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O CONCEITO DE CORPO
O que é um corpo? Quais são as notas que caracterizam um corpo? Todos
os corpos são sensíveis? Tudo que é corpóreo pode ser captado pelos sentidos?
Aluno: O que você está querendo dizer com “sensível”?
Professor: Algo captável por um dos cinco sentidos.
Aluno: Eles são físicos?
Professor: Físico é uma coisa, sensível é outra. Mas quando introduzimos a
nota “físico”, isso problematiza sobre o objeto, mas não explicita o que ele é. Porque
a gente teria que se perguntar “o que é físico?”, mas a explicação precisa ser mais
simples do que o objeto e não [deve ser] mais complexa. A primeira pergunta que a
gente faz quando queremos definir um objeto está lá nas “Categorias” de
Aristóteles: ou é uma espécie de objeto capaz de existir nele mesmo ou é um objeto
que existe em outro. A cor vermelha é alguma coisa que existe em outra coisa que
não é a cor vermelha. Para que exista a cor vermelha é preciso que exista alguma
coisa que tenha cor vermelha. A mesma coisa com “30 gramas” ou “30 centímetros”:
é preciso que exista alguma coisa que tenha “30 gramas” ou “30 centímetros”. Essa
coisa mesmo não é grama, nem centímetro, nem cor. Porque a massa, o tamanho e a
cor são acidentes que existem em uma outra coisa. São características ou atributos
de uma outra coisa que, por sua vez, não seja atributo. Eu posso dizer: “homem é
atributo de Guilherme” ou “Guilherme é homem”, mas Guilherme não é atributo de
nada. Ele é um sujeito último de atributos. Para que haja atributos é preciso existir
um sujeito último. Então, a primeira pergunta sobre corpos é: “os corpos são sujeitos
ou são atributos?” Pelo que tudo indica, os corpos são sujeitos. Eles entram, então,
na categoria de substância. Um corpo é uma coisa que existe nele mesmo. Ele não
existe em outro ou como atributo de outro. Assim nós já temos um gênero. Sabemos
que tipo de coisa é um corpo. É claro que existem também substâncias ou sujeitos
últimos que não são corpóreos, mas espirituais. Mas de qualquer jeito existem
alguns sujeitos que são chamados de corpos. Eles possuem alguns atributos, mas o
próprio sujeito é corpóreo. Para entendermos o que é corpo, basta entender o
seguinte: “quais são os atributos que necessariamente precisam estar presentes em
um sujeito para que ele seja corpóreo”? Um deles é tamanho. Um sujeito incorpóreo
não possui tamanho. Qual é o tamanho de uma alma, de um anjo ou de Deus? O
atributo tamanho é descabido em relação ao sujeito incorpóreo, mas é necessário ao
sujeito corpóreo. Não tem um sujeito corpóreo que não tenha um tamanho definido.
Mas se falarmos que “corpo é uma substância2 com tamanho”, isso é
suficiente? Essa é a única característica que é permanente nos corpos e que se pode
observar em todos os corpos3? Não é.
Aluno: O que falta? Massa? Textura?
Professor: Faltam várias outras condições. Como as captamos (massa, cor,
peso, etc)? Tudo isso a gente capta por uma propriedade dos corpos: eles podem ser
modificados por outros corpos. Todo corpo pode ser alterado por um outro corpo.
Aluno: Você pode dar um exemplo?
Professor: O ar que está nesta sala pode ser modificado pela configuração
dos outros objetos que estão nela. Um corpo pode empurrar outro corpo,
deslocando-o. [Também pode] fundir, aquecer, esfriar, etc. Tudo isso são
modificações de uns corpos sobre outros. E por mais que eu procure, não encontro
um corpo que não possa ser modificado ou seja incapaz de sofrer uma modificação.
Mesmo que eu encontre um corpo que não possa ser quebrado, ele também não pode
ser aquecido ou deslocado? Então, uma característica também universal dos corpos é
que todos eles estão sujeitos a mudanças. Então, já possuímos mais de uma nota
sobre os corpos: são substâncias mutáveis. Todos eles podem mudar.
[Aluno faz um comentário breve.]
Professor: Atualmente se conhece mais dados sobre os corpos e mesmo
assim ainda não se encontrou nenhum corpo que seja incapaz de mudança. Então, a
possibilidade de ser mudado por um outro corpo faz parte da estrutura intrínseca de
um corpo.
2
Nesta aula substância está significando um sujeito último [N.T.].
3
Busca-se os atributos permanentes, universais e objetivos. Conferir aulas anteriores sobre “tópicos” e o
procedimento dialético [N.T.].
Então, acrescentaremos uma terceira nota sobre os corpos:
a) eles são substâncias ou sujeitos de atributos e não apenas atributos de
outros seres;
b) eles são mutáveis.
c) eles possuem tamanho;
4
No sentido de René Guénon: conferir “O reino da quantidade e os sinais dos tempos” [N.T.].
O que isso quer dizer para o nosso conceito original de corpo? É simples: a
gente vai desdobrar um pouquinho mais a noção de corpo. Porque na idéia tamanho
já capto duas notas distintas: a nota extensão e o quê mais? Um corpo é
simplesmente uma substância mutável e extensa? Não, porque corpo é uma
substância mutável de extensão limitada. A noção de tamanho implica
simultaneamente na noção de extensão e na noção de limite desta extensão.
Então, eu posso dizer com bastante precisão que corpo é “a substância
mutável de extensão limitada”. Por mais que você procure, você nunca encontrará
um corpo que não seja isso. Ele pode ser muitas coisas ainda, mas ele precisa ser
isso também. E, por outro lado, você nunca encontrará uma coisa que não seja corpo
e seja uma substância mutável de extensão limitada.
É fácil provar que os corpos têm extensão limitada porque existe mais de
um corpo5. Se existisse um corpo de extensão ilimitada não existiria mais nenhum
corpo porque não haveria lugar para a extensão de um segundo corpo.
Agora que nós já sabemos o que todos os corpos são. Imagine um corpo que
seja apenas isso e não tenha mais nenhuma característica. E que esse corpo se reduza
a uma substância mutável de extensão limitada. Se ele é mutável, o que se pode
mudar em um corpo assim?
Vamos pensar: somente é possível mudar coisas que estejam sujeitas a
contrários. Por exemplo: se eu tenho um corpo vivo, esta noção de vivo possui um
contrário, que é morto. Um corpo vivo talvez possa ser mudado no seu contrário que
é um corpo morto. Para que haja mudança, é preciso que haja um par de contrários e
um sujeito que é capaz de um contrário ou do outro. Posso mudar um corpo de verde
para vermelho. Posso mudá-lo de cor. Por quê? Porque a noção de “não-verde”
corresponde a alguma realidade positiva, que não é verde: seja azul, amarelo ou
qualquer outra cor. E nesse sentido, verde possui um contrário real. Possui muitos
contrários: pois existem muitas cores reais que são “não-verde”.
5
Por um argumento que é uma espécie de “reductio ad absurdum” (“redução ao absurdo”) [N.T.].
Mas os contrários não podem existir na mesma coisa, ao mesmo tempo e
sob os mesmos aspectos6. Um corpo não pode ser verde e não-verde ao mesmo
tempo [e nas mesmas condições]. Para que haja mudança, é preciso existir um par de
contrários, mas simultaneamente deve existir a impossibilidade daqueles contrários
estarem ao mesmo tempo no mesmo sujeito.
Então, se eu quero descobrir como uma substância mutável de extensão
limitada pode ser mudada, tenho que descobrir nestas notas: “substância”,
“mutável”, “extensão” e “limitada”, quais são as notas que estão sujeitas a contrários
ou podem existir de maneira contrária. Por exemplo: peguemos nossa substância:
será que podemos mudar um corpo de substância para não substância? Um corpo
pode deixar de ser substância e tornar-se atributo de uma outra coisa?
Aluno: Não.
Professor: Não pode, porque a única espécie de ser positivo ou real que não
é substância é o atributo, mas este não é o contrário da substância, pois somente
existem na substância. Então, já descobrimos algo sobre os corpos: a substância
corpórea é indestrutível.
Aluno: Não há contrário para a substância corpórea?
Professor: Não há, porque não existe o contrário da substância. Esta não
tem contrários. Então, não é nessa nota que o corpo é mutável.
Aluno: Seria impossível transformar algo corpóreo em incorpóreo?
Professor: É impossível transformar algo corpóreo em incorpóreo,
exatamente. O único modo de fazer essa mudança seria mudar a ordem a que esta
substância pertence, o que não é possível. Nunca se poderá transformar um corpo
em uma alma e vice-versa.
Posso mudar um corpo na sua mutabilidade?
Aluno: Ele ficaria imutável. E existiria um corpo incapaz de mudança, o
que já descobrimos que não há. Logo, um corpo não pode mudar na sua mutabilidade.
6
Princípio da não-contradição.
Professor: Exatamente, é contrário à própria noção de corpo. Então, tentar
encontrar as mudanças a que os corpos estão sujeitos na substância ou na
mutabilidade é simplesmente procurar algo que não existe. Sobrou apenas uma
terceira nota: extensão limitada. Posso mudar os corpos em extensão.
Aluno: Posso diminuí-los ou esticá-los.
Professor: Exatamente! Posso fundi-lo com outro semelhante para que ele
se torne maior, fundindo, por exemplo, um pedaço de ferro com outro. Mas não
posso fazer muito mais do que isso.
Mas existe um outro par de contrários a que todos os corpos estão sujeitos.
E este é um par de qualidades ativas ou de forças ou virtudes. Esse par de qualidades
é facilmente conhecido quando se quer transformar gelo em água. O que alguém faz
quando quer transformar gelo em água? Esquenta a água! O que acontece quando
você esquenta o objeto?
Aluno: Recebe o calor.
Professor: O que acontece quando um corpo recebe o calor?
Aluno: A forma dele muda.
Professor: Por que a forma muda?
Aluno: As partes separam-se.
Professor: Exatamente. Quando você esquenta um corpo as partes dele
tendem a se separar. Há uma tensão no sentido da separação. Mas um corpo se
separa com o mínimo calor que o aquece?
Aluno: Separa-se muito pouco [se o calor for mínimo].
Professor: Isto quer dizer que todo corpo possui em si também uma força
pela qual ele mantém as partes unidas. E essa também é uma força ativa. Esta é uma
tensão de coesão no corpo. E essa tensão de coesão é contrária à tensão de
separação. As duas não podem coexistir no mesmo corpo. Se você aumentar a tensão
de separação, a tensão de coesão será superada ou perdida. Então essa tensão de
coe~são era chamada de frieza por Aristóteles ou a tensão que um corpo possui para
manter as suas partes unidas. E a tensão para a separação das partes ele chamava de
calor.
Aluno: Tudo isso é para chegar na diferença entre Espírito e alma?
Isso já nos oferece uma base para clarear a idéia de perfeição. A perfeição
de um ser ocorre com a plena perfeição dos seus modos de ser. Então, por exemplo,
nós temos vários modos de ser. Um dos nossos modos é ter vários sentimentos em
relação às coisas que nós observamos. Podemos sentir agrado, desagrado, tristeza,
alegria, apego, desapego, aversão, etc. Enquanto não vivemos plenamente a
capacidade de sentir ou ter sentimentos, não realizamos a perfeição da nossa vida
afetiva. Como a vida afetiva, assim como a atividade corpórea, está sujeita a
atividades contrárias, pois não se pode estar feliz e infeliz ao mesmo tempo, alegre e
triste com a mesma coisa ao mesmo tempo, o ser humano que nunca foi triste é
incompleto. Ele não realizou plenamente o seu ser. Existe algo do ser dele que ele
desconhece. Mas também nós temos alguns modos de ser que não são sujeitos a
contrários reais. Então, por exemplo, a inteligência. Qual é o contrário do
compreender ou do entender?
Aluno: Não entender.
Professor: Mas o não entender não é um modo de ser positivo, sendo apenas
a privação do entender [que por sua vez é um modo de ser positivo]. Mas ser úmido
não é apenas não ser seco, é [realmente] uma outra qualidade. Entretanto, não
entender é apenas não entender. Percebam que nisso o modo de ser que da
inteligência é completamente diferente da afetividade, porque sentir tristeza é tão
sentir como sentir alegria. É um sentimento tão real quanto o sentimento contrário.
Tanto é assim que existem seres e circunstâncias que merecem a nossa tristeza. A
tristeza também é um modo de perfeição. Se alguém vê [Nosso Senhor Jesus] Cristo
sendo crucificado é para sentir-se bem e achar aquilo uma maravilha? Qual é o
sentimento perfeito em relação a esse acontecimento? É a tristeza porque essa
manifesta a sua compaixão. A tristeza é a sua participação naquele sofrimento.
Existem coisas diante das quais apenas os maus ou imperfeitos alegram-se 9.
Aluno: E em relação à vontade10?
Professor: A ausência de vontade [também] é apenas uma privação, mas a
vontade também é sujeita a atos contrários porque a vontade também pode amar ou
odiar. Existem coisas que são odiosas, diante das quais a vontade própria é o ódio 11.
Depois chegaremos na vontade, mas, por enquanto, o importante é a percepção de
que existem modo de ser que estão sujeitos a qualidades contrárias e que a plenitude
desse modo de ser é alternar de uma para outra e não permanecer apenas em uma
delas.
13
Voltando ao tema dos fatores emergentes e predisponentes [N.T.].
14
Até mesmo porque o ser humano também é um animal [N.T.].
para eles, pois não realiza o que ele quer. Ele mesmo precisa intervir e realizar a sua
própria perfeição.
Qual é a outra característica comum aos animais, vegetais e humanos?
Simples: eles podem existir e não alcançar a própria perfeição.
Aluno: Podem frustrar.
Professor: Isso quer dizer que, embora eles sejam o princípio ativo da
própria perfeição, o ato da perfeição é distinto do ato de existir.
Aluno: Não basta existir para chegar à própria perfeição. A perfeição requer
algo dele mesmo [além de simplesmente existir].
A NOÇÃO DE ALMA
Resumindo: existe uma ordem de seres que não podem realizar a própria
perfeição, são os corpos [minerais]. E existe uma outra ordem de seres que podem
realizar a própria perfeição, mas esta é distinta do ato de existir. E existe uma outra
ordem de ser que possui o princípio intrínseco de se sua própria perfeição e esse
princípio é a sua própria existência. Pelo simples ato de existir, esses seres são
perfeitos. Isso é o espírito. Estes são seres espirituais. A perfeição deles está no
próprio ato de existência.
A essa ordem de ser, pertence a inteligência. Esta é um modo de ser
espiritual.
Aluno: Não tem nada a ver com a alma?
Professor: Não é bem assim. Pode haver alguma relação entre a alma e a
inteligência porque pode haver um modo de ser que combine essas duas formas de
existência.
[Aluno pergunta sobre a relação entre essa ordem de ser espiritual e o
Espírito Santo15.]
Professor: Agora estou apenas diferenciando a natureza corpórea da
natureza anímica da natureza espiritual. A primeira delas não possui força ativa para
alcançar a própria perfeição. Uma natureza anímica, por sua vez, tem força ativa
para alcançar a própria perfeição, mas a alcança por um ato distinto e posterior à sua
própria existência. Uma alma precisa existir primeiro e alcançar a sua própria
perfeição depois. E a natureza espiritual é uma coisa que é a força ativa para
alcançar a própria perfeição. Logo, para ela, existir é ser perfeita. E estamos
complementando afirmando que a inteligência é um ser desta ordem.
Aluno: É perfeita pelo fato de existir.
Professor: Como não há meio termo entre ser e nada, não há meio termo
entre conhecer e não conhecer. Todo ato de conhecer, enquanto tal, é ato de conhecer
perfeitamente. A inteligência é perfeita no seu primeiro ato de conhecer. Ela já é
perfeitamente inteligência.
[Aluno comenta sobre a relação entre Inteligência e Espírito Santo.]
Professor: Exatamente, isso quer dizer que a Inteligência é o próprio
Espírito Santo em você, em mim, nele, etc. Ela não é outra, senão o Espírito Santo.
Aluno: E a personalidade, em relação à inteligência16?
15
O Espírito Santo é o próprio Deus, na Santíssima Trindade com o Pai e o Espírito Santo [N.T.].
16
O aluno parece estar se referindo à seguinte questão: Como aquela é separada em cada um se essa é a
mesma para todos? [N.T.].
Professor: É simples: a sua alma, além da presença da inteligência, possui
várias outras coisas. Você possui várias outras coisas que lhe diferenciam das outras
pessoas: seu temperamento, seu sentimento, sua imaginação, etc.
17
Pois já se sabe, desde o começo, que o corpo é mortal.
18
Somente na medida em que a alma humana une-se a algo imortal para realizar a sua própria perfeição.
Somente na medida em que a realização da sua perfeição está vinculada a algo imortal. Somente na medida
em que realmente efetiva a sua capacidade de fazer a sua existência relacionar-se [necessariamente] com algo
imortal, o Espírito Santo ou a Inteligência, para que a sua perfeição seja realizada, como se criasse um vínculo
de dependência da alma com o Espírito. Pois somente assim poderá continuar realizando a sua perfeição
depois que as suas almas sensitiva e vegetativa estiverem desintegradas [N.T.].
19
Para a pergunta seguinte: “a alma humana é imortal?” [N.T.].
Provavelmente, uma das primeiras coisas que você perguntará depois de
morrer é: “onde está tudo?”20. E você sentirá a falta de algumas coisas que você
tinha antes. Essa falta pode ser testemunhada pela sua inteligência.
Suponha que a forma ou as qualidades distintivas da sua psique eram
proporcionadas aos corpos que você observava. Isto é, suponha que os princípios
formais das suas qualidades psíquicas estavam nos corpos. Então, por exemplo,
gosto muito de peixe. O princípio formal desse gostar muito de peixe está no próprio
peixe. A causa da existência desse prazer e desse gosto é o peixe. Ora, quando
morrer, não tenho mais peixe. O que acontece com um efeito quando a sua causa é
eliminada? Ele cessa. Então, algum tempo depois de eu estar morto, o meu gosto por
peixe desaparecerá. Inclusive a minha recordação do gosto de peixe desaparecerá
inevitavelmente.
Esta era uma característica distintiva da minha personalidade e ela irá
desaparecer. Se todas as características distintivas da minha personalidade
derivavam de formas corpóreas, todas elas desaparecerão. Sendo assim, tudo aquilo
que eu me identificava, isto é, tudo aquilo que eu chamava de “eu mesmo” e
testemunhava em mim, desaparecerá. E, mais ainda: esse processo de
desaparecimento será um processo de sofrimento porque será um processo de
desintegração da minha personalidade21.
Aluno: Será uma decadência. Esquecerei até das pessoas que amava.
Professor: Esquecerá de tudo [cujo princípio formal de integração na psique
estava vinculado apenas às suas almas sensitiva e vegetativa].
Aluno: E no final, o que sobra?
Professor: Por outro lado, suponha que exista uma outra coisa, além do
próprio peixe que eu comia, que seja a raíz formal do peixe. Do mesmo jeito que a
forma de peixe dava a forma que era testemunhada na minha afetividade, suponha
que haja outra forma que origina o próprio peixe.
20
Como corresponde, mudando a espécie de “discurso”, a vários esquemas poéticos cristãos, entre os quais o
livro “Marcelino pão e vinho” (Ed. Record, 2002) do premiado José Maria Sanchez-Silva [N.T.].
21
Isto é, será um “inferno” [N.T.].
Aluno: É o ser peixe.
Professor: Suponha que essa outra coisa seja ela mesma imutável e,
portanto, ela é um possível objeto de cognição. Logo, a minha inteligência pode
captar essa coisa. É a essência. Se a minha inteligência captá-la, todas as formas
derivadas estão incluídas na causa.
Isso é o céu! O céu é a captação da raíz formal de todas as coisas 22 por parte
das inteligências.
Aluno: A raíz formal não é Espírito?
Professor: A raíz formal é o próprio Deus. Ora, se eu captava essa raíz
formal, essa captação não diminui com a minha morte. Ela tende a aumentar com a
minha morte.
Aluno: Aumenta porque passa a captar todas as formas de ser.
Professor: Exatamente. Se a raíz formal de peixe se tornou um objeto para a
minha inteligência, depois que morrer, não estarei privado da forma do peixe e do
efeito disso na minha psique. E ainda aumentarei isso infinitamente. Cada vez que a
minha inteligência captar essa raíz formal, esta ampliará o prazer que a minha psique
tinha no peixe. E assim minha psique será imortal porque o seu objeto estará sempre
comigo. E a minha personalidade será imortal porque esse já era um traço do meu
ser ou da minha personalidade, isto é, o “gostar de peixe”.
Aluno: Esse é o estar em Deus.
Professor: Exatamente. Então, a minha personalidade, exatamente como era
nesse mundo, é simplesmente ampliada em proporções incalculáveis 23.
[Aluno pergunta sobre este princípio formal.]
Professor: Não é o gênero [no sentido lógico].
Aluno: É o “realíssimo”!
Professor: Exatamente, é aquilo que concede ao gênero a sua consistência
ontológica.
22
A qual está no próprio Deus. Conferir o “Sermão da Montanha” no Evangelho: “Buscai primeiro o Reino
de Deus e tudo mais vos será acrescentado”.
23
Como o aumento que ocorre na parábola do Evangelho em que os bens da pessoa fiel e justa eram
aumentados: da administração de cem talentos para a posse de uma cidade inteira [N.T.].
[Aluno pergunta sobre a relação entre o realíssimo e a essência.]
Professor: A palavra essência, neste contexto, pode ser usada em dois
sentidos. Por uma lado pode ser a “quididade” da coisa, isto é, a natureza à qual a
coisa percebia, como a “natureza de peixe”, por exemplo. Obviamente estas
quididades corpóreas não estarão mais presentes para mim depois da minha morte.
Mas a quididade ou o ser de qualquer ente concreto não se reduz à sua quididade e à
sua acidentalidade, mas a um ato que realiza essa quididade e essa acidentalidade
concretamente. Este ato vem do próprio Deus.
Nesse sentido, essência e realíssimo são as mesmas coisas, porque, nesse
sentido, o ser de cada coisa é uma atividade divina. Existem duas maneiras de você
fazer esse salto, em vida. Uma maneira é você se dedicar a uma vida de
contemplação, dedicando seu ser e seus gostos todos para a contemplação, o que é
extremamente difícil. Uma outra maneira é se o ser que já seja assim, que já
pertença à ordem do realíssimo, se ele já encarar uma pessoa dessa maneira [como
se esta já estivesse na ordem do realíssimo].
Seria algo muito estranho! Dessa forma, você pode não ter conquistado a
imortalidade; você pode mão ter encontrado a raíz do seu ser ou da sua
personalidade no realíssimo, mas suponha que o Cristo faça isso para você. Ele pode
sustentar a sua personalidade no realíssimo depois da morte até que você seja capaz
de fazer isso. Ele pode escolher ver em si mesmo a raíz da personalidade de alguém
e sustentá-la nEle mesmo.
Aluno: Mas Ele já não faz isso com todos, enquanto alguns se fecham a
isso?
Professor: Não, Ele não faz isso com todos! Ele mesmo disse: “nem todo
aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus”.
Aluno: Mas e aquele que diz isso [“Senhor, Senhor”] sinceramente?
Professor: Ele mesmo disse: “mas todo aquele que cumpre meus
mandamentos”, isto é, o sujeito que faz todo esforço para cumprir as condições que
Ele estabeleceu para isso, as condições para que você seja um órgão do Ser dEle.
[Neste caso], então, Ele faz isso para você.
Aluno: É uma aceitação.
Professor: É um pacto que você faz com Ele.
Aluno: E uma dedicação!
Professor: Exatamente.
Aluno: Mas não é somente o livre-arbítrio24.
Professor: Se alguém procurar a raíz disso na Bíblia, verá que se chega a
uma situação imponderável, em que não é possível pesar uma coisa em comparação
com a outra. Se alguém se perguntar de onde partiu todo esse processo de salvação,
é evidente que veio do próprio Deus. Para começar, foi Ele que causou a nossa
existência. Existe uma raíz em cada ser humano em que graça e livre arbítrio não se
diferenciam. Dessa raíz adiante é que a gente escolhe um caminho um pouco
diferente da graça.
24
O aluno refere-se à relação entre Graça divina e esforço pessoal [N.T.].
há como dizer se ela é você ou é Deus. As duas [afirmações] são descabidas. A raíz
de todo e qualquer ser é simultaneamente criador e criatura, mas a contemplação
dessa raíz é extremamente difícil.
Aluno: Por que é difícil?
[Alunos arriscam algumas hipóteses.]
Professor: É simplesmente por um efeito colateral do próprio ato criativo. O
ato criativo é [como] um ato de exteriorização. Quando você nasce está nesse
impulso de exteriorização [em relação a Deus]. É por isso mesmo que Deus não
espera que você nasça e fique sábio imediatamente. Ele sabe que não é no primeiro
dia de vida que você buscará contemplar a raíz divina de todas as coisas. Você leva
uma vida inteira para reverter esse impulso. Ou você precisará de uma série de atos
para que Ele mesmo reverta esse impulso. Para que Ele lhe guarde e esse impulso
seja revertido após a morte. É evidente que Ele não faz isso para todos, senão não
haveria o inferno, isto é, não haveria um estado depois da morte que é apenas um
estado de desintegração da personalidade.
INTELIGÊNCIA E ESPÍRITO
ESPÍRITO E IMORTALIDADE
Quando o sujeito não vai para o céu, é a sua própria Inteligência que dá
testemunho contra ele mesmo. E é Deus, como essa Inteligência, que julga essa
personalidade indigna ou incapaz de permanecer.
27
Quer dizer que posso até me achar “burro”, mas a Inteligência continua sendo o Espírito [N.T.].
28
O leitor deve perceber que o professor Luiz não está usando inteligência no sentido “usual” de habilidade
lingüística ou como capacidade em executar raciocínios lógico e matemáticos [N.T.].
[Aluno pergunta sobre esse juízo da Inteligência.]
Professor: Quando você morrer, o mundo corpóreo não estará mais diante
de você. A única coisa que estará diante de você é a sua personalidade. Para
começar, de início [após a morte], são os seus gostos, os seus desgostos, as suas
alegrias, tristezas, memórias, etc. Com o tempo, de tanto ficar observando isso, o
que acontecerá? Será como explicamos antes: se você gostava de peixe, a causa
formal29 que fazia você gostar de peixe era a forma de peixe. De duas, uma: ou você
capta o fundamento realíssimo do peixe e, portanto, do gosto do peixe e isso
perpetua o peixe, eternizando-o e tornando imortal essa componente da
personalidade, ou esta irá desaparecer. Isso quer dizer que apenas os que vão para o
Céu continuam sendo aqueles que eram.
Aluno: E, nesse sentido, quem não vai simplesmente acaba.
Professor: Como personalidade, ele acaba. Passa a ser apenas um processo
vital, psíquico, que vai se desintegrando, mas sem personalidade. Aliás,
personalidade significa justamente isso: o instrumento por meio do qual algo soa:
“per sona” (soa por). Se o que soava pela sua alma era apenas a corporalidade,
quando esta for tirada, o som será tirado, isto é, a sua personalidade se desintegrará.
Se o que soava era Espírito, continuará soando eternamente.
A SALVAÇÃO PELA FÉ
Isso quer dizer que, tecnicamente, para que tudo o que eu sou permaneça
após a minha morte, é preciso que eu compreenda tudo o que sou em Deus. Existe
uma única alternativa: pode ser que eu não consiga compreender tudo o que eu sou
em Deus, mas que eu compreenda suficientemente tudo o que Deus é para mim. Se
eu compreender suficientemente quem é o Cristo, e o sinal de que alguém
compreende é o modo pelo qual a própria vida é integrada na proposta de vida dEle,
29
No sentido das quatro causas de Aristóteles. Conferir “Metafísica” de Aristóteles. [N.T.].
isto é um elo entre a minha personalidade total e o próprio Deus. E este elo
permitirá, depois da minha morte, o resgate da minha personalidade.
É como uma troca: o que Cristo propõe a cada ser humano é:
“seja como Eu agora, antes da sua morte, porque depois da sua morte
serei como você e você reencontrará a sua personalidade olhando para mim”.
O que ele propõe é isso:
“vista-se de Cristo, que, depois da sua morte, Eu me vestirei de você e você
se reencontrará em mim”.
Aluno: O professor Olavo [de Carvalho] disse, certa vez, que a fé é como
um bônus de conhecimento.
Professor: Exatamente.
Aluno: A fé é uma posse antecipada, é um pré-conhecimento30.
Professor: Exatamente. É como se fosse um cheque de conhecimento 31.
Porque nem sempre é possível, ou melhor, raramente é possível, para um indivíduo,
compreender, como um todo, a sua personalidade em Deus. Mas, o indivíduo pode,
como um todo, entender a personalidade de Deus para si mesmo. E, então, Cristo lhe
faz uma promessa:
“Se você fizer isso [entender-me em você, durante essa vida], depois da
morte Eu farei o inverso para você [testemunhando a sua personalidade em Mim]”
Ele pode fazer isso por quê? Porque Ele é o Verbo divino 32, é o primogênito
de todas as criaturas33. Ele, o Cristo34, o Verbo Divino, é a raíz formal do ser de todas
as criaturas em Deus.
Aluno: É isso que é a salvação.
Professor: É isso.
30
Como afirmou São Paulo Apóstolo: “A fé é uma posse antecipada do que se espera, u meio de demonstrar
as realidades que não se vêem” (Epístola aos Hebreu, capítulo 11, versículo 1) [N.T.].
31
Aproveitando a analogia: a fé é como um cheque cujo valor será entregue pelo próprio Cristo [N.T.].
32
Conferir o Evangelho de São João, capítulo 1, versículo 1 em, por exemplo,
http://www.bibliacatolica.com.br/ [N.T.].
33
Conferir a Carta de São Paulo aos Colossenses (capítulo 1, versículo 15): “Ele [o Cristo] é a imagem de
Deus invisível, o Primogênito de toda a criação” [N.T.].
34
Conferir no Evangelho de São Mateus (capítulo 16, versículo 16) [N.T.].
Aluno: Isso é ensinado nas catequeses e nos seminários?
Professor: Os católicos, hoje em dia, têm, [em geral,] uma grande
ignorância sobre a própria religião. E não é de hoje! No século XIII mandaram São
Boaventura, [que foi superior franciscano], julgar a ortodoxia de um membro de sua
congregação, o frei Gil35. E ele respondeu que era esse sujeito que deveria julgar a
ortodoxia da nossa doutrina, porque não há alguém mais cristão do que ele no
mundo inteiro. Quer dizer que aqueles que o mandaram julgar a Frei Gil já não
conheciam mais a própria religião.
Aluno: São Tomás também passou por um processo assim.
35
Trata-se do Beato frei Gil de Assis (também chamado de frei Egídio), cuja memória é liturgicamente
celebrada no dia 23 de abril. “Discípulo de S. Francisco, clérigo da Primeira Ordem (+1262). Pio VI
aprovou seu culto a 04 de julho de 1777. Entre os primeiros companheiros de S. Francisco está o Beato Gil
de Assis, o qual respaldou sua petição para fazer-se Frade Menor cedendo imediatamente seu próprio manto
quando, no convento dos irmãos, chegou um pobre pedindo alguma coisa. Simples, humilde, iletrado, sabia
contudo impelir todos ao amor de Deus e proferir sentenças cheias de doutrinas. A maior parte de sua vida
caracterizou-se por peregrinações: Santiago de Compostela, Monte Gargano (Santuário de S. Miguel
Arcanjo), Terra Santa e mais tarde África. Ocupava o tempo de permanência e suas esperas forçosas
ganhando a caridade das pessoas através de suas trabalhos manuais. Fazia de tudo: carregava água,
recolhia nozes ou lenha. Nunca o encontravam ocioso, mas sempre em silêncio com Deus, com quem falava
na contemplação, única fonte de sua sabedoria cristã. Assim, veio a se tornar exemplo de vida franciscana
primitiva. Cujo claustro é o mundo. Sua ocupação era qualquer trabalho humilde e honesto e suas delícias
estar com Deus nas noites silenciosas.
No dia de S. Jorge, a 23 de abril de 1209, Gil tinha escutado a missa em Assis, indo depois à Porciúncula
para avistar-se com São Francisco. Encontrou-o saindo de um bosquezinho e se lançou a seus pés. "Que
queres?" perguntou-lhe Francisco. "Quero permanecer contigo", respondeu. Francisco o nomeou
imediatamente "cavaleiro da távola redonda" e em sua companhia partiu para Marca de Ancona. Ao longo
do caminho Frei Gil louvava a Deus e, cheio de gratidão, se prostrava por terra e beijava a erva, as flores e
as pedras. Quando S. Francisco pregava, ele permanecia extático e dizia aos demais: "Escutai-o, porque, ele
fala maravilhosamente".
Fora do tempo reservado à oração e à leitura do breviário, Gil trabalhava continuamente, e como paga
recebia somente estritamente necessário para a vida. São célebres seus ditos cheios de sabedoria religiosa e
de espírito prático. Certa vez admoestou um pregador palrador, gritando-lhe por detrás: "Blá, blá, blá, falou
muito, agiu pouco". Com freqüência sua sabedoria era bondosamente irônica, como quando um irmão disse
que havia sonhado com o inferno e que ali não tinha visto nenhum frade menor. Ao que Frei Gil lhe
respondeu: "Seguramente não baixaste até o fundo". Perante outro que falava muito sem refletir, disse:
“Penso que seria bom ter o ombro tão largo como a grulha; assim a palavra passaria por muitos de nós
antes de subir a boca!”
Frei Gil era um contemplativo, um místico que entrava em êxtase somente em ouvir mencionar o Paraíso. S.
Francisco e S. Boaventura tiveram por ele grande admiração. Mais tarde, morto S. Francisco, sua vida
transcorreu nos eremitérios da Úmbria, sobretudo no de Monterípido, onde morreu avançado em idade a 23
de abril de 1262. Perto da morte, quando as autoridades de Perusa enviaram pessoas armadas para guardá-
lo, enviou-lhes recado para assegurar-lhes que nunca os montes de Perusa teriam parte em sua canonização
nem milagre algum lhe tocaria. Chamado Beato pela voz do povo, a Igreja confirmou seu culto por meio de
Pio VI a 04 de julho de 1777”(In http://www.ffb.org.br/index.php?pg=santosfranciscanos-abril#23) [N.T.].
Professor: Sim. E São Boaventura também passou pelo mesmo processo 36.
A história dessa ignorância não é de hoje37.
36
O professor Luiz desenvolveu mais esse tema na palestra “A Universidade de Paris no século XII” realizada
na Aliança Francesa em outubro de 2006 [N.T.].
37
Há livros sobre a história do conhecimento humano, como livros de história da ciência e da filosofia, mas
talvez se poderia fazer também um livro sobre a história da ignorância humana [N.T.].
38
Conferir “Confissões” de Santo Agostinho [N.T.].
39
Como deveria fazer um filósofo ou um cientista [N.T.].
Professor: Quando Platão e Aristóteles falavam da teoria, falavam das duas
coisas ao mesmo tempo [especulação e contemplação], mas, na prática, podiam
ensinar aos alunos [apenas] a especulação e dar algumas indicações quanto à
contemplação. E o que aconteceu? No decorrer das gerações do ensino da Academia
e do Liceu40, o número de pessoas que contemplavam foi diminuindo em relação ao
número de pessoas que apenas contemplavam.
[Aluno pergunta sobre a impossibilidade de ensinar a contemplação.]
Professor: Trata-se de uma impossibilidade intrínseca. Não dá para
transmitir o conteúdo da contemplação. O sujeito que contempla pode, no máximo,
oferecer algumas indicações sobre como se deve eliminar na própria vida os
obstáculos da própria contemplação, mas a especulação pode ser transmitida.
Por quê? Simples, porque a inteligência humana é transcendente em relação
aos objetos que ela contempla e que pertencem à ordem do real. A inteligência
humana é mais do que qualquer ciência que ela possa obter sobre as coisas naturais.
A esfera dos conhecimentos naturais está sob domínio da inteligência humana, mas
o realíssimo não. Ela não é transcendente em relação ao realíssimo. Ela é que está
sob domínio do realíssimo. Como se diz, não se pode “prender” o conteúdo do
realíssimo e comunicá-lo a outro. Mas a inteligência humana pode fazer isso em
relação à especulação, isto é, em relação ao conhecimento das coisas naturais.
Por isso que, em qualquer cadeia de ensinamento humano, no decorrer das
gerações do ensinamento, o elemento contemplativo diminuirá, mas o especulativo
permanecerá o mesmo ou até se ampliar. Assim, no decorrer das gerações, tanto no
Liceu de Aristóteles, como na Academia de Platão, que os sujeitos ali estão apenas
voltados para a atividade especulativa, deixando de lado a vida contemplativa.
Entretanto, as duas atividades possuíam o mesmo nome: “bios theorétikos”.
E é esta vida “teorética”41 reduzida a uma especulação sem contemplação que Santo
Agostinho recusava por não ser suficiente. Ele percebeu que entre os filósofos
gregos não havia especulação, a qual ele conseguiu encontrar entre os cristãos. No
40
As escolas iniciadas por Platão e Aristóteles, respectivamente [N.T.].
41
Chamada, às vezes, indistintamente de vida especulativa ou contemplativa [N.T.].
cristianismo, Santo Agostinho encontrou pessoas que contemplavam, como Santo
Ambrósio. Então, esta contemplação [cristã] reiluminou a especulação grega que
havia sobrado historicamente para que seu conteúdo contemplativo fosse
reencontrado42. Mas, mesmo no cristianismo, demorou-se séculos para definir esses
dois campos de atividade da inteligência e usar termos adequados para distinguir um
do outro.
[Aluno volta a comentar sobre Santo Agostinho.]
Professor: Santo Agostinho descobriu que a vida especulativa não era
suficiente. Por exemplo: a vida especulativa permitiria compreender todas as
estruturas formais do bolo, mas isso lhe daria o gosto do bolo na boca?
Aluno: Não.
Professor: Mas a contemplação do bolo no realíssimo lhe dá, mais do que o
próprio bolo.
Aluno: Ela [a contemplação no realíssimo] faz o bolo novamente?
Professor: Ela vai além.
Porfessor: Por que existe a tensão no ser humano entre a vida contemplativa
e a vida sensitiva? Todo ser possui simultaneamente três aspectos. Todo ente é:
a) por um lado, uma atividade divina, que é a sua raíz no realíssimo; cada
ente é o realíssimo enquanto atividade.
b) Ao mesmo tempo, ele é uma quididade, isto é, uma forma específica que
você pode compreender.
c) E, ao mesmo tempo, ele é um conjunto de acidentes particularizantes
dessa quididade.
42
Nesse sentido, é preciso buscar ao ler as “especulações” de um filósofo, refazer as experiências cognitivas
(ou “contemplativas”) que ele teve para redigir aquilo. Este procedimento lembra a noção de “origem” em
Husserl, que elaborou um método filosófico para buscar as experiências originais dos conceitos filosóficos e
científicos [N.T.].
A quididade e o conjunto de acidentes são como duas imagens diferenciadas
na raíz do realíssimo. A quididade reflete um aspecto da raíz no realíssimo e os
acidentes refletem outro, mas a quididade ou a acidentalidade, por si mesmas, não
conseguem reproduzir esses dois aspectos. Como você é capaz de assimilação dos
dois, a mera assimilação de um deles não fará efeito. Por isso que não adianta se
dedicar apenas à aquisição de ciências, porque estas são ciências de quididades. Elas
satisfazem apenas um aspecto do seu ser. Também não adianta se dedicar apenas à
vida sensível.
Entretanto, o uso de termos distintos para os dos sentidos de “teoria”, como
contemplação que é a “teoria do realíssimo” e especulação que é a “teoria do real”, é
muito posterior a Santo Agostinho. Começa-se a perceber a necessidade desta
distinção pela própria experiência de Santo Agostinho. Por que Sócrates, Platão e
Aristóteles falavam que a “vida teorética 43” era tudo e Santo Agostinho dizia que era
nada? Simples, porque eles usavam a mesma palavra para realidades diferentes. Não
estavam tratando da mesma “vida teorética”.
Uma coisa é entender o que é mesa. Outra coisa ainda é apreciar as
qualidades particulares de uma mesa. Outra coisa ainda é entender a raíz dessa
unidade em Deus. Apreciar as qualidades particulares da mesa é vida sensitiva.
Compreender o que é mesa é vida especulativa. Captar ou entender a raíz dessa
mesa em Deus é vida contemplativa. É evidente que a vida especulativa nunca será
suficiente para a perfeição humana. Por isso que Cristo não mandou que todos
sentassem e ficassem estudando durante o tempo todo. Isso não adiantaria nada.
Aluno: É isso que ser quer dizer com a frase “A fé sem obras é morta”?
Professor: Refere-se à mesma dicotomia, mas não é exatamente a mesma
coisa, porque a fé é como uma imagem da salvação. Do mesmo jeito que a
quididade e a acidentalidade são imagens da raíz no realíssimo, a fé é uma imagem
da Salvação que mostra apenas metade da salvação. E as obras formam outra
imagem que mostram a outra metade. Com a fé e as obras é como se você realizasse
43
“Bios theorétikos”.
uma imagem suficiente ou integral da salvação, isto é, do próprio Cristo. E a
proposta do Cristo é justamente essa:
“realize uma imagem suficiente do que EU SOU e Eu realizarei, após a
morte, uma imagem suficiente do que você é. E Eu manterei essa imagem no real
até que você a compreenda. E, assim, você se imortalizará.”
[Aluno avisam sobre o final da aula.]
44
Alguns chegam a se revoltar até mesmo contra o real, como os desconstrucionistas: “A desconstrução parte
da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada
palavra é a diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques
Derrida, joga essa premissa contra as pretensões científicas da própria lingüística, ao concluir daí que, se a
língua é um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado” externo.
Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema.
Não tem nada a ver com “realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é
constituído de “textos” ou “discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses
discursos possam ser aferidos, não tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe
representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.
Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é
representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”. Mas isso não quer dizer que por trás do
discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é ela
própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu
também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”. Se a língua estava
totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora
separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a “différance”, com “a”, termo
criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo
sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho
medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela mistura de
pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar,
preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer
que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual
você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca
presente a si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do
sujeito pela diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que
disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência.
Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma
ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa
ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto
a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o
poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da
verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a liberdade consiste em negar a verdade,
afirmando, com isso, o próprio poder.” (Olavo de Carvalho, O sucesso do fracasso, Diário do Comércio, 27
de novembro de 2006) [N.T.].
45
A pessoa não se inclui no próprio juízo sobre o conjunto da realidade, isto é, enquanto fala e especula s
exclui da própria realidade [N.T.].
46
Essa frase parece se remeter a C.S. Lewis [N.T.].
Professor: Porque a sua inteligência pode contemplar o realíssimo, mas não
pode esgotá-lo.
Aluno: Não pega tudo nunca.
Professor: O elemento do mistério sempre estará lá.
Aluno: Exceto aqueles que achavam que possuíam todo o conhecimento
como Nietzsche, Marx, Hegel, Gramsci, etc.
Professor: Acabou.