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CUR DEUS HOMO

POR QUE DEUS SE FEZ HOMEM?

Tradução1 de Beatriz de Almeida Moura Guimarães Gonçalves2

PREFÁCIO

A primeira parte deste livro foi copiada sem meu conhecimento, antes que o
trabalho houvesse sido completado e revisado. Portanto, fui obrigado a terminá-lo da
melhor forma possível, mais apressadamente e mais brevemente do que desejava.
Pois se me tivessem permitido um período tranquilo e adequado para publicá-lo,
haveria introduzido e subordinado muitas das coisas que mantive em silêncio. Pois
fui sofrendo uma grande angustia de coração, cuja origem e razão foram conhecidas
por Deus, que, a pedido de outros, comecei o livro na Inglaterra, e o terminei quando
era um exilado na Cápua, Itália. De acordo com o tema referente ao que chamei de
Cur Deus Homo ou “Por que Deus se fez homem?”, eu o dividi em dois livros curtos.
O primeiro contém as objeções dos incrédulos, que desprezam a fé cristã porque a
consideram contrária a razão; e, por fim, deixando Cristo fora de vista (como se nada
soubessem dele) e também a resposta dos crédulos. Este livro demonstra, por razões
absolutas, a impossibilidade de que qualquer homem se salve sem ele. Novamente, no
segundo livro, como se nada soubesse de Cristo, se demonstra ainda por um claro
raciocínio que a natureza humana foi ordenada para este propósito, quer dizer, que
cada homem deve gozar de uma feliz imortalidade, tanto no corpo como na alma. Era
necessário que este projeto para o qual o homem foi criado, fosse cumprido; mas não
poderia ser realizado ao menos que Deus se fizesse homem, e ao menos que todas as
coisas tivessem lugar em relação à Cristo. Peço a todos os que querem copiar este

1
Tradução livre (es-ES - pt-BR), iniciada em 2022 e finalizada em 2023, pautada na respectiva versão:
https://www.amazon.com.br/Deus-Homo-%C2%BFPor-Dios-hombre-ebook/dp/B01MTSVUEW/ref=
sr_1_3?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=X0RCF5MOKNL5&dib=
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09578773&sprefix=cur+deus+homo%2Caps%2C244&sr=8-3.
2
Graduanda em Teologia pela FABAPAR. E-mail: beatrizamggoncalves@gmail.com. Brasil.
livro que prefixem este breve prefácio, com todos os títulos dos capítulos de toda a
obra, no início do texto. De modo que, em qualquer mão que possa cair, ao olhar no
rosto, por assim dizer, que nada possa, em todo o corpo da obra, escapar sua atenção.

PRIMEIRO LIVRO

CAPÍTULO I. O problema central sobre o qual descansa toda a obra.

É frequente e intensamente solicitado por muitos, tanto a nível pessoal quanto


por carta, que devia entregar por escrito as provas de uma certa doutrina da fé, as
quais estou acostumado a dar aos que me as perguntam; porque dizem que estas
provas os deixam gratos, e as consideram suficientes. Perguntam, não por uma
questão de alcançar a fé por meio da razão, mas, sim, porque se alegram pela
compreensão e meditação das coisas que creem; e que, na medida do possível,
possam estar sempre prontos para dar resposta a qualquer que os exija uma razão da
esperança que está em nós. Os incrédulos habitualmente trazem esta questão como
uma objeção contra nós, ridicularizando a simplicidade cristã como absurda; igual
aos muitos crentes que refletem em seus corações este mesmo problema. Quero dizer
qual é o problema: por qual causa ou necessidade, na verdade, Deus se fez homem, e
por sua própria morte, que cremos e afirmamos, restaurou a vida no mundo; quando
poderia ter feito isto, por meio de algum outro ser, angelical ou humano, ou
simplesmente por sua vontade. Não só os eruditos, mas também muitas pessoas
iletradas se interessam por esta investigação e buscam sua solução. Portanto, já que
muitos desejam considerar este tema, e, ainda que pareça muito difícil sua
investigação, sem embargo, a solução é clara para todos, e é recomendável pela
utilidade e pela beleza do raciocínio. Por conseguinte, apesar do que os Santos Padres
disseram sobre este problema ou que julgaram conveniente, não obstante, o que Deus
se digna em me revelar sobre este tema me aventurarei a mostrar aos que o
investigam. E já que as investigações que se levam por perguntas e respostas se fazem
mais claras para muitos, e especialmente às mentes menos rápidas. Entre os que mais
me impulsionaram a atender esta petição, por haver sido o mais insistente,
tomá-lo-ei por parceiro disputante, de forma que Boso perguntará e Anselmo
responderá.
CAPÍTULO II. Como devem ser interpretadas as coisas que serão ditas.

Boso. Como a ordem correta nos exige crer nas coisas profundas da fé cristã
antes de nos comprometer em discuti-las pela razão; o que ao meu juízo parece uma
negligência se, depois de estar confirmados na fé, não buscamos entender o que
cremos. Portanto, visto que considero assim sustentar a fé de nossa redenção, pela
graça proveniente de Deus, de modo que, ainda quando eu não podia de maneira
alguma entender o que creio, nada poderia abalar minha firmeza na fé. Desejo que
descubras o que, como sabes, muitos, ainda me perguntam, para quê necessidade e
causa, Deus, que é onipotente, haveria assumido a pequenez e a debilidade da
natureza humana em favor de sua renovação?
Anselmo. Perguntas-me uma coisa que está acima de mim, e portanto temo
pegar temas elevados demais para mim, sobretudo, quando alguém pode pensar ou
inclusive ver que minha resposta não é satisfatória, acreditará que me apartei da
verdadeira doutrina antes de pensar que meu intelecto não é suficientemente
poderoso para compreender esta verdade.
Boso. Não deves temer tanto isto, porque deves lembrar, por outro lado, que
frequentemente assim ocorre na discussão de alguma pergunta que Deus revela o que
antes ocultava. Além disso, deveis esperar a graça de Deus, porque se generosamente
dá as coisas que haveis recebido livremente, sereis digno de receber coisas superiores
as que ainda não havia alcançado.
Anselmo. Há também outra coisa pela qual creio que este tema dificilmente
pode ser discutido entre nós de maneira exaustiva; ou escassamente. Já que para ele
precisa de um conhecimento de Poder e Necessidade e Vontade e certos outros temas
tão relacionados entre si que nenhum deles pode ser examinado completamente sem
o resto. E, portanto, a discussão destes temas requer um trabalho separado, que,
ainda que não muito fácil, em minha opinião, não é de modo algum inútil. Porque a
ignorância destes temas faz que certas coisas difíceis, sejam fáceis pelo conhecimento
delas.
Boso. Podes falar brevemente em relação às noções que se tornam relevantes,
de maneira que ambos tenham o conhecimento necessário para o presente trabalho, e
o que deixar de ser dito, propomos para outra hora.
Anselmo. Estou um pouco relutante ao seu pedido, não só porque o tema é
importante, senão que trata d’Ele, que é bonito acima dos filhos dos homens (Sl 45:3;
Sl 44:3) assim é de uma sabedoria justa acima do intelecto dos homens. Por esta
razão, temo que, como me acostumei a me irritar com os artistas desgraçados,
quando vejo ao nosso Senhor pintado em uma figura indecorosa; assim também pode
ocorrer comigo (que provoque indignação) se me comprometo a explorar um tema
tão rico em uma dicção áspera e vulgar.
Boso. Este medo não deve te dissuadir, porque, ao permitir que alguém que
fale melhor, assim o faça, pelo que não impedes que ninguém, que não goste do teu
discurso, escreva-o mais elegantemente se tua linguagem não lhe satisfaz. Mas, para
isentar todas as suas desculpas, o que te pergunto, não o escreverás para o erudito,
mas para mim e para os que pedem o mesmo comigo.
Anselmo. Visto que observo tua seriedade e a daqueles que desejam uma
solução contigo, por amor e zelo piedoso, tratarei com o melhor da minha
capacidade, com a ajuda de Deus e tuas orações, as quais, não são tanto para exibir a
solução como para encontrá-la contigo. Mas desejo que tudo o que eu diga seja
recebido com este entendimento: que se eu disse algo que a autoridade superior não
corrobore, ainda que pareça racional, não se receberá com mais confiança, que como
assim parecendo comigo no tempo presente, até que Deus de alguma maneira me
faça uma revelação mais clara. Mas se em alguma medida estou em condições de
responder tua pergunta, é certeza que é o caso de que um mais sábio que eu possa te
dar uma resposta mais satisfatória. Devemos entender que tudo o que um homem
possa dizer ou conhecer sobre este tema, um raciocínio mais profundo sobre uma
doutrina tão importante ainda permanecerá oculta.
Boso. Permita-me, portanto, fazer uso das palavras dos incrédulos. Pois é
próprio de nós, quando tratamos de investigar a razoabilidade da nossa fé, propor as
objeções daqueles que não estão dispostos a submeter a nossa fé sem o apoio da
razão. Pois ainda que apelem para a razão porque não creem, mas nós, por outro
lado, porque cremos; sem embargo, a coisa procurada é uma e a mesma. E se você
gera alguma réplica ao que a Autoridade Sagrada parece se opor, permita-me te expor
a Autoridade para que possas revelar que esta inconsistência não existe.
Anselmo. Fala de acordo com o teu gosto.

CAPÍTULO III. Objeções dos incrédulos e respostas dos crédulos.


Boso. Os incrédulos que ridicularizam nossa simplicidade nos acusam de que
fazemos injustiça e desonramos a Deus quando afirmamos que descendeu do ventre
de uma virgem, que nasceu de mulher, que cresceu com o alimento do leite e com a
comida dos homens; e, passando sobre muitas outras coisas que parecem
incompatíveis com a Deidade, sofreu fadiga, fome, sede, flagelação, crucificação e
morte entre os ladrões.
Anselmo. Não fazemos injustiça nem desonra a Deus, senão que lhe
agradecemos de todo coração, louvando e proclamando a inefável altura de sua
compaixão. Por mais assombroso e mais além da expectativa, nos restabeleceu – de
tão grande e merecidos males nos que estávamos –, as bênçãos tão grandes e
imerecidas que havíamos perdido; tanto mais demonstrou seu mais excessivo amor e
ternura por nós. Pois se os incrédulos consideraram cuidadosamente quão
adequadamente a restauração da natureza humana foi obtida nesta maneira, não
ridicularizam nossa simplicidade, senão que se uniriam a nós para louvar a sábia
beneficência de Deus. Porque, como a morte veio sobre o gênero humano pela
desobediência do homem, era apropriado que pela obediência do homem (Rm 5:19) a
vida fosse restaurada. E como o pecado, por causa da nossa condenação, teve sua
origem em uma mulher, assim deve nascer o autor da nossa justiça e salvação de uma
mulher. E assim também era apropriado que o diabo, que sendo tentador do homem,
houvesse o conquistado ao comer da árvore, fosse vencido pelo homem no sofrimento
da árvore que o homem carregava. Muitas outras coisas também, se as examinarmos
cuidadosamente, dão uma beleza indescritível a nossa redenção adquirida assim.

CAPÍTULO IV. Como estas coisas não parecem decisivas para os


incrédulos, e meramente como pinturas, por assim dizer.

Boso. Estas coisas devem ser admitidas como bonitas, e por assim dizer, como
pinturas. Entretanto se não tem fundamento sólido, não parecem suficientes para os
crédulos, como razões pelas quais devemos crer que Deus quis sofrer as coisas das
que falamos. Porque quando um deseja fazer uma imagem, seleciona algo substancial
para pintá-la, de modo que sua imagem possa permanecer. Ninguém pinta na água
ou no ar, porque não ficam restos da imagem neles. Portanto, quando exibimos aos
incrédulos estas proporções harmoniosas das que falas como de pinturas de um
evento real, já que não creem que esta nossa crença seja uma realidade, senão só uma
ficção, nos consideram, por assim dizer, como estar pintando sobre uma nuvem.
Portanto, a existência racional da verdade primeiro se demonstra, quer dizer, a
necessidade, que Deus deveria ou poderia haver condescendido às coisas que
afirmamos. Depois, para fazer que o corpo da verdade, por assim dizer, resplandeça
mais claramente, devem descrever estas proporções harmoniosas, como imagens do
corpo.
Anselmo. Acaso a razão pela qual Deus fez as coisas das quais falamos não
parece congruente? Em outras palavras, a raça humana – sua preciosa obra –, estava
completamente arruinada, e que não era aparente que o plano de Deus fosse
desbaratado; e, ademais, que este plano não poderia ser realizado a menos que a raça
humana fosse liberada por seu mesmo Criador?

CAPÍTULO V. Como a redenção do homem não podia ser efetuada por


nenhum outro ser senão Deus.

Boso. Se se dissera que esta liberação havia sido efetuada de algum modo por
qualquer outro ser que não fosse Deus (seja um ser angelical ou um ser humano), a
mente do homem o veria de forma mais tolerável. Porque Deus pode haver feito um
homem sem pecado, não de uma substância pecaminosa, e não descendente de
nenhum homem, como fez a Adão, e por este homem parece que a obra da que
falamos poderia haver sido cumprida.
Anselmo. Não percebes que, se algum outro ser resgatara o homem da morte
eterna, o homem seria justamente considerado como o servo desse ser? Pois bem, se
assim fosse, não voltaria a ser restaurado a essa dignidade que havia sido sua se
nunca houvesse pecado. Porque ele, que ia ser pela eternidade só o servo de Deus e
um igual com os santos anjos (Lc 20:36), agora seria o servo de um ser que não era
Deus, e que os anjos não serviriam.

CAPÍTULO VI. Como os incrédulos nos criticam por nosso dogma de que
Deus nos redimiu por sua morte, e assim mostrou seu amor por nós,
vencendo o diabo por nós.

Boso. Isto lhes surpreende muito, porque chamamos a esta redenção de


liberação. Pois perguntam: “Em que cativeiro ou encarceramento, ou sob qual poder
estavas submetidos, que Deus não poderia te livrar dele, sem comprar tua redenção
por tantos sofrimentos e finalmente por seu próprio sangue? E quando dizemos que
nos liberou de nossos pecados, de sua própria ira, do inferno e do poder do diabo, ao
que veio vencer por nós, porque não pudemos fazê-lo, e que ele comprou para nós o
Reino dos Céus; e que, fazendo todas estas coisas, manifestou a grandeza de seu amor
para com nós.
Eles respondem: Se dizes que Deus, que crês que criou o universo com uma
palavra, não poderia fazer todas estas coisas com um simples mandamento,
contradizes a ti mesmo, porque o faz impotente. Ou, se concedes que estas coisas
poderiam ser feitas de outra maneira, mas não desejou, como podes vindicar sua
sabedoria, quando afirmas que ele desejou, sem nenhuma razão, sofrer coisas tão
impróprias? Porque todas estas coisas que expões são regidas por sua vontade.
Porque a ira de Deus não é mais que seu desejo de castigar. Se, pois, não deseja
castigar os pecados dos homens, o homem está livre de seus pecados, da ira de
Deus, do inferno, do poder do diabo, todas estas coisas a sofre pelo pecado. E, o que
havia perdido por causa destes pecados, agora recupera. Porque, quem tem o poder
sobre o inferno ou o diabo? E de quem é o Reino dos Céus, se não é d’Ele, criador de
todas as coisas? Consequentemente, todas as coisas que temem ou esperam, todas
estão sujeitas a sua vontade, a que nada pode se opor. Se, portanto, Deus não estava
disposto a salvar a raça humana de outra maneira do que a mencionada, quando
poderia ter sido feito por sua simples vontade, observem, por dizer menos, como
menosprezaríamos a sabedoria. Pois se um homem sem motivo fez, por meio de um
trabalho duro, algo que poderia ter sido feito de uma maneira mais fácil, ninguém o
consideraria um homem sábio. Enquanto a sua declaração de que Deus demonstrou
desta maneira o quanto nos amou, não tem argumento para apoiar isto, a menos
que se demonstre que Ele não poderia ter salvo o homem de outra maneira. Porque
se não pudesse fazê-lo de outra forma, era necessário que manifestasse seu amor
desta maneira. Mas agora, como poderia ter salvo o homem de maneira diferente,
por quê é que, pelo bem de mostrar seu amor, faz e sofre as coisas que enumeras?
Porque não mostra aos anjos bons quanto os ama, ainda que não padeça tais coisas
por eles? Enquanto ao que disse que sua vinda para vencer o diabo o fez em teu
nome, com que sentido te atreves alegar isto? Não é a Trindade de Deus onipotente
em todas as partes? Como é, pois, que Deus teve de descer do céu para vencer o
diabo? Estas são as objeções com as quais os incrédulos creem que podem nos
confrontar.

CAPÍTULO VII. O diabo não tinha justa pretensão contra o homem; e


porquê parecia que tinha, e porquê Deus liberou o homem desta
maneira.

Boso. Por outro lado, normalmente utilizamos a seguinte reivindicação:


A fim de salvar os homens, Deus esteve obrigado, por assim dizer, para com o
diabo em termos de justiça, para que, quando o diabo matasse Àquele ser, que é
Deus e nele não há nada digno de morte, o Diabo perdera com justiça seu poder
sobre os pecadores. E que, se não foi assim, Deus haveria usado a força indevida
contra o diabo, já que o diabo tinha uma propriedade legítima sobre o homem,
porque o diabo não havia tomado o homem violentamente, mas o homem se rendeu
livremente a ele.
Mas não vejo a força desta reivindicação. É verdade que isto poderia muito
bem dizer, se o diabo ou o homem pertenceram a qualquer outro ser que de Deus, ou
estiveram no poder de qualquer exceto Deus. Mas já que nem o diabo nem o homem
pertencem a ninguém mais que a Deus, tampouco podem existir sem o exercício do
poder divino, que ação Deus deve ter realizado com sua própria criatura ou o que
devia fazer senão castigar ao seu Serviente, que havia seduzido seu fiel companheiro
de serviço a abandonar seu Senhor comum e se apoderar dele; e quem como um
traidor, havia recebido um fugitivo; e como um ladrão, havia recebido outro ladrão,
junto com o que havia roubado de seu Senhor? Ambos eram ladrões de seu Senhor,
pois pelas persuasões de um, o outro roubou a seu Senhor. O que poderia ser mais
justo para Deus que fazer isto? Ou, se Deus, o juiz de todos, arrebata o homem deste
modo, fora do poder de quem o sustêm tão injustamente, seja com o propósito de
castigá-lo de alguma outra maneira que por meio do diabo, ou para poupá-lo da
punição, que injustiça haveria nisto? Porque, ainda que o homem merecia ser
atormentado pelo diabo, o diabo o atormentava injustamente. Porque o homem
merecia o castigo, e não havia outro modo mais adequado para ele ser castigado do
que por aquele ser que havia dado seu consentimento ao pecado. Mas a imposição do
castigo não era nada meritória ao diabo. Por outro lado, era ainda mais injusto isto,
porque a justiça não foi trazida a ele por amor, senão impulsionado por um impulso
malicioso. Porque não o fez por ordenança de Deus, mas a inconcebível sabedoria de
Deus, que controla felizmente, inclusive a maldade, permitiu-o.
E, em minha opinião, os que pensam que o diabo tinha direito de possuir o
homem, são levados a esta crença pela seguinte consideração: veem que o homem
está justamente exposto ao tormento do diabo, e que Deus justamente o permite; e
portanto, supõe que o diabo inflige com razão. Pois o mesmo, desde pontos de vista
opostos, às vezes, uma coisa é só justa ou injusta, e portanto, aqueles que não
inspecionam cuidadosamente o assunto, consideram completamente justo ou
completamente injusto. Suponhamos, por exemplo, que a gente golpeia injustamente
uma pessoa inocente e, portanto, merece ser derrotado; se, sem embargo, o que foi
golpeado, ainda que não deve vingar-se, golpeia a pessoa que o golpeou, então o faz
injustamente. E, portanto, esta violência por parte do homem que devolve o golpe é
injusta, porque não deve se vingar. Mas no que se refere ao que recebeu o golpe, é
justo, porque desde que deu um golpe injustamente, merece justamente recebê-lo em
troca. Portanto, partindo de pontos de vista opostos, a mesma ação é justa e injusta,
porque pode ser que uma pessoa a considere só justa e outra só injusta. Assim
também se diz que o diabo atormenta aos homens com justiça, porque Deus na
justiça o permite, e o homem na justiça o sofre. Mas quando se diz que o homem
padece com justiça, não se entende que seu justo sofrimento é infligido pela mão da
mesma justiça, senão que é castigado pelo justo juízo de Deus.
Porém, suponhamos que as escritas de dívidas da qual o Apóstolo declara (Cl
2:14) foi feita contra nós, e cancelada pela morte de Cristo; é aludida. E se alguém
pensa que pelas escritas de dívidas o Apóstolo queria dizer que o diabo, como se
estivesse escrevendo uma espécie de pacto, exigira justamente o pecado e o castigo do
pecado, antes que Cristo sofrera, como uma dívida pelo primeiro pecado com o que
tentou ao homem, de modo que desta maneira parece provar seu direito sobre o
homem, não penso de maneira alguma que se pode entender assim. Pois esta escrita
não é do diabo, porque se chama “escrita de dívida”, mas de Deus. Pois pelo justo
juízo de Deus foi decretada, e confirmado por escrito, que, desde que o homem havia
pecado, não tinha o poder de evitar o pecado ou castigo do pecado. Porque o homem
é “um sopro que se vai e não volta mais” (Sl 78:39 e Sl 77) (est enim spiritus vadens
et non rediens); E o “que peca é escravo do pecado” (Jo 8:34). O que peca não deve
escapar com impunidade, ao menos que a misericórdia perdoe ao pecador, e o libere
e restaure. Portanto, não devemos crer que, por causa desta escrita, pode-se achar
alguma justiça por parte do diabo para atormentar ao homem.
Por fim, como nunca há injustiça em um anjo bom, assim em um anjo malvado
não pode haver justiça absoluta. Portanto, não há nenhuma razão, pelo qual respeitar
o diabo, pelo qual Deus não deve fazer uso do seu próprio poder contra ele para a
liberação do homem.

CAPÍTULO VIII. Como, ainda que os atos da condescendência de Cristo


dos que falamos, não pertencem a sua divindade, parece ainda impróprio
aos incrédulos que se diga estas coisas dele como um homem. E porquê
lhes parece que este homem não sofreu a morte por sua própria vontade.

Anselmo. A vontade de Deus deve ser uma razão suficiente para nós, quando
faz algo, ainda que não possamos ver o porquê faz. Porque a vontade de Deus nunca é
irracional.
Boso. Isso é muito certo, se se concede que Deus deseja a coisa em questão.
Mas muitos nunca permitiram que Deus deseje algo se não é coerente com a razão.
Anselmo. O que encontramos inconsistente com a razão, em nossa confissão
de que Deus desejava as coisas que constituem nossa crença a respeito da sua
encarnação?
Boso. Isto resumidamente é: que o Altíssimo se abaixe às coisas tão humildes,
que o Todo-Poderoso faça algo com tanto trabalho.
Anselmo. Os que falam assim não entendem nossa crença. Pois afirmamos
que a natureza Divina é indubitavelmente impassível, e que Deus não pode ser
derrubado da sua exaltação, nem trabalhando em qualquer coisa que queira fazer.
Mas dizemos que o Senhor Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, uma
pessoa em duas naturezas, e duas naturezas em uma só pessoa. Quando, portanto,
falamos de Deus como suportando qualquer humilhação ou enfermidade, não nos
referimos a majestade dessa natureza, que não pode sofrer; senão a debilidade da
constituição humana que assumiu. E assim não fica motivo de objeção contra nossa
fé. Porque desta maneira não pretendemos degradar a natureza Divina, senão que
ensinamos que uma pessoa é Divina e humana. Na encarnação de Deus não há
diminuição da Deidade; senão que a exaltação da natureza humana.
Boso. Que assim seja; não se faça referência à natureza divina, que se fala de
Cristo segundo o modo da fraqueza humana. Mas como jamais será uma coisa justa
ou razoável que Deus trate ou sofra ser tratado de tal maneira, aquele homem ao que
o Pai chamou seu Filho amado em quem Ele se agradava, (Mt 3:17) e homem por
quem Filho se fez? Porque que justiça há em sua morte sofrendo pelo pecador, sendo
o mais justo de todos os homens? Que homem, condena o inocente para libertar o
culpado, não seria julgado digno de condenação? E assim a matéria parece voltar à
mesma incongruência mencionada acima. Porque se não podia salvar aos pecadores
de outra maneira que condenando ao justo, onde está sua onipotência? Se, sem
embargo, ele podia, mas não queria, como podemos manter sua sabedoria e justiça?
Anselmo. Deus Pai não tentou a esse homem como pareces supor, nem matar
os inocentes pelos culpados. Porque o Pai não o obrigou a sofrer a morte, nem sequer
a permitir que fosse morto, contra sua vontade, senão que por sua própria conta
suportou a morte para a salvação dos homens.
Boso. Ainda que não estava contra sua vontade, estava de acordo com a
vontade do Pai; sem embargo, o Pai parece empatá-lo, por assim dizer, por sua
ordenança. Porque se diz que Cristo “se humilhou a si mesmo, sendo obediente ao Pai
até a morte, e morte de cruz, pela qual Deus também o exaltou” (Fl 2:8-9). E que
“aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5:8); e que “seu Pai não perdoou
a seu próprio Filho, senão que o entregou por todos nós” (Rm 8:32). E também o
Filho diz: “Não vim fazer a minha vontade, senão a vontade daquele que me enviou”
(Jo 6:38). E quando está a ponto de ser crucificado, diz: “Como o Pai mandou, assim
o faço” (Jo 14:31). Outra vez: “Não beberei do cálice que o Pai me deu?” (Jo 18:11). E,
em outra ocasião: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice” (Mt 26:39). E outra
vez: “Pai, se não for possível afastar este cálice, sem que eu o beba, faça a tua
vontade” (Mt 26:42). Em todas estas passagens parece que Cristo sofreu a morte por
obediência do que pela inclinação de sua própria vontade.

CAPÍTULO IX. Morreu por sua própria vontade, e o que isto significa: “se
fez obediente até a morte”, “pelo qual Deus o exaltou”, “não vim fazer
minha própria vontade”, “não perdoou a seu próprio Filho”; e: “não
como eu quero, senão como tu”.
Anselmo. Parece-me que não entendes bem a diferença entre (1) o que ele fez
porque a obediência requeria e (2) o que sofreu, não exigido pela obediência, senão
infligido a ele, porque manteve sua obediência perfeita.
Boso. Necessito que explique com mais clareza.
Anselmo. Por que os judeus o perseguiram até a morte?
Boso. Por nenhuma razão maior que manter, inquebrantavelmente, a justiça e
a verdade, em toda sua vida e obras.
Anselmo. Creio que Deus exige isto de todo ser racional, e todo ser deve isto
em obediência a Deus.
Boso. Devemos reconhecer isto.
Anselmo. Esse homem, portanto, devia esta obediência a Deus o Pai, sua
humanidade era devida à sua Deidade; e o Pai a reivindicou dele.
Boso. Não há dúvida disto.
Anselmo. Agora você vê o que ele fez, já que a obediência o requeria.
Boso. Muito verdadeiro, e vejo também que punição suportou, porque se
manteve firme na obediência. Porque a morte lhe foi infligida por sua perseverança
na obediência e a suportou; mas não entendo como é que a obediência exigia isto.
Anselmo. Deveria o homem sofrer a morte, se nunca tivesse pecado, ou Deus
deve exigir isto dele?
Boso. É por isto que cremos que o homem estava sujeito a morte, e que Deus
não exigiu isto dele; mas eu gostaria de escutar a razão desta crença.
Anselmo. Reconheces que a criatura inteligente foi criada justa, e com o
propósito de ser feliz no gozo de Deus.
Boso. Sim.
Anselmo. Certamente não crerás que é apropriado que Deus faça sua criatura
miserável sem culpa, quando o criou santo para desfrutar de um estado de
bem-aventurança. Porque seria uma coisa miserável o homem morrer contra sua
vontade.
Boso. Está claro que se o homem não tivesse pecado, Deus não teria requerido
sua morte.
Anselmo. Deus, portanto, não obrigou Cristo a morrer; pois nele não havia
pecado. Ao contrário, sofreu a morte por sua própria vontade, não cedendo sua vida
como um ato de obediência, senão por sua obediência em manter a justiça; Porque
ele manteve tão firmemente esta obediência que encontrou a morte a partir dela.
Pode-se dizer, na verdade, que o Pai lhe ordenou morrer, quando a ordenou sobre ele,
causa pela qual encontrou a morte. Foi neste sentido, então, que “como o Pai lhe deu
o mandato, assim o fez, e o cálice que lhe deu, o bebeu, e se fez obediente ao Pai, até a
morte”. E assim “aprendeu a obediência das coisas que sofreu”, quer dizer, até o
ponto que a obediência deve ser mantida. Pois bem, a frase “aprendeu”, que é
utilizada, pode-se entender de duas maneiras: fez que outros aprendessem; ou,
porque aprendeu por experiência, a qual já possuía através do conhecimento (mais
que por experiência).
Agora, quando o Apóstolo disse: “Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se
obediente até a morte, e morte de cruz”, acrescentou: “pela qual Deus também o
exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo nome”. E isto é semelhante ao que
Davi disse: “beberá do ribeiro no caminho, e então erguerá a cabeça” (Sl 110:7 e Sl
109). Porque não quer dizer que não pudesse ter alcançado sua exaltação de nenhuma
outra maneira senão por obediência a morte. Não se entende que sua exaltação lha foi
conferida, senão como recompensa de sua obediência porque ele mesmo disse antes
de sofrer, que todo o que lhe tinha sido confiado pelo Pai (Lc 10:22), e tudo o que
pertencia ao Pai era seu (Jo 16:15). Contudo, a expressão se usa porque o Filho estava
de acordo com o Pai e o Espírito Santo, que não tinha outra maneira de revelar ao
mundo a sublimidade de sua onipotência, mais que por sua morte. Porque se esta
manifestação de sua onipotência, que foi decretada para ter lugar somente com sua
morte, não é erroneamente dito que ocorreu devido sua morte.
Porque se pretendemos executar algo, mas decidimos fazer algo primeiro por
meio do qual a primeira ação pretendida se realizará. Quando se executa a primeira
ação pretendida que queríamos fazer, se o resultado é como queríamos, se diz
propriamente que é pela outra ação; visto que agora se faz o que causou o atraso; pois
havia sido determinado que a primeira não devia se fazer sem a outra. Se, por
exemplo, proponho-me atravessar um rio somente de barco, ainda que possa cruzá-lo
em um barco ou à cavalo, adio atravessá-lo porque o barco não está disponível, mas
se atravesso o rio, quando o barco está disponível, pode-se dizer corretamente: “um
barco estava disponível, e portanto, atravessei”. E não só usamos esta forma de
expressão, quando é por meio de uma coisa que desejamos que ocorra primeiro,
senão também quando pretendemos fazer outra coisa, não por meio dessa coisa,
senão somente depois dela. Por exemplo, suponhamos que nos atrasamos para comer
porque não assistimos hoje a celebração da missa. Quando se fez o que ele desejava
fazer primeiro, não é impróprio lhe dizer: agora come, porque agora você fez aquilo
pelo qual atrasaste em comer. Portanto, muito menos é a linguagem estranha,
quando se diz que Cristo é exaltado por isto, porque sofreu a morte; porque foi
através disto, e depois disto, que ele determinou realizar sua exaltação. Isto pode se
entender também da mesma maneira que a passagem na qual se diz que nosso
Senhor cresceu em sabedoria e em favor de Deus (Lc 2:52); (não que realmente fora
assim, senão que se comportou como se fora assim). Porque depois de sua morte, foi
exaltado como se esta exaltação ocorresse por sua morte.
Por outro lado, sua declaração: “Eu não vim fazer minha vontade, senão a
vontade de quem me enviou” (Jo 6:38), é precisamente semelhante a sua declaração:
“A minha doutrina não é minha” (Jo 7:16); Porque o que não se tem de si mesmo,
senão de Deus, não se deve chamar de seu, senão de Deus. Dito isto, ninguém tem a
verdade que ele ensina, ou sua santa vontade, por si mesmo, senão de Deus. Cristo,
portanto, não veio fazer sua própria vontade, senão a do Pai; porque sua santa
vontade não se deriva de sua humanidade, senão de sua divindade. Por esta frase:
“Deus não perdoou a seu próprio Filho, senão que o entregou por todos nós” (Rm
8:32), significa nada mais que não o liberou. Porque na Bíblia se encontram muitas
declarações como estas. De novo, quando diz: “Pai, se é possível, afaste de mim este
cálice, mas não como eu quero, senão como tu queres” (Mt 26:39). “E se este cálice
não se afastar de mim, sem que eu o beba, faça-se tua vontade” (Mt 26:42), por
referência a sua própria vontade quer significar seu desejo natural de segurança,
segundo a qual sua natureza humana quer fugir da angústia da morte.
Porém, fala da vontade do Pai, não porque o Pai preferia a morte do Filho a
sua vida; senão porque o Pai não estava disposto a resgatar a raça humana, a menos
que o homem fizesse uma coisa tão grande como a que significou a morte de Cristo.
Visto que a razão não exigia a outro o que não podia fazer, portanto, o Filho diz que
ele desejava sua própria morte. Porque ele preferia sofrer, ao invés da raça humana se
perder. Como se dissesse ao Pai: “Como não desejas que a reconciliação do mundo
tenha lugar de outra maneira, neste aspecto vejo que desejas minha morte, que se
faça tua vontade, isto é, que minha morte tenha lugar, para que o mundo se reconcilie
contigo”. Porque frequentemente dizemos que se deseja algo, porque não escolhe
outra coisa, cuja eleição excluiria a existência do que diz que se deseja. Por exemplo,
quando dizemos que o que não opta por fechar a janela pela qual entra um vento que
apaga a vela que dá luz, deseja que se apague a luz. Assim que o Pai desejava a morte
do Filho, porque não estava disposto a que o mundo fosse salvo de nenhuma outra
maneira, exceto se o homem fizesse algo tão grande como o que foi mencionado. E
isto, visto que nenhum outro podia consegui-lo: porque o desejo de salvar o homem
do Filho é equivalente ao Pai lhe ter mandado para morrer. E, portanto, como o Pai
lhe deu este mandamento, assim o fez, e bebeu o cálice que o Pai lhe deu, sendo
obediente até a morte.

CAPÍTULO X. Como estes textos podem se explicar corretamente de


outra maneira.

Anselmo. Também é uma interpretação justa que, por essa mesma santa
vontade, pela qual o Filho quis morrer pela salvação do mundo, o Pai lhe deu o
mandamento (ainda que não por coerção) e o cálice do sofrimento, e não lhe perdoou
senão que o entregou por nós e desejou sua morte; e que o mesmo Filho foi obediente
até a morte, e aprendeu a obediência das coisas que padeceu. Porque como em que
àquela vontade que o levou a uma vida santa, não a teria como um ser humano por si
mesmo, senão do Pai; assim também essa vontade pela qual desejava morrer para a
realização de tão grande bem, não a poderia ter senão do Pai das luzes, de quem vem
toda dádiva e dom perfeito (Tg 1:17). E como se diz que o Pai atrai o homem
ensinando sua vontade sobre ele, não tem nada impróprio em afirmar que Ele move o
homem. Porque como diz o Filho do Pai: “Ninguém vem a mim se o Pai não o atrai”
(Jo 6:44), poderia ter dito, se não o movera. Da mesma maneira, também, poderia ter
declarado: “Ninguém dá a sua vida por minha causa, senão que o Pai o mova ou o
chame”. Pois já que um homem é atraído ou movido por sua vontade ao que ele
invariavelmente escolhe, não é impróprio dizer que Deus o atrai ou o move quando
lhe dá esta vontade.
Por esta atração ou impulso não tem que entender que tem alguma força
coercitiva, senão um apego livre e grato à santa vontade que recebeu. Se, então, não
pode se negar que o Pai atraiu ou moveu o Filho à morte lhe dando essa vontade;
quem não vê que, igualmente, lhe deu o mandamento de suportar a morte por sua
própria conta e tomar do cálice, que ele bebeu livremente. E se é correto dizer que o
Filho não se salvou a si mesmo, senão que se entregou por nós de sua própria
vontade, de quem ele tinha esta vontade, não lhe perdoou senão que o entregou por
nós, e desejou sua morte? Desta forma, também, seguindo a vontade recebida do Pai,
invariavelmente e por sua própria vontade, o Filho se fez obediente a Ele até a morte;
E aprendeu a obediência das coisas que sofreu; quer dizer, aprendeu quão grande era
o trabalho que devia se realizar mediante a obediência. Porque obediência real e
sincera ocorre quando um ser racional, não por coerção, senão livremente, segue a
vontade recebida de Deus.
De outras formas, também, podemos explicar adequadamente o desejo do Pai
de que o Filho morrera, ainda que isto parecesse suficiente. Pois como dizemos que
“deseja” algo que faz que outro o deseje; assim também dizemos que “deseja” algo
que aprove o desejo de outro, ainda que não cause esse desejo. Assim, quando vemos
um homem que deseja suportar a dor com fortaleza para a realização de algo que
deseja retamente; ainda que reconheçamos que desejamos que sofra essa dor, mas
não escolhemos, nem temos prazer no sofrimento, senão na escolha. Nós também
estamos acostumados a dizer que o que pode prevenir uma coisa não deseja o que não
previne. Visto que, portanto, a vontade do Filho agradou ao Pai, e não lhe impediu
escolher nem realizar sua escolha, é próprio dizer que desejava que o Filho sofrera a
morte tão piedosamente e por um fim tão grande, ainda que não estava satisfeito com
seu sofrimento. Por outra parte, disse que o cálice não devia se afastar dele, exceto
que o bebesse, não porque não poderia ter escapado da morte que tinha escolhido;
senão porque, como foi dito, o mundo não poderia se salvar; e era sua escolha fixa
sofrer a morte, mais que deixar que o mundo não se salvasse.
Foi por esta razão, também, que usou essas palavras, quer dizer, para ensinar a
raça humana que não havia outra salvação para eles senão por sua morte; e não para
demonstrar que não tinha poder para evitar sua morte. Porque tudo o que foi dito
dele, semelhante ao já mencionado, se deve entender com a crença de que ele morreu,
não por coerção, senão por livre escolha. Porque ele era onipotente, e se disse dele,
quando foi oferecido, que o desejava (Is 53:7). E ele mesmo disse: “Eu dou minha
vida para recobrá-la de novo, ninguém a tira de mim, senão que eu a dou livremente,
tenho o poder para dá-la, e tenho poder para recobrá-la de novo”. (Jo 10:17-18).
Portanto, não se pode dizer que um homem foi conduzido a uma coisa que faz de seu
próprio poder e vontade.
Boso. Mas este feito simples, de que Deus permite ser tratado assim, ainda
que estivera disposto, não parece ser de tal Pai com respeito a tal Filho.
Anselmo. Pelo contrário! É apropriado que tal Pai aceite o desejo de tal Filho,
se o desejo de seu filho louva a honra de Deus e é útil para a salvação do homem,
coisa que de outro modo não se realizaria.
Boso. A pergunta que ainda nos preocupa é como a morte do Filho pode ser
provada razoável e necessária. Do contrário, não parece que o Filho devia desejá-la,
ou o Pai obrigá-lo ou permiti-lo. Porque a pergunta é: porque Deus não poderia
salvar o homem de alguma outra maneira, e se é assim, por que Deus não podia
salvar o homem de alguma outra maneira, e se é assim, por que desejava fazê-lo desta
maneira? Porque não parece apropriado para Deus salvar o homem desta maneira;
nem está claro que se conquistou com a morte de Cristo. Porque é coisa estranha que
Deus se deleitara tanto no sangue do inocente, ou o requisitava, para perdoar a culpa,
por meio do sacrifício de um homem inocente.
Anselmo. Visto que, nesta investigação, tomas o lugar daqueles que não estão
dispostos a crer nada que não tenha sido previamente provado pela razão, quero que
concordemos entre nós aceitar, no caso de Deus, nada que ainda em grau menor não
seja inapropriado e de não rechaçar a razão por menor que seja se não se opõe a uma
maior. Porque como é impossível atribuir algo indigno a Deus; pelo que a necessidade
acompanha qualquer grau de razoabilidade de modo que qualquer razão, por menor
que seja, se não se invalida com uma maior, tem a força da necessidade.
Boso. Neste assunto, aceito a preservação deste acordo mútuo entre nós.
Anselmo. A pergunta se refere somente à encarnação de Deus, e às coisas que
cremos com respeito a sua tomada da natureza humana.
Boso. Isto é certo.
Anselmo. Suponhamos, pois, que a encarnação de Deus, e as coisas que
afirmamos dele como homem, nunca tiveram lugar. E estamos de acordo que: (1) o
homem foi feito para a felicidade, que não se pode alcançar nesta vida, (2) que
nenhum ser pode chegar à felicidade, exceto que seus pecados sejam perdoados, e (3)
que nenhum homem passa esta vida sem pecado. Tomemos por garantia, também, as
outras coisas, cuja crença é necessária para a salvação eterna.
Boso. Está bem; porque nele não há nada que pareça indigno ou impossível
para Deus.
Anselmo. Portanto, para que o homem possa alcançar a felicidade, a
remissão do pecado é necessária.
Boso. Isso todos nós acreditamos.
CAPÍTULO XI. O que é pecar e satisfazer o pecado.

Anselmo. Devemos perguntar, portanto, de qual maneira Deus rejeita os


pecados dos homens. E, para fazê-lo mais claramente, consideremos primeiro o que é
pecado e o que é satisfazê-lo.
Boso. O explicar é seu, o ouvir, meu.
Anselmo. Se o homem e os anjos sempre rendessem a Deus o devido, eles
nunca pecariam.
Boso. Não posso negar.
Anselmo. Portanto, o pecado não é outra coisa que não render a Deus o
devido.
Boso. Qual é a dívida que temos com Deus?
Anselmo. Todo desejo de uma criatura racional deve estar sujeito à vontade
de Deus.
Boso. Nada é mais verdadeiro.
Anselmo. Esta é a dívida que os anjos e os homens devem a Deus, e ninguém
que paga esta dívida comete pecado. Mas todo aquele que não a paga, peca. Isto é
justiça, ou retidão de vontade, que faz que um ser seja justo ou reto no coração, ou
seja, na vontade. E esta é a única e completa dívida de honra que devemos a Deus e
que Deus quer de nós. Pois é só uma vontade, quando se pode exercer, que faz obras
agradáveis a Deus; e quando esta vontade não pode ser exercida, é agradável por si
só, já que sem ela nenhum trabalho é aceitável.
O que não paga esta honra que é devida a Deus, rouba a Deus e o desonra; e
isto é pecado. Ademais, enquanto não restaura o que tirou, permanece na culpa; e
não basta restaurar o que tirou, senão que, tendo em conta o mal causado, deve
restaurar mais do que removeu. Porque como quem coloca em perigo a saúde de
outro, não basta restaurar sua saúde, sem compensar a dolorosa angústia causada.
Assim o que viola a honra de outro, não basta render honra outra vez, senão que
deve, segundo a extensão do dano causado, fazer a restauração de alguma maneira
satisfatória à pessoa que desonrou. Também devemos observar que quando alguém
paga de volta o que injustamente tirou, deve dar algo que não o tenha sido exigido, se
não haveria roubado o que pertencia a outro. Assim, pois, todo aquele que peca deve
devolver a honra que roubou de Deus; e esta é a satisfação que todo pecador deve a
Deus.
Boso. Visto que decidimos seguir a razão em todas estas coisas, não posso
fazer nenhuma objeção contra elas, ainda que me assuste um pouco.

CAPÍTULO XII. Se é apropriado Deus perdoar os pecados só por


compaixão, sem nenhum pagamento de dívida.

Anselmo. Voltemos e consideremos se era apropriado que Deus perdoasse os


pecados só por compaixão, sem que lhe pagasse a honra que lhe foi tirada.
Boso. Não vejo motivo pelo qual não é apropriado.
Anselmo. Perdoar o pecado desta maneira não é outra coisa que não castigar.
Visto que não é correto anular o pecado sem compensação nem castigo; e não é
castigado, então se passa por não baixado.
Boso. O que dizes é razoável.
Anselmo. Não é apropriado que Deus passe sobre qualquer coisa em seu
reino sem baixar.
Boso. Se desejo me opor a isto, temo pecar.
Anselmo. Portanto, não é apropriado que Deus passe o pecado sem castigo.
Boso. Prossiga.
Anselmo. Há também outra coisa que segue se o pecado se passa sem castigo,
a saber, que Deus não estivesse fazendo diferença entre o culpado e o não culpado;
algo que é indigno para Deus fazer.
Boso. Não posso negar.
Anselmo. Observa isto também: cada um sabe que a justiça está sujeita a lei,
de modo que, segundo as exigências da lei, assim é a medida da recompensa dada por
Deus.
Boso. É o que cremos.
Anselmo. Mas se o pecado não é pago nem castigado, não está sujeito a
nenhuma lei.
Boso. Não posso conceber que seja de outra maneira.
Anselmo. Se a injustiça, portanto, é perdoada somente pela misericórdia,
então a injustiça é mais livre que a justiça, algo que parece muito inconsistente. A isto
também se agrega uma incongruência, a saber, que esta falta de adequação é tão
extensa que faz que a injustiça assemelhe a Deus, mas Deus não está sujeito a
nenhuma lei, nem faz injustiça como Deus.
Boso. Não posso me opor a teu raciocínio. Mas como Deus nos ordena em
todos os casos que perdoemos aos que nos ofendem (Mt 6.12), parece inconsistente
que nos imponha uma coisa que não lhe convém fazer por si mesmo.
Anselmo. Não há inconsistência em Deus que nos manda a não tomar sobre
nós o que pertence só a Ele. Porque executar a vingança não pertence a ninguém
senão ao que é Senhor de todos (Rm 12.19). Agora quando os poderes do mundo
exercem a retribuição, Deus mesmo o faz, pois foi Ele quem os nomeou para tal
propósito (Rm 13.14).
Boso. Tu eliminaste a dificuldade que eu pensava que existia em teu
argumento. Mas há outra a qual eu gostaria que me desses tua resposta. Visto que
Deus é tão livre de não estar submetido a nenhuma lei e ao juízo de ninguém, e é tão
misericordioso que ninguém mais misericordioso pode ser concebido; nada é justo ou
apto salvo que Ele o considere desse modo; parece estranho que digamos que Ele não
quer ou não é capaz de perdoar um mal que Lhe foi feito, quando estamos
acostumados a Lhe pedir o perdão em relação aos delitos que comentemos contra
outros.
Anselmo. O que dizes da liberdade, da vontade e da compaixão de Deus é
verdade. Mas devemos explicar estas coisas de acordo que, com a razão, não pareça
interferir em sua dignidade. Porque só há liberdade em relação ao que é melhor ou
apropriado; nem se deve chamar misericórdia quando se faz qualquer coisa
imprópria ao caráter divino. Ademais, quando se diz que o que Deus deseja é justo, e
que o que não deseja é injusto, não devemos entender que se Deus desejava algo
impróprio seria justo, simplesmente porque Ele o desejava. Pois se pela suposição:
“Deus quer mentir”, não devemos concluir que é correto mentir, senão que justifica a
interferência: “este ser não é Deus”. Pois nenhuma vontade jamais pode desejar
mentir, a menos que a verdade nela esteja corrompida, ou, que seja uma vontade
corrupta por ter abandonado a verdade. Quando, então, se diz: “Se Deus quer
mentir”, o significado é simplesmente isto: “Se a natureza de Deus é tal que Ele deseja
mentir...”; e portanto, “mentir é justo” não se segue que a falsidade esteja correta,
senão que se entende da mesma maneira que quando falamos de duas coisas
impossíveis: “Se isto é verdade, então isto segue, porque nem isto nem isso é
verdade”. Como se um homem dissesse: “Suponhamos que a água esteja seca e o fogo
umedecido”, mas tampouco isto é verdade. Portanto: “Se Deus deseja isto ou aquilo,
então é justo”, é correto só daquelas coisas que Ele deseje que não sejam
inapropriadas para sua condição divina. Por exemplo, se Deus quer que chova, é justo
que chova; e se deseja que um homem qualquer morra, então é justo que morra.
Portanto, se não convém a Deus fazer algo injusto, ou de forma excessiva, não
pertence a sua liberdade, compaixão ou vontade sem castigar o pecador que não paga
a Deus o que o defraudou.
Boso. Tiraste todas as objeções possíveis que pensava ter contra ti.
Anselmo. Considera ainda outra razão pela qual não é apropriado que Deus
faça isto.
Boso. Escuto com prontidão tudo o que dizes.

CAPÍTULO XIII. Como nada menos era tolerar, na ordem das coisas, a
honra devida que a criatura tirou de seu Criador e não a restaurou.

Anselmo. Na ordem das coisas, não há nada menos que suportar que a
criatura tirou a honra devida ao Criador, e não restaurou o que havia tirado.
Boso. Nada é mais claro que isto.
Anselmo. Mas não há maior injustiça que a que deve suportar um mal tão
grande.
Boso. Isto, também, é claro.
Anselmo. Penso, pois, que não dirás que Deus deve tolerar uma coisa, que
não sofra maior injustiça, a saber, que a criatura não devolva a Deus o que tirou.
Boso. Sim, assim é. Creio que não deveria se tolerar.
Anselmo. De novo, se não há nada melhor que Deus, não há nada mais justo
que a Suprema Justiça (que não é outra coisa que Deus mesmo), que mantém
justamente a honra de Deus no governo das coisas.
Boso. Não há nada mais claro que isto.
Anselmo. Portanto, Deus não mantém nada com mais justiça que a honra de
sua própria dignidade.
Boso. Tenho que concordar contigo.
Anselmo. Parece-te que Ele conservaria sua honra intacta, se permitisse ser
defraudado, que não deva receber satisfação nem castigar a quem o defrauda?
Boso. Não me atrevo a dizê-lo.
Anselmo. Portanto, a honra tirada deve ser paga, ou o castigo deve seguir. Do
contrário, Deus não seria justo consigo mesmo, ou seria fraco ou sem poder fazer
uma e outra coisa; e isto é ímpio inclusive pensar.
Boso. Creio que não se pode dizer nada mais razoável.

CAPÍTULO XIV. Como a honra de Deus existe no castigo dos pecadores.

Boso. Mas desejo saber de você se o castigo do pecador é uma honra para
Deus, ou qual classe de honra é. Porque se o castigo do pecador não é para honra de
Deus, quando o pecador não paga o que tirou, senão que é castigado, Deus perde sua
honra irrecuperavelmente. Isto parece estar em contradição com as coisas que foram
ditas.
Anselmo. É impossível que Deus perca sua honra. Seja que, por sua própria
conta, o pecador pague livremente sua dívida, ou, se a nega, Deus a tira. Porque
quaisquer dos homens exibem a devida submissão a Deus de sua própria vontade
(evitando o pecado ou o pagando), ou Deus os submete a si mesmos por tormentos,
inclusive, contra a vontade do homem, e assim mostra que é o Senhor do homem,
ainda que o homem negue a reconhecê-lo voluntariamente. Aqui devemos observar
que como o homem no pecado tira o que pertence a Deus, assim, Deus, em castigá-lo,
em troca, recebe o que pertence ao homem. Pois não só pertence a um homem o que
tem em posse no presente, senão também ao que está em seu poder possuir.
Portanto, visto que o homem foi feito para poder alcançar a felicidade evitando o
pecado; se por seu pecado se priva da felicidade e de todo bem, reparte de sua própria
herança o que roubou, ainda que o pague contra sua vontade, Pois ainda que Deus
não aplique em prol de vantagem própria o que Ele tirou, (como faz o homem que
transfere o dinheiro que tirou de outro para seu próprio uso); sem embargo, o que Ele
tira serve o propósito de sua própria honra, por esta mesma razão, é tirado. Porque
por este ato mostra que o pecador e tudo o que pertence a ele estão sob sua sujeição.

CAPÍTULO XV. Deus permite que sua honra seja violada, mesmo que
minimamente.

Boso. O que dissestes me satisfaz. Mas há outro ponto que gostaria que me
respondesses. Pois se, como vocês dizem, Deus deve manter sua própria honra, por
que permite que seja violado, mesmo que minimamente? Pois o que de alguma
maneira está sujeito ao dano não está inteira e perfeitamente preservado.
Anselmo. Não se pode adicionar ou tirar nada da honra de Deus. Pois esta
honra que lhe pertence não é incorruptível nem imutável. Mas quando a criatura
individual conserva, naturalmente ou pela razão, o lugar (na ordem das coisas) que
lhe pertence e, por assim dizer, que lhe atribui, se diz que obedece e honra a Deus. A
isto (está especialmente amarrado), a natureza racional, que possui a inteligência de
saber o que fazer. Quando o ser racional escolhe o que deve, honra a Deus; não por
outorgar nada a Ele, senão porque se coloca livremente sob a vontade e a disposição
de Deus, que mantém sua própria posição no universo, preservando a beleza do
mesmo. Mas quando não escolhe o que deve, desonra a Deus, no que diz respeito ao
ser, porque não se submete livremente a disposição de Deus. Perturbando, assim, a
ordem e a beleza do universo, referente a si mesmo, ainda que não possa danificar
nem manchar o poder e a majestade de Deus.
Porque se aquelas coisas que se mantém juntas no circuito dos céus desejam
não continuar sob os céus, ou desejam existir além dos céus, não há lugar onde
possam estar senão sob os céus, nem podem voar além dos céus somente vindo a eles.
Porque não importa de qual lugar e para qual lugar, ou por qual rota, ainda estariam
circunscritos sob os céus. A maior distância de uma parte dos céus, só estaria muito
mais perto da parte oposta. E assim, ainda que o homem ou anjos maus se neguem a
se submeter à vontade e ordenança divinas, sem embargo, não podem escapar d’Ele.
Porque se querem fugir da vontade de Deus que manda, caem no poder de sua
vontade que castiga. E se perguntas para onde vão, é só sob a permissão dessa
vontade. Mesmo esta escolha ou ação rebelde é redirigida, sob a Sabedoria Infinita
para a ordem e a beleza do universo antes mencionado. Porque quando se entende
que Deus traz o bem em muitas formas de mal, então a satisfação pelo pecado
realizado livremente, ou, a imposição do castigo que não satisfez seu pecado, tem seu
próprio lugar e preserva a beleza da ordem no mesmo universo. Se onde a maldade
tenta perturbar a ordem correta da Sabedoria Divina não incluía estas coisas (ou seja,
não previa a satisfação e a exigência do castigo), se produzia certa desfiguração como
resultado da violação da beleza da ordem; e Deus parecia fracassar em Seu governo.
Estas duas coisas não só são inadequadas, senão consequentemente impossíveis; de
modo que a satisfação ou o castigo devem seguir cada pecado.
Boso. Respondestes satisfatoriamente minha objeção.
Anselmo. Então está claro que ninguém pode honrar ou desonrar a Deus,
como o é em si mesmo; mas a criatura, no que a concerne, parece fazer isto quando
submete sua vontade a Ele ou opõe sua vontade a vontade de Deus.
Boso. Não sei o que dizer contra isto.
Anselmo. Permita-me adicionar algo.
Boso. Prossiga, até que eu me canse de escutar.

CAPÍTULO XVI. A razão pela qual o número de anjos que caíram está
composto dentre os homens.

Anselmo. É evidente que Deus planejou compensar, da natureza humana que


criou sem pecado, o número de anjos que caíram.
Boso. Esta é uma parte de nossa crença, mas ainda gostaria de ter alguma
razão para ela.
Anselmo. Confundistes-me, porque pretendíamos discutir só a encarnação de
Deus, e aqui estás trazendo outras perguntas.
Boso. Não te irrites comigo; “Porque o Senhor ama quem dá com alegria” (2
Co 9.7); E ninguém mostra melhor quão alegremente dá o que promete, que o que dá
mais do que promete; portanto, responda-me o que peço.
Anselmo. Não há dúvida de que a natureza inteligente, que encontra sua
felicidade, tanto agora como sempre, na contemplação de Deus, foi prevista por ele
em certo número razoável e completo, de modo que havia uma incapacidade em seu
ser menor ou maior.
Porque Deus não sabia em que número era melhor criar seres racionais, o qual
é falso; ou, se o sabia, então nomeou um número que considerava mais apropriado
para seus propósitos. Portanto, ou os anjos que caíram foram feitos para estar dentro
desse número; ou, como estavam fora desse número, não podiam continuar
existindo, e assim caíram por necessidade. Mas esta última é uma ideia absurda.
Boso. A verdade que expusestes é clara.
Anselmo. Portanto, visto que devem estar dentro desse número: ou seu
número por necessidade deve necessariamente ter sido inventado, ou a natureza
racional, que se previu como perfeita em número, permaneceria incompleta. Mas isto
não pode ser.
Boso. Sem dúvida, então, o número deve ser restaurado.
Anselmo. Mas esta restauração só pode ser feita de seres humanos, já que
não há outra fonte de onde ser restaurado.

CAPÍTULO XVII. Outros anjos não podem tomar o lugar dos que caíram.

Boso. Por que não podiam eles mesmos serem restaurados, ou outros anjos
substituídos por eles?
Anselmo. Quando veem a dificuldade de nossa restauração, compreendem a
impossibilidade da sua. Mas outros anjos não podem substituí-los por isto (para
passar por sua aparente inconsistência com a plenitude da primeira criação), porque
deveria ser tais como os antigos anjos foram, se nunca tivessem pecado. Mas os
primeiros anjos nesse caso haviam perseverado sem jamais presenciar o castigo do
pecado; que, em relação aos outros que foram substituídos por eles depois de sua
queda, era impossível. Porque dois seres que se mantêm firmes na verdade não são
igualmente merecedores de louvor, se um nunca viu o castigo do pecado, e o outro
sempre é testemunho do castigo eterno. Pois não se deve supor por um momento que
os anjos bons são sustentados pela queda dos anjos maus, senão por sua própria
virtude. Pois, se os anjos bons tivessem pecado com os maus, teriam sido condenados
com eles; assim, se os anjos ímpios tivessem permanecido firmes com os santos,
também teriam sido confirmados. Certamente, se alguns dos anjos foram
confirmados só pela queda dos outros, então nenhum deles teriam sido confirmados
ou do contrário fosse necessário para um deles cair para que ele fosse condenado em
ordem para que os outros fossem confirmados. Mas qualquer destas suposições é
absurda. Consequentemente, os anjos que permaneceram de pé foram confirmados
de forma que todos aqueles semelhantes o tivessem sido se tivessem permanecido
firmes. Desta forma te expliquei, o melhor que pude, ao tratar da razão pela qual
Deus não outorgou perseverança ao diabo.
Boso. Provaste que os anjos malvados devem ser restaurados da raça humana.
E deste raciocínio parece que o número de homens escolhidos não será menor que o
de anjos caídos. Mas mostra, se podes, se o número de homens escolhidos será maior
que o dos anjos malvados.

CAPÍTULO XVIII. Se haverá mais homens santos que anjos maus.


Anselmo. Se os anjos, antes que quaisquer deles tivessem caído, existiam no
número perfeito do qual falamos, então os homens só foram criados para substituir o
lugar dos anjos caídos; e é evidente que seu número não seria maior. Mas se esse
número não foi completado por todos os anjos juntos, então tanto a perca como a
deficiência original devem ser completadas entre os homens, e mais homens serão
escolhidos do que os anjos caídos. Assim diremos que os homens foram feitos não só
para restaurar o número reduzido, senão também para completar o número
imperfeito.
Boso. Qual é a melhor teoria: que os anjos foram originalmente perfeitos em
número ou que não foram?
Anselmo. Expressarei meu ponto de vista.
Boso. Não posso te pedir mais do que isso.
Anselmo. Se o homem foi criado depois da queda dos anjos maus, como
alguns compreendem o relato de Gênesis, não creio que, positivamente, possa provar
esta suposição. Pois é possível, creio, que os anjos tivessem sido criados perfeitos em
número, e que depois o homem foi criado para completar seu número quando havia
sido reduzido. Também é possível que não fossem perfeitos em número, porque Deus
adiou completar o número, como faz ainda agora, determinando em seu tempo
perfeito o criar o homem. Portanto, ou Deus só completaria o que ainda não era
perfeito, ou, se reduzisse, restaurá-lo-ia.
Mas se toda a criação teve lugar imediatamente, aqueles dias nos quais Moisés
parece descrever uma criação sucessiva não devem ser entendidos como dias como os
nossos, não posso ver como os anjos puderam ter sido criados perfeitos em número.
Visto que, se assim fosse, parece-me que alguns, homens ou anjos, cairiam
imediatamente por necessidade, do contrário, na cidade do céu, haveria mais que o
número completo necessário. Se, portanto, todas as coisas foram criadas ao mesmo
tempo, pareceria que os anjos e os dois primeiros seres humanos formaram um
número incompleto, de modo que, se algum anjo caísse, a deficiência só devia ser
compensada dentre os seres humanos, mas se algum caísse, a parte perdida devia ser
também restaurada dentre os homens. E que a natureza humana, que se havia
mantido firme, ainda que mais fraca que a dos anjos, atribuía-se sua queda à sua
fraqueza. No caso da queda da natureza humana, muito mais justificaria a Deus, em
si mesma, contra o diabo, porque, ainda que o homem, criado muito mais fraco e de
uma raça mortal, sem embargo, nos escolhidos, se elevaria de sua fraqueza à um
estado de exaltação sobre o qual o diabo havia caído. Na verdade, seria elevar-se
tanto como os anjos bons (em igualdade com eles) avançando (porque perseveraram)
depois da queda dos maus.
Por estas razões, estou mais inclinado a crer que não havia, originalmente, esse
número completo de anjos necessários para aperfeiçoar a cidade celeste. Pois, este
ponto de vista é possível supondo que o homem e os anjos não foram criados ao
mesmo tempo, e se supõe necessário, se o homem e os anjos foram criados ao mesmo
tempo, que é a opinião da maioria, porque lemos: “Ele que vive para sempre, cria
todas as coisas simultaneamente” (Si 18.1). Mas se a perfeição do universo criado
deve ser entendida como consistente, não tanto no número de seres, como no número
de naturezas; deduz-se que a natureza humana foi feita para consumar a perfeição, ou
seria supérfluo. Não devemos nos atrever a fazer esta última afirmação em relação à
menor natureza réptil. Portanto, a natureza humana foi criada para ocupar seu
próprio lugar no mundo criado, e não meramente para restaurar o número de seres
de outra natureza. Do que é evidente que, mesmo não havendo nenhum anjo caído,
os homens ainda teriam seu lugar no reino celestial. Portanto, deduz-se que não havia
número perfeito de anjos, mesmo antes de caírem uma parte deles. Do contrário,
necessariamente alguns homens ou anjos deviam cair, porque seria impossível que
qualquer continuasse mais além do número perfeito.
Boso. Não trabalhastes em vão.
Anselmo. Tem, também, conforme creio, outra razão que apoia, em grande
medida, a opinião de que os anjos não foram criados em número perfeito.
Boso. Deixa-me escutá-la.
Anselmo. Se houvesse criado um número perfeito de anjos, e se o homem
houvesse sido feito somente para preencher o lugar dos anjos perdidos, é evidente
que, se alguns anjos não tivessem caído de sua felicidade, o homem não teria sido
exaltado.
Boso. Concordamos.
Anselmo. Mas se alguém pergunta: “Como os escolhidos se regozijam tanto
pela queda dos anjos como por sua própria exaltação, porque um não podia ter lugar
sem o outro?”, como podem ser justificados nesta má alegria, ou como vamos dizer
que os anjos caídos serão restaurados por sua substituição pelos homens? Pois se eles
[os anjos] permanecessem livres desta culpa, se não tivessem caído, estariam livres
de se alegrar pela queda dos demais. Respondemos: Não podem os homens se
libertar desta falta? Não, qual classe de felicidade o homem merecia com esta falta?
Com que temeridade, então, dizemos que Deus não deseja nem é capaz de fazer esta
substituição sem esta falta!
Boso. Não é o caso similar ao dos gentios que foram chamados à fé, porque os
judeus a rejeitaram?
Anselmo. Não; porque se os judeus tivessem crido, os gentios igualmente
teriam sido chamados; porque “mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme
e faz o que é justo” (At 10.35). Mas como os judeus depreciaram aos apóstolos, esta
foi à ocasião de olhar para os gentios.
Boso. Não vejo como me opor a ti.
Anselmo. De onde surge essa alegria que um tem sobre a queda de outro?
Boso. De onde, sem dúvida, senão de que cada indivíduo está certo de que, se
o outro não tivesse caído, nunca haveria alcançado o lugar que está agora?
Anselmo. Se, então, ninguém tinha esta certeza, não havia motivo para que
um se regozijasse pelo destino do outro.
Boso. É o que parece.
Anselmo. Crês que qualquer dos homens escolhidos possa ter esta certeza, se
seu número excede em muito ao dos anjos que caíram?
Boso. Certamente não posso pensar que qualquer a teria ou deveria tê-la.
Como pode alguém saber se foi criado para restaurar a parte reduzida, ou para
compensar o que ainda não estava completo no número necessário para constituir o
reino? Mas todos estão certos de que foram feitos em vista da perfeição desse reino.
Anselmo. Se, pois, tem um número maior que o dos anjos caídos, ninguém
pode nem deveria saber que não haveria alcançado esta altura senão pela queda de
outra pessoa.
Boso. Isso é verdade.
Anselmo. Ninguém, portanto, terá motivo para se regozijar da perda de
outro.
Boso. Aparentemente.
Anselmo. Visto que, então, vemos que se têm mais homens escolhidos que o
número de anjos caídos, a incongruência não continuará se não tem mais homens
escolhidos; posto que é impossível que haja algo incongruente nessa cidade celestial,
converte-se em uma ação necessária que os anjos não foram feitos perfeitos em
número, e que haverá mais homens bem-aventurados que anjos condenados.
Boso. Não vejo como negar isto.
Anselmo. Creio que outra razão pode ser embasada por esta opinião.
Boso. Então deverias apresentá-la.
Anselmo. Cremos que a substância material do mundo deve se renovar (2 Pe
3.12-13), e que isto ocorrerá até que se cumpra o número dos escolhidos, e a Cidade
Santa seja completada. Mais ainda cremos que depois de que a cidade seja
completada, a transformação já não será retardada. De onde se pode raciocinar que
Deus planejou aperfeiçoar ambos (o mundo físico natural e a cidade de seres
racionais) ao mesmo tempo, para que a natureza inferior, que não conhecia a Deus,
não possa se aperfeiçoar antes que a natureza superior que devia gozar de Deus. Que
em seu próprio modo a natureza inferior, ao se renovar para melhorar, se regozijaria
no aperfeiçoamento da natureza superior. De fato, cada criatura (cada uma, em seu
próprio modo, se regozija eternamente em seu Criador, em si mesmo, e em suas
criaturas companheiras) poderá se regozijar sobre sua própria, gloriosa e maravilhosa
perfeição. Assim, aquele que a vontade produz livremente na natureza racional, esta
criatura insensível naturalmente exibirá como resultado da ação de Deus. Porque nos
regozijamos na fama de nossos antepassados, como quando nos aniversários dos
santos nos deleitamos com triunfo festivo, regozijando-nos em sua honra. Esta
opinião que está sendo discutida se embasa na seguinte consideração: se de fato,
Adão não tivesse pecado, Deus ainda podia retardar a finalização dessa cidade
celestial até que o número de homens que ele criou se transformassem em imortais
(por assim dizer) de seus corpos, até completar certo número. Porque tinham no
paraíso uma espécie de imortalidade, ou seja, um poder de não morrer. Mas como era
possível que morressem, este poder não era imortal, como se, de fato, não fossem
capazes de morrer.
Mas se o precedente ponto de vista é verdadeiro, se Deus desde o princípio
resolveu levar a perfeição, ao mesmo tempo em que essa cidade racional e bendita, e
esta natureza terrena e irracional; deduz-se que alguma das seguintes alternativas
prevalece: (1) esse estado não era completo no número de anjos antes da queda dos
anjos maus, senão que Deus estava esperando para completá-lo pelos homens,
quando devia renovar a natureza material do mundo; (2) ou que, se esse reino era
perfeito em número, não estava em confirmação, e sua confirmação devia ser adiada,
ainda que ninguém pecasse, até essa renovação do mundo que esperamos; (3) ou que,
se essa confirmação não podia ser adiada por tanto tempo, devia acelerar a renovação
do mundo para que ambos os acontecimentos pudessem ter lugar simultaneamente.
Mas que Deus decidisse renovar o mundo imediatamente depois que foi criado, e
destruir (no princípio, antes que sua razão de haver criado fosse tão evidente) aquelas
coisas que depois desta renovação não existiriam, é simplesmente absurda. Daqui
resulta que, visto que os anjos não estavam completos em número, sua confirmação
não seria adiada, pois a renovação de um mundo recém-criado teria lugar em breve,
uma consequência que não é apropriada. Mas que Deus desejava adiar sua
confirmação ao futuro renovador do mundo, parece impróprio, visto que tão logo o
conseguiu em alguns, e visto que sabemos em relação aos nossos primeiros pais, se
não tivessem pecado como fizeram, os havia confirmado, assim como os anjos que
perseveraram. É verdade que o homem ainda não estava elevado a essa igualdade
com os anjos que os homens deviam alcançar, quando o número obtido dentre eles
estivesse completo.
Sem embargo, se tivessem conservado sua santidade original, não tivessem
pecado ao serem tentados, teriam sido confirmados, com toda sua descendência, para
nunca mais pecar; assim como quando foram conquistados pelo pecado, foram tão
fracos que não podiam viver em si mesmos sem pecar. Porque, quem se atreve a
afirmar que a injustiça é mais poderosa para amarrar a um homem em servidão,
depois de ter cedido a ela na primeira tentação, que a justiça para confirmá-lo em
liberdade quando se aderiu a ela na primeira tentação? Porque, como a natureza
humana, sendo incluída toda ela na pessoa de nossos primeiros pais, por ter pecado,
estavam completamente conquistados pelo pecado (com a única exceção daquele
homem que Deus, podendo gerar de uma virgem, era igualmente capaz de salvar do
pecado de Adão), assim, de igual forma, se não tivessem pecado, a natureza humana
teria sido conquistada por completo. Resta, portanto, que a Cidade Celestial não
estava completa no seu número original (reduzido), senão que deveria ser
completado entre os homens. Se estas considerações são corretas, teria mais homens
escolhidos do que anjos maus.
Boso. O que dizes me parece muito razoável. Mas, o que pensaremos do que
se lê de Deus: “Ele estabeleceu limites do povo segundo o número dos filhos de
Israel”. Porque as palavras “anjos de Deus” são encontradas algumas vezes na
expressão “filhos de Israel”, algumas pessoas interpretam este texto, de certa forma,
que o número de homens escolhidos deve ser entendido como igual aos dos anjos
bons.
Anselmo. Isto não é discordante com a opinião anterior, se não é certo que o
número de anjos que caíram é o mesmo que o dos que ficaram em pé. Porque sob esta
suposição se tem mais anjos escolhidos do que anjos maus, e que os homens
escolhidos devem ser substituídos pelos anjos maus, é possível que eles igualem o
número dos anjos bons, nesse caso, teria um número maior de homens justos do que
de anjos injustos.
Mas lembra em qual condição prometi responder tua pergunta, quer dizer, que
se digo algo que não se sustenta por maior autoridade, ainda que pareça
demonstrá-lo, sem embargo, deve ser recebido sem mais certeza que como minha
opinião no tempo presente, até que Deus me faça uma revelação mais clara. Porque
estou certo de que se digo algo que claramente se opõe às Sagradas Escrituras, é falso;
e se sou consciente disso, já não o sustentarei. Porém, se, em relação aos temas que as
opiniões opostas podem se manter sem perigo, como por exemplo, o que discutimos
agora, (pois não sabemos se terá mais homens escolhidos do que o número de anjos
perdidos e inclinados a qualquer destas opiniões mais que a outra, creio que a alma
não está em perigo). Se em assuntos desta índole, é dizer perguntas como esta, se
explicamos as palavras divinas que parece favorecer diferentes pontos de vista, e se
não existe palavra divina que determine, sem lugar a dúvidas, a opinião que deve
prevalecer, creio que não devemos ser censurados.
Quanto à passagem da qual falei anteriormente: “Determinou os limites do
povo (ou tribos) segundo o número dos anjos de Deus”, ou como outra tradução diz:
“segundo o número de filhos de Israel”; já que ambas as traduções significam o
mesmo ou diferentes, sem se contradizer entre si. Portanto, podemos entender que os
anjos bons só estão entendidos por ambas as expressões: “anjos de Deus” e “filhos de
Israel”, ou somente pelos homens escolhidos, ou pelos homens escolhidos e os anjos
estão incluídos, como um todo na Cidade Celestial. Ou também por “anjos de Deus”
podem ser entendidos somente os anjos santos, e por “filhos de Israel”, somente
homens santos; ou pelos “filhos de Israel”, somente anjos, e por “anjos de Deus”,
somente homens santos. Se os anjos bons estão designados por ambas às expressões,
é o mesmo que só se tivessem usado “anjos de Deus”; mas se ambas designam a
Cidade Celestial como um todo, o significado é que um povo, ou seja, a multidão de
homens escolhidos, seguiram sendo obtidos, ou que continuaram tendo gente em
nosso mundo, até que o número predeterminado dessa Cidade, ainda não completo,
seja completo dentro os homens.
Mas agora não vejo por que só os anjos, ou mesmo os anjos e os homens santos
justos, se entendem pela expressão “filhos de Israel”. Porque não é impróprio chamar
aos homens santos “filhos de Israel”, como os chamam de “filhos de Abraão” (Gl 3.7).
Igualmente podem se chamar “anjos de Deus” pela virtude, tomando em conta as
seguintes características: (1) porque imitam a vida angélica, (2) é prometido no céu
uma semelhança e igualdade com os anjos, e (3) todos os que vivem vidas santas são
anjos de Deus. Portanto, os confessores ou mártires são assim chamados; porque o
que declara e dá testemunho da verdade, é um mensageiro de Deus, ou seja, seu anjo.
E se um malvado é chamado diabo, como diz nosso Senhor sobre Judas (Jo 6.71), por
sua semelhança em malícia do Diabo; Por que um homem bom não deve ser chamado
anjo, porque segue a santidade? Pelo qual creio que podemos dizer que Deus
estabeleceu os limites do povo segundo o número dos homens escolhidos, porque os
homens existirão e haverá um aumento natural entre eles, até que se cumpra o
número de escolhidos; e quando isto ocorrer, o nascimento dos homens, que têm
lugar nesta vida, cessará.
Contudo, se por “anjos de Deus” só entendemos anjos santos, e por “filhos de
Israel” só homens santos; então “Deus designou os limites do povo segundo o número
de anjos de Deus”, pode se explicar de duas maneiras: é dizer, que um povo tão
grande, ou seja, muitos homens, serão elevados à igualdade que os santos anjos de
Deus, ou no sentido que um povo continuará existindo sobre a terra, até que se
complete o número de anjos entre os homens. Sem embargo, creio que não tem outro
método possível de explicação da declaração: “Ele designou os limites do povo
segundo o número dos filhos de Israel”, ou seja, que continuará existindo um povo no
tempo presente, como foi dito acima, até que se complete o número de homens
santos. Deduzimos da tradução que tantos homens serão elevados como anjos que
permaneceram firmes. Sem embargo, ainda que os anjos perdidos devam ser
substituídos entre os homens, não se segue que o número de anjos caídos era igual ao
dos que perseveraram. Mas se alguém afirma isto, terá que encontrar meios de
invalidar as razões dadas acima, que demonstram, creio eu: (1) que não havia entre os
anjos, antes da queda, esse número perfeito anteriormente mencionado, e (2) que
terá mais homens escolhidos do que o número de anjos maus.
Boso. Não me arrependo de ter te exortado a estas observações sobre os anjos,
porque não foi em vão. Agora voltemos à nossa digressão.
CAPÍTULO XIX. O homem não pode ser salvo sem satisfação pelo pecado.

Anselmo. Está estabelecido que Deus planejou substituir aos anjos caídos
dentre os homens.
Boso. Isso é verdade.
Anselmo. Portanto, deve ter na Cidade Celestial tantos homens que serão
elevados como substitutos dos anjos correspondentes ao número cujo lugar
tomariam, ou seja, tantos como existem de anjos bons. Do contrário, os que caíram
não seriam restaurados, e consequentemente, Deus não poderia cumprir o bem que
começou, ou se arrependeria de tê-lo empreendido; qualquer das alternativas é
absurda.
Boso. Na verdade, é apropriado que os homens sejam iguais aos bons anjos.
Anselmo. Os bons anjos pecaram alguma vez?
Boso. Não.
Anselmo. Podes pensar que um homem, que pecou e nunca satisfez a Deus
por seu pecado, mas simplesmente ficou impune, pode chegar a ser igual a um anjo
que nunca pecou?
Boso. Estas palavras, tanto posso pensar como pronunciar, porém não posso
perceber seu significado do que posso pensar em razão de uma falsidade ou verdade.
Anselmo. Portanto, não é apropriado que Deus eleve o homem pecador sem
uma expiação, em substituição dos anjos caídos; porque a verdade não permite que o
homem seja assim elevado a uma igualdade com os seres santos.
Boso. A razão demonstra isto.
Anselmo. Considera também, deixando de lado a questão da igualdade com
os anjos, se Deus deve, em tais circunstâncias, elevar o homem a mesma ou
semelhante felicidade como a que tinha antes de pecar.
Boso. Dá-me tua opinião, e eu a examinarei da melhor maneira possível.
Anselmo. Suponhamos que um homem rico possuía uma pérola sem
impureza alguma e que ninguém podia tirá-la de suas mãos sem sua permissão; e que
decidiu a esconder com seus tesouros mais quistos e mais valiosos.
Boso. Aceito tua suposição.
Anselmo. O que aconteceria se ele permitisse que lhe fosse tirada de sua mão
e lançada ao lodo, ainda que pudesse ter impedido? E o que se sucederia tomá-la toda
suja de lodo e sem lavar, volta a colocá-la em seu lindo e amado cofre de tesouros,
nesta condição? Considerá-lo-ia como um homem sábio?
Boso. Como poderia? Não seria melhor conservar e guardar sua pérola pura
do que contaminá-la?
Anselmo. Não estaria Deus atuando assim, que mantinha o homem no
Paraíso, como estava em sua mão, sem pecado, e destinado a companhia dos anjos, e
permitiu ao Demônio, inflamado de inveja, jogá-lo à lama do pecado, ainda que
verdadeiramente com o consentimento do homem? Porque, se Deus tivesse escolhido
reter o diabo, ele nunca poderia ter tentado o homem. Agora então, eu digo: Não
atuaria Deus assim, se restabelecesse o homem, manchado com a contaminação do
pecado, sem lavar, ou seja, sem nenhuma satisfação, e permanecer sempre assim;
Deveria restaurá-lo imediatamente o Paraíso, do qual havia sido expulso?
Boso. Não me atrevo a negar a semelhança de sua comparação, se Deus
fizesse isto, portanto não admito que Ele possa fazer isto. Pois poderia parecer que
Ele não podia completar o que Ele planejou, ou que se arrependeu de seu bom plano,
nenhuma das quais é possível com Deus.
Anselmo. Portanto, considera-se que, sem satisfação, ou seja, sem o
pagamento voluntário da divida, Deus não pode deixar o pecado impune, nem o
pecador alcançar essa felicidade, ou a felicidade que possuía antes de ter pecado.
Porque o homem não pode ser restaurado desta maneira (sem satisfação), nem
chegar a ser tal como era antes de ter pecado.
Boso. Sou totalmente incapaz de refutar teu raciocínio. Mas, o que dizes sobre
isto: que pedimos a Deus, “perdoa-nos nossas dividas” (Mt 6.12)? E por que cada
nação ora ao deus de sua fé para que lhe perdoe seus pecados? Porque, se pagamos
nossa divida, por que rezamos a Deus para que a tire? Não é Deus injusto quando
exige o que já foi pago? Mas se não fazemos o pagamento, por que suplicamos em vão
que faça o que não pode fazer, porque lhe é impróprio de fazer?
Anselmo. O que não paga diz em vão: “Perdoa-me”. Mas o que paga suplica,
porque a oração está bem conectada com o pagamento. Porque Deus não deve a
ninguém, senão que toda criatura deve a Deus; consequentemente, portanto, o
homem não deve tratar a Deus como um igual. Mas disto já não é necessário que eu
lhe responda. Pois quando aprenderes o porquê Cristo morreu, creio que verás por ti
mesmo a resposta a tua pergunta.
Boso. Sua resposta sobre este assunto me basta, no momento. E, ademais,
demonstrastes claramente que nenhum homem pode alcançar a felicidade no pecado,
nem ser liberto do pecado sem satisfação pela transgressão.

CAPÍTULO XX. Essa satisfação deve ser proporcionada ao pecado. O


homem é por si mesmo incapaz de conseguir isto.

Anselmo. Nem tampouco, creio, duvidarás disto, que a satisfação deve ser
proporcionada ao pecado.
Boso. Do contrário, o pecado permaneceria em uma forma desordenada, o
qual não pode ser, porque Deus não deseja nada desordenado em seu reino. Assim
sendo, já estabelecemos que mesmo a menor inadequação é impossível para Deus.
Anselmo. Diga-me, então, o que pagarias a Deus em proporção ao teu
pecado?
Boso. Arrependimento, coração quebrantado e contrito, abnegação, diversos
sofrimentos corporais, piedade em dar e perdoar, e obediência.
Anselmo. O que dás a Deus com tudo isto?
Boso. Não honra a Deus quando, por seu amor e temor, com contrição de
coração, renuncio o gozo mundano e desprezo, por meio da abstinência e fadiga, as
delícias e facilidades desta vida, e me submeto obedientemente a Ele, outorgando
livremente meus bens a outros?
Anselmo. Quando entregas algo a Deus que lhe deves, independentemente de
teu pecado passado, não deves considerar isto como o pagamento pela dívida que
deves pelo pecado. Mas deves a Deus todas as coisas que mencionastes
anteriormente. Pois, neste estado mortal, deve ter tal amor e tal desejo de alcançar o
verdadeiro fim de seu ser, que é o significado da oração, e tanta pena porque ainda
não alcançastes este fim, que deves encontrar alegria só naquelas coisas que te
ajudem a chegar ali ou a esperança que te ajudes nisto. Porque não mereces ter algo
que não ames e desejes em proporção a sua natureza, sobre os quais não te afliges
porque ainda não os possuí, mas estão em tal perigo de se possuir ou não. Isto
também requer que um evite a facilidade e os prazeres mundanos tais como fugir do
verdadeiro descanso e prazer, exceto na medida em que um crê que basta para a
realização desse objeto.
Mais ainda, deves ver os dons que outorgas como parte de tua dívida, porque
saber que o que das não vêm de ti mesmo, senão daquele cujo tu és servo e também a
quem tu os dá. A mesma natureza te ensina a lidar com teu servo-companheiro,
homem a homem, como gostarias que Ele fizesse contigo (Mt 7.12); e que o que não
dá o que têm não deve receber o que não têm. Agora, referindo-nos ao perdão, de
fato, falo brevemente, porque, como dissemos antes, a vingança em nenhum sentido
pertence ao homem, visto que o que ele tem não é seu (1 Co 6.19-20), nem ele que te
fere é dele mesmo ou seu, mas ambos são servos de um só Senhor, feito por ele do
nada. Se te vingas de teu servo, orgulhosamente assumes o juízo sobre ele quando o
direito é peculiar de Deus, o juiz de todos. Mas, o que das a Deus por tua obediência,
que não lhe devias, já que Ele te exige tudo o que és, tens e podes chegar a fazer?
Boso. Na verdade, não me atrevo a dizer que em todas estas coisas eu pago
algo de minha dívida com Deus.
Anselmo. Como então pagas a Deus por tua transgressão?
Boso. Se mesmo quando não peco devo a Deus, para não pecar, (eu mesmo e
qualquer coisa que eu realize), não tenho nada para lhe pagar por meu pecado.
Anselmo. O que serás de ti então? Como serás salvo?
Boso. Simplesmente olhando teus argumentos, não vejo nenhuma maneira.
Mas, retornando à minha crença, por meio da fé cristã, “que opera por amor” (Gl 5.6),
que possa ser salvo, e mais ainda, já que lemos que “se o mau se desvia de sua
iniquidade e faz o reto” (Ez 18.27), todas suas transgressões serão esquecidas.
Anselmo. Isto só se diz daqueles que buscaram a Cristo antes de sua vinda,
ou que creem n’Ele depois de sua vinda. Mas quando propusemos investigar pela
razão se sua vinda era necessária para a salvação do homem demos a hipótese que
Cristo e a religião cristã nunca existiram.
Boso. Fizemos isso.
Anselmo. Procedamos pela razão somente.
Boso. Ainda que você me traga estas dificuldades, desejo muito que prossigas
como começou.

CAPÍTULO XXI. Quão grave é o pecado.


Anselmo. Suponhamos que não devias nenhuma das coisas que supunhas
como pagamento possível por teu pecado, perguntemo-nos se podem satisfazer por
um pecado tão pequeno como uma olhada contrária à vontade de Deus.
Boso. Exceto pelo fato de que te escutei trazer o pecado em questão, deveria
supor que um só ato de remorso de minha parte apagaria este pecado.
Anselmo. Ainda não estimastes a gravidade do pecado.
Boso. Então, ensina-me.
Anselmo. Suponhamos que te encontras diante dos olhos de Deus, e alguém
te diz: “Olha naquela direção”. Suponhamos que, pelo contrário, Deus te diga: “Não é
minha vontade que olhes”. Pergunta a teu próprio coração o que há em todas as
coisas existentes, se serias correto que olhasse contra a vontade de Deus.
Boso. Não posso encontrar nenhum motivo que o faça ser correto; a menos
que eu esteja tão necessitado para que faça isto ou algum pecado maior.
Anselmo. Retire toda esta necessidade, e pergunta-te em relação a este
pecado somente se podes fazê-lo, mesmo que para tua própria salvação.
Boso. Vejo claramente que não posso.
Anselmo. Para não te parar tempo demais; E se fosse necessário que o
universo inteiro, exceto Deus mesmo, se perdesse e se reduzisse de novo ao nada, ou
que tivesse que fazer algo tão pequeno contra a vontade de Deus?
Boso. Quando considero a ação mesma, parece muito insignificante; mas
quando reflito sobre o fato de que é contrário à vontade de Deus, reconheço que é
algo extremamente grave e incomparável a qualquer perda. Mas, às vezes, nos
opomos à vontade de outro sem culpa, a fim de preservar sua propriedade, de modo
que depois este se alegra de que nos opomos a ele.
Anselmo. Isto sucede ao homem, que frequentemente não sabe o que é útil
para ele, ou não pode recuperar o perdido; mas Deus não tem necessidade de nada, e
se todas as coisas perecem, pode restaurá-las tão facilmente como as criou.
Boso. Devo admitir que não devo me opor à vontade de Deus nem sequer para
preservar toda a criação.
Anselmo. E se houvesse mais mundos tão cheios de seres como este?
Boso. Se existisse uma infinidade de mundos, e me fossem exibidos da mesma
maneira, minha resposta seria a mesma.
Anselmo. Não podes responder mais corretamente, mas considera, também,
o que sucederia se tivesses que dar essa olhada contrária à vontade de Deus, que
pagamento poderia fazer por esse pecado?
Boso. Só posso repetir o que disse antes.
Anselmo. Tão odioso é nosso pecado sempre que conscientemente nos
opomos à vontade de Deus, mesmo que minimamente; visto que sempre estamos
diante d’Ele, e Ele sempre nos ordena que não pequemos.
Boso. Não posso negar isso.
Anselmo. Portanto, não fazes nenhuma satisfação a menos que restituas algo
maior que o devias, o qual deveria te impedir de cometer o pecado.
Boso. Vejo que a razão exige isto, e fazer que tudo o contrário seja totalmente
impossível.
Anselmo. Deus não pode elevar a felicidade a nenhum ser amarrado pela
dívida do pecado, porque Ele não deve isso.
Boso. Este veredicto é muito grave.
Anselmo. Escuta um motivo adicional que faz que não seja menos difícil para
o homem se reconciliar com Deus.
Boso. Isto só me levaria a desespero, se não fosse pelo consolo da fé.
Anselmo. Mas escuta em todos os sentidos.
Boso. Prossiga.

CAPÍTULO XXII. Assim como o homem, quando permitiu ser


conquistado pelo diabo, feriu a Deus, assim não pode fazer nenhuma
satisfação.

Anselmo. O homem criado sem pecado foi colocado no Paraíso, com uma
inclinação a Deus, colocado entre Deus e o diabo, para vencer o diabo, para não ceder
a sua tentação. Assim, para vindicar e honrar a Deus e envergonhar o diabo, porque
aquele homem, ainda que mais frágil e morador na terra, não pecaria ainda que fosse
tentado pelo diabo, enquanto que o diabo, ainda que mais forte e no céu, pecou sem
que ninguém o tentasse. E ainda que o homem possa ter feito isto facilmente, ele, por
si mesmo e sem força alguma sobre ele, se deixou levar pela vontade do diabo, contra
a vontade e honra de Deus.
Boso Onde queres me levar com isto?
Anselmo. Decide por ti mesmo se não é contrário à honra de Deus que o
homem se reconcilie com Ele, quando ainda tem sobre si a lesão caluniosa que
causou a Deus; a menos que o homem primeiro honre a Deus derrotando o diabo,
como ele o desonrou ao ceder ao diabo. Não obstante, a vitória deve ser tal, já que, o
homem, que era forte e potencialmente imortal, cedeu livremente ao diabo e ao
pecado, e por esta causa, justamente, sofreu o castigo da morte. Assim, na fragilidade
e mortalidade, que ele trouxe sobre si mesmo, deve derrotar o diabo pela dor da
morte, enquanto que evita totalmente o pecado. Mas isto o homem não pode fazer,
enquanto que por essa ferida da primeira transgressão, o homem seja concebido e
nascido no pecado (Sl 51.7).
Boso. Novamente digo que a coisa, por um lado, é provada pela razão, e por
outro lado, é impossível.
Anselmo. Permita-me mencionar mais uma coisa, sem a qual a reconciliação
do homem não possa ser justamente efetuada, e a impossibilidade é a mesma.
Boso. Já apresentastes tantas obrigações que devemos cumprir, que nada do
que acrescentas me assusta mais.
Anselmo. Ainda sim, escuta.

CAPÍTULO XXIII. O que o homem tomou de Deus por seu pecado, o


qual ele não tem poder para pagar.

Anselmo. O que o homem pegou de Deus, quando se deixou vencer pelo


diabo?
Boso. Continue a mencionar tu mesmo, como o fez, pois não posso imaginar
que outras coisas más possam ser acrescentadas às apresentadas, porque as ignoro.
Anselmo. Acaso o homem não pegou de Deus o que Ele tinha proposto fazer
pela natureza humana?
Boso. Não posso negar isso.
Anselmo. Atendendo a justiça estrita e julgando segundo isto, se o homem
faz a Deus uma verdadeira satisfação por seu pecado, a menos que, ao vencer o diabo,
o homem devolva a Deus o que pegou ao permitir ser conquistado pelo diabo, de
modo que, como por esta conquista sobre o homem o diabo pegou o que pertencia a
Deus, e Deus era o perdedor, assim na vitória do homem, o diabo pode ser despojado,
e Deus recupera seu direito.
Boso. Com certeza nada poder ser pensado de forma mais exata e justa do que
essa.
Anselmo. Crês que a Justiça suprema possa violar esta justiça?
Boso. Não me atrevo a pensar nisso.
Anselmo. Portanto, o homem não pode e não deve, de nenhuma maneira,
receber de Deus o que o mesmo planejou dar-lhe, a menos que devolvas a Deus tudo
o que pegastes, de modo que, como pelo homem Deus sofreu a perda, pelo homem,
também, poderia recuperar sua perda. Mas isto não se pode fazer senão desta
maneira: que, como na queda do homem, toda a natureza humana foi corrompida, e
como esteve manchada de pecado, Deus não escolheria a uma de tais raças para
encher o número em Sua Cidade Celestial; assim, pela vitória do homem, como
muitos homens podem ser justificados do pecado como são necessários para
completar o número que o homem foi feito para encher. Mas um homem pecador não
pode, de maneira alguma, fazer isto, porque um pecador não pode justificar a um
pecador.
Boso. Não há nada mais justo e nada mais impossível. Mas, de todas estas
considerações, a compaixão de Deus e a esperança do homem parecem desaparecer
quanto a essa felicidade pela qual o homem foi criado.
Anselmo. Sem embargo, espera um pouco.
Boso. Tens algo mais?

CAPÍTULO XXIV. Enquanto o homem não restaura o que deve a


Deus, não pode ser feliz, nem desculpado por sua incapacidade.

Anselmo. Se um homem é chamado injusto porque não paga uma dívida a


seu próximo, muito mais é injusto quem não devolve o que deve a Deus.
Boso. Se pode pagar e não paga, sem dúvida é injusto. Mas se não pode pagar,
como é que é injusto?
Anselmo. De fato, se a origem de sua inabilidade não estivesse em si mesmo,
poderia ter alguma desculpa para ele. Mas se nesta mesma incapacidade está sua
culpa, não diminui o pecado, nem tampouco o exime de pagar o que deve.
Suponhamos que um senhor dá a seu escravo um determinado trabalho e lhe ordena
que não entre nela ou vá mais além da vala que assinala. Suponhamos que o escravo,
desprezando o mandamento e a advertência de seu senhor, lança-se à vala antes
mencionada, para ser completamente incapaz de realizar o trabalho dado. Pensas que
sua incapacidade lhe servirá como desculpa para não fazer o trabalho designado?
Boso. De maneira alguma, senão que, pelo contrário, aumentará seu crime, já
que ele trouxe a incapacidade para si mesmo. Porque duplamente pecou ao não fazer
o que lhe fora ordenado fazer e ao fazer o que fora advertido não fazer.
Anselmo. É tão indesculpável o homem que voluntariamente trouxe sobre si
uma dívida que não pode pagar e por sua própria conduta pode escapar de sua
obrigação anterior de não pecar nem pode pagar a dívida que incorreu pelo pecado.
Porque sua incapacidade é culpável, porque não deve tê-la; pelo contrário, está
obrigado a ser livre dela. Porque como é um crime não ter o que deve, também é um
delito ter o que não deve.
Portanto, é culpável o homem por não ter essa capacidade que recebe para
evitar o pecado, também é culpável ter essa incapacidade pela qual não pode fazer
bem e evitar o pecado, nem pagar a dívida que deve por seu pecado. Porque é por sua
própria ação livre que perde essa capacidade, e cai nesta incapacidade que não deve
ter. Porque não ter a capacidade que um deve ter, é o mesmo que ter a incapacidade
que um não deve ter. Portanto, a inabilidade do homem para restaurar o que deve a
Deus, uma inabilidade que trouxe sobre si mesmo por não pagar, não o exime de
pagar, já que o resultado do pecado não pode desculpar o pecado cometido.
Boso. Este argumento é extremamente grave, mas deve ser verdadeiro.
Anselmo. Isto é muito certo, porque ele é injusto, tanto em não pagar, como
em ser inábil em pagar.
Anselmo. Agora nenhuma pessoa injusta será admitida à felicidade; pois
como essa felicidade é um estado de suficiência em que não falta nada necessário, a
ela não pertencer ninguém que não seja tão puro como para não ter injustiça nele.
Boso. Não me atrevo a pensar o contrário.
Anselmo. O que não paga a Deus o que deve, nunca pode ser feliz.
Boso. Não posso negar que isto é assim.
Anselmo. Mas se você decide dizer: “A razão pela qual um Deus
misericordioso perdoa a dívida de um suplicante, é porque não pode pagar”. Deve se
dizer que Deus perdoou uma das duas coisas, a saber: (1) isto é o que o homem deve
voluntariamente pagar, mas não pode, ou seja, um equivalente por seu pecado, que
não deve ter cometido ainda para salvar o universo inteiro, (2) isto é, castigando ao
homem, Deus tiraria a felicidade do homem contra sua vontade. Por um lado, se Deus
perdoa o que o homem deve pagar livremente, pelo motivo de que o homem não pode
pagá-lo, o que é isto senão dizer que Deus abandona o que não pode obter. Mas é uma
zombaria atribuir tal compaixão a Deus. Por outro lado, se Deus perdoa o que estava
prestes a arrebatar um homem contra sua vontade, porque o homem é incapaz de
pagar o que deve devolver livremente, diminui o castigo e faz o homem feliz por seu
pecado, porque tem o que não deve ter. Pois o homem não deve ter esta incapacidade
e, portanto, enquanto a tem sem expiação, é um pecado. Verdadeiramente tal
compaixão por parte de Deus é totalmente contrária à justiça divina, que não permite
senão o castigo como recompensa do pecado. Portanto, como Deus não pode ser
inconsistente consigo mesmo, sua compaixão não pode ser desta natureza.
Boso. Penso, então, que devemos buscar outra misericórdia que não seja esta.
Anselmo. Mas suponhamos que é certo que Deus perdoa ao homem que não
paga sua dívida porque não pode.
Boso. Desejaria que assim fosse.
Anselmo. Mas enquanto o homem não faz o pagamento, seja porque ele
deseja fazer o pagamento, ou que não o deseja, de modo que se quer fazer o que não
pode, será necessitado, e se não o deseja, será injusto.
Boso. Nada pode ser mais claro.
Anselmo. Mas seja necessitado ou injusto, não será feliz.
Boso. Isso também é claro.
Anselmo. Então, enquanto não paga, não será feliz.
Boso. Se Deus segue o princípio da justiça, não há escape para o infeliz
miserável homem, e a compaixão de Deus parece desaparecer.
Anselmo. Tu exigiste uma explicação; escuta agora. Não nego que Deus é
misericordioso, que preserva o homem e a besta, segundo a multidão de suas
misericórdias (Sl 35.7-8(36)). Mas estamos falando dessa grande compaixão pela
qual faz feliz o homem depois desta vida. Penso que provei amplamente, pelas razões
dadas acima: (1) que a felicidade não deve ser outorgada a ninguém cujos pecados
não foram completamente perdoados; e (2) que esta remissão não deve ter lugar,
senão pelo pagamento da dívida contraída pelo pecado, segundo a magnitude do
pecado. Se pensas que qualquer objeção pode ser trazida contra estas provas, deves
mencioná-las.
Boso. Não vejo como tuas razões podem ser invalidadas.
Anselmo. Tampouco eu, se se entende corretamente. Mas ainda que um
desses argumentos que dei seja confirmado por uma verdade inexpugnável, isso
deveria ser suficiente. Pois a verdade está igualmente protegida contra toda dúvida,
se se demonstra por um argumento como por muitos.
Boso. Com certeza isto é assim. Mas, como, então, o homem será salvo, se não
paga o que deve, e não deve ser salvo sem pagar? Ou, com que cara declararemos que
Deus, que é rico em misericórdia acima de toda concepção humana, não pode exercer
esta compaixão?
Anselmo. Esta é a pergunta que deves fazer àqueles cujo nome estás falando,
que não tem fé na necessidade de Cristo para a salvação do homem, e também dever
pedir-lhes que digam como o homem pode ser salvo sem Cristo. Mas se não podem
fazê-lo, deixem de zombar de nós, e se apressem a unir-se a nós, que não duvidem de
que o homem pode ser salvo por meio de Cristo; que não se desesperem de ser salvos
de forma alguma. E se isto lhes assusta, creiam em Cristo como nós, para que sejam
salvos.
Boso. Deixa-me pedir, como comecei, que me mostres como um homem é
salvo por Cristo.

CAPÍTULO XXV. Como a salvação do homem por Cristo é


necessariamente possível.

Anselmo. Não está suficientemente demonstrado que o homem pode ser


salvo por Cristo, quando mesmo os incrédulos não negam que o homem pode ser feliz
de alguma maneira, e se demonstrou suficientemente que, deixando Cristo fora de
vista, não se pode encontrar salvação para o homem? Porque, por Cristo, ou por
algum outro meio mais, o homem pode ser salvo, ou por nenhum meio. Portanto, é
falso que o homem não possa ser salvo, e é falso que pode ser salvo de qualquer outra
maneira, sua salvação deve ser necessariamente por Cristo.
Boso. Mas, o que responderias a uma pessoa que percebe que o homem não
pode ser salvo de nenhuma outra maneira e, sem embargo, ao não entender como
poder ser salvo por Cristo, considera oportuno declarar que não pode ter salvação
nem por Cristo nem em nenhuma outra maneira. Que resposta daríamos?
Anselmo. Que resposta deve se dar a quem atribui a impossibilidade a uma
verdade necessária, porque não entende como pode ser?
Boso. Que é um tonto.
Anselmo. Então o que diz deve ser desprezado.
Boso. É bem verdade; mas devemos lhe mostrar de qual maneira é verdadeira
a coisa que ele sustém que é impossível.
Anselmo. Não percebes, pelo que dissemos mais acima, que é necessário que
alguns homens alcancem a felicidade? Porque, se não é apropriado que Deus eleve o
homem com qualquer macha sobre ele, àquele pelo qual libertou de toda mancha,
para que não pareça que Deus havia se arrependido de sua boa intenção, ou que não
pôde cumprir seus desígnios; muito mais é impossível, pela mesma incapacidade, que
nenhum homem seja exaltado ao estado pelo qual foi feito. Por tanto, uma satisfação,
como a que demonstramos mais acima, necessária para o pecado, deve se encontrar
fora da fé cristã (coisa que nenhuma razão pode demonstrar), ou devemos aceitar a
doutrina cristã. Pois o que está claramente expresso pelo raciocínio, de modo algum,
deve ser questionado, ainda que o método não seja compreendido.
Boso. O que dizes é certo.
Anselmo. Por que, então, perguntas mais?
Boso. Eu não venho com o propósito de que elimines as dúvidas da minha fé,
senão para que me mostres a razão da minha certeza. Portanto, como me trouxestes
até aqui com teu raciocínio, para que eu perceba que o homem como um pecador
deve a Deus por seu pecado o que é incapaz de pagar, e não pode ser salvo sem pagar;
desejo que vás mais longe comigo, e me permita compreender, pela força do
raciocínio: (1) a aptidão de todas as coisas, as quais a fé católica nos ordena em
relação a Cristo, se esperamos ser salvos; (2) como servem para a salvação do
homem; e (3) como Deus salva o homem por compaixão; quando ele nunca perdoa
seu pecado, a menos que o homem o pague o que é devido à causa de seu pecado. E,
para fazer seu raciocínio mais claro, comece pelo básico para estabelecê-lo sobre uma
base sólida.
Anselmo. Então, que Deus me ajude, pois não gostas de mim minimamente,
nem consideras a debilidade da minha habilidade, quando me encomendas uma obra
tão grande. Sem embargo, tentarei, como comecei, não confiando em mim mesmo,
senão em Deus, e farei o que posso com sua ajuda. Mas separemos as coisas que
ainda precisam ser ditas das que já foram ditas, com uma nova introdução, para que,
pela duração da interrupção, estas coisas não se tornem tediosas para quem quiser
lê-las.
SEGUNDO LIVRO

CAPÍTULO I. Como o homem foi criado por Deus para ser feliz em Sua
alegria.

Anselmo. Não deve ser discutido se a natureza racional foi criada por Deus
para ser feliz em gozá-la. Por causa disso é racional, para discernir a justiça e a
injustiça, o bem e o mal, o bem maior e o menor. Do contrário, o fez racional em vão.
Mas Deus não criou o racional em vão. Por isso, sem dúvida, o fez racional para este
fim. Da mesma maneira se mostra que a criatura inteligente recebeu o poder do
discernimento com este propósito, para odiar e evitar o mal, para amar e escolher o
bem, especialmente o bem maior. Porque, caso contrário, em vão Deus lhe teria dado
esse poder de discernimento, já que, a menos que amasse e evitasse um bem maior, a
discrição do homem seria inútil. Porém, não convém a Deus dar tal poder em vão.
Portanto, estabeleceu-se que a natureza racional foi criada para este fim, a saber, para
amar e escolher o bem supremo, por seu próprio bem e nada mais. Porque se o bem
supremo fosse escolhido por qualquer outra razão, então esta coisa e não o bem
supremo seria a coisa amada. Mas a natureza inteligente não pode cumprir este
propósito sem ser santo. Portanto, para não ser racional em vão, foi criado para
cumprir este propósito, tanto racional como santo. Agora, se foi santificado para
escolher e amar o bem supremo, então foi feito tal para seguir, às vezes, o que amou e
escolheu, ou não foi. Mas se não foi santificado para este fim, para seguir o que ama e
escolher, então, foi feito em vão. E não pode haver nenhuma razão pela qual deve
estar sempre obrigado a seguir a santidade. Portanto, enquanto é santo em amar e
escolher o bem supremo, pelo qual foi feito, será miserável; porque, apesar de sua
vontade, será impotente, assim que não tem o que deseja. Mas isto é totalmente
absurdo. Portanto, a natureza racional foi santificada para ser feliz em gozar do bem
supremo, que é Deus. Portanto, o homem, cuja natureza é racional, foi santificado
para este fim, para ser feliz em gozar de Deus.

CAPÍTULO II. Como o homem nunca teria morrido, a menos que tivesse
pecado.
Anselmo. Por outro lado, se mostra facilmente que o homem não foi feito
para necessariamente morrer; porque, como já dissemos, é inconsistente com a
sabedoria e justiça de Deus obrigar o homem a sofrer a morte sem culpa, quando o
fez santo para desfrutar da bem-aventurança eterna. Portanto, deduz-se que se o
homem nunca tivesse pecado, nunca teria morrido.

CAPÍTULO III. Como o homem ressuscitará com o mesmo corpo que tem
neste mundo.

Anselmo. Disto se mostra claramente a ressurreição futura dos mortos.


Porque se o homem será perfeitamente restaurado, a restauração o fará tal como
tinha sido se nunca tivesse pecado.
Boso. Tem que ser assim.
Anselmo. Portanto, como o homem, se não tivesse pecado, haveria sido
transladado com o mesmo corpo em um estado imortal, de modo que quando for
restaurado, deve estar com seu próprio corpo como viveu neste mundo.
Boso. Mas, o que diremos à quem nos diz que isto é suficientemente justo em
relação àquele nos quais a humanidade será perfeitamente restaurada, mas não
necessária quanto ao réprobo?
Anselmo. Não sabemos nada mais justo ou apropriado que isto, que como
homem, se tivesse continuado em santidade, estaria perfeitamente feliz pela
eternidade, tanto no corpo como na alma; assim, se persevera na maldade, também
será completamente miserável para sempre.
Boso. Você rapidamente me satisfez nestes assuntos.

CAPÍTULO IV. Como Deus completará, em relação à natureza humana, o


que começou.

Anselmo. Destas coisas podemos ver facilmente que Deus completará o que
começou em relação à natureza humana, ou fez em vão uma natureza tão elevada,
capaz de tão grande bem. Com isto, se entende que Deus não fez nada mais valioso
que a existência racional capaz de desfrutá-lo; é totalmente alheio a seu caráter supor
que quisesse que a existência racional perecesse completamente.
Boso. Nenhum ser racional pode pensar o contrário.
Anselmo. Por tanto, é necessário que Ele aperfeiçoe o que começou na
natureza humana. Mas isto, como já dissemos, não pode se conquistar senão por uma
expiação completa do pecado, que nenhum pecador pode efetuar por si mesmo.
Boso. Agora entendo que é necessário que Deus complete o que começou,
para que não haja um descrédito de seu plano.

CAPÍTULO V. Como, ainda que necessário, Deus não pode fazer por uma
necessidade obrigatória; e qual é a natureza dessa necessidade que tira
ou diminui a gratidão, e que necessidade a aumenta.

Boso. Mas se assim é, então Deus parece ser obrigado, para evitar o que é
impróprio, assegurar a salvação do homem. Como, então, pode se negar que o faz
mais por sua conta do que pela nossa? Mas se assim é, que graças lhe devemos pelo
que faz por si mesmo? Como atribuiremos nossa salvação a sua graça, se nos salva
por necessidade?
Anselmo. Existe uma necessidade que tira ou diminui nossa gratidão a um
benfeitor, e existe também uma necessidade pela qual o favor merece ainda maiores
graças. Pois quando um se beneficia de uma necessidade a que se submete
involuntariamente, se deve menos graças, ou nenhuma. Mas quando se coloca
livremente sob necessidade para beneficiar a outro, e sustenta essa necessidade sem
renúncia, então certamente merece maior agradecimento pelo favor. Porque isto não
deve se chamar necessidade, senão graça, assim que empreendeu ou manteve, não
com alguma restrição, senão livremente. Pois se o que hoje prometes de tua própria
vontade, darás amanhã, e darás amanhã com a mesma vontade; ainda que seja
necessário, se é possível, redimir tua promessa, ou se fazer mentiroso; não obstante, o
beneficiário de teu favor está tão endividado por teu precioso presente como se não o
tivesses prometido, pois não fostes obrigados a fazê-lo seu devedor antes de dá-lo:
assim é quando um se compromete por um voto, um projeto de vida santa. Pois ainda
que depois do seu voto deva necessariamente executá-lo, não seja ele sofredor do
juízo de um apóstata, e, apesar de que pode ser obrigado a mantê-lo, ainda que
relutantemente, sem embargo, se mantém seu voto alegremente, não é menos, mas
mais agradável a Deus que se não tivesse feito o voto. Porque não só renunciou a vida
mundana, senão também sua liberdade pessoal, pelo bem de Deus; e não pode se
dizer que viva uma vida santa por necessidade, mas com a mesma liberdade com a
que fez o voto. Muito mais, portanto, devemos dar graças a Deus por ter completado
seu favor para com o homem; ainda que, verdadeiramente, não seria apropriado que
ele fracasse em seu bom plano, porque não querendo nada para si mesmo o começou
por nosso bem e não pelo seu próprio. Porque o que o homem estava a ponto de fazer,
não estava escondido de Deus em sua criação; sem embargo, ao criar livremente o
homem, Deus estava obrigado a completar o bem que tinha começado. Em suma,
Deus não faz nada por necessidade, já que não está obrigado ou restringido. Quando
dizemos que Deus faz algo para evitar a desonra, que certamente não teme, devemos
dizer que Deus faz isto pela necessidade de manter sua honra; cuja necessidade não é
mais que isto: a imutabilidade de sua honra, a qual pertence em si mesmo, e não se
deriva de outro; portanto não se chama corretamente necessidade. Sem embargo,
podemos dizer que, ainda que toda a obra que Deus faz pelo homem é por graça, é
necessário que Deus, por causa de sua imutável bondade, complete a obra que
iniciou.
Boso. Concordo.

CAPÍTULO VI. Como nenhum ser, exceto o Deus-Homem, pode fazer a


expiação pela qual o homem é salvo.

Anselmo. Mas isto não pode ser efetuado, exceto que o preço pago a Deus
pelo pecado do homem seja algo maior que todo o universo à parte de Deus.
Boso. Assim parece.
Anselmo. Ademais, é necessário que aquele que pode dar a Deus algo seu,
que seja mais valioso que todas as coisas possuídas por Deus e maior que tudo o que
não seja Deus mesmo.
Boso. Não posso negar isso.
Anselmo. Portanto, só Deus pode fazer esta satisfação.
Boso. Aparentemente.
Anselmo. Mas ninguém além de um homem deve fazer isto, outro homem
sábio não faria a satisfação.
Boso. Nada parece mais justo.
Anselmo. Se é necessário, pois, que a Cidade Celestial seja feita de homens,
isto não pode se realizar, a menos que se faça a dita satisfação que ninguém pode
fazer senão Deus, é necessário que o Deus-Homem a faça.
Boso. Agora bem-aventurado seja Deus! Temos feito uma grande descoberta
em relação à nossa pergunta. Continue, pois, como começou. Porque espero que Deus
nos ajude.
Anselmo. Agora devemos nos perguntar como Deus pode chegar a ser
homem.

CAPÍTULO VII. Quão necessário é que o mesmo ser seja Deus perfeito e
homem perfeito.

Anselmo. As naturezas divinas e humanas não podem se alternar, para que o


Divino se faça humano, ou, o Divino, humano; não podem estar tão mescladas como
que uma terceira, que não é totalmente divina nem totalmente humana, deva ser
produzida a partir das duas. Visto que, concede-se que seja possível que uma possa
ser alterada na outra, seria nesse caso só Deus e não homem, ou só homem e não
Deus. Ou, se estivessem tão mescladas que uma terceira natureza surja da
combinação das duas (a partir de dois animais, um macho e uma fêmea de espécies
diferentes, se produz um terceiro, que não conserva toda a espécie de qualquer dos
pais, mas têm uma natureza mista, derivada de ambos), não seria Deus nem homem.
Portanto, o Deus-Homem, que necessitamos para ser de uma natureza
humana e divina, não pode ser produzido pela mudança de uma à outra, nem por
uma mescla imperfeita de ambos em uma terceira, visto que estas coisas não podem
ser, ou, se poderiam ser, não serviriam de nada para nosso propósito. Ademais, se diz
que estas duas naturezas completas estão unidas de alguma forma, de tal maneira
que uma pode ser Divina enquanto que a outra é humana, sem embargo, o que é Deus
não é o mesmo com o que é homem, é impossível para ambos fazer o trabalho
necessário para ser conquistado. Porque Deus não fará, porque não tem dívida a
pagar; e o homem não fará, porque não pode. Portanto, para que o Deus-Homem
possa realizar isto, é necessário que o mesmo ser aperfeiçoe a Deus e aperfeiçoe o
homem, a fim de fazer esta expiação. Porque não pode e não deve fazê-lo, a menos
que seja Deus e homem. Visto que, então, é necessário que o Deus-Homem preserve a
plenitude de cada natureza, não é menos necessário que estas duas naturezas estejam
unidas em uma só pessoa, assim como um corpo e uma alma racional existem juntos
em cada ser humano; pois, do contrário, é impossível que o mesmo ser seja Deus e
homem.
Boso. Tudo o que dizes é satisfatório para mim.

CAPÍTULO VIII. Como foi para Deus se encarnar em um homem da raça


de Adão, e nascer de uma mulher.

Anselmo. Agora nos resta saber de onde e como Deus assumiu a natureza
humana. Porque Ele ou a tomou de Adão, ou fez um homem novo, como fez
originalmente com Adão. Mas se ele faz um homem novo, não pertencente à raça de
Adão, então este homem não pertencerá à família humana que descendeu de Adão,
portanto, não deve fazer expiação por ela, porque nunca pertenceu a ela. Porque,
como é justo que o homem faça expiação pelo pecado do homem, também é
necessário que o que faz a expiação seja o próprio ser que pecou, ou um da mesma
raça. Do contrário, nem Adão nem sua raça fariam satisfação por si mesmos.
Portanto, como através de Adão e Eva, o pecado foi propagado entre todos os
homens, de modo que ninguém mais que eles mesmos, ou um nascido deles, deve
fazer expiação pelo pecado dos homens. Visto que não podem, um deles deve cumprir
esta obra. Ademais, como Adão e toda sua raça, se não tivessem pecado, teriam
permanecido firmes sem o apoio de nenhum outro ser, assim que, depois da queda, a
mesma raça deve se elevar e se exaltar por si mesma. Porque, quem restabelecer a
raça, certamente se manterá por esse ser que fez esta restauração. Ademais, quando
Deus criou a natureza humana somente em Adão, e somente formou a mulher do
homem, que pela união de ambos os sexos poderia ter uma descendência, nisto
mostrou claramente que desejava produzir tudo o que queria em relação aos seres
humanos somente da natureza do homem. Portanto, se a raça de Adão fosse
reestabelecida por qualquer ser que não seja da mesma raça, não seria restaurada a
dignidade que tinha, se Adão não tivesse pecado, e assim não seria completamente
restaurada; ademais, Deus pareceu ter fracassado em seu propósito, tais suposições
são incongruentes: Portanto, é necessário que o homem, pelo qual a raça de Adão é
restaurada, seja tomado de Adão.
Boso. Se seguimos a razão, como nos propusemos fazer, este é o resultado
necessário.
Anselmo. Examinemos agora a questão de se a natureza humana tomada por
Deus deve se produzir de um pai e de uma mãe, como o são os demais homens, ou
somente do homem ou somente da mulher. Porque, em qualquer destes três modos
que suceder, se produzirá de Adão e Eva, já que destes dois é que cada pessoa de
ambos os sexos descendeu.
Boso. Até agora, está bem.
Anselmo. Não é um grande esforço demonstrar que esse homem chegará a
existir de uma maneira mais nobre e mais pura, se é produzido somente pelo homem,
ou somente pela mulher, que se brota da união de ambos, como fazem todos os
demais homens.
Boso. Concordo contigo.
Anselmo. Portanto, deve ser tomado somente do homem ou somente da
mulher.
Boso. Não existe outra fonte.
Anselmo. Deus pode criar o homem de quatro maneiras, a saber, (1) do
homem e da mulher, no modo comum; (2) nem do homem e nem da mulher, igual
criou Adão; ou (3) do homem sem a mulher, como fez a Eva; ou (4) da mulher sem o
homem, que até agora nunca fez. Pelo qual, para demonstrar que este último modo
estava também sob seu poder, e estava reservado para este propósito, o que é mais
apropriado que tomar esse homem, cuja origem buscamos, de uma mulher sem um
homem? Agora então, se é ou não mais digno ser nascido de uma virgem, não
devemos discutir, senão afirmar, sem lugar a dúvidas, que o Deus-Homem deve
nascer de uma virgem.
Boso. Teu discurso gratifica meu coração.
Anselmo. O que temos dito parece lógico, ou insubstancial como uma nuvem,
como dizes que os incrédulos declaram?
Boso. Nada pode ser mais sólido.
Anselmo. Não pintes, portanto, sobre o vazio sem fundamento, senão sobre a
verdade sólida, e diga quão conveniente é que, como o pecado do homem e a causa de
nossa condenação surgiram de uma mulher, também a cura do pecado e a fonte de
nossa salvação devem ser encontradas em uma mulher. Para que as mulheres não se
desesperem em alcançar a herança dos bem-aventurados, porque esse mal tão severo
surgiu da mulher, é apropriado que, igualmente, da mulher se levante tão grande
bendição, para que suas esperanças possam se reavivar. Pega também esta visão. Se
fora uma virgem que trouxe todo o mal sobre a raça, é muito apropriado que uma
virgem seja a ocasião de todo bem. E isto também. Se a mulher, que Deus fez somente
do homem, foi feita de uma virgem, é peculiar para esse homem também, que nasça
de uma mulher, para nascer de uma mulher sem homem. Das imagens que podem ser
agregadas a isto, mostrando que o Deus-Homem deve nascer de uma virgem, não
diremos nada. Estas são suficientes.
Boso. São sem dúvidas muito bonitas e raciocináveis.

CAPÍTULO IX. Como, por necessidade, a Palavra só pode se unir em uma


pessoa com o homem.

Anselmo. Agora devemos investigar mais, em que pessoa, Deus, que existe
em três pessoas, tomará para si a natureza do homem. Pois, uma pluralidade de
pessoas não podem tomar a um só e um mesmo homem em uma unidade de pessoa.
Portanto, em uma só pessoa se pode fazer isto. Mas quanto a esta unidade pessoal de
Deus e do homem, e em qual das pessoas divinas isto deve ser efetuada, me expressei,
na medida em que me parece necessário para a presente pesquisa, em uma carta
sobre a Encarnação da Palavra, dirigida ao meu senhor, o Papa Urbano.
Boso. Sem embargo, dê uma olhada neste assunto, porque a pessoa do Filho
deve se encarnar mais que a do Pai ou do Espírito Santo.
Anselmo. Se uma das outras pessoas se encarnam, haverá dois Filhos antes
da encarnação, e ele que também, pela encarnação, será o filho da virgem; e entre as
pessoas que sempre devem ser iguais, haverá uma desigualdade quanto à dignidade
do nascimento. Porque o nascido de Deus terá um nascimento mais nobre que o que
nasceu da virgem. Do mesmo modo, se o Pai se encarnasse, haveria dois netos na
Trindade, porque o Pai, ao assumir a humanidade, seria neto dos pais da virgem, e a
Palavra, ainda que não tenha nada a ver com o homem, seria ainda o neto da virgem,
visto que seria filho de seu filho. Mas todas estas coisas são incongruentes e não
pertencem a encarnação da Palavra. E existe outra razão que faz mais apropriado que
o Filho seja encarnado do que as outras pessoas. É que é mais apropriado para o
Filho orar ao Pai, do que para qualquer outra pessoa da Trindade para suplicar ao seu
companheiro. Ademais, o homem, por quem devia orar, e o diabo, a quem devia
vencer, por sua própria vontade, se colocaram em uma igualdade falsa com Deus.
Portanto, pecaram, por assim dizer, especialmente contra a pessoa do Filho, que se
crê que é a imagem de Deus. Portanto, o castigo ou perdão da culpa é atribuído com
uma propriedade peculiar atribuída a Ele, sobre quem principalmente se infligiu a
ferida. Visto que, portanto, a razão infalível nos levou a esta necessária conclusão de
que as naturezas Divina e humana devem se unir em uma só pessoa e que isto é
evidentemente mais apropriado à pessoa da Palavra do que às outras pessoas,
determinamos que Deus, a Palavra, deve se unir com o homem em uma só pessoa.
Boso. A maneira em que me guias está tão conduzida pela razão que não
posso me desviar dela nem para a direita nem para a esquerda.
Anselmo. Não sou eu quem os guia, senão Ele, do qual estamos falando, sem
cuja guia não temos poder para guardar o caminho da verdade.

CAPÍTULO X. Como este homem não morre por uma dívida; em que
sentido pode ou não pode pecar; e como nem ele nem um anjo merecem
louvor por sua santidade, se lhes é impossível pecar.

Anselmo. Não devemos nos perguntar se este homem estava a ponto de


morrer como uma dívida, como todos os demais homens. Porque se Adão não tivesse
morrido se não pecasse, muito menos este homem devia sofrer a morte, em quem não
havia pecado, porque ele é Deus.
Boso. Deixa-me atrasar um pouco este ponto. Em qualquer caso, não me cabe
dúvida se pode dizer que pode ou que não pode pecar. Porque se diz que não pode
pecar, pareceria difícil acreditar. Porque dizer uma palavra acerca dele, não de um
que nunca existiu na forma que falamos até agora, senão como de um que
conhecemos e cujas obras conhecemos; quem negará que poderia ter feito muitas
coisas as quais chamamos de “pecaminosas”? Porque, por não falar de outras coisas,
como diríamos que não foi possível para ele cometer o pecado da mentira? Porque
quando ele disse de seu Pai aos judeus: “se digo que não o conheço, serei mentiroso
como vocês”, e nesta frase usa as palavras: “eu não o conheço”, quem disse que não
poderia ter pronunciado estas mesmas quatro palavras, ou expressar o mesmo de
outra maneira, se tivesse declarado: “eu não o conheço?”. Se tivesse feito isso, haveria
sido um mentiroso, como ele mesmo disse e, portanto, um pecador. Contudo, visto
que ele podia fazer isto, podia pecar.
Anselmo. É verdade que eu podia dizer isto, e também que não poderia
pecar.
Boso. Como é isso?
Anselmo. Todo poder segue a vontade. Porque, quando digo que posso falar
ou caminhar, se entende, se eu escolho. Porque se a vontade não está implícita como
ação, não há poder, senão somente necessidade. Porque, quando digo que posso ser
arrastado ou atado involuntariamente, não é meu poder, senão a necessidade e o
poder de outro. Já que sou capaz de ser arrastado ou atado em nenhum outro sentido
do que este, que outro possa me arrastar ou me atar. Assim podemos dizer de Cristo,
que ele podia mentir, como o entendemos, se ele escolhesse fazê-lo. Visto que não
podia mentir involuntariamente e não podia desejar mentir, não obstante, se pode
dizer que não podia mentir. Assim que desta maneira é verdade que ele podia e não
podia mentir.
Boso. Agora voltemos a nossa investigação original em relação a esse homem,
como se nada se soubesse dele. Digo, pois, se não podia pecar, porque, segundo tu,
não podia querer pecar, conserva a santidade da necessidade e, portanto, não seria
santo por livre arbítrio. Que graças, pois, se mereceria por sua santidade? Porque
estamos acostumados a dizer que Deus fez o homem e o anjo capazes de pecar por
isto, que por sua própria vontade queriam manter a santidade, ainda que pudessem
tê-la abandonado, poderiam merecer elogio e recompensa que não tinha tido se
tivessem sido necessariamente santas.
Anselmo. Não são dignos de louvor os anjos, ainda que incapazes de cometer
pecado?
Boso. Sem dúvida o são, porque mereciam esta incapacidade atual de pecar
no fato de que quando podiam pecar se negavam fazê-lo.
Anselmo. O que dizes em relação a Deus, quem não pode pecar, e sem
embargo, não mereceu isto, ao se negar a pecar quando teve o poder? Não deve ser
louvado por sua santidade?
Boso. Eu gostaria que me respondesses essa pergunta; porque se digo que não
merece elogios, sei que falo falsamente. Se, pelo contrário, digo que merece elogios,
temo invalidar meu raciocínio em relação aos anjos.
Anselmo. Os anjos não devem ser louvados por sua santidade porque
poderiam pecar, senão porque é devido a eles mesmos, em certo sentido, que agora
não podem pecar. Neste aspecto são em uma medida como Deus, que é, em si
mesmo, tudo o que possui. Porque se diz que uma pessoa dá uma coisa, que não tira
quando pode; fazer algo é o mesmo que não impedi-lo, quando isso está no poder de
um. Portanto, quando o anjo poderia se apartar da santidade, sem embargo, não o
fez, e se poderia tornar ímpio e não o fez, podemos dizer com propriedade que se
conferia virtude assim mesmo e se tornaria santo. Neste sentido, portanto, tem a
santidade de si mesmo (porque a criatura não pode tê-la de outra maneira) e,
portanto, deve ser louvado por sua santidade, porque não é santo de necessidade
senão livremente; por isto se chama incorretamente necessidade, pois não implica
nem compulsão nem restrição. Portanto, visto que tudo o que Deus tem, o tem
perfeitamente de si mesmo, é, sobretudo, para ser louvado pelos bens que possui e
não por alguma necessidade, senão, como antes se disse, por sua infinita
imutabilidade. Portanto, da mesma maneira, esse homem que também será Deus,
visto que todo o bem que possui provém voluntariamente e, portanto, merecerá
louvor. Pois, ainda que da natureza humana terá o quem tem da natureza Divina, sem
embargo, também a terá de si mesmo, já que as duas naturezas se uniram em uma só
pessoa.
Boso. Me satisfazestes neste ponto; e vejo claramente que é verdade que ele
não podia pecar, ainda que mereça louvor por sua santidade. Mas agora creio que
surge a pergunta, já que Deus pode fazer a um homem assim, porque não criou anjos
e nossos primeiros pais para serem incapazes de pecar e, sem embargo, louváveis por
sua santidade?
Anselmo. Sabes o que está dizendo?
Boso. Creio que entendo, portanto me pergunto por que não os fez assim.
Anselmo. Porque não era possível nem correto que alguém deles fosse igual a
Deus, como dissemos que era o homem. E se perguntas por que não trago as três
pessoas, ou ao menos a Palavra, a unidade com os homens nesse momento,
respondo-te: porque a razão não exigia tal coisa, senão que a proibiu completamente,
porque Deus não faz nada sem razão.
Boso. Fico envergonhado ao perguntar. Continue com o que tens que dizer.
Anselmo. Devemos concluir, pois, que, na medida em que não seria um
pecador, não devia estar sujeito à morte.
Boso. Devo concordar contigo.

CAPÍTULO XI. O que é pecar e fazer satisfação pelo pecado.

Anselmo. Devemos perguntar, portanto, de qual maneira Deus descarta os


pecados dos homens. E, para fazê-lo mais claramente, consideremos primeiro o que é
o pecado e o que é satisfazer o pecado.
Boso. Tu explicas e eu ouço.
Anselmo. Se o homem e os anjos sempre renderam o devido a Deus, nunca
pecariam.
Boso. Não posso negar.
Anselmo. Portanto, o pecado não é outra coisa que não render a Deus o
devido.
Boso. Qual é a dívida que devemos a Deus?
Anselmo. Todo desejo de uma criatura racional deve estar sujeito à vontade
de Deus.
Boso. Nada é mais certo que isso.
Anselmo. Essa é a dívida que os anjos e os homens devem a Deus, e ninguém
que paga essa dívida comete pecado. Mas todo aquele que não paga, peca. Isso é
justiça, ou retidão de vontade, que faz que um ser seja justo ou reto no coração, ou
seja, na vontade. E essa é a única e completa dívida de honra que devemos a Deus e
que Deus requer de nós. Pois é tão só uma vontade, quando se pode exercer, que faz
obras agradáveis a Deus; e quando essa vontade não pode ser exercida, é agradável
por si só, já que sem ela nenhum trabalho é aceitável.
O que não paga essa honra que é devida a Deus, rouba a Deus o que é seu e o
desonra; e isso é pecado. Ademais, enquanto não restaura o que tirou, permanece na
culpa; e não basta restaurar o que se tirou, senão que, tendo em conta o mal causado,
deve restaurar mais do que tirou. Porque como quem coloca em perigo a saúde outro,
não basta restaurar sua saúde, sem compensar a dolorosa angústia causada. Assim o
que viola a honra de outro não basta rende honra outra vez, senão que deve, segundo
a extensão do dano causado, fazer a restauração de alguma forma satisfatória à
pessoa que desonrou. Também devemos observar que quando alguém paga de volta o
que injustamente tirou, deve dar algo que não se poderia ter exigido dele, se não
tivesse roubado o que pertencia a outro. Assim, todo aquele que peca deve devolver a
honra que roubou de Deus; e essa é a satisfação que todo pecador deve a Deus.
Boso. Visto que decidimos seguir a razão em todas essas coisas, não posso
fazer nenhuma objeção contra elas, ainda que me assustes um pouco.

CAPÍTULO XII. Como, ainda que compartilhe de nossa debilidade, não é,


por conseguinte, miserável.
Boso. Todas estas coisas demonstram claramente que ele deve ser mortal e
participar de nossas debilidades. Mas todas estas coisas são nossas misérias. Será,
então, miserável?
Anselmo. Não, de fato! Porque como nenhuma vantagem que um tem à parte
de sua eleição constitui a felicidade, então não existe miséria ao escolher suportar
uma perda, quando a escolha é sábia e feita sem obrigação.
Boso. Certamente, isto deve ser permitido.

CAPÍTULO XIII. Como, juntamente com outras de nossas debilidades, ele


não participa de nossa ignorância.

Boso. Mas, diga-me se, nesta semelhança com os homens que deve ter,
herdará também nossa ignorância, como faz com nossas outras debilidades?
Anselmo. Duvidas da onipotência de Deus?
Boso. Não! Mas, ainda que este homem seja imortal em relação à sua
natureza Divina, será mortal em sua natureza humana. Por que não será como eles
em sua ignorância, como o é em sua mortalidade?
Anselmo. Essa união da humanidade com a pessoa Divina não se efetuará
senão de acordo com a mais alta sabedoria; portanto, Deus não tomará nada do
homem que seja somente inútil, senão até um impedimento para a obra que esse
homem deve cumprir. Pois a ignorância não é útil, senão muito prejudicial. Como
pode realizar obras, tantas e tão grandes, sem a mais alta sabedoria? Ou, como os
homens crerão se o encontram ignorante? E se é ignorante, de que lhe servirá? Se
nada é amado, exceto como se sabe, e não há coisa boa que ele não ame, então não
pode ter coisa boa da qual seja ignorante. Mas ninguém entende perfeitamente o
bem, com exceção de quem pode distingui-lo do mal; ninguém pode fazer esta
distinção senão aquele que sabe o que é o mal. Portanto, como de quem estamos
falando compreende perfeitamente o que é bom, não pode haver nenhum mal com o
que ele não esteja familiarizado. Conseguintemente, deve ter todo conhecimento,
ainda que não demonstre abertamente em sua relação com os homens.
Boso. Em seus anos mais maduros, isto parece ser como você disse, mas, na
infância, já que não era um momento oportuno para descobrir a sabedoria, assim não
era necessário e, contudo, não havia nenhuma propriedade nele para tê-la.
Anselmo. Eu não disse que a encarnação seria feita sabiamente? Mas Deus,
em sabedoria, assumirá essa mortalidade, da que se serve tão amplamente, por um
propósito tão grande. Mas não podia sabiamente assumir a ignorância, porque isto
nunca é útil, mas sempre prejudicial, exceto quando uma má vontade é dissuadida de
agir por causa dela. Mas, nele nunca houve um mau desejo. Porque se a ignorância
não fazia dano em nenhum outro aspecto, o faz nisto, que tira o bem de conhecer. E
respondendo em uma palavra a tua pergunta: que o homem, pela natureza essencial
de seu ser, estará sempre cheio de Deus; portanto, nunca desejará o poder, a firmeza
ou a sabedoria de Deus.
Boso. Ainda que totalmente incapaz de duvidar da verdade disto em relação a
Cristo, sem embargo, por esta mesma razão, eu pedi o motivo dele. Porque,
frequentemente, estamos seguros de uma coisa, e sem embargo, não podemos
prová-la pela razão.

CAPÍTULO XIV. Como sua morte supera o número e a grandeza de


nossos pecados.

Boso. Agora te peço que me digas como sua morte pode compensar o número
e a magnitude de nossos pecados, quando o menor pecado que podemos pensar
demonstrou ser tão monstruoso que, havendo um número infinito de mundo tão
cheio de existência criada como este, não poderiam se manter, senão cair de novo em
nada, antes que desse uma olhada contrária à justa vontade de Deus.
Anselmo. Se esse homem estivesse aqui diante ti, e soubesse quem era, e te
dissessem que se não o matar, todo o universo, exceto Deus, pereceria, farias isso
para preservar o resto da criação?
Boso. Não! Nem sequer me mostrando um número infinito de mundos antes
de mim.
Anselmo. Mas suponhamos que te dissessem: “Se não o matar, todos os
pecados do mundo serão amontoados sobre ti”.
Boso. Devo responder que preferiria levar todos os demais pecados, não só os
deste mundo presente, passado e futuro, senão também todos os outros que
pudessem ser concebidos. Creio que devo dizer isto, não só em relação a matá-lo,
senão também a menor ferida que lhe pudesse infligir.
Anselmo. Julgas corretamente; mas diga-me por que é que teu coração pensa
que uma lesão infligida a ele é mais atroz que todos os outros pecados que se possam
pensar, enquanto todos os pecados se cometem contra ele?
Boso. Um pecado cometido sobre sua pessoa excede sem comparação todos os
pecados que se possam pensar, que não afetam a sua pessoa.
Anselmo. O que dizes disto, que frequentemente um sofre livremente certos
males em sua pessoa, a fim de não sofrer maiores em sua propriedade?
Boso. Deus não tem necessidade de tal paciência, porque todas as coisas estão
sujeitas a seu poder, como respondeste a minha determinada pergunta mais acima.
Anselmo. Dizes bem; portanto, vemos que nenhuma enormidade ou
multidão de pecados, à parte da pessoa Divina, pode ser comparada por um momento
com uma lesão corporal infligida a esse homem.
Boso. Isto é bem claro.
Anselmo. Quão grande te parece este bem, se a destruição dele é tal
maldade?
Boso. Se sua existência é tão grande como sua destruição é um mal, então é
muito mais um bem do que esses pecados são males, cuja destruição até agora
supera.
Anselmo. Muito verdadeiro. Considera também que os pecados são tão
odiosos como maus, e que a vida só é amável assim que é boa. Portanto, se deduz que
essa vida é mais bonita do que os pecados são odiosos.
Boso. Não posso evitar ver isto.
Anselmo. Não crês que um bem tão grande, em si tão encantador, possa
servir para pagar o que se deve pelos pecados do mundo inteiro?
Boso. Sim! Ele tem mesmo um valor infinito.
Anselmo. Vês, então, como esta vida conquista todos os pecados, se se dá por
eles?
Boso. Claramente.
Anselmo. Se, então dar a vida é sofrer a morte, como o dom de sua vida
supera todos os pecados dos homens, também o será o sofrimento da morte.

CAPÍTULO XV. Como esta morte elimina até os pecados de seus


assassinos.
Boso. Isto é assim em relação a todos os pecados que não afeta a pessoa da
Deidade. Mas, deixa-me te perguntar algo mais. Se é tão grande o mal do matar como
sua vida é um bem, como pode sua morte vencer e destruir os pecados dos que o
mataram? Ou, se destrói o pecado de qualquer deles, como não destruir também o
pecado cometido por outros homens? Porque cremos que muitos homens serão
salvos e muitos não serão salvos.
Anselmo. O Apóstolo responde a pergunta quando diz: “Se o tivessem
entendido, não teriam crucificado o Senhor da Glória” (1Co 2.8). Pois um pecado
cometido conscientemente e um pecado feito ignorantemente são tão diferentes, que
um mal que nunca puderam fazer, se seu alcance completo se conhecesse, pode ser
perdoável quando se faz na ignorância. Porque nenhum homem poderia, ao menos
sabiamente, matar o Senhor; portanto, os que o fizeram na ignorância não se
apressaram nesse crime transcendental com o qual nenhum outro pode ser
comparado. Pois este crime, cuja magnitude consideramos igual ao valor de sua vida,
não o vemos como feito ignorantemente, senão conscientemente; uma coisa que
nenhum homem jamais fez ou poderia fazer.
Boso. Você demonstrou razoavelmente que os assassinos de Cristo podem
obter perdão por seu pecado.
Anselmo. O que mais me perguntas? Por agora, vê como a razão da
necessidade demonstra que o estado celestial deve estar composto pelos homens e
que isto só pode ser pelo perdão dos pecados, que o homem não pode obter senão
pelo homem, que deve ser ao mesmo tempo Divino, e reconciliar aos pecados com
Deus com sua própria morte. Portanto, encontramos claramente que Cristo, a quem
confessamos ser tanto Deus como homem, morreu por nós; e quando isto é
conhecido de toda dúvida, todas as coisas que diz de si mesmo devem ser
reconhecidas como verdadeiras, porque Deus não pode mentir, e tudo o que faz deve
ser recebido como realizado sabiamente, ainda que não entendamos a razão disso.
Boso. O que dizes é certo, e não duvido por um momento de que suas palavras
são verdadeiras, e tudo o que faz é razoável. Mas peço isto para que me reveles, em
sua verdadeira racionalidade, aquelas coisas na fé cristã que parece aos incrédulos
como impróprias ou impossíveis; isto não para me fortalecer na fé cristã, senão para
satisfazer a um já confirmado pelo conhecimento da verdade.
CAPÍTULO XVI. Como Deus tomou esse homem de uma substância
pecaminosa, e sem embargo, sem pecado. Da salvação de Adão e Eva.

Boso. Portanto, como revelou a razão das coisas mencionadas anteriormente,


te rogo que também expliques o que vou te pedir. Primeiro, então, como toma Deus,
de uma substância pecaminosa, ou seja, de uma espécie humana, totalmente
contaminada pelo pecado, um homem sem pecado, como uma massa sem fermento
da que está fermentada? Pois ainda que a concepção deste homem seja pura e livre do
pecado da gratificação carnal, a virgem mesma, da qual nasceu, foi concebida em
iniquidade, e no pecado sua mãe a engendrou, já que ela mesma pecou em Adão, em
quem todos pecaram.
Anselmo. Visto que convém que esse homem seja Deus, e também o
restaurador dos pecadores, não duvidamos de que esteja totalmente sem pecado; mas
isto não servirá de nada, a menos que seja tomado sem pecado e com tudo de uma
substância pecaminosa. Mas se não podemos compreender de que maneira a
sabedoria de Deus efetua isto, devemos surpreender-nos, mas com reverência
devemos permitir que uma coisa de tal magnitude permaneça escondida a nós.
Porque a restauração da natureza humana por Deus é mais maravilhosa que sua
criação; já que qualquer um era igualmente fácil para Deus; mas antes de que o
homem fosse criado, não havia pecado para que não se negasse a existência. Mas
depois que o homem foi criado, por seu pecado, merecia perder sua existência junto
com seu projeto; ainda que nunca a tivesse perdido completamente, em outras
palavras, que fosse capaz de ser castigado ou de receber a compaixão de Deus. Porque
nenhuma destas coisas poderia ter efeito se se aniquilava. Portanto, o homem
restaurador de Deus é mais maravilhoso que seu homem criador, assim que se faz
pelo pecador contra seus desertos; enquanto o ato da criação não era para o pecador,
e não estava em oposição aos desertos do homem. Que grande é também que Deus e o
homem se unam em uma só pessoa, enquanto se mantém a perfeição de cada
natureza, o mesmo ser vai ser Deus e homem! Quem, então, se atreverá a pensar que
a mente humana possa descobrir quão sabiamente, quão maravilhosamente, tão
incompreensível obra foi realizada?
Boso. Não creio que nenhum homem possa descobrir por completo um
mistério tão grande nesta vida, e não desejo que faça o que nenhum homem pode
fazer, senão só para explicá-lo segundo sua capacidade. Pois logo me convencerás de
que há razões mais ocultas neste assunto, mostrando a alguém que sabes, que se, ao
não dizer nada, fazes parecer que não entendes nenhuma razão.
Anselmo. Vejo que não posso escapar de vossa importunidade; mas se tenho
o poder de explicar o que desejas, agradeçamos a Deus por isso. Mas se não, basta
com o dito acima. Porque, visto que está de acordo em que Deus devia se tornar em
homem, sem dúvida Ele não careceria da sabedoria ou do poder para efetuar isto sem
pecado.
Boso. Aceito facilmente isso.
Anselmo. Certamente era apropriado que a expiação que Cristo fez não só
beneficiava aos que viviam nesse tempo, senão também a outros. Pois, suponhamos
que havia um rei contra quem todo o povo de suas províncias se havia rebelado,
somente com a exceção dos que pertenciam a sua raça, e que todos os demais
estavam irremediavelmente condenados. Suponhamos que o único que era
inexcedível teve tão grande favor do rei, e tão profundo amor por nós, como para ser
capaz e estar disposto a salvar a todos os que confiavam em sua guia; e isto por causa
de um serviço muito agradável que estava a ponto de fazer pelo réu, segundo seu
desejo; e na medida em que todos os que haviam de ser perdoados nesse dia não se
reunissem, o rei concederia, pela grandeza do serviço prestado, que quem antes ou
depois do dia designado reconhecesse que desejava obter perdão pela obra daquele
dia cumprida, e se ajustara a condição ali estabelecida, seria liberado de toda culpa
passada; e, se pecavam depois deste perdão, e sem embargo, desejavam fazer
expiação e voltar a se pôr em conformidade pela eficácia deste plano, podiam ser
perdoados novamente, sempre e quando ninguém entrara em sua mansão até que
isto se cumprisse com o qual seus pecados eram eliminados. Da mesma maneira,
visto que todos os que devem ser salvos não podiam estar presentes no sacrifício de
Cristo, sem embargo, tal virtude está ali em sua morte, que seu poder se estende até
aqueles remotos em lugar ou tempo. Mas que deve beneficiar não só aos presentes é
claramente evidente, porque não poderia haver tantos que viveram no momento de
sua morte como são necessários para completar a Cidade Celestial, mesma se todos
os que estavam sobre a terra nesse momento foram admitidos aos benefícios da
redenção. Porque o número de anjos malvados que devem ser tomados dos homens é
maior que o número de homens naquele tempo vivos. Tampouco podemos crer que,
desde que o homem foi criado, houve um tempo em que o mundo, com as criaturas
feitas para o uso do homem, foi tão inútil que não continha nenhum ser humano que
tivesse ganhado o objeto pela qual foi criado. Porque não parece apropriado que
Deus, por um momento, permita que a raça humana, feita para completar a Cidade
Celestial, e as criaturas que Ele fez para seu uso, existam em vão.
Boso. Demonstras por raciocínio correto, como nada pode se opor, que nunca
tivesse um tempo desde que o homem foi criado quando não havia tido alguém que
estivesse ganhando essa reconciliação sem a qual cada homem tivesse sido criado em
vão. De modo que descansemos sobre isto não só como próprio senão também
necessário. Pois se isto é mais adequado e razoável que em qualquer momento não
deveria ter sido ninguém que fosse encontrado cumprindo o projeto pelo qual Deus
fez o homem, e não pode haver nenhuma objeção que se possa fazer a este ponto de
vista, então, é necessário que sempre haja alguma pessoa participando deste perdão
prometido. Portanto, não devemos duvidar que Adão e Eva obtiveram parte nesse
perdão, ainda que a autoridade Divina não faça menção disto.
Anselmo. Também é incrível que Deus os criou e imutavelmente determinou
criar a todos os homens deles, tantos como foram necessários para a Cidade Celestial,
e sem embargo devia excluir a estes dois deste projeto.
Boso. Não, sem dúvida devemos crer que Deus os fez para este propósito, ou
seja, para pertencer ao número daqueles por cujo motivo foram criados.
Anselmo. Entendes bem isso. Mas nenhuma alma, antes da morte de Cristo,
podia entrar no reino celestial, como disse antes, em relação ao palácio do rei.
Boso. Assim cremos.
Anselmo. Ademais, a virgem, da qual foi tomado aquele homem de quem
estamos falando, era do número daqueles que foram purificados de seus pecados
antes de seu nascimento, e ele nasceu dela em sua pureza.
Boso. O que tu dizes me satisfez, se não fosse que ele devia ser puro de si
mesmo, enquanto que ele parece ter sua pureza de sua mãe e não de si mesmo.
Anselmo. Não é assim. Mas como a pureza da mãe, da que ele participou, só
se derivava dele, ele também era puro por e de si mesmo.

CAPÍTULO XVII. Como não podia morrer por necessidade, ainda que não
pudesse nascer, senão como destinado a sofrer a morte.

Boso. Até agora tudo bem. Mas há outra questão que precisa ser estudada.
Pois dissemos antes que sua morte não era questão de necessidade; mas agora vemos
que sua mãe foi purificada pelo poder de sua morte, quando sem ela não poderia ter
nascido dela. Como, então, não era necessária sua morte, quando não podia ser,
exceto visando sua morte futura? Porque se não fosse morrer, a virgem da qual
nasceu não podia ser pura, visto que isto só podia se fazer por fé verdadeira em sua
morte, e se não fosse pura, não podia nascer dela. Se, portanto, sua morte não é uma
consequência necessária de seu nascimento da virgem, nunca podia ter nascido dela;
mas isto é um absurdo.
Anselmo. Se tivesses observado cuidadosamente as observações feitas acima,
terias descoberto facilmente nelas, penso, a resposta para tua pergunta.
Boso. Não vejo como.
Anselmo. Não encontramos, ao considerar a questão de saber se ele mentiria,
que havia dois sentidos da palavra poder em relação a isso, a que se referia a sua
disposição, e a outra, ao ato mesmo; e que, ainda que tinha o poder de mentir, estava
tão firme por sua natureza que não desejava mentir e, portanto, merecia o louvor por
sua santidade no mantimento da verdade?
Boso. Correto.
Anselmo. Do mesmo modo, em relação à preservação de sua vida, existe o
poder de preservar e o poder de querer conservá-la. Quando se pergunta se o mesmo
Deus-homem pode conservar sua vida, para não morrer jamais, não devemos duvidar
de que sempre tivesse o poder se preservar sua vida, ainda que não poderia fazê-lo
com o propósito de escapar da morte. E visto que essa disposição, que para sempre
lhe impede de desejar isso, surge de si mesmo, dá sua vida não por necessidade,
senão por autoridade livre.
Boso. Mas esses poderes não foram em todos os aspectos similares, o poder
de mentir e o poder de preservar sua vida. Pois, se ele quisesse mentir, era
naturalmente capaz de fazê-lo; mas, se queria evitar o outro, não podia fazê-lo mais
do que podia evitar ser o que é. Porque ele se fez homem para esse propósito, e foi
sobre a fé de sua morte vindoura que pôde receber o nascimento de uma virgem,
como disseste acima.
Anselmo. Como pensas que não podia mentir, ou que sua morte era
necessária, porque não podia evitar ser o que era, para que pudesse afirmar que não
podia desejar evitar a morte, ou que desejava morrer por necessidade, porque ele não
podia mudar a constituição de seu ser; porque não se fez homem para morrer, mais
do que por esse propósito, o desejar morrer. Pelo qual, como não deves dizer que não
pôde evitar morrer, ou que por necessidade quis morrer, é igualmente impróprio
dizer que não pôde evitar a morte ou que morreu por necessidade.
Boso. Sim, visto que morrer e desejar morrer estão incluídos no mesmo modo
de raciocinar, ambos pareceriam estar sob uma necessidade similar.
Anselmo. Quem desejaria livremente chegar a ser homem, para que pelo
mesmo desejo imutável sofresse a morte, e que a virgem de quem havia de nascer
pudesse ser pura, pela confiança na certeza disso?
Boso. Deus, o Filho de Deus.
Anselmo. Não estava acima demonstrado, que nenhum desejo de Deus está
absolutamente restringido; senão que se mantém livremente em sua própria
imutabilidade, tantas vezes quanto se diz que necessariamente faz alguma coisa?
Boso. Demonstrastes claramente. Mas vemos, por outro lado, que o que Deus
deseja imutavelmente não pode evitar sê-lo, senão que tem lugar de necessidade.
Portanto, se Deus desejava que esse homem morresse, só podia morrer.
Anselmo. Devido a que o Filho de Deus tomou a natureza do homem com
esse desejo, ou seja, que sofresse a morte, prova que é necessário que esse homem
não pudesse evitar a morte.
Boso. É assim que percebo.
Anselmo. Não parece da mesma maneira o que dissemos que o Filho de Deus
e o homem, cuja pessoa tomou, estavam tão unidos que o mesmo ser devia ser tanto
Deus como homem, o Filho de Deus e o filho da virgem?
Boso. Está correto.
Anselmo. Portanto, o mesmo homem podia morrer e evitar a morte.
Boso. Não posso negar.
Anselmo. Visto que, então, a vontade de Deus não faz nada por nenhuma
necessidade, senão por seu próprio poder, e a vontade desse homem era a mesma que
vontade de Deus, não morreu necessariamente, senão somente por seu próprio
poder.
Boso. Não posso contrariar seus argumentos; porque nem suas proposições
nem sua inferências podem ser minimamente invalidadas. Mas, sem embargo, essa
coisa que mencionou sempre volta à minha mente: que, se desejava evitar a morte,
não podia fazê-lo mais do que podia escapar de sua existência. Porque ele devia ter
pensado que ia morrer, pois se não tivesse sido verdade que estava a ponto de morrer,
não teria existido fé em sua morte vindoura, pela qual a virgem que lhe deu à luz e
muitos outros também foram purificados de seus pecados. Portanto, se podia evitar a
morte, podia se converter em falso o que era verdade.
Anselmo. Por que era certo, antes de morrer, que certamente ia morrer?
Boso. Porque esse era seu desejo livre e imutável.
Anselmo. Se, pois, como disseste, não pôde evitar a morte porque certamente
ia morrer, e devia certamente morrer porque era seu desejo livre e imutável, está
claro que sua incapacidade para evitar a morte não é outra coisa que sua decisão fixa
de morrer.
Boso. Correto; mas seja qual for a razão, segue sendo correto que não podia
evitar sua morte, mas que era necessário que ele morresse.
Anselmo. Fazes um grande alvoroço sobre nada, ou, como diz o ditado:
tropeças com uma palha.
Boso. Não esquecestes minha resposta às escusas que fizestes no começo de
nossa discussão, ou seja, que deves explicar o tema, não aos homens sábios, senão a
mim e a meus companheiros pesquisadores? Permita-me, pois, interrogá-lo como
exige minha lentidão e necedade, para que, como começou até agora, possas ir
esclarecendo todas nossas dúvidas infantis.

CAPÍTULO XVIII (a). Como, com Deus não há necessidade nem


impossibilidade, e o que é uma necessidade coercitiva, e qual destas não
está correta.

Anselmo. Já dissemos que é impróprio afirmar que Deus faz algo, ou que não
pode fazê-lo, por necessidade. Porque toda necessidade e impossibilidade está sob
seu controle.
Mas sua escolha não está sujeita a nenhuma necessidade nem impossibilidade.
Porque nada é necessário ou impossível senão como Ele o deseja. Não, a escolha ou
rejeição de algo como uma necessidade ou uma impossibilidade é contrária à
verdade. Visto que, então, faz o que escolhe e nada mais, já que não existe nenhuma
necessidade ou impossibilidade antes de sua escolha ou rejeição, tampouco
interferem com sua atuação ou não atuação, ainda que seja verdade que sua eleição e
ação são imutáveis. E como, quando Deus faz algo, uma vez que foi feito não pode ser
desfeito, senão que deve seguir sendo um feito real; ainda não estamos no certo ao
decidir que é impossível que Deus impeça que uma ação passada seja o que é. Porque
não há necessidade ou impossibilidade no caso, senão a simples vontade de Deus, que
escolhe que a verdade seja eternamente a mesma, porque Ele mesmo é a verdade.
Igualmente, se tem uma determinação fixa para fazer qualquer coisa, ainda que seu
projeto deva estar destinado a uma conquista antes que suceda, sem embargo, não há
coerção no que diz respeito a Ele, seja para fazê-lo ou não fazê-lo, pois sua vontade é
o único agente no caso. Porque quando dizemos que Deus não pode fazer nada, não
negamos seu poder; pelo contrário, implicamos que Ele tem invencível autoridade e
força. Porque simplesmente queremos dizer que nada pode obrigar a Deus a fazer o
que se diz que é impossível para Ele. Frequentemente usamos uma expressão desse
tipo, que uma coisa pode ser quando o poder não está em si mesmo, senão em outra
coisa; e que não pode ser quando a debilidade não pertence a coisa mesma, senão a
outra coisa. Assim, dizemos: “Um homem assim pode estar atado”, ao invés de dizer:
“Alguém pode atá-lo”. Porque poder ser vencidos não é poder, senão debilidade, e
não poder ser vencidos não é debilidade, senão poder. Tampouco dizemos que Deus
faz algo por necessidade, porque há algo que pertence a Ele, senão porque existe em
outra coisa, precisamente como disse em relação à afirmação de que não pode fazer
nada. Porque a necessidade é sempre compulsão ou contenção; e essas duas classes
de necessidades operam várias vezes por turno, de modo que o mesmo é necessário e
impossível. Pois tudo o que está obrigado a existir também está impedido de não
existir; e aquele que se vê obrigado a existir se vê obrigado a não existir. De modo que
o que existe da necessidade não pode evitar a existência, e é impossível que exista
uma coisa que está sob uma necessidade de inexistência, e vice-versa. Mas quando
dizemos em relação a Deus que algo é necessário ou não necessário, não queremos
dizer que, no que diz respeito a Ele, há necessidade, seja coercitiva ou proibitiva, mas
queremos dizer que há uma necessidade em todo o resto, restringindo ou conduzindo
de uma maneira particular. Enquanto dizemos o contrário de Deus. Porque, quando
afirmamos que é necessário que Deus expresse a verdade e nunca minta, só queremos
dizer que tal é sua inquebrantável disposição de manter a verdade do que por
necessidade nada pode fazer para desviá-la da verdade ou para pronunciar uma
mentira. Quando, então, dizemos que esse homem (que, pela união das pessoas, é
também Deus, o Filho de Deus) não podia evitar a morte ou a eleição da morte,
depois de ter nascido da virgem, não implica que nele tivesse alguma debilidade em
relação a preservar ou escolher conservar sua vida, mas nos referimos à
imutabilidade de seu propósito, pelo qual se converteu livremente em homem para
este desígnio, ou seja, que perseverando em seu desejo sofreria a morte. Esse desejo
nada podia mudar. Pois seria mais debilidade do que poder se tivesse desejado
mentir, enganar ou mudar sua disposição, quando antes havia escolhido que
permaneceria sem alterações. E, como disse antes, quando se decide livremente fazer
algo bom, e depois o termina, ainda que, se não quisesse pagar seu voto, poderia ser
obrigado a fazê-lo, mas não devemos dizer que ele o faz por necessidade, mas com a
mesma liberdade com o qual tomou a resolução. Porque não devemos dizer que se
faça ou não se faça nada por necessidade ou debilidade, quando a livre escolha é o
único agente no caso. E se isso é assim em relação ao homem, muito menos podemos
falar de necessidade ou debilidade em relação a Deus; porque Ele não faz nada exceto
segundo sua escolha, e sua vontade nenhuma força pode conduzir ou restringir. Pois
esse fim foi levado a cabo pelas naturezas unidas de Cristo, a saber, que a natureza
Divina devia realizar a parte da obra necessária para a restauração do homem que a
natureza humana não podia fazer, e que na natureza humana devia se manifestar o
que era inapropriado para o Divino. Por último, a virgem mesma, que foi feita pura
pela fé nele, para que pudesse nascer dela, ela mesma, nunca creu que ele ia morrer,
salvo por sua própria escolha. Porque ela conhecia as palavras do profeta, que dizia
dele: “Foi oferecido por sua própria vontade”. Portanto, visto que sua fé estava bem
fundada, devia necessariamente ser como ela cria. Se te perturba que te diga que é
necessário, lembra que a realidade da fé da virgem não foi a causa da morte dele por
sua própria vontade; mas, porque isso estava destinado a ter lugar, portanto sua fé
era real. Se, portanto, se diz que era necessário que morresse por sua única escolha,
porque a fé e a profecia antecedentes eram verdadeiras, isso não é mais que dizer que
devia ser porque assim devia ser. Mas uma necessidade como esta obrigada a uma
coisa a ser, senão que somente implica uma necessidade de sua existência. Há uma
necessidade antecedente que é a causa de uma coisa, e também há uma necessidade
subsequente que surge da coisa mesma. Assim, quando se diz que os céus giram, é
uma necessidade antecedente e eficiente, porque devem girar. Mas quando digo que
falas de necessidade, porque estás falando, isso não é mais do que uma necessidade
subsequente e inoperante. Porque só quero dizer que é impossível falar e não falar ao
mesmo tempo, e não que alguém te obrigue a falar. Porque a força de sua própria
natureza faz girar o céu; mas nenhuma necessidade te obriga a falar. Mas onde quer
que haja uma necessidade antecedente, há também uma subsequente; mas não
vice-versa. Pois podemos dizer que o céu gira por necessidade, porque gira; mas
tampouco é certo que, falando, o faças por necessidade. Essa necessidade
subsequente pertence a tudo, de modo que dizemos: Tudo o que foi, necessariamente
foi. O que é, deve ser. Seja o que for, necessariamente o será. Essa é a necessidade que
Aristóteles trata (“de propositionibus singularibus et futuris”, proposições singulares
e futuras), e que parece destruir qualquer alternativa e atribuir uma necessidade a
todas as coisas. Por essa necessidade posterior e imperiosa, era necessário (já que a
crença e a profecia acerca de Cristo eram certas, que ele morreria de sua própria
vontade), que assim fosse. Para isso se fez homem; para isso fez e sofreu todas as
coisas empreendidas por ele; para isso ele escolheu como o fez. Porque, portanto,
eram necessárias, porque iam ser, e seriam porque eram, e eram porque eram; e, se
queres conhecer a verdadeira necessidade de todas as coisas que ele fez e sofreu, tê-lo
que eram por necessidade, porque assim desejou que fossem. Mas nenhuma
necessidade precedeu a sua vontade. Portanto, se não iam ser salvos por sua vontade,
então, não queria que não tivesse existido. Assim que, ninguém lhe tirou a vida, senão
que a entregou de si mesmo e a tomou de novo; porque tinha poder para entregá-la e
para tomá-la novamente, como ele mesmo disse.
Boso. Me convencestes de que não se pode provar que foi submetido a morte
por alguma necessidade; E, não posso lamentar minha importunidade em exortá-lo a
explicar.
Anselmo. Creio que demonstramos com suficiente claridade como foi que
Deus tomou a um homem sem pecado de uma substância pecaminosa; mas não
negarei que não haja outra explicação que essa que damos, porque Deus certamente
pode fazer o que a razão humana não pode compreender. Mas visto que isso parece
adequado, e visto que em busca de outros argumentos devemos envolver-nos em
questões tais como a do pecado original, e como foi transmitida por nossos primeiros
padres a toda humanidade, exceto a esse homem de quem estamos falando; e visto
que, também, devemos ser submergidos em várias outras perguntas, cada uma
exigindo sua própria consideração separada; estejamos satisfeitos com esse relato do
assunto, e sigamos completando nosso trabalho.
Boso. Como queiras; mas com essa condição de que, com a ajuda de Deus,
darás alguma vez essa outra explicação, que me deves, por assim dizer, mas que agora
evitas discutir.
Anselmo. Enquanto eu mesmo entretenho esse desejo, não te rejeitarei; mas
devido a incerteza dos acontecimentos futuros, não me atrevo a te prometer, senão
encomendá-lo à vontade de Deus. Mas de agora, o que resta decifrar em relação à
pergunta que propusestes em primeiro lugar, e que evolve muitas outras à ela?
Boso. A substância da pesquisa era essa, por que Deus se fez homem, com o
propósito de salvar aos homens por sua morte, quando pôde ter feito de outra
maneira. E, por numerosas e positivas razões, demonstrou que a restauração da
humanidade não devia ter lugar, e não podia, sem que o homem tivesse pago a dívida
que devia a Deus por seu pecado. Esta dívida era tão grande que, enquanto ninguém
mais que o homem podia pagá-la, ninguém senão Deus podia fazê-lo; para que aquele
que o realizasse devia ser tanto Deus como homem. Portanto, surge a necessidade de
Deus tomar ao homem em unidade com sua própria pessoa; para que o que em sua
própria natureza estivesse obrigado a pagar a dívida, mas não podia, pudesse fazê-lo
na pessoa de Deus. Enfim, demonstrou que esse homem, que também era Deus, devia
ser formado da virgem, e da pessoa do Filho de Deus, e que podia ser tomado sem
pecado, ainda que de uma substância pecaminosa. Ademais, mostrou claramente que
a vida desse homem foi tão excelente e tão gloriosa como para satisfazer amplamente
os pecados do mundo inteiro, e até infinitamente mais. Portanto, agora resta
demonstrar como se faz esse pagamento a Deus pelos pecados dos homens.

CAPÍTULO XVIII (b). Como a vida de Cristo é paga por Deus pelos
pecados dos homens, e em qual sentido deve Cristo, e em qual sentido
não deve ou não está obrigado a sofrer.

Anselmo. Se se permitiu ser morto por causa da justiça, não deu sua vida pela
honra de Deus?
Boso. Parece que sim, mas, ainda que não duvide, não posso entender como
poderia fazê-lo racionalmente. Se vi como podia ser perfeitamente santo e, sem
embargo, preservar para sempre sua vida, reconheceria que ele deu livremente, pela
honra de Deus, tal dom que supera todas as demais coisas exceto Deus mesmo, e é
capaz de expiar todos os pecados dos homens.
Anselmo. Não te dás conta de que quando suportava com paciência os
insultos, a violência e até a crucificação entre os ladrões, mantinha uma santidade
estrita; por isso deu aos homens um exemplos do qual nunca se apartariam da
santidade devida a Deus pelo sacrifício pessoal? Mas, como poderia fazer isso, se
tivesse evitado a morte que lhe havia causado por tal motivo?
Boso. Mas seguramente não havia necessidade disso, pois muitas pessoas
antes de sua vinda, e João Batista depois de sua vinda, mas antes de sua morte,
teriam feito cumprir suficientemente esse exemplo para morrer nobremente pelo
bem da verdade.
Anselmo. Nenhum homem, exceto esse, deu a Deus o que não estava
obrigado a perder, ou pagou uma dívida que não lhe devia. Mas ofereceu
gratuitamente ao Pai o que não havia necessidade de perder, e pagou pelos pecadores
o que não devia por si mesmo. Portanto, colocou um exemplo muito mais nobre, que
cada um não deve vacilar em dar a Deus, por si mesmo, o que devia perder em pouco
tempo, já que era a voz da razão; porque ele, que não carecia de nada para si e não
estava obrigado por outros, que não merecia nada mais que castigo, deu a vida tão
preciosa, até mesmo a vida de um personagem tão ilustre com tal disposição.
Boso. Quase cumpres meus desejos; mas, permita-me que faça uma pergunta,
que pode parecer tonta, mas que, sem embargo, não acho fácil de responder. Dizes
que quando morreu deu o que não devia. Mas ninguém negará que era melhor para
ele, ou que fazendo isso Deus se agradava mais que se não o tivesse feito. Tampouco
ninguém dirá que não estava obrigado a fazer o que era melhor fazer, e o que sabia
ser mais agradável a Deus. Então, como podemos afirmar que não devia a Deus o que
fazia, ou seja, aquele que sabia que era melhor e mais agradável a Deus, e
especialmente porque toda criatura deve a Deus tudo o que é, tudo o que sabe e tudo
o que é capaz de fazer?
Anselmo. Ainda que a criatura não tenha nada de si mesma, sem embargo,
quando Deus lhe concede a liberdade de fazer ou não fazer uma coisa, lhe deixa a
alternativa, de modo que, ainda que um é melhor que o outro, nenhum se exige
positivamente. Qualquer coisa que ele faça, se pode dizer que deve fazê-lo; e se toma
a melhor opção, merece uma recompensa; porque ele dá livremente o que é seu.
Porque ainda que o celibato seja melhor que o matrimônio, ainda assim, tampouco é
imposto ao homem; para que se diga que o que escolhe o matrimônio e o que prefere
o celibato fazem o que devem. Porque ninguém diz que nem o celibato nem o
matrimônio devem ser escolhidos; mas dizemos que o que um homem estima melhor
antes de atuar sobre qualquer uma dessas coisas, isso deve fazer. E se um homem
preserva seu celibato como presente gratuito oferecido a Deus, busca uma
recompensa. Quando dizes que a criatura deve a Deus o que ele sabe que é a melhor
opção, e o que pode fazer, quer dizer que o deve como uma dívida, sem implicar
nenhum mandato da parte de Deus, nem sempre é verdade. Assim, como já disse, um
homem não está obrigado ao celibato como uma dívida, senão que deve se casar se
prefere. E se não podes entender o uso dessa palavra “debere”, quando não há dívida
implícita, permita-me te informar que usamos a palavra “debere” precisamente como
ás vezes fazemos da palavra “posse” e “non posse”, e também “necessitas”, quando a
capacidade, etc., não está nas coisas mesmas, senão em outra coisa. Quando, por
exemplo, dizemos que os pobres devem receber esmolas dos ricos, queremos dizer
que os ricos devem dar esmolas aos pobres. Porque isso é uma dívida que não se deve
aos pobres senão aos ricos. Também dizemos que Deus deve ser exaltado sobre todos,
não porque haja alguma obrigação sobre ele, se não porque todas as coisas devem
estar sujeitas a ele. E ele deseja que todas as criaturas sejam o que deveriam; pelo que
Deus deseja o que deve ser. E da mesma maneira, quando alguma criatura quer fazer
algo que fica completamente a sua disposição, dizemos que deve fazê-lo, porque o que
quer ser deve ser. Assim que nosso Senhor Jesus, quando desejou, como dissemos,
sofrer a morte, teve de fazer precisamente o que fez; porque devia ser o que desejava,
e não estava obrigado a fazer nada como uma dívida. Como é Deus e homem, em
relação à sua natureza humana, que o fez um homem, também deveria ter recebido
da natureza divina o controle sobre si mesmo que o liberou de toda a obrigação, a não
ser que fizesse o que quisesse. Da mesma maneira, como uma pessoa da Trindade,
deveria ter tido todo o que possuía por direito próprio, para ser completo em si
mesmo, não podia estar sob obrigações para com outro, nem ter necessidade de dar
nada para ser ressarcido.
Boso. Agora vejo claramente que não entregou a si mesmo para morrer por
honra a Deus, como uma dívida; porque minha própria razão o demonstra, sem
embargo, deveria ter feito o que fez.
Anselmo. Essa honra certamente pertence a toda Trindade; visto que é Deus,
o Filho de Deus, ofereceu a si mesmo por sua própria honra, assim como pelo Pai e
pelo Espírito Santo; ou seja, deu sua humanidade a sua divindade, que é uma pessoa
do Deus Trino. Mas, ainda que expressemos nossa ideia mais definitivamente,
apegando-nos à verdade precisa, podemos dizer, sem embargo, segundo nosso
costume, que o Filho se entregou livremente ao Pai. Portanto, claramente afirmamos
que ao falar de uma pessoa entendemos toda a Deidade, a quem como homem
ofereceu a si mesmo. E pelos nomes de Pai e Filho, se excita nos corações dos
ouvintes uma maravilhosa profundidade de devoção, quando se diz que o Filho
suplica ao Pai por nós.
Boso. Imediatamente o reconheço.

CAPÍTULO XIX. Como a salvação humana segue sua morte.

Anselmo. Observemos agora, se podemos, como repousa sobre isso a


salvação dos homens.
Boso. Esse é o desejo do meu coração. Pois, ainda que creio que te entendo,
sem embargo desejo obter de ti a estreita cadeia de argumentos.
Anselmo. Não há necessidade de explicar quão precioso era o dom que o
Filho deu livremente.
Boso. Já está bem claro.
Anselmo. Mas seguramente não pensarás que ele não merecia alguma
recompensa, quem livremente deu um presente tão grande a Deus.
Boso. Vejo que é necessário que o Pai recompense o Filho; ou é injusto o não
querer fazê-lo, ou débil por não poder fazê-lo; mas nenhuma dessas coisas pode se
atribuir a Deus.
Anselmo. O que recompensa a outro, ou lhe dá algo que não tem, o lhe
remete algo que lhe corresponde, mas antes da grande oferenda do Filho, todas as
coisas pertencentes ao Pai eram suas, e nunca lhe devia nada que pudesse ser
perdoado. Como pode então se conceder uma recompensa àquele que não precisa de
nada e a quem não se pode presentear ou liberar?
Boso. Vejo, por um lado, a necessidade de uma recompensa, e pelo outro
parece impossível; porque Deus deve necessariamente pagar pelo que deve, e sem
embargo, não há quem o receba.
Anselmo. Mas se uma recompensa tão grande e tão merecida não é dada a ele
ou a ninguém mais, então quase perecerá como se o Filho tivesse feito essa grande
obra em vão.
Boso. Tal suposição é ímpia.
Anselmo. A recompensa então deve ser outorgada a outra pessoa, porque não
pode ser sobre ele.
Boso. É necessariamente assim.
Anselmo. Se o Filho quisesse dar a outro o que era devido, poderia o Pai
impedi-lo, ou se negar a dá-lo a outra pessoa?
Boso. Não! Mas creio que seria justo e necessário que o dom seja dado pelo
Pai, a quem o Filho desejara; porque o Filho deve ser autorizado a dar o que é seu, e o
Pai não pode outorgá-lo, exceto sobre alguma outra pessoa.
Anselmo. A quem concederia melhor a recompensa que se obtém de sua
morte, que sobre aqueles cuja salvação, como a razão correta ensina, se fez homem; e
por cuja causa, como já dissemos, deixou um exemplo de sofrer a morte para
preservar a santidade? Porque certamente em vão os homens lhe imitariam, se não
são também partícipes de sua recompensa. Ou quem poderia ser mais justamente
herdeiro da herança que ele não necessita e do supérfluo de suas possessões que seus
pais e irmãos? O que é mais apropriado que isso, quando contempla a tantos deles,
oprimidos por uma dívida tão pesada, e perdidos pela pobreza, na profundidade de
suas misérias, ele devia remeter a dívida contraída por seus pecados, e lhes dar o que
por suas transgressões haviam perdido?
Boso. O universo não pode ouvir nada mais razoável, mais doce, mais
desejável. E recebo tal confiança disso que não posso descrever a alegria com a qual
meu coração se regozija. Porque me parece que Deus não pode rejeitar a nenhum que
venha a ele em seu nome.
Anselmo. Certamente não, se ele vem retamente. E as Escrituras, que
repousam sobre a verdade sólida como sobre uma base firme, e que com a ajuda de
Deus examinamos um pouco, as Escrituras, digo, nos mostram como aproximar-nos
para compartilhar esse favor, e como devemos viver sob ela.
Boso. E tudo o que se constrói sobre esse fundamento está fundado em uma
rocha inabalável.
Anselmo. Creio que quase respondi sua pergunta, ainda que poderia fazê-lo
mais plenamente, e sem dúvida há muitas razões que estão além de mim e que
qualquer mortal não alcança. Também é evidente que Deus não tinha necessidade de
fazer o que dizia, mas a verdade eterna o exigia. Pois ainda que se diz que Deus fez o
que esse homem fez, por causa da união pessoal feita; mas Deus não necessitava
descer do céu para vencer o diabo, para que aquele que havia ofendido pelo pecado,
expiasse pela santidade. Como Deus não devia nada ao diabo senão o castigo, assim o
homem só deve reparar o pecado ao conquistar o diabo, já que o homem já tinha sido
conquistado por ele. Mas tudo o que se exigia do homem, esse o devia a Deus e não ao
diabo.

CAPÍTULO XX. Quão grande e justa é a compaixão de Deus.

Agora encontramos a compaixão de Deus que parecia perdida por ti quando


estávamos considerando a santidade de Deus e o pecado do homem; o encontramos,
digo, tão grande e tão coerente com sua santidade, que é incomparavelmente superior
a tudo o que se possa conceber. Pois que compaixão pode sobressair a essas palavras
do Pai, dirigidas ao pecador condenado a tormentos eternos e sem escapatória:
“Toma meu Filho unigênito e faça-lhe uma oferenda por ti mesmo”. Ou essas palavras
do Filho: “Leva-me, e resgata suas almas”. Porque essas são as vozes que
pronunciam, ao nos convidar e nos conduzir a fé no Evangelho. Ou pode qualquer
coisa ser mais justa que ele para remeter toda a dívida já que ele ganhou uma
recompensa maior que toda a dívida, se está dada com o amor que ele merece.

CAPÍTULO XXI. Como é impossível que o diabo seja reconciliado.

Se consideras cuidadosamente o esquema da salvação humana, perceberás a


reconciliação do diabo, da qual fizeste a pesquisa, de ser impossível. Pois, como o
homem não podia ser reconciliado senão pela morte do Deus-homem, por cuja
santidade devia ser compensada a perda ocasionada pelo pecado do homem; assim os
anjos caídos não podem ser salvos senão pela morte de um anjo de Deus que por sua
santidade pode reparar o mal ocasionado pelos pecados de seus companheiros. E
como o homem não deve ser restaurado por um homem de uma raça diferente, ainda
que da mesma natureza, pelo qual nenhum anjo deve ser salvo por outro anjo, ainda
que todos fossem da mesma natureza, porque não são como os homens, todos da
mesma raça. Porque todos os anjos não brotaram de um, como todos os homens. E há
outra objeção a sua restauração, ou seja, que, como não caíram com ninguém
tramando sua queda, devem se levantar sem ninguém para lhes ajudar; mas isso é
impossível. Mas de outra maneira não podem ser restaurados à sua dignidade
original. Porque se não tivessem pecado, teriam sido confirmados na virtude sem
nenhuma ajuda externa, simplesmente pelo poder que lhes foi dado desde o
princípio. E, portanto, se alguém pensa que a redenção de nosso Senhor deve se
estender até mesmo aos anjos caídos, está convencido pela razão, mas pela razão foi
enganado. E não digo isso como se negasse que a virtude de sua morte excede muito
todos os pecados dos homens e anjos, senão porque a razão infalível rechaça a
reconciliação dos anjos caídos.

CAPÍTULO XXII. Como se mostra a verdade do Antigo e do Novo


Testamento nas coisas que foram ditas.

Boso. Todas as coisas que dissestes me parecem razoáveis e incontrovertíveis.


E pela solução da única pergunta levantada vejo a verdade de tudo o que está contido
no Antigo e no Novo Testamento. Porque, ao provar que Deus se fez homem por
necessidade, deixando de lado o que tomou da Bíblia, ou seja, as observações sobre as
pessoas da Trindade e sobre Adão, convence tanto a judeus como a pagãos por mera
força da razão. E o Deus mesmo origina o Novo Testamento e aprova o Antigo. E,
como devemos reconhecê-lo como verdadeiro, ninguém pode discordar de qualquer
coisa contida nesses livros.
Anselmo. Se dissemos algo que precisa de correção, se é razoável, estou
disposto a fazer a correção. Mas se as conclusões as quais chegamos pela razão
parecem confirmadas pelo testemunho da verdade, então devemos atribuí-la, não a
nós mesmo, senão a Deus, que é bendito para sempre. –

AMÉM.

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