi contada de tribo para tribo, e todos os clãs evitavam o
lugar amaldiçoado.

“Quando me arrastei para dentro de lá, para escapar dos pictos


Águias, percebi que a velha lenda era verdadeira, e se referia ao
velho Tranicos e seus homens. Um terremoto quebrou o chão rochoso
da caverna, enquanto ele e seus capitães se sentavam para beber
vinho, e deixou a bruma sair das profundezas da terra... sem dúvida,
sair do inferno, como dizem os pictos. A morte guarda o tesouro do
velho Tranicos!”.

- Tragam os homens cá para cima! – espumou Strom – Subiremos e


o derrubaremos!

- Não seja idiota. – rosnou Zarono – Você acha que qualquer homem
na terra conseguiria subir aqueles degraus, ao alcance da espada
dele? Traremos os homens cá para cima, bem aqui, para emplumá-lo
com flechas, se ele ousar aparecer. Mas ainda conseguiremos aquelas
gemas. Ele tem algum plano de obter a pilhagem, ou não teria
trazido 30 homens para carregá-la de volta. Se ele pode consegui-la,
nós também podemos. Vamos curvar uma lâmina para fazer um
gancho, amarrá-lo a uma corda, arremessá-la ao redor da perna
daquela mesa, e então arrastá-la até a porta.

- Bem pensado, Zarono! – veio do alto a voz zombeteira de Conan –


Exatamente o que eu havia planejado. Mas como vocês encontrarão o
caminho de volta à trilha para a praia? Escurecerá bem antes que
alcancem a praia, se tiverem de tomar o caminho através das
árvores, e eu lhes seguirei e matarei um por um na escuridão.

- Ele não está se vangloriando à toa. – murmurou Strom – Ele pode


se mover e atacar no escuro, tão súbita e silenciosamente quanto um
fantasma. Se ele nos caçar na volta, pela floresta, poucos de nós
viveremos para alcançar a praia.
- Então, o mataremos aqui. – rangeu Zarono – Alguns de nós atiram
nele, enquanto o resto sobe o penhasco. Se ele não for atingido por
flechas, alguns de nós o alcançaremos com espadas. Ouça! Do que
ele ri?

- De ouvir mortos fazendo planos. – veio a voz impiedosamente


divertida de Conan.

- Não dê ouvidos a ele. – disse Zarono, franzindo a testa; e,


erguendo a voz, gritou para que os homens abaixo se juntassem a
ele e a Strom na saliência.

Os marujos subiram a trilha enviesada, e um deles começou a gritar


uma pergunta. Simultaneamente, soou um zumbido como o de uma
abelha enfurecida, terminando numa pancada surda. O bucaneiro
arfou, e o sangue lhe jorrou da boca aberta. Caiu de joelhos,
agarrando a flecha negra que lhe vibrava no peito. Um grito de
alarme se ergueu de seus companheiros.

- O que está havendo? – gritou Strom.

- Pictos! – berrou um pirata, erguendo o arco e atirando cegamente.


Ao seu lado, um homem gemeu e caiu com uma flecha atravessada
na garganta.

- Abriguem-se, seus idiotas! – guinchou Zarono. De sua posição


vantajosa, ele avistou figuras pintadas se movendo nas moitas. Um
dos homens na trilha serpenteante caiu para trás, moribundo. O
restante se arrastou apressadamente para baixo, por entre as rochas
ao redor da base do penhasco. Abrigaram-se desajeitadamente, nada
habituados a este tipo de luta. Flechas voaram de arbustos, se
estilhaçando nos matacões. Os homens na saliência foram todos
derrubados.

- Estamos numa cilada! – O rosto de Strom estava pálido. Bastante


destemido sobre um convés, esta luta silenciosa e selvagem lhe
abalou os nervos impiedosos.
- Conan disse que eles temiam este penhasco. – disse Zarono –
Quando cair a noite, os homens deverão subir aqui. Vamos nos
manter no penhasco. Os pictos não nos atacarão.

- Sim! – zombou Conan, acima deles – Eles não subirão o penhasco


para lhes pegarem, é verdade. Simplesmente o cercarão e manterão
vocês aí, até todos morrerem de sede e fome.

- Ele fala a verdade. – disse Zarono, sem saber o que fazer – O que
faremos?

- Faremos uma trégua com ele. – murmurou Strom – Se algum


homem pode nos tirar deste aperto, é ele. Tempo suficiente para
cortar a garganta dele depois. – Erguendo a voz, ele gritou: – Conan,
vamos esquecer nossa rixa por enquanto. Você está neste aperto
tanto quanto nós. Desça e nos ajude a sair disso.

- Como você imagina isso? – retorquiu o cimério – Só preciso esperar


até escurecer, descer o outro lado deste penhasco e sumir na
floresta. Posso me arrastar pela linha que os pictos lançaram ao redor
desta colina, e retornar ao forte para relatar que todos vocês foram
mortos pelos selvagens... o que, dentro em pouco, será verdade!

Zarono e Strom olharam um para o outro em pálido silêncio.

- Mas não farei isso! – Conan rugiu – Não que eu tenha algum amor
por vocês, cães; mas porque um homem branco não abandona
homens brancos, mesmo inimigos seus, para serem trucidados por
pictos.

A cabeça, de emaranhados cabelos negros, do cimério, apareceu


sobre o alto do penhasco.

- Agora, escutem bem: há apenas um pequeno grupo aqui embaixo.


Eu os vi se esgueirando pelo matagal, quando ri, agora há pouco. De
qualquer forma, se houvesse muitos deles, todos os homens ao pé do
penhasco já estariam mortos. Acho que há um bando de jovens com
pés ligeiros, mandados à frente do grupo de guerra, para nos
eliminar, vindos da praia. Estou certo de que um grande bando de
guerreiros está vindo, de algum lugar, em nossa direção.

“Eles puseram um cordão ao longo do lado oeste do penhasco, mas


não acho que haja algum no lado leste. Vou descer por aquele lado,
entrar na floresta e darei um jeito atrás deles. Enquanto isso, vocês
descem a trilha e se juntam aos seus homens entre as rochas. Digam
a eles para atirarem as flechas e puxarem as espadas. Quando me
ouvirem gritar, corram pelas árvores do lado oeste da clareira”.

- E o tesouro?

- Pro inferno com o tesouro! Teremos sorte, se sairmos daqui com


nossas cabeças sobre os ombros.

A cabeça de cabeleira negra sumiu. Eles ficaram atentos a ruídos,


que indicassem que Conan havia descido pela quase perpendicular
parede leste e estivesse abrindo seu caminho lá embaixo, mas não
ouviram nada. Nem havia qualquer som na floresta. Flechas não mais
se espatifaram nas rochas onde os marujos estavam escondidos. Mas
todos sabiam que ferozes olhos negros estavam observando, com
paciência assassina.

Cautelosamente, Strom, Zarono e o contramestre começaram a


descer a trilha serpenteante. Estavam no meio da descida, quando as
flechas negras começaram a sussurrar ao redor deles. O
contramestre gemeu e desabou flácido pela inclinação, atingido no
coração. Flechas se estilhaçaram nos capacetes e couraças dos
chefes, enquanto eles se lançavam em pressa desvairada para baixo
da trilha íngreme. Alcançaram a base, engatinhando apressadamente,
e ficaram ofegando entre os matacões, praguejando sem fôlego.

- É mais alguma trapaça de Conan? – perguntou Zarono,


praguejando.

- Podemos confiar nele, nesse assunto. – afirmou Strom – Estes


bárbaros vivem por seus próprios e particulares códigos de honra, e
Conan jamais abandonaria homens de sua própria cor, para serem
trucidados por pessoas de outra raça. Ele nos socorrerá dos pictos,
mesmo que ele próprio planeje nos assassinar... Ouça!

Um grito de frenesi sanguinário apunhalou o silêncio. Vinha da


floresta a oeste, e simultaneamente um objeto saiu das árvores,
descrevendo um arco, bateu no chão e rolou quicando em direção às
rochas – uma cabeça humana decepada, o horrendamente pintado
rosto congelado numa careta de morte.

- O sinal de Conan! – rugiu Strom, e os flibusteiros desesperados se


ergueram, como uma onda, das rochas e correram de ponta-cabeça
em direção à floresta.

Flechas zumbiram para fora das moitas, mas seu vôo foi apressado e
errático – apenas três homens caíram. Então, os selvagens homens
do mar mergulharam na orla das folhagens, e caíram sobre as
desnudas figuras pintadas que se erguiam de dentro da escuridão
diante deles. Foi um instante assassino de esforço ofegante e feroz,
corpo-a-corpo, sabres abatendo machados de guerra, pés calçados
pisando corpos nus, e logo pés descalços estavam avançando pelas
moitas, em fuga precipitada, enquanto os sobreviventes daquela
breve matança abandonavam a refrega, deixando sete figuras
imóveis e pintadas estendidas sobre as folhas ensangüentadas que se
alastravam pelo chão. Mais para trás, nos matagais, soava um bater
e levantar; logo parou, e Conan caminhou até ser visto; seu chapéu
envernizado se fora, o casaco estava rasgado e o sabre pingava em
sua mão.

- E agora? – arfou Zarono. Ele sabia que o ataque fora bem-sucedido,


só porque a ofensiva inesperada de Conan na retaguarda dos pictos
havia desmoralizado os homens pintados e evitado que eles caíssem
diante da investida. Mas estourou entre pragas, quando Conan
atravessou o sabre num bucaneiro, que se contorcia no chão, com o
quadril despedaçado.

- Não podemos levá-lo conosco. – grunhiu Conan – Não seria


nenhuma bondade deixá-lo para ser levado vivo pelos pictos. Vamos!
Aglomeraram-se próximos aos seus calcanhares, enquanto ele
caminhava apressadamente pelas árvores. Sozinhos, eles teriam
suado e andado às cegas pelos matagais durante horas, até
encontrarem a trilha para a praia – isso se conseguissem achá-la. O
cimério os guiava tão infalivelmente quanto se ele seguisse um
caminho resplandecente, e os piratas gritaram com alívio histérico
quando adentraram repentinamente a trilha que seguia para oeste.

- Idiota! – Conan bateu uma das mãos no ombro de um pirata que


começou a sair correndo, e o arremessou para trás, entre os
companheiros – Vai explodir seu coração e cair daqui a novecentos
metros. Estamos a milhas da praia. Caminhe moderadamente.
Podemos correr na última milha. Guarde um pouco de seu fôlego para
ela. Agora, vamos.

Começou a andar pela trilha, num passo devagar e firme; os


marinheiros seguiram-no, ajustando seu passo ao dele.

O sol estava tocando as ondas do oceano ocidental. Tina estava na


janela da qual Belesa havia olhado a tempestade.

- O sol poente transforma o oceano em sangue. – ela disse – A vela


da nau é uma pinta branca nas águas vermelhas. A floresta já está
escurecida com as sombras que se agrupam.

- E quanto aos marinheiros na praia? – perguntou Belesa


apaticamente. Ela estava deitada numa cama, os olhos fechados e as
mãos entrelaçadas atrás da cabeça.

- Ambos os acampamentos estão preparando seus jantares. – disse


Tina – Estão recolhendo madeira e fazendo fogueiras. Posso ouvi-los
gritando uns para os outros... O que é aquilo?

A súbita ansiedade no tom da garota deixou Belesa ereta sobre a


cama. Tina agarrou a soleira da janela, com o rosto branco.

- Escute! Um uivo, lá fora, como muitos lobos!


- Lobos? – Belesa se ergueu de um pulo – Lobos não caçam em
bandos nesta época do ano...

- Oh, veja! – guinchou a menina, apontando – Homens estão


correndo para fora da floresta!

Num instante, Belesa estava ao lado dela, mirando com olhos


arregalados as figuras, pequenas à distância, fluindo da floresta.

- Os marujos! – ela arfou – De mãos vazias! Eu vejo Zarono...


Strom...

- Onde está Conan? – sussurrou a menina.

Belesa sacudiu a cabeça.

- Ouça! Oh, escute! – choramingou a criança, agarrando-se a ela –


Os pictos!

Todos no forte podiam ouvir agora – um vasto ulular de louca


exultação e sede de sangue, vindo das profundezas da floresta
escura.

Aquele som incitava os homens ofegantes a cambalearem em direção


à paliçada.

- Depressa! – arfou Strom, seu rosto uma máscara contraída de


esforço esgotado – Estão quase em nossos calcanhares. Meu navio...

- Está distante demais para alcançarmos. – ofegou Zarono – Dirija-se


para a paliçada. Veja, os homens acampados na praia já nos viram! –
Ele abanou os braços, numa mímica sem fôlego, mas os homens na
praia entenderam, e reconheceram o significado daquele uivo
selvagem, que se erguia a um triunfante crescendo. Os marujos
abandonaram suas fogueiras e panelas de cozinhar, e fugiram para o
portão da paliçada. Estavam correndo através dele, quando os
fugitivos da floresta contornaram o canto sul e cambalearam para
dentro do portão... uma turba arfante e desvairada, semi-morta de
exaustão. O portão foi batido com pressa frenética, e os marinheiros
começaram a subir o alto da muralha, para se juntarem aos soldados
que já estavam lá.

Belesa confrontou Zarono:

- Onde está Conan?

O bucaneiro moveu bruscamente um polegar em direção à floresta


enegrecida; seu peito arfava e o suor lhe escorria pelo rosto.

- Seus batedores estavam em nossos calcanhares, antes que


alcançássemos a praia. Ele parou para matar alguns, e nos dar tempo
de fugir.

Saiu cambaleando, para tomar seu lugar no alto da muralha, onde


Strom já havia subido. Valenso estava lá: uma figura sombria e
envolta num manto, estranhamente silenciosa e distante. Parecia um
homem enfeitiçado.

- Olhem! – ganiu um pirata, acima do uivo ensurdecedor da horda


ainda invisível.

Um homem saía da floresta e corria rapidamente pela faixa aberta.

- Conan!

Zarono sorriu como um lobo.

- Estamos seguros nesta paliçada; sabemos onde está o tesouro. Não


há razão para não emplumá-lo com flechas agora.

- Não! – Strom agarrou-lhe o braço – Vamos precisar de sua espada!


Olhe!

Atrás do cimério de pés ligeiros, uma horda selvagem irrompia da


floresta, uivando enquanto corria – pictos nus, centenas e centenas
deles. Suas flechas choviam ao redor do cimério. Mais umas poucas
passadas, e Conan alcançou o muro leste da paliçada com um pulo
alto, agarrou as pontas dos troncos e se ergueu para dentro, com o
sabre nos dentes. Flechas se abateram venenosamente, dentro dos
troncos onde seu corpo havia estado há pouco. Seu casaco
resplandecente se fora, e sua camisa de seda branca estava rasgada
e ensangüentada.

- Detenham-nos! – ele rugiu, enquanto seus pés tocavam o chão


interno – Se eles subirem o muro, estaremos perdidos!

Piratas, bucaneiros e soldados responderam imediatamente, e uma


chuva de flechas e setas de cabeças quadradas adentrou a horda
próxima.

Conan viu Belesa, com Tina se agarrando à mão dela, e sua


linguagem foi pitoresca.

- Pra dentro da casa feudal! – ele ordenou, finalmente – Suas setas


vão voar por cima do muro... Eu não disse? – Quando uma flecha
negra se cravou na terra, aos pés de Belesa e vibrou como a cabeça
de uma serpente, Conan pegou um arco longo e pulou até o alto do
muro – Alguns de vocês, companheiros, preparem tochas! – ele
rugiu, acima da gritaria crescente da batalha – Não podemos
enfrentá-los no escuro!

O sol havia se posto numa agitação de sangue. Lá fora, na baía, os


homens a bordo da nau haviam cortado a corrente da âncora, e o
Mão Vermelha se afastava rapidamente no horizonte escarlate.

7) Homens da Floresta

A noite havia caído, mas as tochas tremulavam de um lado a outro da


praia, transformando o louco cenário num medonho apocalipse.
Desnudos homens pintados apinhavam a praia; como ondas, eles
vinham de encontro à paliçada, com os dentes à mostra e os olhos
chamejantes lampejando ao fulgor das tochas enfiadas sobre o muro.
Penas de tucanos ondulavam em cabeleiras negras, assim como as
plumas dos cormorões e dos falcões do mar. Uns poucos guerreiros,
os mais selvagens e bárbaros de todos, usavam dentes de tubarão
entrelaçados nas madeixas revoltas. As tribos litorâneas haviam se
reunido, vindas de todas as direções da costa, para livrarem sua
região dos invasores de pele branca.

Corriam como uma onda contra a paliçada, lançando uma tempestade


de flechas diante deles, lutando dentro do alcance das setas e dardos
que lhes penetrava a aglomeração, vindas da estacada. Às vezes,
chegavam tão perto do muro, que atacavam o portão com seus
machados de guerra e enfiavam suas lanças nas seteiras. Mas toda
hora, a maré recuava sem subir a paliçada, deixando seu amontoado
de mortos. Neste tipo de luta, os flibusteiros estavam no auge de sua
bravura; suas setas e dardos abriam buracos na horda que atacava,
seus sabres cortavam e derrubavam os selvagens das paliçadas que
eles tentavam escalar.

Mesmo assim, várias e várias vezes, os homens da floresta voltavam


ao ataque, com toda a teimosia feroz que fora instigada em seus
corações furiosos.

- Parecem cães loucos! – arfou Zarono, cortando, num golpe


descendente, as mãos escuras que agarravam as pontas da paliçada
e os rostos escuros que rosnavam para cima, em direção a ele.

- Se conseguirmos manter o forte até o amanhecer, eles perderão o


ânimo. – grunhiu Conan, abrindo um crânio emplumado com precisão
profissional – Eles não vão manter um longo cerco. Vejam, eles estão
recuando.

O ataque diminuiu, e os homens na muralha sacudiram o suor dos


rostos, contaram seus mortos e agarraram vigorosamente os cabos,
escorregadios de sangue, de suas espadas. Como lobos sedentos de
sangue, abandonando de má-vontade uma presa encurralada, os
pictos fugiram para além do anel de tochas. Só os cadáveres
permaneceram diante da paliçada.
- Eles foram embora? – Strom lançou para trás as madeixas
molhadas e claras. O sabre em seu punho estava arranhado e
vermelho, e o musculoso braço nu salpicado de sangue.

- Ainda estão lá fora. – Conan acenou com a cabeça em direção às


trevas mais externas, que envolviam o círculo de tochas, cuja luz se
fazia mais intensa. Ele vislumbrou movimentos nas sombras: o
cintilar de olhos e o brilho fosco do aço.

- Eles se retiraram por enquanto. – disse – Ponham sentinelas no


muro, e deixem o resto comer e beber. Já é mais de meia-noite.
Lutamos durante horas, sem muito intervalo.

Os chefes desceram trepando as saliências, gritando por seus homens


das muralhas. Uma sentinela foi postada no meio de cada muro –
leste, oeste, norte e sul –, e um grupo de soldados foi deixado no
portão. Os pictos, para alcançarem o muro, teriam que atacar
passando por um espaço largo e iluminado por tochas, e os
defensores poderiam retomar seus lugares bem antes que os
atacantes alcançassem a paliçada.

- Onde está Valenso? – indagou Conan, mastigando um grande


pedaço de carne, quando ficou ao lado da fogueira que os homens
haviam construído no centro do pátio. Piratas, bucaneiros e homens
de confiança se misturavam uns aos outros, devorando a carne e a
cerveja que as mulheres lhes traziam, e deixando que lhes
enfaixassem os ferimentos.

- Desapareceu há uma hora. – grunhiu Strom – Ele estava lutando no


muro, ao meu lado, quando de repente parou de forma brusca e
arregalou os olhos em direção às trevas, como se visse um fantasma.
“Veja!”, ele rosnou. “O demônio negro! Eu o vejo! Lá fora, na noite!”.
Bem, eu podia jurar que vi uma figura se movendo entre as sombras,
alta demais para um picto. Mas foi só um vislumbre, e já tinha ido
embora. Mas Valenso pulou para baixo da plataforma e cambaleou
para dentro da casa feudal, como um homem mortalmente ferido.
Não o vi, desde então.
- Ele provavelmente viu um demônio da floresta. – disse Conan,
tranqüilamente – Os pictos dizem que esta costa está cheia deles.
Tenho mais medo é de flechas incendiárias. Os pictos são capazes de
começarem a atirá-las a qualquer momento. O que é isso? Parecia
um grito por socorro!

Quando a luta se acalmou, Belesa e Tina haviam se movido


cautelosamente até sua janela, da qual foram afastadas pelo perigo
de flechas voadoras. Silenciosamente, observaram os homens
reunidos ao redor da fogueira.

- Não há homens suficientes na paliçada. – disse Tina.

Apesar da náusea, diante da visão dos cadáveres espalhados ao redor


da paliçada, Belesa foi levada a rir.

- Você acha que sabe mais sobre guerras e cercos do que os


flibusteiros? – ela censurou gentilmente.

- Deveria haver mais homens nos muros. – insistiu a criança, trêmula


– Suponha que o homem negro tenha voltado!

Belesa estremeceu ao pensar.

- Tenho medo. – murmurou Tina – Espero que Zarono e Strom sejam


mortos.

- E Conan não? – perguntou Belesa, curiosa.

- Conan não nos faria mal. – disse a criança, sem hesitar – Ele vive
de acordo com seu código de honra bárbaro, mas eles são homens
que perderam toda a honra.

- Você é muito sábia para sua idade, Tina. – disse Belesa, com o vago
desconforto que a precocidade da menina freqüentemente lhe
causava.
- Olhe! – Tina se empertigou – A sentinela se foi da muralha sul! Eu a
vi na saliência, há um momento atrás; agora desapareceu.

De sua janela, as pontas da paliçada do muro sul só eram visíveis


sobre os tetos inclinados de uma fileira de cabanas, que ficavam
paralelas àquela muralha em quase toda a sua extensão. Uma
espécie de corredor a céu aberto, com uns três metros de largura,
era emoldurado pela estacada e pelos fundos das cabanas, que eram
construídas numa sólida fileira. Estas cabanas eram ocupadas pelos
servos.

- Para onde a sentinela poderia ter ido? – sussurrou Tina, apreensiva.

Belesa estava observando uma extremidade da fila de cabanas, a


qual não ficava longe de uma porta lateral da casa feudal. Era capaz
de jurar que viu uma figura sombria deslizar de trás das cabanas, e
desaparecer na porta. Aquela era a sentinela desaparecida? Por que
havia abandonado o muro, e por que deveria se mover tão furtiva e
sutilmente para dentro da casa feudal? Ela não acreditou que tivesse
visto a sentinela, e um medo sem nome lhe congelou o sangue.

- Onde está o conde, Tina? – ela perguntou.

- No grande salão, milady. Sentado sozinho à mesa, envolvido em


seu manto e bebendo vinho, com um rosto cinza como a morte.

- Vá e conte a ele o que nós vimos. Continuarei observando desta


janela, para que os pictos não se aproximem do muro desguarnecido.

Tina saiu correndo. Belesa ouviu-lhe os pés calçados com chinelos


correrem a passos miúdos, ao longo do corredor, e descerem a
escada. Então, abrupta e terrivelmente, ressoou lá um grito de medo,
tão penetrante que o coração de Belesa quase parou com o choque.
Já estava fora do quarto e atravessando apressadamente o corredor,
antes de perceber que os membros se moviam. Ela desceu correndo
a escada – e parou, como se tivesse virado pedra.

Ela não gritou como Tina. Era incapaz de fazer qualquer barulho ou
movimento. Viu Tina e estava consciente de pequenas mãos
agarrando-a freneticamente. Mas estas eram as únicas realidades
sensatas, numa cena de pesadelo negro, loucura e morte, dominada
pela sombra monstruosa e antropomórfica que estendia braços
medonhos contra um clarão sinistro e semelhante ao fogo do inferno.

Lá fora, na paliçada, Strom sacudiu a cabeça diante da pergunta de


Conan:

- Não ouvi nada.

- Eu ouvi! – os instintos selvagens de Conan estavam despertados;


ele estava tenso, os olhos chamejantes – Veio da muralha sul, atrás
daquelas cabanas!

Puxando o sabre, ele se dirigiu para a paliçada. Do pátio, o muro ao


sul e a sentinela posta ali não estavam visíveis, estando escondidos
atrás das cabanas. Strom seguia, impressionado pelo jeito do
cimério.

Na entrada do espaço aberto, entre as cabanas e o muro, Conan


parou, desconfiado. O espaço era mal iluminado por tochas, que
luziam em ambos os cantos da estacada. E, quase no meio do
caminho daquele corredor natural, uma forma caída se esparramava
no chão.

- Bracus! – praguejou Strom, correndo para a frente e se apoiando


sobre um joelho ao lado da figura – Por Mitra, sua garganta foi
cortada de orelha a orelha!

Conan varreu o espaço com um olhar rápido, encontrando-o vazio,


exceto por ele próprio, Strom e o homem morto. Olhou atentamente
através de uma seteira. Nenhum homem vivo se movia dentro do
círculo de tochas acesas, do lado de fora do forte.

- Quem poderia ter feito isto? – ele se perguntou.


- Zarono! – Strom se ergueu de um pulo, cuspindo fúria como um
gato selvagem, seu cabelo eriçado e o rosto convulsionado – Ele
havia instalado seus ladrões para apunhalar meus homens pelas
costas! Ele planeja se livrar de mim traiçoeiramente! Diabos! Estou
sendo atacado por dentro e por fora!

- Espere! – Conan estendeu a mão, para impedir – Não creio que


Zarono...

Mas o enlouquecido pirata se moveu bruscamente e correu ao redor


do final da fila de cabanas, exalando blasfêmias. Conan correu atrás
dele, praguejando. Strom se dirigiu diretamente à fogueira, na qual a
silhueta alta e magra de Zarono estava visível, enquanto o chefe
bucaneiro bebia uma jarra de cerveja.

Seu espanto foi total, quando a jarra lhe foi derrubada violentamente
da mão, esparramando-lhe a couraça com espuma, e girou
bruscamente para encarar o rosto, distorcido de raiva, do capitão
pirata.

- Seu cão assassino! – rugiu Strom – Vai matar meus homens pelas
minhas costas, enquanto eles lutam por sua pele imunda tanto
quanto pela minha?

Conan corria em direção a eles e, em todos os lugares, os homens


pararam de comer e beber, para olharem espantados.

- O que quer dizer? – disse Zarono, confuso.

- Você instalou seus homens para esfaquear os meus em seus


postos! – gritou o enlouquecido baracho.

- Está mentindo! – O ódio latente explodiu numa chama repentina.


Com um uivo incoerente, Strom levantou o sabre e o brandiu em
direção à cabeça do bucaneiro. Zarono recebeu o golpe no blindado
braço esquerdo, e fagulhas voaram enquanto ele cambaleava para
trás, puxando para fora a própria espada.
Logo, os capitães estavam lutando feito loucos, suas lâminas
chamejando e brilhando à luz da fogueira. Suas tripulações reagiram
instantânea e cegamente. Um rugido intenso se ergueu, enquanto
piratas e bucaneiros puxavam suas espadas e caíam uns sobre os
outros. Os homens deixados nos muros abandonaram seus postos e
pularam para dentro da paliçada, com as lâminas em punho. Num
instante, o pátio era um terreno de batalha, onde emaranhados e
enraivecidos grupos de homens golpeavam e matavam num cego
frenesi. Alguns dos soldados e servos foram arrastados para dentro
da luta, e os soldados no portão se voltaram e olharam pasmados,
esquecendo o inimigo que se escondia do lado de fora.

Tudo aconteceu tão rápido – fúrias latentes explodindo em repentina


batalha –, que os homens estavam lutando por todo o pátio, antes
que Conan pudesse alcançar os enlouquecidos chefes. Ignorando suas
espadas, ele os apartou com tal violência que cambalearam para trás,
e Zarono tropeçou e caiu de ponta-cabeça.

- Malditos idiotas, querem desperdiçar todas as nossas vidas?

Strom estava espumando de loucura, e Zarono berrando por ajuda.


Um bucaneiro correu até Conan por trás, dirigindo-lhe um golpe à
cabeça. O cimério deu meia-volta e lhe agarrou o braço, detendo-lhe
o golpe no ar.

- Vejam, seus imbecis! – rugiu, apontando com sua espada.

Algo em seu tom prendeu a atenção da turba enlouquecida pela


batalha; homens ficaram congelados em seus lugares, com as
espadas erguidas, Zarono apoiado num joelho, e viraram as cabeças
para olharem. Conan estava apontando para um soldado no alto da
muralha. O homem estava cambaleando, as armas rasgando o ar,
asfixiado enquanto tentava gritar. Súbito, ele caiu de ponta-cabeça
ao chão, e todos viram a flecha negra entre seus ombros.

Um grito de alarme se ergueu do pátio. Logo após o grito, veio um


clamor de gritos, de congelar o sangue, e o despedaçante impacto de
machados no portão. Flechas flamejantes voavam por cima do muro
e batiam em troncos, e finos feixes de fumaça azul se encaracolavam
para o alto. Logo, de trás das cabanas que se enfileiravam na
muralha sul, vieram figuras rápidas e furtivas, correndo pelo pátio.

- Os pictos entraram! – rugiu Conan.

Um tumulto seguiu seu grito. Os flibusteiros pararam com sua rixa,


alguns se voltaram para enfrentar os selvagens, e outros para pular
até o muro. Selvagens corriam de trás das cabanas, e se moviam em
grande número sobre o pátio; seus machados se moviam
rapidamente contra os sabres dos marujos.

Zarono se esforçava para levantar-se, quando um selvagem pintado


se lançou contra ele e arrebentou-lhe os miolos com um machado de
guerra.

Conan, com um grupo de marujos atrás de si, lutava contra os pictos


dentro da paliçada; e Strom, com a maioria de seus homens, subia
até as saliências, cortando as figuras escuras que já se aglomeravam
sobre o muro. Os pictos, que haviam se movido cautelosamente, sem
serem vistos, e cercado o forte enquanto os defensores estavam
lutando entre si, atacavam por todos os lados. Os soldados de
Valenso estavam apinhados no portão, tentando segurá-lo contra a
multidão uivante de demônios exultantes.

Cada vez mais selvagens fluíam por trás das cabanas, tendo escalado
a desprotegida muralha sul. Strom e seus piratas foram empurrados
do outro lado da paliçada, e num instante o recinto estava apinhado
de guerreiros nus. Eles varreram os defensores feito lobos; a batalha
se revolvia em redemoinhos de figuras pintadas lançando-se sobre
pequenos grupos de homens brancos desesperados. Pictos,
marinheiros e homens de confiança caíam espalhados pela terra,
onde eram pisados por pés desatentos. Valentes lambuzados de
sangue mergulhavam uivando nas cabanas; e os berros, que
emergiam de dentro, onde mulheres e crianças morriam sob os
machados vermelhos, erguiam-se acima do estrépito da batalha. Os
soldados abandonaram o portão, quando ouviram os gritos
lamentosos; e, num instante, os pictos haviam quebrado-o, e
estavam correndo para dentro da paliçada àquele ponto também. As
cabanas começaram a pegar fogo.

- Alcancem a casa feudal! – rugiu Conan, e doze homens correram


atrás dele, enquanto este cortava caminho implacavelmente por
entre a alcatéia rosnante.

Strom estava ao seu lado, brandindo o sabre vermelho como um


mangual.

- Não podemos defender a casa feudal. – grunhiu o pirata.

- Por que não? – Conan estava muito ocupado, em seu trabalho


sangrento, para olhar.

- Porque... uh! – Uma faca, numa mão escura, penetrou fundo nas
costas do baracho – O diabo lhe devore, bastardo! – Strom se voltou,
cambaleante, e partiu a cabeça do selvagem até os dentes. O pirata
oscilou e caiu de joelhos, o sangue lhe escorrendo dos lábios.

- A casa feudal está queimando! – ele grasnou e desabou sobre a


areia.

Conan deu uma rápida olhada ao redor de si. Os homens que o


haviam seguido estavam todos caídos no próprio sangue. O picto,
que expirava convulsivamente sob os pés do cimério, era o último do
grupo que havia lhe barrado o caminho. Por todo o seu redor, a
batalha se rodopiava e encapelava, mas no momento, estava
sozinho. Não estava longe da muralha sul. Uns poucos passos, e
poderia pular até a saliência e se perder na noite. Mas se lembrou das
jovens indefesas na casa feudal – da qual, agora, a fumaça estava
rolando em massas ondulantes. Correu em direção ao castelo.

Um chefe emplumado saiu rodando da porta, erguendo um machado


de guerra, e atrás do cimério que corria, fileiras de valentes com pés
ligeiros convergiam até ele. Ele não deteve sua corrida. Seu sabre,
numa curva descendente, encontrou e desviou o machado, e partiu o
crânio de quem o empunhava. Um instante depois, Conan
atravessava a porta, e a havia batido e trancado contra os machados
que lascavam a madeira.

O grande salão estava cheio de feixes flutuantes de fumaça, através


dos quais ele tateava, meio cego. Em algum lugar, uma mulher
choramingava – pequenos, cativantes e histéricos soluços, de
abalarem os nervos. Ele emergiu de uma nuvem de fumaça e parou
repentinamente de caminhar, olhando fixamente para o salão. Estava
fosco e sombrio com a fumaça flutuante; o candelabro de prata
estava destruído, as velas apagadas. A única iluminação era uma
incandescência medonha, vinda da grande lareira, e a parede na qual
a mesma se encontrava, onde as chamas lambiam, do chão ardente
às esfumaçadas vigas do telhado.

E, delineada contra aquele clarão medonho, Conan viu uma forma


humana, oscilando devagar na extremidade de uma corda. O rosto
morto voltava-se para ele à medida que o corpo oscilava, e estava
distorcido além de todo o reconhecimento. Mas Conan sabia que era
o Conde Valenso, enforcado nas próprias vigas.

Contudo, havia algo mais no salão. Conan o viu através da fumaça –


uma negra figura monstruosa, delineada contra a luz infernal do fogo.
Aquele contorno era vagamente humano; mas a sombra lançada na
parede em brasa não era nada humana.

- Crom! – murmurou Conan, horrorizado, paralisado pela percepção


de que estava diante de um monstro contra o qual sua espada era
impotente. Viu Belesa e Tina, agarradas aos braços uns das outras,
agachando-se no pé da escada.

O monstro negro se ergueu, avultando gigantescamente contra o


fogo, os grandes braços se abrindo largamente; um rosto indistinto
olhava malevolamente através da fumaça; semi-humano, demoníaco,
completamente terrível – Conan vislumbrou os chifres próximos um
ao outro, a boca aberta, as orelhas pontiagudas –, ele movia-se
pesadamente em sua direção, através da fumaça, e uma velha
lembrança despertou desesperadamente. Perto do cimério havia um
sólido banco de prata, com adornos entalhados – outrora parte do
esplendor do castelo Korzetta. Conan o agarrou e ergueu acima da
cabeça.

- Prata e fogo! – ele rugiu, numa voz como o bater do vento, e o


arremessou com toda a força de seus músculos de ferro.

Ele se espatifou bem no grande peito negro – 45 quilos de prata,


voando com terrível velocidade. Nem mesmo a criatura negra pôde
resistir a tamanho projétil. Foi derrubada – arremessada para trás e
de ponta-cabeça para dentro da lareira aberta, que era uma urrante
boca de fogo. Um grito horrível sacudiu o salão; o grito de uma coisa
não-terrena, subitamente agarrada por morte terrena. O
revestimento da lareira se quebrou, e pedras caíram da grande
chaminé, deixando semi-ocultos os negros membros que se
retorciam, e aos quais as chamas devoravam com fúria elementar.
Vigas em chamas desabaram do teto e ribombaram sobre as pedras,
e todo o amontoado foi envolvido por uma urrante explosão de fogo.

Chamas desciam rapidamente a escada, quando Conan a alcançou.


Ele segurou a frágil criança sob um braço e arrastou Belesa em pé.
Através do crepitar e estalar do fogo, soou o estilhaçar da porta sob
os machados de guerra.

Ele olhou ao redor, avistou uma porta do lado oposto ao patamar da


escada e correu através dela, carregando Tina e meio arrastando
Belesa, que parecia atordoada. Quando adentraram a sala, um eco
atrás deles anunciou que o teto estava caindo no salão. Através de
uma asfixiante parede de fumaça, Conan viu uma porta aberta e
externa, do outro lado da câmara. Enquanto arrastava as duas
através dela, ele a viu cair com as dobradiças quebradas, a fechadura
e o ferrolho quebrados e estilhados como se por alguma força
espantosa.

- O homem negro entrou por esta porta! – Belesa soluçou


histericamente – Eu o vi... mas eu não sabia...

Saíram no pátio da fogueira, a pouca distância da fileira de cabanas


que se alinhava à muralha sul. Um picto se escondia próximo à porta,
com os olhos vermelhos na luz do fogo e o machado erguido.
Colocando a garota, que estava em seu braço, para longe do golpe,
Conan enfiou o sabre no peito do selvagem, e depois, arrastando
Belesa em pé, correu para a muralha sul, carregando ambas as
garotas.

O pátio estava cheio de revoltas nuvens de fumaça, que encobriam


parcialmente o trabalho sangrento feito lá; mas os fugitivos tinham
sido vistos. Figuras nuas, negras contra o fulgor embotado,
saltitavam para fora da fumaça, brandindo machados reluzentes.

Eles ainda estavam metros atrás dele, quando Conan mergulhou no


espaço entre as cabanas e o muro. No outro extremo do corredor, ele
viu outras formas uivantes, correndo para acabar com ele. Parando
rapidamente, lançou Belesa até a saliência e pulou atrás dela.
Erguendo-a sobre a paliçada, ele a desceu para a areia do lado de
fora, e desceu Tina após ela. Um machado arremessado se espatifou
dentro de um tronco, à altura de seu ombro, e logo ele também
estava sobre o muro, erguendo suas atordoadas e indefesas
protegidas. Quando os pictos alcançaram o muro, o espaço diante da
paliçada estava vazio, exceto pelos mortos.

8) Um Pirata Volta ao Mar

O amanhecer coloria as águas foscas com um tom rosa-escuro. Do


outro lado das águas coloridas, uma mancha branca crescia, além da
névoa – uma vela, que parecia estar dependurada no céu de pérola.
Num cabo cheio de moitas, Conan o cimério segurava um manto
esfarrapado sobre uma fogueira de madeira verde. À medida que
manipulava o manto, nuvens de fumaça se erguiam para o céu,
palpitavam contra a aurora e desapareciam.

Belesa se acocorou próxima a ele, com um braço ao redor de Tina.

- Acha que eles irão ver e entender?

- Irão ver, sim. – ele a assegurou – Ficaram espionando esta costa a


noite inteira, esperando avistar alguns sobreviventes. Estão
assustados. Há apenas meia dúzia deles, e nenhum consegue
navegar bem o bastante para ir daqui até as Ilhas Barachas. Eles
entenderão meus sinais; é o código pirata. Estou dizendo a eles que
os capitães estão mortos com todos os marujos, e para virem em
direção à costa e nos levarem a bordo. Eles sabem que eu consigo
navegar, e estarão contentes em embarcar sob meu comando. Sou o
único capitão vivo.

- Mas, e se os pictos virem a fumaça? – Ela estremeceu, olhando para


trás, acima das areias brumosas, para onde, milhas ao norte, uma
coluna de fumaça se encontrava de pé no ar parado.

- É improvável que a vejam. Depois que escondi vocês na floresta,


me esgueirei de volta e os vi arrastando barris de vinho e cerveja
para fora dos armazéns. Muitos deles já estavam cambaleando. Neste
momento, eles estarão caídos aqui e ali, bêbados demais para se
mexerem. Se eu tivesse cem homens, poderia acabar com a horda
inteira. Veja! Lá vai um sinal de fumaça do Mão Vermelha! Isso
significa que estão vindo nos buscar!

Conan apagou a fogueira, devolveu o manto a Belesa e se


espreguiçou como um grande gato preguiçoso. Belesa o observava
com admiração. Seu ar imperturbado não era fingido; a noite de
fogo, sangue e matança, e a posterior fuga pela floresta negra, não
lhe abalaram os nervos. Estava calmo, como se tivesse passado a
noite em festa e folia. Belesa não o temia; sentia-se mais segura do
que havia se sentido, desde que desembarcara naquela costa
selvagem. Ele não era como os flibusteiros – homens civilizados, que
haviam rejeitado todos os critérios de honra, e viviam sem nenhuma.
Conan, por sua vez, vivia de acordo com o código de seu povo, o qual
era bárbaro e sanguinário, mas que pelo menos mantinha seus
próprios e peculiares critérios de honra.

- Você acha que ele está morto? – ela perguntou, com aparente
irrelevância.

Ele não a perguntou a quem se referia.


- Acredito que sim. Prata e fogo são mortais para maus espíritos, e
ele recebeu uma boa dose de ambos.

Ninguém voltou a falar nesse assunto. O pensamento de Belesa


evitava invocar a cena, quando uma figura negra adentrara
sorrateiramente o grande salão, e uma vingança há muito adiada fora
horrivelmente consumada.

- O que vai fazer, quando voltar para Zingara? – Conan perguntou.

Ela sacudiu a cabeça, sem saber o que fazer:

- Não sei. Não tenho dinheiro nem amigos. Não fui ensinada a ganhar
minha vida. Talvez fosse melhor se uma daquelas flechas atingisse
meu coração.

- Não diga isso, milady! – implorou Tina – Trabalharei por nós duas!

Conan puxou uma pequena bolsa de couro de dentro do cinto.

- Não consegui as jóias de Tothmekri. – ele resmungou – Mas aqui


estão algumas quinquilharias que achei no baú, onde peguei as
roupas que estou usando. – Espalhou um punhado de rubis
flamejantes na palma da mão – Valem, por si só, uma fortuna. – Ele
os despejou de volta à bolsa e entregou a ela.

- Mas eu não posso levar estes... – ela começou.

- Claro que irá levá-los. Eu poderia tanto abandoná-la para que os


pictos lhe escalpelassem, quanto levá-la de volta a Zingara para
morrer de fome. – disse ele – Sei o que é ser pobre numa terra
hiboriana. Em minha terra, às vezes, há fome; mas as pessoas têm
fome apenas quando não há absolutamente nenhuma comida. Mas,
em países civilizados, já vi pessoas fartas de gula, enquanto outras
passavam fome. Sim, já vi homens caírem e morrerem de fome,
encostados nas paredes de lojas e armazéns abarrotados de comida.
“Às vezes, eu tinha fome também, mas aí eu pegava o que queria na
ponta da espada. Mas você não pode fazer isso. Por isso, leve estes
rubis. Você pode vendê-los e comprar um castelo, escravos e belas
roupas; e com eles, não será difícil conseguir um marido, porque
todos os homens civilizados desejam esposas com estas posses”.

- Mas, e quanto a você?

Conan sorriu e apontou o Mão Vermelha, que se movia rapidamente


em direção à costa.

- Um navio e uma tripulação são tudo o que quero. Assim que colocar
o pé naquele convés, terei um navio; e assim que alcançar as
Barachas, terei uma tripulação. Os rapazes da Irmandade Vermelha
estão ansiosos para navegarem comigo, porque eu sempre os levo
para ótimas pilhagens. E, assim que eu puser você e a menina em
terra firme, na costa zíngara, mostrarei aos cães um pouco de
pilhagem! Não, não, obrigado! O que é um punhado de jóias para
mim, quando todo o saque dos mares do sul estará ao meu alcance?

Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Você também pode gostar