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introdução

E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes cinemas.


Livro do Desasocego1

Em inícios de 1929, José Régio envia uma carta a Fernando Pessoa,


convidando-o a responder a um inquérito sobre cinema, destinado a
ser publicado na presença, revista fundada dois anos antes em Coim-
bra e na qual Pessoa já era colaborador regular, contribuindo essen-
cialmente com poesia do ortónimo e dos heterónimos. Enquanto
co-director2, Régio reservara desde o primeiro número desta «fôlha
de arte e crítica» um espaço dedicado a artigos de opinião sobre
cinematograia, assinando a rubrica «Legendas cinematográicas»3

1) Fernando Pessoa, Livro do Desasocego. Edição de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 2010, tomo I, p. 261. Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série
Maior, Volume XII, 2 tomos.
2) Os outros directores foram João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, este úl-
timo até ao n.º 26 (Maio/Abril 1930), vindo Adolfo Casais Monteiro, a partir do n.º 33
(Julho/Outubro 1931), a fazer parte da direcção.
3) Esta rubrica aparece apenas durante o 1.º ano de publicação da revista (cf. anexo III).

11
e incluindo notícias sobre estreias de ilmes considerados artísticos,
isto é, de um contexto de produção não hollywoodesca.4
Após uma primeira resposta de Pessoa, datada de Março de 1929,
em que este promete vir a enviar umas «opiniões sobre o cinema» (Car-
tas entre Fernando Pessoa e os directores da presença, 1998: 77; doc. 18)5,
Régio recebe, em Maio do mesmo ano, uma carta na qual o poeta acaba
por recusar a colaboração no referido inquérito, airmando simples-
mente: «Ao inquerito sobre o cinema não responderei. Não sei o que
penso do cinema» (Cartas…, 1998: 78; doc. 19). Declaração categórica
que não contraria a concepção geral de um Pessoa isento de opinião
sobre esta nova forma de expressão artística, à qual vários dos seus
companheiros estiveram de diferentes maneiras ligados6. Contudo,
o carácter peremptório e aparentemente deinitivo dessa airmação
ameniza-se logo no início da frase seguinte, começada por um advér-
bio indicador de rectiicação: «Aliás, preiro não responder a inqueritos.

4) Para uma percepção sinóptica da convivência entre as contribuições de Pessoa e


artigos sobre cinema nos diferentes números da presença, veja-se o anexo III.
5) Para facilitar uma identiicação imediata das fontes em questão, a bibliograia activa
do autor será sempre referida com o título do livro, por exemplo: (Cartas entre Fernando
Pessoa e os directores da presença, 1998) em lugar de (Pessoa, 1998). A referência será dada
in extenso só na primeira ocorrência, passando depois a igurar de forma abreviada (e.g.
Cartas…). Todas as citações serão feitas na ortograia original a partir dos documentos do
espólio pessoano (E3) albergado na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) ou da colecção
que se encontra na posse da sobrinha-herdeira, Manuela Nogueira. Quando as citações
são extraídas da edição crítica, só referiremos a página da edição em questão. Caso o
documento citado nunca tenha sido editado criticamente, referiremos a cota do espólio
e, se for o caso, a edição onde este tenha sido publicado pela primeira vez. A indicação
(doc. [número]) faz referência ao número de ordem que o respectivo documento assume
nesta edição.
6) Destaque-se, por exemplo, António Ferro, com obra publicada sobre o assunto (ver
posfácio).

12
Sobretudo o preiro depois da estupida e deplorável resposta que dei a
um sobre o Fado, no “Noticias Illustrado”»7 (Cartas…, 1998: 78; doc. 19).
Ora, na já referida primeira carta a Régio, a vontade expressa
por Pessoa era bastante diferente, revelando até um certo entusiasmo
perante a proposta e ocasionando uma hesitação quanto à escolha do
autor/autores da resposta8:

Colecção Particular Manuela Nogueira

7) Inquérito publicado no n.º 44 do jornal O Noticias Illustrado (14 de Abril de 1929)


(cf. Cartas…, 1998: 78-79, nota b). Quanto ao inquérito sobre cinema, não chegou a ser
realizado (cf. Cartas…, 1998: 77, nota a).
8) Reproduzimos aqui o rascunho da carta. Para a versão que Pessoa acabou por enviar
a Régio, ver Cartas… (1998: 77; doc. 18).

13
14 de Março de 1929.

Meu querido José Regio:

Muito lhe agradeço a sua carta de agora, assim como uma de


Janeiro, que não exigia resposta, salvo o agradecimento, que é este.

Não sei se serei eu, se o Alvaro de Campos, se ambos, quem terá


opiniões sobre o cinema. Alguma receberá — pode contar com isso.

Enviarei, na mesma occasião, qualquer escripto. Deverei dizer a


segunda vez o que excusava de ter dicto a primeira — que podem
sempre contar commigo, ou dizendo melhor e com fabrico de
termo plural, commigos?

Sempre e muito seu,


(a) Fernando Pessoa

Não nos espantará o facto de lhe ter ocorrido o engenheiro


Álvaro de Campos como o heterónimo que melhor poderia contribuir
com uma opinião sobre o cinema, tendo em consideração que o tom
apologético dos tempos modernos, das invenções e das máquinas
inerente à sua poesia se pode revelar como enquadramento perfeito
para uma exaltação da arte cinematográica. A associação espontânea
do próprio Pessoa entre o cinema e Campos passará naturalmente
por aí, mas também pelo facto de este heterónimo ser o único que
nos seus versos faz referência à cinematograia em si ou aos seus sub-
produtos na sociedade.

14
Vejam-se estes versos da «Passagem das Horas», datáveis de
1916/1917, onde, para além da referência explícita, se cria uma suces-
são de impressões imediatas e, como tal, um efeito próprio da lin-
guagem cinematográica da época:

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as palpebras


E rumor trafego carroça comboio eu-sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emmoldurada a vertigens —


Sol nos vértices e nos □ da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva secca,
Do abrumado clarão ixo da minha consciencia de viver.

Rumor trafego carroça comboio carros eu-sinto sol rua,


Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas “perdão” rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos obliquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas lores no cesto rua
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua
Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciencia de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra traz e pra deante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monoculo em circulos de cinematographo pequeno,
Kaleidoscopio em curvas iriadas nitidas rua.

(Poemas de Álvaro de Campos, 1990: 156)

15
A poesia oferece aqui uma sequência de imagens, de sensações
multiplicadas em caleidoscópio que, transformando o leitor em
espectador, se organizam em crescendo, desembocando no «mono-
culo em circulos de cinematographo pequeno» que converte esta
vivência nas ruas da cidade numa experiência cinematográica sem
sala de cinema. A insistência na velocidade e na vertigem, por um
lado, e a multiplicidade das sensações, por outro, remetem eviden-
temente para as estéticas futurista e sensacionista de que está imbu-
ída a poética de Campos, mas estas, por sua vez, jogam aqui com o
topos da brevidade, da rapidez e da vertigem também verbalizada no
discurso vigente sobre cinema: «É que o cinematrographo singular-
mente satisfaz uma das mais vivazes preferencias do homem actual:
a brevidade. O cinematographo está para o theatro como o magazine
para o livro. Explorando a emoção e o riso, como no theatro, o cine-
matographo conseguiu abalar os corações com tragedias que duram
dez minutos e desencadear tormentas de hilaridade com comedias
que cabem no limite vertiginosamente apressado de alguns segun-
dos» (Dias, 1912: 42).9
Noutro poema de Campos, datado de 26 de Abril de 1926, a
sucessividade de imagens já é identiicada com o cinema enquanto

9) Reira-se, a propósito, o poema «Carnaval» de Álvaro de Campos, onde a vida (a


«tremenda bebedeira») na cidade é associada à experiência de ver cinema: «Automoveis,
vehiculos, □ | As ruas cheias, □ | Fitas de cinema correndo sempre | E nunca tendo um
sentido preciso. || Julgo-me bebado, sinto-me confuso, | Cambaleio nas minhas sensa-
ções, | Sinto uma subita falta de corrimões | No pleno dia da cidade □» (Poemas de Álva-
ro…, 1990: 62).

16
metáfora de uma vida que, não passando de um espectáculo circense,
não merece ser vivida.

Se te queres matar, porque não te queres matar?


Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, tambem me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro successivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematographia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polychromo do nosso dynamismo sem im?

(Poemas de Álvaro…, 1990: 190)

Mas se aqui a ideia de cinematograia remete para um artii-


cialismo que põe em causa o acto de viver porque isento de verdade,
num seu poema posterior (datado de 5 de Fevereiro de 1932), a postura
cinematográica proporciona ao eu lírico uma vivência na qual a falsi-
dade se assume como condição para o gozo da vida.

/São poucos os momentos de prazer na vida...


É gozal-a... Sim, já o ouvi dizer muitas vezes
Eu mesmo já o disse. (Repetir é viver.)
É gozal-a, não é verdade?/

Gozemol-a, loura falsa, gozemol-a, casuais e incognitos,


Tu, com teus gestos de distinção cinematographica

17
Com teus olhares para o lado a nada,
Cumprindo a tua funcção de animal emmaranhado;
Eu no plano inclinado da consciencia para a indiferença,
Amemo-nos aqui. Tempo é só um dia.

(BNP/E3, 61A-1r; cf. Álvaro de Campos. Poesia, 2002: 461)

Produto cinematográico por excelência, a loura falsa, com seu


olhar que nada vê e cujo gesto obedece a uma mera funcionalidade,
convida à brevidade da sensação, ao efémero casual que contudo
liberta da consciência. Desmistiica-se aqui a «distinção cinemato-
graphica» das divas endeusadas pelo público da época, reduzindo-as
a factores de mero gozo momentâneo.
É precisamente ao tema da imortalidade e perenidade da
acção e obra dos homens que Pessoa se dedica no seu Erostratus,
livro que iniciou por volta de 1930 e que nunca viu chegar ao prelo.
Num dos fragmentos que o compõem, coloca sintomaticamente
no mesmo plano de idiotice actores de cinema — como Mary Pick-
ford e Rudolph Valentino10 — e viciados da velocidade, como Henry
Segrave, célebre corredor de automóveis e de barcos a motor que
acabara de falecer na sequência de um acidente quando procurava
bater um recorde de velocidade.

10) Tendo em consideração este desprezo que Pessoa manifesta relativamente aos
actores do cinema de Hollywood, não deixa de surpreender a atenção que dedica (in-
troduzindo-lhe alguns dados) à carta astrológica de Joan Crawford, publicada numa
revista de astrologia que se encontra no seu espólio (cf. BNP/E3, 135D-96).

18
(BNP/E3, 19-76r; pormenor;
cf. Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, 1967: 223-224)

Speed dopers, ilm cardboarders, □

We do not even admire beauty: we admire but the


translation of it. Every street has several girls not less beauti-
ful than the ilm face-girls. Any oice throws out at lunch time
young men as good-looking as the ilm hollow men.

Stupid as a Mary Pickford or a Rudolph Valentino.

No joke ever came out of Hollywood.

that poor fool Segrave….

A ideia da associação entre estrelas de cinema e viciados da


velocidade, tal como corredores de automóveis e de barcos a motor,

19
poderá ter-lhe sido sugerida por G. K. Chesterton, no seu ensaio «On
the Movies», incluido num volume adquirido por Pessoa depois de
1928 e ainda presente na sua biblioteca particular (cf. anexo I). Resi-
dindo numa acérrima crítica ao cinema americano pelo seu recurso a
uma exorbitante e descabida aceleração que obnubila o próprio objecto
de representação, este ensaio estabelece o paralelo entre o corredor
motorizado e o artista cinematográico que, na sua grosseira percep-
ção do movimento, se assemelham ao homem em estado ébrio: «As
the drunkard is the man who does not understand the delicate and
exquisite moment when he is moderately and reasonably drunk, so the
motorist and the motion-picture artist are people who do not unders-
tand the divine and dizzy moment when they really feel that things are
moving» (Chesterton, 1929: 67). Ao extravasar uma capacidade percep-
tiva do homem, a excessiva velocidade constatada aos olhos de Ches-
terton no cinema da actualidade, promove assim um gesto autofágico
que se dilui num vazio de vacuidade («void of vanity and emptiness»),
ironica e inconscientemente reconhecido por quem se entrega à dita
aceleração: «there is an unintencional truth in the exclamation of the
radiant ass who declares that his new car is simply stunning. If speed
can thus devour itself in real life, it need not be said that on the acce-
larated cinema it swallows itself alive […]» (1929: 68). A parcimónia de
Pessoa em sublinhados neste livro (quatro, ao todo), leva-nos a desta-
car a única frase que sublinhou neste ensaio, aquela em que o autor
conclui que, neste processo de exagerada aceleração, o cinema «merely
extinguishes the man and exposes the machine» (1929: 69). Se o para-
lelo entre o pobre recordista em velocidade motorizada, cuja ambição
conduz ao autoaniquilamento, e o estúpido actor de cinema parecem
claramente dialogar com esta leitura de um autor que mereceu uma

20
considerável atenção de Pessoa11, o que este sublinha é a tese da maqui-
nização do homem por via do cinema da época, maquinização esta que,
no fragmento citado de Erostratus, se parece inevitavelmente reprodu-
zir na vida das cidades, onde qualquer escritório «throws out at lunch
time young men as good-looking as the ilm hollow men».
O ataque ao cinema de consumo rápido — considerado uma
fábrica de simulacros de beleza, mecanicamente reproduzidos e con-
denados a ser uma mera passagem meteórica pela memória da huma-
nidade12 — reaparece noutro fragmento de Erostratus, onde é mais
uma vez reiterada a vaidade dos seus produtos e, como tal, a impossi-
bilidade de ascenderem a um estatuto de arte.

(BNP/E3, 19-38r; pormenor; cf. Páginas de Estética…, 1967: 224)

11) Encontram-se na biblioteca de Pessoa seis livros de Chesterton, sendo este o mais
recente. Sabe-se que outros livros deste autor izeram parte da sua colecção particular (cf.
Pizarro, Ferrari, Cardiello, 2010: 422 e 439).
12) A ideia da efemeridade das estrelas de cinema já é tematizada num pequeno texto de
Pessoa intitulado «A lingua “americana”», datável de 1918/1919: «[…] o calão envelhece e
passa depressa, como as estrellas de cinema» (BNP/E3, 123-8r; cf. Pessoa Inédito, 1993: 244).

21
ER[OSTRATUS]

They do not fall in some silly corner of duty, but in the sillier
open spaces of vanity. They have no status above the dandy and
the swaggerer except [in] the bad taste of the daring and the
height of the swagger (vanity) (impudence). They lose their lives
not like heroes but like animals; as these blunder into danger,
those blunder into chance. Cowardice only seems a virtue when
courage is hidden under these. (thus deiled)

Except the Germans and the Russians, no one has as yet been
able to put anything like art into the cinema. The circle cannot
be square there.

A excepção que Pessoa, no mesmo fragmento13, abre para os


cinemas alemão e russo aponta, porém, para uma postura criteriosa
que, possivelmente inluenciada pelos seus colegas presencistas14, o

13) A edição de Richard Zenith, Heróstrato e a Busca da Imortalidade (2000), separa es-
tes dois parágrafos, colocando-os em trechos diferentes (cf. Heróstrato e a Busca da Imor-
talidade, 2000: 145 e 161). Já na edição de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho
(Páginas de Estética…, 1967: 222-224), os dois parágrafos estão publicados em sequência
directa, tal como aparece no original, sendo porém integrados no mesmo trecho que o
fragmento anteriormente citado («Speed dopers […]»).
14) No n.º 20 da presença, onde Campos publica o poema «Apontamento», a redacção
elogia, numa pequena notícia sobre ilmes em exibição nas salas de cinema, os ilmes ale-
mães Aurora de Murnau, O Estudante de Praga de Henrik Galeen, O Gabinete do Doutor
Galigari [sic] de Robert Wiene, Variedades de Ewald André Dupont, Os Irmãos Schellen-
berg de Karl Grune e o ilme russo Volga-Volga de Viktor Tourjanski. O único ilme ame-
ricano mencionado nesta notícia é A Quimera do Oiro de Charlie Chaplin. As «Legendas
cinematográicas» dissertam, na sua maioria, sobre iguras do cinema russo e alemão.

22
terá levado a não denegrir esta arte na sua totalidade. Se, na poesia
do seu heterónimo Álvaro de Campos, um estado de sonambulismo
ou de embriaguez na cidade é identiicado com uma percepção cine-
matográica do mundo, já nas divagações do seu semi-heterónimo
Bernardo Soares, o sonho (em plena vida) engloba em si a irrealidade
dos «grandes cinemas»15, sugerindo-se entre estes uma continuidade
que também se faz sentir nalguns dos escritos de Pessoa para cinema.

***

O rótulo «Film Arguments», manuscrito pelo próprio Fer-


nando Pessoa no verso do primeiro dos argumentos aqui publicados
(doc. 1) e que terá servido como rubrica geral para os argumentos
dactilografados, é a origem do título desta nossa edição, Argumentos
para Filmes, volume que reúne, pela primeira vez16, todos os escri-
tos pessoanos directamente relacionados com cinema. Dividida
em quatro secções, a edição apresenta o conjunto de argumentos
para ilmes redigidos em três línguas diferentes (secção I), breves
apontamentos críticos/bibliográicos sobre cinema (secção II), pro-
jectos nos quais o cinema igura como um dos elementos integran-
tes (secção III) e correspondência na qual se faz menção ao cinema
(secção IV). Se, a abrir esta introdução, citámos algumas referências
ao cinema na poesia de Campos e na prosa de Pessoa já publicada,

15) Ver epígrafe desta introdução.


16) Patrick Quillier (Courts-Métrages, 2007) publicou, em tradução francesa, dois dos
quatro argumentos ingleses aqui transcritos no original. A sua edição inclui também, com
algumas diferenças de leitura, os textos franceses.

23
o corpo desta edição centra-se em documentos maioritariamente
inéditos, e por vezes bastante fragmentários, cuja leitura permite
aceder a uma nova perspectiva de Pessoa, particularmente na
sua relação com o cinema, enquanto forma de expressão artística,
enquanto veículo de propaganda nacional ou ainda como possível
fonte de rendimento.
A primeira menção explícita de Pessoa ao cinema num dos seus
projectos datará de 1919/1920, quando faz anotações sobre os «[f]ins da
“Cosmopolis”», empresa ideada por si com intenções e actividades diver-
sas, entre as quais a substituição da «inepta “Sociedade de Propaganda
de Portugal”» (doc. 11). Também designada Touring Club de Portugal,
visto que se inspirava directamente no Touring Club de França17, esta
sociedade tinha sido fundada a 28 de Fevereiro de 1906 com o objec-
tivo de «promover, pela sua acção propria, pela intervenção junto dos
poderes publicos e administrações locaes, pela collaboração com estes e
com todas as forças vivas da nação, e pelas relações internacionaes que
possa estabelecer, o desenvolvimento intellectual, moral e material do
paiz e, principalmente, esforçar-se por que elle seja visitado e amado
por nacionaes e estrangeiros» (Boletim, 1907: 7)18. Nos planos de Pes-
soa, a Cosmopolis visava, tal como a Sociedade, promover Portugal na
indústria do turismo, incluindo porém interesses muito mais diversi-
icados (desde traduções a edições literárias, passando por trabalhos

17) Para um dos exemplos do Touring Club de França enquanto modelo para a So-
ciedade Propaganda de Portugal, ver «Confronto eloquente», in Boletim da Sociedade
Propaganda de Portugal, 3.º ano, n.º 7, Julho de 1909, pp. 53-54. A Sociedade Propaganda
de Portugal (sem a preposição ‘de’, como também foi denominada) publicou, desde Ju-
lho de 1907, um boletim mensal.
18) «Estatutos da “Sociedade Propaganda de Portugal”», capítulo 1, artigo 1.º

24
fotográicos, entre outros)19. Provavelmente com o intuito de utilizá-lo
na sua vertente documental, Pessoa refere-se nos seus planos ao cinema
como «uma das maiores armas de propaganda que se pode imaginar»20
(doc. 11). Neste mesmo documento, Pessoa vê a Cosmopolis «tomar, ou
chamar a si, a empreza cinematographica que acaba de ser constituida
em Lisboa», não especiicando o nome desta. Contudo, o facto de, ainda
no mesmo documento, Pessoa mencionar a intenção de trespasse da
«empreza cinematographica da Rua de S. Bento» leva-nos a inferir que
se trataria da Empreza Portugalia Film Lda21, produtora que precisa-
mente em 192022 se instalou na Rua de São Bento 333-335, aproveitando
e vindo a desenvolver as instalações criadas em 1918 pela Companhia
Lusitania Film, na mesma morada. Optando por uma vertente docu-
mentarista, tal como Pessoa preconizava no projecto da Cosmopolis, a
Companhia Lusitania Film produzira, em 1918, ilmes que não podem
ter sido alheios ao conhecimento de Pessoa: O Dr. Sidónio Pais no Sul do
País; Proclamação de Sidónio Pais em 5 de Maio de 1918; Sidónio Pais; 5 de
Dezembro; Funeral de Sidónio Pais (cf. Matos-Cruz, 1989: 25-27).23

19) Para consultar a lista completa das actividades da Cosmópolis, ver BNP/E3, 114G-5
a 10. A transcrição encontra-se publicada por Mega Ferreira em Fazer pela Vida — Um
retrato de Fernando Pessoa o empreendedor (2005: 217-222).
20) De referir que em 1918, último ano da Grande Guerra, houve em Portugal uma
considerável produção de documentários (74) e de ilmes de actualidades (24), ao passo
que apenas 6 eram de icção. Em 1919, dos 33 ilmes produzidos em Portugal, apenas 9
eram de icção (cf. Matos-Cruz, 1989: 25-27).
21) Não aquela fundada em 1909 e que se manteve activa até cerca de 1915, mas sim
uma nova companhia que adoptou o mesmo nome.
22) A escritura de compra data de 30 de Outubro de 1920, contudo há registo de obras
empreendidas pela Portugalia Film em Maio desse mesmo ano.
23) A 1 de Maio de 1919 Pessoa começa a colaborar no jornal sidonista Acção, órgão

25
O empreendimento da Cosmopolis nunca chegou a ser con-
cretizado, mas uma pequena lista redigida por volta de 1920 revela
que passaria, em parte, a ser absorvido por outro projecto de Pessoa,
o «Gremio de Cultura Portugueza»24 (doc. 13), cujo objectivo resi-
dia em gerar «um estado cultural portuguez, independentemente do
estado» (doc. 14). «[C]reado em Abril de 1919 sob a invocação da deusa
ATHENA» (BNP/E3, 87-62r), uma das actividades necessárias desta
outra iniciativa era, sem dúvida, o cinema, tendo em conta que num
dos documentos encabeçados pela sigla «GCP» (doc. 12), surgem três
listas de secções que comporiam o Grémio, igurando a secção cine-
matográica em cada uma delas. Como se pode ver no documento,
nesta fase do projecto, Pessoa já tem «relatorio feito» sobre a dita sec-
ção cinematográica, relatório este que não foi localizado no espólio
nem entre os documentos na posse dos herdeiros.
Como sabemos por duas cartas datadas de 1927 (cf. Correspon-
dência Inédita, 1996: 117-118), Fernando Pessoa acabará por abdicar da
ideia do Grémio de Cultura Portuguesa. Quanto ao cinema, um dos
três projectos que publicamos na secção III revela que, paralelamente,
ou pouco tempo depois da fase inicial da Cosmopolis, Pessoa tam-
bém contemplava a sua produção, com intuitos muito provavelmente

do «Nvcleo de Acção Nacional» dirigido por Geraldo Coelho de Jesus. É neste jornal que,
a 27 de Fevereiro de 1920, publica «Á Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paes», poema
em 60 estrofes no qual tece um rasgado elogio ao presidente assassinado. Existe um
exemplar emendado entre os papéis do espólio (cf. BNP/E3, 135C-30v e 30a). No espólio
de Pessoa conservado pela família (colecção particular Manuela Nogueira) encontra-se
uma pequena fotograia de Sidónio Pais.
24) Continuidade que se evidencia na frase «Look up the Cosmopolis and extract from
it what is necessary», na folha em que descreve o projecto do Grémio (doc. 13).

26
Anúncio da Lusitania Film25

25) Reprodução a partir do livro de Félix Ribeiro (cf. 1983: 48).

27
comerciais (doc. 15). Se, no documento da Cosmopolis, é meramente
mencionada a Rua de São Bento enquanto morada de uma empresa
cinematográica, num outro documento, este endereço não só rea-
parece com o número exacto «333-335», mas curiosamente também
acompanhado de quatro pequenos esboços de logótipo, criados pelo
próprio Pessoa para uma possível produtora cinematográica da sua
invenção: «ECCE FILM» (doc. 16).
Quando escolheu esta morada para a hipotética sede da sua Ecce
Film, Pessoa estava certamente a par dos trabalhos realizados por
importantes produtoras cinematográicas naquele espaço. Para além
da Portugalia, outras produtoras rodaram nos seus estúdios, como é o
caso da Fortuna Films que, alugando as instalações em 1923, aí realizou
as cenas interiores dos dois únicos ilmes que produziu em Portugal,
A Sereia de Pedra e Os Olhos da Alma (cf. Félix Ribeiro, 1983: 202).
A Rua de São Bento 333-335 era, portanto, um lugar-chave no
contexto da produção cinematográica lisboeta, tendo sido objecto
de sucessivas intervenções que beneiciariam esta actividade. Se,
antes de meados de 1918, nos inícios de existência da Lusitania Film26,
as instalações ainda se limitavam a um prédio de três andares com
seu terreno adjacente, já em 1920, a nova proprietária Portugalia Film
mandaria construir no terreno um enorme hangar metálico envi-
draçado, ampliando uma primeira construção erigida pela Lusitania
Film para a rodagem de cenas interiores.27

26) Fundada em Março de 1918, a Lusitania Film teve como primeira sede (embora de
maneira provisória) um escritório na Rua da Madalena (cf. Félix Ribeiro, 1983: 51).
27) Os ilmes de enredo realizados pela Lusitania Film (Mal de Espanha e Malmequer)
e o policial inacabado, O Homem dos Olhos Tortos, todos de 1918, são anteriores à cons-
trução deste estúdio.

28
Pormenor da planta do hangar28

28) Arquivo Municipal de Lisboa, Obra 988 — Proc 9045-1ªREP-PG-1920.

29
Em Abril de 1921, juntar-se-ia a este edifício um «barracão» que
serviria de oicina para a montagem da cenograia, necessária para os
ilmes de enredo que a Portugalia começara a rodar, fazendo uso das
instalações até 1927.29

Legenda da planta do barracão30

Ignoramos se a Ecce Film que Pessoa tinha em mente cubriria


os três sectores da indústria cinematográica (produção, distribuição
e exibição), como fora o caso da Lusitania Film, ou se a ideia seria
antes a de alugar o espaço para as rodagens de interiores, como o fez
a Fortuna Films. Trata-se evidentemente de um dos muitos projectos
de Pessoa que, nunca vendo uma concretização para além do papel

29) O hangar e o barracão ainda hoje se conservam com algumas alterações, utilizados
como ginásio para as actividades desportivas da Associação Cristã da Mocidade — Tri-
ângulo Vermelho, que os adquiriu em Fevereiro de 1928. A aquisição concretizada por
Earl Eduard Dilley, em nome desta Associação, não incluía o prédio de três andares, que
ainda continuou a estar registado em nome da Portugalia Film até 2003.
30) Arquivo Municipal de Lisboa, Obra 988 — Proc 5001-1ªREP-PG-1921.

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escrito (e desenhado), revela mais uma vez uma imaginação multiface-
tada que de modo algum se fecha ao universo empresarial nem à pos-
sibilidade de uma intervenção sua na sociedade através da exploração
da arte cinematográica. Se é verdade que não chegou a realizar estes
seus projectos de cariz empresarial, já enquanto autor, Pessoa deixou
no seu espólio textos com indicação para serem levados ao cinema.
É o caso de quatro dos seis argumentos que aqui publicamos,
todos eles com a devida indicação no cabeçalho do documento e
quase certamente escritos ainda na época do cinema mudo31: «Note
for a silly thriller. | or for a ilm» (doc. 1), «Note for a thriller, or ilm»
(doc. 2), «Half plan of play or ilm» (docs. 3 e 4)32 e «The Three Floors.
| (Scenario)» (doc. 5). Redigidos integralmente em inglês (à excepção
do doc. 4, que apresenta diálogos em português), obedecem a uma
tipologia comum, são todos datáveis da década de 20 e parecem cons-
tituir um esboço para um produto destinado a ser comercializado.
A última lista de projectos (doc. 17), datável de 1924/1925 e inteira-
mente composta de itens com ins lucrativos, aponta para essa inten-
ção, já que a estes foi acrescentado à mão: «Films (completing the one
begun)». A referência, noutra anotação, ao «Cinematograph Exhibi-
tors’ Diary» de 1930 (doc. 10) leva-nos a crer que, ainda no início da
década seguinte, Pessoa continuava interessado neste assunto, consi-
derando o mercado anglófono como possível meio para a divulgação
dos seus hipotéticos ilmes.

31) O primeiro ilme sonoro da história do cinema — The Jazz Singer — é datado de
Outubro de 1927.
32) Estes dois documentos correspondem ao mesmo argumento, apresentando uma
clara continuidade de enredo e de personagens entre si.

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Já os últimos dois textos (docs. 6 e 7), de data posterior a ins
de 1917 e redigidos em francês, aparecem sem qualquer indicação
de género e sem título, abrindo espaço para especulações quanto à
sua possível classiicação. A sua natureza claramente onírica33, pode-
ria levar-nos a enquadrá-los no parâmetro dos chamados «récits de
rêves» muito cultivados pelos surrealistas na década de 20. Contudo,
a sequência numerada de planos (doc. 6) e uma apresentação em
colunas, sobretudo no caso do último aqui transcrito (doc. 7), pare-
cem apontar para a hipótese de se tratar de matéria fílmica.
Este volume conta com três anexos que incluem documentação
sobre cinema encontrada na biblioteca particular de Fernando Pes-
soa à guarda da Casa Fernando Pessoa (CFP) e no espólio do escritor,
albergado na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP): I. Bibliograia
de livros, artigos e recensões sobre o cinema, catalogados segundo o
sistema de Classiicação Decimal Universal; II. Tábua com referên-
cia a ilmes em exibição nas salas de cinema de Lisboa, anunciados
em jornais que se encontram na biblioteca de Pessoa; III. Tábua com
indicação de artigos sobre cinema em números da revista presença
que contaram com a contribuição de Pessoa.
Fechamos a edição com um ensaio de Fernando Guerreiro, no
qual, para além de comentar parte do material aqui publicado, o
autor disserta sobre a relação que os presencistas (José Régio, Gaspar
Simões, Adolfo Casais Monteiro), António Ferro e Almada Negrei-
ros viriam a cultivar — durante a vida de Fernando Pessoa — com a
sétima arte.

33) Quillier refere-se-lhes como objectos «cinématoniriques» (2007: 18-19).

32
***
Expressamos o nosso cordial agradecimento a Jerónimo Pizarro
pela transcrição de algumas passagens de difícil leitura, a António
Rodrigues que nos forneceu dados fundamentais sobre as primeiras
décadas do cinema em Portugal e a Phil Clapp, director executivo da
Cinema Exhibitors’ Association, pela autorização de reprodução das
imagens do Cinematographic Exhibitors’ Diary.

patricio ferrari
claudia j. fischer

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