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A DIFERENÇA ENTRE A ALMA E O
ESPÍRITO1
Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
Transcrição: Carlos Eduardo de
Carvalho Vargas
Revisão: San
Diagramação: San
INTRODUÇÃO: OS MODOS DE SER DA ALMA E DO ESPÍRITO
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
O CONCEITO CORPO
intrínseca de um corpo.
Então, acrescentamos uma terceira nota sobre os corpos:
1) Eles são substâncias ou sujeitos de atributos e não apenas atributos
de outros seres;
2) Eles são mutáveis;
3) Eles possuem tamanho.
QUANTIDADE CONTÍNUA E QUANTIDADE DISCRETA
cia, dos seus sentimentos, da vontade e de tudo mais. Isso significa que o ser da
imaginação estava também na inteligência, no sentimento, na vontade, etc. Não
há como eliminar uma das partes e as outras continuarem as mesmas. Mas no
tamanho não é assim. Posso tirar uma parte do tamanho e a outra continua sen-
do o que era antes.
Aluno: É o “reino da quantidade”.4 Não altera a qualidade.
Professor: A característica da quantidade é justamente esta: o ser das
partes não está nas outras partes. Do mesmo jeito que aqui tenho três maços de
cigarro e, ao tirar um deles, os outros continuarão sendo a mesma coisa. O ser
de cada parte não interferiu no ser da outra parte. A característica da quantida-
de é que possui “parte fora de partes” ou o ser de uma parte não está no ser de
outra parte. É como se as partes estivessem fora das outras.
Então, talvez a diferença entre essas duas espécies de quantidade, o nú-
mero e o tamanho, esteja na relação entre as partes. É muito simples: aqui tenho
três maços de cigarro, que estão juntos. Se eu separá-los, continua sendo três. O
limite de uma parte é independente da outra. Eles são três juntos ou separados.
Agora vamos observar o tamanho; dívida imaginariamente este maço de cigarro
no meio. Você teria um plano dividindo o comprimento do maço em duas par-
tes. Mas este plano pertence à metade de lá ou de cá? Ele pertence a esta parte
ou àquela? Pertence a duas ao mesmo tempo. No número não é assim, pois o
início das partes é independente da outra. Então, podemos dizer que tamanho é
a quantidade cujas partes possuem seus limites em comum. E número é a quan-
tidade cujas partes possuem limites separados ou independentes ou próprios.
AS MUTAÇÕES DOS CORPOS
O que isso quer dizer para o nosso conceito original de corpo? É simples:
porque na ideia tamanho já captamos duas notas distintas: a nota extensão e o
quê mais? Um corpo é simplesmente uma substância mutável e extensa? Não,
porque o corpo é uma substância mutável de extensão limitada. A noção de ta-
manho implica simultaneamente na noção de extensão e na noção de limite des-
ta extensão.
4 Cf. O Reino Da Quantidade e Os Sinais Dos Tempos, René Guénon.
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
substância: será que podemos mudar um corpo de substância para não substân-
cia? Um corpo pode deixar de ser substância e tornar-se atributo de outra coisa?
Aluno: Não.
Professor: Não pode, porque a única espécie de ser positivo ou real
que não é substância é o atributo, mas este não é o contrário da substância, pois
somente existem na substância. Então, descobrimos algo sobre os corpos: a
substância corpórea é indestrutível.
Aluno: Não há nada contrário à substância corpórea?
Professor: Não há, porque não existe o contrário da substância. Esta
não tem contrários. Então, não é nessa nota que o corpo é mutável.
Aluno: Seria impossível transformar algo corpóreo em algo incorpóreo?
Professor: É impossível transformar algo corpóreo em algo incor-
póreo, exatamente. O único modo de fazer essa mudança seria mudar a ordem a
que esta substância pertence, o que não é possível. Nunca se poderá transfor-
mar um corpo em uma alma e vice-versa.
Posso mudar um corpo na sua mutabilidade?
Aluno: Ele ficaria imutável. E existiria um corpo incapaz de mudança, o
que já descobrimos que não há. Logo, um corpo não pode mudar na sua muta-
bilidade.
Professor: Exatamente, é contrário à própria noção de corpo. Então,
tentar encontrar as mudanças a que os corpos estão sujeitos na substância ou na
mutabilidade é simplesmente procurar algo que não existe. Sobrou apenas uma
terceira nota: extensão limitada. Posso mudar os corpos em extensão.
Aluno: Posso diminuí-los ou esticá-los.
Professor: Exatamente! Posso fundi-lo com outro semelhante para
que ele se torne maior, fundindo, por exemplo, um pedaço de ferro com outro.
Mas não posso fazer muito mais do que isso.
AS QUALIDADES PASSIVAS DOS CORPOS: UMIDADE E SECURA
panha o todo. Mas existem diversas espécies de limites nos corpos. Por exemplo:
o ar possui uma espécie de limite. Esta mesa possui outra [espécie de limite]. O
limite da mesa pode mudar a forma do limite do ar, mas o limite do ar não pode
mudar a forma do limite da mesa.
Ora, se existem dois tipos de limite e eles são contrários, é possível que
um mesmo corpo sujeito a dois contrários, mude de espécie de limite. O mesmo
corpo que, em determinadas circunstâncias, [possuía um limite sólido ou] era
sólido pode, em determinadas circunstâncias, não ser sólido. Há uma espécie de
limite que possui figura própria e há outra espécie de corpos que não tem [limi-
te com] figura própria, mas possui a forma daquilo que está perto de si. Por essa
característica, posso mudar os corpos, aumentando sua extensão ao juntá-lo
com um semelhante ou diminuindo sua extensão ao provocar sua divisão. E, de
fato, os corpos estão constantemente sofrendo e provocando essas mudanças
uns nos outros. Isso é algo que se testemunha constantemente na natureza. E
eles também podem mudar a forma como outro corpo possui esta figura. Um
corpo, em determinada circunstância, possui uma determinada figura que lhe é
própria, determinada por si mesmo. E em outra circunstância, quando é, por
exemplo, superaquecido, ele pode passar a não ter figura própria, mas ter uma
figura que é determinada pelo seu meio.
Aluno: Como o gelo [que se derrete].
Professor: Por exemplo! A água é um dos corpos que pode mais facil-
mente ser observado em suas mudanças nesse sentido: pode mudar de gelo para
água e desta para vapor [e vice-versa]. Então é simples: se os corpos são mutáveis
e podem ser modificados por outros corpos, ele precisa ter uma natureza que
determina a amplitude e a circunstância dessas mutações em si. Por exemplo: se
quero que o gelo fique líquido, preciso de uma determinada circunstância am-
biental. É exatamente a mesma circunstância ambiental de que se precisa para
que o ouro fique líquido? É diferente. Mas ambos podem mudar de sólido para
líquido e vice-versa.
Aluno: Por que não é a mesma?
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A Diferença entre a Alma e o Espírito
rias.
Aluno: Como no exemplo da mesa e do ar.
Professor: A essa primeira qualidade, de determinar a própria figura,
Aristóteles chamava de secura. E à qualidade contrária, ele chamava de umida-
de. Sei que a gente usa essas palavras em um sentido um pouco diferente.
Aluno: Mas faz sentido!
Aluno: Poderia-se usar solidez e liquidez.
Aluno: A secura é a qualidade própria do objeto que pode determinar a
sua própria figura?
Professor: Exatamente.
Aluno: Se alguém jogar água no vaso, este determinará a figura da água
[pois esta é úmida, enquanto o vaso é seco, no sentido aristotélico].
Professor: A água não determinará a figura do vaso.
[Aluno compara a umidade aristotélica com a liquidez da economia.]
Professor: E mais ainda, todos os corpos possuem estas propriedades,
mas todos possuem a capacidade de mudar de uma para outra. Nenhum corpo
é sólido em todas as circunstâncias possíveis em que ele pode se encontrar. Exis-
te alguma circunstância em que ele perderá essa propriedade e assumirá a con-
trária.
Aluno: Por mais difícil que seja!
Professor: Exatamente.
[Aluno comenta sobre a passividade dessas propriedades.]
Professor: A secura e a umidade são justamente as propriedades passi-
vas dos corpos. Um corpo simples, por si mesmo, não muda de uma coisa para
outra, mas é mudado por um outro. É mudado pelo conjunto dos outros cor-
pos como um todo [ou pelo seu “meio”]. Vocês estão entendendo o que signifi-
ca dizer que “um corpo somente existe tal como ele é [se estiver] diante de um ou-
tro corpo”.
Então, por exemplo, vamos imaginar um imenso universo vazio no qual
há apenas uma pedra. Ela é sólida, não é? Mas a pedra, enquanto pedra, en-
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A Diferença entre a Alma e o Espírito
quanto aquele mineral [específico], poderia não ser sólido. Não há nada na na-
tureza dela que a proíba de deixar de ser sólida. Mas ela nunca poderia realizar
essa possibilidade sozinha. Algum outro corpo teria que intervir para que ela re-
alizasse essa possibilidade.
AS QUALIDADES ATIVAS DOS CORPOS: CALOR E FRIEZA
Mas existe um outro par de contrários a que todos os corpos estão sujei-
tos. E este é um par de qualidades ativas ou de forças ou virtudes. Esse par de
qualidades é facilmente conhecido quando se quer transformar gelo em água. O
que alguém faz quando quer transformar gelo em água? Esquenta a água! O
que acontece quando você esquenta o objeto?
Aluno: Recebe o calor.
Professor: O que acontece quando um corpo recebe o calor?
Aluno: A forma dele muda.
Professor: Por que a forma muda?
Aluno: As partes separam-se.
Professor: Exatamente. Quando você esquenta um corpo as partes
dele tendem a se separar. Há uma tensão no sentido da separação. Mas um cor-
po se separa com o mínimo calor que o aquece?
Aluno: Separa-se muito pouco [se o calor for mínimo].
Professor: Isto quer dizer que todo corpo possui em si também uma
força pela qual ele mantém as partes unidas. E essa também é uma força ativa.
Esta é uma tensão de coesão no corpo. E essa tensão de coesão é contrária à ten-
são de separação. As duas não podem coexistir no mesmo corpo. Se você au-
mentar a tensão de separação, a tensão de coesão será superada ou perdida. En-
tão essa tensão de coesão era chamada de frieza por Aristóteles ou a tensão que
um corpo possui para manter as suas partes unidas. E a tensão para a separação
das partes ele chamava de calor.
Aluno: Tudo isso é para chegar na diferença entre Espírito e alma?
AS QUATROS CATEGORIAS DE CORPOS
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A Diferença entre a Alma e o Espírito
QUALIDADES OPOSTAS
Isso já nos oferece uma base para clarear a ideia de perfeição. A perfeição
de um ser ocorre com a plena perfeição dos seus modos de ser. Então, por exem-
plo, nós temos vários modos de ser. Um dos nossos modos é ter vários senti-
mentos em relação às coisas que nós observamos. Podemos sentir agrado, desa-
grado, tristeza, alegria, apego, desapego, aversão, etc. Enquanto não vivemos
plenamente a capacidade de sentir ou ter sentimentos, não realizamos a perfei-
ção da nossa vida afetiva. Como a vida afetiva, assim como a atividade corpórea,
está sujeita a atividades contrárias, pois não se pode ser feliz e infeliz ao mesmo
tempo, alegre e triste com a mesma coisa ao mesmo tempo, o ser humano que
nunca foi triste é incompleto. Ele não realizou plenamente o seu ser. Existe algo
do ser dele que ele desconhece. Mas também nós temos alguns modos de ser
que não são sujeitos à contrários reais. Então, por exemplo, a inteligência. Qual
é o contrário do compreender ou do entender?
Aluno: Não entender.
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
do ser que são passivos em relação à sua perfeição. Um corpo somente pode ga-
nhar a perfeição que ele irá perceber. Na outra ordem do ser, os vegetais animais
e seres humanos recebem uma perfeição do ambiente, mas somente isso não é
suficiente para eles, pois não realiza o que ele quer. Ele mesmo precisa intervir e
realizar a sua própria perfeição.
Qual é a outra característica comum aos animais, vegetais e humanos?
Simples: eles podem existir e não alcançar a própria perfeição.
Aluno: Podem frustrar.
Professor: Isso quer dizer que, embora eles sejam o princípio ativo da
própria perfeição, o ato da perfeição é distinto do ato de existir.
Aluno: Não basta existir para chegar à própria perfeição. A perfeição re-
quer algo dele mesmo [além de simplesmente existir].
A NOÇÃO DA ALMA
vegetais.
Por outro lado, qual é a perfeição da alma vegetal? Criar um outro vege-
tal. Apesar de ser uma alma ou um princípio intrínseco de perfeição, a sua ação
se efetiva sobre a corporalidade. Ocorre em uma situação que envolve ou impli-
ca necessariamente a corporalidade. Se existisse uma alma vegetal sem corpo,
esta não poderia realizar sua perfeição ou reproduzir-se. Embora seja um princí-
pio intrínseco ativo, somente pode operar diante de um corpo. Um “espírito de
macieira” não pode, por si mesmo, produzir outro “espírito de macieira”.
O mesmo vale para a alma sensitiva dos animais. Embora seja a afetivida-
de própria do animal que lhe diga o que é agradável e desagradável, estas quali-
dades se apresentam a ele por meio de outros corpos que se mostram agradáveis
ou não. Se não existissem esses outros corpos, o animal não poderia perceber o
que é agradável ou não, nem procurar a sua ambiência [que permitisse realizar a
perfeição de sua alma sensitiva].
Então são almas, mas são almas muito ligadas ao mundo corpóreo, pois a
operação delas somente pode ser realizada no mundo corpóreo. A mesma coisa
vale para nós, seres humanos, em relação às nossas potências vegetativa e sensiti-
va.
A ORDEM DOS SERES ESPIRITUAIS
Existe uma ordem de seres que não podem realizar a própria perfeição,
são os corpos [minerais]. E existe uma outra ordem de seres que podem realizar
a própria perfeição, mas esta é distinta do ato de existir. E existe uma outra or-
dem de ser que possui o princípio intrínseco de se sua própria perfeição e esse
princípio é a sua própria existência. Pelo simples ato de existir, esses seres são
perfeitos. Isso é o espírito. Estes são seres espirituais. A perfeição deles está no
próprio ato de existência. A essa ordem de ser, pertence a inteligência. Este é um
modo de ser espiritual.
Aluno: Não tem nada a ver com a alma?
Professor: Não é bem assim. Pode haver alguma relação entre a alma e
a inteligência porque pode haver um modo de ser que combine essas duas for-
mas de existência.
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
[Aluno pergunta sobre a relação entre essa ordem de ser espiritual e o Es-
pírito Santo.]15
Professor: Agora estou apenas diferenciando a natureza corpórea da
natureza anímica da natureza espiritual. A primeira delas não possui força ativa
para alcançar a própria perfeição. Uma natureza anímica, por sua vez, tem força
ativa para alcançar a própria perfeição, mas a alcança por um ato distinto e pos-
terior à sua própria existência. Uma alma precisa existir primeiro e alcançar a
sua própria perfeição depois. E a natureza espiritual é uma coisa que é a força
ativa para alcançar a própria perfeição. Logo, para ela, existir é ser perfeito. E es-
tamos complementando afirmando que a inteligência é um ser desta ordem.
Aluno: É perfeita pelo fato de existir.
Professor: Como não há meio termo entre ser e nada, não há meio ter-
mo entre conhecer e não conhecer. Todo ato de conhecer, enquanto tal, é ato de
conhecer perfeitamente. A inteligência é perfeita no seu primeiro ato de conhe-
cer. Ela já é perfeitamente inteligente.
[Aluno comenta sobre a relação entre Inteligência e Espírito Santo.]
Professor: Exatamente, isso quer dizer que a Inteligência é o próprio
Espírito Santo em você, em mim, nele, etc. Ela não é outra, senão o Es-
pírito Santo.
Aluno: E a personalidade, em relação à inteligência?16
Professor: É simples: a sua alma, além da presença da inteligência, pos-
sui várias outras coisas. Você possui várias outras coisas que lhe diferenciam das
outras pessoas: seu temperamento, seu sentimento, sua imaginação, etc.
A IMORTALIDADE DA ALMA: CÉU E INFERNO
está no próprio peixe. A causa da existência desse prazer e desse gosto é o peixe.
Ora, quando morrer, não tenho mais peixe. O que acontece com um efeito
quando a sua causa é eliminada? Ele cessa. Então, algum tempo depois de eu es-
tar morto, o meu gosto por peixe desaparecerá. Inclusive a minha recordação do
gosto de peixe desaparecerá inevitavelmente.
Esta era uma característica distintiva da minha personalidade e ela irá de-
saparecer. Se todas as características distintivas da minha personalidade deriva-
vam de formas corpóreas, todas elas desaparecerão. Sendo assim, tudo aquilo
que eu me identificava, isto é, tudo aquilo que eu chamava de “eu mesmo” e tes-
temunhava em mim, desaparecerá. E, mais ainda: esse processo de desapareci-
mento será um processo de sofrimento porque será um processo de desintegra-
ção da minha personalidade.21
Aluno: Será uma decadência. Esquecerei até das pessoas que amava.
Professor: Esquecerá de tudo [cujo princípio formal de integração na
psique estava vinculado apenas às suas almas sensitiva e vegetativa].
Aluno: E no final, o que sobra?
Professor: Por outro lado, suponha que exista uma outra coisa, além
do próprio peixe que eu comia, que seja a raíz formal do peixe. Do mesmo jeito
que a forma de peixe dava a forma que era testemunhada na minha afetividade,
suponha que haja outra forma que origina o próprio peixe.
Aluno: É o ser peixe.
Professor: Suponha que essa outra coisa seja ela mesma imutável e,
portanto, ela é um possível objeto de cognição. Logo, a minha inteligência pode
captar essa coisa. É a essência. Se a minha inteligência captá-la, todas as formas
derivadas estão incluídas na causa.
Isso é o céu! O céu é a captação da raíz formal de todas as coisas 22 por
parte das inteligências.
Aluno: A raiz formal não é Espírito?
Professor: A raiz formal é o próprio Deus. Ora, se eu captava essa raíz
21 Isto é, será um “inferno”.
22 A qual está no próprio Deus. Conferir o “Sermão da Montanha” no Evangelho: “Buscai primeiro o Reino de
Deus e tudo mais vos será acrescentado”.
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A Diferença entre a Alma e o Espírito
formal, essa captação não diminui com a minha morte. Ela tende a aumentar
com a minha morte.
Aluno: Aumenta porque passa a captar todas as formas de ser.
Professor: Exatamente. Se a raíz formal de peixe se tornou um objeto
para a minha inteligência, depois que morrer, não estarei privado da forma do
peixe e do efeito disso na minha psique. E ainda aumentarei isso infinitamente.
Cada vez que a minha inteligência captar essa raíz formal, esta ampliará o prazer
que a minha psique tinha no peixe. E assim minha psique será imortal porque o
seu objeto estará sempre comigo. E a minha personalidade será imortal porque
esse já era um traço do meu ser ou da minha personalidade, isto é, o “ gostar de
peixe”.
Aluno: Esse é o estar em Deus.
Professor: Exatamente. Então, a minha personalidade, exatamente
como era nesse mundo, é simplesmente ampliada em proporções incalculáveis.23
[Aluno pergunta sobre este princípio formal.]
Professor: Não é o gênero [no sentido lógico].
Aluno: É o “realíssimo”!
Professor: Exatamente, é aquilo que concede ao gênero a sua consis-
tência ontológica.
[Aluno pergunta sobre a relação entre o realíssimo e a essência.]
Professor: A palavra essência, neste contexto, pode ser usada em dois
sentidos. Por uma lado pode ser a “quididade” da coisa, isto é, a natureza à qual
a coisa percebia, como a “natureza de peixe”, por exemplo. Obviamente estas
quididades corpóreas não estarão mais presentes para mim depois da minha
morte. Mas a quididade ou o ser de qualquer ente concreto não se reduz à sua
quididade e à sua acidentalidade, mas a um ato que realiza essa quididade e essa
acidentalidade concretamente. Este ato vem do próprio Deus.
Nesse sentido, essência e realíssimo são as mesmas coisas, porque, nesse
sentido, o ser de cada coisa é uma atividade divina. Existem duas maneiras de
23 Como o aumento que ocorre na parábola do Evangelho em que os bens da pessoa fiel e justa eram aumentados:
da administração de cem talentos para a posse de uma cidade inteira.
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
você fazer esse salto, em vida. Uma maneira é você se dedicar a uma vida de con-
templação, dedicando seu ser e seus gostos todos para a contemplação, o que é
extremamente difícil. Uma outra maneira é se o ser que já seja assim, que já per-
tença à ordem do realíssimo, se ele já encarar uma pessoa dessa maneira [como
se esta já estivesse na ordem do realíssimo].
Seria algo muito estranho! Dessa forma, você pode não ter conquistado a
imortalidade; você pode não ter encontrado a raíz do seu ser ou da sua persona-
lidade no realíssimo, mas suponha que o Cristo faça isso para você. Ele pode
sustentar a sua personalidade no realíssimo depois da morte até que você seja ca-
paz de fazer isso. Ele pode escolher ver em si mesmo a raíz da personalidade de
alguém e sustentá-la n’Ele mesmo.
Aluno: Mas Ele já não faz isso com todos, enquanto alguns se fecham a
isso?
Professor: Não, Ele não faz isso com todos! Ele mesmo disse: “nem
todo
aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus”.
Aluno: Mas e aquele que diz isso [“Senhor, Senhor”] sinceramente?
Professor: Ele mesmo disse:“mas todo aquele que cumpre meus man-
damentos”, isto é, o sujeito que faz todo esforço para cumprir as condições que
Ele estabeleceu para isso, as condições para que você seja um órgão do Ser d’Ele.
[Neste caso], então, Ele faz isso para você.
Aluno: É uma aceitação.
Professor: É um pacto que você faz com Ele. Aluno: É uma dedica-
ção!
Professor: Exatamente.
Aluno: Mas não é somente o livre-arbítrio.24
Professor: Se alguém procurar a raiz disso na Bíblia, verá que se chega
a uma situação imponderável, em que não é possível pensar em uma coisa em
comparação com a outra. Se alguém se perguntar de onde partiu todo esse pro-
cesso de salvação, é evidente que veio do próprio Deus. Para começar, foi Ele
24 O aluno refere-se à relação entre Graça divina e esforço pessoal.
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A Diferença entre a Alma e o Espírito
que causou a nossa existência. Existe uma raiz em cada ser humano em que gra-
ça e livre arbítrio não se diferenciam. Dessa raíz adiante é que a gente escolhe
um caminho um pouco diferente da graça.
A RAIZ HUMANA NO REALÍSSIMO DIVINO
INTELIGÊNCIA E ESPÍRITO
peixe e outra não gosta. Então, nesse gostar de peixe e não gostar, existe um ele-
mento subjetivo que é um elemento objetivo.
Isso quer dizer que a sua personalidade pode ser perfeita ou imperfeita.
A sua personalidade é um atributo da sua alma e esta não atinge a perfeição ape-
nas por existir. Entretanto, a sua Inteligência já é perfeita apenas por existir.28
ESPÍRITO E IMORTALIDADE
Quando o sujeito não vai para o céu, é a sua própria Inteligência que dá
testemunho contra ele mesmo. E é Deus, como essa Inteligência, que julga essa
personalidade indigna ou incapaz de permanecer.
[Aluno pergunta sobre esse juízo da Inteligência.]
Professor: Quando você morrer, o mundo corpóreo não estará mais
diante de você. A única coisa que estará diante de você é a sua personalidade.
Para começar, de início [após a morte], são os seus gostos, os seus desgostos, as
suas alegrias, tristezas, memórias, etc. Com o tempo, de tanto ficar observando
isso, o que acontecerá? Será como explicamos antes: se você gostava de peixe, a
causa formal29 que fazia você gostar de peixe era a forma de peixe. De duas, uma:
ou você capta o fundamento realíssimo do peixe e, portanto, do gosto do peixe
e isso perpetua o peixe, eternizando-o e tornando imortal essa componente da
personalidade, ou esta irá desaparecer. Isso quer dizer que apenas os que vão
para o Céu continuam sendo aqueles que eram.
Aluno: E, nesse sentido, quem não vai simplesmente acaba.
Professor: Como personalidade, ele acaba. Passa a ser apenas um pro-
cesso vital, psíquico, que vai se desintegrando, mas sem personalidade. Aliás,
personalidade significa justamente isso: o instrumento por meio do qual algo
soa: “per sona” (soa por). Se o que soava pela sua alma era apenas a corporalida-
de, quando esta for tirada, o som será tirado, isto é, a sua personalidade se desin-
tegrará. Se o que soava era Espírito, continuará soando eternamente.
28 O leitor deve perceber que o professor Luiz não está usando inteligência no sentido “usual” de habilidade
lingüística ou como capacidade em executar raciocínios lógico e matemáticos.
29 No sentido das quatro causas de Aristóteles. Cf. “Metafísica”, de Aristóteles.
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
A SALVAÇÃO PELA FÉ
Isso quer dizer que, tecnicamente, para que tudo o que eu sou permaneça
após a minha morte, é preciso que eu compreenda tudo o que sou em Deus.
Existe uma única alternativa: pode ser que eu não consiga compreender tudo o
que eu sou em Deus, mas que eu compreenda suficientemente tudo o que Deus
é para mim. Se eu compreender suficientemente quem é o Cristo, e o sinal de
que alguém compreende é o modo pelo qual a própria vida é integrada na pro-
posta de vida d’Ele, isto é um elo entre a minha personalidade total e o próprio
Deus. E este elo permitirá, depois da minha morte, o resgate da minha persona-
lidade.
É como uma troca: o que Cristo propõe a cada ser humano é:
“Seja como Eu agora, antes da sua morte, porque depois da sua morte se-
rei como você e você reencontrará a sua personalidade olhando para mim”.
O que ele propõe é isso:
“Vista-se de Cristo, que, depois da sua morte, Eu me vestirei de você e vo-
cê se reencontrará em mim”.
Aluno: O professor Olavo de Carvalho disse, certa vez, que a fé é como
um bônus de conhecimento.
Professor: Exatamente.
Aluno: A fé é uma posse antecipada, é um pré-conhecimento.30
Professor: Exatamente. É como se fosse um cheque de conhecimen-
to. Porque nem sempre é possível, ou melhor, raramente é possível, para um
31
Ele pode fazer isso por quê? Porque Ele é o Verbo divino 32, é o primo-
gênito de todas as criaturas.33 Ele, o Cristo34, o Verbo Divino, é a raiz formal do
ser de todas as criaturas em Deus.
Aluno: É isso que é a salvação.
Professor: É isso.
Aluno: Isso é ensinado nas catequeses e nos seminários?
Professor: Os católicos, hoje em dia, têm, [em geral,] uma grande ig-
norância sobre a própria religião. E não é de hoje! No século XIII mandaram
São Boaventura, [que foi superior franciscano], julgar a ortodoxia de um mem-
bro de sua congregação, o frei Gil.35 E ele respondeu que era esse sujeito que de-
32 Conferir o Evangelho de São João, capítulo 1, versículo 1 em, por exemplo, http://www.bibliacatolica.com.br/
33 Conferir a Carta de São Paulo aos Colossenses (capítulo 1, versículo 15): “Ele [o Cristo] é a imagem de Deus in-
visível, o Primogênito de toda a criação”.
34 Conferir no Evangelho de São Mateus (capítulo 16, versículo 16)
35 Trata-se do Beato frei Gil de Assis (também chamado de frei Egídio), cuja memória é liturgicamente celebrada
no dia 23 de abril. “Discípulo de S. Francisco, clérigo da Primeira Ordem (+1262). Pio VI aprovou seu culto a
04 de julho de 1777. Entre os primeiros companheiros de S. Francisco está o Beato Gil de Assis, o qual respal-
dou sua petição para fazer-se Frade Menor cedendo imediatamente seu próprio manto quando, no convento
dos irmãos, chegou um pobre pedindo alguma coisa. Simples, humilde, iletrado, sabia contudo impelir todos ao
amor de Deus e proferir sentenças cheias de doutrinas. A maior parte de sua vida caracterizou-se por peregrina-
ções: Santiago de Compostela, Monte Gargano (Santuário de S. Miguel Arcanjo), Terra Santa e mais tarde Áfri-
ca. Ocupava o tempo de permanência e suas esperas forçosas ganhando a caridade das pessoas através de seus tra-
balhos manuais. Fazia de tudo: carregava água, recolhia nozes ou lenha. Nunca o encontravam ocioso, mas sem-
pre em silêncio com Deus, com quem falava na contemplação, única fonte de sua sabedoria cristã. Assim, veio a
se tornar exemplo de vida franciscana primitiva. Cujo claustro é o mundo. Sua ocupação era qualquer trabalho
humilde e honesto e suas delícias estar com Deus nas noites silenciosas. No dia de S. Jorge, a 23 de abril de 1209,
Gil tinha escutado a missa em Assis, indo depois à Porciúncula para avistar-se com São Francisco. Encontrou-o
saindo de um bosquezinho e se lançou a seus pés. "Que queres?" perguntou-lhe Francisco. “Quero permanecer
contigo”, respondeu. Francisco o nomeou imediatamente "cavaleiro da távola redonda" e em sua companhia
partiu para Marca de Ancona. Ao longo do caminho Frei Gil louvava a Deus e, cheio de gratidão, se prostrava
por terra e beijava a erva, as flores e as pedras. Quando S. Francisco pregava, ele permanecia extático e dizia aos
demais: “Escutai-o, porque, ele fala maravilhosamente”. Fora do tempo reservado à oração e à leitura do breviá-
rio, Gil trabalhava continuamente, e como paga recebia somente estritamente necessário para a vida. São céle-
bres seus ditos cheios de sabedoria religiosa e de espírito prático. Certa vez admoestou um pregador palrador,
gritando-lhe por detrás: "Blá, blá, blá, falou muito, agiu pouco". Com freqüência sua sabedoria era bondosa-
mente irônica, como quando um irmão disse que havia sonhado com o inferno e que ali não tinha visto ne-
nhum frade menor. Ao que Frei Gil lhe respondeu: "Seguramente não baixaste até o fundo". Perante outro que
falava muito sem refletir, disse: “Penso que seria bom ter o ombro tão largo como a grulha; assim a palavra passa-
ria por muitos de nós antes de subir a boca!” Frei Gil era um contemplativo, um místico que entrava em êxtase
somente em ouvir mencionar o Paraíso. S. Francisco e S. Boaventura tiveram por ele grande admiração. Mais tar-
de, morto S. Francisco, sua vida transcorreu nos eremitérios da Úmbria, sobretudo no de Monterípido, onde
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
veria julgar a ortodoxia da nossa doutrina, porque não há alguém mais cristão
do que ele no mundo inteiro. Quer dizer que aqueles que o mandaram julgar a
Frei Gil já não conheciam mais a própria religião.
Aluno: São Tomás também passou por um processo assim.
Professor: Sim. E São Boaventura também passou pelo mesmo pro-
cesso. A história dessa ignorância não é de hoje.37
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materiais, o que é resistência, etc. Isso pode ser ensinado. Entretanto, suponha
que você tenha contemplado o que é tudo isso no realíssimo. Isso não poderá
ser ensinado [pelo discurso]. O máximo que você pode fazer é dar algumas indi-
cações práticas do caminho que o sujeito deverá percorrer até chegar a essa con-
templação.
[Aluno pede mais uma explicação.]
Professor: Quando Platão e Aristóteles falavam da theoria, falavam
das duas coisas ao mesmo tempo [especulação e contemplação], mas, na prática,
podiam ensinar aos alunos [apenas] a especulação e dar algumas indicações
quanto à contemplação. E o que aconteceu? No decorrer das gerações do ensi-
no da Academia e do Liceu40, o número de pessoas que contemplavam foi dimi-
nuindo em relação ao número de pessoas que apenas contemplavam.
[Aluno pergunta sobre a impossibilidade de ensinar a contemplação.]
Professor: Trata-se de uma impossibilidade intrínseca. Não dá para
transmitir o conteúdo da contemplação. O sujeito que contempla pode, no
máximo, oferecer algumas indicações sobre como se deve eliminar na própria
vida os obstáculos da própria contemplação, mas a especulação pode ser trans-
mitida.
Por quê? Simples, porque a inteligência humana é transcendente em re-
lação aos objetos que ela contempla e que pertencem à ordem do real. A inteli-
gência humana é mais do que qualquer ciência que ela possa obter sobre as coi-
sas naturais. A esfera dos conhecimentos naturais está sob domínio da inteligên-
cia humana, mas o realíssimo não. Ela não é transcendente em relação ao rea-
líssimo. Ela é que está sob domínio do realíssimo. Como se diz, não se pode
“apreender” o conteúdo do realíssimo e comunicá-lo a outro. Mas a inteligência
humana pode fazer isso em relação à especulação, isto é, em relação ao conheci-
mento das coisas naturais.
Por isso que, em qualquer cadeia de ensinamento humano, no decorrer
das gerações do ensinamento, o elemento contemplativo diminuirá, mas o espe-
40 As escolas iniciadas por Platão e Aristóteles, respectivamente.
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Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho
Professor: Por que existe a tensão no ser humano entre a vida contem-
plativa e a vida sensitiva? Todo ser possui simultaneamente três aspectos. Todo
ente é:
41 Chamada, às vezes, indistintamente de vida especulativa ou contemplativa.
42 Nesse sentido, é preciso buscar ao ler as “especulações” de um filósofo, refazer as experiências cognitivas (ou
“contemplativas”) que ele teve para redigir aquilo. Este procedimento lembra a noção de “origem” em Husserl,
que elaborou um método filosófico para buscar as experiências originais dos conceitos filosóficos e científicos.
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A Diferença entre a Alma e o Espírito
sim, seria uma grande contradição, porque teríamos que assumir que somente
existe o real, menos você que é realíssimo porque possui inteligência e transcen-
de a realidade.45
Aluno: “A tentação maior do homem é cair de uma verdade incerta para
uma inverdade certa”.46
Professor: É isso mesmo! Vamos guardar essa frase para comentá-la na
próxima aula.
Aluno: A verdade incerta é parte de um mistério.
Professor: Porque a sua inteligência pode contemplar o realíssimo,
mas não pode esgotá-lo.
Aluno: Não pega tudo nunca.
Professor: O elemento do mistério sempre estará lá.
Aluno: Exceto aqueles que achavam que possuíam todo o conhecimen-
to como Nietzsche, Marx, Hegel, Gramsci, etc.
FIM
ente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar,
o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”. Se a língua estava to-
talmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora separá-la
do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a “différance”, com “a”, termo criado por Derri-
da para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado en-
quanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a
palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do
meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a
impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simples-
mente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas,
se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela circula-
ridade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, “différance”
(como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência
falando de outra ausência. Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato
de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo que produz a necessida-
de de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”.
Portanto, a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste
o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da ver-
dade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com
isso, o próprio poder. (Olavo de Carvalho, O sucesso do fracasso, Diário do Comércio, 27 de novembro de 2006)
45 A pessoa não se inclui no próprio juízo sobre o conjunto da realidade, isto é, enquanto fala e especula se exclui
da própria realidade.
46 Essa frase parece remeter a C.S. Lewis.
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