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JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO

Doutor em Direito

A TIPICIDADE
DOS DIREITOS REAIS

-~

DEDALUS - Acervo - FD

11111 il 111111111111111111111
20400067666

1~ ~ 1
LISBOA
1968

DEP.º DIR. CIVIL


BIBL~07ECA ESPÍNOLA
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DO AUTOR: A,,.., . -,
·,

J>c.\}
- Acção Finali.sta e Nexo Causal (dissertação apresentada no Curso
Complementar de Ciências Jurídicas), Lisboa, 1956.

- As Relações Jurídicas Reais (dissertação de doutoramento), Lisboa,


1962.

-Evolução do Conceito de Empresa. Aspectos Jurfdicos, em Empresa,


n.º' 5 e 6, Junho de 1964.

- Reordenamento Agrário e Propriedade Privada, Lisboa, 1964 (sepa-


rata do Curso de Direito e Economia Agrários, Lisboa, 1965,
publicado em suplemento à Revista da Facu'filade de Direito de
Lisboa).

-Desnecessidade e Extinçao de Direitos Reais, Lisboa, 1964 (separata


da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XVIII).

- A Colonização Interna e os Princfpios Reguladores da Intervenção


Estadual, em O Direito, ano 97 (1965), pâgs. 21 e segs.

- Observações ao Projecto de Código Civil, Coimbra, 1967 (separata


da Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIII, n.º" 3 e 4).

- O Código OiviZ de 1867 vai ficar revogado1, Braga, 1967 (separata


de 8cientia Iuridica, tomo XVI, n. 09 84.-85, M•arço/Junho de 1967).

- A Integração das Lacunas da Lei e o Novo Código OiviZ, Lisboa, 1968


(separata de O Direito, ano 100.º (1968), pãgs. 273 e segs.).

1'31 PREPARAÇÃO:

- Unia Introdução ao Direito de Autor


O autor agradece à Fundação Calouste
Gulbenkian a bolsa de estudo no estran-
geiro que lhe permitiu recolher elementos
para a elaboração deste trabalho.

)
7
3
1
3
----1111
íNDICE GERAL
Pâgs.
INTRODUÇÃO 13
CAPÍTULO I - A TIPICIDADE
preliminares. Tipicidade e f acti species 19
l. A viragem contemporânea para o «tipo» 21
2.
3. o tipo real 24
4. Limites do recurso ao tipo real 27
Ern torno de um «tipo» próprio da ciência do direito 30
5.
Tipo e especificação 33
6.
As tipologias 37
7.
Tipologia e classificação 40
8.
Ti.pologia e enumeração 42
9. rrnpu tação de uma figura a uma dada tipologia
10. 44
0 critério de tipificação 47
11. Tipologias taxativas e exemplificativas
12. 50
Tipologia delimitativa 52
13.
subtipos 55
14· Tipicidade e analogia .
15. 57
c1assificação dos tipos em abertos e fechados 61
16. caracterização 63
11.
~o II-NUMERUS CLAUSUS
pf'fV....,
C.A cornvaração de leis 67
1B· comparação de doutrinas 69
19· origem histórica 73
zO. pasição de jure constituendo 76
21. crítica dos fundamentos do numerus clausus 78
22· ;\ situação no domínio do Código de Seabra 8"2
z3. pretens~s. soluções dogmáticas 83
24· 0 princ1p10 da autonomia privada e as proibições legais 85
z5. ;\ 0rde~ _Pública 87
~6· ;\ adm1ssao do numertts clausus ·no direito anterior 89
z1. O 8 rt: 1~06.º do Código de 1966 91
zB. ;\Prec1açao da solução portuguesa 93
zg.
7
Págs.
30. A conversão legal 95
31. Limites da conversão legal 98
32. Indicação da se:iuência 102

CAPÍTULO III - O PRINCf PIO DA TIPICIDADE DOS


DIREITOS REAIS E OS SEUS LIMI-
TES IMPLf CITOS
SECÇÃO I - CARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE DOS DIREI-
TOS REAIS
33. Tipo e Direito das Coisas 103
34. Há uma tipologia dos direitos reais 104
35. O prisma da tipologia 107
36. O critério de tipificação 111
37. A caracterização da tipicidade e o problema da analogia 112
38. Aceitação de uma tipologia taxativa 115
39. Criação legisla:tiva de direitos reais 118
40. Qualificação de direitos como reais 121
41. A «enumeração taxativa» 12Q
42. Tipologias menores no seio dos direitos reais 125
43. O ónus real 129
44. Caracterização das tipologias menores como taxativas
ou exemplificativas 134
45. Tipologia menor e analogia no regime 137

SECÇÃO
.
II-LIMITES DO ART. 1306.º, 1 .
46. Posição do problema 140
47. ·Limites temporais 141
48. Situações reais concretas que subsistem 145
49. Limites locais 147
50. Limites pessoais 149
51. Limites internacionais 151
52. A mudança de estatuto 152
53. A adaptação 156
54. Razão de ordem 159

CAPÍTULO IV - OBJECTO DA TIPOLOGIA TAXA-


TIVA
SECÇÃO I - EXCLUSÃO DOS FACTOS JURIDICOS COM
EFEITOS REAIS
55. Aspectos gerais 161
56. A sujeição a certas vicissitudes 163
57. Facto constitutivo e tipo 165

8
Págs.
58. O problema no direito actual 166
59. A atípicidade dos factos canstituNvos de direitos reais 168
60. Direitos reais de origem legal 172
61. Hipóteses em 'discussão 173
62. Critério 177
63. Manifestações 179
64. Ccmclusão 183

SECÇÃO II - «RESTRIÇôES» E «PARCELAS:. DA PROPRIE-


DADE

65. A fórmula do art. 1306.º, 1. 184


66. Entendimento aparente da lei 187
• 67. Entendimento refle'Ctido da lei 191

SECÇÃO III - OS DIREITOS REAIS COMPLEXOS


68. Delimitação desta categoria 195
69. Inclusão no âmbito da tipicidade 198

CAPÍTULO V - FONTES NORMATIVAS DOS DIREI-


TOS REAIS
SECÇÃO I - LEI E FONTE DE DIREITO

70. Generalidades 201


71. A ordem jurídica 203
72. A lei 205
73. Normas corporativas 207
74. Posturas e outros diplomas emanados de autarquias
locais 209
75. As várias ca:tegorias de leis materiais 212
76. A doutrina 216

SECÇÃO II-DIREITOS REAIS CONSUETUDINARIOS


77. Comparação de direitos 217
78. As leis portuguesas e o costume 218
79. O costume como o modo por excelência de revelação
do direito 221
80. Costume e mero facto 223
81. Posição das fontes heterónomas 225
82. A colonia, direito real consuetudinário 2Zl
83. Significado da proibição da colcmia 230

9
Págs.
SECÇÃO III - A ELABORAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO
DIREITO

84. O problema da jurisprudência como fonte de direito 232


8.5. O art. 10.º do Código d-e 1966 233
86. Espécies de lacunas 235
87. Lacunas ocultas e sua determinação por interpretação
restritiva 236
88. Distinção de processos afins 239
89. Integração de lacunas e criação normativa 244
90. A repetição de julgados 246
91. O costume jurisprudencial 248
92. Distinção da jurisprudência constante. Aplicação prática 250
93. Os assentos 253
94. Conclusão 256

CAPÍTULO VI-A AUTONOMIA PRIVADA


95. Razão deste capítulo 259

SECÇÃO I - DIREITOS SOBRE BENS INTELECTUAIS

96. Posição do Código Ch-il nesta matéria 260


97. Direitos d~rivados: sua atípicidade 261
98. Carácter absoluto 264
99. O problema na propriedade industrial 266
100. O problema no direito de autor 268
101. Transmissão ou constituição de direitos derivados 270
102. A natureza jurídica. Critérios insuficientes 274
103. Teorias em presenÇa 278
104. Critica da teoria do direito de personalidade 281
105. Critica da teoria do direito de propriedade 282 -
106. O direito patrimonial como exclusivo de exploração
económica 285
107. Aceitação da teoria do monopólio 287
108. Signifieado para a tipologia dos direitos reais 289

SECÇÃO II-A Th'TEGRAÇÃO DAS LACUNAS REBELDES


A ANALOGIA

109. Posição do problema 292


110. A situação no domínio do Código de Seabra 292
111. O art. 1306.º e a detectação de lacunas 295
112. A criação pelo intérprete 297

10
Pégs.
113. A eventualidade da integração da lacuna em termos
re~ m
114. A eventualidade dum numerus apertus sectorial 302

SECÇÃO III - OS TIPOS DE DIREITOS REAIS SÃO TIPOS


ABERTOS
115. A :autonomia na fixação do conteúdo do direito real
segundo a doutrina estrangeira 304
116. A posição da doutrina portuguesa 306
117. A pretensa tipicidade das obrigações propter r6m 307
118. As vârias modalidades das situações jurídicas propter
rom 309
119. Vinculações de sujeitos individualmente determinados
em beneficio do titular dum direito real 310
120. Vinculações do titular dum direito real em beneficio
de sujeitos individualmente determinados 312
121. Relevância para a tipologia taxativa 315
122. As relações jurídicas propter 1·em: sua atipicidade 319
128. O significado do art. 1306.º, 1. 323
124. Limitações da autonomia privada 327-
125. Tipo aberto e tipologia dos direitos reais 331

CAPÍTULO VII-ENTIDADES EXCLUfDAS DO AM-


BITO DE APLICAÇÃO DO PRIN-
CfPIO
SECÇÃO I - GENERALIDADES
126. O prablema 333
127. Direitos reais ·administrativos 335
128. Atipi-cidade destes direitos 340
129. Direito real administrativo e lei civil 342

SECÇÃO II-A ACTIVIDADE JUDICIAL EM GERAL


1•30. A alteração da ordem substantiva ·por actos judiciais 346
131. A sentença injusta 346
132. Criação jurisprudencial e integração de lacunas 348

SECÇÃO III- PROVID:tNCIAS CAUTELARES


133. Generalidades 351
134. Providências cautelares inominadas 353
135. «A entrega dos bens> a um fiel deposi târio 354
136. «A intimação para que o réu se abstenha de certa con-
duta> 357

11
137. <A autorização para a prática de determinados actos»
138.. Outras providências não especificadas
139. Atipicidade das providências cautelares e num.erus
c1au3'&8
UO. A repereu~o no registo predial
Ul. As previsões do art. 399.º do Código de Processo Civil
não são tipos

CosCLUSÃO

Thl)ICE BIBLIOGRÁFICO
INTRODUÇÃO

1-0 Direito das Coisas é um ramo que se pode, sem


exagero, considerar em crise. Uma alteração das condições
sociais, ligada à aceleração da vida moderna, fez perder
importância relativa a um sistema de normas que implici-
tamente assentava na preponderância da propriedade imóvel.
Essa perda de importância levou os estudiosos a dedica-
rem-se de preferência a ramos cuja vitalidade era muito
mais evidente, como o Direito das Obrigações e o Direito
Comercial. Em consequência, o Direi to das Coisas ficou
estratificado no que corresponde a uma época histórica
passada, sem que a crítica e a elaboração doutrinária tor-
nassem possível a descoberta de novos caminhos. Caiu-se
num círculo vicioso: o Direito das Coisas, porque vai defi-
nhando, não desperta a atenção dos estudiosos; e como não
desperta a atenção dos estudiosos, não se renova. O ·que era
próprio do início do século XIX continua a dominar quando
nos aproximamos do último quartel do século xx.

II - Assim, um dos grandes princípios que, no enten-


dimento unânime dos autores portugueses, caracteriza o

N. B. - As indicações bibliográficas completas de todas as obras


referidas no texto encontram-se no lndice Bibliográfico. Nas cita-
ções limitamo-nos a indicar os lugares em que os passos referidos se
encontram e ainda, no caso de utilizarmos mais de uma obra do
mesmo autor, a fazer uma identificação sumdria da obra em causa.
Toda a citação de um preceito legal sem indicação da respectiva
origem deve entender-se como referente ao Código Civil, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966.

13
Direito das Coisas é o· do numerus clausus dos direi tos reais.
Seria pois de esperar que a lei e os doutrinários lhe conce-
dessem um lugar de relevo.
Todavia, este tema tem sido objecto de um impressio-
nante desinteresse. O Código de 1867 nada dizia a tal res-
peito: e os autores (se referem a matéria) fazem-no para
desenhar uma noção em escassas linhas e passar adiante.
Por isso, sendo embora pacífica a afirmação de que só era
possível dar vida a um número limitado de direitos reais,
não admira que a situação que descrevemos originasse várias
ambiguidades.
O novo Código Civil veio alterar esta situação. Cessou
o silêncio legal: o n.º 1 do art. 1306.º proclama expressamente
o princípio do numerus clausus. Mas não cessaram as ambi-
guidades; podemos até dizer que elas resultam necessària-
mente da fórmula que foi adaptada por lei. Como veremos,
a primeira parte do preceito, em que se exige a previsão
legal, não se ajusta inteiramente à segunda parte, em que
se fala na constituição por negócio jurídico. E esse desajus-
tamento é sintomático.
Há pois hoje em dia, na nossa ordem jurídica, um pro-
blema do numerus clausus.

III - Deve também acentuar-se a crescente tendência,


por parte da doutrina mais moderna, em falar em tipos de
direitos reais, em tipicidade no Direito das Coisas. Assim,
para dar uma meia dúzia de exemplos entre mil:
Julius von Gierke fala de uma imposição dos tipos
legais, que não poderiam ser modificados ( 1 );
Barassi identifica o nu1nerus clausus e a estrutura
típica ( 2 );
Mandrioli intitula o n.º 7 da sua exposição sobre o
direito real: «O direito real como direito típico» {3 );

(1) § 4, 3.
{2) Pág. 48.
(3) Pág. 879.

14
·~.

Wollf-Raiser falam-nos de um Typenzwang dos direi-


1os reais ( 4 ) ;
Messineo afirma expressamente a tipicidade dos direi-
tos reais ( 5 );
Baur fala de uma Typisierung, que se manifesta num
Typenzwang e numa Typenfixierung ( 6 ).
Também por parte da doutrina portuguesa encontramos
referências da mesma ordem, que analisaremos mais tarde.
Seria evidentemente prematuro procurar caracterizar já
as posições dos vários autores. Interessa apenas sublinhar
duas orientações gerais: 1) que as referências a tipos, ou
à tipicidade, se têm multiplicado em paralelismo com as
referências ao numerus clausus; 2) que ainda se não pro-
curou estabelecer com nitidez as relações entre os dois con-
ceitos utilizados.
Vamos mais longe: falta no Direito das Coisas uma
investigação sobre a categoria da tipicidade, que com tanto
proveito tem sido utilizada noutros ramos do saber, e nomea-
damente noutros ramos da própria ciência jurídica.
Está pois em aberto, no Direito das Coisas, uma segunda
questão: a da tipicidade.

IV - Estas circunstâncias marcam a oportunidade da


presente monografia. ~ seu objectivo apurar se é legítimo
falar de tipicidade no Direito das Coisas; e, no caso afirma-
tivo, fixar o objecto e o âmbito que lhe devemos atribuir.
Graças à utilização destes novos elementos de análise, pode-
remos reelaborar o princípio do numerus clausus, expur-
gando-o de ambiguidades. Isto nos permitirá nomeadamente
determinar até que ponto o regime dos direitos reais é
rígido, ou pelo contrário pode ser alterado negocialmente;
e da mesma .forma nos permitirá qualificar essa tipicidade

(') § 2, II, 1.
(t1) § 88, li ter (pág. 417).
( 8) § 1, li.

15
a que definitivamente seremos conduzidos, verificando sobre-
tudo se representa uma tipicidade taxativa.
Os objectivos que nos propusemos não nos permitiram
que nos encerrássemos nas habituais fronteiras do Direito
das Coisas, antes nos impuseram a realização de uma inves-
tigação que em grande parte se poderá caracterizar como
inter-disciplinar. Não recuámos perante ela, ainda que tivés-
semos clara consciência das dificuldades em que íamos
incorrer, não só pela dispersão a que fomos forçados como
até por pràticamente estes problemas nunca terem sido con-
siderados por este prisma. O direito real é, quanto a nós,
uma figura de direito comum, e portanto manifesta-se nos
mais variados quadrantes do ordenamento jurídico. A fixa-
ção de uma categoria fundamental como a tipicidade não
poderia pois prescindir do conhecimento da forma como
ao direito real recorrem os diversos ramos da ordem jurí-
dica.

V-Indicaremos brevemente qual o plano de exposição


que adaptámos.
No capítulo I procuramos delinear os contornos da cate-
goria da tipicidade, como se manifesta no direito.
O capítulo II é dedicado ao princípio do numerus
clausus.
No capítulo III, conjugando os ensinamentos recolhi-
dos, fixamos o princípio da tipicidade taxativa dos direitos
reais. Uma primeira secção é dedicada à caracterização do
princípio, outra à determinação dos limites implícitos das
normas que o consagram. Já então estamos habilitados a
determinar qual a relação que medeia entre numerus clausus
e tipicidade.
O capítulo seguinte ocupa-se do objecto da tipicidade.
Na primeira secção distinguimos o que respeita aos factos
jurídicos com efeitos reais; na segunda analisamos a refe-
rência legal a restrições e parcelas da propriedade; por fim
chamamos a atenção para a figura dos direitos reais com-
plexos.

16
Segue-se a averiguação da possibilidade da concorrência
de outras fontes de direito, além da lei, na criação norma-
tiva de direitos reais. Os problemas suscitados pela própria
lei, bem como pela doutrina, costume e jurisprudência, são
então sistemàticamente abordados. É este o objecto do capí-
tulo V.
Mas poderemos dizer que é um princípio absoluto o da
necessidade de prévia criação normativa? O problema terá
de ser examinado sob dois ângulos.
Em primeiro lugar, deve perguntar-se se a autonomia
privada está em absoluto excluída da criação e modelação
de direitos reais: é o que fazemos no capítulo VI. Verifica-
mos primeiro quais as possibilidades e a relevância da cria-
ção de direitos sobre bens intelectuais; a seguir o signifi-
cado dos métodos admissíveis de preenchimento de «lacunas
rebeldes à analogia»; e por fim as possibilidades de inter-
venção da autonomia privada na modificação de direitos
reais, o que levará à qualificação dos tipos de direitos reais
como tipos abertos.
Isto no que respeita à autonomia privada. Mas cabe
ainda averiguar se há entidades que se possam dizer isentas
da aplicação ·do princípio: tal a justificação do capítulo VII.
É aí que referimos o problema suscitado pela criação de
direitos reais administrativos e examinamos depois, com
mais algum desenvolvimento, o problema dos direitos reais
judiciários, nomeadamente os que possam resultar da ema-
nação de providências cautelares.

17
2
CAPITULO I

A TIPICIDADE

1. Preliminares. 'lipicidade e «facti species»

I - A referência a tipos legais é antiga, muito antiga


mesmo, dentro da ciência jurídica. Mas ganhou foros de
moda quando dela se passou para a análise de uma catego-
ria da tipicidade, a que se recorre cada vez com maior fre-
quência.
Uma breve observação de vários ramos do direito ·logo
nos revela que a tendência para a tipicidade não é um fenó-
meno restrito ao Direito das Coisas. E. notória a riquíssima
elaboração que no Direito Penal tem merecido a tipicidade
dos crimes, das penas e até das causas de justificação e das
circunstâncias. Mas pràticamente em todos os domínios se
introduziram referências à tipicidade. Fala-se por exemplo
de um numerus clausus ou de uma tipicidade das socieda-
des comerciais ( 1 ), dos direitos e negócios familiares ( 2 ), etc.
Com igual frequência se afirma que certas figuras são típi-
cas ou não: assim, diz-se que são típicas as formas de erro

(1) Cfr. Fernando Olavo, lições, vol. II, págs. 7-8.


Um estudo ex professo da teoria do tipo no direito das sociedades
foi publicado em 1967 por Koller, pelo que teremos ocasião de fazer
mais desenvolvidas referências a este ponto.
( 1) Cfr. F. M. Pereira Coelho, pág. 22.

19
~ n~ na formação da vontade ( 3 ), fala-se em regimes
~..moo.W.s de bens típicos ( 4 ), e assim por diante (r>).
Por isso dizíamos que é este um capítulo que, com a
~ de pontos de vista, ganhou foros de moda dentro
.:i.t ~ jurídica.

Il - Pensamos que o primeiro cuidado de quem quiser


1EU~:a- o âmbito e o significado desta viragem para a tipi-
:=\"b.ie det-e ser o de a distinguir, com o possível rigor, de
;a;a figura com que desprevenidamente se poderia con-
~ Como a tipicidade assenta necessàriamente numa
~ ao tipo, poderia supor-se que há equivalência
mrre a figura que ora nos ocupa, e a previsão ou hipótese
~que se encontra no antecedente de toda a norma jurí-
à:ca. A esta previsão aplicam-se as designações Tatbestand
~ ;urupeciL Na ausência de designação consagrada na lin-
p-~ jurídica portuguesa, há quem tenha pensado fazer
~-lhe entre nós a expressão «tipo legal»; e mesmo
ac:.z-es estrangeiros, raros embora, falam em tipicidade
~ querem aludir às previsões legais (o).
A terminologia é evidentemente possível, mas apresenta
n<a.sso interesse, no ponto de vista científico. Mais vale pro-
;urar os sentidos técnicos ou próprios, em que ela revelará
~ a sua utilidade. E a linguagem jurídica usual nos apoia
De\ta orientação. Na verdade, se de tipo se pode falar com

H J d)eve achar-se (o erro) em conformidade com algum dos


~~A <.>U mt.Jddot de erro que a lei estabelece•: 1. Galvão Telles, Con-
trllVJ"t, :>"'414•. 19-M.
<• J Cfr. uma sugestão de Paulo Cunha nesse sentido, em Direito
44 Familia, pág. 586: e o autor vem efectivamente a fazer uso da
~íf~.
f ~ 1 Da mesma forma se fala em realidades a típicas. Por exem-
~,, há um c~tudo de Ernst Wolfif que tem por título: «Negócios jurf-
.fit/~ ;,tfpivJt•.
t• J Auím acontece esporàdicamente em estudos de Filosofia do
.DVátt.J, embora nlo nos pareça que ao termo tenha sido dada uma
jr(~1 wpra. Vejwe por exemplo Perticone, págs. 267 e segs.
'~;a.m fl:tf1 tipicidade para exprimir a normalidade e generalidade
d'..- ttfttív11:t, oormativa1 Betti, Negozio, 9; Petrocelli, Saggi, 54-5.

20
tal generalidade, de tipicidade só se fala habitualmente em
sentido mais restrito.
E é curioso observar que todos os autores que estuda-
ram especificamente a tipicidade ou o tipo separam esse
estudo do ·da facti species: a distinção parece-lhes tão evi-
dente que nem sequer enunciam o problema.

III - Efectivamente, não é difícil traçar fronteiras entre


estes domínios. O estudo da facti species legal é simultânea-
mente mais amplo e mais limitado que aquele que empreen-
demos agora.
E mais amplo, porque nem toda a previsão legal, no
sentido de facti species, implica o recurso à tipicidade. Fica
a demonstração para a exposição subsequente. E mais limi-
tado, porque a f acti species traz consigo a previsão legal,
e a tipicidade funciona tanto no que respeita à previsão
como à estatuição. Formam-se por isso tipos de factos jurí-
dicos e tipos de situações jurídicas ( 7 ). Para dar desde já
um exemplo, que nos convencerá que expressa ou implici-
tamente todos admitem esta realidade: fala-se na tipicidade
dos crimes e na das penas, mas enquanto a primeira res-
peita ao facto, a segunda respeita à situação jurídica.
Há pois um sentido técnico de tipo, pelo que não é ade-
quado utilizar a palavra para suprir a lacuna terminológica
relativa à previsão legal. Neste último caso, parece-nos mais
correcto recorrer ao latim facti species, como temos feito.

2. A viragem cont.emporânea para o «tipo»

1 -. Com isto conseguimos uma primeira determinação


do conceito que nos ocupa, mas que ao mesmo tempo con-
firmou ser complexo e pluriforme o material em análise.
Dada essa complexidade, não nos podemos furtar a uma

(7) Carnelutti, Teoria, n.º 101.

21
rápida referência à maneira como o problema, na sua gene-
ralidade, tem sido colocado.
Comecemos por notar que não propriamente a tipici-
dade, mas o tipo, atrai as atenções da doutrina moderna.
Mais uma vez os juristas foram influenciados por uma evo-
lução geral ·do pensamento que em si não tem nada de espe-
cificamente jurídico ( 8 ). J;: próprio da situação intelectual
contempôrânea a oposição a um pensamento meramente
conceituai, que representaria uma violentação da realidade,
pela sua demasiada abstracção. Por isso o tipo, como forma
própria de apreensão da realidade, suscita um vivo inte-
resse. Com efeito, por mais variados que sejam os prismas
através dos quais se encare o tipo, este será de qualquer
modo algo mais concreto do que o conceito. E é curioso
notar que foi esta a única característica comum acolhida
por Engish, no termo de uma fundamental investigação
sohre os entendimentos do tipo ( 9 ).

II -O primeiro autor que procurou sistemàticamente


aplicar esta orientação à ciência jurídica foi Radbruch; e
logo afirma encontrar-se aqui «talvez o mais importante pro-
blema da nossa metodologia» (1°). Estava-se em 1938, e o
autor iniciava a evolução que o levaria a «Conceber a ideia
como o sentido e a alma da realidade». Interessam-no então
os crescentes apelos ao tipo na filosofia e em vários ramos
especializados do saber. Inspirando-se nas investigações de
H emper-Oppenheim, contrapõe os Klassenbegriffe, conceitos
de classe ou classificatórios, que dissecariam a vida em cate-

( s) Sobre as aplicações do conceito de tipo nas várias ciências


são muito elucidativos os dois números que a revista alemã Studium
Generale dedicou ao assunto, em Agosto de 1951 (ano IV, fase. 7)
e Maio de 1952 (ano V, fase. 4).
(8) 1Na sua obra sobre «A Ideia da Concretização no Direito e
na Ciência Jurídica do nosso Tempo• publicada em 1954, pág. 262.
O autor acrescenta porém que não pretende esgotar desta maneira
a cessência do tipo•.
( 10) Klassenbegriffe, pág. 54.

22
gorias rígidas, aos Ordnungsbegriffe, conceitos de ordem ou
ordenadores, entre os quais se encontrariam antes de mais
os tipos. Aqueles fundar-se-iam numa abstracção que des-
conheceria que a realidade é contínua, ao passo que estes
teriam fronteiras fluidas, e seriam objecto de descrição, mais
do que de definição. Uma entidade é subsumida a um con-
ceito, mas a um tipo só pode ser referida, e pode afastar-se
mais ou menos dele. Recorda aliás Radbruch que para o
tipo haviam já conscientemente apelado, para enquadrar a
realidade jurídica, Jellinek, Max Weber e Carl Schmitt. Mas
a própria legiferação, se bem que operasse preferentemente
com conceitos de classe, não deixava também de recorrer a
tipos ( 11 ) • .Nisto seguiria o modelo dos jurisconsultos roma-
nos: o rec~rso ao id quod plerumque accidit, por exemplo,
implicava já a utilização de um tipo.
Pelo mesmo caminho vão seguir posteriormente outros
autores, como Larenz, Hans J. Wolff e, recentemente, Arthur
Kaufmann ( 12 ). Entre nós, já em 1944 Rodrigues Queiró nos
dava conta desta orientação e da fisionomia do tipo por ela
apresentada ( 18 ). Apesar disso, não encontrámos posterior-
mente referências significativas a este tema em autores por-
tugueses.

III - Se bem repararmos, o que aqui se tem em vista


não é propriamente o tipo normativo, mas o tipo real a que

( 11) Observando embora, como súmula dos exemplos que


aponta, que «a tipologia seria só uma forma inicial do conceito de
classe para que se tenderia, o ponto de partida das operações lógicas
que deveriam levar do conceito de tipo para o conceito de classe•.
( 12 ) Este autor faz a ligação entre a doutrina da «natureza das
coisas• ( N atur der Sache) e o tipo: «Assim desemboca um dos pro-
blemas mais aotuais da Filosofia do Direito contemporâneo: a «natu-
reza das coisas», num dos problemas mais actuais da Teoria Geral
do Direito contemporânea: o tipo• (pág. 37). Kaufmann demonstra
efectivamente que todas as concepções da «natureza das coisas» se
apresentam como manifestação do geral no particular, do valioso no
fáctico. O que quer dizer que as relações da vida são tomadas na
sua tipicidade.
-(ia) Págs .. 7~.

23
a previsão legal corresponde. Os chamados tipos jurídicos
aio ainda afinal tipos sociológicos, escolhidos de entre estes
por possuírem a característica exterior de estarem referidos
ou pressupostos em previsões normativas.
Dividiremos a nossa análise em duas partes. Em pri·
meiro lugar, vamos averigua·r qual o valor que o tipo real
pode ter na ci~ncia jurídica: fá-lo-emos muito brevemente,
pois não é esse o nosso objectivo. E veremos seguidamente
se, fora dele, a tipicidade não terá outras manifestações no
sistema jurídico. Ou seja, se não podemos falar duma tipi·
cidade na norma, e não meramente duma tipicidade por
det rds da norma.

3. o Upo ree.I

1 - Na maior pa11e dos casos, as previsões legais impli·


cam a refcrência a uma dada figura ou tipo da realidade
social, de que constituem como que a cristalização. Se per·
corremos os vários tipos de contratos. verificamos que eles
represt'ntam quase sempre formações da vida real, que a
certa altura a lei acolhe. precisa e regula. Isto é assim quando
a lei se limita a nomear uma dada figura, sem a definir.f
Mas o mesmo podemos afirmar quando ela recorre a defi·
nições: a definição, seja ou não feliz, pretenderá justapor-se
a um modelo que é proposto ao legislador. Por detrás do
conceito, necessàriamente rígido. de compra e venda, há um
tipo fluido de compra e venda dentro da vida social; por
dct rás da repressio da vadiagem está a imagem do vadio;
Por dettis da valoração do acto negligente existe a visão
da dili~cia normal.

1I - Ali,s, mesmo o conceito de tipo real ainda ten1


várias manifestações, todas com reflexo no direito. g assim
que. seguindo Engish. diremos que ele pode ser considerado
como css~ncia ou ~n~l~uJa: como tipo empírico: como tipo
de ordem, que é aquele que ~ tido em vista pelas conside-
rações de Radbruch, há pouco transcritas; e corno tipo
representativo ( 1 4 ).
Particularmente ao tipo empírico recorre o legislador;
e isto em qualquer das suas subespécies, o tipo normal e o
tipo de frequência. O primeiro representará as caracterís-
ticas médias (sejam ou não as de mais frequente realiza-
ção) de uma categoria de seres; o segundo é determinado
estatisticamente, pois traduz a maior verificação. Assim, a
inaptidão do tutor para o exercício do cargo, prevista no
art. 1948.º, a), deve apurar-se por confronto com um tipo
médio, pouco interessando neste caso qual seja a maior
frequência de verificação; pelo contrário, quando se dispõe
que «O usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa
ou direito como faria um bom pai de família, respeitando
o seu destino económico» (art. 1446.º), o recurso à figura
tradicional do bonus paterfamilias esconde, ao que pensa-
mos, não um tipo médio ou até um tipo qualificado por
características superiores à média (como poderia pensar-se
por se falar num bom pai de família) mas um mero tipo
de frequência: o usufn1tuário deve proceder como usual-
mente se procede no uso dos bens, e não é obrigado a uma
diligência superior à normal ( 1 rs).

III - Da consideração do tipo real têm os autores pro-


curado tirar consequências prâticas. Assim, esta ligação à

(1•) Na categoria do «tipo normativo do agente•, que .tanto


interessou a ciência penal, não parece que se tenha em vista propria-
mente um tipo empírico, mas antes um tipo representativo.
(1 11 ) Não nos parecem por isso de acolher as considerações de
Cunha Gonçalves, Tratado, vol. XI, n.º H17, em comentário ao
art. 2223.º do Código anterior. Ofr. a propósito Venczian, vol. II,
n.º 278. De Martino, sub ar.t. 1001.º, fala cm diligência. média, mas
cremos que sem entrar em conta com esta distinção.
Podem também respeitar a tipos de frequência numerosas refe-
rências legais aos usos. Assim, pode-se dizer que, quando o art. 1128.º,
ao estabelecer o regime subsidiário da parceria pecuária, dispõe que
em tudo o que não estiver estabelecido por lei ou convenção devem
ser observados «Os usos da terra», é para um tipo de frequ~ncia
que aponta.

25
a prev1sao legal corresponde. Os chamados tipos jurídicos
são ainda afinal tipos sociológicos, escolhidos de entre estes
por possuírem a característica exterior de estarem referidos
ou pressupostos em previsões normativas.
Dividiremos a nossa análise em duas partes. Em pri-
meiro lugar, vamos averiguar qual o valor que o tipo real
pode ter na ciência jurídica: fá-lo-emos mui to brevemente,
pois não é esse o nosso objectivo. E veremos seguidamente
se, fora dele, a tipicidade não terá outras manifestações no
sistema jurídico. Ou seja, se não podemos falar duma tipi-
cidade na norma, e não meramente duma tipicidade por
detrás da norma.

3. o tipo real

1 - Na maior parte dos casos, as previsões legais impli-


cam a referência a uma dada figura ou tipo da realidade
social, de que constituem como que a cristalização. Se per-
corremos os vários tipos de contratos, verificamos que eles
representam quase sempre formações da vida real, que a
certa altura a lei acolhe, precisa e regula. Isto é assim quando
a lei se limita a nomear uma dada figura, sem a definir. 4
Mas o mesmo podemos afirmar quando ela recorre a defi-
nições: a definição, seja ou não feliz, pretenderá justapor-se
a um modelo que é proposto ao legislador. Por detrás do
conceito, necessàriamente rígido, de compra e venda, há um
tipo fluido de compra e venda dentro da vida social; por
detrás da repressão da vadiagem está a imagem do vadio;
por detrás da valoração do acto negligente existe a visão
da diligência normal.

II -Aliás, mesmo o conceito de tipo real ainda tem


várias manifestações, todas com reflexo no direito . .J!' assim
que, seguindo Engish, diremos que ele pode ser considerado
como essência ou enteléquia; como tipo empírico; como tipo
de ordem, que é aquele que é tido em vista pelas conside-

24
rações de Radbruch, há pouco transcritas; e como tipo
representativo ( 14 ).
Particularmente ao tipo empírico recorre o legislador;
e isto em qualquer das suas subespécies, o tipo normal e o
tipo de frequência. O primeiro representará as caracterís-
ticas médias (sejam ou não as de mais frequente realiza-
ção) de uma categoria de seres; o segundo é determinado
estatisticamente, pois traduz a maior verificação. Assim, a
inaptidão do tutor para o exercício do cargo, prevista no
art. 1948.º, a), deve apurar-se por confronto com um tipo
médio, pouco interessando neste caso qual seja a maior
frequência de verificação; pelo contrário, quando se dispõe
que «O usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa
ou direito como faria um bom pai de família, respeitando
o seu destino económico» ( art. 1446.º), o recurso à figura
tradicional do bonus paterfa1nilias esconde, ao que pensa-
mos, não um tipo médio ou até um tipo qualificado por
características superiores à média (como poderia pensar-se
por se falar num bom pai de família) mas um mero tipo
de frequência: o usufrutuário deve proceder como usual-
mente se procede no uso dos bens, e não é obrigado a uma
diligência superior à normal ( 15 ).

III -Da consideração do tipo real têm os autores pro-


curado tirar consequências práticas. Assim, esta ligação à

( 14 ) Na categoria do «tipo normativo do agente», que itanto


interessou a ciência penal, não parece que se tenha em vista propria-
mente um tipo empírico, -mas antes um tipo representativo.
( 111 ) Não nos parecem por isso de acolher as considerações de
Cunha Gonçalves, Tratado, vol. XI, n.º 17"17, em comentário ao
art. 2223.º do Código anterior. Ofr. a propósito Venezian, vol. II,
1

n.º 278. De .Martino, sub ar.t. 1001.º, fala em diligência média, mas
cremos que sem entrar em conta com esta distinção.
Podem também respeitar a tipos de frequência numerosas refe-
rências legais aos usos. Assim, pode-se dizer que, quando o art. 1128.º,
ao estabelecer o regime subsidiário da .parceria pecuária, dispõe que
em tudo o que não estiver estabelecido por lei ou convenção devem
ser observados «OS usos da terra», é para um tipo de frequência
que aponta.

25
realidade permite-nos compreender muitos casos em que o
sentido ( objectivo) da norma evolui, porque também evo-
luiriam as circunstâncias, ou o tipo em que o preceito se
apoiava.
Todos os autores, de Radbruch a Engish, acentuam ainda
a importância desta orientação para efeitos da interpretação
da lei: se há correspondência entre a figura legal e um tipo
real, a análise deste fornece-nos elementos preciosos para
esclarecer os aspectos que o legislador não regulou clara-
mente ( 16 ).
Pelos mesmos motivos, ao tipo se poderá recorrer
quando se verificar a existência de uma lacuna, sempre
com fundamento nesta correspondência essencial. O conhe-
cimento do tipo que terá inspirado o legislador revelar-se-á
um precioso auxiliar da integração.
Um problema específico surge quando a própria lei
recorre à tipificação, construindo taxativamente modelos
que se impõem à observância dos intérpretes. Este é o caso
de que particularmente nos ocuparemos. Nessa hipótese,
devemos dizer que a consideração do tipo real, para além
do que respeita à interpretação em sentido restrito, perde
toda a importância? Não se orientam neste sentido os auto-
res que estudaram em geral o problema: e há já investiga-
ções de disciplinas específicas que permitem definir melhor
os limites da utilização do tipo real. Assim faz Kaufmann ( 17 )
para o Direito Penal, sondando os limites do princípio nullum
crimen sine lege, nomeadamente em hipóteses de omissão.
Assim faz também Koller ( 18 ) na sua monografia destinada
justamente a delinear uma teoria do tipo no direito das
sociedades. Verifica o autor que há um numerus clausus

(16) Neste contexto merece ser rnedi·tada a observação de Kauf-


rnann, 38-39, de que a insegurança jurídica actual não é de atribuir
à lei, mas ao facto de os tipos que estão por detrás dos conceitos
legais terem deixado de ser seguros.
( 11) Págs.- 40 a 42.
( 1S) Ver sobretudo as págs. 106 e segs.

26
de formas de sociedades comerciais, mas verifica também
que atrás de cada forma legal se encontra um tipo. Procura
então conjugar os dois elementos; nomeadamente, tendo
admitido a possibilidade de sociedades comerciais atípicas,
procura demarcar os limites da autonomia privada neste
campo ( 19 ).

4. Limites do recurso ao tipo real

I -Até aqui referimos a utilidade da consideração do


tipo real. Mas não devemos omitir uma palavra sobre os
limites desta.
Em primeiro lugar, teríamos que discordar se as orien-
tações que indicámos pretendessem uma aplicação exaustiva
à realidade jurídica. Porque, ao contrário do que frequen-
temente se afirma, nem sempre há uma tipicidade real por
detrás das previsões normativas.
Há em primeiro lugar que ter em conta que os tipos
reais e os conceitos jurídicos podem não coincidir. Por vezes
ficam nestes abrangidos elementos que escapam ao tipo, tal
como podem ficar dele excluídas manifestações típicas de
fenómenos reais. Isto pode dever-se ao acaso, mas com fre-
quência resulta da intenção do legislador. Este não está
manietado àquilo que acontece, e as suas finalidades justa-
mente o levam muitas vezes a opor-se a uma prática exis-
tente ou a procurar introduzir novas formas de conduta ( 2 º).
Estas últimas observações já nos impelem ao passo
seguinte: pode chegar-se a uma absoluta falta de corres-

( 19) ~ paralela a investigação de :Ernst Wolff, mas no domínio


dos contratos, em que não há uma tipologia taxativa, como veremos.
Procura determinar os limites da utilização de uma forma contratual
para finalidades atípicas (págs. 633-637).
(2º) Cfr. ·Engish, pág. 110. O autor esquematiza aí as várias
causas de um possível afastamento entre os tipos sociais e os pre-
ceitos jurídicos.

27
pondência do preceito jurídico a um tipo real. Isto sucede
quando a criação normativa precede a verificação prática
de determinada situação. Não será frequente, mas é cada
vez mais de ter em conta, à medida que aumenta a comple-
xidade da ordem social e o elemento de «Construção» dentro
dos instrumentos que para ela são elaborados. Assim se veri-
ficará sobretudo no que respeita às consequências da regra
legal, que se podem afastar de qualquer relacionação social-
mente conhecida.
Mesmo prescindindo de preceitos singulares, vemos ins-
titutos inteiros surgirem divorciados de qualquer prática
social anterior: pensamos nas medidas de segurança, no
extracto de factura, na inabilitação ... Sem dúvida, mesmo
então é necessário conhecer a realidade histórica que moti-
vou a intervenção do legislador: mas essa dá-nos a ratio
legis, e não um tipo real. Também é necessário conhecer
os termos de comparação que o nortearam, tirados da his-
tória ou de legislações contemporâneas: mas nenhuma destas
observações nos dá um tipo real, a que deva referir-se e
com que deva ser conjugada uma dada previsão legal.

II - Tanto basta para que possamos concluir que os


conceitos legais são independentes da verificação de tipos
reais. E não será uma concepção institucional do direi to que
trará qualquer obstáculo a esta conclusão. Ninguém nega
que o legislador possa inovar em dado ordenamento. O que
os autores institucionalistas acentuam é a modelação, e até
o condicionamento do texto legal pelo meio a que se des-
tina, como teremos ocasião de frisar ulteriormente. Mas a
prática social nunca poderia ser tomada como um antece-
dente necessário das intervenções do legislador.
Convém recordar neste contexto a investigação que
Koller realizou sobre os tipos de sociedades comerciais.
Estreitamente ancorado à visão do tipo como conceito de
ordem, procura encontrar, na origem de cada uma das for-
mas de sociedade admitidas pela lei suíça, o tipo real em
que 0 legislador se teria inspirado. E nesta base analisa as

28
várias formas previstas por lei, mas tem de aceitar uma
excepção: a da sociedade de responsabilidade limitada. Esta
foi artificialmente introduzida na vida jurídica pela lei alemã
de 20 de Abril de 1892, e sucessivamente acolhida em quase
todos os Estados do continente europeu ( 21 ). Parece que
esta forçada admissão inquina, não talvez a correcção, mas
certamente o carácter sistemático que o autor quer empres-
tar posteriormente à utilização do tipo (real) da sociedade
comercial.

I I I - Vamos mais longe: mesmo após a intervenção


normativa o tipo real pode não surgir.
Aceitamos que o conceito normativo corresponde na
maior parte dos casos a um tipo real; mesmo que não
correspondesse na altura da sua criação, esse tipo real sur-
girá normalmente com a aplicação, e não poderá deixar de
ser tomado em conta, nos termos da referida inter-relação
entre conceito e tipo. Mas ainda então nos parece necessário
evitar posições extremas. Mesmo após a vigência da regra,
o tipo real pode não se produzir, porque as previsões legais
podem não chegar a ter aplicação. Tomemos o exemplo do
direito de superfície, introduzido pela Lei n.º 2030 indepen-
dentemente de qualquer tipo real. Por desinteresse dos seus
destinatários, essas previsões, se aplicadas, foram-no em
escassa medida, sempre insuficiente para que se possa falar
dum tipo real de superfície em terrenos de entes públicos.
Nem a posteriori poderemos pois encontrar aqui uma corres-
pondência do modelo legal a um tipo real.
Porque isto é assim, Engish ( 22 ) aventou que o que os
autores quereriam referir quando falavam na relação entre
o tipo e a norma não era bem o que tipicamente acontece,
mas o que tipicamente se prevê e se espera como conse~

(21) Cfr. KoHer, págs. 75-76.


( 22) Konkretisierung, pág. 283.

29
quência da norma ( 23 ). E, sem dúvida, devemos reconhecer
que a toda a intervenção legislativa corresponde a represen-
tação de um determinado realizar-se histórico. Essa repre-
sentação poderia ser tomada como um tipo, uma vez des-
pojada da ligação psicológica ao autor ou autores históricos.
Mas o próprio Engish nota que ela não poderá realizar as
funções que ao tipo real foram atribuídas, porque o que
efectivamente acontecer não pode ser destituído de todo o
significado, antes concorre com aquela representação para
dar o critério da apreciação de cada caso ( 24 ).

5. Em iiorno de um «tipo» próprio da ciência do direitD

I - Eis o que de mais importante cabe dizer sobre as


possibilidades e os limites de um recurso ao tipo real na
ciência jurídica. Mas será esta toda a utilidade que para
os nossos fins o tipo oferece?
~ aqui que devemos ter em conta referências que nos
levariam a concluir pela existência de um tipo especifica-
mente jurídico. Por exemplo, na recente Introdução à Filo-
sofia do Direito de Henkel, dão-se como exemplos de tipos
legais os tipos de actos jurídicos, de contratos, de associa-
ções, de regimes de bens, de actos processuais, de cri-
mes ( 25 ).

II -Uma grande corrente dentro do pensamento jurí-


dico não aceita porém esta extensão, porque incompatível
com o conceito de tipo inicialmente exposto. Os chamados

(2S) Acena claramente neste sentido Koller, 76, justamente a


propósito da sociedade de responsabilidade limitada, quando diz que
há mesmo então a representação de uma figura típica, respei·tante a
interesses típicos.
( 2') Obra ci t., págs. 283-4.
(25) Pág. 354. Seria esta a modelação jurídica do tipo, em liga-
ção a ·uma prévia tipicidade da vida.

30
tipos legais não são tipos, são classes: as figuras legais
estão perfeitamente limitadas, não há aquele mais ou menos,
aquela indeterminação de fronteiras que caracteriza o tipo.
Assim fala Hans Wolff a propósito dos chamados tipos
penais, uma vez que a passagem duma figura de crime
para outra não é gradual, antes seria rigidamente determi-
nada ( 26 ). Da mesma forma fala Koller: os chamados tipos
de crimes, de contratos, de sociedades, de regimes de bens
e de direitos reais, não seriam na realidade tipos, mas con-
ceitos gerais: só haveria verdadeiros tipos se e na medida
em que esses conceitos escondessem tipos (reais)( 27 ).

III -A aceitar estes pressupostos, de tipos 'legais pro-


priamente ditos raramente ou nunca se poderia falar. Mas
são justamente os pressupostos que nos parecem demasiado
unilaterais, pois desconhecem o que há de específico na
manifestação da tipicidade na ciência jurídica. Com efeito,
procedendo assim iríamos justamente excluir da considera-
ção científica as hipóteses que se apresentam como as mais
significativas manifestações da tipicidade no direito, colo-
cando-nos afinal em oposição à visão e à linguagem corren-
tes. Basta que recordemos os exemplos de Henkel, atrás
citados, para nos convencermos desta verdade.
Sendo assim, não podemos deixar de recorrer de novo
ao monumental estudo de Engish sobre a «concretização».
O tipo chamou a sua atenção por aparecer associado a todas
as manifestações do concreto. Partindo, embora sem exclu-
sivismos, da base que é fornecida pela linguagem corrente,
verifica que na ciência jurídica a maior parte dos chama-
dos tipos não são conceitos graduais ( Steigerungsbegriffe),
e os conceitos graduais que se encontram não são denomi-
nados tipos. Daí infere que a redução dos tipos a conceitos
de ordem não pode ser acolhida na ciência jurídica ( 28 ).

( 20) Typen, pág. 203.


( 21) Págs. 40-1.
(2ª) Pág. 289.

31
Antes, de tipo pode-se falar, e fala-se, numa pluralidade de
acepções, consoante a forma de concretização que se tem
em vista. Em todos os casos o tipo pode ser caracterizado
como algo de mais concreto que o conceito; e em todos os
casos podem-se fazer utilizações do tipo no direi to ou na
ciência jurídica.
As bases linguísticas da investigação permitem uma
certa transposição para a língua portuguesa. ~ assim que
vemos que não há apenas o tipo real: há ainda o tipo «visí-
vel», por intuição ou por experiência ( «Anschauungstypus»),
o tipo global, o tipo entendido como o específico e o tipo
entendido como o individual. De todas estas modalidades
se podem encontrar manifestações no mundo jurídico.
Perante esta riqueza, conclui o autor ser inadequada a
redução dos tipos jurídicos a conceitos de ordem. A termi-
nologia não parece arbitrária, uma vez que é possível des-
cobrir o princípio condutor destas utilizações da palavra.
Em todos os casos - seja o real, ou o «Visível», ou o global,
ou o específico, ou o individual que estiver em causa, não
há motivo para não admitir que se fale em tipo.

IV - Esta orientação, se hem que contrária à dos auto-


res anteriormente citados, teve seguidores de relevo, como
Henkel, que já referimos. E noutros casos podemos men-
cionar, para além de uma oposição teórica, uma espécie de
concordância prática. Assim Larenz, ao estabelecer a distin-
ção entre tipos abertos e fechados (de que mais tarde fala-
remos) fá-lo de molde a fazer corresponder o tipo de ordem
ao tipo aberto; os tipos fechados, ou seja, aqueles cujas
características estão exaustivamente fixadas, não seriam
para o autor, em expressa adesão a H. Wolff, «tipos em
sentido estrito», mas sim «classes múltiplas» ( 29 ). Apesar
desta posição de base, não deixa todavia o autor de •recorrer
seguidamente à tipicidade em sentido semelhante àquele

(28) Methodenlehre, pág. 344.

32
que se nos apresenta: também os tipos fechados lhe inte-
ressam, afinal. E cremos que há na verdade uma tendência
inelutável por parte da ciência jurídica para acolher tam-
bém um conceito específico do tipo.
A própria lei assim procede: por exemplo, só este con-
ceito normativo de tipo explica as referências dos arts. 293.º
e 425.º a um tipo de negócio jurídico.

6. Tipo e especificação

I - O que dissemos dá-nos a base para um ulterior pro-


gresso, no sentido do fenómeno que particularmente nos
interessa: nas nossas considerações posteriores estará em
causa o tipo jurídico propriamente dito, o tipo dentro da
norma. Semelhante tipo é por natureza algo diverso do
tipo real (embora possa conjugar-se com ele). 'Dada porém
a riqueza de entendimentos de tipo que ainda subsistem,
temos de -determinar se algum ·daqueles sentidos, que aca-
bamos de assinalar, é o que corresponde às hipóteses de
tipicidade que nos interessam, e que designaremos por tipi-
cidade jurídica.
Para isso, o caminho adequado é atender às situações
normativas em que se tem referido, ou se pode referir, uma
tipicidade, e verificar o que as caracteriza.

I I - Sem a mínima preocupação de ser exaustivos, pode-


mos ·dizer que acontece assim:
- nas formas de incapacidade de exercício
- nos contratos
- nos negócios unilaterais (Sº)
- no erro na formação da vontade
- nos direitos reais
- nos factos sujeitos a registo
- nos direitos e negócios familiares

(sº) .Em consequência sobretudo do princípio geral do art. 457.º.

33
- nos regimes de bens
- nas sociedades comerciais
- nos actos processuais
- nos processos especiais
- nos crimes e nas penas
- nas circunstâncias (agravantes e atenuantes) ( ª1 )
E o elenco poderia estender-se quase indefinidamente.
Como é natural, seria deslocada uma apreciação da maneira
como caso por caso a tipicidade se apresenta. Antes deve-
mos apurar qual o traço comum que permite afirmar que
em figuras legais de tão diversa índole encontramos mani-
festações de tipicidade.

III -Temos desde logo aquele mínimo que caracteriza


o tipo em todas as suas manifestações. A norma não se con-
tentou com previsões ou determinações gerais, com concei-
tos portanto que abrangessem indiscriminadamente todas
as situações. Foi mais longe, modelou tipos: e os tipos deter-
minam-se por referência a um conceito que concretizam.
Também o tipo jurídico, como todo o tipo, é algo de mais
concreto que o conceito.
A tipicidade jurídica contrapõe-se pois à consagração
pela norma de uma figura genérica ou de um conceito, sem
quaisquer especificações.
J;: o que se verifica por exemplo no art. 473.º, 1.: «Aquele
que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem
é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se
locupletou». Aqui se prevê em geral o enriquecimento, sem
se ter julgado necessário especificar: todos os casos devem
ser referidos imediatamente a este conceito geral.

( 31 ) Fala-se também de uma tipicidade ou tipi!ficação em Direito


Fiscal, e acentua-se que se trata de uma especialidade deste ramo do
Direito: Bühler-Strickrodt, § 9, Ill; Gierschmann, págs. 129-30. Tem-se
então em conta uma visão generalizadora das situações abrangid~s
pelo preceito fiscal, que se contraporia a uma consideração das ~ir­
cunstâncias do caso concreto. Vemos que esta utilização do conceito
não pode ter interesse para o ângulo em que nos colocamos.

34
Outro exemplo para ilustrar esta passagem do conceito
geral para o tipo: no ilícito penal recorreu-se à tipicidade;
já no ilícito disciplinar, segundo o entendimento de alguns,
haverá uma única figura, e não tipos de ilícito.
Não era impossível (ainda que fosse altissimamente
inconveniente) que também no ilícito penal se prescin-
disse da tipicidade. Poderia recorrer-se a fórmulas como a
seguinte: «Será punido quem infringir culposamente os prin-
cípios fundamentais da ordem social democrática, ou socia-
lista, ou comunista» ( 32 ). Esta previsão ampla substituiria
toda a tipificação. Da mesma forma, poderiam sujeitar-se
a registo os factos respeitantes a direitos inerentes a imó-
veis (à semelhança do que acontece em Espanha) em vez
de se recorrer à enumeração do art. 2.º do Código do Registo
Predial. Depende exclusivamente de razões de política legis-
lativa o facto de a norma se bastar com um conceito, ou
recorrer à tipificação.
E com isto temos a resposta à pergunta que fizemos.
Quando se fala em tipicidade jurídica utiliza-se um dos
entendimentos de tipo, dentro das modalidades atrás enun-
ciadas: esse tipo representará sempre, para recorrer à siste-
matização de Engish, um «específico». A lei, não se conten-
tando com o conceito-base, especifica. Assim se caracteriza
mais precisamente o fenómeno referido, que suscita proble-
mas particulares, em Teoria Geral e no Direito das Coisas.

IV - Recordemos que só nos interessa o tipo jurídico,


aquele que é moldado por norma. Mas paralelamente a essa
tipificação há uma tipificação doutrinária, que obedece fun-
damentalmente aos mesmos princípios. Assim, no seio dos
negócios inominados, há um progressivo movimento de tipi-
ficação, que permite que, para além da concreta vontade
das partes, se possam retirar efeitos jurídicos do tipo dou-
trinário já elaborado. Tais tipos mantêm aliás uma cons-

( s2) Referida por Welzel, 9.ª ed., § 10, .J.

35
tante osmose com os tipos legais ( 33 ). Mas basta-nos -este
aceno, uma vez que esta tipicidade nos não vai ocupar daqui
por diante ( 34 ).

V- O tipo aparece ligado a preocupações de concre-


tização. Assim se compreende a tendência da legislação
moderna para, ultrapassando as referências conceituais, tipi-
ficar. Mas há, paralelamente, que contar com a tendência
oposta. De facto, nunca devemos esquecer que o tipo, se é
mais concreto que o conceito, é todavia algo de abstracto,
em relação ao caso individual. O tipo ocupa pois uma posi-
ção intermédia, entre o conceito de referência e o caso
individual.
J! pois com razão que tem sido acentuado que a tipi-
ficação não é instrumento só por si adequado para satisfa-
zer as modernas tendências de individualização na aplicação
do direito. Como nota Henkel ( 35 ), quanto mais pormenori-
zados e específicos são os tipos legais, mais difícil se torna
a individualização; enquanto que a utilização de conceitos
imprecisos permite que no seu preenchimento se atenda às
características particulares individualizadoras do caso con-
creto. Aliás, o fenómeno não deve causar estranheza, se
tivermos presente o ensinamento de Engish, de que nestes
casos o tipo procura atingir o concreto através da especi-
ficação, e não através da individualização.

VI - Porque há que contar com estes dois movimentos


dentro do direito, vemos que, ao lado da tendência para a

(3ª) Cfr. Sacco, págs. 796 e segs.; Orlando de Carvafüo, pág. 284.
( 34 ) Notemos apenas que nem ·todas as referências à tipicidade
doutrinária se enquadram nesta ordem de ideias. Assim, fala-se numa
tipicidade da causa do negócio jurídico (para além daqueles que são
previstos na lei). Mas quer-se significar que o negócio jurídico deve
ter uma causa típi.ca. Com isto nos situamos num pólo que nada
tem que ver com o movimento de especificação atrás assinalado.
Cfr. Sacco, pág. 786.
( 35) Págs. 356 e segs.

36
tipificação, se processa o abandono de certas limitações
típicas que eram sintoma de uma rigidez que o direito actual
superou. Nenhum exemplo pode ser tão elucidativo como
o do abandono da tipicidade da tutela estadual. Em Roma
as actiones eram típicas: a protecção processual não era
outorgada a toda e qualquer situação substantiva, mas tão-
-somente àquelas a que se aplicasse um meio processual
existente. O sistema prolongou-se na tipicidade dos reme-
dies admitidos pela jurisdição britânica até 1873 ( 36 ). Em
compensação, o art. 2.º do Código de Processo Civil pro-
clama que a todo o direito corresponde uma acção, excepto
quando a lei determinar o contrário.
Também no novo Código Civil verificamos que, se por
um lado há a abertura a novas .formas de tipicidade, por
outro tipologias antigas são suprimidas. Assim, desaparece
a tipicidade das sociedades civis (art. 980.º) - se abstrair-
mos das disposições transitórias do art. 9. 0 do Decreto-Lei
n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966.

7. As tipologias

1 - Mas não bastará esta referência à especificação para


termos desvendada a essência do tipo jurídico? Por que é
que o tipo único de sociedade civil previsto no art. 980.º
não tipificará o conceito de sociedade civil? E a figura legal
de sociedade não tipificará por si só o conceito de pessoa
colectiva de mero interesse particular?
Seria possível uma construção desta ordem. Todo o tipo
pode ser sempre considerado manifestação dum conceito
mais vasto: pode-se proceder por generalizações sucessivas,
até chegar aos conceitos jurídicos primários. Toda a figura

(se) Veja-se a clássica expos1çao de Neuner, págs. 27 e segs.


Propriamente, o que interessa não é averiguar a existência do direito,
mas verificar se se preenchem os pressupo·stos da aplicação daquele
meio processual.

37
legal seria, pois, manifestação de tipicidade, pois tipificaria
a fisionomia juridicamente relevante de um conceito mais
vasto.
Mas a própria amplitude desta construção a impediria
de trazer muito de útil à indagação jurídica. O fenómeno
que procuramos agora fixar, tendo na base a especificação
dum conceito, só toma contornos úteis quando se depara
uma pluralidade de tipos.
Efectivamente, tem de haver alguma coisa mais que a
especificação para que, na linguagem corrente, só nalgumas
hipóteses se fale de tipicidade (e da tipificação que está na
sua origem).

II-Quando o tipo é único, o conceito mais vasto não


seria propriamente acolhido no direito positivo. Justamente
na medida em que é mais vasto que o tipo de direito posi-
tivo, seria um acrescento doutrinário com finalidades mera-
mente ordenadoras. Já quando os tipos são vários, o que
há de comum entre eles implica a recepção do conceito do
direito positivo. Só que esse conceito - e aqui nos aproxi-
mamos do que veremos ser a essência da tipicidade - está
incompletamente preenchiâo pelos tipos existentes.

III - Era isto o que resultava dos exemplos dados ante-


riormente de hipóteses em que se admite a tipicidade: fàcil-
mente se verifica que o tipo é sempre encarado como um
entre outros, como um entre iguais ( 37 ). Implicitamente, os
autores reconhecem que o tipo, no sentido propriamente
jurídico, supõe sempre uma pluralidade: •revela-se numa
série ou catálogo de figuras.
Isto quer dizer que, tendo partido desta noção de um
tipo caracteristicamente jurídico, acabámos por chegar às
tipologias jurídicas. Em todos os exemplos que temos dado,
em que efectivamente a doutrina reconhece a existência de

(ª 7 ) Há uma observação neste sentido em Larenz, Methoden-


Iehre, pág. 339.

38
tipicidade, há uma tipologia. Esta palavra significa justa-
mente uma série de tipos, unificados segundo determinado
prisma: adapta-se pois perfeitamente à realidade que nos
ocupa. O facto de ter sido acolhida primeiro na Caractereo-
logia não lhe tira a natureza genérica, conforme com a eti-
mologia: e efectivamente, os estudos mais recentes introdu-
ziram-na na ciência jurídica. Quanto a tipicidade, palavra
que por vezes se utiliza no sentido de tipologia para preen-
cher o vazio terminológico que se sentia, designa mais prõ-
priamente, se se parte da vida para a norma, a conformidade
ao tipo; se se parte da norma para a vida, e este é o sen-
tido mais corrente quando se fala na tipicidade dos direitos
reais, dos crimes, das sociedades, o facto de certo conceito
ser especificado numa tipologia. Abreviadamente, designa
também a sujeição de certas realidades a tipos.

IV - Apurámos que a tipicidade supõe a especifica-


1$âO dum conceito através de uma pluralidade de espécies.
Mas para ·além disto, não cremos que se deva acentuar a
oposição entre tipo e conceito. Cada tipo jurídico é, como
figura legal, necessàriamente caracterizado pela abstracção:
sendo mais concreto que o conceito a que se refere, é toda-
via sempre um abstracto em relação às circunstâncias his-
tóricas. Como vimos, o tipo busca o concreto mediante a
especificação, e não mediante a individualização.
Sendo assim, podemos ir mais longe: não encontramos
obstáculo a que se diga que o tipo é por sua vez abrangido
por determinado conceito. Não vemos razão nem utilidade
em continuar a opor tipo e conceito de espécie como enti-
dades de natureza diversa ( 38 ), depois de termos repudiado
a pretensa necessidade de a tipicidade jurídica corresponder
à tipicidade real. Quando falamos de tipo e de conceito o
ponto de vista é diverso, mas em última análise a essência
de cada tipo jurídico é a de um conceito de espécie.

( 1 ª) Como procura fazer Larenz, Methodenlehre, págs. 339-40.

39
8. '11pologia e classificação

1 - Dando mais um passo, verificamos que na lingua-


gem corrente se distinguem abertamente as operações de
tipificar e classificar. Pensamos que ·dentro desta visão jurí-
dica que é a nossa a oposição entre o tipo e a classe é igual-
mente válida. Para o nosso tema, isso permitir-nos-á verifi-
car que nem em toda a pluralidade de espécies, redutíveis
ao mesmo conceito, se encontra uma tipologia.
Vamos dar alguns exemplos, tirados da lei, de formas
de especificação, das quais em todo o caso se não diz que
envolvem tipicidade ou tipos, mas sim classes:
- no art. 398.º classificam-se as obrigações pelo seu con-
teúdo positivo ou negativo;
- no art. 203.º classificam-se as coisas;
-as benfeitorias podem ser necessárias, úteis ou volup-
tuárias (arts. 1273.º a 1275.º);
- o Código Administrativo acolhe a distinção dos actos
administrativos em executórios e não cxccutórios
(art. 355.º, por ex.).
Vejamos como caracterizar estas situações e tantas
outras da mesma ordem.
II - A classe é também uma forma de repartição dos
seres que se integram num dado conceito: é este o elemento
que a aproxima do tipo. Mas o que a distingue profunda-
mente do tipo é o facto de a utilização das classes permitir
uma arrumação exaustiva da realidade (lembremo-nos das
dasses zoológicas), enquanto que a utilização de tipos con-
duz sempre a uma descrição incompleta. Isto é o essencial,
qualquer que seja o conceito de tipo por que nos tenhamos
decidido - os tipos representam sempre ilustrações ou mani-
festações de um conceito, mas não esgotam toda a realidade
que esse conceito abrange.
Podemos por isso dizer que, enquanto uma classifica-
ção é incorrecta se não esgota a realidade a que se refere,
uma tipologia só é pelo contrário incorrecta se for exaustiva.

40
Realmente, em qualquer das manifestações legais da
tipicidade, nós encontramos uma descrição incompleta da
realidade contida no conceito superior. Os regimes de bens
previstos na lei atingem uma extensão muito menor que o
conceito de regime de bens, e assim por diante.
Com isto se revela mais uma faceta da nossa afirma-
ção inicial de que o tipo é sempre algo de mais concreto
que o conceito, se bem que, como vimos, a cada tipo corres-
ponda afinal um conceito - violação, mandato, arbitra-
mento... ~ que o conjunto dos tipos de crime não tem a
mesma extensão que o conceito de crime, nem o conjunto
dos contratos a mesma extensão que o conceito de contrato.
A lei, tipificando, demarcou a realidade a que pretende apli-
car-se, suavizando a abstracção própria do conceito. Entra-
mos pois num campo (relativamente) concreto. Por isso,
justamente se aponta o recurso à tipificação como índice
da ânsia de concretização do nosso tempo.

III - Aliás, não queremos deixar de observar que há


na figura da classificação uma ambiguidade, que tanto per-
mite que a refiramos a um movimento de especificação como
a um movimento de generalização. Se atendermos a toda a
extensão do conceito, poderemos dizer que em relação a ela
a classe especifica; rigorosamente, porém, a classe agrupa
seres, e por isso generaliza.
Isto tem interesse para a compreensão da utilização da
classe pela lei. Por vezes, o legislador quer repartir todo o
conteúdo de um dado conceito, por exemplo, quando fala em
pessoas singulares e colectivas. Então esgotou o conceito.
Outras vezes, porém, ·a classificação pressupõe, ou acompa-
nha, a tipificação; as classes têm de esgotar todos os tipos
existentes, mas não têm necessàriamente de esgotar a exten-
são do conceito. Assim, a classificação legal dos crimes em
crimes contra a segurança do Estado, a ordem e tranquili-
dade pública, as pessoas, o património, etc., deverá abran-
ger todos os crimes, mas não é forçoso que esgote a exten-
são do conceito de crime. Da mesma forma se poderá dizer

41
- embora aqui a análise seja particularmente difícil- que
as classes sucessórias esgotam os tipos de sucessor legítimo,
mas não esgotam o conceito de sucessor legítimo.
Ainda então, porém, se mantém uma diferença, que não
é meramente quantitativa, entre tipo e classe. Cada classe
continua a ter uma extensão maior do que a soma dos tipos
nela compreendidos. A classe «crimes contra a religião», ou
contra os valores religiosos, teria extensão suficiente para
abranger realidades que não foram tipificadas - a violação
de sacrários, por exemplo. Podemos pois continuar a dizer
que os tipos preenchem incompletamente o conceito (de
classe) a que são referidos ( 39 ).

9. 'llpologla e enumeração
1 - Ocorre subsequentemente saber como se relacionam
as tipologias e as enumerações normativas. O problema colo-
ca-se com acuidade justamente porque concluímos que de
tipicidade só tem utilidade falar quando se depara uma plu-
ralidade de tipos.
Tomemos as formas de enumeração legal e vejamos que
interesse apresentam para o nosso tema. Serão, em todos os
casos, manifestações da tipicidade? Sejam por exemplo as
causas ou fundamentos da separação litigiosa de pessoas e
bens, previstos no art. 1778º do Código Civil: adultério, prá-
ticas anti-concepcionais, condenação definitiva do outro côn-
juge por crime doloso, etc. Há aqui uma enumeração, mas
haverá uma tipologia?

( 39 ) Vai inteiramente neste sentido o seguinte trecho de Mar-


cello Caetano: «O conceito de acto administrativo é por sua vez
muito compreensivo. Há actos com diferentes significados e valores
a que as leis fazem expressa referência usando denominações ad~
quadas. Se essas espécies de actos administrativos são definidas em
relação a critérios distintivos próprios de cada classe, poderemos
falar em classificação dos actos. Com a classificação importa não
confundir a tipologia que respeita à individualização de oertos tipos
ou padrões de actos identificados nas leis ou pela doutrina segundo
características dominantes, nomeadamente segundo os efeitos jurí-
dicos produzidos• (Manual de Direito Administrativo, 8.• ed., n.º 182).

42
Poderíamos ser tentados a responder negativamente,
considerando que neste caso não há especificação de um
conceito dado: as várias circunstâncias seriam avulsas entre
si e só se unificariam pelo factor extrínseco de produzirem
efeitos comuns.
Mas não nos parece que seja esta a posição mais correcta.
Também aqui há especificação, em relação a um conceito a
que o legislador poderia ter recorrido: o de causas que tor-
nem impossível a digna continuação da vida conjugal, por
exemplo, ou qualquer outro mais aperfeiçoado. Mas o legis-
lador foi além do conceito, especificou os casos em que o
efeito se pode produzir, casos esses que não preenchem com-
pletamente o conceito pressuposto. Encontramos aqui, por-
tanto, todas as características da tipiddade.
O mesmo esquema de raciocínio pode repetir-se de caso/ 11
para caso, pelo que concluímos que toda a enumeração legal L
funda uma tipologia. ·

II - A inversa será verdadeira? Toda a tipologia supõe


uma enumeração?
Aqui a resposta é francamente negativa. Os vários tipos
em que se desdobra um conceito podem encontrar-se dis-
persos, sem que nunca se proceda a uma enumeração: à tipi-
cidade dos actos judiciais, por exemplo, não corresponde
nenhuma enumeração legal. E todavia, as características
anteriormente apuradas - a especificação e o preenchi-
mento incompleto do conceito - não deixam de se verifi-
car plenamente.

III - Um último problema se levanta no que respeita


ao confronto dos processos técnicos tipificação e enume-
ração.
Quando a lei recorre a uma enumeração, podemos dizer
que os únicos tipos daquela índole são os constantes dessa
enumeração?
Aqui já não é possível uma resposta genérica. Se a
norma prescrever expressamente que só se verificam aque-

43
les casos há uma justaposição entre as figuras enumeradas
e as figuras típicas; e mesmo então, há sempre a possibili-
dade de que uma lei posterior venha aditar um novo -tipo:
seja a sociedade por quotas em relação à enumeração do
art. 105.º do Código Comercial, por exemplo. Se o não pres-
crever, podemos, fora da enumeração, encontrar ainda mais
termos daquela tipologia. Só a interpretação nos permitirá.
pois dizer se há outras situações que caem dentro daquela"
série de tipos, embora não tenham sido abrangidas pela emi-
meração. Isso acontecerá muito frequentemente por força .
do aparecimento de novas leis, mas pode acontecer também
no interior do mesmo diploma, quando por qualquer motivo -
a enumeração ficou incompleta ( 40 ).
Em conclusão: a enumeração é um processo técnico •
auxiliar da tipificação, uma vez que a supõe, mas que nada
traz de essencial para esta. Pode haver tipologia e não haver
enumeração. Concentramos por isso a nossa atenção nas ...
tipologias e só acidentalmente, nos casos em que se revele
necessário, atenderemos às enumerações.

10. Imputação de wna figura a uma dada tipologia

1 -A tipificação representa a escolha pela ordem jurí- I


dica, dentro de muitas realidades possíveis, daquelas que~
5ão consideradas relevantes. i.
Temos pois de saber para que é que essas realidades
são relevantes, pois não podemos esquecer o carácter fina-
lista de toda a criação normativa: é pelo prisma do efeito
prático que se recortam as realidades que se têm em vista.
Assim, para dar uma ideia geral e sem nos prendermos nos

(''' J Isto não tem nada que ver com a distinção da tipologia em
t4tutiva e exemplificativa, que referiremos a seguir. Mesmo numa
1jpologja taxativa pode haver outras figuras legais que não caiam em
dada enumeração: com isto não se viola evidentemente o carâcter
tautivo das figuras admitidas por '1ei.

44
problemas próprios de cada tipologia, os modelos de crime
são tipificados pelo prisma da demarcação da matéria da
proibição, os factos sujeitos a registo predial pelo prisma
da conveniência da outorga de publicidade, as causas de
divórcio pelo prisma da incidência sobre o vínculo conju-
gal, e assim por diante. Pode não ser fácil, em dado caso,
desvendar a preocupação que norteia a tipicidade, mas de
uma forma ou de outra acabará sempre por se lá chegar.
Estas considerações permitem-nos afirmar que, de har-
monia com a finalidade em vista, assim variará também a
tipologia, mesmo que haja uma coincidência total ou par-
cial de situações consideradas em vários casos. Por exemplo,
a tipicidade dos actos jurídicos relativos aos estados das
pessoas não se confunde com a tipicidade dos factos objecto
do registo civil, nos termos do art. l .º do respectivo Código.

II-Frequentemente se suscitam dúvidas sobre a exis-


tência ou não de dados tipos jurídicos.
Assim, Vaz Serra levantou, em anotação a aresto recente,
o problema da tipicidade do contrato de exploração de um
estabelecimento comercial. As suas próprias afirmações
reflectem perplexidade. Depois de indicar que a lei alude a
este contrato no art. 1085.º do Código Civil e no art. 88.º, k),
do Código do Notariado, observa que isto não é muito para
que possa considerar-se um contrato nominado ou típico no
·sentido de regulado por lei, pois esta (no primeiro caso)
não faz mais do que declarar que o contrato não é havido
como arrendamento do prédio. Todavia, adiante acrescenta
que a lei o prevê, conquanto não dite para ele um regime
tão completo como para outros contratos previstos ( 41 ).
· Podemos colocar o problema em geral. Para haver um ·
1
1 tipo basta que a lei nomeie certa figura? 11 necessário que ,
r a defina ou dela dê uma descrição essencial? Será ainda/
preciso que estabeleça um regime jurídico?

(n) Rev. Leg. Jur., 100.º, 263-4.

45
Podemos partir da afirmação de que toda a nomeação
de várias categorias redutíveis a dado conceito representa
já uma tipificação. A lei especifica o conteúdo de um con-
ceito, ainda que não delimite a figura que prevê. Será neces-
sária a projecção dessa figura naquele ordenamento para
se poderem aferir os seus traços essenciais, mas não é isso
que tira sentido à lei ou exclui a tipicidade. Nestes casos,
encontramos na lei um movimento de especificação, se bem
que esta tenha remetido implicitamente para o entendimento
que da figura se faz no meio social.
Mas isso não nos leva a concluir que, em relação a toda
a tipologia, basta a nominação para que deparemos com
mais um termo desta; caso por caso teremos de verificar
quais os requisitos dos respectivos termos. Ou seja, temos
de verificar quais as exigências postas para que se conside-
rem reunidos os elementos que permitam integrar uma figura
no conceito de referência; e ainda será necessário que ela
satisfaça a finalidade específica que é imposta pelo prisma
daquela tipicidade. Assim, não será uma eventual nomina-
ção, ou mesmo uma definição, em qualquer texto legal, dq
contrato estimatório que nos permitirá considerar típico
este contrato. Se a tipicidade dos contratos se destina fun-
cionalmente a fornecer uma regulamentação, embora suple-
tiva nos casos normais, às figuras contratuais mais frequen-
tes, a auséncia desse regime não permite dizer que o contrato
estímatório representa mais um elo desta tipologia.
Por outro lado, recorde-se que dissemos acima que a
mesma realidade pode ser tipificada por prismas diversos.
Mantendo-nos ainda na figura que acabamos de referir, há
uma tipologia dos actos respeitantes ao estado das pessoas
em geral, e uma tipologia dos factos sujeitos a registo civil
que a ela se sobrepõe. Consoante a finalidade da tipifica-
ção, assim hão-de variar também os requisitos que será
necessário detectar para considerar que uma figura é um
tipo, pelo prisma relevante para dada tipologia. Aqui cessa
poí" a investigação de teoria geral, pois só tipologia por
tipologia poderemos indicar quais os elementos necessários.

46
III-Aliás, e regressando aos tipos de contratos, que nos
forneceram o ponto ·de partida, cremos que se deve distin-
guir consoante o critério de tipificação que se tem em vista.
Quando se contrapõem contratos nominados e inominados,
não cremos que se queira dizer o mesmo que quando se
contrapõem contratos típicos e atípicos.
No primeiro caso toma-se como critério a existência de
um nomen juris dado por lei. !! quanto ·basta, de facto, para
que se fale numa tipologia. Neste caso, o contrato de trans-
ferência da exploração de um estabelecimento é um contrato
típico. !! este o sentido para que parece acenar prevalente-
mente o n.º 1 do art. 405.º.
Mas quando se diz que um contrato é típico tem-se em
vista geralmente a mais importante consequência de seme-
lhante situação - a existência de um regime legal que será
aplicado ao caso concreto se se considerar integrado naquela
previsão . .E. este o sentido que parece resultar do n.º 2 do
mesmo art. 405. 0 , ao falar de negócios total ou parcialmente
regulados por lei. Disto teve consciência o "legislador ita-
liano, ao substituir a contraposição dos contratos inomina-
dos e nominados pela de contratos pertencentes ou não aos
tipos que têm uma disciplina particular ( art. 1322. º do Cód.
Civil). Neste sentido, já a transferência da exploração do
estabelecimento não é um contrato típico.

11. O crlt.ério de tipificação

1 - Sabemos que cada tipologia se ergue em vista de


um objectivo particular; mas qual é o critério pelo qual se
definem ou escolhem os tipos que preenchem incompleta-
mente o conceito, dentro dos muitos possíveis?
Logo à primeira vista diríamos que há pelo menos uma
grande variedade de critérios.
Se olharmos aos regimes de bens no novo Código, vemos
que o legislador se norteou exclusivamente pelo critério da
titularidade dos bens. Outros aspectos que se diriam rele-

47
vantes, como a titularidade das dívidas e a responsabilidade
dos bens pelas dívidas, foram afastados, e até regulados em
lugares diversos.
Passando às sociedades comerciais, encontramos como
critério a responsabilidade dos sócios por dívidas.
Nos tipos de erro relevante, o critério será a realidade
sobre que recai o erro.
Bastam-nos estes exemplos para mostrar como o cri-
tério orientador pode variar.

II - Passando à análise de cada tipologia, podemos ir


mais longe, pois logo se verifica que não é possível encon-
trar sempre um critério que unifique as várias manifesta-
ções. Quando se chega a grupos mais amplos, torna-se impos-
sível a referência a um único critério, e antes a modelação
dos tipos resulta do entrecruzar de critérios diversos. A uni-
ficação realmente possível deriva exclusivamente de esta-
rem englobados no conceito de base.
Assim, no que respeita aos crimes, vemos quais as fina-
lidades da tipicidade, vemos a unificação resultante de todas
as realidades serem abrangidas pelo conceito fundamental
de crime, podemos chegar mesmo a classificações que repar-
tam ordenadamente as realidades previstas; mas não encon-
tramos um critério único, que permita sem incoerências
seriar os crimes uns ao lado dos outros. Antes diremos que
a modelação actual dos tipos de crime obedece a critérios
variados, e muitas vezes baseia-se em puros antecedentes
históricos ou em considerações práticas contingentes, de
modo que o material existente poderia ser arrumado de
outra maneira, que melhor evitasse os conflitos de qualifi-
cação ou as lacunas que assim inevitàvelmente surgem. Mas
a lógica está longe de ser um elemento decisivo na elabora-
ção dos tipos de crimes.
Por isso, nestes casos não se pode falar rigorosamente
numa série de tipos, e menos ainda num sistema, mas sim-
plesmente num catálogo em que a subordinação a um con-
ceito comum representa toda a unificação admissível.

48
III - Mesmo em relação às tipologias compostas por
poucos termos, e em que podemos encontrar, em princípio,
um critério de tipificação, é muito duvidoso que esse crité-
rio resista em todas as hipóteses.
Dissemos que nos regimes de bens o critério estaria na
titularidade dos bens. Assim é, na generalidade dos casos:
mas está também previsto o regime dotai e para este é já
insuficiente a referência àquele critério.
Dissemos que o critério de tipificação das sociedades
comerciais é a responsabilidade dos sócios por dívidas; mas
está também prevista a sociedade cooperativa, que corres-
ponde a uma bitola muito diversa.
Dissemos que nos tipos de erro se têm em conta as
realidades sobre que verse o erro; mas surge a previsão do
erro qualificado ou dolo, e o critério é já outro.
Quer dizer, verificamos que esta escolha de figuras que
preenchem incompletamente o conceito não tem de obede-
cer a uma uniformidade de critério: também por isso se
distinguem tipificação e classificação. Havendo um critério
prevalente, ou critérios parciais, devemos atender a eles para
identificar à sua luz os tipos utilizados. Mas como raramente
acontece assim, para a demarcação dos vários tipos teremos
de atender aos aspectos que, ao sabor das preocupações de
cada caso, se revelaram decisivos para o legislador ( 42 ).

( ~2) Não temos porém razões para excluir que possam existir
tipologias em que se encontrem autênticas séries. Estas interessaram
particularmente Larenz, coerentemente, uma \'ez que a transição gra-
dual de um tipo para outro é a mais adequada ao conceito de ordem
que lhe interessa (Methodenlelzre, págs. 349 e segs.). Também Engish
tem um apontamento neste sentido (Konkretisierung, pág. 284, nota
188 ). Ambos os autores tendem porém a trabalhar com grupos de
tipos isolados de tipologias mais complexas (um grupo de contratos,
por exemplo), o que representa já uma análise de outra ordem.
Assim, se quisermos seriar os •tipos penais pela pena aplicável, pode-
mos .fazê-lo, mas isso supõe que se recortem vários grupos conforme
o tipo de pena; e o critério que se utiliza não é armai o que está
na base da elaboração dos vários tipos de crime.

49
12. Tipologias taxa.tivas e exemplificativas

I -Delimitado suficientemente o nosso campo, avance-


mos um pouco mais, através da análise das figuras de tipi-
cidade que a uma primeira vista se nos depararam. Por
exemplo: falámos de uma tipicidade dos contratos. Mas será
correcto fazê-lo? Dissemos que é a linguagem comum que
nos orienta nesta indagação. Mas é bem certo que se afirma
frequentemente que os contratos não são típicos, que os
crimes ou as sociedades comerciais o são ...
Pensamos que justamente a partir desta observação
linguística podemos realizar um avanço muito importante.
Verifiquemos o que se pretende significar quando se afirma
que dada realidade é típica. Para isso, nada melhor do que
começar por enunciar algumas figuras.
Temos desde logo os direitos reais, os crimes e as penas,
que não necessitam neste momento de qualquer esclareci-
mento complementar.
O erro, como vício na formação da vontade, deve para
alguns autores ser típico ( 43 ).
( As sociedades comerciais são também típicas ( 44 ).
Podemos acrescentar uma figura histórica. A servidão
é um dos direitos reais cuja formação remonta à época
romana. No entanto, dizem os autores, não se deve propria-
mente falar de servidão, mas de servidões. Não se podiam
constituir genericamente servidões, como hoje acontece, mas
só as figuras especificadas por lei. Estas, para as servidões
prediais, resumiam-se inicialmente aos quatro tipos do iter,
actus, via e aquaeductus. As servidões seriam por conse-
guinte típicas em Roma, mas não o são no direito moderno.

1. Galvão Telles, Contratas, págs. 79-80.


( 48 )
( u) Uma investigação deste ponto foi realizada na Itália por
La Lumia. Conclui pela tipicidade (taxativa, acrescentaríamos nós)
das sociedades comerciais. Baseia-se na necessidade do reconheci-
mento, e no facto de a ·lei só reconhecer os contratos constitutivos
de sociedades comerciais típicas (pág. 226). Recorde-se também o
estudo de Koller, referido na nota 1.

50
II - Que significa verdadeiramente afirmar-se que cer-
tas figuras são típicas? Podemos verificar, em todos estes
casos, que o que se quer dizer é que há uma tipologia taxa-
tiva; não há possibilidade de moldar novas formas além
daquelas que foram especificadas por lei. Nenhum outro
acto poderá ser considerado criminoso, nenhum outro erro
poderá ser relevante, nenhuma outra «Servidão» poderá ser
reconhecida pela ordem jurídica. Podemos ficar com esta
ideia geral, sem prejuízo do que se irá dizer no número
seguinte sobre a tipologia delimitativa.
Mas há ainda outras tipologias jurídicas, a que chama-
remos exemplificativas, e que não excluem a criação de
novas figuras além das previstas por lei. Ê neste sentido
que dizemos que há uma tipicidade dos contratos.
E a linguagem comum continua a apoiar-nos nesta con-
clusão. Embora se afirme que os contratos não são típicos,
no sentido que acabamos de registar, todos referem os con-
tratos atípicos. Se alguns contratos são atípicos, daí se induz
que para a linguagem comum também os há típicos. Há tipos
de contratos, logo há tipologia. Simplesmente, ela é aqui
diversa da que caracteriza as figuras que se usam dizer típi-
cas, visto ter natureza exemplificativa ( 45 ).

III - Assim, é taxativa a tipificação legal dos crimes,


das circunstâncias agravantes, dos direitos cujas vicissitudes
são sujeitas a registo ( 46 ), das sociedades comerciais, das
formas de erro relevante, dos processos especiais ...
Ê pelo contrário exemplificativa a tipologia dos contra-
tos, dos regimes de bens, das causas de justificação ("li) ...
Podemos agora traçar a distinção fundamental das
tipologias taxativa e exemplificativa. Há tipologia taxativa

( 45 ) Sobre esta matéria cfr. Esser, Schuldrecltt, §§ 16 e 17. Ai


se examinam os diversos problemas que a tipicidade suscita no
campo dos negócios obrigacionais. Cfr. também von Tuhr, II, 1.,
§ 51, 1 (pág. 180).
(•0) Nos termos anteriormente expostos.
( 47) Este ponto é controvertido.

51
quando os tipos em que terá de se moldar determinada
figura ou conceito, são somente os fixados por norma. Já
a manifestação mais flagrante da tipologia exemplificativa
reside em os tipos em abstracto previstos não excluírem
a criação pelas partes (ou mais genericamente, por quem
tiver de proceder com autonomia na modelação dum pre-
ceito aplicável) de novas figuras igualmente integradas no
conceito, e de que representam uma espedficação. Recor-
de-se mais uma vez que nesta investigação só nos interessa
o tipo normativo; deixamos por isso de parte quaisquer
observações sobre tipos doutrinários ou jurisprudenciais,
por exemplo ( 48 ).
Escusado acrescentar que, assim como depende de
razões de política legislativa o recurso à tipicidade, tam-
bém é do legislador que depende o atribuir carácter taxa-
tivo ou exemplificativo às tipologias que admite. O trata-
mento da mesma tipologia pode por isso variar no tempo.

13. Tipologia delimit.ativa

1- O aprofundamento da análise deve levar-nos mais


além. Há ainda outra forma de tipologia, que se coloca entre
a taxativa e a exemplificativa. A sua m~nos frequente verifi-
cação prática não torna supérflua, ao que pensamos, tlma
precisa fixação conceituai. Vamos designá-la, à falta de
melhor expressão, tipologia «delimitativa».
Parte-se, como em toda a tipicidade, da previsão legal
de uma pluralidade de tipos que especificam um dado con-
ceito. Se não é possível a livre expansão a novos tipos, ao
contrário do que acontece na tipologia exemplificativa, tam-
bém não está vedada toda e qualquer expansão, ao contrário

( 4 &) Por isso, também nos não pode interessar a tipicidade


social, que Betti aponta como tendo substituído a tipicidade esque-
mática dos negócios no direito romano: Negozio giuridico, § 23.

52
do que acontece na tipologia taxativa. Antes, é possível a
elaboração de novas figuras, mas somente se forem análogas
a algum dos tipos normativamente previstos.

II - Se recorrermos aos planos histórico e compara-


tivo, talvez possamos encontrar no Direito Penal uma ilus-
tração curiosa desta distinção. Entre os sistemas históricos
que permitiam a punição de factos não tipificados, e os sis-
temas modernos que aceitaram o emprego da analogia na
qualificação de factos como crimes há (no plano teórico,
ao menos) uma diferença. Os primeiros permitiam uma uti-
lização ilimitada da analogia, a partir do conceito de crime:
havia uma tipologia exemplificativa. Os segundos só permi-
tem uma extensão restrita, a partir dos tipos legalmente pre-
vistos: há uma tipologia delimitativa ( 4D).
No direito actual, aparece-nos uma hipótese desta ordem,
ainda que não com carácter de generalidade, no campo dos
processos especiais.
Como se sabe, o recurso a um processo especial com
base na analogia com a situação litigiosa prevista tem sido
excluído: mas esta exclusão não representa um princípio
absoluto. Prolongando o ensinamento de Dias da Silva,
afirma José Alberto dos Reis que há possibilidade de apli-
car,· por analogia, uin processo especial, quando a própria
lei de processo expressamente o autorizar (através, por
exemplo, do uso de expressões tais como- e semelhantes)
ou quando as disposições da lei substantiva, reguladoras da
situação para que o processo especial foi instituído, forem
mandadas aplicar a outros casos(:;º). Seria deslocado acom-
panhá-lo na análise das várias hipóteses que aventa; mas

( 40 ) ~ o que TesuJ.ta da lei dinamarquesa e da lei russa que


permitem a pui;iição ~e factos análogos aos descritos na lei penal,
e o que resultana possivelmente também da ·lei alemã de 28 de Junho
de 1935, ainda que neste caso o texto fosse mais ambíguo.
( 60 ) Processos Especiais, págs. 24 e segs.

53
parece que esta admissão da extensão analógica representa
já a consagração positiva duma tipologia delimitativa ( 111 ).

III -Talvez a matéria dos actos de comércio propor-


cione uma ilustração desta figura.
Sabemos que tem sido suscitada, perante a nossa lei
comercial, a hipótese da extensão analógica da previsão dos
actos de comércio. Limitamo-nos aos actos de comércio
objectivos. Seria deslocado tomar posição nesta disputa,
que aliás a melhor doutrina resolve em sentido negativo.
Só tem interesse notar que este recurso à analogia se pode
operar de duas formas:

a) Subindo-se a um conceito genérico de acto de comér-


cio, caracterizado pela interposição nas trocas, por exemplo,
e onde se iriam directamente filiar quaisquer espécies de
actos que se reputassem comerciais. A tipicidade dos actos
de comércio seria então exemplificativa.

b) Exigindo-se a verificação de analogia entre o acto


de duvidosa qualificação e determinado acto regulado pela
lei comercial. Teríamos então uma tipologia delimitativa.

Parece-nos interessante chamar a atenção para esta dua-


lidade, até porque esta segunda forma não seria tão atin-
gida pela objecção (aliás oposta unicamente à primeira) de
imprecisão e incerteza que revestiria a extensão analógica.
Mas, como é natural, limitamo-nos a este aceno.

(:11) Baseava-se também numa tipologia delirnitativa a posição


defendida por Marcello Caetano sobre responsabilidade administra-
tiva (Tratado, 1, 416-7), mas hoje abandonada. A Administração só
seria responsável nos casos em que a lei o determinasse; não seria
lícito estender o princípio da responsabilidade a situações não regu-
ladas, csenão nos precisos termos em que se permite a interpretação
extensiva ou o suprimento de casos omissos». Quer dizer, sempre se
poderia operar a extensão analógica das previsões singulares, nos
termos da tipicidade delimitativa.

54
14. Subtipos

1 - Consideremos ainda aquilo a que podemos chamar


os subtipos. Verificamos agora que os tipos, como os con-
ceitos normativos a que correspondem, se podem apresentar
em pirâmide.
O conteúdo do tipo pode por sua vez ser concretizado
num ou mais tipos: ou seja, o conceito correspondente ao
tipo pode ser ainda especificado, dando lugar à formação
de tipos menores. Alguns autores tiveram já em atenção o
fenómeno, e apontaram-no como um processo de conseguir
um ulterior avanço na senda do concreto: Henkel dá como
exemplos a compra comercial em relação à figura geral da
compra e venda, e os crimes qualificados ou privilegiados
em relação ao deli to-base ( 52).
Pensamos que os processos especiais nos fornecem exem-
plos muito nítidos. Tomemos o processo de prestação de
contas. Após se regularem as contas em geral, nos arts. 1014.º
e seguintes, trata a lei em especial das contas do tutor, do
curador e do depositário judicial (arts. 1020.º e seguintes).
Há aqui uma especificação mais, tendo-se em vista estas
situações particulares. José Alberto dos Reis fala então em
processos especialissimos ( 53 ). Estamos perante um exem-
plo claro daquilo a que chamámos subtipos.

II-~ sobretudo tendo em atenção a categoria do sub-


tipo que se poderá tender a considerar a tipicidade como
algo relativo: tu.do na norma pode ser explicado mediante
o tipo. Ninguém como Carnelutti reflecte tão bem esta gene-
ralização. Diz que os tipos jurídicos correspondem a previ-
sões e estatuições genéricas; acrescentando-se requisitos e
efeitos extratípicos, formam-se subtipos de situações ou de

( 52 ). ~ág. 354. Os autores alemães falam então em Sondertypus,


por opos1çao aos Regeltypen (Henkel) ou Grundtypen. Cfr. também
Larenz, Methodenlehre, pág. 343.
( 113 ) Processos Especiais, págs. 3 e segs.

55
factos (a propriedade imobiliária em relação à propriedade,
o testamento hológrafo em relação ao testamento, etc.)( 114 ).
Quer dizer pois que haveria pirâmides completas, desde as
figuras mais amplas aos fenómenos primários. Mas se tudo
é tipo, teremos fatalmente uma desvalorização da figura,
pois dificilmente se poderia fazer outra teorização além da
relativa aos conceitos globais de facto e situação jurídica.
! neste sentido que dizemos que se pode tender a conside-
rar a tipicidade como algo relativo ( 55 ).
Este cepticismo seria exagerado. Não só a tipicidade
tem a importância teórica revelada pelos esforços de inves-
tigação modernos e a importância prática que procuramos
acentuar adiante, mas também não é de admitir que tudo
no direito se reduza a termos de tipo e subtipo, desde os
conceitos fundamentais às manifestações jurídicas elemen-
tares. O que dissemos sobre a distinção entre tipo e classe,
e sobre a exigência da verificação de uma pluralidade de
espécies para que de tipicidade se possa falar já nos demons-
tra que a tipicidade é uma técnica a que o legislador pode
recorrer, e não a fórmula perene de hierarquização das figu-
ras jurídicas. Essa hierarquização só se dará justamente em
limites apertados; e é para sublinhar o carácter limitado
desse fenómeno que tem utilidade falar em subtipos.

III-Mais ainda. Por natureza, só se pode falar de sub-


tipo quando houver um tipo que esse subtipo venha por
sua vez especificar, e não um mero conceito. Quer dizer, é
indispensável que a figura de que os pretensos subtipos
derivam também possa ser por sua vez utilizada na criação
de figuras jurídicas.
Assim, se confrontarmos os crimes qualificados e pri-
vilegiados com o delito-base, poderemos falar de subtipos,

(H) Teoria, pág. 232.


( 66) Como escreve também Sacco, 786: «A tipicidade das figu-
ras jurídicas é relativa à categoria, com a qual essas figuras se
confrontam•.

56
visto que há a prev1sao do delito-base, que pode ser tam-
bém preenchida; mas não podemos já considerar as moda-
lidades de sociedade comercial subtipos, pois não há um
tipo de sociedade comercial a que directamente se possa
recorrer, há o mero conceito de sociedade comercial.
Isto nos permite um novo passo. Os subtipos necessi-
tam formar entre si uma tipologia, também: mas essa tipo-
logia só pode ser exemplificativa, não pode ser taxativa ou
delimit~tiva. Com efeito, nestas duas últimas modalidades,
não há possibilidade de recurso à figura-base, e antes encon:
tramos uma pluralidade ou série de tipos, admita-se ou não
uma analogia limitada a partir destes tipos. Só na tipicidade
exemplificativa é possível o recurso paralelo à figura-base
e a cada um dos subtipos previstos.
Eis as condições em que nos parece lícito falar de sub-
tipos, e que marcam simultâneamente os limites da utiliza-
ção da categoria da tipicidade. Esta permite uma útil elabo-
ração e aprofundamento justamente porque não é a tradução
formal da combinação e hierarquização das figuras jurídicas.

15. Tipicidade e analogia

Que influência pode ter o recurso à tipicidade na admis-


são da analogia?
Vamos supor duas hipóteses: 1) já está determinada a
espécie de tipologia a que o legislador recorreu; 2) discute-se
justamente qual é essa espécie.

1 - Da caracterização que demos das várias modalida-


des de tipologia resulta já o tratamento que hão-de receber
no plano da analogia.
A tipologia exemplificativa permite o livre recurso à
analogia para a descoberta de novos tipos, inclusivamente
a partir do conceito que os tipos legais especificam.
A tipologia delimitativa só permite analogia a partir dos
tipos existentes.

57
Na tipologia taxativa, os tipos têm de constar da lei,
não podendo ser atingidos por processos analógicos.
Relacionando estas categorias com os processos gerais
de preenchimento das lacunas, podemos chegar a um eluci-
dativo quadro: a tipologia exemplificativa admite tanto a
analogia legis como a analogia juris ( li 6 ); a tipologia deli-
mitativa só se compadece com a analogia legis; a tipologia
taxativa exclui toda a forma de analogia ( 57 ).

II -A segunda hipótese é de ordem diferente. Pressu-


põe-se o recurso da norma a uma tipologia, mas desconhe-
ce-se a natureza dessa tipologia. E o problema que surge
pode ser enunciado, na sua máxima generalidade, da seguinte
forma: a erecção duma tipologia implica ou faz presumir a
exclusão da analogia?
O problema tem sido sentido nas hipóteses em que a
lei estabelece uma enumeração, sem nada esclarecer quanto
ao carácter rígido ou maleável desta; vimos já, supra, n.º 9,
quais as relações entre enumeração e tipologia. Logo se per-
gunta se essa enumeração fecha a porta a novas hipóteses.
Como dissemos, as enumerações legais implicam a institui-
ção de uma tipologia: nada impede que se aproxime pois a
solução dos dois problemas, desde que se tenha presente que
nem toda a tipologia se exprime por uma enumeração.
III - Parece-nos que a existência de uma tipologia nem
implica automàticamente nem faz presumir (seja ou não
servida por uma enumeração) a proibição da analogia. Afi-
guram-se-nos deslocadas e formais afirmações que aqui e
além surgem em contrário, normalmente com referência a

(5 6 ) Sobre a admissibilidade deste processo, veja-se o nosso


estudo sobre •A Integração das Lacunas da Lei e o Novo Código Civil».
( 57 ) Não se deve porém associar esta exclusão da analogia à
qualificação como excepcionais, dos preceitos consagradores desses
tipos. Nada permite inferir da taxatividade de uma tipologia a exis-
tência de uma regra diversa; e a exclusão da analogia pode resul-
tar doutras circunstâncias, para além do carácter excepcional de
dado preceito.

58
casos concretos ( 58 ). O recurso à analogia tem na sua base
considerações de valor muito forte, no sentido do trata-
mento idêntico de casos semelhantes; para a excluir, não
basta que haja uma tipologia, é necessário ainda demons-
trar que considerações igualmente fortes de segurança jurí-
dica impedem que se saia do catálogo estabelecido por lei.
A tipicidade pode dirigir-se tão-somente a uma concretiza-
ção, à especificação de manifestações de um conceito, como
acontece nas tipologias exemplificativas. Seria pois injusti-
ficado pretender deduzir logo da existência da tipologia
também a proibição da analogia.

IV- Vamos porém até mais longe. Quando se demons-


tre que a tipificação legal tem na sua base preocupações
de segurança, pode concluir-se que se exclui o livre recurso
à analogia; mas mesmo então ainda é necessáTio verificar
se o recurso à analogia está ou não em absoluto excluído.
Porque tanto pode existir nestes casos uma tipologia taxa-
tiva como uma tipologia delimitativa.
Neste ponto pensamos poder utilizar os resultados da
investigação que Canaris realizou, sob o ponto de vista
embora da proibição da analogia nos casos em que se
depara uma enumeração. Expressamente aventa ele a pos-
sibilidade de que o recurso à enumeração signifique só uma
proibição da analogia de direito: «a liquidação do catálogo
pelo recurso a uma cláusula geral não é admitida, mas já
é permitida a equiparação de uma facti species particular
juridicamente semelhante»("º). Pensamos que estas afirma-

( õs) von Tuhr considerou o problema em geral, e afirmou que


sempre que a lei faz uma enumeração ela deve ser considerada exaus-
tiva e não pode ser estendida analogicamente, porque nesses casos se
pretende a segurança da situação jurídica e a consequente indepen-
dência da solução do modo de ver do juiz (vol. 1, VII, pág. 43,
nota 160). Mas justamente o que era preciso demonstrar era que
t~das as enumerações se fun~am em razões de segurança jurídica,
nao podendo resultar de considerações doutra ordem.
( õO) Pág. 185.

59
ções se coadunam plenamente com a figura mais geral da
tipologia delimitativa, tal como atrás a procurámos delinear.
Dá o autor seguidamente vários exemplos, um dos quais
poderá ser adaptado de modo a valer perante a ordem jurí-
dica portuguesa. Tomemos as causas de indignidade suces-
sória, previstas no art. 2034.º. Temos aí uma modalidade de
tipologia, e o legislador não esclarece nesse preceito qual a
sua natureza. Poderão então outras circunstâncias ser ana-
logicamente consideradas causas de indignidade?
O art. 2033.º, 1., diz-nos que têm capacidade todas as
pessoas cnão exceptuadas por lei»; este preceito, e a fácil
observação de que se funda em razões de segurança, levam-
-nos a excluir uma analogia livre. Mas já não se poderá tão
directamente determinar se estamos perante uma tipologia
taxativa ou delimitativa. A invocação do texto do art. 2033.º,
1., seria neste caso demasiado formal, porque este nada nos
diz sobre a configuração que essa «excepção» deve revestir,
e nomeadamente se deve ser expressa.
Suponhamos que alguém, através da hipnose, induziu
o autor da sucessão a revogar o testamento. Haverá indig-
nidade? Diz-nos a al. e) do art. 2034.0 que carece de capa-
cidade sucessória, por indignidade, «O que por meio de dolo
ou coacção induziu o autor a fazer, revogar ou modificar
o testamento ... ». A situação não está prevista na fórmula,
e também não estará prevista no espírito do preceito se
concluirmos que a lei só teve em vista as hipóteses em que
se influencia a vontade alheia mas sem a suprimir, como
é típico dos vícios na formação da vontade. Mas há uma
analogia clara entre a causa típica de indignidade e a situa-
ção de hipnose, não regulada. Será a analogia relevante?
Pensamos que sim, e que a tipologia a que se faz recurso
aqui é delimitativa. Não há razões de segurança, para os
particulares ou para a sociedade, que imponham uma solu-
ção diversa. A lei estabelece1,1 os modelos dentro dos quais
a indignidade deve caber: mas se uma situação se revela
análoga às previstas nestes modelos, não há razão para banir
o recurso geral à analogia.

60
Que concluir? Que não se deve liminarmente afastar,
mesmo onde a segurança jurídica exclua uma tipologia
exemplificativa, a analogia legis. Nenhuma presunção nos
parece válida: caso por caso será necessário demonstrar se
a segurança jurídica exige, para facilitar a previsibilidade
ou para acautelar interesses colectivos, por exemplo, uma
rígida restrição aos casos previstos, ou não se basta com
o estabelecimento de tipos que sirvam de balizas à activi-
dade do intérprete, mas não excluam uma polarização de
casos análogos.

16. Classificação dos tipos em abertos e fechados

1 - Determinada assim a categoria da tipicidade nor-


mativa que nos ocupa, tem ainda interesse, para terminar,
referir uma possível classificação dos tipos. Estes podem
ser abertos ou fechados.
Por duas vias o conceito de tipo aberto irrompeu na
ciência jurídica. Se bem que nenhuma delas nos pareça direc-
tamente de seguir, vamos verificar primeiro a situação da
doutrina, dada a utilidade que o conceito nos parece reves-
tir, para tomarmos depois posição.

I I - O conceito de tipo aberto foi tema de discussão


dentro da ciência penalista alemã. Refere-se sempre o Tatbes-
tand, mas podemos transpor imediatamente a discussão para
o tipo, visto que o tipo de crime ·se contém na facti species
da norma penal, e como veremos é efectivamente um pro-
blema de tipicidade que está em causa.
Afirmou Welzel que entre os tipos de crimes haveria
tipos abertos: seriam aqueles em que a «matéria da proibi-
ção» não vem exaustivamente descrita na lei. Destes chegou
o autor a traçar um longo elenco ( 60 ). As suas conclusões
foram mal recebidas por outros autores. Roxin, nomeada-

( 50 ) Veja-se por exemplo a 6.• ed. de Das deutsche Strafrecht,


§ 14, I, 2. Cfr. também Maurach, § 24, 1, B.

61
mente, contestou a existência de tipos abertos, no sentido
referido ( 61 ); e o próprio \Velzel suavizou mais tarde as
suas posições ( 62 ).
Estas divergências não têm relevância para os nossos
fins. Desejamos atingir um conceito de tipo aberto, não
apurar o seu significado em Direito Penal. Aliás, o próprio
Roxin admite um entendimento de tipo aberto, se bem que
duvide que dele derivem grandes consequências ( 63 ): seria
aquele em que, em virtude do recurso a cláusulas ou fórmu-
las genéricas (General klauseln), o legislador não encerrou
a conduta proibida numa descrição autónoma. Deve até
observar-se que, quer para Welzel quer para Roxin, o exem-
plo-padrão de tipo aberto é dado pelo § 240 do Código
Penal alemão, em que se prevêem certas formas de impo-
sição a outrem através de uma ameaça reprovável de um
mal. A remissão para a «reprovabilidade» tornaria o tipo
aberto.

III-Para além doutras manifestações isoladas, inte-


ressa sublinhar que Larenz trouxe para a teoria geral a con-
traposição entre tipos abertos e fechados. Os tipos abertos
são aqueles cujas fronteiras são imprecisas, dada a varia-
bilidade das suas características; mas muito frequentemente
a lei transforma os tipos abertos em fechados, através da
fixação das características necessárias, ou seja, através de
·definições. Isso seria particularmente nítido nos tipos dos
direitos reais. Apenas aconteceria que alguns tipos,
, como os..
ónus reais e a propriedade horizontal, ainda não seriam
redutíveis sem contradição ao sistema dos conceitos. Pelo
menos temporàriamente as suas fronteiras seriam impreci-
sas. Neste sentido, continuaria a haver no Direito das Coisas
tipos abertos ( 64 ).

cs1) Em livro em que a referência a tipo (Tatbestand) aberto


consta do próprio título.
(&2) Veja-se agora a 9.ª ed. de Das deutsche Strafrecht.
(&3) Págs. 172-3. Cfr. também págs. 186-7.
cu) Methodenlehre, págs. 343 e segs.

62
Também nos não interessa apreciar especificamente esta
posição. Ela está aliás dependente daquela ambiguidade que
apontámos atrás, que leva Larenz a procurar ·reconduzir a
tipicidade jurídica à tipicidade real. Nós porém colocámo-
-nos já sob o signo da tipicidade propriamente jurídica, por-
tanto da tipificação como processo normativo.

17. Ca.ract.erização

1-É justamente sob este signo que nos parece muito


importante a distinção entre tipos abertos e fechados.
Quando tipifica, seja qual for a modalidade de tipolo-
gia que utilize, o legislador fá-lo por determinado prisma.
Tem pois em vista a produção de dado efeito prático, nos
termos já mencionados ( 6 :;).
Mas esse efeito prático não equivale, ou pelo menos não
equivale necessàriamente, ao efeito jurídico que o facto ou
a situação a que se refere aquela tipologia estão destinados
a produzir. Quer dizer, o legislador tem de encerrar na des-
crição típica todos os elementos relevantes para a produ-
ção do efeito prático que se prossegue com a tipificação,
mas não precisa de encerrar nela tudo o que é neces__sário
para a produção do efeito jurídico. Quando assim aconte-
cer, o tipo representará um quadro ou descrição fundamen-
tal, que não exclui outros elementos juridicamente relevan-
tes que lhe sejam exteriores. O facto ou a situação em causa
pode ter pois um conteúdo extra-típico, e pQr isso çli~emos
que o tipo é aberto. Isto nada tem que ver, repita-se, com
a qualificação da tipologia como taxativa, exemplificativa
ou delimitativa.
Para fixar a distinção em toda a sua generalidade nada
mais é necessário. Não temos sequer de indicar como se
realiza o preenchimento desses elementos relevantes que não

( t11) Supra, n.º 10.

63
constam do tipo. Uma das formas possíveis está na actua-
ção da autonomia privada, quando esta substitui Tegras
supletivas. Efectivamente, se determinada descrição típica
é completada por regras supletivas, temos os elementos sufi-
cientes para poder afirmar a existência dum tipo aberto:
há elementos juridicamente relevantes que não pertencem
ao tipo.

II - Podemos dar exemplos destas váTias modalidades.


Quando o art. 1938.º traça a tipologia dos actos para
que o tutor, como representante do pupilo, necessita de auto-
rização do Tribunal de Menores, estabelece tipos fechados.
Pelo prisma daquela tipicidade, nada mais é juridicamente
relevante do que as descrições apresentadas. Assim, quando
a al. b) nos diz que é necessária a autorização para adqui-
rir bens, móveis ou imóveis, como aplicação de capitais do
menor, nada mais interessa para aquele efeito; as modali-
dades que a aquisição possa revestir são para esta tipologia
irrelevantes.
Pelo contrário, os tipos de sociedades comerciais são
tipos abertos: respeitando-se embora o modelo legal, há
ainda um amplo campo para a fixação pelas partes de aspec-
tos juridicamente relevantes. O que confirma que o carácter
aberto do tipo não é incompatível com a vigência de um
numerus clausus: este exige que se respeitem as formas de
sociedade estabelecidas por lei, mas não exclui que, nos
quadros de uma forma legal, se estabeleçam afastamentos
das regras supletivas ( 66 ).
A qualificação sob este aspecto dos tipos penais oferece
particulares dificuldades. A tendência seria no sentido de
os qualificar como tipos fechados, uma vez ultrapassada a
polémica que referimos atrás; parece que quaisquer elemen-
tos, ou constam do tipo ou não podem ser considerados
relevantes. E todavia, dentro do conceito de tipo aberto que

(&e) Cfr. Koller, pág. 99; ver também págs. 58 e 118 e segs.

64
adaptámos, talvez se pudesse chegar a outra posição. Para
além do tipo, há outros elementos, como as circunstâncias,
cuja relevância jurídica é inegável. Estas aderem ao tipo,
representando um conteúdo variável de caso para caso, o
que nos poderia inclinar a considerar os tipos penais como
tipos abertos. Mas só uma fixação mais rigorosa do prisma
da tipologia dos crimes permitiria dar uma resposta. Disse-
mos (supra, n.º 10) que este era o da determinação da maté-
Tia da proibição. Se se considerar pelo contrário que esse
prisma é o da sujeição à pena, como faz a generalidade da
doutrina italiana actual, já a resposta tende a ser diversa ( 07 ).
Mas seria aqui deslocado um confronto das várias posições.

;iceIIlPlo Petr_<>celli, Principi, n."" 101


(e') Cfr. ~reesegs., e particularmente 114 a 117. a 103 e 107;
Ranieri, págs. 1
65

5
CAPITULO II

NUMERUS CLAUSUS

18. Compa~ de leis

O outro grande tema que devemos preliminarmente


explorar é o que deriva da atribuição de um carácter limi-
tado ou «fechado» ao número dos direitos reais. Convém,
antes de iniciar o exame da situação portuguesa, fazer uma
observação de Direito Comparado, quanto mais não seja
para esclarecimento das opções possíveis ( 1 ).
Quem proceder ao exame da situação legal e doutriná-
ria existente nos vários países, ficará surpreendido pela veri-
ficação de duas constantes, ao que pensamos verdadeira-
mente inexplicáveis: por um lado, o mutismo dos códigos
civis em assunto de tanta monta; por outro, a secura das
considerações doutrinárias num sector que o silêncio legal
torna em extremo inseguro, quer se condua pelo numerus
apertus, quer pelo numerus clausus dos direitos reais.
Sendo assim, examinaremos neste número a situação
legal, deixando para o número seguinte o estudo caso por
caso da situação doutrinária dos países que particularmente
nos interessam.

( 1) A bibliografia especifica será indicada adiante, nos lugares


respectivos. Como bibliografia genérica itemos sobretudo o estudo de
Gieseke. Encontram-se ainda observações de interesse em Eichler,
429 e segs.; Wolff-Raiser, § 2, II, 1.; Orlando Gomes, tomo II, cap. 39.

67
Pelo que conseguimos apurar - e deixando para mais
tarde a lei portuguesa - apenas três códigos civis tomam
posição na questão: o Código Civil argentino (de 1869), o
Código Civil chinês (de 1929, ainda em vigor na Formosa)
e o Código Civil japonês (de 1898). Surpreendentemente
pouco para uma questão que se reveste de acuidade em
todos os países ( 2 ) !
Estabelece o art. 2502.º do Código argentino:

«Os direitos reais só podem ser criados pela lei. Todo


o contrato ou disposição de última vontade que constituir
outros direitos reais, ou modificar os que por este Código
se reconhecem, só valerá como constituição de direitos pes-
soais, se como tal puder valer».

O art. 757.º do Código Civil chinês determina:

cNão podem ser criados mais direitos sobre as coisas


que os previstos no presente Código ou noutras leis».

Este preceito é muito semelhante ao do§ 175 do Código


Civil japonês:

cSó podem criar-se os direitos reais que estiverem pre-


vistos nesta ou noutras leis».

Em todos os casos, como se vê, é a regra do numerus


clausus que se adopta. E se quisermos dar uma primeira
noção comparada do significado da regra, diremos que não
pode haver um direito real, como situação jurídica concreta,
se não existir norma em que ele esteja previsto.

( 2) E ainda se deve acrescentar que dois desses Códigos são


pouco significativos, não por não serem leis como as outras, mas por
ser muito duvidoso que traduzam efectivamente a ordem jurídica
vigente, dada a escassa penetração que conseguiram nas respectivas
sociedades. Referi.m~nos aos códigos chinês e japonês: cfr. René
David, págs. 531 e segs.

68
Fora disto, não há notícia de outros códigos c1v1s que
resolvam expressamente o problema. Mesmo se passarmos
dos códigos a outras leis, a situação pouco se altera: dispo-
sições como a que leva os juristas espanhóis a concluir pela
consagração legal do sistema de numerus clausus (e que
teremos ocasião de referir especificamente mais adiante)
são também muito raras.

19. Comparação de doutrinas

1- Mencionámos ainda a secura das considerações dou-


trinárias, quer se conclua pelo número «aberto» quer pelo
número «fechado» dos direitos reais. Efectivamente, o des-
prezo dos intérpretes por este tema é um facto.
Não podemos aqui permitir-nos longas divagações. Va-
mos examinar espedficamente o que se passa nas ordens
jurídicas que mais afinidades apresentam com a nossa-
ª italiana, a alemã, a brasileira, a espanhola e a francesa.
Trata-se, em todos os casos, de ordens jurídicas em que o
problema do carácter taxativo dos direitos reais não é abor-
dado por lei substantiva. Veremos que de país para país
varia a conclusão a que se chega quanto ao carácter taxa-
tivo ou exemplificativo das previsões de direitos reais.
No final, faremos ainda uma referência genérica aos
restantes países.

II-Itália

Apesar de nem mesmo o actual Código ter tomado posi-


çao no problema, a doutrina assentou na limitação legal do
número dos direitos reais ( 3 ). Vozes que anteriormente se

(3) Barassi, págs. 48 e segs.; Messineo, § 88, n.º 7; Trabuc-


chi, pág. 394.

69
levantaram em contrário, como as de Luzzato ( 1 ) e Bian-
chi ( 5 ), não têm modernamente encontrado eco.

III - Alemanha

Pode-se considerar unânime a posição da doutrina, ape-


sar do silêncio da lei: os direitos reais são um numerus
clausus ( 6 ). A opinião formalmente divergente de Wiea-
cker (í) está ligada a considerações próprias da tipicidade,
e por isso é melhor referi-la mais tarde. Esta unanimidade
deve ser sublinhada, pois assim se vai ao arrepio da tradi-
ção, que admitia a transformação de direitos pessoais em
reais, através da Gewere ou da inscrição no registo pre-
dial ( 8 ). E é curioso acrescentar que esta tradição se man-
teve no direito suíço, apesar da conhecida influência do
Código Civil alemão sobre o código suíço de 1907 ( 0 ).

IV-Espanha

Depara-~nos um panorama muito diverso. Também a


lei substantiva silencia quanto a esta questão; mas a lei de
registo, declarando registáveis títulos Tespeitantes a vários
direitos, que expressamente enuncia, e «a outros quaisquer
reais•, tem sido interpretada como consagrando o sistema

(') Em particular a págs. 765 e segs.


($) N.• 104, 3. (págs. 810 e segs.).
(') Cfr., por exemplo, além dos autores posteriormente citados,
Endemann, § 10, 2.; Hedemann, § 4, 1, e); Lent, § l.º, IV.
(1) Bodenrecht, § 12, III. Ver infra, n.• 39, 1.
( 6) Sobre esta técnica ver a obra de ·Dulckeit, Die Verdingli-
c1umg obligaJorischer Rechie.
(•) Efectivamente, o art. 959.• deste último admite que os direi-
tos pessoais obtenham carácter real através do registo. Em todo o
caso, na ordem prática a separação entre os dois sistemas não será
muito grande, dado que há também um numerus clausus de direitos
pessoais que podem ser levados a registo. Sobre a situação do direito
suíço em geral cfr. Wieland, pág. 4; Meier-Hayoz, n.•• 35 a 40.

70
do numerus apertus (1°). E. curioso notar que alguns auto-
res, como Roca Sastre ( 11 ), após proclamarem decididamente
o princípio, vão acumulando as restrições, o que os leva a
concluir que no fundo se segue ainda o sistema fechado:
mas semelhante conclusão não nos deve induzir em erro.
A preocupação desses autores é só acentuar que nem todo
o pacto, só porque os outorgantes assim o desejaram, pode
ser considerado fonte de um direito real; é ainda necessá-
rio que se verifiquem os «requisitos constitutivos de tal
figura jurídica», acrescentam. Sem dúvida que o é; mas basta
que existam direitos reais «inominados», como os autores
reconhecem, para que se deva falar em numerus apertus.

V-França

E. aqui que o problema maior divisão provoca entre os


autores. A posição limitativa, representada sobretudo por
Demolombe ( 12 ), mas que já no seu tempo era minoritá-
ria ( 13 ), está contudo em vias de ser abandonada pela dou-
trina e pela jurisprudência, que se decidem por um sistema
de numerus apertus. E. certo que alguns autores não deixam
de mencionar expressamente as dificuldades relacionadas
com a oponibilidade a terceiros das situações assim consti-
tuídas ( u); eles próprios declaram porém vigente o sistema
do numerus apertus.

( 1 º) Roca Sastre, vol. I, págs. 276 e segs.; Federico de Castro,


pág. 661, nota 2; Castán Tobeiias, págs. 52 e segs.; Puig Peiia, págs.
18-21 ; Albaladejo, págs. 27-31.
( 11) Págs. 278-9.
(12) N. 08 511 e segs.
(ta) De Juglart, pág. 220, menciona como partidários do nume-
rus apertus, entre outros, TouHier, Gaudemet, Gény e Bannecase.
Cfr. também Baudry..Lacantinerie e Chauveau, n.º 193.
(H) ~ o caso de Planiol e Ripeiit, Pratique, n.- 48. Note-se que
no Traité élémentaire dos mesmos autores se perfilha a tese do
numerus clausus (pág. 858).

71
VI-Brasil

Os pareceres dividem-se sobre este ponto. Enquanto


parte da doutrina dá como segura a vigência do numerus
clausus( 15 ), outros pronunciam-se pelo numerus apertus ( 16 ),
tendo uma decisão do Supremo Tribunal Federal perfilhado
esta orientação ( 17 ). Baseiam-se os defensores do numerus
apertus em elementos históricos, nomeadamente o facto de
ter sido esta a orientação defendida por Teixeira de Frei-
tas ( 18 ), e o facto de o Projecto inicial do actual art. 674.º
dispor: «Somente se consideram reais, além da proprie-
dade ... ». Ora o advérbio somente foi eliminado, decerto com
a intenção de afastar o carácter taxativo da enumeração.

VII - Outros países

Uma observação, necessàriamente superficial, das ten-


dências dos restantes países indicar-nos-á que o sistema do
numerus clausus prevalece. Assim acontece nas ordens jurí-
dicas que sofreram a influência do Código Alemão e em
numerosos países de influência latina. Mas de caso para
caso se impõe um exame especial, até porque em ordens
jurídicas em situação semelhante surgem soluções divergen-
tes. Assim, enquanto na Suécia e na Finlândia se afirma a
limitação do número dos direitos reais, na Noruega e na
Dinamarca prevalece a concepção do numerus apertus {19 ).
Tem-se notado também a tendência, mesmo naqueles
países em que se estabelece um rígido princípio do nume-
rus clausus, de na prática se romper esse princípio através

(1~) Clovis Bevilaqua, págs. 231-232; Orlando Gomes, n.°' 5 e


348; M. Garcez Neto, pág. 9.
pe) Carvalho Santos, págs. 13 a 15; Affonso Fraga, págs. 52 a 56.
( H) Acórdão de 8 de Julho de 1943, no Archivo Judicid·
rio, 68, 154.
(18) Cfr. Introdução, págs. LXIII e LXIV.
(1") Eichler, 429 e segs.; Wolff-Raiser, § 2.º, II, 1, nota 5.

72
da utilização ou combinação de figuras típicas de maneira
a chegar-se ao mesmo resultado. Por exemplo, onde a lei
não prevê a anticrese atingem-se resultados semelhantes
constituindo uma hipoteca conjugada com um usufruto ( 20 ).
As ordens jurídicas anglo-saxónicas merecem uma refe-
rência à parte. Poderíamos tentar traduzir com uma fórmula
as características das situações referentes a coisas próprias
destes direitos. Todas as conclusões seriam porém problemá-
tica, dado que uma técnica de alto a baixo diversa não per-
mite que se fale de uma correspondência de institutos nos
sistemas jurídicos respectivos e no nosso. Tem pois razão
Gieseke ( 21 ) ao concluir que os direitos inglês e norte-ame-
ricano saem dos quadros que estão subjacentes à contrapo-
sição numerus apertus - numerus clausus.

20. Origem hist.6rlca

Muito sumàriamente, pois mais não é exigido pelo


nosso tema, procuremos indicar os antecedentes da situa-
ção hodierna ( 22 ).
No antigo direito vigorava o princípio que diríamos do
numerus apertus. Isso deu lugar a uma floração de direitos
sobre as coisas, sobretudo sobre as coisas imóveis. Muitos
desses direitos representavam manifestação, ou derivação,
da divisão da propriedade num domínio eminente e num
domínio útil, que fora generalizada com o feudalismo. Por
outro lado, abundavam também os direitos reais in f aciendo,

(2º) Cfr. estes e outros exemplos em Eichler, pág. 429. Neste


sentido nos parece ainda mais significativa toda a elaboração sobre
as expectativas reais que modernamente tanto tem interessado os
autores alemães.
(2 1 ) Pág. 429.
(22) Sobre toda a matéria deste número, remetemos para o
livro de Hedemann, Fortschritte, cuja segunda parte é dedicada ao
desenvolvimento do direito imobfliário, desde a Revolução Francesa
até à actualidade.

73
e aquilo a que hoje chamaríamos as obrigações positivas
propter rem: certo sujeito estaria adstrito à realização de
prestações positivas em benefício de outro, de modo que
ou o sujeito activo, ou o sujeito passivo, ou ambos, seriam
determinados mediatamente, através da titularidade de um
direito real.
Contra esta situação se rebelou porém o jusracionalismo
e todo o corpo de doutrinas que tiveram a sua consagração
histórica com a Revolução Francesa. Verberou-se a existên-
cia de uma pluralidade de vínculos de natureza feudal que
impediam a «liberdade» da terra ( 23 ). Chamou-se a atenção
para a injustiça de muitas situações jurídicas costumeiras.
Acentuou-se que a sujeição da agricultura a numerosas for-
mas de rendas fundiárias consumia uma percentagem muito
alta do produto da terra. Enfim, traçaram-se esquemas que
representariam a maneira racional de atribuição das coisas
e afastariam o sistema histórico. Também aqui, a razão pode-
ria corrigir e substituir a tradição.
O numerus clausus inscreve-se, ou pelo menos pode-se
inscrever, neste movimento. Abolidos os vínculos feudais e
instaurada uma nova ordem dos direitos sobre as coisas,
um sistema fechado serve à maravilha para perpetuar as
conquistas obtidas: tudo o que se não adaptar ao esquema
legislativo é rejeitado ( 24 ). A alegação de que isso era uma
maneira anti-histórica de proceder seria de todo indiferente
para uma mentalidade racionalista; e a reprovação da coer-
ção legal seria certamente rejeitada com a observação de
que esta coerção era o elemento necessário para se obter
a liberdade - a liberdade da terra e do seu explorador,
desta vez.

(t 3 ) i:. clássica a fórmula de abertura do cCode Rural• francês


de 1791: e() território da França, em toda a sua extensão, é livre
como as pessoas que nele habitam•.
( 24 ) Outra preocupação se terá vindo juntar à inicial, no domí-
nio específico dos direitos reais de garantia: a luta contra o cendivi-
damento da terra•, que paradoxalmente seguiu de perto a liberação
dos vínculos antigos (cfr. Hedemann, págs. 44, 97 e segs. e 170 e segs.).

74
Pode-se divisar nestas orientações um certo ilogismo.
No Direito das Obrigações, o jusracionalismo, se da mesma
maneira se desinteressava do elemento histórico, tendia toda-
via a admitir a mais ilimitada liberdade de contratação. Não
se pretendeu impor um esquema preconcebido dos contTa-
tos que se poderiam estipular. Não é estranho que, paredes-
-meias, os mesmos princípios levem num campo a uma
extrema liberdade, e no outro a uma extrema limitação?
Cremos que as motivações político-económicas explicam
suficientemente a disparidade de critérios. As transforma-
ções empreendidas não tinham atrás de si a preocupação
da defesa ·dos economicamente fracos; basta pensar que é
nessa altura, com o triunfo da mesma liberdade contratual,
que a burguesia passa a dispor de um poder ilimitado.
A razão está em que a classe que lucrava com a liberdade
contratual no Direito das Obrigações, não era a mesma que
perdia com a exclusão dessa liberdade no Direito das Coisas.
Além, avantajava-se a buTguesia, aqui destruíam-se as
vantagens da nobreza. Fora a nobreza quem beneficiara pre-
dominantemente com os vínculos que oneravam o explora-
dor dos bens. A burguesia não podia deixar de estar inte-
ressada, quer na liquidação das posições daquela, quer na
edificação de um sistema que garantisse que a antiga situa-
ção não subsistiria sob forma diversa.
Mais ainda: o acento vai ser posto na liberdade da pro-
priedade. Procura-se a propriedade absoluta, a abolição de
todos os vínculos ou restrições do ti tu lar para que a pro-
priedade que os novos dominantes venham a adquirir per-
mita um gozo pleno e ilimitado. A propriedade é de facto
posta como a meta de toda a actividade do homem, numa
visão que teve a sua tradução jurídica mais coeTente na obra
do Visconde de Seabra. Sendo assim, é necessário que essa
propriedade, a que se chega com a livre contratação, seja
livre também ( 211 ).

(25) Cfr. Hedemann, págs. 11-12.

75
21. Posição «de jure constituendo»
I - Estas as origens históricas que se podem apontar
ao sistema do numerus clausus nas ordens jurídicas que o
acolheram e o mantiveram. Tão sumàriamente como as indi·
cámos, não podemos escusar·nos a fazer uma apreciação
de jure constituendo desse sistema.
Não costumam os autores deter-se neste assunto. Quando
alguma coisa dizem, deixam em geral a dúvida: estarão uni·
camente a apresentar a ratio legis dos sistemas vigentes nos
respectivos países ou pretendem elaborar uma verdadeira
fundamentação de jure constituendo ( 26 )? :e evidentemente
possível apontar uma ratio ao sistema actual, sem que isso
exclua uma preferência por sistema diverso ...
II -Vamos tomar o seguinte ponto de partida: em prin·
cípio, é um sistema de numerus apertus que deve existir.
Só se se verificarem obstáculos insuperáveis teremos de nos
resignar a um sistema de numerus clausus.
Por que dizemos que em princípio é o numerus apertus
que se impõe?
Porque todo o numerus clausus é um colete de forças
imposto à vida. A espontaneidade social tem por si a capa·
cidade de forjar na maioria dos casos os instrumentos que
mais adequados se revelem a determinada situação. Essa
mesma espontaneidade permite acompanhar a evolução, criar
para amanhã o que não existia ontem, matar o que já não
serve hoje. A imposição de um numerus clausus significa
estratificar a vida social em determinado momento histó-
rico, absolutizando o que era relativo por fazer secar a fonte
da evolução.
E não se pense que os mesmos efeitos podem ser atin-
gidos pela actividade legislativa, que vá escogitando os tipos
que se revelem adequados. Para além da inevitável lentidão
de todas as intervenções legislativas em matéria de direito

(zs) :e a dúvida que fica perante as observações de Raiser,


Der Stand, págs. 12.8-30.

76
civil, cremos que nem mesmo o mais sagaz e atento legisla-
dor poderia realizar esta tarefa. Já Heck acentuava que não
se pode satisfazer uma situação social que hoje muda tão
ràpidamente através de instrumentos pré-estabelecidos ( 27 ).
Acrescentaremos que os melhores cálculos podem sofrer
uma total derrota da realidade. Os direitos sobre as coisas,
nomeadamente no campo agrário, vivem muito de hábitos,
e as formas tradicionais de vida, com a sua permanente
potencialidade de renovação, não podem ser compensadas
por nenhumas outras. A completa inoperância duma insti-
tuição tão carregada de boas intenções como o casal de
família sublinha eloquentemente aquilo que afirmamos.

I I I - Haverá então obstáculos irremovíveis à consagra-


ção do sistema aberto?
Vamos enumerar algumas afirmações de autores em
favor do numerus clausus, pois elas permitirão ilustrar as
nossas observações subsequentes.
Barassi faz notar os graves inconvenientes que duma
criação indiscriminada de direitos reais poderiam resultar
para terceiros, para a economia fundiária e para a riqueza
nacional ( 28 ).
Lent considera o numerus clausus o normal, «porque
todo o direito real, como direito absoluto, tem de ser obser-
vado e ·respeitado por todos» ( 29 ).
Peters fala na necessidade de uma propriedade forte
e livre, e nomeadamente na luta contra demasiadas dívi-
das da terra ( 30 ).

( 27 )§ 23, 10.
( 2 ª)Pág. 51.
(29) § 1, IV. Pela limitação dos direitos reais porque estes são
um entrave à circulação dos bens cfr. também Ginossar, 147.
(ªº) Pág. 86. Continua o autor: «Estes esforços mostram clara-
mente que a evolução juridica dos tempos mais recentes não tende
apenas ao esmagamento e à -limitação da proprfodade privada; os
direitos civil e administrativo da actualidade servem também para
o fortalecimento deste instituto, e para a sua segurança perante o
poder do credor• (pág. 87).

77
Woltl e biser pronunciam-se pelo sistema do numerus
dm·ws~ dada a clareza que este outorga ao Direito das
Cnisai; a ntili1'"Çio do registo só se revela frutuosa quando
._, •l•..ro dos direitos registáveis é limitado e o conteúdo
des;es es&a leplmente determinado» (ª1 ).

2Z. Criliea. dos fundamentos do cnumeros clausus»

1- Bast:nn-nos estes elementos, porque nos permitem


jii :lmtrar o esquema que vamos traçar dos argumentos que
1e tm. apresentado contra o sistema aberto. Estes argu-
.....mos podem reduzir-se a três categorias fundamentais.
O ..aus apertus deve ser repudiado porque:

- permite a constituição de situações inconvenientes


sob o ponto de vista económico-social;
- pe1míte a constituição de ónus ou vinculações ocultas;
- lÍD clareza ao sistema dos direitos sobre imóveis,
d.ifícultando o funcionamento do registo.

II-Quando falam no inconveniente da constituição de


tfllldf&,1 tFx:íalmente nocivas, costumam os autores enume-
rar ~ '" vicios que se imputam à organização feudal da
i"''~. ainda que acrescentem outros elementos, tais
V.111'111 a neuuídade já antiga de evitar um endividamento
• lát't.AJra., cmih<Jra através de novas formas.
E. lJ~ía, a (Jbjccção não parece ter grande significado,
Tif/A dl.t• ck ht1je, cm que a restauração do feudalismo não
~~ pr1~1í:.mcntc na ordem do dia. Pensamos que incons-
".~dA;n~lf: M: vmtínua a jogar com princípios cujo pres-
•"1'1 d.trtvava& di1 círcun•tanclalilimo do século passado {82 ).

l •1 / f 2, U, J.
'"'J 4Wm, ~.,w.o, 1 28, páp. 417 e 423, insiste sobretudo
""' 1"114.,,.,.,,,,,, ,, numuru'f t.:ltuuw1,no princípio da li1berdade fun•
.,..,,. 1, "'"""' rmdto duvld.0110 que e!tlc prlncfpio, há um s~ulo tão
tfll,llil~t'~''' tkv• '1111llnwar a ol'lcnhar 01 direitos sobre os imóveis.

78
A constituição de situações inconvenientes tem o seu
antídoto, tal como noutros sectores, na demarcação dos limi-
tes em que se pode exercer a autonomia privada. ~ justa-
mente função do legislador preyer e excluir a tempo as
situações deletérias. Esta é a forma normal de actuação:
a admissão da autonomia privada não é um princípio abso-
luto, mas a sua exclusão não deve ser encarada como um
meio fácil de evitar dificuldades de previsão. Não nos parece
correcto, para este objectivo, limitar a um número fixo de
tipos - cada vez menor - as figuras admissíveis ( 33 ).
Estas restrições à autonomia privada, acentue-se, não
são tão difíceis de estabelecer como se poderá crer. Não
estamos já no início do século XIX; conhece-se bem quais as
si tu ações que se não aceitam. O seu banimento foi aliás, na
maior parte dos casos, realizado implicitamente através da
delimitação dos tipos admissíveis. Assim se excluem as ser-
vidões pessoais, os censos, a perpetuidade do usufruto ...
Tais proibições poderiam ser reduzidas a sistema; e o legis-
lador deveria acompanhar constantemente a evolução social,
de modo a alterar ou completar, sendo necessário, a teia das
restrições legais. As dificuldades técnicas da exclusão de
formas inconvenientes são incomparàvelmente menores que
as da modelação de novos tipos, atrás referidas.

III - Arguiu-se também a existência de ónus ou vin-


culações ocultas. O sistema, diz-se, funcionaria em prejuízo
de terceiros que viessem a adquirir direitos sobre os bens.
Eles teriam de suportar essas onerações mesmo que as des-
conhecessem, pois isso seria a contrapartida da natureza
real destas. Esta eventualidade seria causa de perturbações
e inseguranças, redundando num pesado entrave à circula-
ção dos bens.
Cremos que esta objecção é ainda menos significativa
que a anterior. Bastaria a utilização dos meios actualmente

(as) No mesmo sentido Albaladejo, pág. 30.

79
existentes para se garantir a necessária publicidade ( 34 ). No
que toca aos direitos sobre imóveis ou, mais genericamente,
sobre coisas registáveis, bastaria subordinar a eficácia con-
tra terceiros à inscrição nos registos públicos; nos direitos
sobre móveis em que esse sistema de publicidade não poisa
já funcionar, tornar-se-ia a entrega ou o desapossamento
condição de existência das situações atípicas.
Particularmente eficiente nos parece a publicidade regis-
tai. Essa é a adequada aos casos mais importantes.
Há porém quem afirme que o sistema registai só pode
funcionar eficazmente desde que o número dos direitos
registdveis esteja legalmente determinado. Com isto passa-
mos à terceira objecção.

IV- Esta crítica surge com gradações várias. Transcre-


vemos anteriormente as palavras de Wolff-Raiser: a utili-
zação do registo só se revela frutuosa quando o número dos
direitos registáveis é limitado e o seu conteúdo está legal-
mente determinado. Outros autores levam esta posição ao
extremo ( 35 ).
Em favor deste ponto de vista poderiam até recordar-se
as opiniões dos que fazem derivar o sistema do numerus
clausus das exigências dos registos públicos ( 80 ). Se bem

( 84 ) Heck, § 23, 10, observa que no domínio do direito de autor


domina o princípio da liberdade de constituição, apesar da protecção
absoluta, e ninguém pensa numa limitação.
( 35 ) Recordemos as palavras de Serrano y Serrano, para quem
o sistema do numerus clausus «tem a vantagem de uniformizar toda
a gama de direitos sobre as coisas em categorias perfeitamente defi-
nidas e com características bem determinadas. Dessa maneira se evita
essa riquíssima floração de direitos reais, alguns sem nome conhe-
cido no Direito; se facilita o trabalho do Conservador (do Registo
Predial) quanto ao seu dever de qualificação; se adquirem moldes
fixos em que colocar as novas construções jurídicas; se facilita em
alto grau a gestão do registo e se deixa desimpedido o recurso aos
direitos pessoais para a satisfação das novas exigências jurídicas»
(apud Castán, pág. 54 ).
( 3 º) Cfr. Vera Bolgár, págs. 204 e segs., especialmente 210 e
segs., inspirando-se nas críticas de O. Gierke.

80
que esta explicação não possa ter a pretensão de ser única,
uma vez que deixaria de fora os direitos sobre coisas móveis,
ou mais amplamente, os direitos sobre coisas não registá-
veis ( 37 ), sempre se poderia colocar a técnica dos registos
como um dos factores que conduzem ao numerus clausus.
Mas com semelhantes argumentos postergam-se as con-
veniências sociais em favor de vantagens meramente técni-
cas (e algumas até mais que discutíveis) . .E. natural que os
órgãos de aplicação do direito tendam a esquecer o carác-
ter instrumental da sua actividade e a justificar por ela as
próprias soluções substanciais. Mas o ponto de partida
parece-nos dever ser exactamente o oposto. Os vários tipos
de direi tos reais foram trazidos por uma evolução social
que não estancou evidentemente em meados do século pas-
sado. O registo deve descobrir as formas de servir esta espon-
taneidade social; só perante uma impossibilidade absoluta
seria de reformular a solução substantiva.
Mas não é isso o que se verifica: à face da própria
técnica registai a argumentação não é convincente. Por um
lado, ver·emos em breve que se não pode dizer que o con-
teúdo dos direitos reais está hoje legalmente determinado
- e isso não traz qualquer inconveniente para o funciona-
mento dos registos públicos. Por outro, nada impediria que
pelo registo se desse publicidade a direitos reais que não
sejam típicos - é o que se passa, por exemplo, no sistema
espanhol. Desde que a um futuro adquirente não possam
opor-se nenhumas limitações, para além daquelas que cons-
tam do registo, a função de protecção de terceiros é cabal-
mente satisfeita.
Estas considerações são particularmente adequadas se
se tiver em conta um sistema de registo predial como o
português, que é dominado pelo princípio da legalidade: o
Conservador não se limita a transcrever documentos que
lhe são apresentados, mas antes inscreve factos; e inscreve-os

( 87 ) Assim o observa Müller-Freienfels, 138, nota 147.

81
6
porque os reputa relevantes para uma vicissitude de dada
situação jurídica real. Supõe-se uma elaboração prévia do
Conservador, o que permite que se diga que o objecto da
publicidade registai são as próprias situações jurídicas ( 38 ).
Assim, perante um direito inominado, o Conservador veri-
ficaria primeiro se a situação jurídica a que o título se
refere tem natureza real; e só no caso afirmativo procede-
ria ao seu registo. Só residualmente se poderia pois conti-
nuar a falar da falta de clareza. Seja como for, repetimos
que este é um mero valor instrumental, que não deve ser
sobreavaliado ( 89 ).

23. A situação no domínio do Código de Seabra

I - Decididamente manifestamos pois, de jure consti-


tuendo, a nossa preferência por um sistema de numerus
apertus. Mas agora vamos passar a uma apreciação de ordem
diferente: vamos verificar como é efectivamente regulada a
matéria no direito português.
Para isso, teremos de distinguir dois períodos:

- antes da entrada em vigor do novo Código Civil;


- no domínio deste Código.

Fazemo-lo assim porque são muito diversos os elemen-


tos sobre que devemos, num caso e noutro, trabalhar.
Não nos parece que se possa dispensar um exame da
situação anterior ao actual Código. Não só porque assim
poderemos esclarecer o direito novo, e verificar se ele é ino-

css) Vejam-se os arts. 1.º e 8.º do Código do Registo Predial.


Adiante teremos oportunidade de fazer algumas considerações sobre
o object-0 da tipicidade própria do registo predial.
( s9 ) No mesmo sentido Albaladejo, 29: seria como sustentar
que, para evitar as dificuldades que os tribunais defrontam na deter-
minação da natureza dos contratos, deveria haver um numerus
clausus destes.

82
vador ou se consagra uma solução já implícita, como ainda
pelo facto de o direito antigo continuar a regular as situa-
ções à sombra dele vàlidamente constituídas. Como melhor
teremos ocasião de precisar adiante, ainda durante muito
tempo haverá necessidade, para apreciar situações concre-
tas, de recorrer ao Código de 1867. Neste sentido, ele con-
tinua a ser direito vigente.

II - Iniciando pois a apreciação desse sistema, impõe-se


anotar a ausência de solução legal expressa: à semelhança
de todos os códigos até à época existentes, o Código Civil
de 1867 não proclamou, nem o numerus apertus, nem o
numerus clausus dos direitos reais. E a legislação posterior
nada acrescentou- nomeadamente os Códigos do Registo
Predial, que se orientaram por um sistema de taxatividade
das situações objecto do registo, que os dispensava de se
ocuparem com o problema substancial da lista dos direitos
reais.
E todavia a doutrina, unânimente ao que cremos, con-
sidera que o Código de 1867, não obstante a ausência de
qualquer norma expressa, consagrou um sistema de nume-
rus clausus ( 40 ); e também cremos ser pacífica nesse sen-
tido a jurisprudência.
Vejamos que razões foram ou podem ser apresentadas
para fundar uma conclusão.

24. Pretensas soluções dogmáticas

I -Trabalhando perante sistemas legais que não con-


sagravam expressamente a limitação do número dos direi-

("º) Revista de Legislação e de Jurisprud~ncia, ano 58.º, pág. 188;


Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais, págs. 69, nota,
e 116; Dias Marques, Direitos Reais, pág. 23; Cunha Gonçalves, Tra-
tado, vol. X·I, págs. 144 e segs.; Paulo Cunha, Direitos Reais, págs.
216 e segs.; Manuel de Andrade, Pactos de Preferência, pág. 144.

83
tos reais, pensaram, quer partidários do numerus apertus
quer do numerus clausus, poder encontrar a solução de jure
condito em meras deduções a partir d~ princípios dogmá-
ticos que tinham por básicos.
E assim, da admissão da relação passiva universal pode
tirar-se um argumento conceituai contra o numerus apertus.
Afirma por exemplo Ferrara que do direito real brota um
dever geral de conduta, e não é dado ao arbítrio individual
criar novos limites à liberdade de todos ( 41 ).
Parece-nos que se depara aqui mais uma consequência
desfavorável da utilização de um conceito tão deformador
como o de relação passiva universal. Noutro lugar ( 42 ) o
criticámos largamente, pelo que podemos remeter para essa
demonstração. Com isto caduca este argumento conceituai
que se arquitectou com base nessa pretensa relação.

II -Pelo contrário, pareceu a muitos autores antigos


que o facto de os direitos reais menores serem desmembra-
mentos da propriedade, modos de a utilizar, conduzia em
linha recta ao numerus apertus, uma vez que em toda a
constituição de um direito real menor o proprietário mais
não fazia do que dispor de algumas das faculdades contidas
no seu direito (4ª).
O repúdio da tese do desmembramento, hoje pràtica-
mente generalizado, tira todo o valor a esta argumentação.

( 41 ) Pág. 365. No mesmo sentido, Orlando Gomes, pág. 19


( vol. I); Mandrioli, n.º 7; 1. Galvão Telles, Obrigações, pág. 71 :
•Sendo oponíveis a todos, limitando assim a lirberdade das outras
pessoas, (os direitos reais) devem estar, e estão, prêviamente fixa-
dos na lei:•. Cfr. ainda Rigaud, Derecho real, págs. 214 e segs. Dentro
da mesma corrente consideram todavia lícita a criação de novos
direitos reais, desde que sejam desmembramento dos anteriores,
Planiol e Ripert, Pratique, n.º 48. Mas veremos a seguir como deve-
mos julgar esta tese do desmembramento.
(•2) Relações Reais, págs. 21 e segs. e 80 e segs.
( 43) Cfr. Laurent, n.º 84. Este é também, ao que parece, o tfun-
damento da posição impllcitamente afirmativa de Baudry-Lacantinerie
e Chauveau, n.º's 193 e 195.

84
Pelo menos, é seguro que nem todo o direito menor se
forma por desmembramento da propriedade: teremos oca-
sião (infra, n.º 66) de demonstrar esta afirmação. Sendo
assim, é impossível encontrar num pretenso desmembra-
mento a chave da solução, em geral, do problema da liber-
dade de constituição de direitos reais n1enores.

25. O princípio da aut-0nomia privada e as proibições


legais

I - O caminho mais promissor para os defensores do


numerus apertus é o que se baseia no princípio da autono-
mia privada.
Sustentou-se, perante ordens jurídicas em situação seme-
lhante à que se verificava no domínio do antigo Código Civil
português, que o sistema do numerus apertus beneficiava
duma presunção que se viria a revelar decisiva. Sendo a
civilização ocidental dominada pelo princípio da autonomia
privada, este conduziria ao reconhecimento da validade de
todas as estipulações que não embatessem em regra legal
proibitiva. Ora, como dissemos, verificava-se que as leis não
continham nenhuma exclusão deste poder criador com refe-
rência a figuras de natureza real ( 44 ). Logo, mesmo a cons-
tituição de direi tos reais inominados seria Iíci ta.

II - Esta argumentação não parece suficiente. A fór-


mula vulgar, «tudo o que não é proibido é lícito», é sim-
plista, e presta-se aos maiores equívocos. Como nota Luz-
zatto: «Seria fórmula errónea a de que: «é permitido todo

(º) «Nenhum texto proíbe formalmente a criação de novos


direitos reais ou a modificação dos direitos reais previstos; o art. 543.º
do Código Civil é enunciativo, e a sua enumeração está aliás incom-
pleta. ·Por conseguinte, deve--se respeitar a liberdade das convenções,
desde que não contrarie uma disposição de ordem pública ... »: Planiol
e Ripert, Pratique, n.º 48. Cfr. também A.lbaladejo, pág. 28, e autores
adiante citados.

85
o negócio não proibido expressamente pela lei», quando a
verdade é que, junto a um número infinito de negócios líci-
tos, há também um número infinito de negócios não permi-
tidos: o que é confirmado por normas de índole geral, que
se referem justamente aos actos não admitidos pela ordem
jurídica» (4 5 ). Efectivamente, ao menos no direito actual,
é impossível jogar com presunções de licitude ou ilicitude
das intervenções da autonomia privada. Caso por caso se
terá de verificar se o acto é ou não conforme aos princípios
da ordem jurídica. Só portanto após o exame da regula-
mentação legal portuguesa dos direitos sobre coisas nós
poderemos concluir pelo carácter rígido ou maleável das
previsões legais.

III-O mesmo haverá que objectar a uma posição, apa-


rentada com esta, que procura chegar aos mesmos resulta-
dos centrando-se no carácter absoluto do poder de disposi-
ção do proprietário, que resultaria de preceitos como o do
art. 544.º do Código Civil francês ( 46 ).

IV -Poderia ainda argumentar-se que o Código de 1867


quando quis repudiar alguma figura de direito real, expres-
samente a excluiu, como fez relativamente ao censo reser-
vativo, ao quinhão, etc. Efectivamente, já se sustentou entre
nós o carácter taxativo da enumeração legal pelo facto de
a lei proibir para o futuro a constituição de certas figuras
de direitos reais anteriormente admitidas: a plena liberdade
de constituição de figuras novas seria incompatível com
aquelas proibições ( 47).

(º) Pág. 766.


( 4 e) Laurent, n.º 84; Bianchi, n.º 104, 3., pág. 816: «·A livre facul-
dade de dispor dos próprios bens abrange também a faculdade de
constituir sobre eles aqueles direitos reais, quaisquer que sejam, que
o proprietário repute oportuno estabelecer, ainda que .não sejam
contemplados e regulados por específicas disposições da lei».
( 47 ) Pires de Lima e Antunes Varela, Noções, pág. 69, nota.

86
Mas o argumento pode fàcilmente ser virado ao con-
trário: se a lei proíbe expressamente certas figuras, isso
significa que todas as outras são admitidas. Pode na ver-
dade pensar-se que o legislador esteve nestes casos a traçar
os quadros dentro dos quais se deveria mover a autonomia
privada, mas considerando-a, aqui como noutros lugares,
plenamente imperante. Nada se pode assim logicamente
extrair da existência das proibições legais, para o tema que
nos ocupa.

26. A ordem pública

I - A principal linha de defesa que se aventou contra


a invocação ·da autonomia privada está em afirmar que os
particulares não podem modificar a regulamentação legal
dos direitos reais, visto que essa regulamentação seria de
ordem pública ( 4 s).

II - É talvez este o entendimento que está, embora


imperfeitamente expresso, na base das afirmações dos auto-
res que se reclamam do direito público. É assim que vemos
N. Coviello negar a possibilidade de criação de novos direi-
tos reais, porque o regime da propriedade fundiária assen-
taria nas normas do direito público ( 49 ). Infelizmente, o
autor limita-se a esta tomada de posição, não sendo fácil

(4ª) Acentuemos que o problema tem sido -colocado de modo


muito semelhante a propósito das formas comerciais de sociedade.
Assim, La Lumia apresenta como argumentos principais em favor da
existência de um número fechado de sociedades comerciais a ordem
pública e a defesa de .terceiros (pág. 218). Fernando Olavo acentua
também .que as formas típicas de sociedade, porque se destinam a
garantir inter~se~ de terceiros, são de interesse e ordem pública,
e por consequenc1a não podem ser alteradas pela simples vontade
das partes: Lições, vol. II, pág, 8.
( 49 ) Col. 16. Por isso os encargos que poderiam onerar essa
«propriedade fundiária» seriam somente os que a lei reconhecesse.

87
descortinar como concebe e delimita essas pretensas normas
de direito público.

III - Em torno da alegada ordem pública das normas


que estruturam os direitos reais estabeleceu-se um vivo e
elucidativo debate entre Demolombe e Laurent, que é opor-
tuno recordar.
O primeiro, partidário da limitação, argumentava do
squinte modo:
•Os particulares não podem evidentemente, nem nas
it!aS convenções nem nas suas disposições, modificar as leis
:f.Je respeitam à ordem pública (art. 6.º, 1133.º, 1172.º, etc.);
e entre essas leis devem-se evidentemente colocar as que
mteressam aos terceiros, ao público, à segurança das con-
~, ao modo de transmissão dos bens ...
Ora a lei que determina e organiza os direitos reais,
de que os bens serão susceptíveis, interessa sem dúvida no
mais alto grau os terceiros, o público, o modo de transmis-
são dos bens, a segurança das convenções;
Portanto, é uma lei de ordem pública; portanto, os par-
ticulares não podem modificá-la; portanto tal lei, na enume-
ração dos direitos reais que reconhece, deve ser necessària-
mente considerada limitativa» ( 50 ).
«Só falta uma coisa neste raciocínio, replica Laurent,
é a prova da proposição em que se apoia. Onde é que se
diz, quer nas leis, quer ·na tradição, que as palavras ordem
pública significam o que Demolombe pretende? ... Tudo o
r~ue ~ pode dizer é que as palavras ordem pública têm um
.entid" ainda mais amplo na doutrina e na legislação: nunca
$e pcrmi tiu aos particulares derrogarem as leis que concer-
nem o interesse geral. O debate reduz-se pois a estes termos:

( ~· J N: SIS. No mesmo sentido vão os autores portugueses que


pT•'..lclamam expressamente o princípio de que cé de ordem pública
;;., tlfpn1zat,.ão da propriedade•. Devemos referi-los quando tivermos
de verifi<..ar se os tipos de direitos reais são tipos abertos (infra,
n ."~ JJ 5 : iw;g,. J.

88
É de interesse geral que o proprietário seja limitado no uso
que quer fazer da sua coisa, estabelecendo algum direito
real?» E o autor, recordando que o próprio Demolombe
apontava vantagens sociais à criação de novos direitos reais,
conclui que há uma razão de interesse geral a justificar a
liberdade das convenções (ú 1 ).
Parece-nos fundamen talm·en te correcto o enunciado do
problema formulado por este autor: de uma vaga invocação
da ordem púbJica deve passar-se ao exame em concreto das
bases do sistema português dos direitos sobre as coisas, tal
como resultava do Código de Seabra, para poder concluir
se as previsões legais tinham carácter exclusivista ou maleá-
vel. Da manipulação de princípios de extrema generalidade
não se pode tirar nenhuma conclusão.

27. A admissão do «numems clausus» no direit.o


anterior

É colocando-nos justamente perante o direito positivo


anterior ao novo código que sustentamos a limitação implí-
cita do número dos direitos reais: porque todo o sistema
legal assenta no pressuposto de que não são permitidas
novas figuras de direito real para além daquelas a que a
própria norma deu vida ( 52 ).
Para o demonstrarmos, basta averiguar se se verifica-
vam entre nós as condições que considerámos indispensáveis
para o funcionamento de um sistema de numerus apertus.
A conclusão só pode ser negativa.
Por um lado, não se fizera a delimitação, que deveria
ser bem rigorosa, das condições em que poderia funcionar
a autonomia privada. Pense-se por exemplo nas várias moda-

( 51 )N.º 84.
Ver a este propósito Paulo Cunha, Direitos Reais, págs.
( 112 )
216 e segs.

89
tidades de ónus reais (& 3 ), cuja criação indiscriminada pode-
ria trazer os maiores inconvenientes, e que todavia em lugar
nenhum o legislador baniu. O carácter fragmentário das
proibições legais só se explica se pensarmos que o legisla-
dor não considerou possível nenhuma figura, para além
daquelas que expressamente prevê. ~ só a propósito destas
que nos surgem proibições «para futuro».
Por outro lado, a lei não instituía o sistema de publi-
cidade, indispensável à garantia de terceiros. Nada impõe
que a entrega ou o desapossamento sejam essenciais para a
constituição de novas figuras de direitos reais sobre móveis:
e o nosso sistema de registo não estava adaptado à recep-
ção de novas figuras. Com efeito, os direitos a que se con-
fere publicidade por meio do registo constituem também
um numerus clausus ( rH). O art. 2.º do Código do Registo
1

Predial de 1959 continha (aliás como o actual) a enumera-


ção taxativa dos direitos cujas vicissitudes estavam sujeitas
a registo; e que a sujeição a registo equivale à registabili-
dade resultava categoricamente do art. 241.º, 1., a) do mesmo
Código (!>ri). O nosso registo predial é de uma rigidez extrema,
quando qualquer sistema de numerus apertus exigiria uma
regulamentação amplamente maleável. Não é por acaso que
nos países em que se admite o sistema do numerus apertus
a orgânica do registo predial é compatível com a publici-
dade de novas figuras (!'' 6 ). Em Espanha, por exemplo, a
Lei Hipotecária admite a inscrição dos «títulos em que se
constituam, reconheçam, transmitam, modifiquem ou extin-

( r.z)Atribuindo à expressão o sentido técnico, que adiante dei-


xarem~ expresso (infra, n." 43 J.
('>•) Veremos também (n." 59) que, embora se insorevam factos
e não direitos, o que constitui numerus clausus não são os factos,
mas os direitos inerentes aos imóveis a que esses factos se referem.
pr, J Correspond~ ao art. 243.", l., b ), primeira parte, do
C.ó<Ugo actual.
('A) Uma exposição da técnica requerida· por estas situações
é objccto de um estudo de Otero Valentin.

90
gam direitos de usufruto, uso, habitação, enfiteuse, hipoteca,
censos, servidões e quaisquer outros reais» ( 37 ).
Concluímos pois que o silêncio do legislador português
assentava no pressuposto de que os direitos reais são um
numerus clausus.

28. O art. 1306. º do Código de 1966

Vejamos agora como se coloca o problema à luz do


Código Civil actualmente vigente.
Logo no Anteprojecto do Direito de Propriedade, da
autoria de F. A. Pires de Lima, estava contido um art. S.º,
subordinado à epígrafe: «Nu.merus clau.sus», cujo texto era
o seguinte:
«Não se podem constituir, com carácter real, restrições
ao direito de propriedade ou figuras parcelares deste direito,
senão nos casos previstos na lei. Toda a restrição, resultante
de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem
natureza obrigacional» (~ 8 ).
Este texto, de que não foi dada qualquer justificação,
passou para o Anteprojecto do Direito das Coisas, nas duas
versões que se apresentaram, e foi depois integrado no Pro-
jecto só com ligeiras modificações de forma, num artigo a
que coube o n.º 1306.º. Efectivamente, se exceptuarmos o
aditamento de um n.º 2, respeitante ao quinhão e ao com-
páscuo, e que directamente nos não interessa agora, é patente
a semelhança entre o art. S.º do Anteprojecto do Direito de
Propriedade e o n.º 1 do art. 1306.º do Projecto de Código
Civil publicado em 1966:
«Não é permitida a constituição, com carácter real, de
restrições ao direi to de propriedade ou de figuras parcela-

( 57 ) E o mesmo é, ao menos na prática, admitido pelo sistema


francês, em que o conservador não fiscali:za a legalidade substan-
cial dos actos sujeitos a registo: cfr. Planiol e Ripert, Prati.qtll!,
n.• 48 e nota 1.
( 68 ) Boi. do Min. da Justiça n.• 123 (Fevereiro de 1963).

91
res deste direito, senão nos casos previstos na lei; toda a
restrição resultante de negócio jurí-dico, que não esteja nes-
tas condições, tem natureza obrigacional».
Sobre este texto continuou a recair o mesmo silêncio
que habitualmente acompanha entre nós os trabalhos legis-
lativos ( 50 ), se exceptuaTmos os casos em que eles desper-
tam a emoção política. Transcrito literalmente, passa em
25 de Novembro de 1966 a constituir o n.º 1 do art. 1306.º
do Código Civil português, então publicado.
Antes de entrarmos numa apreciação deste preceito,
façamos algumas observações de ordem geral, tendentes a
situá-lo dentro do movimento legislativo global a que fize-
mos referência.
Verificamos que pela primeira vez, dentro dum Código
europeu, o problema do numerus clausus é expressamente
resolvido.
Verificamos ainda, confrontando este preceito com os
anteriormente transcritos, em que regra semelhante era con-
sagrada, que o legislador português inova na colocação dada
à matéria. Nos códigos civis chinês e japonês a regra do
numerus clausus abria o livro do Direito das Coisas ( 60 );
e no Código argentino algo de muito semelhante se passava,
visto que o art. 2502.º abre o título IV- «De los derechos
reales» do Livro III, que tem a mesma epígrafe. Nos títu-
los anteriores desse Livro IV o legislador tratara das coisas;
da posse; e das acções possessórias.
Pelo contrário, o legislador português vai referir esta
matéria à propriedade, tratando-a no í'ntirno desta como um
dos aspectos que suscita a regulamentação deste direito.
Por isso se diz que se não podem criar, senão nos casos
previstos na lei, restrições ao direito de propriedade ou
figuras parcelares deste direito. E ainda como consequência

( 59 )Veja-se todavia «A Tipicidade no Direito das Coisas», inte-


grada nas nossas «Observações ao Projecto de Código Civil».
(6º) Que é o Livro III, no Código chinês, e o Livro II, no
Código japonês.

92
de se referir a matéria como um elemento específico da pro-
priedade, e não como um princípio geral do Direito das
Coisas, a disposição não inicia a regulamentação legal, antes
surge intercalada entre outras que também da propriedade
se ocupam.

29. Apreciação da soln~ portuguesa

I - Passando a uma crítica da solução do novo código,


não é novidade para ninguém o dizermos que discordamos
dela. A lei portuguesa não traz qualquer elemento que
inquine as razões atrás apresentadas em favor da liberdade
de constituição de direitos reais, e recla111e solução diver-
gente.

II - Diríamos até que a estrutura geral dos direitos


reais na lei portuguesa faria desejar particularmente a adop-
ção de um sistema de numerus apertus.
Tem sido observado que a simplicidade da repartição
de todos os sistemas por numerus apertus e numerus clausus
é enganadora. A rigidez efectiva de um sistema fechado está
em estreita dependência da maleabilidade que por outro
lado se outorga aos tipos de direitos reais admitidos: podem
ter uma extensão tal que atinjam quase todas as necessi-
dades previsíveis. Assim, na Alemanha, a dureza do nume-
rus clausus é temperada pela elasticidade do conteúdo da
servidão e dos ónus reais. E apesar disso a prática tem pro-
curado fugir à limitação legal, por iniciativa da doutrina (º 1 )
ou da jurisprudência, dando lugar a que se fale hoje de
uma criação jurisprudencial de direitos reais(º:?).
O mesmo se passa na Suíça, onde Meier-Hayoz (º3) vai
até ao ponto de considerar como uma brecha no numerus

( 61 ) Cfr. ·Endemann, § 10, 2., nota 10.


( 62 ) Sobre este ponto, veja.oSe cap. V, secção III; cap. VI, sec-
ção 11; cap. VII, secção II.
( 63 ) N. 0 • 35 e segs.

93
clausus o facto de a servidão poder ter como conteúdo toda
a forma imaginável de utilização de um prédio. Pois mesmo
aí a prática abriu caminho à admissão de novas figuras ( 64 ).
Se o numerus clausus provoca estas reacções em países
em que os tipos singulares são descritos com tal generali-
dade, que dizer entre nós, quando a servidão pessoal foi
banida, e o ónus real nunca surge autonomamente, por não
ter sido admitido como figura genérica?

III - Poderá objectar-se que tudo isto é uma demons-


tração insuficiente: que era necessário indicar quais as for-
mas úteis que não foi possível desenvolver entre nós por
causa do numerus clausus. Mas essa exigência seria contra-
ditória. Se dizemos que a espontaneidade social pode criar
instrumentos adequados, e se essa espontaneidade foi que-
brada pelo numerus clausus, não podemos simultâneamente
estar a deduzir o que resultaria de uma evolução que se não
produziu ...
Concluímos pois: a lei portuguesa veio consagrar o sis-
tema do numerus clausus numa altura em que se impunha
o seu abandono. As razões que no século passado terão
imposto o princípio não têm hoje sentido. A solução legal
afigura-se-nos um sintoma muito claro do envelhecimento
das estruturas do Direito das Coisas, que referimos atrás.
Vamos porém pôr de lado esta divergência de fundo.
Colocando-nos agora dentro do direito positivo, passamos
a apreciar alguns aspectos da solução portuguesa. E desde
logo procuremos indicar qual a sua ratio.

IV- Para este fim, temos de ter em conta a disputa


que acima relatámos sobre a valia de jure constituendo do

( 64 ) Também em Espanha se passa assim, e .Mbaladejo, 30,


objecta aos partidários do numerus clausus: para que serve pràti-
camente o numerus clausus, se quase todos os direitos reais imagi-
náveis se podem constituir como subtipos ou variedades dos clássicos
tipos legais?

94
sistema fechado e do sistema aberto. Dissemos que um sis-
tema fechado se defende porque:
1) exclui a constituição de situações inconvenientes
sob o ponto de vista económico-social;
2) evita ónus ou vinculações ocultas dos bens;
3) dá clareza ao sistema, facilitando o funcionamento
do registo predial.
Não se vê razão para dizer que alguma destas finalida-
des não influenciou o legislador português. Todas elas terão
concorrido, em maior ou menor medida, para a erecção do
sistema legal. A estreiteza dos termos em que os direitos
reais são admitidos, a preocupação da publicidade, a rigi-
dez do registo predial, indiciam que todas aquelas finalida-
des actuaram.
Mas se podemos fazer uma distinção entre o grau de
relevância efectiva de cada uma, diremos que é sobretudo
a preocupação de excluir a constituição de situações incon-
venientes sob o ponto de vista económico-social que orienta
o legislador. Esta finalidade impõe-se em todos os casos,
enquanto que as outras duas não permitem da mesma forma
uma explicação universal. Assim, a preocupação de evitar
ónus ou vinculações ocultas dos bens não impede que haja
direitos reais que se constituam sem qualquer forma de
publicidade (por exemplo, direitos sobre móveis como o
usufruto, que não exigem entrega, e sobretudo direitos sobre
imóveis que estejam fora do catálogo dos que estão sujeitos
a registo predial). Quanto à preocupação de facilitar o fun-
cionamento do registo deixa logo de fora, por natureza, o
que respeita aos direitos sobre coisas não registáveis, e só
muito ocasionalmente poderá ter influenciado o legislador.

30. A conversão legal

1 - No próprio n.º 1 do art. 1306.º indica o legislador


as consequências da constituição de figuras com carácter
real fora dos casos previstos por lei. Estatui a última parte

95
do preceito: «Toda a restrição resultante de negócio jurí-
dico, que não esteja nestas condições, tem natureza obriga-
cional».
Se procurássemos um antecedente para esta solução,
poderíamos encontrá-lo no art. 2502.º do Código Civil argen-
tino, acima referido. Depois de se dizer que os direitos reais
só podem ser criados por lei, acrescenta-se: «Todo o con-
trato ou dispo~ição de última vontade que constituir outros
direitos reais, ou modificar os que por este Código se
reconhecem, só valerá como constituição de direitos pes-
soais, se como tal puder valer».
Confrontando esta fórmula com a adoptada no código
português nota-se uma mudança de acento. O legislador
português é mais radical: determina peremptàriamente que
qualquer restrição fora das condições previstas tem natu-
reza obrigacional.

II - Com isto se terá querido consagrar aquilo que


entre nós podia ser considerado uma communis opinio: a de
que a estipulação de um direito real inominado dá origem
a um mero vínculo obrigacional (oi;).
E todavia, há um elemento a ter em conta, e que vem
quanto a nós tornar problemática a bondade desta solução:
a consagração, no art. 293.º do novo código, da figura da
conversão do negócio jurídico como regra geral. Com base
no que era aliás já doutrina dominante, mas que se não
apresentava isenta de dúvidas, veio-se permitir a conversão
do negócio nulo ou anulado num negócio de tipo ou con-
teúdo diferente, mas desde que «O fim prosseguido pelas
partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem
previsto a invalidade».
O art. 1306.º dispensa nos negócios constitutivos de direi-
tos reais inominados esta última verificação. Estabelece uma

( 65 ) Cunha Gonçalves, Tratado, XI, pág. 601; Pires de Lima


e Antunes Varela, Noções, II, pág. 116; Pires de Lima, Lições,
pág. 296, nota.

96
conversão legal.: o negócio valerá em todos os casos como
constitutivo de um vínculo obrigacional, independentemente
da verificação do que seria a vontade tendencial das partes.
Quer dizer, «não obstará à conversão a circunstância de se
não provar que as partes teriam querido o negócio se tives-
sem previsto a invalidade, ou até de se provar que o não
teriam querido» (66).
Isto representa a instauração de uma duplicidade de
critérios, dentro do mesmo código, para que não encontra-
mos justificação bastante. Também o que celebra um negó-
cio constitutivo de um direito real inominado pode só o
querer desde que efectivamente para ele resulte esse direito
real; quem pretende, por exemplo, adquirir um direito real
de caça, fora dos casos previstos na lei, pode não ter o
menor interesse em ver-se titular de um crédito. A que vem
então a conversão legal? Até porque essa constituição seria
na normalida.de dos casos onerosa, e parece que na lógica
dos princípios da conversão legal a contraprestação não é
posta em causa, desde que o negócio seja aproveitado como
constitutivo de uma obrigação.

III - De qualquer maneira, este trecho permite-nos con-


cluir quais as consequências da violação do princípio do
numerus clausus. O negócio violador é inválido, e só por-
que inválido é que é convertido: a conversão supõe a inva-
lidade do negócio, como hoje o consagra o art. 293.º.
E o negócio é nulo ou anulável?
E: nulo, não só por efeito da regra do art. 294.º («Os negó-
cios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter
imperativo são nulos, salvo ... ») como porque o regime espe-
cial da anulabilidade, previsto nos arts. 285.º e segs., não
se ajusta a esta situação, nem lhe quadra a função com
que a lei a estabelece.

( 66 ) Nossas Observações, pág. 19.

97
7
31. Limites da conversão legâl· .··

1 -A frase final do art. 1306.º, 1., apresenta outra difi-


culdade ao determinar que toda a restrição, resultante de
negócio jurídico, tem natureza obrigacional. ..
E. que, atendendo a este mesmo art. 1306.0 , 1., verifica-se
que a lei aponta como conteúdo do numerus clausus a proi-
bição de constituição com carácter real, fora dos casos pre-
vistos por lei, de:

- restrições ao direito de propriedade


- figuras parcelares deste direito

Veremos posteriormente como entender cada uma des-


tas modalidades; mas, antecipando a conclusão, diremos
que se está a utilizar a· concepção, muito corrente na dou-
trina portuguesa, de que os direitos reais menores se cons-
tituem, ou por oneração, ou por desmembramento da pro-
priedade.
Seja porém qual for o significado daquelas expressões,
parece que o legislador, ao limitar às restrições a conversão
legal, parece estar a excluir as «figuras parcelares da pro-
priedade» constituídas fora das condições admitidas ( 67 ).
Uma interpretação meramente textual forçaria a con-
c1usão neste sentido. Não se pode dizer que todas as hipó-
teses são abrangidas pela noção de restrições ao direi to de
propriedade, porque essa argumentação provaria de mais;
então não se compreenderia que o legislador tivesse, no
início do preceito, após referir as restrições ao direito de
propriedade, falado ainda nas figuras parcelares deste
direito. Por que o teria feito, se com a referência às res-
trições estava já tudo dito?
Além de argumentos textuais, esta interpretação pode-
ria ainda escudar-se em argumentos finalístic~. Discordá-

( 87 ) E portanto cairiam na regra geral do art. 293.º.

98
mos há pouco da conversão legal contida na parte final deste
preceito. Eis que nos surge uma base para limitar a regra
a um círculo reduzido de hipóteses. Já poderíamos agora
remeter para os princípios gerais tudo o que respeita pro-
priamente à constituição de «figuras parcelares d.a proprie-
dade», seja qual for o entendimento que viermos a atribuir
a esta expressão.
Semelhante interpretação teria ainda reflexo no grau
de análise exigido pelas duas categorias legais. Se o regin1e
fosse comum, desde que se indicassem hipóteses que sem
dúvida se situassem entre as restrições ao direito de pro-
priedade e hipóteses que sem dúvida se situassem entre as
figuras parcelares deste direito, nada mais seria necessário.
Concluindo porém por uma diferença de regime, teríamos
de indicar com muito maior precisão qual o critério que
permite caso por caso a repartição por cada uma das pre-
visões legais.

II - Em todo o caso, semelhante distinção seria inacei-


tável. Nenhuma justificação racional se pode encontrar para
que o legislador submeta pretensos direitos constituídos com
inobservância do numerus clausus a uma regra, e outros a
regra diferente. Quando se fracciona a propriedade, criando
uma «figura parcelar» semelhante à enfiteuse, por exem-
plo, por que se não deve considerar o vínculo criado como
devendo ter necessàriamente natureza obrigacional, nas mes-
mas condições que em qualquer outro direito real? A ratio
do artigo é claramente generalizadora, e qualquer distinção
seria artificial.
Sendo assim, como explicar que, tendo-se na primeira
parte do preceito previs to duas si tu ações, se venha depois
aparentemente referir só a uma delas a consequência pre-
vista?
Há várias possibilidades de explicação, mas a que nos
parece mais certeira é a seguinte: pensando hem, não há
uma limitação ao primeiro termo (restrições ao direito de
propriedade). Primeiro falou-se em: «restrições ao direito

99
de propriedade»; agora diz-se: «restrição resultante de negó-
cio jurídico».
A realidade contemplada não é a mesma. Na segunda
parte do preceito o legislador procurou algo que pudesse
servir de máximo divisor comum das duas hipóteses previs-
tas na primeira parte, e encontrou-o na mera referência a
restrições. Em ambos os casos criaram-se por negócio jurí-
dico restrições, destinadas a provocar uma oneração ou um
desmembramento da propriedade. A categoria ampla restri-
ção, que aliás o legislador emprega em muitos lugares, e
por vezes sem qualquer ligação com o princípio do nume-
rus clausus (assim acontece logo no art. 1305.º, como vere-
mos), vai aqui servir para permitir uma referência sucinta
às duas hipóteses contempladas anteriormente. Sem dúvida
que é de má técnica empregar no mesmo preceito idêntica
palavra para exprimir realidades diversas, mas se ultrapas-
sarmos essa infelicidade técnica pensamos poder captar o
sentido da lei.
Note-se aliás que a «restrição resultante de negócio jurí-
dico» não se deve identificar com as restrições ao direito
de propriedade ainda por outra razão. ~ que o legislador
prevê agora a restrição resultante de negócio jurídico para
determinar que ela «tem natureza obrigacional». Não pode-
ria já prever a restrição ao direito de propriedade, uma vez
que desse negócio jurídico nenhuma restrição ao direito de
propriedade pode ter resultado, dada justamente a proibi-
ção anteriormente estabelecida. O que do negócio resultou
não foi uma restrição ao direito de propriedade, mas antes
uma restrição de ordem pessoal. Mais um indício pois do
significado autónomo desta segunda expressão. Restrição
quer aqui dizer simplesmente «vinculação», e neste sentido
amplo abrange a resultante de todas as estipulações refe-
ridas na primeira parte do preceito.

I I I - Mas não param aqui as infelicidades desta pre-


visão.

100
Dissemos há pouco que o legislador português se afas-
tou do código argentino, ao impor peremptõriamente a con-
versão legal. Já não se diz que a estipulação das partes «só
valerá como constituição de direitos pessoais, se como tal
puder valer»: diz-se que toda a restrição ... tem natureza
obrigacional.
A inovação não é de aplaudir, pois por natureza só pode
ter natureza obrigacional o que seja redutível a um vínculo
de estrutura obrigacional. Assim acontecerá na generalidade
dos direitos reais de gozo, uma vez que estes se podem con-
verter na obrigação de deixar gozar a coisa; mas já não
tem sentido nos direitos reais de garantia, nos direitos reais
de aquisição de actuação potestativa, etc.
Suponhamos que Abel, credor de Bento, convenciona
com este perdoar-lhe a dívida, em contrapartida da conces-
são de um direito real de disposição sobre o património de
Bento.
A cláusula é nula. Em hora certas previsões permitam
referir uma classe de direitos reais de disposição de direitos
alheios, os tipos legais (como o do art. 959.º, a propósito da
doação) não abrangem a hipótese.
Mas deve concluir-se que esta estipulação ganharia
natureza obrigacional? Tal não é possível, pois ela é por
sua natureza incompatível com semelhante configuração.
O direito de dispor tem carácter potestativo: exerce-se sem
exigir qualquer colaboração do titular dos bens, a quem
somente cabe a sujeição a essa actuação alheia.
Ora uma sujeição não se pode converter numa obriga-
ção. A conversão prevista no art. 1306.º, 1., não pode fun-
cionar, e a cláusula será nula e insusceptível de qualquer
aproveitamento.
Portanto, a querer-se consagrar a conversão legal, sem-
pre teria sido preferível manter uma reserva semelhante à
do art. 2502.º do Código argentino. Os resultados práticos
seriam os mesmos, mas ao menos não se proclamaria uma
regra que em certas situações contraria a natureza das
coisas.

101
Terâ pois de se fazer interpretação restritiva. Nem «toda
a restrição ... que não esteja nestas condições, tem natureza
obrigacional:., mas só aquela que «contenha os requisitos
essenciais de substância e de forma» para tal exigidos. Esta
resen~a. constante do art. 293.º, deve ser considerada ainda
aplicà,·el às hipóteses de conversão legal.

32. Indicação da sequência

Estes elementos mostram-nos qual o estado da ordem


legal portuguesa no tocante ao princípio do numerus clau-
sus. Podemos assim passar ao que directamente é a nossa
finalidade; a utilização do material recolhido no sentido de
verificar se há ou não tipicidade dos direitos reais. Inte-
ressa pois conjugar os resultados deste capítulo e do ante-
rior: ou, por outras palavras, reelaborar o princípio tradi-
cional do numerus clausus à luz do conceito moderno de
tipicidade.

102
CAPITULO III

O PRINCf PIO DA TIPICIDADE DOS DIREITOS


REAIS E OS SEUS LIMITES IMPLfCITOS

SECÇÃO I

CARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE
DOS DIREITOS REAIS

33. Tipo e Direit.o das Coisas

1 - As várias manifestações do tipo na ordem jurídica,


que referimos no capítulo I, têm também aplicação no domí-
nio do Direito das Coisas. Assim, o tipo real tem muito inte-
resse neste ramo do direito, até pela frequência relativa
com que formas concretas de actuação em relação aos bens
se impuseram à lei. Se considerarmos por exemplo as rela-
ções de vizinhança, podemos falar em modelos ou tipos
reais que são tidos em conta pelo legislador na formulação
dos seus comandos. Do mesmo modo, a regulamentação das
relações agrárias opera-se vastamente em termos reais, e é
conhecida nesse domínio a importância dos usos, que mol-
dam outros tantos tipos de frequência pelos quais se orien-
tam o legislador e o intérprete.
II - Passando a considerar o catálogo dos direitos reais
existentes, deve acentuar-se que em vasta medida eles corres-
pondem a figuras historicamente formadas, e portanto a
tipos reais; estes podem assim contribuir poderosamente

103
para a compreensão do tipo legal, nos termos atrás deli-
neados. ·Mas também aqui não podemos deixar de recordar
as restrições que já se nos impuseram. Nem todos os direi-
tos reais se decalcaram sobre figuras historicamente vigen-
tes. Basta pensar na superfície, que foi já apresentada (supra,
n.º 4, III) como figura de criação artificial, e que nem sequer
logrou dar origem a um tipo real que possa orientar o intér-
prete.

III - Entrando na análise da tipicidade propriamente


jurídica, que atrás caracterizámos, comecemos por observar
que são várias as manifestações que dela se encontram no
Direito das Coisas. Assim, por exemplo, tem interesse recor-
dar a categoria dos subtipos: veremos em breve que ela
pode ajudar a solucionar problemas muito importantes do
Direi to das Coisas.
Estes e muitos outros significativos afloramentos podem
porém de momento, em relação ao nosso tema, ser conside-
rados laterais. O que interessa directamente saher é: há uma
tipologia dos direitos reais, portanto os direitos reais são
previstos com o recurso à categoria técnica da tipicidade?
:i;:. esta a questão nuclear de que daqui por diante nos
ocupamos.
Para isso, começaremos por considerar a situação dos
direitos reais tal como resulta do art. 1306.º e portanto no
âmbito de aplicação deste. Em capítulos subsequentes veri-
ficaremos se há outros sectores relativos a direitos reais
que escapam a este preceito.

34. Há uma tipologia dos direiiios reais

1-Se há um numerus clausus, também há, necessària-


mente, uma tipologia de direitos reais. O numerus clausus
implica sempre a existência de um catálogo, de uma deli-
mitação de direitos reais existentes. Quer dizer, o numerus
clausus significa que nem todas as figuras que cabem no

104
conceito de direito real são admitidas, mas tão-somente as
que forem previstas como tal. Pressupõe pois a especifica-
ção de uma pluralidade de figuras que realizam o preenchi-
mento incompleto dum conceito, o que nos dá a própria
definição de tipologia. O conceito de direito real tem uma
extensão maior do que a resultante <la soma dos direitos
reais existentes.
Dizendo isto, encontramo-nos com a prática unanimi-
dade da doutrina. Vimos já como eram frequentes as refe-
rências a uma tipicidade dos direitos reais. Implicitamente,
os intérpretes ( 1 ) tomam as expressões numerus clausus e
tipicidade como sinónimos, e a tendência é para as utilizar
indiferentemente.
Só conhecemos uma posição divergente, se abstrairmos
das dificuldades que os juristas ·de língua alemã defrontam
no entendimento do Typenzwang ( 2 ): a de Giorgianni, que
negou expressamente a coincidência da tipicidade dos esque-
mas dos direitos reais com o princípio do numerus clausus.
Invoca o autor o facto de existirem certas formas, como o
ónus real, que se não podem incluir nos esquemas consi-
derados típicos: e isso o leva a concluir que, vigorando o

(1) Neste sentido, Ac. do Sup. Trib. Just. de 3-IIl-67, no Bol.


Min. Just., n.º 165, 343.
( 2) Esta palavra alemã é utilizada com pouca segurança. Parte
da doutrina usa-a em paralelo com numerus clausus: cfr. por exemplo
Heck, § 1.º, 10., a); Wolff-Raiser, § 2.º, II, 1.; .Palandt, introdução ao
§ 854, 2 ), b); Baur, § 1, l'I, 2; Larenz, Schuldrecht, § 4. Desta termi-
nologia se afasta Wieacker, que separa Typenz.wa:ng e numerus clau-
sus, e define aquele em termos de antes significar a fixação do con-
teúdo (Bodenrecht, § 12, III). Seguem-no Westermann, para quem o
numerus clausus designa a impossibilidade de criação (autónoma)
de novas figuras de direitos reais; o Typenz.wang significa que as
relações em que os particulares se encontram só podem ser modi-
fücadas na medida em que a lei o admita (§ 3, Ili); Esser, Schul-
drecht, § 16, que exclui nos negócios obrigacionais quer o numerus
clausus quer o Typenz.wang; e Staudinger, Introdução, Ili, b). Este
último acentua que as consequências dos negócios obrigacionais são
também vinculativamente fixadas na lei.

105
principio do numerus clausus (que define como a impos-
sibilidade de criação de direitos reais para além dos pre-
vistos como tais pela lei), não vigora todavia o da tipici-
dade (2) . .Não é claro o autor no que respeita à noção que
desta possui, mas parece entendê-la, afinal, como a limita-
ção aos tipos qualificados pela lei como tais. Semelhante
entendimento, cuja erroneidade teremos ocasião de demons-
trar, tira todo o valor aos prindpios que afirmara.

III - E o que está em causa é verdadeiramente uma


tipologia, e não uma mera classificação de direitos reais:
não se esgota a realidade abrangida pelo conceito cdireito
real•.
Isso não impede que a lei tenha utilizado pelo menos
uma classificação dos direitos reais. Esta surge como que
acidentalmente, na regulamentação do direito de superfície:
a extinção do direito de superfície pelo decurso do prazo
importa a extinção dos direi tos reais de gozo ou de garan-
tia constituídos pelo superficiário em benefício de terceiro
(art. 1539.0 ).
Recorreu-se pois a esta classificação tradicional dos
direitos ·reais. O caso é muito semelhante ao da classifica-
ção dos crimes: supõe-se um número limitado de tipos, e
procura-se depois dividi-los em classes. Se com felicidade
ou não, é-nos agora indiferente.
Mas trata-se de classes, e não de tipos; isto resulta com
clareza da consideração de que cada um dos termos vai
muito além das figuras efectivamente admitidas. O conceito
de direito real de gozo tem uma extensão maior que a soma
dos direitos reais de gozo previstos por lei: abrange, por
exemplo, as servidões pessoais. Representa uma classe, uma
repartição da realidade existente, e não um tipo a que as
situações concretas possam ser directamente subsumidas.

(') Pqr. 169-70. Esta posição foi acolhida por S. Rodotà, pág.
1330 e nota 251.

106
IV-Temos assim consolidada a base que nos permite
afirmar que a referência tradicional ao nu~erus clausus
desemboca na categoria moderna da tipicidade.
Mas daqui não podemos inferir que tudo o que respeita
à tipicidade dos direitos reais se esgota com a referência
ao princípio do numerus clausus. Na verdade, enquanto este
se limita a estabelecer que só se admite um número norma-
tivamente determinado de direitos reais, aquela conduz a
investigação para campos muito mais vastos.
Assim resulta por natureza da utilização da categoria
da tipicidade, pois esta, com o seu carácter técnico, permite
fixar com precisão muitos outros elementos relevantes, para
além da noção um tanto empírica da limitação do número
dos direitos reais.
Mas sobretudo, teremos ocasião de ver que na caracte-
rização da tipicidade vamos ter que entrar em conta com
numerosos problemas, muitos dos quais eram exteriores às
preocupações que se tinham em vista ao falar de nume-
rus clausus. Alguns são mesmo estranhos à previsão do
art. 1306.º, 1.: mas não nos adiantemos.

35. O prisma da tipologia

1-No capítulo 1 (n.º 10) dissemos que toda a tipologia


é recortada pelo prisma do efeito prático que em cada caso
se procura obter. Vejamos como este princípio se desenha
no que respeita à tipologia dos direitos reais.
O efeito prático não se confundirá com o efeito jurí-
dico pretendido. O efeito jurídico, é o que está no âmago
do conceito de direito real - o estabelecimento de situações
inerentes às coisas. Mas a lei não se contentou com o con-
ceito, tipificou. Se descobrirmos porque tipificou, teremos
assinalado o prisma desta tipologia.
Ora bem, a resposta torna-se fácil se atendermos aos
resultados da investigação que realizámos no capítulo ante-
rior, em torno à ratio do numerus clausus. Verificámos que

107
cAte pode ler por finalidade excluir situações inconveniente&
Rob o ponto de visto económico·social, evitar ónus ou vin·
culnçiks ocultas dos bens, e dar clareza ao sistema dos
direitos sobre as coisas, facilitando o funcionamento do
registo predial ( 4 ); e verificámos também que a preocupa·
ção mais forte é a de excluir a constituição de situações
inconvenientes sob o ponto de vista económico-social (G),
Tudo isto pode ser traduzido dizendo-se que o prisma
da tipologia dos direitos reais é o da indicação das vincula-
ções admisslveis dos bens. Tendo-se em conta a situação
dos bens, verifica-se que eles podem ser atingidos por certas
onerações, mas indicam-se as modalidades possíveis destas.
Note-se que tudo isto traduz uma preocupação prática,
não correspondendo ainda a nenhuma estruturação jurídica
precisa.
E. quanto basta para distinguir a tipologia dos direitos
reais de outras cujo objecto é afim, e nomeadamente da
tipologia dos direitos inerentes a imóveis ( 6 ), que tem como
sede principal o art. 2.º do Código do Registo PTedial: aí
são também os direitos reais que se têm, afinal de contas,
em vista, mas o prisma é muito diferente, é o da conve-
niência da atribuição de publicidade, e tanto basta para
que digamos que se trata de uma tipologia distinta ( 7 ).
E nada mais valeria a pena dizer sobre esta matéria se
não surgissem pontos obscuros. E. que também a propó-
sito desta tipologia surgem dificuldades quanto a saber-se
quando se deve dizer que há um tipo de direito real autó·
nomo.
II - Para já, acentuemos a necessidade de não confun-
dir o tipo de direito real com a respectiva definição. Já atrás

{ 4) Supra, n.º 22.


{&) Supra, n.º 29, IV.
( 6) Esta afinidade é semelhante à que verificámos existir entre
a tipicidade dos factos relativos ao estado das pessoas e a tipicidade
dos factos sujeitos ao registo civil (supra, n.º 10, 1).
(7) Outra tipologia afim é a tipologia dos direitos reais que
se extinguem por não uso, constante do n.º 3 do art. 298.º.

108
fizemos em geral esta prevenção("). No campo do Direito
das Coisas temos um exemplo muito elucidativo: a ausên-
cia, no Código novo, de uma definição da propriedade não
pode ser tomada como a aboJição do tipo da propriedade.
Nem se pode entender doutra forma, desde que a lei dedica
um capítulo a este direito.
Mas daqui não se pode inferir que para que um tipo
de direito real exista basta que a lei se limite a nominar
uma dada situação. Assim como atrás fomos forçados adis-
tinguir as qualificações dos contratos como nominados e
como típicos, também aqui devemos, seguindo aliás o sen-
tido normal dos termos, afirmar que não haveria um novo
tipo de direito real se a lei se limitasse a nominar urna
figura, a superfície ou a parceria, por exemplo, sem estabe-
lecer o respectivo regime ou só o estabelecendo em aspectos
secundários. Note-se que não afirmamos que nestes casos
não há tipo de superfície ou de parceria, como direitos reais:
o que afirmamos é que se não preenche a tipologia legal
dos direitos reais. Veremos as consequências desta distin-
ção quando mais tarde analisarmos o sentido das referên-
cias legais à colonia.
Mais ainda: a nominação por lei nem sequer é necessá-
ria. Pode a lei ter estabelecido uma situação jurídica sem
a nominar, quiçá imersa na regulamentação de um instituto
mais vasto, e o intérprete descobrir nela os traços de um
novo direito real, a que poderíamos chamar um direito real
inominado. Adiante, ao falarmos dos ónus reais, deparare-
mos com figuras desta ordem.
1
III - Que é então necessário para que se possa dizer
que há um tipo legal de direito real, uma vez excluídas a
definição e a nominação por lei?

(ª) Cfr. supra, n.º 10.

109
t nia."eSSârlo
que a lei:
_ .:ontcnha a descrição essencial de uma dada situação;
- ~tabeleça para ela um regime real.

l "- s~ que respeita ao primeiro elemento, podemos


~ .pe essa descrição fundamental tanto pode resultar
..=...~n '-"OIDO indirectamente da lei: pode a lei estabelecer
.,::-r..i ~ precisa ou pode não a estabelecer. Em ambos
~ :i..~ o intérprete deverá compulsar o conjunto dos pre-
~::s ~concluir qual o conceito que àquele tipo corres-
~= e até, eventualmente, corrigir a definição legal, se
"J~..:---a- que ela não traduz com verdade a regulamentação
~da pela própria lei.

2l t necessário também que a lei atribua à figura em


~ão um regime real. Seria porém ir-se longe de mais
~ ie afumasse, como Albaladejo, que a tipicidade (legal)
::ie:~wa. em rigor, da regulamentação por lei ( 9 ). Basta que
.l a estabeleça para dada figura um regime que, por mais
wm.rariamentc referido que seja, se possa qualificar como
:eal. metmo que omita toda a restante regulamentação. Se
..., ~ fW:r, também não poderemos falar de um tipo legal
de direito real.

J'V - Ct,m h. to ficam ainda muitos problc1nas en1 aberto,


'f~ '1.Jl..é\\Ívamcntc iremos examinando.
J:m d11'\ maí~ importantes respeita à analogia: averigua-
'1~~"' \éiUidamL~tc <la aplkahilidadc desta em relação a
'..;,,d;, nm cJ,,~ elementos ac.:ima apontados.
f J1Jf ff1 ''~'pdta tt influ~nda que pode ter a variação de
~;,..,,,, ,J,,, &\Pf'Llott do l't'lo(Ímc.· dt• um direito real para nos
~1:.r ~ í"'H' l:.t' wn novo tipo. Mas como os problemas mais
'"'"'''~'''~• 11r.\lu mul~rlu nos surgirfio n propósito da rela-
1 ylf1~1,t.11 tlt· fa,,,, c1111~11ru1lvu e tipo, de:'ixaremos o seu
--~:.11"' i1nr f4 qwuHlo 1rui urmo~ r.\' pro/tsso ~ste ponto.

JIU
36. O critério de tipifÍ~

1-Qual o critério de tipificação utilizado no domínio


dos direitos reais? Dissemos atrás que a lei raramente, ou
talvez nunca, tipifica na base de um critério uniforme ( 10 ).
Devemos pensar diversamente neste sector?
Poder-se-ia supor que os direitos reais se distinguiam
uns dos outros pelos poderes que atribuem em relação à
coisa. Assim se distinguiriam a servidão, que atribui um
poder específico, o usufruto, que atribui a universalidade
dos poderes de gozo, a propriedade, que atribui a universa-
lidade dos poderes ...
Basta porém sair desta pequena série para verificar que
o critério não resiste.
Comparemos por exemplo o usufruto e a enfiteuse. Aí
não é já o conteúdo que distingue - sob este ponto de vista
a essência é a mesma, pois qualquer destes direitos faculta
a universalidade dos poderes de gozo referentes à coisa.
O que se torna decisivo é o que respeita às formas de extin-
ção: o usufruto é essencialmente temporário, a enfiteuse é
tendencialmente perpétua.
Se compararmos o usufruto e o arrendamento, o crité-
rio tem já de variar de novo. Para além de outras diferen-
ças, verificamos que é essencial o carácter gratuito do usu-
fruto, contraposto ao carácter oneroso do arrendamento.
Também isto nada tem que ver com os poderes de gozo
em relação à coisa.
Outros critérios ainda são utilizados. Assim, para a dis-
tinção entre penhor e hipoteca é essencial a natureza do
objecto; entre os subtipos de arrendamento torna-se deci-
sivo o fim a que se destinam (arrendamento para habita-
ção, por exemplo).

II-. Em conclusão, verificamos que também nesta tipo-


logia o critério de escolha é muito variável, e portanto não

( 10 ) Supra, n.º 11.

111
permite uma apreensão em geral do material de análise.
A modelação dos tipos poderia perfeitamente ser outra-
poderia por exemplo admitir-se um tipo de servidão pessoal
que englobasse a superfície, os direitos de caça e outras
figuras ainda. Podemos por isso dizer que há algo de arbi-
trário na distinção de tipos de direitos reais que a nossa
ordem jurídica admite.
Em geral, são as considerações históricas as decisivas
na apresentação concreta dos tipos admissíveis. Necessida-
des práticas imediatas fazem alterar, reduzir ou aumentar
este elenco de figuras possíveis, sem que haja a preocupação
de que estas obedeçam a um critério único.
Dizendo isto, estamos a fazer uma verificação, e não
uma crítica. Em certos casos seria preferível uma arruma-
ção mais racional, mas em geral as necessidades de concre-
tização que estão na base do recurso à tipicidade não se
podem socorrer de moldes rigorosamente lógicos. Basta-nos
pois observar que o facto marca um limite à indagação em
termos de teoria geral. Ou se quisermos, que a «parte geral
da parte especial» dos direitos reais (para invocarmos uma
categoria que foi já utilizada no Direito Penal) não encon·
tra neste domínio material adequado para análise.

37. A caracterização da tipicidade e o problema da


analogia

1 - Verifiquemos agora que espécie de tipologia é esta


em que os direitos reais se encontram.
Podemos excluir liminarmente a existência de uma tipo-
logia exemplificativa: esta pressuporia a vigência do sistema
de numerus apertus, o que ficou já afastado anteriormente.
As figuras ou tipos legais realizam uma restrição, e não
uma mera exemplificação.
o problema concentra-se pois nas mod8'lidades da tipo-
logia taxativa e delimitativa.

112
I I - Se a tipicidade dos direitos reais for da mesma
natureza que a tipicidade dos crimes, teremos uma tipologia
taxativa.
Mas sê-lo-á? A dúvida pode ancorar-se no facto de não
se encontrar no Direito das Coisas qualquer preceito seme-
lhante ao do art. 18.º do Código Penal, que exclui o recurso
à analogia e à interpretação extensiva para qualificar qual-
quer acção como criminosa.
Desembocamos assim noutro magno problema, o da
admissibilidade da analogia na indagação dos tipos de direi-
tos reais. Este problema tem sido votado a um impressio-
nante silêncio: não há um estudo de conjunto, e são muito
raras as referências acidentais. E todavia, é grande a sua
importância.

III - Resulta já do que dissemos que não pode haver


o livre recurso à analogia: não há nomeadamente lugar para
uma analogia juris, ou analogia a partir do conceito de
direito real, para enquadrar nesta tipologia situações que
a lei lhe não refere. Como tivemos ocasião de assinalar, isso
seria próprio da tipologia exemplificativa, que ficou arre-
dada já( 11 ).
Em compensação, parece-nos importante acentuar que
não há no Direito das Coisas nenhuma proibição geral de
analogia. A esta se recorre, e justificadamente, em vários
sectores. Assim, pode usar-se a analogia, como veremos,
para ajuizar da extensão e dos efeitos dos factos constitu-
tivos, transmissivos, modificativos ou extintivos dos direi-
tos reais. Pode recorrer-se à analogia para fixar o conteúdo
de um dado direito real. Em todos estes casos se verifica
que o Direito das Coisas está aberto à problemática geral
da analogia.
Portanto, o problema aqui é mais restrito. Discute-se
apenas se pode haver analogia a partir dos elementos que

( 11 ) Supra, n.º 15.

113
8
compõem o próprio tipo de direito real ( 12 ). Se, por analo-
gi~~ puder ainda ser incluída naquele tipo uma situação nele
não pre\·ista mas que oferece afinidades com uma que é
tipi~a. poderemos falar (sem que haja necessidade de sus-
.:itar agora outros problen1as) na existência de uma tipolo-
gia delimita tiva. Se essa analogia for excluída, teremos uma
tipologia taxativa.

IY - Temos de proceder aqui com o máximo rigor, evi-


t.l..:too saídas aparentes que nos transviariam.
\"amos dar um exemplo. Embora a propósito da servi-
dão se fale em proveito exclusivo de um prédio (art. 1543.0 ) ,
:-.ão será de admitir a servidão em proveito de uma pessoa?
~ã...) se poderá invocar uma razão de analogia? A ser assim,
é::-~-ia que a admissão da categoria da servidão pessoal
e .:oruequência da caracterização da tipologia como delimi-
tath·a.
Cremos que se iria por caminho errado. Por mais clara
q-..ie seja a analogia, é ainda mais clara, neste preceito e nos
;eguintes, justamente a intenção de banir a servidão pes-
soal. A exigência expressa de uma relação predial tem sido
f•.Jndadamente entendida como significando a exclusão de
outras categorias históricas de servidão. A analogia não é
aq:.ií possível porque um preceito concreto a impede.
Mas isto não exclui ainda a categoria - tipologia deli-
mitativa.
i:, evidente que toda a possibilidade de analogia cessa
ffJ4Snd<i esbarra com urna proibição individualizada da lei.
l ~rnbém ninguém nega a extensão analógica dos tipos de
uirit.rál'' prcvh1tos na lei, no âmbito da tipicidade exempli-
f ,r,ativ'1 que lhes é própria, e todavia é evidente que essa
~xt~nt,f11, 1Jc não pode dar relativamente a formas contra-
l•J.ãi\ 110 ,ínída~ por lei.

1 ,-, 1 I'~'" '> q1w rc-ipeltu c.•specHicnmente à admissão da analo·


,,li /;
. 1I tf1' í.tllk HIJ Yl 1 Jlftt11t dt>H UifCitUS reais, Cfr. infra, n. 0 45.

114
O problema fica assim delimitado: pergunta-se se uma
situação estranha, mas análoga, a outra regulada num tipo
legal, pode ser neste incluída, quando a lei não o vede espe-
cificamente.

38. Aceitação de uma tipologia taxativa

1 - Que concluir, perante a lei portuguesa?


~ um tanto difícil dizer aonde nos poderia conduzir a
tradição. Talvez possamos salta·r por cima da análise da
situação anterior, e procurar directamente saber como se
coloca o problema perante o art. 1306.º, 1. Porque este repre-
senta o elemento que pode levar a uma solução própria
perante a nossa ordem jurídica: o numerus clausus é entre
nós uma regra expressa, ao passo que nos sistemas estran-
geiros com mais afinidades com o nosso é quando muito
um princípio geral, elaborado doutrinàriamente.
Diz-nos aquele preceito que só é permitida a constitui-
ção... «nos casos previstos na lei». E desde já convém
acentuar que se diz simplesmente «previstos na lei», e não
«expressamente previstos na lei». Sabendo-se que várias defi-
nições do numerus clausus proclamavam a limitação aos
casos expressamente previstos na lei, o texto citado pode
ser invocado como um apoio à admissão de uma tipologia
delimita tiva.
O confronto com os três artigos seguintes provoca novas
dúvidas. Todos eles referem formas de tipicidade legal; mas
o art. 1307.º, 2., fala de «casos especialmente previstos na
lei», o art. 1308.º de «casos fixados na lei» e o art. 1309.º
de «casos previstos na lei». Através deste confronto, sempre
se encontrariam motivos para considerar a referência do
art. 1306.º, 1., mais maleável do que outras, como por exem-
plo a do art. 1307.º, 2., que fala de casos especialmente pre-
vistos na lei. Também esta maleabilidade seria favorável a
uma tipologia delimitativa.

115
11- Tudo isto são, fàcilmente se concederá, indícios
muito ténues, e não decisivos só por si.
Antes devemos perguntar directamente quando é que
uma situação se pode dizer ou não prevista na lei. A situa-
ção que foi resolvida pelo recurso à analogia estava prevista
na lei? Há efectivamente quem diga que nestas hipóteses
haveria uma regulação implícita por lei; e essa regulação
poderia bastar para satisfazer a previsão do art. 1306.º, 1.
Mas não é assim.
A analogia supõe a existência de uma lacuna, e a lacuna
é justamente o inverso da situação prevista por lei. Pro-
clama-o hoje o art. 10.º, 1., que assenta o sistema da inte-
gração na expressa afirmação da existência de lacunas da
lei('ª). Afasta-se assim a ficção da regulação implícita, antes
se deve reconhecer que há autênticas lacunas. E o texto
começa por estas palavras: «Os casos que a lei não pre-
veja ... ». !?. evidente que o caso que a lei não prevê está nos
nntípodas da rcfcrl!ncia ao caso previsto por lei, constante
do art. 1306.º. Isto basta para impedir toda a extensão ana-
lógkn dos direitos reais. A solução está aliás perfeitamente
dt' nconlo com n rigidez que caracteriza a disciplina actual
do Dirdto das Coisas.
C'onduimos que há uma tip()]ogia dos c.lirc.•itos reais, a
qu~\l S'-' lkn.• formar sem qualquer recurso à analogia. São
pt..)is justifkudas as n·frrt:ncias a uma t ipkidadc dos direi-
tos l'\'ais: o mmrt•r11s c:lawms, nos lermos do art. 1306.0 , 1.,
tt'm lk signifkur p1..·lo mc11os n imposi~·l'io de umn tipologia
taxHtivn.

111 - Equivuk• bto a dizer que oM dlr~itos rcnis devem


\'ir <'Xprf"ssmn<'trl<' previstos nu lei?

( 1~l P. n 1rndt'111.•ht t'l"n' duM 1111vm trittu1e, q11~· os leva ntd à


""''ll:'~tA"'''~ dc.i unrn ~·~1lr."àit11'1,1 ~ lJll(' du11111111111• dr 11lm·mu\s rcbcl·
J(s ~ itlMlü.al>''-. ('fr. u 110111111 C'!lllUtlu •11hr(I l11t1"1Jl'llf,1o, n.º 3. Adhmte
\\llUt'\'l\l\l:>o '' t'Sll\ U\"l~ll",

116
Não o cremos. Com a expressão referida, o que se quer
afastar é mais do que a analogia: é a interpretação exten·
siva, que desta se distingue bem, como veremos. Mas a inter-
pretação extensiva é perfeitamente admissível no Direito das
Coisas, como o é em todos os ramos do direito, fora dos
casos excepcionais em que é excluída: e é admitida, nomea·
damente, na interpretação das descrições legais dos direi·
tos reais.
Tomemos a definição de servidão constante do art. 1543.º.
Não se pode pretender que a previsão do encargo de um
prédio em proveito de outro prédio deve ser estendida a
toda e qualquer restrição de imóveis em proveito de outros
imóveis? Efectivamente, os prédios são apenas uma catego·
ria de imóveis: o art. 204.0 menciona outras categorias, como
as águas, e o elenco poderia ainda ser estendido a novas
realidades, como os monumentos, que não são prédios.
Sendo assim, não será possível estender a figura da servi·
dão, mesmo no direito privado ( 14 ), a estas situações?
Pensamos que são efectivamente válidas servidões desta
ordem, e não cremos que isso implique o recurso à analogia.
Basta·nos a interpretação extensiva. O texto do art. 1543.º
não corresponde às finalidades que com ele se quiseram
atingir: o legislador disse menos do que queria. Estende.se
pois a letra cm homenagem ao espírito. Por mais cuidadoso
que tenha sido o legislador quando definiu ou descreveu as
figuras de direitos reais, dada a importância que a delimi·
tação reveste, não podem deixar de se verificar casos, aqui
como noutros domínios, em que a fórmula traiu o pensa-
mento legislativo. Dissemos aliás há pouco que a tipici·
dade não torna as definições legais de direitos reai~ defi.
nitivas ( 1 1'1).

( u) No Direito Administrativo isto é sem dúvida possível: dr.


Marcello Caetano, Mmiual de Direito Administrativo, 7.• ed., n.º 310.
(ia) N.º 35, III.

117
Teve pois razão o legislador, ao limitar os direitos reais
aos casos previstos na lei, e não aos casos nesta expressa-
mente previstos.

39. Criação legislativa de direitos reais

Admitida a existência de uma tipologia taxativa, convém


proceder antes de mais a dois esclarecimentos que, por mais
evidentes que possam parecer, não deixam de ser muito
importantes para a compreensão da matéria.

1- Seria evidentemente erróneo entender o numerus


clausus como implicando uma limitação imposta ao próprio
legislador, que o impediria de criar mais direitos reais além
dos existentes. O repúdio de tal concepção, que terá tàci-
tamente influenciado as posições de alguns autores mais
antigos, é hoje património comum da ciência jurídica ( 16 ).
O numerus clausus só limita a capacidade criadora dos
sujeitos privados, não do legislador. Mesmo o legislador
ordinário pode sempre criar novos direitos reais, visto não
estar limitado por nenhuma norma constitucional; e efecti-
vamente assim tem procedido.
Esta conclusão, que se impunha já no domínio da lei
antiga, é mais fácil ainda de captar após a entrada em vigor
do novo código, com a sua consagração do sistema do nume-
rus clausus. O código tem a força de lei ordinária; não pode-
ria pois limitar eficazmente a actuação do legislador ordi-
nário.

( 10 ) Wicacker, Bodenrecl1t, § 12, Ili, 1., b), '1eva a sua Teacção


ao ponto de negar que haja um numerus clausus dos direitos reais,
porque dá a este o sentido de excluir outros direitos reais, além dos
previsto.~ no B. G. B. ou expressamente ressalvados na lei introdu-
tória deste. Mas ~ arbitrário· dar este errado entendimento à exprcs·
são num1rus clausu.s, e que de todo o modo se afastaria do que
est' consaarado no art. 1306.~, 1.

118
I I - E é curioso notar que, já após a publicação do
Código, o número dos direitos reais foi aumentado.
A Lei n.º 2132, de 26 de Maio de 1967 (anterior à entrada
em vigor, mas posterior à publicação do Código Civil), que
estabelece o regime jurídico da caça, prevê nas bases XXXVIII
a XL o «arrendamento das coutadas de caça» ( 17 ). Não define
em que consiste semelhante direito, de que só se regulam
aspectos acessórios; mas já o designá-lo por arrendamento
significa uma tomada de posição quanto à sua fisionomia.
Nomeadamente, traz implícita a recepção do regime do arren-
damento no que respeita à oponibilidade a terceiros. Isso
basta para que o consideremos um direito real, como é um
direito real o arrendamento ( 18 ).
Mas, aceite embora esta tomada de posição quanto à
recepção do regime, deve-se aceitar a qualificação deste
direito como arrendamento? O problema não escapou ao
Parecer da Câmara Corporativa sobre a referida lei, que
teve como relator J. A. Manso-Preto. Expõem-se várias opi-
niões, aliás pró e contra, para se concluir ser «lícito falar
de arrendamento de uma reserva de caça, conquanto devam
ter-se sempre presentes as particularidades próprias» ( 10 ).
Não nos parece esta a melhor solução. O arrendamento
é o contrato pelo qual alguém faculta a outrem, mediante
uma renda, o gozo de coisa imóvel. Com a entrega, o loca-
dor demite-se ele próprio do gozo dessa coisa, que passa
para o poder material do locatário: ao ponto de no novo
código ter sido reconhecida justamente entre as obrigações
do locatário a de facultar ao locador o exame da coisa locada
(art. 1038.º, b) ).

( 17 ) A situação é regulamentada nos arts. 155.º a 159.º do


Decreto n.º 47 847, de 14 de Agosto de 1967.
( 18 ) Tomámos já posição pela natureza real do arrendamento
em Relações Reais, n.º 96. O novo Código em nada faz rever a
nossa posição.
( 10 ) N.º 57.

119
A situação é diferente no «arrendamento» das coutadas
de caça. A universalidade dos poderes de gozo do prédio
continua a pertencer ao titular da coutada, e o «arrendatá-
rio» tem somente um uso limitado, que se inscreve na cate-
goria doutrinária das servidões pessoais ( 20 ). Como se sabe,
a servidão pessoal foi banida como figura legal genérica,
mas o intérprete pode reconhecer manifestações dela nas
hipóteses específicas que a lei contemplar. Como toda a ser-
vidão, este «arrendamento» permite uma modalidade indi-
vidualizada de gozo, e não a universalidade do gozo que da
coisa se retira. Trata-se pois de um direito sui generis, e
consequentemente há já a criação de um novo direito real
após a proclamação do princípio do numerus clausus.
Mas a não se pensar assim, e a entender-se que a quali-
ficação legal como arrendamento deve ser aceite, mesmo
então as exigências do numerus clausus teriam sido afasta-
das, se este implicasse a limitação aos tipos previstos no
Código Civil. Na verdade, semelhante «arrendamento» não
caberia na figura do arrendamento rural, pois não tem fins
agrícolas, pecuários, ou florestais, nem se destina à instau-
ração de uma exploração regular (cfr. art. 1064.º). Nem
poderia caber nas restantes formas ·de arrendamento, pelo
menos porque todas c1as implicam a universalidade dos
poderes de gozo. Portanto, esta figura, cabendo embora no
conceito de arrendamento, não caberia cm nenhum dos tipos
específicos de arrendamento previstos na lei. Ora o adita-
mento de um novo tipo àqueles que estavam já reconheci-
dos na lei significa de qualquer maneira algo que não está
de acordo com a mencionada interpretação do nwnerus
clausus.

U•>) Encuntram·sc obscrvuc;õc11 muito interessantes sobre esta


categoria (embora ai1 nllo 11ub'i<.Tcvanirn1) cm Guilherme Moreirn, II,
10 e scgs.; Paulo Cunha, J,lçti1 1.'i1 212 e bt:Ji&S.: PI roa de Lima e Antu·
n~s Varda, l, 116. Cfr. tumbém o Ai:. do Sup, 'frlb. de Just. de 3-lll-67.
no Boi. Miu. Just., n:• 165, 339 l' l«.'lilll,

120
40. Qualifi~ de direitos como reais

1 - Menos grosseiro é outro entendimento, que tem a


sufragá-lo afirmações de autores de nomeada ( 21 ): o nume-
rus clausus significaria que só são reais os direitos que a
lei expressamente qualifica como tais.
Em sentido contrário se pronuncia porém a generali-
dade dos intérpretes, mesmo perante sistemas como o ale-
mão em que as várias modalidades de direitos subjectivos
foram demarcadas com muito mais precisão que na lei por-
tuguesa ( 22 ). E fá-lo correctamente, a nosso ver.
Com efeito, é necessário distinguir claramente a criação
de novas figuras de direito real, da qualificação como reais
de certas situações estabelecidas por lei.
Se vigora o princípio do numerus clausus, isso significa
que a lei se reservou o privilégio de prever, um por um, os
direitos reais admissíveis: nenhuma figura a que as partes
possam dar vida pode ser considerada real se não corres-
ponder a um modelo legal. Mas nisso se esgota todo o signi-
ficado do princípio, salvo expressa declaração legal. Com
efeito, a tarefa de qualificação não pertence à lei, mas ao
intérprete. Este é livre de integrar no conceito de direito
real situações que o legislador não qualificou expressamente
como tais, e que porventura não considerou sequer figuras
autónomas de direito subjectivo, mas a que atribuiu o regime
jurídico correspondente aos direitos reais.

II - Se é assim, em princípio, em qualquer ordem jurí-


dica, porque representa um mero corolário das regras sobre
repartição de competências entre legislador e intérprete, é-o
particularmente perante a lei portuguesa. Esta, antes do
novo Código Civil, raramente recorria ao conceito de direito

(2 1 ) Ainda que seja duvidoso que eles tenham tido sempre


consciência do problema. Estará nestas condições Orlando Gomes,
tomo li, n.º 348.
(2 2) Muito elucidativo von Tuhr, I, § 6.º, 1 (pág. 137).

121
,_ '~" ,,,"'l\t.~,,~ \U\U\
cxccpção o art. 21.º da Lei n.º 2030,
,~, .•, ..... \~,"~"'"t\C<" quulificava como real o direito de super-
,.,... .'\.).'"'à~ ~\ n\.l\·o código as referências a direitos reais
""" .~ ~.._'.-,·~~--~$<'. tnns é importante observar que directa-
"'-"'t~"-" ~';a s.c qualifica um direito como real: é sempre
,,-.,~· ·~ ;.:.'!\u indagação do intérprete para concluir que
~"'""""f:~~~..l s.ituação cai dentro da categoria «direito real».
•~"'· tt'1:~ f.1i1.·il que. em certos casos, seja esse trabalho, até
"\:~· ~ ~::hr por vezes numa qualificação implícita da
~.... , :-.i$:.l a sua exigência para demonstrar que esta não
~,:-· -~~ ;'tlI'3 si a qualificação como direitos reais dos tipos

\...~:.=.. não é a existência duma tipologia taxativa que


-~.;:~ °'ae qualifiquemos como direito real o aluguer, a
!.."t~.:::.i::,-a do fideicomissário ou a situação do beneficiário
~ i..=..i:::..!.Jno liberatório, por exemplo, não obstante o silên-
.::t: .:a :e!. O problema não depende da qualificação que
='~ :.-..! não sido adaptada por lei, mas do exame da regu-
• -e:: :.::.ção que foi estabelecida para cada caso.
C:::iduindo: a tipicidade taxativa não implica um mono-
~c.~.:., :egal na qualificação de direitos reais. O intérprete
;--...é:e ::i~!uir nesta categoria qualquer situação, desde que
::.:::.i et:~ntre os seus traços essenciais.

41. A cenumeração taxativa»

I - A afirmação de que o numerus clausus dos direi tos


·~. \ c:quívale a uma tipologia taxativa tem de vencer ainda
'".i'l~!"a\ dificuldades. Assim, houve autores que relacionaram
",, nu~rus clausus não com a tipicidade, mas com a enume-
'U,J:s",, E hrJjc, mesmo entre os que falam de tipicidade,

1-" 1 Ã\1'Ím, do art. 1287.º resulta a qualificação da propriedade


, /,~,.~, "'' dircítt1 real.

122
encontramos quem pense que ela significa que os direitos
reais estão taxativamente enumerados nos códigos ( 24 ).
De harmonia com semelhante maneira de ver, teríamos
de considerar supérflua toda a discussão sobre a natureza
real ou obrigacional do arrendamento, por exemplo. Do
mesmo modo, os direitos sobre coisas que nos surgem inte-
grados na regulamentação da família ou das sucessões nunca
poderiam ser considerados reais.
Na lei portuguesa, o problema merece ser discutido,
quer à luz do Código de Seabra, quer do Código actual -
apesar de, a bem dizer, não haver em qualquer deles uma
enumeração de direitos reais ( 25 ). Como veremos, podem
surgir problemas que se entrecruzam com a discussão deste
tema.

II - Começando pelo Código de 1867, vemos que aí a


categoria direito real foi substituída por um conceito omni-
compreensivo de propriedade; contrapõem-se à propriedade
perfeita as propriedades imperfeitas, que efectivamente se
enumeram (art. 2189.º). E daí terem alguns autores con-
cluído pelo carácter taxativo dessa enumeração ( 26 ).
A conclusão parece-nos desfocada. Por um lado, sabe-
mos que a existência de uma enumeração não leva a presu-
mir o carácter taxativo desta (supra, n.º 15). Por outro, aca-
bamos de ver que é necessário distinguir a criação de direitos
reais, que pertence à lei, da qualificação de direitos como
reais, que pertence ao intérprete. Nada exclui que outra
situação, como a posse, por exemplo, seja qualificada como

( 24 ) Barassi, pág. 51, nota 7.


( 25 ) Isto deriva de a lei portuguesa fazer um recurso muito
limitado ao conceito de direito real.
( 26 ) Cunha Gonçalves, Da Propriedade, pág. 62; Pires de Lima
e Antunes Varela, Noções, II, pág. 69, nota; Rev. Leg. Jur., ano 58.º,
pág. 188.

123
direi to real ( 27 ) : nada permite afirmar à partida que a lei
que recorre a uma enumeração se reserva o privilégio de
qualificar os direitos reais. E efectivamente o que os men-
cionados autores tinham em vista era a afirmação do carác-
ter taxativo .da tipologia dos direitos reais, apesar de ·fala-
rem na enumeração destes.
O próprio Cunha Gonçalves tentou atribuir um novo
entendimento à afirmação do carácter taxativo da enume-
ração legal, decerto porque sentiu que com ela se ultrapas-
sava muito o problema da admissibilidade da criação de
direitos reais por vontade exclusiva das partes, que era o
que afinal interessava. Ensaiou por isso uma espécie de
interpretação autêntica: «Quis significar que só são tais os
direitos a que a lei atribui as características doutrinais e
históricas do jus in re ou dos jura in re aliena» {28 ).
Nem assim mitigada se pode extrair da afirmação a
menor utilidade. Assente que nada interessa saber se, na
intenção do legislador de 1867, a enumeração seria ou não
taxativa, segue-se que ficamos colocados perante o seguinte
dilema:
- ou se quer dizer que o legislador se reservou o pri-
vilégio da qualificação dos direitos reais, o que na lei por-
tuguesa nada permite afirmar;
- ou se quer dizer que só são reais os direitos regula-
dos por lei em termos reais, .estejam ou não compreendidos
no art. 2189.º; mas isso significa somente que é taxativa a
tipicidade e não que o é a enumeração do art. 2189.º, o que
é o inverso da afirmação inicial. Deste preceito não resulta
sequer uma presunção de não qualificação como reais de

( 27 ) E até possivelmente propriedade imperfeita. Mas desinte-


ressamo-nos desta indagação, que nenhuma relevância apresenta no
que respeita à caracterização da tipologia dos direitos reais.
(21!) Tratado, vol. XI, pág. 147.

124
figuras duvidosas, como a posse, o arrendamento, o fidei-
comisso, o dote, etc. ( 29).
Tudo somado, parece que podemos afastar este enten-
dimento da tipicidade, que a confundiria com a taxatividade
das enumerações constantes da lei.

III-Perante o novo código, o problema tem de ser


encarado de maneira diferente. Não há qualificação nem
enumeração de direitos reais; mas surge um livro m, dedi-
cado ao Direito das Coisas, em que se regulam a posse, a
propriedade, o usufruto, uso e habitação, a enfiteuse, a
superfície e a servidão. Não se poderá entender que há aqui
uma enumeração implícita, e concluir que ela é taxativa?
Esta posição seria arbitrária. Só poderia fundar-se no
próprio art. 2306.º, que estabelece o numerus clausus. Mas
este fala muito claramente numa limitação aos casos pre-
vistos na lei, e não aos casos «enumerados na lei», ou «enu-
merados neste título». E que há mais direitos reais além
destes resulta, quanto mais não seja, da referência legal aos
direitos reais de garantia (art. 1539.º, 1.).
Concluímos pois que a tipologia taxativa dos direitos
reais não está ligada a uma enumeração taxativa. O que con-
firma o que atrás dissemos: a enumeração é um método
auxiliar da tipificação, mas nada traz de essencial a esta.

42. 'lipologias menores no seio dos direitos reais

1- Surgem porém hipóteses de fronteira em que as


dificuldades são particularmente grandes. Vejamos a que
conclusão podemos chegar, utilizando os princípios já assen-

( 29 ) Uma análise semelhante, tendo em vista a legitimidade do


alargamento da enumeração dos direitos reais, constante do art. 949.º
do mesmo Código, foi empreendida por L. Pinto Coelho, Lições,
págs. 89-90. ,Este Professor, porém, não encarou a questão pelo ponto
de vista do numerus clausus.

125
tt's Stlht·cn fixação do tipo do direito real e sobre a natu-
t'<.'1.U tkslu tipologia.
E1n certos casos surgem-nos aqui e além, dispersas pela
lei. previsões de situações de natureza real que se compreen-
dt•1n dentro de um conceito comum. Em casos dessa ordem
hn tipologias particulares, ou menores, de direitos reais,
l'tn relação às quais voltará a perguntar-se se são taxativas,
c.•xcmplificativas ou dclimitativas.
Para colocarmos devidamente o problema, temos de
fnzcr un1a coordenação, um tanto complexa embora, com
vúrios pontos já anteriormente focados.

II - Se há uma tipologia menor exemplificativa, isso


significa, como vimos atrás, que a analogia é livre: pode-
mos portanto, a partir dos casos previstos, chegar, mesmo
por analogia juris, a figuras análogas a que devamos atri·
buir também natureza real. Mas por outro lado, como rege
o princípio da tipicidade, semelhante recurso pressupõe
resolvido afirmativamente o problema de saber se há um
tipo compreensivo, de que os tipos singulares não serão mais
que manifestações: se houvesse unicamente o conceito que
os tipos singulares incompletamente preenchem, este não
seria directamente utilizável na criação concreta de direi·
tos reais.
Esta descrição permite-nos concluir que a caracteriza-
ção de certa série ou tipologia menor de direitos reais como
exemplificativa está associada à dos vários tipos singulares
como subtipos ( 30 ), em relação a um tipo geral que especi-
ficam.
Parece-nos inteiramente segura a afirmação de que tam-
bém esta manifestação de tipicidade se produz na regula·
mcntação vigente do Direito das Coisas.
O arrendamento, como locação de coisa imóvel, é um
tipo compreensivo, a que se pode recorrer directamente:

(IU) Cfr. St1pr<1 1 D." 14.

126
isso resulta do art. 1086.º, que permite o arrendamento com
qualquer fim, desde que lícito. Todavia, a lei especificou
vários subtipos de arrendamento, desde que dirigidos às
finalidades especiais que se têm em vista. Temos assim o
arrendamento para habitação, o arrendamento comercial ou
industrial, o arrendamento rural, etc.
O usufruto é uma figura geral; mas a lei especifica o
usufruto de matas e árvores de corte, o usufruto de univer-
salidades de animais, o usufruto de concessão mineira ...
Outro exemplo muito claro surge-nos a propósito da
servidão. Como dissemos, as servidões não são, hoje em dia,
típicas. Há um tipo maleável de servidão, susceptível de
tomar conteúdos muito variados. No direito romano pré-
-justinianeu havia, pelo contrário, modalidades típicas de
servidão predial ( 81 ); mas mesmo então elas não constituíam
subtipos, pois faltava o tipo genérico, positivamente admi-
tido, da servidão. Esta representava um mero conceito, cla-
ramente mais amplo que os tipos em que se concretizava.
Não sendo hoje as servidões típicas, não havendo pois
uma tipologia taxativa destas, nem por isso devemos con-
cluir que esta figura não é sensível ao fenómeno subtipo.
A lei, por necessidades particulares, especificou várias servi-
dões em matéria de águas-presa, aqueduto, escoamento ...
Dá-se assim um passo mais no caminho do concreto, que
permite uma regulamentação mais adequada destas situa-
ções.

III - Se a tipologia menor em causa for taxativa, tere-


mos como consequência que não é admitida qualquer espé-
cie de analogia. Então haverá exclusivamente uma plurali-
dade de tipos que acrescem em igualdade de condições aos
outros tipos de direitos reais existentes: mas não haverá
um tipo-base que os englobe a todos e de que representem

( 31 ) Eram as quatro figuras de via, iter, actus e aquaeductus:


Raul Ventura, Direito das Coisas, 264.

127
especificações, mas um mero conceito que os uni.fica dentro
do círculo mais vasto do direito real. Assim, pode dizer-se
que a superfície e o arrendamento das coutadas de caça
representam modalidades de servidão pessoal: já falámos
nesta figura, supra, n.º 39, II. A ser verdade, teríamos que a
tipologia das servidões pessoais seria taxativa, pois nenhuma
utilização directa do conceito se poderia fazer por ser vedada
toda a forma de analogia a partir dos tipos existentes.

IV - Poderá dar-se ainda a hipótese de uma destas tipo-


logias menores ser delimitativa? Como dissemos atrás, neste
caso só é permitida a analogia legis, a analogia a partir das
figuras previstas, mas não a analogia juris. Poderemos pois,
a partir da indicação de uma série de tipos que especificam
um conceito (mas a que não corresponde um tipo com-
preensivo), atribuir a característica de direito real a novas
figuras, análogas às previstas?
Não podemos. Como verificámos já, o numerus clausus
impõe que o tipo esteja previsto na lei. Se afirmássemos
agora que podemos chegar a um tipo análogo ao previsto,
seríamos contraditórios, pois como também vimos o tipo
análogo não pode ser considerado um tipo previsto, e é por
isso repelido pelo princípio do numerus clausus. Por outro
lado, também se não pode recorrer directamente ao con-
ceito que esses tipos especificam, por definição, pois de
outro modo teríamos uma tipologia exemplificativa.
Em conclusão: nem nas séries mais deli mi ta das que
\Urj3.!'"11 no âmbito dos direitos reais podemos encontrar
uma tipologia delimitativa. Ou há um tipo compreensivo,
e então a tipologia é exemplificativa, ou não o há, e então
r.)p:rincípío do numerus clausus impede toda a extensão ana-
j'~. Se1sas hipóteses a tipologia será pois taxativa.

V -vmvém não nos limitarmos a esta esquematização


-::i!- ~º0:e;;e-;, e ílu~trar com um exemplo as dificuldades que
~/~:. :ev·antar-~. Com efeito, se bem que o novo código
'.~-#.r.4 t:rc.dt, acuidade a muitas dúvidas desta índole, não

128
__________________ _....'"· .,,_

matou o problema: há aqui uma fronteira do princípio da


tipicidade dos direitos reais que é necessário traçar com
nitidez, sem o que os nossos instrumentos de análise não
estariam completos.
Vamos apresentar o exemplo dos ónus reais, que mos-
tra a actualidade da discussão. Dada a importância da figura,
procuremos dar primeiro a respectiva noção, tendo em conta
as diversas hipóteses do nosso direito positivo.

43. O ónus real



1 - E muito diversa, de país para país, a maneira como
a lei trata os ónus reais. Ora os assume num tipo compreen-
sivo, como os Reallasten do direito alemão, ora permite gene-
ricamente por outras formas a sua constituição, como no
direito espanhol (em que se não encontra o tipo compreen-
sivo), ora nada diz sobre a figura, como no direito italiano.
Mesmo aí a jurisprudência, a partir de previsões específi-
cas, admite a livre criação de ónus reais.
Também se encontrarão no nosso sistema positivo hipó-
teses ·de ónus real? Procurando uma caracterização muito
genérica que nos oriente nesta busca (sob reserva de ulte-
riores precisões), vamos averiguar se se encontram direi tos
reais cujo conteúdo essencial seja constituído pelo poder
de receber prestações positivas, a cargo de quem quer que
seja o titular de um direito de gozo sobre uma coisa.
Já tivemos noutro lugar oportunidade de examinar este
problema, e chegámos a uma resposta afirmativa ( 32 ). Dis-

( 32) Relações Reais, 225 e segs. Também admite a existência


da figura Cunha Gonçalves, Propriedade, pág. 63. Os exemplos que
apresenta, tirados da regulamentação corporativa, são a obrigação,
imposta aos proprietários de prédios rústicos, de contribuírem com
prestações proporcionais aos seus rendimentos colectáveis para a sus-
tentação d'os Grémios da Lavoura <: das Casas do Povo, bem como
a obrigação de sustentarem os desempregados. É porém duvidoso
que nestes casos haja ónus reais.

129
9
semos até que legislação extravag~nte viera dar novo alento
à figura do ónus real: assim nos surgia o ónus. da amorti-
zação de empréstimos concedidos pela Junta de Coloniza-
ção ln terna.
Neste caso temos um ónus real simples: a figura de
direito é autónoma, não é mero elemento de uma situação
complexa. Pelo contrário, é muito frequente surgirem ónus
reais imersos na regulamentação de direitos reais c9mplexos,
como o foro, o cânon superficiário, o quinhão, etc.

II - Surge o novo código, e os ónus reais que fazem


parte de direitos complexos mantêm-se, na mediàa em que
esses direitos se mantêm. Mas poderemos dizer o mesmo
dos ónus reais simples, que são os que mais interesse apre-
sentam? Poderia suscitar-se a dúvida pelo facto de o censo,
ónus real simples típico, ter sido abolido ( 33 ). Mas um exame
atento demonstra-nos que outras situações da mesma natu-
reza são recebidas de novo. Tudo se reduz a uma forma de
transferência: suprimem-se figuras antigas que deixaram de
ter justificação, mas utiliza-se a categoria técnica para a
satisfação de novas necessidades. Desta situação se faz eco
o Código do Registo Prediál, ao aditar ao elenco dos factos
sujeitos a registo, constante do n.º 1 do art. 2.º, várias rea-
lidades que só podem ser explicadas através da noção de
ónus real.

III - É elucidativo o que se passa com o apanágio do


cônjuge sobrevivo. Este direito do cônjuge supérstite a ser
alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo fale-
cido, regulado nos arts. 1231.º e 1232.º do Código antigo,
sempre se revelara bastante misterioso, e podia discutir-se

( a3) Fora do Código, restaria em todo o caso ao menos o ónus


da amortização de empréstimos concedidos pela Junta dê Coloniza-
ção Interna, que é um ónus real simples e que, como é natural em
nada foi atingido pela alteração da lei civil. '

130
se dele emanaria um encargo que atingisse os bens em ter-
mos reais.
Esta foi a solução claramente acolhida no art. 2018.º
do novo Código. Esclarece-se aí que são obrigados à pres-
.
tação de alimentos os herdeiros ou legatários a quem os
bens houverem cabido. Mais ainda: esclarece-se que o apa-
nágio deve ser registado, quando onere coisas imóveis, ou
coisas mqveis sujeitas a registo. Consequentemente, o art. 2.0 ,
1., s), do Código do Registo Predial sujeita a registo «a cons-
tituição do apanágio e as alterações do seu título constitu-
tivo».
Temds pois o direito a prestações alimentares onerando
certos bens, evidentemente com inerência. A variação even-
tual dessas prestações em nada prejudica o conceito de ónus
real, como teremos ocasião de melhor verificar adiante; aliás,
a lei expressamente prevê a registabilidade das alterações
ao título constitutivo. No seio do Direito da Família nasce
pois, ou pelo menos confirma-se, um ónus real.

IV - É também muito interessante o caso previsto no


art. 959.º do Código Civil: o doador pode reservar para si
o direito a certa quantia sobre os bens doados. Esse direito
não se transmite aos herdeiros do doador e, quando respeite
a imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, carece igualmente
de ser registado (n.º 2).
Desta previsão extraem-se vários ensinamentos. Vemos
que a reserva dessa quantia tanto se pode referir a presta-
ções periódicas como a uma prestação única. Tanto pode o
doador reservar-se o direito de receber, como uma espécie
de renda vitalícia, mas de natureza real, prestações que se
renovam· periodicamente, como reservar-se o direito, mesmo
eventual, a uma prestação única que fica já definitivamente
fixada. Isso nos leva a concluir que não é essencial à figura
do ónus real a característica de versar sobre prestações perió-
·-
dicas, ao contrário do que afirma a maioria dos autores lati-
nos; nem sequer sobre prestações repetidas, como aconte-

131
cerá no direito alemão, por força do § 1105, B. G. B. (3-');
antes, o ónus pode referir-se a uma prestação única. Ainda
então se suscitam todos os problemas característicos desta
figura, como os da integração do carácter real e da estru-
tura obrigacional, e os da definição do regime da presta-
ção, uma vez vencida ( 35 }.

V- Significará isto que aceitamos uma definição de


um tribunal italiano, segundo a qual o ónus real é «um
encargo que atinge o prédio de forma que o proprietário,
ou de qualquer modo o titular de um direito real sobre
ele, está vinculado, pelo mero facto da relação em que se
encontra perante o prédio, a determinada prestação a favor
daquele ~m cujo benefício o ónus é constituído» ( 36 }?
Também esta fórmula não pode ser aceite porque é
demasiado ampla. Assim, não esclarece que obrigado não
pode ser o titular de todo e qualquer direito real, mas
somente o de um direito real de gozo.
Mais importante ainda é o facto de ela englobar todos
os casos em que alguém está vinculado propter rem. E toda-
via, é fácil distinguir o ónus real de outras situações de
natureza real, nomeadamente das obrigações positivas prop-
ter rem. Nestas últimas, surge-nos uma obrigação que está
funcionalmente ligada ao conteúdo de um direito real.

( u) Cfr. por exemplo Baur, § 35, 1. Esta orientação estará sub-


jacente à exposição de Cunha Gonçalves, referida em nota anterior.
(a:;) Esta posição não impede que reconheçamos que muitos
dos problemas característicos dos ónus reais -nos surgem quando
estes têm por conteúdo prestações periódicas. Para atendermos a
esses problemas basta que demarquemos uma modalidade de ónus
real cm que aquelas sejam critério distintivo. Mas ao tipo de ónus
real cm si não pertence a periodicidade como característica essencial.
( :u:) Sentença do Tribunal de Roma de 26 de Agosto de 1946,
referida com (relativo) aplauso por Ceccopieri Maruffi, 208. A posi-
çúo dc1'le autor não tem para nós interesse, pois assenta numa arbi-
trária redução do ónus real ao que nós denominamos servidões recí-
proui~. e que ele (de harmonia aliás com parte da doutrina italiana)
c.:omidcra fora do tipo da servidão.

132
A situação é particularmente nítida nas relações jurídicas
reais, em que a prestação positiva tem por função solucio-
nar o conflito dos direitos reais em presença. Pelo contrá-
rio, no ónus real a ligação ao direito real assim onerado
é exterior à função deste direito, e apenas garante a oponi-
bilidade a todo o futuro adquirente ( 3 i).

VI - A fórmula acima mencionada padece de outro


vício essencial: não especifica qual o conteúdo da prestação
a que o ónus se refere. Vimos já que essa prestação não
necessita de ser periódica. Acrescentemos que tem sempre
de ser p~sitiva.
Mas podemos ir ainda mais longe. Do direito português
resulta que, ao contrário do que acontece em ordens jurí-
dicas alheias ( 38 ), o ónus real não pode ter por objecto
toda e qualquer espécie de prestações positivas. Todos os
exemplos que a lei nos oferece referem-se a prestações de
dare, e não de facere; têm em vista uma entrega, e não prõ-
priamente uma actividade, o que seria anómalo perante o
direito português ( 39 ).
Esta última restrição dá-nos a noção de ónus real: é o
direito real cujo conteúdo essencial é o poder de exigir a
entrega de coisas ou dinheiro a todo o titular de um direito
real de gozo sobre determinada coisa.

(37) Neste sentido, Balbi, pág. 22: no ónus real o comporta-


mento deyido por quem se encontra em certa posição «não é fun-
cional em relação ao gozo da coisa».
( 3s) Como na alemã, em que a obrigação da conservação de
um edifício, por exemplo, pode dar origem a um ónus real: cfr. Wolff-
-Raiser, § 127, 1.
{ 39 ) - Nada impede porém que se constitua uma relação propter
rem com este conteúdo, caso se reúnam os outros requisitos pró-
prios desta figura.

133
44. Cara.cte~ das tipologias menores como taxa-
tivas ou exemplificativas

1- Como dissemos, a figura do ónus real é importante,


porque ajuda a compreender o problema em discussão.
Há na lei uma tipologia de ónus reais: vários tipos,
desde o foro ao ónus emergente do apanágio, especificam
o conceito de ónus real. E são verdadeiros tipos, e não diver-
sas modalidades de constituição de uma figura única, hipó-
tese que não nos interessaria neste lugar, pois apresentam
desde logo conteúdos distintos que demonstram que se está
ainda aqui no campo da especificação do conceito.

I I - Sendo assim, devemos perguntar se essa tipologia


de ónus reais é taxativa ou exemplificativa. Se for exempli-
ficativa, podem as partes criar novas figuras que se inte-
gram no conceito de ónus real, pois haverá um tipo com-
preensivo, ou pelo menos poderá reconhecer-se em figuras
de criação legal cuja realidade não está prevista na lei, um
novo ónus real: as várias figuras de ónus real seriam ver-
dadeiros subtipos. Se for taxativa, nenhum ónus real poderá
ser admitido, além dos previstos na lei.

III -Vamos dar dois exemplos de situações desta


ordem, pelos quais se poderá aquilatar do interesse do pro-
blema. O art. 1554.º dispõe que «pela constituição da ser-
vidão de passagem é devida a indemnização correspondente
ao prejuízo sofrido». Sendo a Jci a admitir esta indemniza-
ção, não se pode entender que ela tem natureza de ónus
real, e consequentemente está a cargo de quem quer que
adquira o prédio encravado? A entender-se assim,. do con-
flito <ll• vizinhança susc:itado pela existência do prédio encra-
vado resultaria a constituição de dois direitos reais, uma
scrvitlão e um ónus real. E as parles poderiam convencio-
nar que t..•stt: ónus rt'al se traduzisse cm pr<:staçõcs periódi-
,·ns, o qm.· ll'ria im'uncras vantagl'ns, nomcadamcnlc a de

134
adequar automàticamente o montante da indemnização à
duração efectiva da servidão.
O outro exemplo surge em matéria de acessão. Nos
casos normais, em consequência da acessão o titular de uma
coisa vê o objecto do seu direito ampliado, mas em contra-
partida é obrigado a indemnizar aquele cujo direito se extin-
guiu. Não se pode considerar que esse dever de indemnizar
que a lei refere origina, não uma mera obrigação, mas um
ónus real? Esta posição teria a vantagem de tornar mais
sólida a posição do que se viu despojado do seu direito
real em consequência da acessão, pois não teria de ficar
sujeito ~s contingências patrimoniais do beneficiário da
acessão, e antes poderia opor sempre o seu direito a uma
indemnização a quem quer que adquirisse a titularidade
da coisa acrescida.

IV- Devemos liminarmente excluir que os ónus reais


se insiram numa tipologia exemplificativa. Admitir a gené-
rica possibilidade ·da constituição de direitos reais que con-
sistissem no direito de exigir a entrega de coisas ou dinheiro
ao titular de um direito real de gozo - como a proprie-
dade - o mesmo seria que destruir as preocupações que
estão na base do princípio do numerus clausus. A lei não
apresenta um tipo que esteja subjacente a todas aquelas
manifestações, e que apenas por insuficiência técnica tenha
sido previsto aqui e além, a propósito de casos particulares,
e não em geral: limita claramente as manifestações admissí-
veis ( 40 ). A insusccptibilidade de sujeição a registo é apenas
um indício mais deste fenómeno.

( 40) Não se pode pensar que a esse efeito se poderia chegar


restringiudo o conceito de ónus real, de modo a fazê-lo englobar
apcnus os casos cm que há uma obrigação de entrega que tem na
sua ~ausa uma vantagem efectiva do titular do direito real de gozo,
considerado nessa qualidade. Além de semelhante conceito não abran-
~~r casos aut~nHcos de ónus reais, como o apanágio do cônjuge viúvo,
ma atingir f1gurí.lS como a do empréstimo contraido para melhora-
mento da coisa, em que é daro que a lei não outorga automàtica-
mente uma protccção de natureza real ao credor.

135
V - Se a tipologia dos ónus reais não é exemplificativa,
é necessàriamente taxativa: tertius non datur, pois vimos
que está excluída a verificação duma tipologia delimitativa
mesmo nestas tipologias menores de direitos reais.
Façamos outra aplicação prática: o art. 44.º do Decreto
n.º 20 985, de 7 de Março de 1932, impõe aos titulares de
imóveis classificados como monumentos nacionais a reali-
zação das obras de conservação que se entenderem neces-
sárias: se as não fizerem, fá-las-á o Estado, correndo o seu
custeio por conta do proprietário ou usufrutuário. Mas acres-
centa o § 2.º: «Se porventura se provar que o proprietário
ou usufrutuário não possui meios para o pagamento de tais
obras, poderá o Estado excepcionalmente isentá-lo desse
pagamento. Nesta hipótese ficará onerada a propriedade em
favor
f
do Estado na proporção da despesa feita».
Haverá aqui um ónus real? Só se um exame do regime
desta situação nos permitir atribuir-lhe natureza real pode-
remos chegar a uma resposta afirmativa. Seria ilegítimo
qualificar a situação como de natureza real na base da ana-
logia, por exemplo, com o direito do doador que reservou
certa quantia sobre os bens doados. Isso seria raciocinar
nos moldes de uma tipologia delimitativa, o que contraria-
ria o princípio do numerus clausus.
Confrontando esta conclusão com o que se afirma em
Itália, onde a situação legal é muito semelhante à nossa,
devemos dizer que nos afastamos da jurisprudência, mas
nos aproximamos da doutrina. Informa Mandrioli que a
jurisprudência italiana tende a admitir a livre criação de
ónus reais, embora no direito positivo falte a «disciplina
típica» ( 41 ). A doutrina tende para conclusão diversa, e são
elucidativas as palavras de Messineo: «O problema, no que
respeita ao ónus real, põe-se em termos diversos dos da ser-
vidão; o particular não pode criar ónus reais, porque falta
a admissão de uma categoria geral formal, como a que vem

(0 ) N.º 7.

136
---------------~~----·-·- - - -

delineada no art. 1027.º. A servidão é uma categoria geral


atípica, que consente a admissão de figuras inominadas ... ;
o ónus real, como figura típica, só pode ter entrada quando
uma norma jurídica o estabelecer, como recentemente acon-
teceu mais de uma vez» ( 42).

45. 'lipologia menor e analogia no regime

1 - Não podemos porém supor que, a concluir-se por


uma tipicidade taxativa, todos os problemas ficam resolvi-
dos. O mesmo exemplo do ónus real nos demonstra que as
dificuldades continuam.
Verificamos que tem de haver um tipo normativamente
erigido para que se admita um ónus real. Exclui-se pois a
elaboração pelas partes de novas figuras de ónus reais. Mas
que pensar das figuras legais? Com efeito, nos dois exem-
plos que indicámos atrás, é a lei que estabelece que a ser-
vidão de trânsito dá origem a indemnização (art. 1554.º),
e que a aquisição por acessão impõe aqui e além o dever
de indemnizar ( cfr. os vários casos referidos nos arts. 1333.º
e segs.). Não significa isto que tais casos vêm afinal previs-
tos por lei, e que portanto há ainda aqui tipos de ónus reais?

II - Para responder, teremos de lançar mão dos princí-


pios que anteriormente ficaram expostos, sobre a configu-
ração dos tipos de direitos reais. Dissemos que o tipo é a
descrição fundamental de determinada situação a que a lei
atribui um regime que, mesmo muito sumàriamente traçado,
possa todavia qualificar-se como real {43 ).

('•:?) Manuale, § 92, 4. Os chamados ónus reais convencionais


só teriam eficácia obrigacional. E isto muito embora perante as nor-
mas registais italianas seja permitida a «transcrição» das cláusulas
constitutivas (Manuale, § 92, 5.): a transcrição não pode transformar
em real um direito pessoal.
(o) Supra, n.º 35.

137
Noa ca~os em anáJJse, a ffgura consta da lei, senão o
;>rCJblema nem 1c colocava. Mas pode lsuaJmcnte dJzer-se
que há um reaJmc real? O siJóndo da Jci sobre este ponto
1terá definitivo?
Encontrumo!f de novo um problema de analoaia, mas
dfforc:ntc daquclc!f que rc~oJvcmos anteriormente. Vimos que
nllo t•ra po!fMf vcJ a analogia para fo7.cr cn trar nas descrições
fundnmcntaht de direitos reais novas situações al~m das pre-
vhtta~ (•~ ); mn!i vimos tnmhém que não havia nenhuma proi·
hlçno gcrul de analogia. Pergunta-se agora se à analogia se
pode recorrer para concluir que o regime real fixado para
um ca~o é aplicável cm ca1to análogo.

111- Em geral, a rc~posta não pode ser negativa.


O rcslmc de uma dada figura, que poderá ser quaJifi.
cado de real, resulta da conjugação de várias disposições,
às ve1.es poucas, às vezes muito numerosas. g um exame ou
uma valoração de conjunto que nos permite reconhecer em
dada situação a natureza real. Ora, no preenchimento das dls-
posiçcic~ singulares que fixam o regime, pode haver recurso
à annlogia, como C"ÍCctivamente sempre se tem entendido.
Aufm, no domínio do código anterior nada impediria a uti-
Hzaçllo de um argumento de analogia para determinar se o
rt•tcnlor poderia exigir a entrega da coisa no caso de ela
ter saf do do seu poder em consequôncia de subtracção reali-
zada por· um terceiro.
O que não poderia acontecer seria a transposição em
bloco, com fundamento cm consJderações de analogia, de
todo um regime real num caso cm que a lei não determi·
na~sc qual o regime de determinada figura que previsse.
rsso equivaleria a atribuir natureza real a uma situação,
pn·víslí.t embora, mas não como situação real. O art. 1306.º,
tipcsar de uma certa distorção na apresentação do princípio,
suporta bem esta conclusão: as situações reais devem ser

-----
( '') Supra, n." 37.

138
previstas como reais. Não pode respeitar-se o princípio da
tipicidade admitindo que justamente o carácter real seja
lacunoso.

IV -A esta luz, a solução dos problemas postos tor-


na-se possível. No que respeita à acessão o problema é rela-
tivamente fácil. Não se encontra na lei qualquer vestígio de
um regime real; e antes cm vários pontos nós encontramos
indfclos de que a Jci vê a situação do que fica vinculado a
pagar como meramente obrigacional. Portanto, mesmo que
não houvesse esta restrição especial da analogia que é repre-
sentada pelo princípio do numerus clausus, já nos falhavam
as bases para a aplicação do raciocínio analógico pela mera
força da orientação geral da lei. Vamos por isso deixar este
exemplo de parte.
Talvez devêssemos chegar a conclusão idêntica perante
o art. 1554.º. Ao dizer que «pela constituição da servidão
de passagem é devida a indemnização correspondente ao
prejuízo sofrido», a lei aproxima-se do capítulo da res-
ponsabilidade civil, o que indiciará que também aqui nos
encontramos perante uma mera obrigação de indemnizar,
da natureza da que vem regulada nos arts. 562.º e segs. Mas
mesmo que este indício não seja bastante, a conclusão não
pode ser outra. Não se pode procurar por analogia aplicar
cm bloco o regime de qualquer ónus real, pois isso seria
considerar como real um caso em que falta a atribuição
legal de natureza real: e essa omissão não pode ser preen-
chida por analogia.

V -A terminar, uma última observação. Esclareçamos


por que dissemos há pouco que havia uma certa distorção
no art. 1306.0 • :e. que este afirma que não é permitida a cons-
tituição, com cardcter real ... Parece que é somente um pro-
blema de criação de direitos reais pelas partes que se con-
sidera. Mas a fórmula é errónea.
Por um lado, o que está em causa não é propriamente
a constituição de direitos reais: não é essa que é admitida

139
só nos casos previstos na lei. Os factos constitutivos de
direitos reais, como teremos ocasião de comprovar mais
tarde, não são em regra típicos. O que se quer dizer é que
a criação concreta de direi tos reais pelos particulares tem
de ser precedida pela criação abstracta.
Mas nem assim a fórmula ficaria perfeita. Rigorosa-
mente, a regra terá de respeitar, não só aos direitos que
têm na sua origem um negócio jurídico, mas ainda aos direi-
tos de origem legal: quer-se dizer também que só há direito
real quando a lei atribuir essa natureza a uma situação, não
se podendo recorrer a considerações de analogia para atri-
buir um regime real a uma situação que a lei prevê, mas
a que não atribui esse regime.

VI - Com tudo isto, temos já um bom avanço no cami-


nho de uma fixação mais perfeita do princípio da tipicidade
dos direitos reais. Mas não vale a pena procurar condensar
desde já os nossos resultados numa fórmula acabada, pois
outros aspectos igualmente importantes surgirão com as
investigações subsequentes. Continuemos pois a nossa aná-
lise noutra direcção.

SECÇÃO li

LIMITES DO ARTIGO 1306.º, 1.

46. Posição do problema

I - Sabemos já que o art. 1306.º, 1., impõe uma tipolo-


gia taxativa dos direitos reais. Antes porém de prosseguir
na análise dos muitos problemas que esta tipologia sus-
cita, nomeadamente no que respeita à determinação do seu
objecto e conteúdo, importa fixar o âmbito de aplicação do
preceito em causa. Porque esse âmbito condiciona a efectiva
vigência do princípio.

140
Toda a lei depara com limites, que denominaremos
implícitos ou intrínsecos, na sua aplicação. Podem ser das
mais variadas ordens. Interessam-nos muito particularmente
os limites temporais, locais, pessoais e internacionais da
aplicação da lei porque, como veremos, todos eles têm rele-
vância para a delimitação da vigência do princípio da tipi-
cidade taxativa dos direitos reais. Que haja ou não outros
limites que se possam apontar, é-nos indiferente.
Comecemos por examinar os limites temporais, que dão
origem aos chamados conflitos intertemporais de leis.

47. Limites t.emporais

1 - A revogação de uma lei não pode ser entendida


como se representasse o apagamento completo desta, e con-
sequentemente a extinção ou mudança radical das formas
de vida em que se concretizou. Na medida em que vigora
o princípio da não retroactividade, a lei antiga como que se
prolonga nas situações jurídicas constituídas à sua sombra.
Justamente a lei civil é dominada, como se sabe, pelo
princípio da não retroactividade. Somos pois impelidos a
examinar o problema desta espécie de subsistência do direito
anterior após a entrada em vigor do novo código para
podermos demarcar os limites temporais da nova lei, e
apreender o sentido que possam ter para o princípio da
tipicidade.

II - Se a lei antiga previa um direito real que a lei


nova não admite, teremos que, em princípio, subsistem as
situações concretas constituídas no domínio da lei antiga.
Mas este princípio não é absoluto, e antes encontramos duas
ordens de restrições. :e. necessário:

- que tais situações não tenham sido abolidas;


- que elas não tenham correspondente na nova lei.

141
. A primeira .rest~ição impõe-se por si, pois uma ábolição
atmge as próprias situações concretas.
Assim se passou com o censo, por força do art. 1518.º.
A lei não se contentou com proibir o censo, foi até à sua
abolição, neste caso mediante a redução dos censos existen-
tes à enfiteuse (o que aliás nos parece inconveniente num
ponto de vista de política legislativa)( 4 r.). Cerceou-se pois
toda a possibilidade de manutenção de uma concreta situa-
ção jurídica de censo ou, mais prudentemente, daqueles
censos que se baseavam na lei civil.

III-Dissemos ainda que é necessário, para que se dê


a subsistência da situação jurídica concreta constituída no
domínio da antiga lei, que ela não tenha correspondente na
lei nova. Compreender-se-á por que o dizemos: é que é à lei
nova, e não à lei antiga, que se deve recorrer para a regu-
lamentação do conteúdo das situações que tenham corres-
pondente no novo Código. E. o que resulta agora expressa-
mente do art. 12.º, 2.: quando a lei dispuser directamente
sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo
dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei
abrange as próprias relações já constituídas que subsistam
à data da sua entrada em vigor.
Esta previsão obedeceu ao propósito de abranger situa-
ções jurídicas duradouras, e todos os direitos reais cabem
nesta categoria. Podem durar pouco ou ser perpétuos, podem
fortalecer-se com o exercício ou pelo contrário extinguir-se
em consequência dele, como a ·hipoteca; mas ern todos os
casos os direitos reais são situações duradouras, e portanto,
duma forma ou doutra, todos são atingidos pela previsão
em causa, desde que tenham correspondente na nova lei.
Devemos observar até que com esta base poderíamos
ir muito longe. Não só as meras modificações legais do con-

( "s) Tivemos ocasião de o sustentar em «Direitos Perpétuos


Destituldos de Função Social•, Observações, págs. 9-10.

142
teúdo de direitos reais já existentes são de aplicação ime-
diata como até alterações muito mais radicais, que podem
levar à mudança da natureza de dada situação, caem no
âmbito do art. 12.º. Não encontramos motivos para excep-
tuar casos em que uma situação passa a ter natureza real,
ou em que deixou de ter, pelo contrário, a natureza real que
lhe era atribuída pela antiga lei. Também aqui, parece que
a lei pode dispor directamente sobre o conteúdo de certa
situação, abstraindo dos factos que lhe deram origem. Assim,
se se entender que no novo código o regime do aluguer
revela uma natureza real, ao contrário do que se passava na
lei antiga, nem por isso esse regime deixa de se aplicar aos
contratos de aluguer existentes à data da entrad.a em vigor
do novo código. Ainda neste caso o instituto tem um corres-
pondente na nova lei.
Da mesma forma, é possível que a lei nova não trate
como real uma situação que o era no domínio da lei antiga.
Também aqui é a lei nova que se aplica, sempre sob reserva
de que a figura por ela prevista se possa considerar corres-
pondente à da lei antiga. E este ponto é particularmente
importante: pois que, enquanto o tratamento como real de
uma situação que o não era no domínio da lei anterior
nenhum significado pode ter, por definição, sob o ponto de
vista da subsistência de situações jurídicas reais que se cons-
tituíram vàlidamente à sombra da lei antiga, já nos casos
em que uma situação era real e deixou de o ser se suscitam
todos os problemas de subsistência de direitos reais previs-
tos pela lei antiga, que de momento consideramos.

IV - A grande dificuldade está sempre em saber quando


há ou não correspondência entre a situação antiga e a nova.
Aí, não valem considerações meramente descritivas, nem o
abandono somente ao nomen juris: é sempre necessária uma
valoração para que se conclua que há identidade substan-
cial entre as duas situações. O mero facto de num caso haver
um regime real e noutro não, pode não ser suficiente para
indicar uma diferença essencial sob este ponto de vista.

143
Demos atrás o exemplo do aluguer; pensamos que, mesmo
que a nova lei lhe tenha atribuído carácter ,real, a situação
não deixa de ser a correspondente à prevista pelo direito
anterior.
Vamos dar novo exemplo, que ilustra bem as hipóteses
que temos em vista.
No domínio do Código de 1867 a instituição do fidei-
comisso dava lugar à constituição de um direito real: a
expectativa do fideicomissário gozava da inerência própria
das situações jurídicas reais. Assim o defendemos ( 46 ), obser-
vando que a mera explicação em termos de direito sucessó-
rio não esgotara o conteúdo da figura.
Surge o novo Código, e é patente a preocupação de redu-
zir a situação do fideicomissário a mera expectativa suces-
sória ( 47 ). Nomeadamente, o fideicomissário não pode acei-
tar ou repudiar a herança, nem dispor dos bens respectivos,
mesmo por título oneroso, antes de ela lhe ser devolvida
(art. 2294.º). Isto significa que não se verificam até então
nem a vocação, nem a devolução sucessórias.
Como parece que isto exclui a existência de um direito
real sobre os bens, e que no domínio do Código de 1867
esse direito existia, teremos aqui uma situação que era real
e deixou de o ser.
Mas em relação às sucessões já abertas à data da entrada
em vigor do novo código, o fideicomissário tinha adquirido
um direito sobre os bens, nos termos da lei anterior; há
uma situação real vàlidamente constituída e que não pode
ser degradada a mera expectativa sucessória, sob a alegação
de que essa é a natureza actual da situação. Na verdade,
aqui não encontramos um correspondente na nova lei: man-
teve-se o instituto do fideicomisso, mas ao direito já adqui-
rido pelo fideicomissário sobre os bens nada corresponde.
Esse direito pode aliás ter sido já exercido, mediante actos

( 45 )Relações Reais, págs. 250 e segs.


( 47 )Cfr. o que a este propósito escrevemos em Direito das
Sucessões, vol. 1, págs. 204-5.
de disposição em favor de terceiros, que nada autoriza a
considerar ineficazes.

48. Sltu~es reais concretas que subsistem

1- O que apurámos até agora resume-se do seguinte


modo: o intérprete ainda pode ter de entrar em conta com
situações jurídicas reais vàlidamente constituídas à sombra
da lei antiga, embora estas não constem do elenco taxativo
da nova lei.
Mas encontrar-se-ão efectivamente hipóteses desta
ordem? A resposta é afirmativa, mesmo que abstraiamos
do fideicomisso, há pouco analisado.
Há desde logo os direitos previstos pelo código no
art. 1306.º, 2., em directa ligação com o princípio do nume-
rus clausus. Aí se dispõe: «0 quinhão e o compáscuo cons-
tituídos até à entrada em vigor deste código ficam sujeitos
à legislação anterior».
~ certo que se poderia pretender que esses direitos são
afinal perante a nova lei típicos, pois esta previsão alarga-
ria em benefício deles a tipologia actualmente estabelecida.
~ uma questão de perspectiva em que nos não deteremos
muito, mas não deixaremos de dizer que, de harmonia com
os princípios, estas afirmações não seriam correctas. Sabe-
mos já que a mera nominação por lei não basta para que
exista um tipo legal de direito real. Da mesma forma, esta
menção do quinhão e do compáscuo não equivale à consagra-
ção dos respectivos tipos pelo novo código: da lei nova cons-
tam os nomes, mas os tipos encontram-se na lei antiga ( 48 ).

( "s) Tão-pouco cremos que se possa dizer que o n.º 2 do art.


1306.º opera a recepção material das disposições sobre quinhão e com-
páscuo contidas no Código de 1867. Este preceito contém meramente
uma regra sobre a aplicação da lei no tempo: .pretende tornar explí-
cito que não houve abolição. Os princípios gerais sobre sucessão de
leis são suficientes para resolver a situação, independentemente da
ficção de uma recepção material.

145
10
. II-Mas para além destes, podem encontrar-se ainda
mais casos desta ordem? O n.º 2 do art. 1306.º não limitará
ao quinhão e ao compáscuo as possibilidades de subsis-
tência?
O problema deve ser discutido em abstracto: pergun-
ta-se se do art. 1306.º se pode inferir que nenhuma outra
situação jurídica real persiste perante o novo código. A res-
posta deve ser negativa.
O n.º 2 do art. 1306.º não é uma regra excepcional que
deva ser interpretada a contrario: não se pode alegar que,
se o legislador prevê o quinhão e o compáscuo, isso quer
dizer que todas as outras situações ficam abolidas. Pelo con-
trário, aquele preceito é mera manifestação de uma regra
geral, contida no art. 12.º: a de que a lei nova não preju-
dica as situações já estabelecidas. Não havendo pois regra
abolitiva, todas as situações jurídicas reais constituídas à
sombra da lei antiga que não tenham correspondente na
lei nova continuarão a reger-se pelo direito que lhes era
próprio, não obstante não caberem nos tipos actualmente
previstos.
O saber porém se existem situações desta natureza só
poderia resultar de uma investigação particularizada, que
seria deslocado empreender. Teríamos de confrontar caso
por caso a lei anterior e a actual, para averiguar se situa-
ções reguladas em termos reais deixaram de ter correspon-
dente na nova lei.
Mas pelo menos haveria sempre o fideicomisso, que
acabamos de caracterizar como situação real que não encon-
trou correspondente na lei actual. Ele dá-nos um exemplo
suficiente da subsistência de situações concretas previstas
pela lei antiga.

III-Chegamos pois à conclusão: a sucessão de leis no


~e~p? leva ~ intérp~ete a ocupar-se também de situações
3und1cas :ea1s constituídas à sombra de lei antiga, desde
que elas nao tenham sido abolidas pela nova lei nem tenham
nesta correspondente.

146
Qual o significado deste fenómeno? Será de natureza a
pôr em causa o princípio da tipicidade taxativa dos direitos
reais?
Não, certamente. O respeito pelas situações já constituí-
das não faz esquecer que na nova lei há uma tipologia taxa-
tiva dos direitos reais; e esta não poderia de modo algum
ser abalada por estas limitadas erupções do direito anterior,
pois vimos já que perante este não era admissível falar-se
de numerus apertus.
O significado desta indagação é bastante modesto. Tra-
çámos um limite temporal à aplicação do princípio, mas
verificámos que, a partir da entrada em vigor da nova lei,
se apresentam ainda à consideração do intérprete algumas
situações jurídicas, constituídas à sombra do princípio do
numerus clausus no domínio da lei anterior. Teremos pois
de esclarecer que o elenco legal das figuras actualmen te exis-
tentes terá de ser integrado por certas situações concretas
cuja subsistência foi admitida, mas não temos de rever o
próprio princípio da tipologia taxativa.

49. Limities locais

I -Temos de indagar também da existência de limites


locais à vigência dos preceitos relativos ao numerus clausus.
Sendo Portugal um estado plurilegislativo, devemos sempre
estar de prevenção quanto a limites desta ozidem, e este é o
aspecto que nos ocupará. A própria Constituição Política
estabelece que cada província ultramarina é regida em regra
por legislação especial.
Este princípio da especialidade do direito teria grande
significado se o Código Civil não fosse também a lei civil
fundamental de cada província ultramarina. Mas não acon-
tece assim. O Código Civil foi tornado extensivo às provín-
cias ultramarinas pela Portaria n.º 22 869, de 4 de Setembro
de 1967. E nesta não se ressalvou de modo algum a vigên-
cia do princípio do numerus clausus. J;', claro que isso pode

147
vir a ser feito de futuro, em consequência do mesmo prin-
cípio da especialidade da legislação, mas não é o que acon-
tece agora, nem foi o que aconteceu no direito anterior.
Portanto, não é por este caminho que teremos de admitir
a válida constituição de direitos reais inominados.

II - Se rege uniformemente o princípio da tipicidade


taxativa, a existência de ordenamentos locais só pode ter
relevância no que respeita à determinação do número de
tipos de direitos reais efectivamente admitidos na ordem
jurídica portuguesa. Não nos podemos limitar à análise da
ordem metropolitana.
Na óptica de cada província ultramarina essa análise
não teria mesmo significado nenhum. É perante o respectivo
ordenamento que teremos de averiguar quais os direitos
que em concreto nela são admitidos. E as especialidades
não residem só em poderem vir a ser criados novos direi-
tos reais; mesmo direitos anteriores deverão ser tomados
em consideração.
A própria Portaria n.º 22 869, embora tenha revogado
a legislação civil relativa às matérias pelo código abrangi-
das, ressalvou (art. 3.º, 2.) «a legislação privativa de natu-
reza civil, emanada dos órgãos legislativos metropolitanos
ou provinciais, que vigorar em cada província ultramarina».
Isto significa que, no sistema dos direitos reais vigentes
na ordem jurídica portuguesa, temos de contar com os direi-
tos reais vàlidamente constituídos em cada província ultra-
marina por força das fontes de direito nela relevantes. Esses
direitos reais devem ser reconhecidos nos restantes territó-
rios de harmonia com as normas de conflitos interlocais.

III - Por exemplo, e para dar uma ideia dos proble-


mas que podem surgir: o Decreto n.º 47 314, de 15 de Novem-
bro de 1966 (publicado escassos dez dias antes do Código
Civil), estabeleceu o regime do arrendamento rural e da
parceria agrícola em Cabo Verde. Este decreto não foi atin-
gido com a revogação da legislação civil, operada pela Por-

148
taria n.º 22 869, por conter legislação privativa de uma
província ultramarina. Seria pois em abstracto admissível
sustentar-se que ele consagra um direito real de arrenda-
mento, enquanto segundo o código o arrendamento seria
um direito de crédito; ou então- caso se sustente, como
nos parece correcto, que o arrendamento previsto pelo
Código Civil é um direito real- que consagra um direito
real diverso do tipo em geral vigente.

50. Limit.es pessoais

!-Devemos ainda entrar em conta com limites pessoais


à vigência do princípio contido no art. 1306.º do Código Civil.
Assim como o carácter unitário do Estado Português
não impede a especialidade da legislação, também não im-
pede que haja nos territórios ultramarinos regimes jurídicos
de contemporização com os usos e costumes das populações
que não forem incompatíveis com a moral, os ditames da
humanidade ou o livre exercício da soberania portuguesa
(art. 138.º da Constituição Política).
A revogação do Estatuto dos Indígenas não implicou
o desaparecimento de estatutos pessoais dentro da ordem
jurídica portuguesa. Logo em 6 de Setembro de 1961 vários
diplomas vieram estruturar uma diferenciação dentro do
direito privado. O Decreto n.º 43 897, nomeadamente, ressal-
vou os usos e costumes locais dos «vizinhos das regedorias».
Imiscui-se aqui, rom esta categoria de contornos imprecisos,
um elemento territorial; mas ele não é suficiente para nos
impedir de considerar que o acento tónico continua a recair
no elemento pessoal, que demarca o âmbito de aplicação
dos usos e costumes em vista. Por isso se estabelece no
art. 2.º do referido diploma que esses usos e costumes «cons-
tituem um estatuto pessoal, que será respeitado em qual-
quer parte do território nacional». E outras regras de con-
flitos se estabelecem, nomeadamente no art. 4.0 •

149
11-A cústálria de estatutos próprios de certas cama-
das da pnpabçio IUScita problemas novos, e mais signífi.
atíww aieda qae os emmcíados até agora, para o tema da
típícídade.
O. lllOS e CO:Sl•DDr$ das populações autóct.ooes das pro-
t farias ultr.anarinas no que respeita à atnõuíção das coisas
mriqaecem a Ol"dem jurídica portuguesa com figuras DOY35
de dímtos reais ( u). Passando para além dos elencos cons-
l211fn da lei comum da província em causa, essas figuras
adllaomas ímpõem..se ao respeito de toda a restante popu-
lação.

III - Mais ainda: por aqui já se pode dar uma erupção


do numet'U$ apertus dentro da ordem jut1dica portuguesa.
C.om efeito, é admi.ssfrel que uma tipologia taxativa dos
direitos reais, tanto quanto este quadro pode ser aplicado
a euas ordens jurídicas de base pessoal, não vigore, ou não
\igore em todos os casos, dado o seu carácter acentuada-
mente técnico. Poderão pois verificar~se hipóteses em que
a vontade das partes dê origem a situações novas, e que
devam ainda ser consideradas de natureza real. S6 uma
inYestígação caso por caso, que, como é natural, não pude-
mos empreender, permitiria comprovar este fenómeno, e
ajuizar da sua intensidade de verificação.
Em abstracto, essa possibilidade subsiste: pode um
direito real novo, pactuado de harmonia com aquele orde-
namento de base pessoal, ser vàlidamente constituído na
ordem jurídica portuguesa e impor.se ao reconhecimento
de todos.

(•) ~ embora. se devam ter em canta as limitações que,


mo que respeita à propnedade, estão previstas nos arts. 7.• e 9.• do
deaetD referido.

150
51. JJmitee. ildaaacioonis

1 - Passando agora aos limites internacionais, temos de


entrar em conta com a releváncia de leis estrangeiras na
nossa ordem jurídica. Embora aplicá,·eis por força de nor-
mas portuguesas de direito internacional prh-ado, nem por
isso deixa de se ter como pressuposto a sua \·alidade como
leis estrangeiras.
Para o nosso problema, basta-nos considerar o art. 46.•.
1., em que se estabelece que co regime da posse, proprie-
dade e demais direitos reais é definido pela lei do Estado
em cujo território as coisas se encontrem situadas•. Nenhum
obstáculo geral se levanta pois a que também neste domí-
nio a regra estrangeira tenha aplicação entre nós.
Nesta base, vamos chegar a conclusões semelhantes às
assinaladas para o direito interlocal, mas mais nítidas ainda.
Em primeiro lugar, verificamos que, se a lei competente,
consagre ou não uma tipologia taxativa, pre,ir um direito
real diverso dos que estão consagrados entre nós, esse direito
terá de ser reconhecido em Portugal. O art. 1306.º, 1., não
traz qualquer obstáculo, uma vez que se não aplica já neste
domínio: é uma norma injuntiva, mas não encerra um prin-
cípio de ordem pública internacional, e só a ordem pública
internacional excluiria a aplicação do direito estrangeiro.
Mas por este caminho vai-se ainda mais longe: os esque-
mas do Direito Internacional Privado ie1rãID o jurista por-
tuguês a admitir como válidos direitos reais inominados,
desde que constituídos sob a égide de uma ordem jurídica
que o admita. Assim, se por qualquer razão o jurista por-
tuguês tiver de entrar em conta com um direito sobre um
imóvel sito na Noruega, contratualmente constituído nesse
país para além de qualquer modelo normativo. não deverá
hesitar em reconhecer-lhe natureza real, justamente porque
o direito norueguês admite o princípio do numerus apertrts.
Teremos pois que, por força da actuação deste limite intrín-
seco do art. 1306.º, de novo o jurista português poderá

151
ser levado a reconhecer efeitos ao princípio do numerus
apertus.

II - São estes os resultados directamente impostos pelos


esquemas normais do Direito Internacional Privado; e deve
acrescentar-se que o seu significado, para o nosso tema, tam-
bém não é grande.
O princípio da tipicidade taxativa não é atingido com
esta aplicação da lei estrangeira. Em hipóteses concretas,
pode vir a dar-se relevância a situações jurídicas reais que
escapem à tipologia do foro; mas, tal como nos casos ante-
riores, a lei do foro (o sistema metropolitano perante o qual
nos colocamos) não deixa de estar dominada pela regra do
numerus clausus. À sombra dela, a produção de direitos
reais só pode fazer-se de harmonia com os tipos normati-
vamente prefigurados.

52. A mudança de ~tatoto

1 -Ainda no domínio dos limites internacionais, surgem


problemas específicos quando se consideram as mudanças de
estatuto. Temos em vista as situações habitualmente desig-
nadas como de conflitos móveis.
Uma situação que, em consequência da aplicação da
norma de Direito Internacional Privado, é regulada por dada
lei pode passar a ser submetida a lei diversa, em consequên-
cia da alteração da conexão juridicamente relevante. A hipó-
tese verifica-se com particular acuidade nas -situações dura-
douras. Seja o caso do vínculo de filiação: por mudança de
nacionalidade ou domicílio, a filiação pode passar a ser
regulada por outra lei, e alterar-se assim o complexo de
relações que ligam pais e filhos.
O sector do Direito das Coisas é propício à produção
de fenómenos desta índole.
O regime dos direitos reais é definido pela lei do Estado
em cujo território as coisas se encontram situadas (art.

152
46.º, 1.). Supõe-se pois a constituição válida de um direito
real e pergunta-se qual o regime a que esse direito vai ficar
submetido.
Se apenas se tivessem em vista os imóveis, a lei uma
vez declarada competente seria sempre a mesma, em prin-
cípio, à face de determinada ordem jurídica. Mas a existên-
cia de direitos reais sobre móveis cria problemas especiais.
Estes deslocam-se espacialmente, e quando isso acontece
quais as consequências sobre os direitos reais que tinham
sido estabelecidos? Há, nos casos normais, uma mudança
de estatuto: passa a ser competente para regular a situação
a lei do Estado para onde a coisa se deslocou ( 50 ).

II - Pode chegar-se a um caso extremo: o direito real


reconhecido no Estado A, onde a coisa se encontrava, não
o é no Estado B, para onde ela foi transferida. O art. 46.º
manda que seja aplicado o regime definido pela lei do Estado
em que a coisa se encontra: esse regime não existe. Tería-
mos pois como consequência que:

- ou não se reconhece um direito que todavia foi vàli-


damente constituído sobre a coisa (e quem se pro-
nuncia assim não deixará de fazer referência ao nume-
rus clausus) ;

- ou se reconhece, mas então não se encontra um regime


para ele.

O problema suscita-se frequentemente, mesmo em ordens


jurídicas em que vigora o princípio do numerus clausus, no
que respeita à figura do penhor sem entrega ou sem desa-
possamento. Suponhamos que um penhor foi nesses termos

(s 0 )Sem prejuízo dos regimes especia.is es-tabelecidos nos n.°' 2


e 3 do art. 46.º.

153
vàlidamente constituído, à sombra da lei do Estado A.. local
da situação da coisa; mas que a coisa é depois transferida
para o Estado B, em que a retenção pelo credor pignora-
tício é considerada elemento necessário, não diremos já
para a constituição, mas para a própria subsistência do
penhor ( 151 ). A situação escapa à tipicidade taxativa dos
direitos reais, que supomos vigorar também no Estado B.
Em princípio, a coisa não será pois havida por onerada no
Estado B.
Foi amplo o debate travado sobre esta matéria ( 52 ),
pois a muitos pareceu chocante esta consequência. Autores
há que, em tese geral, sustentam que quando a nova lei com-
petente não previr aquela situação, deve continuar a apli-
car-se o estatuto antigo {53 ) (ainda que isso dê naturalmente
origem a problemas de adaptação). Estes autores são pois
levados a admitir que até o direito real sem correspondên-
cia no elenco dos direitos reais previstos na lei agora com-
petente deve subsistir.
Schrõder defendeu recentemente, na base de uma aná-
lise aprofundada, esta posição. A discrepância das ordens
jurídicas em presença exigiria em primeira linha a manu-
tenção da situação já constituída, embora isso nos possa
colocar perante a necessidade de elaborar um estatuto pró-

( 1t1) :e o que supomos que se passa na ordem jurídica portu-


guesa, na figura n<>rmal do penhor. Se bem que o art. 669.• refira a
necessidade da entrega para a constituição do penhor, outros passos
demonstram que o que interessa é a privação da possibilidade de
disposição material da coisa, e que essa situação tem de manter-se
sempre, sob pena de extinção do penhor. Mas a demonstração destas
asserções, que nos levaria muito longe, não é indispensável para o
raciocínio que empreendemos no texto.
(!i 2 ) Veja-se em Wolff-Raiser, § 178 (pág. 731) e Lewald, pág. 130,
a exposição da doutrina dominante.
(») Note-se que a maioria dos autores se abstém de mna
s?lução geral deste problema, e remete a análise para a parte es~
c1al. Neste sentido, 1. M. Magalhães Collaço Direito vol. II págs.
43-5 e 63-5. ' ' '

154
prio. O autor tem em conta a crítica que, na base do nume-
rus clausus, lhe pode ser dirigida e procura neutralizá-la ( 54 ).
Neuhaus, ao tratar da problemática da mudança de esta-
tuto, referendou expressamente esta solução, de harmonia
com a tese geral que adopta ( 55 ). Já entre os autores portu-
gueses não encontramos quem a defenda ( 56 ). A nós basta
porém chamar a atenção para o problema: a admitir a orien-
tação daquele sector da doutrina internacionalista, poderá
haver casos em que, apesar de a lei portuguesa ser a nor-
malmente competente, venham a reconhecer-se direitos reais
atípicos, dado o facto de terem sido vàlidamente constituí-
dos à sombra de lei estrangeira ao tempo competente.
Não pretendemos que esta conclusão, a ser aceite, traga
grandes novidades para o tema da tipicidade dos direitos
reais. De novo se verificaria que pode ser admitida a apli-
cação de leis estrangeiras que consagram figuras que esca-
pam à tipificação portuguesa. Mas daqui podem extrair-se
dois ensinamentos: 1) esse reconhecimento de direitos des-
conhecidos das nossas leis pode dar-se mesmo em relação
a coisas situadas duradouramente em Portugal; 2) sobre-
tudo, isso pode acontecer mesmo em casos em que a lei
portuguesa seja a normalmente competente.

(15') Invoca nomeadamente o § 184 da lei de introdução ao


Código Civil alemão, que permite a manutenção de direitos reais
constituídos anteriormente à entrada em vigor daquele código (como
vimos aliás que acontecia entre nós). Isto demonstraria que o prin-
cípio do numerus clausus, se bem que imposto pelo código, não con-
trariaria a subsistência de direitos vàlidamente constituídos no domí-
nio de outra lei (pág. 123).
( 1515 ) Grundbegriffe, § 39, II, 2., in fine; Rabels Zeitschrift, pág. 755.
( 56 ) 1. M. Magalhães Collaço, Direito, vol. III, págs. 269-70, refere
sem reservas o princípio da não subsistência do direito real sobre
coisa móvel que for deslocada para um país que não prevê esse
direito. Já Ferrer Correia toma uma posição mais reticente, pois que,
após expor a solução corrente (págs. 380 e 386), anota que o ponto
é duvidoso (pág. 386, nota 1). Não conhecemos ainda qualquer reac-
ção ao sistema introduzido pelo código de 1966.

155
53. A adaptação

1 - Seria possível chegarmos muito mais longe se se


admitissem certos entendimentos da categoria da adapta-
ção, que nestes últimos anos tanto tem interessado os inter-
nacionalistas, nomeadamente em Portugal. Centra-se esta na
necessidade de alterar a solução que resultaria da aplicação
normal da regra de direito internacional privado por essa
solução não ser, estrutural ou funcionalmente, integrável no
sistema jurídico do foro. E isto porque o juiz do foro não
se pode contentar em concluir mecânicamente que há a
remissão para ·dada ordem jurídica, antes a competência
que lhe é atribuída pela própria lei nacional lhe impõe o
controlo dos resultados que em concreto se obtêm.
A necessidade da adaptação é particularmente nítida
quando se têm de conjugar as várias leis que resolvem ques-
tões parciais da situação em análise. Mas suscita-se também
em numerosas outras hipóteses, como, por exemplo, as da
mudança de estatuto que acabámos justamente de referir.
Se o usufruto constituído no Estado A não corresponde à
figura do usufruto regulado no Estado B, como proceder?
Ou se, em qualquer regra singular, houver contradição?
Como se passa de uma para outra situação, de modo a evi-
tar, por exemplo, que possam exigir-se frutos duas vezes,
que a caução ali prestada venha aqui a ser declarada irre-
levante, etc.? Temos aqui problemas de adaptação, resul-
tantes da mudança de estatuto das situações referentes às
coisas ( n).

II -Quando se defronta a necessidade da adaptação


pode-se, cm abstracto, chegar a uma solução internaciona-
lista ou a uma solução material do problema.

( ~7 ) Esses problemas atingiriam a máxima acuidade se se admi-


tÍl\'>e, nos termos que acabámos de indicar, a subsistência de direitos
reai'. criad<>S à. wmb~a de lei anteriormente competente, mas não
prev1\tos na lei material do foro.
Na primeira hipótese, e de harmonia com a fisionomia
da questão concreta, procura-se resolver o caso através da
deslocação da competência das ordens jurídicas em conflito
(ampliando ou restringindo essa competência) ou recorrendo
a uma terceira lei.
Se se recorre a uma solução material, procura-se direc-
tamente a composição dos interesses que seja adequada
àquele caso, modelando, de qualquer forma impossível de
prever em geral, as situações jurídicas em presença. A natu-
reza do litígio-que não meras considerações de equidade
- vai revelar-se aqui decisiva.
A seguir-se este caminho, o problema do conflito de leis
propriamente dito estaria ultrapassado. Supõem-se fixadas
as leis competentes, e é agora à base de um ordenamento
material, que não pode deixar de ser o do foro, que se vai
procurar uma solução ( 5s).
Discutem porém os internacionalistas a admissibilidade
das soluções materiais. Afasta-as Isabel Maria de Magalhães
Collaço em domínios específicos - os do concurso ou con-
flito de normas de conflitos e da falta de normas aplicáveis:
«pode alegar-se, para além do risco de arbítrio e de insegu-
rança que o método comporta, que ela tem o defeito de
multiplicar soluções «irreais», porque desprovidas de corres-
pondência em qualquer sistema jurídico» ( 59 ).
Tocamos aqui problemas demasiado específicos deste
ramo do direito para que devamos entrar na sua análise.
Para os nossos fins, basta-nos tomar uma posição condicio-
nal: supondo que as soluções de direito material que alguns
doutrinários de Direito Internacional Privado defendem são
admissíveis, qual a relevância que elas podem ter para o
nosso tema da tipicidade dos direitos reais?

(118) A aceitação de soluções materiais é favorecida quando se


pense, com Raape, que a adaptação respeita ao «conectado» e não
à •conexão»; que não é uma questão de Direito Internacional Pri-
vado embora surja em consequência dela (págs. 105-6).
( 119 ) Qualificação, pág. 258.

157

·'
III - Caso o juiz ( 60 ) possa procurar soluções materiais
autónomas, é forçoso que tenha liberdade para as procurar,
a fim de chegar à resposta mais adequada àquele caso. Não
tem de se fechar nos quadros da própria lei material, pois
a adaptação não nasce de qualquer resistência à aplicação
da lei estrangeira, mas simplesmente da impossibilidade
estrutural ou funcional de integração na ordem jurídica do
foro da solução a que normalmente se chegaria (fosse ela
a trazida pela lei material interna)( 61 ). Por isso, a adapta-
ção poderia significar, para esta corrente, a modelação de
um novo direito real, fora dos tipos previstos pela lei subs-
tantiva do foro. Com efeito, o juiz do foro, se não está nesta
criação limitado pelas soluções materiais internas, também
o não está pelo art. 1306.º ( 62 ); este regula as situações pura-
mente internas, e não as situações com elementos de estra-
neidade, que caem no âmbito próprio do Direito Interna-
cional Privado ( 63 ). Neste domínio, vimos já suficientemente,
não impera o elenco taxativo imposto pelo art. 1306.º, que
não é de ordem pública internacional.

IV-Temos pois apontados os limites internacionais do


princípio da tipicidade taxativa. Este está intrinsecamente
limitado pela possibilidade de aplicação da lei estrangeira.

(6º) Por simplicidade, vamos ·ter exclusivamente em vista a


posição do juiz.
( 81 ) Na normalidade dos casos em que os problemas de adap-
tação se levantam o juiz encontra-se perante elementos de ordens
jurídicas alheias que de outro modo seriam aplicados - e que podem
resultar até de uma consagração pela lei estrangeira do numerus
apertus, pois vimos já que isso não seria motivo para o seu afas-
tamento.
( 62 ) Veremos depois que o próprio art. 1306.º não traria obstá-
culo a esta solução. Mas de momento, queremos prescindir de toda
a análise que não derive directamente da consideração do Direito
Internacional Privado.
( 63 ) Esta nos parece ser a única concepção realista do objecto
da norma. d~ direito internacional privado. Cfr. I. M. Magalhães
Collaço, Direito, vol. 1, págs. 260-3.

158
E, a ser admissível uma solução material das necessidades
de adaptação, teríamos que os poderes para este fim con-
cedidos, consoante a natureza do caso, abrangem o de cria-
ção de direitos reais - mesmo para além do catálogo abstrac-
tamente previsto na lei portuguesa.

54. Razão de ordem

1 - Recapitulemos os ensinamentos colhidos até agora.


Verificámos que vigora entre nós, nos termos do art. 1306.º,
1., o princípio do numerus clausus dos direitos reais. Veri-
ficámos que esse princípio significa que há uma tipologia
dos direitos reais, e caracterizámo-la em linhas gerais. Veri-
ficámos ainda qual o campo em que se deve situar esta
investigação- e nomeadamente, que nos devíamos centrar
na ordem jurídica portuguesa metropolitana actual, por
força de vários limites que encontrámos à actuação do
art. 1306.º, 1., ao qual nos temos até agora reportado.
Mas numerosos problemas subsistem. Podemos dar deles
uma primeira noção, sob a forma das seguintes perguntas:

1) Objecto desta tipologia serão efectivamente os direi-


tos reais, e só os direi tos reais?

2) A lei será a única fonte de direito de que pode


resultar a criação de tipos de direitos reais?

3) A autonomia privada estará totalmente excluída da


criação de direitos reais que se afastem total ou parcial-
mente dos tipos existentes?

4) Haverá entidades que se possam considerar isentas


da restrição que é representada por esta tipologia taxativa?

Estas perguntas estarão na base dos capítulos que se


seguem.

159
CAPITULO IV

OBTECTO DA TIPOLOGIA TAXATIVA

SECÇÃO 1

EXCLUSÃO DOS FACTOS JURÍDICOS


COM EFEITOS REAIS

55. Aspect.os gerais

I - Quando se fala na tipicidade dos direitos reais, todos


referem implkitamente o objecto desta aos direitos reais.
Quer dizer que aqui teríamos uma tipologia, não de factos,
mas de situações jurídicas, visto que o direito real se ins-
creve sem dúvida entre as situações.
Isto tem logo consequências importantes para o nosso
tema. No estudo desta tipicidade vamo-nos centrar na está-
tica, e não na dinâmica dos direitos reais. Vamos estudar
as situações em si, e não os factos jurídicos com efeitos
reais e as vicissitudes que estes provocam.
Com efeito, os direitos reais são dinamizados, como
toda a situação jurídica, por factos jurídicos. Chamamos
a estes os factos jurídicos com efeitos reais, ou com eficá-
cia real, numa noção ampla, em que se recortam, dentro da
massa dos factos jurídicos, aqueles que provocam vicissi-
tudes ( vicende) dos direitos reais - constituição, modifica-
ção, transmissão, extinção ou qualquer outra.

161
11
Mas não haverá nenhum ponto de intersecção da está-
tica e da dinâmica, que interesse à tipicidade? Quase só
encontramos referências a este problema quando se aprecia
a possibilidade de intervenção do negócio jurídico na cons-
tituição de direitos reais. Se bem que nestes casos as difi-
culdades sejam de facto mais nítidas, a inteligência do pro-
blema só pode lucrar com uma análise geral do tema, que
vamos ensaiar.

II- Comecemos por afirmar que a tipologia taxativa


dos direitos reais não implica, de qualquer modo, que sejam
taxativos os factos que criam, modelam, ou extinguem direi-
tos reais. Muitas vezes não se encontra sequer uma tipologia,
mesmo exemplificativa, desses factos. Assim, de qualquer
negócio jurídico, mesmo de um negócio jurídico inominado,
pode resultar a transferência ou modificação de um direito
já existente, a extinção de uma oncração ou qualquer outra
vicissitude, independentemente de previsão legal. Quanto às
modificações dos direitos reais, teremos depois ocasião de
as referir mais desenvolvidamente.
Isso não impede evidentemente que existam limitações
na aplicação de certas causas: que se possa discutir se um
facto previsto a propósito da superfície ou da hipoteca é
aplicávd à retenção ou à promessa de contratar com eficá-
cia real. Mas temos então problemas específicos, que não
pressupõem limitações ~néricas.
Estas afirmações fundam-se nas regras gerais sobre
liberdade contratual, e como não são contestadas não reque-
rem grandes desenvokimentos. Têm hoje apoio expresso nos
arts. 405." e seguintes do no\·o código, que proclamam o prin-
dpio da liberdade contratual. Essa liberdade não pode deixar
de- se estender aos contratos com eficácia real, que aliás são
mencionados logo no art. 408.º.

III -Não se pode esgrimir com o facto de este pre-


~ito só ref~rir a constituição ou transferência (de direitos
n:~s), para afastar ilt limine as estipula<s'Ões reforentes a

162
outras vicissitudes. O princípio deve continuar a ser o da
admissibilidade. Um exemplo nos ajudará a compreender
esta situação.
A desnecessidade não foi acolhida pelo novo código
como causa geral de extinção da servidão. Apenas as servi-
dões constituídas por usucapião e as servidões legais podem
ser judicialmente declaradas extintas, desde que se mostrem
desnecessárias ao prédio dominante (art. 1569.º, 2. e 3.)(1 ).
Será porém vedado estipular, no título constitutivo de uma
servidão voluntária, que esta se extingue caso se torne des-
necessária ao prédio dominante? Não encontramos qualquer
motivo para pensar assim. O legislador indica a regulamen-
tação normal, mas não exclui a actuação de causas de extin-
ção não previstas. Todas as disposições respeitantes a factos
jurídicos com efeitos reais devem pois ser consideradas nor-
malmente como supletivas, mesmo que respeitem a vicissi-
tudes diferentes da constituição ou da transmissão. São por-
tanto susceptíveis de ser alteradas em concreto, enquanto
razões particulares não levarem a considerá-las injuntivas.
Mesmo não tendo havido qualquer manifestação da
autonomia privada, as causas previstas por lei podem ser
estendidas de umas a outras situações na base de conside-
rações de analogia; e muito frequentemente se tem de pro-
ceder assim, pois o legislador nunca prevê em geral os factos
jurídicos com efeitos reais, antes se limita a referi-los ou
não, ao sabor das contingências próprias da regulamentação
de cada direito real.

56. A sujeição a certas vicissitudes

1 - Para além desta situação normal, vamos encontrar


todavia pontos de confluência, que foram aliás já anuncia-
dos em referências que fizemos no capítulo anterior.

(1) Sobre- os antecedentes desta situação, veja-se a nossa «Des-


tiece.ssidade e Extinção de Direiros Reais• e o Assento do Supremo
TribWlal de Justiça de 7 de Maio de 1965.

163
En\,mtr,,m·~t' "'t'l'tns hit'>ütcscs cl\1 que um tipo só se
individualiM, t<'n<lo n ~'t'nfn a sua dcs~riçâo esscndnl, otcn-
J~n<l"' à su.idçi\o a certas ,·idssiludcs. Isto não deverá pare-
cer anl)nialo, e nom~adnmcnt~ não pode sustentar-se que
assim se esbatem contornos entre tipologias de factos e de
situaç&s. com a alegação de que, se o direito real é uma
situação, não poderia compreender os factos que a esta são
nc..~essàriamenteestranhos.
E que, por um lado, não devemos esquecer que entre
todos os elen1entos da norma jurídica há uma tensão dia-
léctica que se não compadece com fronteiras demasiado
estanques. Carnelutti chamou a atenção para a circunstân-
cia de as definições de tipos de contratos fazerem recurso
a situações jurídicas ( 2 ). Efectivamente, a facti species só
se compreende verdadeiramente tendo em atenção o efeito
que produz; da mesma forma, também o recorte da situa-
ção jurídica pode fazer-se em atenção a considerações dinâ-
micas. A referência ao tipo pode desempenhar também a
função de romper com esquematismos exagerados.
De qualquer modo, o direito real é uma situação jurí-
dica: está ligado à estatuição, e não à previsão legal. O que
acontece é que a sujeição da situação a certas vicissitudes
pode ser arvorada em elemento componente da própria des-
crição essencial de um direito real. Assim acontece com a
morte do titular, que extingue necessàriamente o usufruto.
O facto extintivo não pertence ao tipo do usufruto, mas este
é uma situação sujeita àquela vicissitude-e necessària-
mente a ela sujeita.

II - Passando ao exame específico dos casos em que


a sujeição a certas vicissitudes é tomada como elemento
componente de um tipo de direito real, encontramos várias
hipóteses. Para além da do usufruto que acabámos de refe-
rir, a temporaneidade é característica essencial da superfície

(2) Teoria, n.º 101.

164
reguinda pela Lei n.u 2030, e do arrendamento; a perpetui-
dade tendencial é característica da enfiteuse. A intransmissi-
bilidade inter vivos é característica do uso e da habitação.
Note-se que o que é típico é a sujeição a certas vicissi-
tudes, e não a vicissitude cm si, e muito menos o facto que
provoca essa vicissitude. Por exemplo, seria ainda uma hipó-
tese desta ordem a de um tipo em que a registabilidadc fosse
tomada como característica essencial, mas não interessava
já um caso em que a inscrição efectiva fosse essencial, pois
então não haveria sujeição a uma vicissitude. Isto poderia
acontecer nos casos chamados de registo constitutivo, mas
significaria quando muito que a origem do direito era ele-
mento essencial do tipo, e portanto integra-se já em hipó-
teses que só examinaremos a seguir.

III - Este fenómeno está de acordo com o carácter


pragmático e assistemático que vimos já ser próprio da
actividade normativa da tipificação. Vimos que nesta se
não seguem critérios uniformes, antes se entrecruzam ele-
mentos da mais variada origem, até chegar à formação con-
creta que é o tipo. Entre esses elementos também pode estar
o que respeita às vicissitudes daquela situação.

57. Fact.o constitutivo e tipo

I - Mas, considerando especificamente o facto consti-


tutivo, podemos ir mais longe. Pode-se perguntar se também
a origem de uma dada situação não pode ser tomada como
elemento componente do tipo. Para colocar o problema,
vejamos em geral como se apresentam os factos constituti-
vos de direitos reais, no que à tipicidade se refere. E aqui
é útil uma breve referência histórica.

II - No direito romano, escreve Rigaud, não houve


nunca uma lista fechada de direitos reais. Se estes apare-
ceram em número restrito, foi devido, mais do que a preo-

165
cupações de ordem pública, ao formalismo e à técnica dos
modos de constituição ( 3 ).
Parece que esta posição é de aceitar. Uma tipicidade dos
modos de constituição implica necessàriamente, ou quase,
um número cerrado de direitos reais, sem que rigorosamente
se possa falar numa tipologia (taxativa ou outra) destes.
E certo que na linguagem corrente se refere o número limi-
tado de direitos reais romanos, como a propriedade, a super-
fície, a hipoteca, e diz-se que eram típicos; e pode-se aceitar
esta maneira de dizer, porque prática, desde que se não
perca de vista que a tipicidade respeitava aos factos cons-
titutivos dos direitos reais.

58. O problema no direito actual

I - Não é questionável que no direito moderno não


existe em geral uma limitação do número de negócios jurí-
dicos admissíveis ( 4 ). Mas pode dizer-se o mesmo no que
toca aos negócios jurídicos reais? A dúvida nasce de se afir-
mar ainda, aqui e além, que o numerus clausus se reporta,
exclusivamente ou não, aos factos e não às situações reais:
serão típicos os factos constitutivos de direitos reais, e não
propriamente (ou não exclusivamente) os direitos reais.
Assim, von Tuhr sustenta que no Direito das Coisas
se encontram tipos fixos de negócios jurídicos ( 5 ) - e isto
muito embora tenha antes falado numa tipicidade dos direi-

(3) Derecho, pág. 217.


( 1) Veja-se em 1. Galvão Telles, Contratos, 55 e segs., a des-
crição da evolução histórica deste tema.
( 5) Vol. II, 1., § 51, 1 (pág. 179). Devemos todavia observar que
a análise do tema é dificultada no Direito alemão, uma vez que se
pode pretender que a Einigung, ou negócio real (acordo na produ-
ção de uma vicissitude de natureza real) é o único negócio de que
podem derivar efeitos reais, e é perfeitamente distinto do negócio
causal, a compra e venda, a doação, etc., cujos efeitos são meramente
obrigacionais. Isto torna pràticamentc inutilizável a extensa e pro-
funda bibliografia alemã sobre o tema da produção de efeitos reais.

166
tos reais. Quanto a Barassi, descreve assim o numerus clau-
sus: «Não só os factos de que o direito real pode resultar
mas também e sobretudo o seu conteúdo, devem ser previs-
tos em geral pela lei» ( 6 ).

II- Entre nós, também Manuel de Andrade parece incli-


nar-se para esta posição, ao escrever que nos negócios reais
a liberdade negocial aparece gravemente cerceada, em vir-
tude do princípio do numerus clausus; a ponto que o prin-
cípio da liberdade negocial se poderia considerar substituído
pelo princípio da tipicidade ( 7 ). Em todo o caso, encontra-
mos também uma expressa tomada de posição em sentido
contrário-a de Dias Marques, que distingue a tipicidade dos
direitos reais da nominação dos negócios jurídicos: aquela
refere-se a efeitos de direito, esta respeita apenas a uma das
fontes possíveis de tais direitos, que é o negócio jurídico.
E acrescenta que também os direitos reais, que são sempre
típicos, podem ser criados por negócios inominados ( 8 ).

III - Também a lei pode suscitar perplexidade. É bem


certo que, como dissemos já, dos arts. 405.º e 408.º se pode
inferir a atípicidade dos factos jurídicos com efeitos reais;
mas outras disposições do actual código podem pelo con-
trário fazer-nos perguntar se não se terá regressado à tipi-
cidade dos factos constitutivos de direitos reais, portanto
à situação existente no direito romano, pelo menos no que
aos negócios jurídicos respeita.
O próprio art. 1306.º, 1., poderá provocar esta dúvida.
Recorde-se que nele se estabelece que não é permitida a
constituição senão nos casos previstos na lei ... Portanto,
parece que se vedam as formas de constituição não previs-
tas na lei, e não propriamente a constituição de direitos não

( 8) Pág. 51.
( 7) Relação Jurídica, II, 52-3.
( 8) Direitos Reais, pág. 24.

167
previstos na lei; por maioria de razão se não proibiria o
uso da analogia quando se defrontasse algum direito real
cuja constituição tivesse sido reservada exclusivamente à lei.

59. A atipicidade dos factos constitutivos de direiros


reais

1 - Na realidade, nenhum destes factores tem qualquer


significado, e podemos proclamar abertamente o princípio
de que o numerus clausus dos direi tos reais nada tem que
ver com os respectivos factos constitutivos.
Quanto ao argumento que poderia retirar-se da letra
do art. 1306.º, 1., fàcilmente se concederá que tudo se reduz
a uma nova infelicidade na redacção do preceito. Ao querer
acentuar que a restrição se dirigia aos particulares, como
veremos, o legislador situou-se no plano da constituição
negocial, quando o seu objectivo era a limitação do número
dos direitos reais, em si tomados.
Basta pensar que o novo código não se afastou da
orientação legislativa anterior, através do enunciado exaus-
tivo dos negócios de que poderiam resultar direitos reais
- o que seria imprescindível se tivesse querido estabelecer
uma tipologia taxativa dos factos constitutivos. Antes, como
dissemos, a constituição negocial é prevista atipicamente no
art. 408.º, que regula com toda a generalidade os contratos
com eficácia real. Não podemos deixar de dar prevalência
à formulação deste preceito.

II - Vejamos por exemplo o que se passa no usufruto.


Diz o art. 1440.º que o usufruto pode ser constituído por
contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei. Mas
este enunciado dos modos de constituição não corresponde
a uma tipificação, antes se agrupam simplesmente os muitos
modos possíveis de constituição do usufruto. :E: assim que
este preceito não diz quais são os factos em sentido estrito
de que pode resultar a constituição de um usufruto (e que

168
são abrangidos na referência à disposição da lei) nem quais
os contratos que podem originá-lo.
Quanto a estes, são numerosos os que a doutrina tem
especificado, como a doação, a compra e venda, a transac-
ção ( 9 ). Mas pode ir-se mais longe, e constituir-se um usu-
fruto na base de um contrato inominado. Isto é pois o
inverso de uma tipologia de causas de constituição de direi-
tos reais.

III - Estes princ1p10s encontram a sua natural reper-


cussão no instituto do registo predial. Vamos dizer, o mais
brevemente possível, como o problema se apresenta.
O art. 949.º do Código Civil de 1867 sujeitava a registo,
fundamentalmente, direitos. A doutrina criticou esta colo-
cação, e afirmou que o objecto do registo não são direitos,
são factos. Os códigos do registo predial, a partir de 1959,
recolheram estes ensinamentos: o art. 2.º do código actual
(como o do anterior) apresenta como epígrafe: «factos sujei-
tos a registo». E como nesse artigo se especificam nume-
rosas hipóteses (1°), fala-se de uma tipicidade ou de um
numerus clausus de factos sujeitos a registo predial.
Estamos bem convencidos de que não se caracteriza
assim correctamente o fenómeno em causa. Basta ler o refe-
rido art. 2.º para verificar que não há pràticamente um único
facto que nele esteja tipificado: não se fala na compra e
venda, na troca, e assim por diante. Especificam-se, sim, os
direitos cuja existência é dada a conhecer mediante o registo,
nos termos do art. 8.º; e são os direitos que devemos con-

( 9) Cfr. por exemplo Venezian, I, n.ºª 156 e segs.; Cunha Gon-


çalves, Tratado, vol. XI, n.º 1687. De facto, não há um contrato autó-
nomo de constituição do usufruto, antes essa constituição pode vir
imersa na regulação de interesses que com vários contratos se realiza.
( 1 º) A este propósito as legislações tomam as mais variadas
atitudes, podendo-se ir até à omissão de qualquer tipologia (é o caso
do § 873, I, do Código Civil alemão) ou 'à admissão de uma tipologia
exemplificativa (art. 2.º da Lei Hipotecária espanhola).

169
siderar objecto da publicidade regista[. Não se faz porém
a mínima especificação ( 11 ) dos factos que estão sujeitos a
registo, e que constituem o objecto da inscrição. Com esta
distinção se transcende simultâneamente o anterior dissídio
entre os que consideravam os direitos e os que considera-
vam os factos o objecto do registo.
Tomemos por exemplo logo a ai. a) do art. 2. 0 , 1.: estão
sujeitos a registo «OS factos que importem reconhecimento,
aquisição ou divisão do direito de propriedade».
A referência ao direito de propriedade integra este na
tipologia taxativa dos direitos (inerentes a imóveis) que
são objecto da publicidade registai. Já os factos que inci-
dem sobre a propriedade estão pelo contrário sujeitos a
registo independentemente de qualquer tipologia.
Poderia pensar-se que afinal sempre há uma tipologia
dos factos, porque a lei só sujeita a registo os factos que
importem reconhecimento, aquisição ou divisão do direito
de propriedade. Mas não é assim, porque isto não significa
uma tipificação dos factos. Os factos, doação, acessão, par-
tilha, e assim por diante não estão de modo algum tipifica-
dos. O que há, cm relação a certos direitos, é uma tipologia
das vicissitudes que a inscrição dá a conhecer. Essa tipo-
logia cremos ser delimitativa, pois não exclui a registabili-
dadc de factos respeitantes a vicissitudes análogas às pre-
vistas; mas não nos podemos deter neste problema.
Isto não significa qualquer tipificação dos factos sujei-
tos a registo: só se aceitam factos que produzam algum
dos efeitos reais admissíveis, mas não se indica de qual-
quer forma quais os factos que produzem aqueles efeitos.
Podem por isso inscrever-se também factos jurídicos inomi-
nados ( 12 ), o que é a negação de um numerus clausus de
factos sujeitos a registo.

l") Sv "''l:l'lituurmus as previsões dos arts. 2.º, l., 11) e o) e 3.º,


t'lll qlll' o k~isl~Hlor '"'·wln mais unrn flutuu<;ão de crHédo. V<..'ja-se
o qu~· H t•sk propósito di:.tt•mos infra, n." 140.
( 1 ~) Expr<.·ssumente n<.'stc sentido, Catorlno Nunes, páas. 19-20.

170
Nem poderia ser de outra maneira, pois este capítulo
reflecte a atipicidade dos factos jurídicos com efeitos reais,
que as regras do registo em nada vêm alterar.

IV-Encontramos portanto aqui uma confirmação de


quanto dissemos sobre a atipicidade dos factos jurídicos
com efeitos reais.
Parece-nos por isso de repudiar a afirmação atrás trans-
crita de von Tuhr, na medida em que ela signifique a afir-
mação de uma tipicidade dos negócios referentes a direitos
reais. Quanto à posição de Manuel de Andrade, só é admis-
sível se o autor apenas quis acentuar a impossibilidade de
as partes darem vida a todos os efeitos que desejem, no
campo dos direitos reais: não é porém aceitável a referên-
cia subsequente a uma quase substituição do princípio da
liberdade negocial pelo princípio, oposto, da tipicidade.

V - Por outro lado, não devemos esquecer que o direito


real não deriva só de negócios jurídicos, mas também de
meros actos jurídicos, como a ocupação ( 13 ), ou até de factos
jurídicos em sentido restrito, como acontece em certos direi-
tos reais que têm sido considerados de origem legal, como
a retenção. Nessas hipóteses nada força a admitir à partida
que os factos que a lei porventura prevê a propósito de cada
direito são típicos, e que não é possível utilizar a analogia
para considerar que o direito real em causa pode resultar
de um facto constitutivo não previsto. Este é todavia um
ponto que de seguida teremos necessidade de examinar apro-
fundadamente.

VI- Em conclusão, e generalizando, diremos que não


são típicos os factos jurídicos com efeitos reais. Em prin-
cípio, qualquer direito real ou qualquer vicissitude deste,
pode resultar de formas atípicas de actuação da autonomia

( 1:1) Cfr. Dias Marques, lug. cit.

171
privada Tão.pouco é necessária especifica determinação
legal para conduír peJa aplicabilidade, fora das hipóteses
previstas por Jeí, de um facto que provoque a constituição,
a transmissão, a modificação, a extinção ou qualquer outra
\;cissitude dum direito real.

60. Direitos rea1s de origem legal

I - Problemas muito particulares estão ligados à existên-


cia de direitos reais que se referem como constituídos pela
lei, ou derivados directamente da lei. Saben<lo que da lei não
derivam situações jurídicas concretas, antes é necessária a
mediação de um facto jurídico, que é propriamente o facto
constitutivo, a única explicação destas situações será a de
que têm na sua origem um facto não negocial. Por isso
se diz que derivam directamente da lei: quando esse facto
se verifica, elas produzem-se imediatamente, sem necessi-
da<le de nenhuma declaração de vontade, que não pertence
à facti species: assim acontece com a retenção, o usufruto
legal ( 14 ), o privilégio creditório, etc.
Em princípio, tudo se resume neste casos a um orde-
namento particular do facto constitutivo. Os problemas sus-
citados estariam fora do nosso campo directo de análise,
uma vez que não atingiriam os tipos legais (usufruto, reten-
ção, etc.) dos direitos em causa.

II - Surgem todavia situações duvidosas. Casos há em


que está em causa a constituição de uma figura de direito
real, e que são aqui e além apreciados pela doutrina justa-
mente pelo ângulo da tipologia dos direitos reais. Temos

(14) Mas não com a servidão legal (arts. 1550.º e segs.), pois
a terminologia é muito infeliz, e aqui antes se quer significar a sus-
ceptibilidade de imposição coactiva de certas categorias de servidão,
que todavia não são de constituição automática. Melhor se falaria
pois em servidão coactiva.

172
assim de proceder a uma análise mais cuidada, para verificar
se a derivação de dado facto constitutivo não pode ser afinal
assumida como um dos elementos do próprio tipo.
Se bem que o problema nunca tenha sido considerado
de maneira unitária, as suas manifestações eram relati\·a-
mente frequentes no domínio do código antigo. Certas situa-
ções eram previstas por lei a propósito de casos particulares,
mas isso não impedia que, partindo dessa pluralidade de
previsões, se pudesse chegar a um conceito único que abran-
gesse toda a figura, e de que as hipóteses singulares seriam
afloramento: assim se passava com a retenção ou o direito
de preferência. Todos eles eram tratados pela doutrina como
direitos unitários. Com o código actual muitos destes pro-
blemas desaparecem, mas o tema não perde interesse, pois
há situações semelhantes, como veremos.
Esta técnica de apresentação dos direitos reais ( 15 ) terá
alguma repercussão sobre as suas possibilidades de verifi-
cação? Nomeadamente, será legítimo o uso da analogia para
através dela se admitir a existência dos mesmos direitos em
hipóteses que a lei não previu? Se concluirmos que há aqui
outras tantas tipologias menores de direitos reais, o problema -
vem a confundir-se com o que examinámos no número ante- -
rior, o que nos levaria a concluir que há, ou subtipos, ou -
tipos especificativos autónomos de direitos reais. Se con- --
cluirmos porém que apenas está em causa o facto constitu-
tivo, já o problema terá de ser apreciado e resolvido diver-
samente.

61. mpót.eses em discussão

1 -Vamos, para ilustração, passar em revista algumas


hipóteses em que o problema se pode suscitar sem que, de
modo algum, nos anime a pretensão de esgotar o elenco.

(U) Partimos evidentemente do pressuposto de que estas e


outras figuras em discussão representam direitos reais.

173
Basta-nos apontar situações em que a ligação à tipicidade
dos direitos reais foi expressamente tentada pela doutrina.
Começamos por certas figuras, a que usualmente se
atribui origem legal, e em que se procurou resolver assim
o problema da admissibilidade da sua constituição fora das
hipóteses previstas por lei.

II -A retenção, no direito anterior, satisfazia plena-


mente os requisitos que acabamos de enunciar. Era prevista
a propósito de casos particulares e sempre como figura de
criação legal. Unificando esses casos dispersos, verificamos
que estava sempre no núcleo da situação a possibilidade de
o devedor da entrega de coisa alheia recusar essa entrega
enquanto o credor não pagasse um débito que com a posse
da coisa estava directamente relacionado ( 16 ).
Sabe-se como era debatida a possibilidade de generali-
zar a figura da retenção a novas hipóteses. A doutrina pro-
nunciava-se em geral pela negativa, invocando razões que
não têm relevância no aspecto que nos interessa, como a
atribuição de carácter excepcional à figura por esta contra-
riar o princípio da igualdade dos credores.
Problemas semelhantes se debatem nas doutrinas estran-
geiras. Por exemplo: o § 647 do Código Civil alemão prevê
o «penhor legal», que corresponderá à nossa retenção, quando
alguém mantenha em seu poder uma coisa móvel que o dono
lhe entregou para reparar, enquanto o preço não for pago.
Verificaram-se porém casos em que possuidores de veículos
alheios entregaram esses veículos para reparação e não paga-
ram o preço; e logo se desenhou o conflito de interesses entre
o proprietário, que pretende reivindicar o veículo, e o dono
da oficina, que pretende retê-lo em garantia do seu crédito.
Existirá então um penhor legal?

( 16 ) O novo código uni.ficou o tratamento da matéria e moldou


um tipo compreensivo (art. 754.º) mas não eliminou o problema,
uma vez que se continuam a admitir «casos especiais» de direito
de retenção. Serão tipos específicos, ou apenas se prevêem certos
factos constitutivos?

174
Contra a orientação da doutrina, o Supremo Tribunal
alemão respondeu negativamente. A discussão envolveu o
recurso a numerosos institutos, alguns dos quais não leva-
riam entre nós a resultados úteis, como o da protecção da
aparência jurídica ( 17 ). Interessa-nos apenas acentuar que
mesmo os partidários da solução consagrada pelo tribunal,
quando aventaram a possibilidade da analogia, nunca a
excluíram por quaisquer considerações derivadas <lo princí-
pio do numerus clausus, mas apenas por terem concluído
·que o raciocínio analógico não tinha então base sufi-
ciente ( 18 ).
Entre nós, Paulo Cunha encarou o problema da reten-
ção sob feição diversa, fazendo-o transpor os umbrais da
tipicidade. Para ele, a exclusão da analogia surgia natural-
mente: «Basta a circunstância de ser um direito real para
só por essa razão se poder afirmar que, por força, o direito
de retenção há-de estar concretamente criado na lei» ( 19 ).
Mas não sabemos que essa posição tenha sido posterior-
mente retomada ( 2 º).

III - Os privilégios creditórios apresentam aspectos que


pelo menos podemos considerar análogos. Também temos
um direito de origem legal; e este é previsto por lei com
referência a casos particulares (como resultante da consti-
tuição de certos créditos). Só se nota a diferença sistemá-
tica de, já no código antigo, a situação vir regulada em con-
junto, numa secção especial, e não dispersamente, a propósito
de cada facto constitutivo.

(17) !! o ponto de vista de Frohn, págs. 34 e segs.


(is) Cfr. Henke, sobretudo a págs. 23.
( 111)Da Garantia, pág. 156.
(2º) A. 1Palma Carlos, Depósito, por exemplo, ocupa-se do pro-
blema da retenção na hipótese de depósito judicial, no domínio do
Código Civil antigo, que previa a retenção para o depósito contra-
tual (art. 1450.º, § único). :Pronuncia-se em sentido afirmativo, mas
apoiando-se em razões de ordem diversa das que nos ocupam.

175
Também aqui se pergunta se se pode admitir a constitui-
ção em situações não previstas por lei. Domina largamente
a resposta negativa, sendo importante notar que aqui as
referências ao numerus clausus têm sido frequentes. Assim,
escreve Barbero, referindo-se à ordem jurídica italiana em
que a situação legal é semelhante: «Os privilégios, justa-
mente porque são de origem legal, constituem, como todas
as figuras legais subtraídas à livre iniciativa privada, uma
série fechada, e portanto um número definido, ainda que
bastante vasto, de casos típicos» ( 21 ).

IV-A discussão, como dissemos, ·deve ser generalizada


a todas as figuras em que há possibilidade de uma criação
legal, como o usufruto legal, a preferência ilegal, etc.
Também em relação à hipoteca legal se pode discutir
se pode constituir-se em hipóteses análogas às previstas.
:E. interessante a observação de Roca Sastre que afirma,
tendo em conta o facto de a lei espanhola expressamente
declarar que a situação é excepcional, que há aí uma espécie
de numerus clausus ( 22 ).

V - Mesmo em relação ao ónus real, que apresentámos


no capítulo anterior como dando origem a uma tipologia
menor, a dúvida pode levantar-se. Por exemplo, referimos
já anteriormente o problema da natureza do ónus que pesa
sobre os titulares de imóveis classificados como monumen-
tos nacionais, nos termos do art. 44.º do Decreto n.º 20 985,
de 7 de Março de 1932, quando o Estado realiza as obras
de conservação a que normalmente aqueles seriam obriga-
dos ( 23 ). Vimos que seria necessário verificar se na regula-
mentação desta situação foi ou não consagrado o regime

(2 1) Pág. 156.
(2 2) III, pág. 296. Adiante acrescenta que o facto de haver hipo-
tecas legais extravagantes não significa que sejam numerus aper-
tus (pág. 300).
( 23 ) Supra, n.º 44. Sobre esta 'Situação cfr. Marcello Caetano,
Manual de Direito Administrativo, 7.• ed., n.º 117, d).

176
real para podermos concluir que há mais um ónus real.
Todavia, pode perguntar-se se afinal o que haverá aqui não
será uma mera variedade de factos constitutivos, o que pode
dar ao problema uma fisionomia muito diversa. Então o
tipo estaria já fixado, e apenas se perguntaria se ele pode-
ria surgir, por força da lei, noutras hipóteses.

62. Critério

1 - Enunciado o problema, não nos podemos perder


numa casuística. Vamos antes procurar um critério de solu-
ção que nos possa orientar no exame específico de cada uma
das hipóteses possíveis.
Podemos partir desta observação geral: na medida em
que há na lei factos constitutivos ( 24 ) especificamente pre-
vistos, há necessàriamente uma tipologia. O problema está
em saber se essa tipologia se limita ao facto, ou se se comu-
nica à situação que desse facto promana. Só no segundo
caso ela pode respeitar ainda à tipologia dos direitos reais.
Para uma solução total dos casos controvertidos tería-
mos de ter resolvidos alguns problemas particularmente
árduos da teoria jurídica, nomeadamente o da individuali-
zação das situações jurídicas: seria necessário saber quando
há uma nova situação e não apenas um elemento compo-
nente de outra, onde se colocam as fronteiras das várias
situações, etc. Estes problemas mal foram ainda considera-
dos de forma geral ( 2G).

(2•) Limitamo-nos a falar de factos constitutivos, sem mais


especificações. Outros autores distinguem ainda a situação inicial e o
facto jurídico, que transformaria aquela na situação final, juridica-
mente valorada. Esta distinção permitiria decerto um aprofundamento,
mas para os nossos fins não conduzia a resultados diversos, pelo que
não cornprensaria a maior complexidade de análise que implica.
(25) A mesma perplexidade reina no capítulo da delimitação do
facto jurídico, mas aí já se .pode recorrer ao apoio de investigações
de valor, no que respeita à delimitação dos vários ·tipos de crimes e,
no plano da teoria geral, à análise da f acti species complexa.

177
12
todavia, se o que nos interessa não é a solução de cada
hipótese controvertível, mas o enunciado de um critério geral,
podemos dispensar o exame desses problemas. Basta-nos des-
cobrir o critério distintivo das hipóteses que cabem ou não
na tipologia dos direitos reais, pois isso nos permitirá um
novo avanço no sentido da delimitação desta tipicidade.

I I - Para que se possa dizer que faz parte de determi-


nado tipo a circunstância de este derivar de dado facto cons-
titutivo (ou seja, que a origem de um direito real faz parte
da descrição essencial deste) temos um pressuposto e um
indício.
O pressuposto é o de que todos os restantes elementos
do tipo coincidem, e só a origem os pode distinguir. Isto
é importante, pois de outra maneira haveria logo uma diver-
sidade da descrição essencial que nos imporia a existência
de uma pluralidade de tipos, tornando-se irrelevante a refe-
rência à origem.
O indício assenta na correspondência de um regime jurí-
dico específico a essa ·diversificação do facto constitutivo.
E com isto temos em vista todos os elementos que nos dão
o regime de uma dada figura, e não apenas os que permi-
tem atribuir-lhe natureza real. Se há em cada caso uma
diversificação do regime, isso indica que o facto constitutivo
entrou a compor um subtipo, ou um tipo especificativo. Há
pois uma nova figura: a partir do regime, podemos ascen-
der ao tipo, que se encontra ao menos implícito.
Pelo contrário, se à especificação dos factos constituti-
vos não corresponde uma variação de regime, podemos infe-
rir daí que o tipo não foi alterado. A tipicidade respeita a
um facto: a situação jurídica ficou intacta.
Note-se: mesmo que se encontrem hipóteses desta índole,
o regime não entra a fazer parte do tipo. Tipo é só a des-
crição fundamental de uma situação a que corresponde um
regime real. Nem sequer todas as normas injuntivas refe-
rentes a dado direito real pertencem ao tipo. Se apelamos
para o regime, é apenas por nos dar um indício de que,

178
nessas situações em que o facto constitutivo é diverso, há
ou não uma diversificação do tipo. Quando o regime é
diverso, temos um novo tipo, mas o que completa a descri-
ção fundamental e distingue dos outros tipos redutíveis ao
mesmo conceito é a derivação de certo facto constitutivo,
ou se quisermos a origem do direito. A lei teve em conta a
particular origem daquela situação, e por isso a submeteu
a um regime específico.

III -Temos assim o critério da distinção, que era o


que nos interessava. Mas haverá efectivamente hipóteses
desta ordem? Isso é muito duvidoso, e para uma resposta
cabal teríamos de examinar caso por caso as modalidades
de especificação do facto constitutivo que enunciámos, o
que nos levaria para uma parte especial que seria incom-
portável dentro desta monografia. Aliás, essa investigação
não é essencial, porque, mesmo que a resposta fosse afirma-
tiva, a figura se integraria no esquema geral de interacções
entre facto e situação que traçámos atrás, sem que o relevo
concedido à origem do direito pusesse de algum modo em
causa a afinnação de que o objecto da tipologia dos direitos
reais são situações jurídicas.
Mas, para ilustrar a maneira como a investigação deve
ser conduzida, vamos ainda examinar em especial algumas
hipóteses.

63. Manifestações

I - Na retenção, cremos que tem razão a doutrina domi-


nante, que distingue o problema da extensão da figura a
outras hipóteses, do da tipicidade dos direitos reais. O Código
enumera, nos arts. 754.º e 755.º, as causas normais e espe-
ciais de constituição deste direito, mas a diversidade de
causas não é acon1panhada de qualquer especialização do
regime. Este é estabelecido de modo unitário nos arts. 756.º

179
e segs., e mesmo a distinção que a certa altura se traça entre
a retenção de móveis e a de imóveis não depende da diver-
sidade das causas de constituição. Concluímos, de harmonia
com o critério enunciado, que há um tipo unitário de direito
real «retenção»; e que a tipificação operada nos arts. 754.º
e 755.º respeita exclusivamente ao facto constitutivo.
Cremos que o mesmo acontecerá noutras hipóteses, por
exemplo, nos direitos de preferência; mas, como dissemos,
temos de evitar a dispersão que o exame de cada caso duvi-
doso acarretaria.

II - Nestas hipóteses não há pois uma multiplicação


de tipos de direitos reais: o tipo surge-nos perfeitamente
delineado por lei - e delineado de modo unitário, apesar
da pluralidade de manifestações. Está em causa algo ligado
sõmente à génese do direito, portanto ao facto e não à situa-
ção. Há uma tipologia de factos constitutivos ( 26 ), mas a
tipicidade destas não se confunde com a tipicidade dos
direitos reais, pelo que não é por aqui que ficamos a saber
qual a natureza - taxativa, delimita tiva ou exemplificativa
- dessa tipologia. Está assim em aberto o problema da assi-
milação às circunstâncias determinantes da criação destas
figuras de origem legal, de outras sobre as quais recaiu o
silêncio do legislador, mas que apresentam com as primei-
ras fortes analogias.
Aliás, de natureza idêntica à deste problema seria o de
saber se, por negócio jurídico, se podem criar situações
também integráveis naquele tipo, quando não se verificam
os pressupostos da criação legal. Pode perguntar-se, por
exemplo, se não é possível criar uma retenção por negócio

(24) Assim se confirma mais uma vez que no Direito das Coisas
a categoria da tipicidade se manifesta em vários sectores, e não apenas
quando se trata da tipologia dos direitos reais. Como dissemos, a
típicidade pode atingir qualquer elemento do preceito legal: há tipos
de factO! e há tipos de si tuaç.ões jurídicas.

180
jurídico ( 2 i). Mas não entramos no exame do problema, pois
o que dissemos demonstra já que tudo respeita exclusiva-
mente ao facto constitutivo e não ao direito real: por outras
palavras, que a génese do direito não é elemento constitu-
tivo do tipo. Não nos interessa pois saber qual a índole
destas tipologias de factos constitutivos: cremos aliás que
em última análise só caso por caso se poderá avançar ( 28 ).

III-Nos ónus reais, pelo contrário, há efectivamente


uma pluralidade de tipos, e não só uma especificação de
factos constitutivos. Temos agora oportunidade de compro-
var a correcção da análise que atrás fizemos desta figura,
a propósito do objecto da tipicidade. Mostrámos então que,
mesmo havendo a especificação do facto legal constitutivo,
se deparava em cada caso um tipo diverso ( 29 ).
Observemos agora que falta completamente um regime
genérico extensivo a todas as situações. É a propósito de
cada uma que temos de procurar as regras muito próprias
a que está submetida. O regime do cânon superficiário não
é o mesmo do apanágio do cônjuge supérstite; o regime do
ónus da amortização de empréstimos concedidos pela Junta
de Colonização Interna é por sua vez muito diverso destes,
no que respeita às garantias, às vicissitudes, ao regime das
prestações, etc. Não há portanto um tipo de ónus real, antes
os ónus reais são típicos, e a cada um corresponde um regime
distinto. O princípio do numerus clausus mata pois todas as
veleidades de estender a figura a hipóteses a que a lei não
conferiu natureza real.

(2 7 ) Expressamente em sentido negativo por invocação do prin-


cipio do numerus clausus, von Tuhr, II, I, § 51, 1 (pág. 179); e também
I, § 6, I (pág. 137). Mas esta ligação à tipicidade dos direitos reais
não se pode criticar, porque no direito alemão não há propriamente
um tipo de retenção, mas unicamente o penhor legal.
( 28 ) Se na maioria das hipóteses é evidente que não se defronta
uma tipologia exemplificativa, já a escolha entre a tipologia taxativa
e a delimitativa exige fundas análises.
( 29 ) Supra, n.º 44.

181
A esta luz, toma-se patente uma insuficiência do art.
1306.º, 1., a que atrás já ocasionalmente aludimos ( 30 ). O que
está excluído, não é apenas a constituição negocial de direi-
tos reais na ausência de criação normativa, que é a única
para que o preceito acena com a sua limitação implícita
aos casos de criação por negócio jurídico. O princípio do
numerus clausus exclui também, desde logo, a utilização da
analogia em relação a figuras de criação legal, ou seja, aque-
las que derivam de meros factos. Não se poderia, tendo
em conta a analogia de certa figura de origem legal com o
ónus real, qualificá-la como direito real, apesar de a lei
omitir a previsão de um regime real. Tudo isto cai plena-
mente no âmbito da tipicidade dos direitos reais.

IV - Devemos então concluir que no ónus real a génese


da figura faz parte do próprio tipo? Também aqui chegare-
mos a uma resposta negativa. Se olharmos com atenção,
veremos que se não satisfaz o pressuposto necessário para
a verificação do fenómeno, ou seja, o de que todos os res-
tantes elementos do tipo coincidam. Ora no ónus real veri-
ficamos com facilidade que numerosos elementos que per-
tencem à descrição essencial de uma situação não se encon-
tram noutros casos - seja a periodicidade da prestação, a
sujeição a vicissitudes como a extinção por não uso, a titu-
laridade em benefício do Estado nos casos do ónus da amor-
tização de empréstimos concedidos pela Junta de Coloniza-
ção Interna, e assim por diante. Quer dizer, olhando caso
por caso, encontramos desde logo uma distinção entre as
várias figuras, mesmo abstraindo da variação do facto cons-
titutivo. Temos pois que ainda nesta hipótese não encontra-
mos uma manifestação do fenómeno que nos ocupa.

V - Haverá alguma? Temos de limitarmo-nos a deixar


o problema equacionado, pois dissemos já que não nos pode-

('.;o) Supra, n.º 45.

182
mos abalançar a essa investigação caso por caso ( 31 ). Já
sabemos quando se levanta o problema, já sabemos que em
qualquer caso os princípios em que assentámos sobre o
objecto <la tipologia dos direitos reais não são atingidos.
Abstemo-nos pois de prolongar ainda mais esta investigação
em especial.
Diremos apenas: a existir alguma hipótese em que haja
manifestações típicas de determinada figura especificadas
por uma diversa génese, mas sem que ao conceito que as
engloba corresponda um tipo - eventualidade que nos limi-
tamos a deixar aventada - a consequência seria a proibição
de qualquer analogia. Não poderíamos atribuir essa natu-
reza a situações a que a lei não tenha outorgado um regime
real. Da mesma forma, não poderia a autonomia privada
criar novas figuras da mesma índole. Aliás, isto é consequên-
cia directa da afirmação anterior, pois a criação negocial
tem de ser precedida da criação normativa, e esta não existe
quando só com base na analogia se poderia chegar ao tipo.

64. Conclusão

Muito brevemente, enunciemos algumas conclusões a


que fomos conduzidos nesta secção.
A tipologia dos direitos reais respeita a situações jurí-
dicas, e não a factos.

(ª 1 ) Uma hipótese desta ordem, a crer na doutrina, seria a dos


direitos de preferência. Quando se perguntou se se poderiam criar,
por vontade das partes, direitos de preferência com efeitos reais,
houve respostas afirmativas (vejam-se as anotações da Rev. dos Tri-
bunais, ano 45.º, pág. 292; ano 46.º, pág. 25); mas prevaleceu a nega-
tiva, tendo-se invocado justamente a regra do numerus clausus
( cfr. Manuel de Andrade, Preferência, 144; Relação Jurídica, II, 53,
nota 1). Inclinamo-nos porém a supor que aqui há afinal unidade
de tipo, pelo que esta hipótese se enquadra ainda na primeira moda-
lidade, da mera tipologia dos factos constitutivos.

183
Os factos jurídicos com efeitos reais não são necessà-
riam~ntc típicos: diremos até que em princípio não são
típk·os.
A sujeição a certas vicissitudes pode ser considerada
d('n"lt~nto da própria situação, sem que por isso se suprima
a Ji$tinção entre situação e facto, ou se ponha em causa que
o objecto da tipicidade dos direitos reais são as situações.
Quando estiver cm dúvida se a derivação de um facto
constirutivo pertence ou não ao tipo, concluiremos afirma-
th"31llente se se encontrar alguma figura em que essa deri-
vação provoque a diversidade do regime.
Se tudo se resumir a uma variação dos factos constitu-
th'os. temos urna tipologia de factos, que tem consequências
importantes, mas que estão fora da nossa investigação.
E com isto já poderemos avançar um pouco mais na
formulação do princípio da tipicidade taxativa dos direitos
reais. e.,'{purgando-o das várias ambiguidades e insuficiências
que sucessivamente temos detectado. Sob reserva de ulte-
riores esclarecimentos, diremos que ele se traduz nisto: a
ordem jurídica fixa os modelos de direi tos reais admissí-
veis. O reconhecimento em concreto de um direito real, de
origem negocial ou outra, está dependente desta prévia cria-
ção norma tiva.

SECÇÃO II

cRESTRIÇOES• E "PARCELAS» DA PROPRIEDADE

65. A fórmula do art. 1306.º, 1.

I - Apurado que há uma tipologia de situações jurídi-


ca5, vamos delimitar com precisão qual a situação jurídica
que foi tipificada. A doutrina responde, com prática unani-
midade, que é típica a situação jurídica direito real.
Simplesmente, se olharmos para o art. 1306.º, 1., verifi-
camos que a lei utiliza uma fórmula bem mais complexa.

184
Não se refere nenhuma limitação que tenha por objecto os
direitos reais, mas sim as «restrições ao direito de proprie-
dade ou de figuras parcelares deste direito».
Esta fórmula complexa foi engendrada para dar uma
certa coerência à inovação da lei portuguesa, de apresentar
o numerus clausus, não como um princípio geral do Direito
das Coisas, mas como matéria respeitante à propriedade.
Mas a fórmula é infeliz e a desejada coerência, como vere-
mos, não se conseguiu.

II-Para desvendarmos o sentido da fórmula legal,


comecemos por procurar pontos de apoio seguros.
Só encontramos um: podemos afirmar sem hesitação
que a referência a figuras parcelares do direito de proprie-
dade esconde uma utilização da técnica do desmembramento.
Segundo esta técnica, que se encontrava em franco des-
favor na doutrina mais recente, os direitos reais menores
representariam pedaços ou fracções destacadas de um con-
junto, que constituiria a propriedade. No código faz-se uma
aplicação confessa desta técnica, ao definir-se enfiteuse
«O desmembramento do direito de propriedade em dois
domínios, denominados directo e útil» (art. 1491.º, 1.). Por
isso, quando se fala em «figuras parcelares» da propriedade,
é uma partição ou fraccionamento desta ordem que se tem
em vista. Observemos desde já que, se é certo que a todo o
código, como instrumento científico, devem estar subjacen·
tes certas construções doutrinárias, é temerário tomar por
base concepções postas em causa pela doutrina coeva; sobre-
tudo quando tão fàcilmente se poderia ter evitado o pro-
blema mediante a inscrição de alguns princípios introdutó-
rios no livro do Direito das Coisas.

III - Uma vez apurado que se utiliza a técnica do des-


membramento, logo surge a pergunta: com ela querem-se
atingir todos os direitos reais ou, segundo outra concepção
doutrinária, contrapõem-se os direitos reais que se produ-

185
zem por desmembramento aos que resultam duma oneração
da propriedade? Com efeito, pode-se entender que:

a) todos os direitos reais são atingidos pela referên-


cia a figuras parcelares da propriedade; a referência às res-
trições ao direito de propriedade, também constante do
art. 1306.º, visa já realidades diversas;

b) parte dos direitos reais é atingida pela referência


a figuras parcelares da propriedade, e outra parte é tomada
como «restrições» desta.

Veremos nos números seguintes os fundamentos e as


consequências de uma e de outra posição.

IV - Seja como for, o sistema legal é infeliz, porque


os direitos menores não surgem necessàriamente em relação
com a propriedade. Ainda que se levem ao exagero as teses
do desmembramento, o colocar-se a propriedade em pri-
meiro plano, quando se quer proibir a constituição de direi-
tos menores, serve mais para esconder a realidade que para
a revelar.
A afirmação de que o direito menor não se contrapõe
necessàriamente à propriedade (pode contrapor-se a outro
direito menor), que exigia complexas reflexões doutrinárias
no domínio de lei velha ( 32 ), tem hoje base legal directa.
Pode enunciar-se o princípio de que também o titular de
um direito menor pode, nos limites do seu direito, consti-
tuir outros direitos menores. Veja-se, a propósito do usu-
fruto, o art. 1444.º e, mais claramente ainda, o art. 1460.º, 1.:

( n) Já a defendêramos perante o direito anterior: cfr. Rela-


ções Reais, pág. 87, nota 13; págs. 96-7 e nota 31. Neste último lugar
sustentámos também a possibilidade da existência de direitos reais
sobre res nullius. Isto continua a poder verificar-se, no domínio da
nova ki, mas só nos direitos referentes a móveis, uma vez que as
coisas imówis sem dono conhecido se consideram do património do
Estado (art. 1345.").

186
«Relativamente à constituição de servidões activas, o usu-
frutuário goza dos mesmos direitos do proprietário, mas
não lhe é lícito constituir encargos que ultrapassem a dura-
ção do usufruto».
Por todas estas razões, concluímos que o código portu-
guês não se devia ter afastado do sistema dos códigos que
consagraram anteriormente o princípio do numerus clausus.
Este representa um princípio geral do Direito das Coisas,
que, a ser formulado, deve sê-lo com independência da pro-
priedade, pois esta é apenas um direito real entre outros.
Assim ficamos com um princípio fora do lugar, com uma
fórmula difícil a pretender restituir coerência ao sistema,
e ao fim e ao cabo sem a coerência que se pretendia ...

66. Entendiment.o aparente da lei

1 - A afirmação de que no art. 1306.º todos os direitos


reais estariam abrangidos pela referência a «figuras parce-
lares» da propriedade parece corresponder a um entendi-
mento natural das expressões utilizadas. Porque, enquanto
aquela expressão acorda imediatamente a relacionação com
as teses do desmembramento, a expressão «restrições ao
direito de propriedade» tem também um significado comum,
que não permite aplicá-la a qualquer categoria de direitos
reais.
Efectivamente, de restrições ao direito de propriedade,
normalmente para abranger as restrições a todo e qualquer
direito real, se fala preferentemente no Direito das Coisas
para designar os limites que o titular deve reconhecer, quer
em salvaguarda de um interesse privado, quer do interesse
público. As restrições de interesse público, que moderna-
mente se têm multiplicado, concretizam a função social dos
direitos reais, enquanto procuram harmonizar o exercício
privado com o interesse geral. As restrições de interesse
privado têm sido referidas sobretudo ao direito de vizi-

187
nhança, e a elas dedica o novo código a quase totalidade
do capítulo III (arts. 1346.º e segs.) dentro do título da pro-
priedade.
Parece que este significado de restrições foi aceite pelos
novos textos. ~ assim que no art. 1305.º, que antecede ime-
diatamente a definição do numerus clausus, se estabelece:

«0 proprietário goza de nJodo pleno e exclusivo dos


direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe per-
tencem, dentro dos limites da lei e com observância das
restrições por ela impostas».

Abrangem-se aqui quer as restrições de interesse privado


quer as restrições de interesse público. A afirmação é evi-
dente para as restrições de interesse público, que o código
deixou à legislação especial; e que as limitações de interesse
privado também são encaradas como restrições, resulta por
exemplo dos arts. 1360.º e 1361.º, em que típicas limitações
de vizinhança expressamente se designam restrições ( 33 ).
Eis por que dissemos que é este o sentido aparente do
art. 1306.º: a referência a «restrições» da propriedade teria
em vista as limitações, de interesse público ou de interesse
privado, aos direitos reais.

II-Não cremos que semelhante interpretação resista


à crítica.
Não cabem aqui certamente as limitações de interesse
público, pois essas nunca poderiam resultar de negoc10
jurídico. ~ aos órgãos públicos, como intérpretes do bem
comum, que cabe constituí-las.

( u) No mesmo sentido vai a doutrina: cfr. Pires de Lima,


Lições, cap. II. Aí se manifesta a tendência, frequente na doutrina
portuguesa, de falar em restrições de direito privado para significar
restrições de interesse privado, e de fazê-las coincidir com as limi-
tações de vizinhança.

188
Tão-pouco cabem as restrições de interesse privado.
Estas, que são concebidas como deveres ou limitações de
vizinhança, vêm genericamente previstas na lei. As partes
podem, é certo, modificá-las negocialmente; mas não estão
limitadas aos casos previstos na lei, antes podem fazê-lo
genericamente, desde que utilizem o tipo compreensivo da
servidão; a servidão é por natureza uma alteração duma
relação global de vizinhança ( 34 ). Seria deslocado falar de
um numerus clausus de figuras de servidão, ou até de hipó-
teses em que a constituição desta é possível.

III - Quer dizer, a aparência de explicação que resul-


taria da interpretação literal das fórmulas utilizadas pelo
legislador esboroa-se. Não significa isto que consideremos
a expressão «restrições ao direito de propriedade» incom-
preensível, mesmo que admitíssemos que todos os direitos
reais cabiam na previsão das figuras parcelares da proprie-
dade: teremos ocasião de fixar a seguir os limites do enten-
dimento desta expressão. O que nos basta acentuar é que
a presunção que resultaria do elemento literal não tem qual-
quer fundamento.
E se essa presunção é afastada, é a altura de expor as
objecções que uma figuração do desmembramento, como
explicação exclusiva da génese dos direitos reais, suscita.
Como dissemos, a tese do desmembramento tem na
base uma visão quantitativa dos direitos sobre as coisas.
Ao direito maior, a propriedade, contrapõem-se os direitos
menores, que representariam pedaços ou fracções da pro-
priedade: seja uma enfiteuse ou uma servidão, uma hipo-
teca ou um direito real de aquisição. Coerentemente, deve-
ria concluir-se - mas são já raros os autores que se deddem
a dar este passo - que do estabelecimento de qualquer one-
ração da propriedade derivariam, em lugar da propriedade
anteriormente existente, dois novos direitos reais. Por exem-

( 34 ) Cfr. as nossas Relações Reais, págs. 316 e segs.

189
plo, quando se «Constitui» um usufruto, ao usufrutuário
transferir-se·iam alguns dos poderes da propriedade, e o
antigo proprietário ficaria com um direito - a nua-proprie-
dade, ou propriedade de raiz- que não seria já proprie..
dade, mas sim um direito novo e diferente, pois propriedade
só existiria quando se reunisse a totalidade dos poderes.
Devemos dizer que a figura do desmembramento, de
certa maneira entendida, não nos parece de excluir liminar-
mente. Pode mesmo ainda hoje perguntar-se se a enfiteuse
~e não deve considerar uma «propriedade dividida», reto-
mando-se certas explicações históricas da figura; poderá não
ser verdadeiro, mas é plausível. Tomada como explicação
cxc:Jusiva, porém, a teoria desconhece que, quer a proprie-
dade, quer os direitos menores, assentam num núcleo quali-
tativo, e não numa soma maior ou menor de poderes.
O direito menor resulta, não de uma transferência de
poderes que pertenciam à propriedade, mas da constituição
ex novo desses poderes na titularidade do novo sujeito.
A propriedade ou qualquer outro direito-base ficam então,
não desmembrados, mas onerados: há oneração sempre que
um direito real fica restringido pela coexistência de outro
direito sobre a mesma coisa, que limita o primeiro ( 35 ).
Este esquema, e não o do desmembramento, permite
explicar o que se passa quando se extingue o direito menor.
Não se dá então uma nova transferência de poderes, agora
do titular do direito menor para o primitivo proprietário:
como se poderia, sem ficção, falar dessa transferência, por
exemplo, à morte do usufrutuário? Dá-se antes a extinção
dos poderes que eram o conteúdo do direito menor, e con·
sequcntcmcnte cessa a oneração do direito maior: o titular
volta a poder exercer com exclusividade o seu direito. Isto
é, afinal, a elasticidade. No ponto de vista técnico, resume-se
ao retomar da plenitude do direito, em consequência da

<·~-.) Nc\te sentido, recentemente, cfr. 1. Galvão Telles, Sucessão,


'la 27_
extinção do dever que o limitava. Esse dever estava contido
numa relação jurídica real que ligava os titulares dos direi-
tos maior e menor.

67. Entiendiment.o reflectido da lei

I - Sendo assim, devemos encontrar para o art. 1306.º


outra explicação. Neste está consagrada uma posição corrente
na doutrina portuguesa - a de que os direitos menores se
constituem, ora por oneração, ora por desmembramento da
propriedade. Assim entendia já Guilherme Moreira, que con-
siderava que na enfiteuse e na superfície havia um desmem-
bramento da propriedade ( 36 ).
Esta posição pode ultrapassar a crítica que dirigimos à
teoria do desmembramento. Dissemos que era em abstracto
admissível, nalguns casos, esse desmembramento. Sendo
assim, basta-nos verificar que a lei toma essa posição, sendo
inútil proceder à crítica do sistema por ela adaptado. Da
mesma forma, torna-se inútil distinguir os direitos reais que
cairão na previsão das «restrições» dos que são tidos como
«figuras parcelares» da propriedade. Mesmo que o critério
distintivo fosse correcto, o regime seria exactamente o
mesmo; já vimos que assim acontecia, ao tratar da conver-
são legal (supra, n.º 31) e teremos ocasião de o confirmar
noutros lugares. Isto mostra a falta de interesse desta inda-
gação para o nosso tema.
Queremos ainda observar que a utilização que fazemos
da expressão restrições ao direito de propriedade não nos
parece falha ·de antecedentes. O Código do Registo Predial
(art. 2. 0 , 1., z)) sujeita a registo «quaisquer outras restrições
ao direito de propriedade, ou outros encargos que a lei espe-

Vol. H, págs. 16 e segs. Cfr. também Pires de Lima e Antu-


( 36 )
nes Varela, n.º 76 (vol. II); Pires de Lima, Lições, pág. 60. Tem tam-
bém muito interesse a indagação de 'Paulo Cunha, Lições, nomeada-
mente a págs. 128 e segs.

191
cial declare sujeitos ao registo predial. .. ». Aqui se quise-
ram prever todas as categorias de situações que atingem as
coisas com inerência, e é difícil qualificar a expressão como
devendo abranger, ou pelo menos abranger só, as clàssica-
mente denominadas restrições, de interesse público ou pri-
vado, ao direito de propriedade.

I I - Outra dificuldade relaciona-se com o entendimento


a atribuir à expressão «restrições ao direito de propriedade».
Vimos já que ela não abrangia o núcleo que clàssicamente
tem sido coberto pela expressão, e antes fora aplicada, equl-
vocamente, para englobar os direitos reais que se consti-
tuem por oneração. Mas, além destes direitos reais, não
abrangerá mais nada?
Pode perguntar-se se, por interpretação extensiva ao
menos, não deve aplicar-se em princípio a certas situações
em que se verifique ainda a eficácia real ou inerência, mas
das quais se não deva dizer que dão origem propriamente
a um novo direito real. Já se afirmou que estariam neste
caso certos direitos não reais, mas com eficácia real; e o
problema pode também suscitar-se perante as situações jurí-
dicas propter rem.

III - Os direitos «com eficácia real», constituem uma


categoria mal definida, com a qual certos autores procuram
uma saída para englobar situações de muito difícil qualifi-
cação, porque ficavam fora dos esquemas utilizados para a
caracterização dos direitos reais. Como apesar de tudo havia
a oponibilidade destas situações a terceiros, procuravam,
mediante o recurso a uma categoria que representava um
compromisso, a sua caracterização. Assim foram qualificados
o arrendamento e as modalidades de preferência a que se
devia reconhecer eficácia real.
No que respeita a este último caso, travou-se mesmo
um diálogo com certo interesse no domínio do código ante-
rior. Partindo essencialmente da observação da estrutura do

192
direito de preferência, chegaram alguns autores à conclusão
errónea de que esse direito não era real, mesmo que tivesse
eficácia contra terceiros; e Rodrigues Nunes obsenra con-
sequentemente que não se poderia objectar à criação de
direitos convencionais de preferência com eficácia real com
o princípio do numerus clausus, pois aqueles não seriam
direitos reais ( 3 i). Apesar disso, o autor não admitia a cria-
ção convencional de preferências com eficácia real, porque
elas afectariam «a organização da propriedade, que é de
interesse e ordem pública», e além disso «a segurança do
comércio e a estabilidade das transacções» ( 38 ). Ora, estas
são razões que foram invocadas justamente em defesa do
numerus clausus, como observa bem Vaz Serra ( 39 ).
Quanto a nós, a conclusão certa não consiste em admi-
tir que a tipologia dos direitos reais abrange direitos obri-
gacionais ou outros com eficácia real, mas sim que todas
estas figuras são afinal puros direitos reais. Porque o sinal
mais evidente da natureza real de um direito não reside em
qualquer exercício de poderes de facto em relação à coisa,
mas sim na oponibilidade a terceiros ou sequela, que revela
a inerência característica dos direitos reais. Tratámos deste
ponto desenvolvidamente em As Relações Jurídicas Reais ( 40 ),
pelo que nos permitimos remeter para o que então dissemos.
É esta, aliás, a posição que explica o Código do Registo Pre-
dial, quando apresenta como objectivo do registo dar publi-
cidade aos direitos inerentes às coisas imóveis (art. l.º).
Direitos inerentes às coisas imóveis são justamente os direi-
tos reais sobre imóveis.
Em conclusão, estes direitos com eficácia real não podem
deixar de estar abrangidos no art. 1306.º, que fala de situa-
ções com carácter real, querendo com isso significar, de bar-

Pág. 250. Cfr. também Pinto Loureiro, n. 14 a 16.


( 37 ) 0•

( 3s)Pág. 253.
(ª9) Preferência, n.º 2 (pág. 140).
(4°) No cap. V. Cfr. nomeadamente o n.º 111.

193
13
ruonia com o Código do Registo Predial, todos os direitos
merentes às coisas; mas são verdadeiros direitos reais, pois
uma categoria de direitos não reais mas com eficácia real
é uma pura impossibilidade. Pelo que, por este lado, nada
encontramos que possa caber na previsão das restrições ao
direito de propriedade, que não sejam direitos reais.

IV- Caberia seguidamente analisar o problema no que


toca às situações jurídicas propter rem, isto é, a certas situa-
ções de natureza real acessórias a um direito real.
Simplesmente, como estas situações podem alterar o
conteúdo de um ou mais direitos reais a que se refiram ( 41 ),
melhor parece examinar este problema quando perguntar-
mos se os tipos de direitos reais são tipos abertos, ou seja,
se lhes pode ser atribuído negocialmente um conteúdo aces-
sório. ~ então que teremos de passar em revista os proble-
mas suscitados pelas situações jurídicas propter rem. Toda-
via, e sob reserva de demonstração posterior, adiantamos
desde já a afirmação de que tais situações não fazem con-
cluir que o objecto da tipologia consagrada pelo art. 1306.º
não sejam os direitos reais.

V- Em conclusão, podemos agora afirmar positiva-


mente que o objecto desta tipologia são sempre direitos
reais.
A isso nos conduz a mera interpretação da lei: só os
direitos reais verdadeiros e próprios são abrangidos pelo
art. 1306.º. Esta conclusão é forçada pelos antecedentes his-
tóricos que referimos, e dos quais resulta que sob este
esquema sempre se teve em vista apenas a constituição de
direitos reais. Confirma-o a epígrafe do artigo, numerus
clausus: com esta qualificação aceita-se implicitamente a

( 41 ) Cfr. as nossas Relações Reais, cap. V, nomeadamente n.º 118,


cm que concluímos que as relações reais se integram no conteúdo dos
direitos reais de que são acessórias.

194
doutrina para a qual o objecto desse número fechado são
direitos reais e não realidades de outra ordem. Enfim, con-
corre neste sentido o elemento sistemático, como teremos
ocasião de assinalar mais tarde.

SECÇÃO Ili

OS DIREITOS REAIS COMPLEXOS

68. Delimitação desta categoria

I - Outro aspecto pode ficar assente neste capítulo em


que procuramos delimitar a tipologia taxativa (que verificá-
mos existir) através da determinação do seu objecto. Pode-
mos afirmar que se proíbe a constituição, «fora dos casos
previstos na lei», não somente de direitos reais simples,
como prima f acie se poderia pensar em consequência da
interpretação que fizemos do art. 1306.º, 1., mas também de
direitos reais complexos.
A categoria dos direitos reais complexos não mereceu
ainda a atenção dos estudiosos do Direito das Coisas, apesar
de cada vez mais nos parecer trazer a chave para a explica-
ção de certas situações que oferecem particulares dificulda-
des de análise. Devemos por isso começar por fixar os seus
contornos, para indicarmos depois qual a sua relevância no
capítulo da tipicidade.

II-Vamos partir dum caso concreto, a chamada pro-


priedade horizontal. Os autores não assentaram ainda no
tratamento que lhe devem dar. Por vezes, consideram-na um
novo direito real, um elo próprio na tipologia dos direitos
reais. Outras vezes parecem considerá-la uma propriedade
vulgar, apenas especificada por o seu objecto ser um andar,
e portanto parte de uma coisa e não coisa autónoma, pois

195
autónomo é só o prédio ( 42 ). Neste sentido parece inclinar-se
o novo código, pois trata a propriedade horizontal num
capítulo VI, dentro do título da propriedade. E o art. 1414.º,
ao estabelecer o «princípio geral» de que as várias fracções
dum edifício podem pertencer a proprietários diversos,
parece estar a indicar o que há de essencial na figura.
Para nós, porém, a propriedade horizontal é efectiva-
mente um novo direito real. O que não é, é um direito real
simples, pois não representa uma nova forma de atingir
com inerência uma coisa. l?. antes um direito real complexo,
pois combina ou funde formas preexistentes de direitos reais,
neste caso uma propriedade e uma compropriedade, distin-
tas por força da diversidade do respectivo objecto. Isto é
expressamente estabelecido no art. 1420.º, que acrescenta:
«O conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles
pode ser alienado separadamente ... ».
A propriedade horizontal é pois um direito real com-
plexo, porque pressupõe necessàriamente a conjugação de
mais de um direito real na titularidade do mesmo sujeito.

III -1?. também muito elucidativa a superfície, pois


nesta a complexidade atinge um extremo. Nessa situação
pode chegar-se a um grau de desenvolvimento tal que pode-
mos apontar - e sem preocupação de ser exaustivos - dois
direitos reais na titularidade do superficiário, três na titu-
laridade do fundeiro. O superficiário tem:

- o direito de implantar a obra (direito de superfície


em sentido restrito);
- o direito de propriedade sobre a obra implantada.

O fundeiro, ou proprietário do solo, tem:

- a propriedade do solo;

('2) Sobre a admissibilidade da categoria de direitos reais a


partes da coisa, cfr. as nossas Relações Reais, n.º 52 a 56.

196
- um ónus real, o direito ao cânon superficiário, no
caso de se ter convencionado que o superficiário
pague uma prestação pecuniária anual (art. 1530.º);
- a expectativa de aquisição da obra quando cessar o
período pelo qual a superfície foi constituída, no caso
de a superfície ser temporária.

Entram pois na composição da superfície todos estes


direitos reais, de espécie tão diversa; mas a superfície é efec-
tivamente um novo direito, uma vez que da integração daque-
les resulta uma unidade nova. Nomeadamente, o regime de
cada um deles não é o mesmo que seria se surgissem com
independência. O ónus real cânon pode apresentar-se subme-
tido a um regime que se diferencia do que tipicamente cabe
ao ónus real, visto que a sua inserção no conjunto o vai
fazer sofrer as repercussões de cada um dos outros direitos.
Indo um pouco mais longe, diremos que o direito real
complexo não é a soma dos direitos reais simples, é antes
a sua fonte. A superfície existe já antes de a obra ter sido
realizada; os direitos reais parcelares podem surgir só pos-
teriormente, sem que a figura de conjunto seja prejudi-
cada ( 4 ª). E uma análise que não podemos agora infeliz-
mente relatar demonstra-nos mais - demonstra-nos que
direitos parcelares podem deixar de existir, sem que por
isso deixe de se verificar uma figura da superfície ( H). Não
podemos pois deixar de considerar a superfície, em globo,
um novo direito real - embora um direito real complexo,
visto que os elementos que a compõem perdem a sua auto-
nomia no conjunto.

( 43) A expectativa de aquisição do fundeiro, por exemplo, só


surgirá depois de a obra ter sido implantada.
( 44 ) No que respeita ao cânon superficiário, por exemplo, esta-
belece o art. 1537.º, 1., que a falta de pagamento das prestações anuais
extingue a obrigação de as pagar, mas o superficiário não adquire
a propriedade do solo: ou seja, a superfície mantém-se mesmo quando
o ónus real se extingue.

197
Note-se que na superfície, tal como na propriedade
horizontal, os direitos reais simples recaem sobre parte da
coisa ( 411 ). E isto permite-nos outra verificação: a de que
os direitos reais simples que compõem um direito real com-
plexo podem recair apenas sobre parte de uma coisa, embora
o direito real complexo a atinja na totalidade.

IV- Mas não é só quando há parcelamento jurídico do


objecto que encontramos direitos reais complexos. A enfi-
teuse fornece-nos outra hipótese muito significativa. Se con-
siderarmos que o senhorio directo é o proprietário, como
continua a parecer-nos correcto apesar de o novo código
falar em fraccionamento, teremos que na sua titularidade
se conjuga uma mera propriedade e um ónus real, o foro,
e portanto o direito do senhorio directo é um direito real
complexo.
A estes se contrapõem os direitos reais simples. Quando
a propriedade é onerada por um usufruto, por exemplo,
cada um dos titulares em conflito tem apenas um direito
real, uma propriedade ou um usufruto, e é tudo. Daqui se
vê aliás que não se pode confundir o direito real complexo
com o conflito de direitos reais. Entre proprietário e usu-
frutuário há um conflito de sobreposição ( 46 ), mas cada
uma dos posições reais em presença é constituída por um
direito real simples.

69. Inclusão no âmbit.o da üpicidade

I - Qual a posição que ocupa perante a tipologia taxa-


tiva dos direitos reais a categoria dos direitos reais com-
plexos?
Não há pràticamente nenhuma referência doutrinária a
este problema. J:: certo que Koller escreve acidentalmente

Nossas Relações Reais, n.º 54.


( 45 )
Para uma noção desta figura, cfr. as nossas Relações Reais,
( 46 )
nomeadamente o n.º 51.

198
que se pode realizar a combinação (económica) de várias
figuras de direito real juridicamente autónomas ( 47 ); e con-
clui que nesses casos, por não haver nenhum novo direito
real, não haveria ofensa da tipologia taxativa. Na realidade,
porém, essa hipótese não nos interessa directamente, e só
tem a utilidade de permitir delimitar o nosso campo. O que
nos poderia interessar seria a combinação jurídica de várias
figuras de direito real, de modo que elas entrassem a formar
uma nova unidade, perdendo a sua autonomia no conjunto.
Não interessa a mera combinação económica, em que cada
uma das figuras continua a ser juridicamente uma unidade
autónoma e independente ( 48 ). Assim, se o titular do prédio
encravado convencionar com o titular do prédio circundante
a constituição de uma servidão de passagem, e simultânea-
mente a constituição de uma hipoteca sobre o prédio encra-
vado em garantia da indemnização pactuada, os dois direi-
tos formam uma unidade económica, mas cada direito real
mantém a sua independência e a submissão às suas próprias
regras. Não existe então, por natureza, nada que possa inte-
ressar ao numerus clausus.
Fixando-nos pois nos casos em que há elaboração de
uma nova unidade jurídica, vejamos se esta é ou não com-
patível com a tipologia taxativa.

II - Atendendo ao art. 1306.º, 1., poderia pensar-se que


ele não é explícito quanto a esta situação, ou até que a não
excluiria. Poderia dizer-se que não se verifica a constituição
de restrições ao direito de propriedade ou de figuras par-
celares deste direito, mas uma mera combinação de figuras
preexistentes -propriedade, usufruto, hipoteca, etc. -que
representam direitos reais simples, admitidos pela lei.

('7) Pág. 99, nota 1.


( •s) Distinção que não é certamente desconhecida de Koller,
pois a págs. 127 exclui a criação, através da combinação de formas
reconhecidas, de novas modalidades de sociedade comercial.

199
Mas não é assim, e é muito claro desde logo que é con-
forme ao espírito do art. 1306.º, 1., a exclusão de direitos
reais complexos que não sejam previstos por lei. É que esta
nova unidade traz necessàriamente o seu regime próprio,
e a sua admissão lesaria todos os objectivos que se quise-
ram garantir ao estabelecer a regra do numerus clausus.
Aliás, não é necessário operar nenhuma extensão da
tipologia para abranger também os direitos reais comple-
xos; eles estão naturalmente àquela sujeitas. É que, como
dissemos já, o direito real complexo não é a soma dos direi-
tos reais simples que possam concorrer em dada situação:
é antes uma entidade autónoma que funciona como a fonte
desses direitos mas não está dependente deles, nem neles
se esgota. Quer dizer, o direito real complexo é uma unidade
nova: não é uma figura colectiva, é antes um composto.
Como tal, esse novo tipo de direito real ou está incluído na
tipologia normativa, ou não pode ser admitido. Assim seria
se se quisesse suprir uma eventual falta de previsão da anti-
crese pela elaboração de um direito complexo, em que se
combinassem a hipoteca e o usufruto, aglutinados de modo
a estarem sujeitos às mesmas vicissitudes e receberem um
regime comum, diverso do de cada figura tomada por si ( 49 ).
Concluímos pois que também os direitos reais comple-
xos são abrangidos pela tipologia taxativa dos direitos reais.

(t9) Vimos que se procedeu assim noutros países: cfr. supra,


n.º 19, VII.

200
CAPITULO V

FONTES NORMATIVAS DOS DIREITOS REAIS

SECÇÃO 1

LEI E FONTE DE DIREITO

70. Generalidades

I-Até aqui aceitámos no fundamental a posição tomada


sobre o nosso tema pelo art. 1306.º, e quase nos limitámos
a esclarecer este, sob vários aspectos, por considerações pró-
prias da tipicidade. É a altura de entrar na sua crítica. Para
além do art. 1306.º, há muito mais que interessa à tipici-
dade dos direitos reais.
Começamos pela restrição do art. 1306.º da constituição
de direitos reais aos casos previstos na lei. Até agora, acolhe-
mos passivamente esta atribuição à lei do monopólio, na
criação de tipos de direitos reais.
Mas não podemos ignorar a problemática geral das
fontes de direito. Em relação a cada ordem jurídica, tem
de se perguntar quais os «modos de criação e revelação das
normas jurídicas», como se costuma dizer. Tradicionalmente,
o debate restringe-se à lei, ao costume, à jurisprudência e à
doutrina.
Se estas realidades puderem efectivamente ser conside-
radas fontes, a lei é uma fonte de direito entre outras. Não

201
poderá pois imaginar-se que a tipologia dos direitos reais
se não confine nos modelos legais? Basta para tanto que
também do costume, ou da jurisprudência, ou da doutrina,
possam derivar novas espécies de direitos reais dentro da
ordem jurídica portuguesa.
Note-se que o problema não se suscitaria, ou não se
suscitaria da mesma maneira, se vigorasse entre nós regra
semelhante à do art. 2.º da lei de introdução ao Código Civil
alemão: «Lei no sentido do Código Civil e desta ·lei é toda
a norma jurídica». Então não haveria uma limitação, ao
menos aparente, a uma das fontes de direito em abstracto
possíveis, mas a aceitação de toda e qualquer categoria de
fontes. Mas o nosso código seguiu um caminho totalmente
diverso. Logo o art. l .º, que em breve teremos oportunidade
de examinar, nos dá de lei uma noção muito restrita. Em
princípio, pois, o disposto no art. 1306.º estará em confor-
midade com esta noção.

II - Dadas estas circunstâncias, somos obrigados, para


esclarecer este aspecto da tipologia dos direitos reais, a ave-
riguar quais são em concreto as fontes de direito admitidas
na ordem jurídica portuguesa, para passarmos depois à aná-
lise da sua relevância na criação de direitos reais.
Esta investigação é em extremo delicada, e podemos
dizer que a recente entrada em vigor do novo Código Civil
ainda aumentou a sua delicadeza, de tal modo é difícil desde
já destrinçar o que há de válido e o que há de meramente
aparente no enunciado de fontes de direito que o legislador
teve por bem inserir logo de início.
Vamos por isso começar por algumas observações gerais
sobre a maneira como a ordem jurídica se nos apresenta,
para em seguida procedermos ao exame de cada possível
fonte de direito de per si. O costume e a jurisprudência,
visto que oferecem maiores dificuldades, serão objecto de
secções autónomas.

202
71. A ordem jurídica

I - O Código Civil apenas reflecte, em geral, uma ordem


legal. ~ o que se verifica nomeadamente no enunciado das
fontes de direito - se deixarmos de lado os assentos, que
são uma excepção, cujo significado e alcance teremos opor-
tunamente de analisar cuidadosamente.
A lei, a que o código se refere, deve ainda acrescentar-se,
é a lei positiva. Toda a referência ao Direito Natural, a uma
ordem superior e transcendente à ordem positiva, que repre-
sente para esta, não só o modelo ideal, como o próprio cri-
tério de validade, desapareceu do novo texto. E todavia,
aqui não podemos mais do que manifestar uma orientação
anti-positivista geral, que aliás é a da doutrina moderna, e
acentuar que na base da ordem jurídica encontramos esse
sistema normativo natural, quaisquer que sejam as palavras
do código. O facto de admitirmos uma espécie de presunção
da validade do direito positivo não atinge esta referência
fundamental. Devemos aliás acrescentar que ainda aqui nos
parece que na própria ordem legal estes princípios foram
acolhidos: o art. 4.º da Constituição Política considera o
Estado limitado pela Moral e o Direito, no que não pode
deixar de estar incluída a admissão de ordens normativas
heterónomas ( 1 ). Não nos parece que estes princípios tenham
tido tradução suficiente no Código Civil.

II -Mas, ressalvado este pressuposto de toda a aná-


lise posterior, ocupemo-nos agora da ordem positiva. Pode-se
dizer que essa é a ordem legal, ou pelo menos que é a ordem
trazida pela lei? Por outras palavras, o Direito Positivo é o
sistema directa ou indirectamente dependente das valora-
ções legais?

( 1) Seria evidentemente deslocado intervir no debate que esta


previsão suscita, ou até simplesmente relatá-lo.

203
Como dissemos, aqui entram em jogo as concepções
fundamentais, que nos transportam ao domínio da filosofia
do direito. E todavia, porque mais uma vez as consequên-
cias práticas estão dependentes de pressupostos gerais, não
podemos excusar-nos a acrescentar algumas palavras.
O nosso ponto de partida não pode deixar de ser a
ordem que verificamos existir dentro de toda a sociedade.
Essa ordem, que permite a unidade e a permanência dentro
da complexidade da moderna sociedade industrial, como o
permitiu em épocas anteriores, aproxima-se das ordens natu-
rais, enquanto se alicerça no que efectivamente acontece,
mas afasta-se delas na medida em que se não deixa reduzir
a um sistema de causas e de efeitos. O ser que temos aqui
em conta é um ser que apresenta a complexidade de envol-
ver simultâneamente um dever ser: é um ser que tem o
significado de um devido, para falar como Larenz ( 2 ). Por
isso diremos que estamos neste caso perante uma ordem
normativa.
Na ordem normativa da vida social podem por sua vez
apreender-se várias ordens parcelares: e entre elas encon-
tramos a ordem jurídica. Essa ordem jurídica, cujos carac-
teres distintivos seria deslocado enunciar aqui, não é pois
diversa dos restantes elementos da ordem social- como
eles, é constituída por factos que têm o significado de um
dever ser.
Por este caminho se orientaram, no meio dos mais
variados cambiantes, numerosas correntes do pensamento
contemporâneo, mas parece-nos que seria injusto não refe-
rir em particular as palavras já clássicas de Santi Romano:
«0 direito, antes de ser norma, antes de respeitar a uma
relação singular ou a uma série de relações sociais, é orga-
nização, estrutura, posição da própria sociedade em que se

(2) Methodenlehre, pág. 144.

204
desenvolve, e que ele constitui como unidade, como ente
autónomo» ( 3 ).
É certo que por abstracção podemos em cada mon1ento,
dentro da unidade viva e contínua da vida social, individua-
lizar as normas que exprimem esse dever ser. Mas com-
preende-se que as normas não representem toda a realidade
da ordem ou do ordenamento jurídico, e que para este con-
corram factos de todos os dias, como a aceitação de coman-
dos, o contrato, a sentença, a doutrina jurídica ( 4 ). Tudo isto
entra a fazer parte da ordem social e vai-a modelando ( r>).

72. A lei

I - Nesta base podemos já, sem nos perdermos nos inu-


meráveis problemas que o tema suscita, tentar uma aproxi-
mação da noção de lei que está no centro da visão do nume-
rus clausus reflectida pelo código.

( 3) Pág. 27. Recordemos também Reale, Filosofia, II, n. 196


0•

a 202. Mas note-se que não basta reconhecer entre facto e norma
uma conexão meramente genética (esta pareceria ser a posição do
próprio Reale, a atendermos às afirmações que faz em Teoria, nomea-
damente a págs. 10 e 14 ). :e. necessário chegar a uma integração mais
estreita, afirmar que a norma está contida no facto, embora se não
deixe reduzir a este.
( •) Neste sentido vai a construção original exposta recente-
mente entre nós por M. Gomes da Silva, Esboço, 148-50, nomeada-
mente. O direito não é constituído apenas por aquilo a que o autor
chama a ordem jurídica objectiva, mas ainda pela ordem jurídica
subjectiva e pela vida jurídica, esta entendida como o «esforço cons-
tante da ordem jurídica objectiva para enformar a subjectiva, por
meio do impulso dos factos para tal previstos e da reacção contra
o torto». Não podemos, infelizmente, deter-nos na consideração dos
vários elementos que entram nesta construção.
( 5) :e. nesta base que aceitamos a afirmação de Betti, Zur Grun-
dlegung, 129, de que a ordem jurídica é um organismo em permanente
evolução, dotado de capacidade de a si mesmo se integrar; e evolui
de harmonia com o desenvolvimento da sociedade, de tal modo que
a ordem jurídica pode ser concebida como o reflexo desta.

205
Uma lei é um texto ou fórmula imposta por um órgão
competente cm determinada sociedade, para que se integre
na respectiva ordem jurídica. Essa fórmula deverá possuir
um dado conteúdo intelectivo, que se pode atingir desde que
a conjuguemos com os restantes elementos componentes da
mesma ordem jurídica. O conteúdo é a norma. A tarefa que
nos permite, a partir da fórmula, extrair uma norma, pelo
confronto com todos os elementos da ordem jurídica em
que se inscreve, é a interpretação.

II- Gostaríamos de aproveitar a oportunidade para


acentuar que a interpretação é uma tarefa de conjunto, e
que em certo sentido o que se interpreta é sempre o orde-
namento jurídico, como dizia Santi Romano ( 6 ), e não um
preceito isolado. Falámos não há muito do Código Civil
japonês. O respectivo projecto foi elaborado em estreita
submissão ao código francês, mas o texto definitivo veio
a sofrer a influência de outros códigos europeus. Nestes
termos, foi posto a vigorar numa sociedade em que a noção
do jurídico é totalmente diversa, hoje ainda, da dos mode-
los que tinha adaptado, e em que a vida diária se vasa em
moldes totalmente alheios aos europeus. Poderíamos tender
a pensar, formalmente, que a fórmulas idênticas correspon-
deria um conteúdo idêntico. Na realidade, não é assim. As
fórmulas legais, repercutindo-se no meio social, ganharam
significado frequentemente muito diverso do que lhes era
dado nas sociedades de que provinham. Era a defesa da
ordem social, que espontâneamente elaborava os meios de
composição possível com instrumentos cujo espírito lhe
repugnava.

III-Como a ordem social se encontra em permanente


evolução, o sentido objectivo da lei evolui também. Não são
os juristas que a alteram, não é a interpretação em si que

( r,) Interpretaz.ione, pág. 124.

206
muda: a interpretação em si é sempre a mesma, o signifi-
cado objectivo da fórmula legal é que passa a ser diverso.
Tomemos o art. 1346.º do Código Civil. Aí se proíbe a emis-
são de fumo, a produção de trepidações e factos semelhan-
tes, em relação a prédios vizinhos, «sempre que tais factos
importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou
não resultem da utilização normal do prédio de que ema-
nam».
Em concreto, quando é que se pode dizer que o pre-
juízo é substancial, que a utilização é normal? Tem de se
atender ao circunstancialismo ambiente. Interessam os hábi-
tos locais, mas não basta: tem de se recorrer às concepções
sociais dominantes. Concepções essas que variam, e por-
tanto os resultados a que conduziria ontem a aplicação da
norma podem ser diversos dos de hoje. Assim o decidiram
9s tribunais alemães ( 7 ), e Lehmann comentou favoràvel-
mente essa orientação ( 8 ), que depois se tornou património
comum da ciência jurídica alemã.

73. Normas corporativas

I - Levanta-se também o problema da admissibilidade


da criação de direitos reais através de outras realidades que
o código expressamente coloca entre as fontes de direito-
as normas corporativas. Não é admissível que destas resul-
tem direi tos reais?
Podemos chegar sem grandes desenvolvimentos a uma
resposta negativa.

(7) Sentença do Tribunal de Bamberg de 29 de Agosto de 1936,


publicada na Juristische Wochenschrift, 1936, IH, 3454. A mesma posi-
ção foi adoptada depois pelo Tribunal Supremo (Reichsgericht,
154, 164 ).
(ª) Anotação na citada Juristische Wochenschrift: para que se
conclua que a utilização é a normai, não interessam só as relações
loca-is; depende de um juízo de valor, influenciado pela técnica, pelas
relações da vida e pelas nossas concepções sobre as suas exigências.

207
O art. 1.º, 1., do Código Civil diz-nos de facto que são
fontes de direito as leis e as normas corporativas. Há desde
logo neste preceito uma assimetria que não queremos deixar
de assinalar. Uma categoria qualquer de normas nunca pode
ser fonte de direito. A norma é antes o que resulta da fonte,
é o conteúdo da própria ordem jurídica. Recorde-se o que
dissemos há pouco, quando distinguimos o texto ou fór-
mula que dá a essência da lei, e a norma que dela poderá
resultar.

II -Mas regressemos à pergunta que inicialmente fize-


mos. Por que não referimos as normas corporativas entre
as fontes de direito, como faz o código?
Não o fizemos antes de mais porque, doutrinàriamente
falando, as normas corporativas são leis. Também elas se
cifram cm textos ou fórmulas que autoritàriamente são emi-
tidos em dada sociedade. O facto de poderem ser de forma-
ção autónoma, ao contrário da lei formal, não tem qual-
quer significado quanto à sua natureza.
Assim o tem entendido a doutrina, que dá de lei um
conceito muito amplo, e procede seguidamente a uma plu-
ralidade de distinções. E por isso também, como as várias
realidades se situam a níveis muito diversos, que é neces-
sário seguidamente determinar a hierarquia das leis.

III -Ainda outros problemas, esses já mais directa-


mente ligados ao nosso tema, suscita a consagração legal
da categoria das normas corporativas.
Dissemos que, substancialmente, a norma corporativa é
uma lei. Mas dissemos também que dentro das leis se deve
proceder a distinções, se deve estabelecer uma hierarquia.
Não custa reconhecer que o código terá facilitado essa hierar-
quização com a distinção que estabeleceu: chamou leis a rea-
lidades mais elevadas dentro da escala hierárquica (as que
são de produção estadual) e normas corporativas a realida-
des de ordem menos elevada (e esta previsão pode esten-

208
der-se, por analogia, a todas as normas de produção autó-
noma)('>).
Quando o art. 1306.º, 1., dispõe que a constituição de
direitos reais só é admissível nos casos previstos na lei, que
terá tido em vista? O sentido doutrinário de lei? Ou, pelo
contrário, o sentido mais restrito definido no art. 1.º, 2.?
O elemento sistemático leva-nos a preferir esta segunda
hipótese: se há no próprio código uma definição de lei, é
em princípio a ela que se deve recorrer todas as vezes que
o termo for utilizado. Pode o legislador nem sempre ter sido
fiel à sua própria terminologia, mas não deixa de existir
como que uma presunção de coerência, que só cederá perante
prova em contrário.
Essa prova, não nos parece que possa produzir-se. E com-
preensível que, dada a certeza que o legislador quis atribuir
à categoria direito real e dadas as repercussões que este
pode ter para com terceiros e para com o comércio jurídico
em geral, se limitem as entidades que podem dar vida a
tais situações. Os órgãos estaduais terão pois tornado seu
monopólio a criação de figuras de direito real.
Aqui temos pois mais uma consequência, esta não apa-
rente, do princípio do numerus clausus; ele implica uma
estadualização deste aspecto da vida social, dentro da cria-
ção legal.

74. Posturas e outros diplomas emanados de autarquias


loca.is

1 - Logo que o Projecto do Código Civil foi publicado,


sentiu-se a ausência no texto do art. l .º de expressa refe-
rência aos diplomas emanados das autarquias locais. Isto
complica o problema que cabe agora esped:ficamente resol-
ver: há aqui, ou não, fontes possíveis de direitos reais? Uma

( 9) Sobre os critérios que devem presidir à hierarquização das


leis continua a ser muito útil o estudo de Fezas Vital sobre «Hierar-
quia das Fontes de Direito».

209
14
postura duma Câmara, que disponha de certa maneira sobre
bens ou negócios relativos ao concelho, não pode criar um
novo direito real?
Em abstracto, há três soluções possíveis:
- integrar esses diplomas na referência às leis;
- integrá-los na referência às normas corporativas;
- considerar que não foram previstos pelo código.

II -A primeira tendência seria facilitada pela obser-


vação prévia que fizemos, ao abordar a categoria «normas
corporativas», e que é aqui de todo pertinente: esses diplo-
mas são ainda leis em sentido material, dentro da concep-
ção corrente na doutrina portuguesa, visto conterem dispo-
sições genéricas. Como o sentido material foi consagrado
no art. 1.º, não poderemos concluir logo que o legisla·dor
integra aqueles diplomas na referência à lei? Contra, porém,
temos a circunstância de no n.º 2 se precisar que a lei pro-
vém «dos órgãos estaduais competentes»: a última coisa que
poderíamos esperar dum código que quer exprimir uma
ordem corporativa, logo pluralística, seria a de que ele con-
siderasse as autarquias locais órgãos estaduais ...
Dias Marques, pondo o problema com mais generali-
dade, tentou evitar estas consequências, afirmando que os
termos «lei» e «órgãos estaduais» ·estão aqui usados num
sentido muito amplo, que abrange todas as normas provin-
das de quaisquer instituições de direito público, incluindo
as autarquias locais (1°).

III - Pode pelo contrário pretender-se incluir os diplo-


mas oriundos das autarquias locais na referência às normas
corporativas. O carácter de organismo corporativo que o
concelho revestiu na sua origem histórica é um elemento a
ter em conta, sobretudo porque uma longa evolução hostil
não conseguiu apagar totalmente essa fisionomia.

( 1 º) Código Civil, anotação ao art. l.". Esta posição é reticen-


temente referida na recensão de O Direito, ano 99.º (1967), págs. 195-6.

210
Simplesmente, as normas corporativas são definidas
como as regras ditadas pelos organismos representativos
das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou
profissionais ... (n.º 2). Se se falasse em interesses adminis-
trativos, poderiam considerar-se os diplomas em causa abran-
gidos naquelas normas; não sendo assim, temos de concluir
que ficam de fora.

IV- Pensamos que se deve afirmar sem hesitação que


os diplomas emanados das autarquias locais não estão pre-
vistos no enunciado de fontes de direito do código, pois nem
são leis nem normas corporativas no sentido do n.º 2 do
art. 1.º. Parece-nos forçoso considerar este enunciado exem-
plificativo, pois há várias categorias que não podem encon-
trar aí guarida por mais esforços que se façam: pense-se
nas convenções e tratados internacionais, por exemplo ( 11 ).
Assim terá também de acontecer com os diplomas das autar-
quias locais, que não podemos sem violência fazer entrar
em nenhum dos termos da classificação, como vimos.
Isto nada tem de estranho, porque o legislador de modo
algum considera taxativo o enunciado de fontes de direito
que apresenta: diz que as leis e as normas corporativas são
fontes imediatas de direito, mas não diz que só elas são
fontes (imediatas) de direito. A doutrina, apoiada antes de
mais no texto constitucional, poderá completar este enun-
ciado, aliás dispensável, em toda a extensão em que se reve-
lar necessário.

V - Mas se os diplomas emanados das autarquias locais


não são, nem leis, nem normas corporativas, aproximam-se
mais destas do que daquelas. E.-lhes por isso aplicável pre-
valentemente o regime das normas corporativas.
Já se perguntou se a finalidade do legislador de 1966
não terá sido a de proclamar a não necessária estadualiza-

( 11 ) Neste sentido, Miguel Galvão Teles, pág. 53, nota 50 a.

211
ção do direito, o pluralismo da criação jurídica: intenção
que aliás não teria sido realizada com felicidade ( 12 ). Efec-
tivamente, essa nos parece a maior utilidade desta previsão
das normas corporativas. Ora os diplomas das autarquias
locais também consubstanciam, ao menos como aspiração,
uma formação autónoma do direito; também se integram
nas leis ou regras corporativas, entendidas estas em sentido
lato. Se o critério que inspirou o legislador de 1966 foi a
contraposição das formas de produção autónoma às formas
de produção heterónoma do direito, as regras provindas das
autarquias locais deveriam aproximar-se da categoria das
«normas» corporativas, e não da das leis. A elas se aplica-
ria também, por exemplo, o n.º 3 do art. l.º, que determina
que as normas corporativas não podem contrariar disposi-
ções legais de carácter imperativo.

VI - Resta, de quanto dissemos, tirar a conclusão rela-


tiva à possibilidade de criação de direitos reais por diplo-
mas desta ordem.
Pensamos que as considerações que fizemos quanto às
normas corporativas são inteiramente aplicáveis: a assi-
milação tendencial de regime, por que se conclui à face do
art. l.º, tem aqui uma imediata consequência. A norma da
autarquia local não poderá, como não pode a norma corpo-
rativa, constituir direitos reais. Assim se servem os inte-
resses que justificaram, como vimos, a adopção do princípio
do numerus clausus.

75. As várias cat.egorias de leis matieriais

Passemos ao mais difícil problema suscitado pela deli-


mitação da referência do art. 1306.º à lei.

( 12 ) José H. Saraiva, Apostilha, 46-8.

212
I - No art. l.º do Código Civil italiano indicam-se como
fontes de direito, além das leis, das normas corporativas e
dos usos, os regulamentos. Consequentemente, os artigos
seguintes disciplinam alguns aspectos da relação do regula-
mento com as restantes fontes de direito.
No nosso Código Civil, o n.º 1 do art. l.º omite qual-
quer referência a regulamentos. Mas o n.º 2, considerando
leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos
estaduais competentes, mostra que a supressão resulta de
aqueles terem sido considerados leis. Lei é tudo o que, pro-
vindo de órgãos estaduais, cria normas jurídicas, seja qual
for a forma que revista essa criação.
Esta é a razão do nosso problema: se o numerus clausus
significa a limitação aos tipos «previstos na lei», será admis-
sível á constituição de direitos reais por todos estes meios?
Se continuarmos a seguir a presunção de que um termo que
é definido na lei é nela utilizado sempre com o mesmo signi-
ficado, devemos responder afirmativamente.

I I - São em extremo numerosos os preceitos que fazem


remissões genéricas para a «lei». Encontramo-las frequentes
vezes nos artigos vizinhos do art. 1306.: cfr. os arts. 1305.º,
1307.º, 1308.º, 1309.º, 1310.º, 1311.º, 1316.º ... Por seu turno,
os arts. 1303.º e 1319.º submetem determinadas matérias a
«legislação especial». Muitos outros casos se poderiam enun-
ciar, dentro e fora do Código Civil. A própria Constituição
Política remete para a lei o tratamento de várias matérias.
J:! particularmente importante a atribuição à lei do poder
de limitar direitos, liberdades e garantias individuais conti-
dos no art. 8.0 •
Pareceria pois que devia estar perfeitamente determi-
nado o significado desta remissão, tendo em conta a cha-
mada hierarquia das leis. Mas não é assim. O tema tem sido
abandonado na doutrina; e na lei dificilmente encontramos
lugares paralelos que auxiliem a nossa investigação.

213
Temos por isso de nos abster de uma análise completa,
que abandonamos ao Direi to Constitucional, e limitarmo-nos
a algumas observações que delimitem ou esclareçam o tema.

III - São frequentes os preceitos legais que estabele-


cem distinções, dentro do campo amplo das leis. Mas não
parec.em aplicáveis ao nosso caso.
A criação de direi tos reais não exige a forma de lei da
Assembleia Nacional, pois não se integra entre as matérias
da competência exclusiva desta, nos termos do art. 93.º da
Constituição Política.
Não se encontra também entre as matérias reservadas
à lei solene no art. 70.º do mesmo diploma.
Não é objecto de qualquer reserva em favor de diplo-
mas promulgados pelo Presidente da República, como acon-
tece nos casos dos arts. 123.º, §único, da Constituição (sobre
o âmbito da apreciação judicial da inconstitucionalidade
orgânica ou formal) e 721.º, 3., do Código do Processo
Civil (que define lei substantiva para efeitos de recurso de
revista). São disposições demasiado específicas para pode-
rem ser generalizadas.
Enfim, enquanto o regulamento não pode ser fonte de
tipos de crimes ( 13), não há nenhum preceito que estabeleça
que o regulamento não pode ser fonte de tipos de direitos
reais.

IV - Fica pois este problema em aberto. Por exemplo,


pode o Governo, ao regulamentar o comércio de certo pro-

(is) Como nota Cavaleiro de Ferreira, Lições, pág. 76, a -legis-


lação penal não está na competência exclusiva da Assembleia Nacio-
nal, mas nem por isso os regulamentos podem ser fontes de direito
penal, como resulta do confronto dos arts. 1.º e 3.º do Código Penal.
Na verdade, enquanto o primeiro define crime como o facto decla-
rado punível pela lei penal, o segundo refere as contravenções às
disposições preventivas das leis e regulamentos.

214
duto, criar por decreto situações munidas de inerência? Ou,
no caso de haver uma lei especial sobre colonização interna
que estabeleça, por exemplo, as bases da atribuição de terras
aos colonos, pode o diploma que a regulamentar fazê-lo em
termos que atribuam natureza real àquelas situações? O pro-
blema põe-se mais fàcilmente no que respeita aos diplomas
para execução das leis de bases (art. 109.º, § 4.º, da Consti-
tuição), dado o carácter necessàriamente vago destas.

V - Tudo depende da posição a que em definitivo se


chegar quanto à distinção substancial entre matéria legal e
matéria regulamentar (tendo em conta nomeadamente os
chamados regulamentos autónomos) e quanto à repercussão
de tal distinção sobre os vários tipos de leis (materiais)
existentes ( 14 ). Se se assentasse, como se defendeu já, que
só a lei toca nos direitos dos particulares, enquanto o regu-
lamento respeita à organização administrativa, chegaríamos
a uma solução negativa deste problema. Mas não se encon-
tram pontos de apoio neste sentido na nossa ordem jurí-
dica ( 15 ).
Portanto: a referência do art. 1306.º, 1., à lei, abrange
em princípio toda a lei material que cair na alçada do art. 1.º.
Mas só um completo trabalho de análise, que teria de se
fundar antes de mais nos resultados da meditação consti-
tucional sobre a hierarquia das fontes de direito, nos per-
mitiria esclarecer se é verdadeira ou é meramente aparente
tão lata extensão.

( 14) Sobre toda esta matéria, cfr. Marcello Caetano, Direito


Constitucional, págs. 594-5; Manual de Direito Administrativo, 8.ª ed.,
n. 40 e segs., em particular n.º 44.
0•

(H) Poderia parecer que o art. 181.º da Constituição favorece


essa doutrina; mas ele respeita a uma situação de tal modo especí-
fica que toda a extensão analógica nos parece vedada.

215
76. A doutrina

1-Uma possível fonte de direito, dentro das quatro


clàssicamente enumeradas, dispensa um exame aprofundado.
Referimo-nos à doutrina.
A doutrina pode, em abstracto, ser fonte de direito.
A clássica figura dos jurisconsultos romanos a quem era
atribuído o jus publice respondendi dá-nos o paradigma das
suas possibilidades de intervenção. Mas é pacífico que a
doutrina, hoje em dia, não representa uma fonte de direito.
Quando muito poderá dizer-se que a doutrina é uma fonte
mediata de direito, expressão de utilidade discutível mas
que parece ter sido consagrada no art. 1.º do Código Civil,
implkitamente, visto que a epígrafe deste é: Fontes ime-
diatas. A doutrina poderá, pelo seu influxo sobre as fontes
(imediatas) de direito, levar a alterações da ordem jurídica
vigente.

II - Mas se é este o aspecto em que é relevante, deve-


mos deixar o debate sobre as fontes de direito e considerar
a doutrina como um facto social, para podermos apreender
o seu verdadeiro valor.
Como facto, ela contribui para modelar determinado
ordenamento, no qual se fundam as normas que regem a
sociedade a que corresponde. Cria as condições, as manei-
ras de ver, os caminhos possíveis pelos quais se vai pro-
cessar, por um lado, a alteração das fontes, por outro a
estruturação do material normativo. Uma certa actividade
doutrinária leva a que uma fórmula, por exemplo, tenha
aqui um sentido e além um sentido diverso. O grande valor
da doutrina não é, pois, o de um facto directamente norma-
tivo; é a sua decisiva contribuição para aquela «vida jurí-
dica• que se conjuga com os factos normativos, e lhes dá
o seu verdadeiro significado.

216
SECÇÃO II

DIREITOS REAIS CONSUETUDINÁRIOS

77. Comparação de direit.os

1 - O costume pode ser fonte de direitos reais?


A pergunta pode parecer académica, tão cerrado é o
legalismo que domina em Portugal, não só os textos legais,
mas também as concepções doutrinárias ( 16 ). Seja-nos por
isso lícito começar por recordar que a criação de direitos
reais pelo costume não é apanágio de épocas históricas pas-
sadas, continua a ser admitida em ordens jurídicas actuais.
J;: bem elucidativo o exemplo alemão. Não há nenhum texto
legal que admita genericamente a relevância do costume, e
muito menos há qualquer relacionação legal do numerus
clausus e da criação consuetudinária. E todavia os intérpre-
tes, com base no já referido art. 2.º da lei de introdução ao
Código Civil, que entende por lei «toda a norma jurídica»,
unânimemente admitem a susceptibilidade da criação de
novos direitos reais através do costume ( 17 ). O princípio do
numerus clausus, dentro da ordem jurídica alemã, deve pois
entender-se de modo que não exclua a actuação do costume
como fonte de direi tos reais.

( 16) Há todavia posições divergentes. Cfr. por exemplo Marcello


Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8.• ed., n. 00 35 e 36; I. M.
Magalhães Collaço, Direito, vol. I, págs. 310 e segs.
( 17 ) O que evidentemente os não impede de acrescentar ser
difícil a verificação prática: neste sentido o comentário de Staudin-
ger, Introdução, III, 1., al. a) (pág. 12), desde que se deixou de admi-
tir que o instituto da Siclzerungsübereignung desse uma hipótese de
criação costumeira. De acordo neste ponto Westermann, § 5, I, mas
contra Wolff-Raiser, § 2, II, 1., nota 7, que consideram aquela um
direito real autónomo, desenvolvido costumeiramente.

217
Já nas doutrinas latinas o problema passa mais desper-
cebido. Os autores que o referem reflectem as orientações
de base que aceitam quanto à relevância do costume ( 18 ).

78. As leis portuguesas e o costume

I-E em Portugal, que devemos pensar? Não excluem


os textos, logo a uma primeira análise, a admissibilidade do
~ostume como fonte de direito?
É impossível não reconhecer, nos preceitos iniciais do
novo código, um acento de desfavor quanto à integração do
costume no rol das fontes de direito. É mais uma mani-
festação da orientação extremamente legalista, e nas suas
raízes positivista, que continua a dominar os juristas por-
tugueses.
Efectivamente, não se dá sequ·er abertura a que se fale
dum costume secundum lege1n, que aliás pouco significado
teria. É certo que o art. 3.º prevê uma certa relevância dos
«USOS», mas não é admissível tomar esta referência como
equivalente a «costumes».
No que respeita ao costume contra legem está arredada
pelo art. 7. 0 , 1., a possibilidade da sua eficácia.
Quanto ao costume praeter legem, não se lhe faz men-
ção no art. 10.º, a reconhecer-lhe a categoria de instrumento
idóneo para o preenchimento das lacunas da lei. E é até
muito curioso observar que, tendo a regra do art. 10.º, 3.,
seguido de perto a do art. 1.º do Código Civil suíço, o legis-
lador português omitiu toda a referência ao costume, que

(tª) Uma posição curiosa é tomada por Ferrara, Trattato, págs.


365-6. Depois de se pronunciar decididamente pela vigência do prin-
cípio do numerus clausus, afirma que se devem reconhecer certas
formas históricas de direitos reais que subsistiram, se bem que se
não possam criar novas. O autor procede a uma enumeração de
várias hipóteses, sem dúvida de muito interesse; mas a sua cons-
trução, porque se não funda no exame do valor do costume, não
pode deixar de se considerar arbitrária.

218
além desempenhava o papel hieràrquicamente superior na
integração das lacunas rebeldes à analogia. Estabelece efec-
tivamente o referido art. l.º: « ... Se a lei não contiver nenhum
preceito, o juiz deve decidir de harmonia com o direito con-
suetudinário e, onde este falte, segundo a regra que ele pró-
prio criaria se fosse legislador».

II - Pode até observar-se que idêntica tendência se nota


na legislação complementar do Código Civil.
Veremos adiante que o Código do Registo Predial foi
expurgado das referências à colonia - instituto de base
costumeira que lograra ter repercussão na legislação.
Se passarmos ao Código do Processo Civil, encontramos
uma situação semelhante. O n.º 3 do art. 721.º, que citámos
há pouco porque define o entendimento de lei substantiva
para efeito de recurso de revista, deixou de incluir a refe-
rência aos «Usos e costumes, quando tenham força de lei».
Agora diz-se simplesmente que, «para os efeitos deste artigo»,
se consideram como lei substantiva as disposições genéricas,
de carácter substantivo, emanadas dos órgãos de soberania ...
O costume, que não emana de um órgão de soberania, está
excluído desta previsão. Assim desaparece um dos mais sóli-
dos esteios que se encontrava, no domínio da legislação ante-
rior, para afirmar que eram os próprios textos legais que
admitiam a validade do costume.
Enfim, debalde procuraremos a menção que ao costume
se fazia no art. 517.º da versão de 1961 do Código do Pro-
cesso Civil. A sua supressão é uma das novidades de 1967.

III - E todavia, seja-nos permitido observar, ainda den-


tro do inventário a que procedemos, que esta exclusão do
costume não é unívoca, à face da própria lei. E isto porque
o art. 517.º do Código do Processo Civil foi suprimido, de
facto, mas justamente por ter sido substituído pelo art. 348.º
do Código Civil, que tem por epígrafe: «Direito consuetudi-
nário, local, ou estrangeiro».

219
Estabelece o n.º 1 deste artigo: «Aquele que invocar
direito consuetudinário, local, ou estrangeiro compete fazer
a prova da sua existência e conteúdo; mas o tribunal deve
procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento».
E o n.º 2 indica outras hipóteses em que o conhecimento
é oficioso.
Aqui temos portanto uma previsão genérica da relevân-
cia do costume ou do direito consuetudinário, como tal, que
não pode ser desprezada.

IV- Nomeadamente, não se pode pensar que a regra


do n.º 3 prejudica de qualquer modo esta afirmação. Diz-se
aí que, «na impossibilidade de determinar o conteúdo do
direito aplicável, o tribunal recorrerá às regras do direito
comum português».
Este preceito começa por estar em contradição aberta
com o do n.º 2 do art. 23.º, que manda recorrer à lei que
for subsidiàriamente competente, na impossibilidade de ave-
riguar o conteúdo da lei estrangeira aplicável. ~ certo que
uma possibilidade de composição surge imediatamente, se
considerarmos que o art. 348.º, 3., que tem um âmbito mais
vasto, se aplicaria exclusivamente ao direito local e ao direito
consuetudinário; na impossibilidade de determinação do con-
teúdo do direito estrangeiro, aplicar-se-ia a norma especial
do art. 23.º, 2. Não devemos todavia deixar de observar que,
a ser assim, ficaria sem explicação o preceito ·do art. 348.0 , 3.,
que manda recorrer às regras do direito comum português.
Esta especificação só tem sentido se o texto tiver também
em consideração o direito estrangeiro. O direito consuetu-
dinário e o direito local que neste artigo se prevêem não
podem deixar de ser direito português, como nos ensina a
história e o texto do artigo, logo a especificação não faria
sentido se só àqueles se referisse o n.º 3.
De qualquer maneira, podemos deixar estes e outros
problemas para perguntar directamente: o n.º 3 aplica-se ao
direi to consuetudinário?

220
As dificuldades vêm, não tanto da referência ao direito
português, cuja relatividade acabamos de verificar, mas da
qualificação como direito comum. Se essa qualificação serve
perfeitamente quando oontraposta ao direito local, já sus-
cita problemas quando contraposta ao direito consuetudi-
nário. Este é verdadeiramente.um direito comum, como tere-
mos ocasião de verificar.
Esta divergência não parece porém decisiva. O legisla-
dor considerará o direito legal como direito comum, por
oposição ao próprio direito consuetudinário. Se bem que dis-
cordemos desta qualificação, é lícito concluir que, comum
ou não, o direito consuetudinário sempre acaba por ser con-
siderado relevante pela própria ordem legal portuguesa.

79. O costume como o modo por excelência de reve--


Iação do direito

Esta é pois a situação legislativa actual, que reclama


um trabalho de análise complexo, tendente a restabelecer a
coerência das várias peças, como condição para se verificar
qual a verdadeira fisionomia do costume, à face da ordem
legal ( rn).
Dispensamo-nos, porém, desse trabalho, porque cremos
que este é um dos problemas cujo estudo é mais produtivo

( 10) Assim, no que respeita ao argumento que se poderia pre-


tender tirar da omissão da referência ao costume no art. 721.º, 3.,
do Código do Processo Civil, foi justamente observado que essa
omissão também atinge, não só o costume internacional, como inclu-
sivamente o costume estrangeiro, o qual constitui indiscutivelmente
fonte de direito se a ordem jurídica para que a norma de conflitos
portuguesa remeter o considerar como tal (Miguel Galvão Teles,
pág. 53, nota 50 a). O autor aventa a possibilidade de o legislador
querer efectivamente excluir o recurso de revisão com fundamento
em violação de norma consuetudinária. A entender-se assim, a alte-
ração nenhum significado teria para a determinação das fontes de
direito admitidas; e mais, o sistema de referências legais ao costume
seria afinal o mesmo que na iei anterior.

221
à face da ordem juridka do que da ordem legal. A solução
depende das conrepções gerais que em definitivo formos
levados a aceitar sobre a ordem jurídica e as suas fontes.
A nossa concepção ficou já exposta atrás. E essa con-
cepção, mesmo sumàriamente delineada, dá-nos a base sufi-
d~nte para concluir que o costume não é só fonte de direito,
como é atê o modo por excelência de revelação do direito.
Se o direito é uma ordem normativa da sociedade, o costume
re\-da essa ordem; tem pois juridicidade por si, independen-
temente da atitude que perante ele tomem os governantes,
e até não obstante a atitude que esses governantes tomem ...

II-Não receamos a objecção de que esta posição prio-


ritária do costume não é compatível com a celeridade da
vida moderna, nem com a certeza que esta exige; e tão-pouco
nos parece válido objectar com a escassez de costumes que
se formam dentro da sociedade actual, ou com o carácter
residual destes. A valia de um princípio não se mede pela
massa de hipóteses em que se manifesta. Assim, ainda hoje
devemos acentuar que o fundamento positivo da proprie-
dade nos ordenamentos latinos (mesmo da propriedade imó·
vel) é a usucapião e não o registo ou qualquer outro facto.
E todavia a usucapião vai tendo, em consequência da faci-
lidade de comunicações, do mais intenso aproveitamento
dos bens e de outros factores ligados à sociedade industrial,
uma verificação prática cada vez mais limitada.
Assim acontece também com o costume. O predomínio
gradual do elemento intencional sobre o elemento espontâ-
neo ou institucional, dentro da sociedade, encontrou na lei
a sua forma adequada de expressão. Uma certa desagrega-
ção tornou difícil a formação de costumes. E todavia, tudo
isto passa ao lado, e deixa intacto, o significado do costume
como modo privilegiado de expressão da ordem jurídica de
uma sociedade.

III - Aliás, devemos pôr-nos em guarda contra a mini-


mização deste elemento espontâneo da vida social.

222
:e ele que nos permite, em todos os casos, \•erificar qual
o- sentido de dada regra, como vimos: o ordenamento é o
pano de fundo de toda a interpretação. A vida social dá-nos
por si os critérios de entendimento da sua própria ordem.
Para além disso, há ainda sectores, e sectores muito
importantes, em que o costume desempenha papel signifi-
cativo na criação normativa. Temos, por exemplo, o sector
agrário, caracterizado ainda hoje por uma subordinação
muito maior ao elemento institucional que a intervenções
exteriores. Ele continua, mau grado a multiplicação de leis,
a guiar-se pelos seus próprios padrões; e aí se vão gerando
ou conservando institutos que as leis desconhecem - e
nomeadamente institutos que tocam os direitos reais.

80. Costume e mero fact.o

1 - Não se pense que por este caminho vimos a confun-


dir o direito com os factos, o dever ser com o mero acontecer.
Dissemos já que a ordem jurídica é um ser que traz
consigo ou implica um dever ser. Mesmo aquela corrente
minoritária que pretende que o costume se esgota no aspecto
da repetição de condutas, não deixa em geral de apelar
para outros elementos na determinação da juridicidade, que
excluem uma visão meramente material ( 20 ). A maioria exige
ainda a opinio juris vel necessitatis, e com este segundo ele-
mento se transita para uma análise do significado daquelas
condutas que logo ultrapassa os entendimentos mecanicistas
da situação.

II - A doutrina tem procurado fixar critérios que nos


permitam afirmar a existência de costumes. Seria deslocado

(2º) Veja-se por exemplo Bobbio, 49 e segs. Este autor, no seu


estudo sobre o costume, liga muito estreitamente este problema ao
da pluralidade de ordenamentos jurídicos.

223
acompanhá-la nesta difícil determinação ( 21 ). Mas há dois
requisitos que não queremos deixar de mencionar: são os
da espontaneidade e da racionalidade do costume.
O primeiro permite-nos dissociar a nossa posição da de
um sociologismo que se contentasse com reflectir naturalis-
ticamente a exterioridade das condutas. A repetição de con-
dutas que está na base do costume deve ser espontânea, ou
seja, não deve resultar de uma pura imposição de um dado
poder ou de um grupo social ( 22 ). O que apenas pela força
se sustém não tem ainda em si os caracteres do jurídico.
Em segundo lugar, também o costume tem de estar
submetido, como todo o direito, a uma ordem extrapositiva,
pois é esta que nos dá o fundamento da juridicidade. Está
aqui o elemento de verdade daquela doutrina que apresenta
a racionalidade do costume como condição da relevância
deste. Assim o exigiu a lei da Boa Razão, e assim o exigem
ainda autores actuais. Se tomássemos à letra esta posição,
teríamos de observar que a medida da racionalidade do
costume não pode ser diversa da que a própria lei deve ter;
e sabemos que uma lei não pode ser rejeitada com o mero
fundamento na inoportunidade ou na inconveniência da
solução que comporta. O que há de verdadeiro no requisito
da racionalidade é iinicamente a exigência de que a regra
costumeira, como a legal, não contrarie os princípios fun-
damentais impostos pela natureza humana e a que a razão
pode elevar-se ( 23 ).

( 21) Cfr. sobre este tema cm geral Gény, n. 109 a 137; Betti,
09

Jnterpretazione, §§ 60 e 61, em que expõe nomeadamente os cânones


da interpretação do costume; Enneccerus-Nipperdey, §§ 38 a 41;
Lehmann, § 31, 1 e III.
(22) Larenz, Methodenlehre, pág. 270.
( 23) Cfr. Enneccerus-Nípperdey, § 40, 1. Também se pronuncia
fundamentalmente no mesmo sentido Boehmer, § 33, págs. 203-4, no
decurso de uma investigação tendente a apurar se os «casamentos•
que as noivas de soldados alemães falecidos durante a guerra foram
em 1943 autorizadas a celebrar, em consequência de decisão adminis-
trativa, se podem considerar válidos por .força de um costume. O autor
chega, para este problema particular, a uma solução afirmativa.

224
III-Vê-se pois que por este caminho não degradamos
o direito a um mero acontecer, não confundimos facto e
norma. O que afastamos, isso sim, são as orientações que
conduzem a uma oposição abrupta de ser e dever ser, todas
de uma forma ou de outra filiadas em Kant, e que encon-
tram em Kelsen a sua expressão última. Pelo contrário, há
uma intercon1unicação entre ser e dever ser, e ambos são
afinal conjugados na ordem que exprimem. O mundo do
ser não é para nós uma entidade neutra, antes traz em si
valor, traz em si sentido, que desde o início são dele inse-
paráveis.
Não podemos debater a fundamentação última destas
posições, por exceder os limites deste trabalho. Mas elas
marcam o ponto de encontro de várias orientações contem-
porâneas, para além das suas divergências. Fale-se, em ter-
mos neo-hegelianos, de uma ordenação dialéctica de sentido
objectivo e de vida real, procure-se nas instituições o real
dentro da vida social, ou parta-se de qualquer outro qua-
drante, encontra-se um objectivo comum nesta ligação última
de dever ser e ser que, não obstante a sua delicadeza, várias
orientações procuram assegurar. ·

81. Posição das font.es heterónomas

Interessa verificar qual poderá ser o papel, dentro desta


visão da ordem jurídica, das fontes heterónomas de produ-
ção do direito. Vamos encarar portanto a relevância das
decisões judiciais - na medida em que podem considerar-se
fontes de direito, como veremos na secção seguinte-e sobre-
tudo a da lei.
~ fácil observar que há certas entidades que têm uma
posição especial no que respeita à criação do direito ( 24 ).

( u) Efectivamente, toda a ordem social, porque ordem, supõe


estruturação, logo diferenciação de posições, e um dos mais impor-
tantes índices dessa diferenciação é o que tocamos agora.

225
15
As suas declarações, integrando-se na ordem social e com
o sentido que nessa ordem despertam, provocam o apareci-
mento de novas regras, e portanto compõem a ordem nor-
mativa, ao contrário das declarações de quaisquer outras
entidades dentro da vida social. Quer dizer que além da
forma autónoma de produção de direito, que se manifesta
pelo costume, temos de entrar em conta com formas hete-
rónomas - ou, se assim quisermos, com fontes heterónomas.
Mas convém fixar com mais alguma precisão a relação
que existe entre estas fontes. O primado da ordem costu-
meira mantém-se, e exprime-se através das duas restrições
que acima apontámos. Efectivamente:

1) É necessário que a «declaração» emitida se integre


na ordem social; é necessário, dito por forma negativa, que
não seja repelida por esta. Se a ordem social a não aceita,
a declaração não terá contribuído para a formação de uma
regra jurídica. Se o que falta nessas condições à lei ou à
declaração em causa é a validade ou é a eficácia, é ponto
que podemos deixar de parte.

2) A regra heterónoma vale com o sentido que des-


perta na ordem jurídica em que se integra.

Escusamos de avançar agora na demonstração da ver-


dade destas afirmações. Até porque o exemplo que demos
há pouco, o do Código Civil japonês, serve bem para eluci-
dação destes dois aspectos. Parte dos seus preceitos caiu
pura e simplesmente cm desuso, pois não conseguiu vencer
a resistência que lhe foi oposta pela ordem social. A parte
que subsistiu ganhou um sentido específico, uma vez inte-
grada na ordem social japonesa. Esse sentido pode ser muito
diverso do que fora pensado pelos seus criadores, mas repre-
senta o preço a pagar em troca de uma efectiva actuação
sobre a vida social.
O mesmo se terá passado na ordem jurídica portuguesa,
se bem que a proximidade não facilite a objectividade da

226
análise. E todavia: no Código de Seabra, quantos precei-
tos não estariam em 1966 já efectivamente revogados pelo
desuso? A proscrição legal do desuso exprime tão-somente
a aspiração do legislador a ser actor exclusivo na modela-
ção da vida social, mas não dá qualquer segurança de que
efectivamente o consiga ser. Por outro lado, todos os pre-
ceitos que não foram rejeitados valiam com o sentido que
lhes dera a ordem social portuguesa, sentido esse que con-
tinuamente ia sendo reelaborado.
Em conclusão:
1) o ordenamento é um complexo de factos em que
está contido um dever ser;
2) os factos e as normas estão submetidos a valores;
3) há fontes autónomas e fontes heterónomas, mas só
o ordenamento dá o critério do que vale como direito numa
sociedade, ainda que provindo de uma fonte heterónoma.

82. A colonia, direito real consuetudinário

I - Resta concluir, no que respeita à regra do numerus


clausus. Ela não pode pretender subverter os princípios res-
peitantes à valia relativa da lei e do costume. Nenhum signi-
ficado teria pois um preceito que reservasse para a lei o
monopólio da criação de direi tos reais. Qualquer costume
em contrário o tornaria letra morta, porque o costume é a
fonte privilegiada do direito.
Mas, ocorre perguntar: há efectivamente alguma hipó-
tese de direito real criado costumeiramente, na ordem jurí-
dica actual?
Não é este o melhor tempo para dar resposta a uma
pergunta desta ordem. A recente entrada em vigor de um
novo Código Civil rouba-nos perspectiva. Toma-se difícil ave-
riguar desde já até que ponto os seus preceitos proibitivos
entraram efectivamente na ordem social.

227
Vamos por isso limitar a nossa análise a uma hipótese
de direi to real consuetudinário - a colonia, proibida para
futuro pelo Decreto-Lei n.º 47 937, de 15 de Setembro de 1967.

II - É a colonia própria do arquipélago da Madeira e a


ele se tem mantido circunscrita, fruto como é de necessida-
des específicas de aproveitamento da terra. Em tempos idos,
o senhor teve necessidade de confiar a alguém a exploração
da terra: o explorador, por seu lado, tinha interesse em
garantir o ressarcimento das custosas benfeitorias que o
carácter acidentado do terreno lhe impunha - sobretudo, o
talhamento dos socalcos. Chegou-se a uma composição ori-
ginal: as obras que o colono (o explorador do solo) fizer
ficam sendo sua propriedade; o senhorio (o concedente)
guarda o direito de resolver a todo o momento o contrato
e fazer reverter para si as benfeitorias, mas terá de as pagar.
Esta é a descrição fundamental de uma situação que
se mantém unitária na sua variedade ( 2 "), e que aliás nos
tempos modernos tem sofrido uma evolução desfavorável
em prejuízo do colono. Para os nossos fins, não é necessário
analisá-la mais longamente, e tão-pouco verificar em que
relação se encontra com a superfície, com que apresenta
flagrantes analogias mas em cujo tipo não pode pura e sim-
plesmente confundir-se.

III - Só nos interessa o que respeita à fonte deste


direito. Vejamos quais os aspectos que caracterizavam a
situação antes da entrada em vigor do novo código e da
legislação complementar.
Acentuamos o facto de a colonia ter surgido espontâ-
neamente, fora de qualquer previsão legal; e o facto de se

( 25 ) Sobre este direito publicaram 'livros Pedro Pitta, Correa


Rodrigues e Soares da Rocha. Outros autores dedicam-lhe referências
esporádicas. Em Itália existe a colonia ad meliorandum, que apre-
senta feição semelhante. Vejam-se os estudos de Carrara e Bassanelli,
que também indicamos na Bibliografia.

228
ter tenazmente mantido, apesar de a nossa ordem jurídica
ter consagrado implicitamente, como vimos, um sistema de
numerus clausus. Ela impôs-se aos particulares, aos tribu-
nais e à administração, não obstante as proibições da lei.
Mais: o próprio legislador reconheceu abertamente a
existência destas situações ( 26 ). Sempre que o julgou opor-
tuno, o legislador não deixou de ressalvar o estatuto espe-
cial da colonia.
Mas, e é este o ponto essencial, a colonia não passou
a ser um tipo legal de direito real, apenas com origem con-
suetudinária. Se assim fosse, não se distinguiria neste aspecto
de quase todos os outros direitos reais ( 27 ). O que é signifi-
cativo é que a recepção legal não tirou à colonia o seu carác-
ter consuetudinário. Nenhum preceito de lei atribui natu-
reza real a esta figura ou, mais precisamente, estabeleceu
para ela o regime próprio dos direitos reais. O legislador
contentou-se com reconhecer em bloco a situação costu-
meira, regulando Unicamente certos aspectos secundários.
Não passou pois a haver, à face da lei, um direito real típico:
para o reconhecermos basta aplicar os princípios anterior-
mente enunciados, quanto às exigências mínimas de uma
tipicidade dos direitos reais ( 28 ). Havia pois um direito real

(2º) Cfr. desde logo o art. 107.º, § 3.º, do Decreto n.º 16 731, de
13 de Abril de 1921. Ofr. também o art. 3.º do Decreto n.º 33 159, de
21 de Outubro de 1943, e o art. 9.º do Decreto-Lei n.º 38 722, de 14 de
Abril de 1952, em matéria de hidráulica agrícola; o art. 11.º, al. d),
do Decreto n.º 35 994, de 23 de Novembro de 1946, que prevê a con-
cessão de empréstimos para melhoramentos rurais; os arts. 86.º e
167.º do Código do Registo Predial; a base XXVI da Lei n.º 2114, de
15 de Junho de 1962 (arrendamento rural); as bases II, 2., al. e) e
VIII, 6., da Lei n.º 2116, de 14 de Agosto de 1962; e o art. 6.º do Decreto
n.º 44 647, de 26 de Agosto de 1962 (emparcelamento da propriedade
rústica).
(27) Poucas excepções há a esta origem. Entre elas contam-se
a superfície e alguns direitos reais de aquisição.
( 2s) Supra, cap. III, n.º 35.

229
que não estava instituído por lei, se bem que por lei fosse
expressamente reconhecido ( 29 ).

83. Signlfioodo da proibição da oolonla

1-0 elemento mais categórico, em abono da posição


que vimos defendendo, encontra-se porém justamente no
diploma que proibiu a colonia ...
No dia 1 de Junho de 1967 entrou-se num período de
incerteza quanto à posição legal sobre este direito. Poderia
deduzir-se do art. 1306.º, 1., e de outros preceitos do novo
código uma reafirmação da vontade de abolir os direitos
reais consuetudinários; poderia alegar-se ainda no mesmo
sentido que todas as referências à colonia constantes do
Código do Registo Predial foram suprimidas. Mas então,
teríamos de nos submeter à prova dos factos: só a vida
poderia dizer se o comando legal teria desta vez -maior
êxito que idênticos comandos anteriores, ou se pelo contrá-
rio a intervenção legal seria de novo repelida pela ordem
social ( ªº).

II - Sobreveio o Decreto-Lei n.º 47 937, publicado em


15 de Setembro de 1967, numa altura portanto em que a
base de observação era ainda insuficiente para se verificar se

(29) Não é um caso ímpar. ·Podemos referir por exemplo o


DecretcrLei n.º 46 461, de 29 de Julho de 1965. Submetendcrse certos
baldios do Alto Minho ao regime florestal, ressalvam-se no art. S.º
os direitos tradicionais sobre o arvoredo designados «aforamentos
do ar». Deixa-se todavia o seu reconhecimento dependente da aquies-
cência das autarquias locais.
(ªº) Aliás, também era possível outra posição: a de afirmar que
o Código não prejudicava os regimes locais eventualmente vigentes.
Nenhuma dificuldade resultaria pois, para a colonia, da circunstância
de esta situação não vir prevista na lei comum. Mas desinteressamo-
-nos deste problema, pois não tem relevância para a indagação em
que nos empenhamos, porque de qualquer maneira se teria de reconhe-
cer que subsistia um direito real consuetudinário.

230
a colonia lograra ou não subsistir; e este diploma reconhece
ahertam·ente a validade deste direito, quando no n.º 1 do
art. 1.0 proíbe para futuro a celebração de contratos de
colonia.
Mais ainda: o n.º 2 sujeita os contratos «celebrados até
à entrada em vigor deste decreto-lei», à «forma convencio-
nada e do direito costumeiro e usos locais». Fala-se em con-
tratos celebrados até à entrada em vigor deste decreto-lei,
e não até à do código; o que traz o reconhecimento de que,
desde a entrada em vigor do código até à do referido decreto-
-lei continuou a ser válida a constituição da colonia, não
obstante a consagração pelo código de uma tipologia taxa-
tiva dos direitos reais. Portanto, temos razão em dizer que
no próprio diploma proibitivo da colonia está o mais cate-
górico reconhecimento da existência de direitos reais con-
suetudinários.

III - Particularmente no que toca ao tema que actual-


mente nos ocupa, podemos retirar desta situação três con-
clusões:

1) A lei traz um novo reconhecimento da relevância do


costume, enquanto manda submeter os contratos de colo-
nia actualmente existentes ao direito costumeiro. Devemos
sublinhá-lo, dado que o Decreto-Lei n.º 47 937 é posterior ao
Código Civil.

2) A nova legislação não suprimiu automàticamente as


situações consuetudinárias. O que, por força dos princípios,
acentuámos atrás, tem aqui comprovação prática.

3) Subsiste na nossa ordem jurídica pelo menos um


direito real consuetudinário, a colonia. Esta situação não foi
abolida, mas somente proibida para futuro. Ora o tipo da
colonia continua a não constar da lei: o Decreto-Lei n.º 47 937
contentou-se em submeter esta situação costumeira a cer-
tas regras injuntivas, que não dão o desenho essencial do

231
direito. A situação não se alterou, portanto, no que respeita
à fonte deste direito; mantém-se como direito consuetudi-
nário reconhecido por lei, em vez de se ter transformado
num novo direito previsto por lei.
Temos assim a confirmação de que, mesmo à face da
ordem legal portuguesa, o costume acaba por ser conside-
rado fonte de direitos reais.

SECÇÃO III

A ELABORAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO

84. O problema da jurisprudência como font.e de direito

I - Entremos agora numa indagação de extrema delica-


deza. Temos de verificar se a jurisprudência deve ser entre
nós considerada fonte de direito; e no caso afirmativo, se
por essa porta não podem entrar na ordem jurídica portu-
guesa novas figuras de direito real.
Trilhando este caminho, logo encontramos as correntes
que acentuam aquilo a que chamaremos a «elaboração juris-
prudencial do direito». O tribunal não se limitaria a aplicar
0 direito, pelo menos tomando tal aplicação no seu sentido
clássico de pôr em acção normas preexistentes: ele próprio
criaria direito. Na Alemanha, o tema conquistou mesmo os
favores da moda, ainda que, como é natural, não haja una-
nimidade quanto aos exactos termos desta criação cs1 ).

( :i1) Fala-se então em richterliche Rechtsfortbildung. Além das


obras de Engish, Esser e Larenz a seguir citadas, mencionamos
ainda Wieacker, Gesetz; Stein (com tendência restritiva); Zippelius
(ainda que a circunstância de este se colocar predominantemente no
plano sociológico limite o interesse das suas observações); e Obber-
maycr (como de costume, encontram-se ·na Bibliografia as indica-
ções completas).

232
II - Compreendem-se as causas desta evolução. Quando
um código é publicado, o facto de trazer a solução dos pro-
blemas mais debatidos conduz a confundir lei e ·direito: a
tendência é cair-se na exegese. Mas à medida que ele enve-
lhece, a insuficiência desta posição torna-se patente, e a
pressão sobre a jurisprudência ganha intensidade. Recor-
de-se a importância extrema que esta adquiriu na França,
e o mesmo vai acontecendo na Alemanha: a evolução das
circunstâncias faz com que um código de 1900 seja já ine-
xoràvelmente um código velho ( 32 ).

III - Tudo isto são porém observações de índole socio-


lógica. Nós temos de tomar outra perspectiva, e perguntar
qual é, normativamente, o papel da jurisprudência - sejam
velhos ou novos os códigos sobre os quais trabalha. Pois
cremos que os princípios são constantes, só mudando a
intensidade da sua revelação prática.
Não vamos examinar o problema em toda a sua abstracta
latitude. Fazemos aqui uma investigação «interessada», no
sentido de que só nos ocuparão os elementos que possam
ter relevância na criação de direitos reais. Para isso, basta-
-nos o estudo da função da jurisprudência na integração de
lacunas da lei. É perante esta tarefa- e só perante esta
tarefa, como veremos - que tem sentido desenvolver o tema
da criação de direitos reais, fora dos limites do princípio
do numerus clausus.

85. O art. 10. º do Código de 1966

1 - Pressuposto de toda a integração é a existência de


lacunas: há uma incompleição da lei que contraria o pró-

( 82 ) Encontram-se algumas observações a este propósito em


Wieacker, Gesetz, págs. 4-5.

233
prio sistema de valorações desta ( 33 ). Uma determinada
matéria, que exige uma solução jurídica, nos termos do
art. 8.º, não foi prevista. Como proceder?
Responde o art. 10.º: recorre-se à analogia (n.º 1) e, na
falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma
que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar den-
tro do espírito do sistema (n.º 3). Aqui temos o preceito-
-base para a nossa investigação.

I I - O primeiro processo de preenchimento das lacunas


está no recurso à analogia; e esta ainda se divide em ana-
logia legis e analogia juris. Não tem interesse examinar em
geral os problemas que este processo suscita; e dificuldades
especiais, ligadas à admissão de uma analogia juris, ou ana-
logia de direito, só adiante serão mencionadas, com refe-
rência aos pontos da nossa análise a que se ligam.
Honve quem pretendesse que a analogia seria sempre
bastante para remediar hipóteses lacunosas: da analogia de
direito se passaria sem solução de continuidade à aplicação
dos princípios gerais de direito e estes tudo resolveriam sem
deixar resto. Nas posições extremas, chegar-se-ia à negação
da própria existência de lacunas, uma vez que a aplicação
dos princípios gerais permitiria uma auto-integração: todas
as soluções, mesmo que não expressas, estariam já implíci-
tas no sistema.
O art. 10.º do código novo afasta radicalmente estas
posições. Enquanto no n.º 2 se consagra a analogia, no n.º 3
prevê-se o recurso à norma que o intérprete criaria. Este
recurso, seja qual for o seu significado, não traz portanto
uma manifestação da analogia. Por outras palavras: mesmo
após a utilização do processo analógico, a lei continua a

( 33 ) Reproduzimos uma noção largamente utilizada. Para o apro-


fundamento do conceito de lacuna, ver o primeiro capítulo do exce-
lente estudo de Canaris.

234
apresentar lacunas, cuja integração tem de se realizar por
outros processos. Toma-se assim indiscutível a existência
de uma categoria que designaremos como a de «lacunas
rebeldes à analogia». A lei é tão clara que nos dispensamos
de mais longa fundamentação da sua existência ( 34 ). Mas a
sua importância impõe que as analisemos mais detidamente
no número seguinte.

III - Isto não quer dizer que o texto não apresente tam·
bém deficiências consideráveis. Há a omissão da referência
ao costume, perante a qual já tomámos posição. E outras
ainda resultarão das observações que se seguem ( 35 ).

86. Espécies de lacunas

I - As lacunas podem ser de vária índole, o que leva


os autores a recorrer a classificações. Assim, Heck distin-
guiu as lacunas primárias, que são as que se verificam logo
com o aparecimento da lei, das lacunas secundárias, que
são as que só surgem posteriormente, em consequência da
alteração das circunstâncias ( 36 ). ~ frequente, e quanto a
nós de todo correcta, a distinção entre lacunas da lei e do
direito consoante uma falha na regulamentação legal se
deixa ou não preencher por força de outras normas cons-
tantes da ordem jurídica ( 37 ). E muitas outras classificações
se encontram.

( ª') Cfr. sobre todos estes pontos o nosso estudo sobre «A Inte-
gração das Lacunas da Lei e o novo Código Civil», nomeadamente
no n.º 3.
(35) Cfr. para uma apreciação de conjunto o nosso estudo refe-
rido na nota anterior.
(ª 6 ) Gesetzesauslegung, § 14, 5 e segs.
(ª7 ) Pode também observar-se a tendência, meramente termi-
nológica, de falar em lacunas da lei para referir as lacunas do sis-
tema jurídico. Quer dizer, fala-se em lei para referir a ordem jurídica
em conjunto.

235
II -Também as lacunas rebeldes à analogia são passí-
veis de uma classificação útil. Estas lacunas que se não
deixam resolver por processos analógicos podem revelar-se
de tres formas diferentes. E convém distingui-las, pois o pro-
cesso de fixação da existência da lacuna oferece dificulda-
des específicas:
1 ) Uma lacuna patente pode revelar-se desde o início
rebelde à analogia, por não haver regra ou princípio que a
abranja . .E. a hipótese mais fácil, que não exige esclareci-
mentos especiais.
2) Uma situação pode ser aparentemente coberta por
um princípio já doutrinàriamente elaborado, mas na reali-
dade escapar-lhe: há pois lacuna ( 38 ). Adiante teremos oca-
sião de fazer algumas aplicações deste caso.
3) Uma situação pode ser aparentemente coberta por
um preceito legal, mas a interpretação revelar que ela lhe
é estranha: há nova modalidade de lacuna.

}! especificamente neste caso que a doutrina fala em


lacunas ocultas ou escondidas, que se contraporiam às
lacunas patentes. Esta última situação exige alguns escla-
recimentos, que daremos no número seguinte.

87. Lacunas ocultas e sua determinação por lntierpre-


tação restritiva.

1 - Há lacuna, dissemos, quando uma situação, que é


aparentemente coberta por um preceito legal, na realidade
lhe escapa.
Não é de hoje a descoberta desta modalidade de lacunas!
Já Aristóteles, na Etica a Nicómano, punha as hipóteses
em que o legislador cala a par daquelas em que se exprime

( 38 ) Cfr. a nossa Integração, n.º 18.

236
indevidamente em termos absolutos ( 39 ). Para além de uma
análise desta posição precursora, que seria deslocada, inte-
ressa acentuar que a doutrina moderna retomou a senda
assim aberta. É sobretudo mérito de Reichel ter voltado a
acentuar a existência desta categoria de lacunas. Observou
este autor que tais lacunas serão mais ou menos frequentes,
consoante prevalecer a tendência de a lei se limitar a enun-
ciar princípios gerais, ou pelo contrário estabelecer uma
regulamentação casuística ( 4 º).
Esta posição generalizou-se entre os autores mais recen-
tes que especificamente trataram o tema ( 41 ).

II - Poderemos aceitá-la? Ou representará ela uma


forma larvrada de desobediência à lei, que deve ser afas-
tada não obstante as considerações utilitárias em que se
funda?
Pensamos que na nossa ordem jurídica certos métodos
preconizados neste sentido estão fora do alcance do intér-
prete, e são portanto ilegítimos. Um há, porém, que per-
mite obter resultados desta índole, e cuja admissibilidade
e importância não podem ser postas em causa: referimo-nos
à interpretação restritiva.
Tomemos qualquer previsão legal, possivelmente uma
previsão de ampla extensão ( 42 ). Vamos supor que, aplicada

(ª9) Livro V, cap. X (ou cap. XIV). Eis o trecho de Aristóteles,


que é fundamental também no que respeita à própria integração das
lacunas: «Por conseguinte, quando a lei dispõe de uma maneira geral
e poste:i:iormente se verifica um caso particular que escapa a esta
regra geral, é legítimo - na medida em que a disposição do legisla-
dor é insuficiente e errónea dado o seu carácter absoluto - corrigir
e suprir o silêncio daquele, estatuindo como o faria o próprio legis-
lador se estivesse presente e como ele teria prescrito na lei se tivesse
podido conhecer o caso em questão».
( "'º) Pág. 95 e segs.
( 41) Cfr. Larenz, Methodenlehre, 284; Canaris, § 128.
( 42) Fazemo-lo porque neste caso é mais fácil a verificação do
fenómeno, e não porque tal característica seja essencial. Toda a pre-
visão normativa é necessàriamente caracterizada pela generalidade,
e é quanto basta para podermos verificar o fenómeno que nos ocupa.

237
a certa categoria de casos, essa previsão conduz a uma solu-
ção pouco acertada (para usar a linguagem do art. 9.0 , 3.).
Isto pode acontecer, quer porque o preceito suposto já
originàriamente trazia em si essa condição, quer porque
- e esta segunda hipótese será muito mais frequente -
a evolução do condicionalismo geral a isso levou.
O intérprete pode então detectar uma lacuna oculta,
desde que lhe seja lícito fazer uso da interpretação restri-
tiva. Esta impõe-se quando se verifica que o preceito, se
hem que de formulação genérica, só se justifica para dado
sector de casos. Não foi explicitada uma excepção ou restri-
ção que deveria existir de harmonia com o plano do legis-
lador- melhor dizendo, com o espírito ou sentido da lei.
A própria obediência à lei impõe então que sacrifiquemos
a fórmula infeliz ao conteúdo preceptivo que nela está ínsito;
que consideremos fora do seu âmbito as situações que são
estranhas ao espírito da lei.
Concretizando mais: suponhamos que para certa cate-
goria de contratos se impôs a adopção da forma escrita,
quando o sistema da lei revela afinal que o preceito só tem
em vista os contratos que se refiram a imóveis; que se esta-
belece uma exigência geral de autorização, e se vem a veri-
ficar depois que o preceito não tem sentido perante os actos
de mera administração; e assim por diante. Pelos cânones
gerais da interpretação, que se dirige à descoberta de um
conteúdo normativo, haverá que restringir o texto para che-
gar à norma que ele encerra.
É este o procedimento geral, que nenhum motivo levará
a excluir quando tiver por consequência a revelação de uma
lacuna. Só assim se não poderá proceder quando regra clara
0 venha proibir - mas então temos ainda uma evidente apli-
cação dos princípios gerais da interpretação. Esta dirige-se
à revelação do sentido da lei, pelo que seria deslocada qual-
quer actividade interpretativa quando a determinação legal
estivesse já esclarecida. Fora de semelhantes excepções, cre-

238
mos que a restrição de um enunciado indevidamente amplo
é abstractamente sempre admissível ( 43 ).

88. Distinção de processos afins

I - A importância deste problema justifica que pro-


curemos fixar com precisão o âmbito efectivo do sistema
que defendemos.
Queremos desde logo deixar estabelecido que nem em
todos os casos em que a disposição legal não contém a solu-
ção mais adequada para certa categoria de litígios se pode
efectivamente descobrir um remédio.
Como diz Engish, o problema das lacunas e do seu preen-
chimento coloca-se só praeter legem, e não contra legem (H).
Efectivamente, se bem que tenhamos ouvido vozes, mais ou
menos explícitas, em sentido contrário, não encontramos
para elas qualquer apoio na nossa ordem jurídica. Fora das
hipóteses de violação do Direito Natural, que dificilmente
estarão em causa, a correcção do direito positivo é vedada
ao intérprete. O critério deste não sobreleva o critério da

( •3) Certos autores quiseram encontrar uma excepção em pre-


ceitos de carácter formal, como os que respeitam à fixação de um
prazo, à imposição de dada forma, e assim .por diante. Talvez por
estes autores terem directamente em vista a «redução» ( cfr. o número
seguinte) a demonstração parece mesmo aí pouco probatória para os
nossos fins: é o que há que objectar a Canaris, 192 (cuja argumen-
tação é ainda defeituosa por se fundar no tratamento de um caso
concreto, quando a restrição respeita sempre a uma categoria de
casos, cfr. Larenz, Methodenlehre, 297). O preceito de carácter formal
está submetido às regras gerais de interpretação, como qualquer outro
preceito. Pode pois sempre verificar-se que certa categoria de casos
escapou ao seu espírito. O facto de os preceitos de carácter formal
terem normalmente na sua base razões de segurança é um elemento
a ter em conta na interpretação do preceito - mas que não leva evi-
dentemente a dispensá-la.
( H) Der Begriff, pág. 93. Veja-se uma pequena polémica sobre
o tema entre Stein, 1748-9 e Larenz, Richterliche, 2 e 3, de onde
ressalta afinal a aceitação destes princípios.

239
lei, nem determina a mudança da legislação. A regra posi-
tiva não vale porque se presume ser funcionalmente a mais
perfeita, vale por ser jurídica; por isso, mesmo onde a sua
aplicação se revelar inconveniente, a sua validade e eficácia
não são atingidas.

II - Interessa a este propósito observar que o art. 9.º


do Anteprojecto do Código Civil permitia expressamente o
que nele se chamava restrição. Dispunha-se num n.º V:
«:e consentido restringir o preceito da lei quando, para casos
especiais, ele levaria a consequências graves e imprevistas
que certamente o legislador não teria querido sancionar».
Da exposição de motivos (em que se anota que Ennecce-
rus-Nipperdey entendem que já não estamos aqui no domí-
nio da interpretação stricto sensu)( 4 ã) não se apura qual o
verdadeiro pensamento do autor do Anteprojecto sobre esta
situação. Todavia, é de supor, por outros passos de Manuel
de Andrade, que se tinha em vista a chamada interpretação
correctiva ( 46 ). O texto não passou ao Projecto, e a ser
exacta a suposição que formulámos, só temos que nos feli-
citar por isso ( 47 ).

III - O preceito em causa estava, como dissemos, subor-


dinado à epígrafe «restrição». Conceitualmente, porém, deve
distinguir-se a interpretação correctiva da restrição ou redu-
ção teleológica da lei. Falam nesta, por exemplo, os autores

( •s) Págs. 150-1.


( •s) Cfr. Manuel de Andrade, Especificação da Coisa, 293 e
nota 2. Mas a noção que dá de interpretação correctiva é por sua
vez ambígua: «Quando uma norma abrange casos, ou produz conse-
quências que o legislador não previu ou apreciou e que, razoàvel-
mente, o levariam a estatuir de outra maneira, deve ela ser posta
de parte, nessa medida, provendo-se como o teria feito o próprio
legislador, de acordo com a sua ideia fundamental e com as neces-
sidades da vida e os ensinamentos da experiência». O autor ressalva
ainda as exigências da certeza jurídica.
( 47 ) Nesse sentido J. H. Saraiva, 122-3.

240
alemães, que a consideram susceptível de levar à descoberta
de lacunas ( 48 ).
Estas figuras são estranhas à quase tota1idade dos juris-
tas portugueses. Compreenderemos em que consistem se
acompanharmos as tentativas da doutrina alemã de distin-
guir a restrição ( 4 º) ou redução teleológica (liº) da interpre-
tação restritiva. Enquanto esta se teria de manter dentro
de um dos sentidos possíveis das palavras utilizadas pelo
legislador, a primeira iria além deles. Seria uma distinção
recíproca da que se estabelece entre interpretação extensiva
(que se limitaria a escolher um dos sentidos possíveis das
palavras) e analogia (que transcende os sentidos gramati-
cais).
Vê-se que em geral estes autores utilizam as expressões
«interpretação extensiva» e «interpretação restritiva» num
sentido muito diverso do que é corrente na doutrina por-
tuguesa ( 51 ). Elas vêm a corresponder ao que chamamos
interpretação lata e restrita, como modalidades da interpre-
tação declarativa.
Como. este aspecto não nos interessa directamente,
escusamos de examinar a fundo mais esta questão. Basta-
-nos dizer que continua a parecer-nos útil falar em interpre-
tação extensiva e restritiva, enquanto sondamos a ratio dum
preceito e submetemos a crítica a formulação legal, que
pode ser infeliz ( 1J2).

( 4 s)Cfr. Engish, Einfülznmg, 139 e segs.; Larenz, Methoden-


lehre, 283 ,e segs.; Canaris, 82, todos eles a propósito do problema
das lacunas escondidas.
("9) Enneccerus~ipperdey, § 59.
(riº) Larenz, Rechtsfortbildung, 5; Canaris, 82 e segs.
( 51 ) Com a excepção de Enneccerus-Nipperdey, § 59, II. Distin-
guem estes a restrição da interpretação restritiva porque na restrição
se procederia a um aperfeiçoamento do pensamento da lei, e não só
da sua expressão.
(1> 2 ) Pensamos na verdade que os autores que negam a auto-
nomia da interpretação extensiva se vêem colocados perante o seguinte
dilema: ou reduzem a lei à letra, e por isso têm de considerar lacunoso
tudo o que essa letra já não abrange, ou consideram ínsitas na lei

241
16
Aliás, num ponto de vista prático, não podemos esque-
cer que é este entendimento que está consagrado no art. 10.0
do Código Civil, que exclui a aplicação analógica das normas
excepcionais mas admite a interpretação extensiva; bem
como no art. 18.º do Código Penal, que exclui a interpreta-
ção extensiva das normas incriminadoras. Estes preceitos,
que não são evidentemente comandos vazios, forçam o intér-
prete a utilizar estes esquemas, por mais que, em abstracto,
entenda que outra orientação seria preferível.
Sendo assim, mantemos o entendimento comum da inter-
pretação extensiva; e paralelamente, mantemos o da inter-
pretação restritiva, que esteve na base da nossa interpreta-
ção anterior (ú 3 ). Também aqui a interpretação não deve
cingir-se à letra da lei, e o espírito desta pode revelar a
impropriedade de uma formulação demasiado ampla.

IV-Estas conclusões não sofrem qualquer desmentido


quando se defronta uma tipologia taxativa.
Toda a tipologia serve para a especificação de um con-
ceito. Este pode estar expresso ou ser obtido pelo intérprete,
a partir dos casos previstos na lei.
Quando é normativamente indicado o âmbito de uma
tipologia, é em abstracto admissível, mesmo que a tipologia
seja taxativa, a interpretação restritiva dos preceitos que a

todas as soluções a que se chegará com a utilização da analogia, mas


então são lógicamente levados a negar que nessas hipóteses se veri-
fiquem lacunas. Quanto a nós, a lei é portadora de um sentido objec-
tivo, para a cxP'licitação do qual podemos chegar até à extensão ou
restrição da fórmula legal; mas para além disso há lacuna, pelo que
a analogia nos revela um comando novo, diverso do comando legal.
( 53 ) Neste sentido, já perante o Código Civil actual, cfr. Pires
de Lima e Antunes Varela, em anotação ao art. 10.º. Veja-se também
a distinção entre analogia e interpretação extensiva em Enneccerus-
-Nipperdey, § 58, II, 2. Contra, veja-se Betti, lnterpretazione delta
legge, 77-8 e 177-9. Fala na coexistência de duas construções possíveis
José H. Saraiva, 146 e segs.

242
delimitam. Certos casos, que formalmente seriam abrangi-
dos, revelam.,,se alheios a essa tipicidade ( 54 ).
Na verdade, toda a norma opera por natureza uma limi-
tação. Essa limitação pode ser tácita ou estar expressamente
proclamada; pode fazer-se por uma previsão genérica ou
por um enunciado de tipos particulares. Em todos os casos,
o próprio preceito que estabelece a limitação não deixa de
estar sujeito à interpretação, e nomeadamente à interpreta-
ção restritiva. Por maior que seja o rigor da delimitação
legal, é sempre em abstracto possível concluir que certas
categorias de hipóteses escapam afinal à sua previsão.
~ então forçoso, para usar a fórmula de Boehmer, «dar
de novo valor à verdadeira ideia da lei, através da restri-
ção da proibição» ( 55 ). Quando assim acontece, a interpre-
tação restritiva revela a existência de uma lacuna.

V-Temos finalmente completo o quadro das «lacunas


rebeldes à analogia»: podemos passar à fase do seu preen-
chimento. Qualquer que seja a situação em que se revele,
a lacuna deve ser integrada pelo processo que a lei indica
para os casos em que a analogia não for bastante - por-
tanto, segundo a norma que o intérprete criaria ... Mas esta
forma de preenchimento suscita novas e consideráveis difi-
culdades, que temos de examinar a seguir, antes de poder-
mos apurar qual a relevância destas conclusões para o nosso
tema.

(5 4) Neste ponto, não cremos que haja divergência de Larenz,


Methodenlehre, 285-6, que exclui que se possam encontrar lacunas
escondidas quando a lei indica exaustivamente os casos a que se
aplica determinada regulamentação. Pensamos que o autor se coloca
já no âmbito de determinada tipologia, cujo carácter taxativo deve
ter sido previamente demonstrado.
( 511) Pág. 72.

243
S9. Integração de lacunas e criação normat1vai

I - Toda a integração comporta necessàriamente um


momento de criação.
Assim acontece quando se recorre à analogia. Ê certo
que aqui é clara a ligação à objectividade: há analogia, não
quando o intérprete o entende, ·mas quando no caso omisso
procedem as razões justificativas da regulamentação do caso
previsto na lei (art. 10.º, 2.). Todavia, para apurar se entre
dois casos em que há aspectos comuns e aspectos diver-
gentes, procedem as razões justificativas da regulamentação
do caso previsto na lei, é necessária uma valoração. Essa
valoração mostra-nos que o fenómeno se não reduz a uma
mera subsumpção: houve necessàriamente um momento de
criação ( 56 ).
E mais longe não nos parece necessário ir, no que res-
peita à analogia, por duas razões: por um lado, porque o
essencial é saber se semelhante criação representa ou não
uma ampliação do sistema normativo, e esse ponto terá de
ser tocado mais tarde; por outro, porque para nós o inte-
resse prevalente está no segundo grupo de casos, ou seja,
naqueles que se não deixam resolver por processos analó-
gicos.

II -Entrando neste segundo grupo, poderia observar-se


que o legislador fez expressa referência a uma criação: o
art. 10.º, 3. fala-nos na norma que o intérprete criaria ... Fal-
tava a norma, mesmo a regulamentar um caso análogo, e é
essa norma que é criada. Poderia pois considerar-se evidente
a criação normativa.
Mas o que se cria é a máxima de decisão dum caso
concreto, e esta não é uma norma jurídica (ó 7 ). Não possui

(~e) Cfr. Larenz, Richterliche, págs. 4-5.


U• 1 ) Betti, Teoria, II, 859-60.

244
a generalidade que lhe permita aplicar-se a outros casos da
mesma índole. Se estes se verificarem, a lacuna subsiste, o
que demonstra que se não operou nenhuma criação nor-
mativa.
É certo que o autor do Anteprojecto afirmara que entre
a actividade legislativa e a interpretativa há só uma dife-
rença de grau ( 58 ), o que mostra ser intencional a referên-
cia ao acto de legislar a que se chegou. Na verdade, porém,
«a resolução do caso omisso só muito superficialmente se
parece com o verdadeiro acto legislativo, e a alusão, no texto
legal, a essa vaga semelhança só pode servir para induzir
em erro» ( 59 ).
Na verdade, podemos afirmar, evitando equívocos, que
não houve propriamente criação de uma norma, mas apli-
cação ao caso da norma que se supõe ser conforme ao sis-
tema jurídico, globalmente considerado ( 60 ).
Quer dizer que também nesta segunda ordem de hipó-
teses vamos, sob o ângulo da criação normativa, chegar a
uma conclusão modesta, que nos aproxima daquela a que
fomos conduzidos quando focámos a analogia. A criação a
que se assiste é uma criação como actividade intelectual.
Não se trata de um mero processo recognitivo, há algo de
criador: sempre que de meros critérios formais, se extrai
uma regra substancial, há uma actividade de criação. Mas
esta criação não se confunde com a criação normativa, como
seria o caso se actuasse uma fonte de direito. O sistema nor-
mativo ficou intacto.

(5 8 )Manuel de Andrade, Ensaio, 149.


J. H. Saraiva, Apostilha, 144. Parece-nos porém incorrecto
( 59 )
que o autor subsequentemente qualifique como subsumpção a valo-
ração para que o art. 10.º, 3. apela.
(Gº) Cfr. a nossa Integração, n.º 11.

245
90. A re1.etlçio de julgados

J - O que fica dilo fornece-nos a base, que não deixa-


n .·mos ele explorar, para admitir a possibilidade de consti-
tuição de c..lircitos reais fora dos casos previstos na lei. Em
abstracto, a interpretação restritiva do art. 1306.º não é nem
n1ais nem menos admissível que a de qualquer outro pre-
ceito kgaJ. A eventual criação a que subsequentemente se
chegasse leria ncccssàriamente significado para a tipologia
taxativa <los direitos reais.
Neste momento, porém, é o problema das fontes de
direito que nos ocupa. Sob este ponto de vista da criação
normativa, ·que relevância pode ter essa eventual criação de
direi tos reais?
Devemos convir que não teria relevância directa. Por
mais ampla que fosse a actividade criadora, a criação dar-
-se-ia no caso concreto, sem que se assistisse ao advento de
nova norma (º 1 ). Mesmo que se tomasse uma decisão judi-
cial, ela não constituiria precedente obrigatório, nos termos
gerais: a surgir mais tarde novo caso da mesma índole, a
decisão anterior deveria ser tomada em consideração, mas
não vinculava. O tribunal poderia concluir que afinal não
há lacuna e portanto, no caso que nos interessa, que não
há lugar para uma integração em termos reais.
Sendo assim, vamos deixar para um momento poste-
rior, em que falarmos de formas de criação individualizada
de direitos reais sem submissão ao regime do numerus clau-
sus, o exame deste problema específico. No que toca à pos-
sibilidade da criação normativa, a conclusão a que chega-
mos após toda esta análise é uma conclusão negativa.

II - Mas não devemos deter-nos na observação de que,


no ponto de vista da criação normativa, não há relevância

( 61 ) Cfr. Enneccerus-Nipperdey, § 42, 1, 1.

246
directa. A elaboração jurisprudencial não pára no caso con-
creto. Se houver repetição de julgados, pode assistir-se à
progressiva modelação de soluções e de máximas de decisão
através da influência, mesmo não imposta, de uns arestos
sobre outros. E é impossível fechar simplesmente os olhos
perante a massa enorme de institutos que foram saindo da
jurisprudência dos tribunais, e da maior ou menor permea-
bilidade destes aos ensinamentos da doutrina. Mesmo na
ordem jurídica portuguesa, em que o individualismo do jul-
gador é conhecido, temos justamente nestes dias um magní-
fico ponto de observação se considerarmos a elaboração
realizada sobre o Código de 1867. Que massa de preceitos,
de regras, de soluções, se foi pouco a pouco modelando sem
que a letra da lei sofresse alteração!
Ocorre perguntar: poderá sustentar-se que todas essas
regras, cujo espírito é muitas vezes tão afastado do espírito
liberal do código ao tempo vigente, representavam meras
revelações daquilo que nos textos estaria já contido? Não
é hoje fácil confessar que isso seria uma ficção demasiado
evidente? Pode pretender-se que essas regras se baseiam
indirectamente na lei (o que todavia só seria verdadeiro em
caso de preenchimento da lacuna por analogia). Mesmo
então, parece-nos procedente a distinção de Larenz, dos
casos em que uma solução é exigida por lei daqueles em
que é meramente permitida ( 62 ). Nestes últimos, o momento
de criação seria inegável.
Mas se nos embrenhamos por esse caminho, defronta-
mos outras dificuldades. Quando podemos dizer que a lacuna
está superada? Quando cessa o poder geral do juiz de afas-
tar a solução antecedente, e se deve considerar firmada uma
nova regra de direito? Não basta a mera repetição de jul-
gados, mas que será então necessário?

(ª2) Wegweiser, págs. 276-7.

247
111- Também sobre este problema se debruçou Larenz,
procurando fixar os critérios que permitiriam afirmar que
uma lacuna estava preenchida. Seria necessária a formula-
ção de uma regra, que possa aplicar-se em todos os casos
em que a facti species se concretizar; a ligação entre a esta-
tuição e a previsão deveria ser fundada em considerações
jurídicas; e a regra deveria integrar-se no sistema norma-
tivo sem criar contradições ( 63).
Parece-nos patente a insuficiência de tais critérios; mas
não cremos que seja necessário criticá-los, pois eles corres-
pondem a uma situação normativa que é consideràvelmente
diversa dà nossa. A solução na ordem jurídica portuguesa
pode obter-se muito mais fàcilmente, recorrendo tão-somente
aos instrumentos que têm estado em causa na teoria clás-
sica das fontes de direito.

91. O costume jurisprudencial

I - O primeiro destes instrumentos é o próprio costume,


na sua modalidade de costume jurisprudencial.
Poucos autores portugueses aceitam expressamente esta
figura ( 64 ) . Parece-nos todavia muito relevante. Talvez só a
frequente instabilidade da nossa jurisprudência explique este
silêncio. Passando a ordens jurídicas estrangeiras, encontra-
mos uma situação muito diversa, e vemos nomes dos mais

(ll3) Veja-se o estudo sobre as «características da elaboração


jurisprudencial do direito» ( Kennz.eichen ... ).
( 6t) Dentre estes deve realçar-se Marcello Caetano, Manual de
Direito Administrativo, 8.• ed., n. 36 e 39. Note-se que o silêncio de
0

outros autores não quer dizer que repudiem o costume jurispruden-


cial. Mesmo as afirmações de Cavaleiro de Ferreira, Costume, 409,
representam mais um acolhimento que uma rejeição, se tivermos em
conta que o que preocupava o autor era a crítica das posições que
pretendem que o reconhecimento judiciário é essencial à formação
do costume (cfr. também Bobbio, págs. 42-3). A rejeição de tais posi-
17õcs cm nada inquina a admissão de um costume cujo elemento
material seja a repetição de julgados.

248
afastados, de Heck a Betti, aceitar com naturalidade esta
forma de costume.
De facto, uma vez admitida a relevância do costume,
e assente que nada fará repudiá-lo quando surjam lacunas
rebeldes à analogia, tudo se conjuga para que consideremos
o costume jurisprudencial {65 ) como subespécie do costume,
fonte de direito actuante.

II -Temos todavia de ser cautos na indicação dos requi-


sitos que devem concorrer para que se forme um costume
jurisprudencial. Sem pretendermos ir até ao fim numa inves-
tigação em que nos arriscamos a sair do nosso caminho,
vamos fazer algumas observações.
J;', aqui patente aquele elemento que tem sido designado
o elemento material, dentro do costume. Esse elemento é a
prdtica constante. Só que essa prática tem como autores os
juízes, e se exprime através de decisões judiciais.
Mas isso não constitui obstáculo à admissão dum
costume. Este exprime-se através da prática de actos que
têm o sentido de conter uma norma. Se estes actos podem
provir dos particulares, podem ser também decisões judi-
ciais. Aplica-se aqui a regra de que o costume é susceptível
de ser gerado somente dentro de um círculo social, e não
necessita de ser compartilhado por todos. A especialidade
está só no seguinte: enquanto nos casos normais esse círculo
coincide com o dos interessados, aqui deparamos com enti-
dades cuja excepcional qualificação consiste precisamente
em estarem colocados acima dos interessados. A conduta
destes não é decisiva, no que ao costume jurisprudencial
toca, nem para a existência nem para o cômputo da dura-
ção do uso.

III - Mas é necessano ainda um segundo elemento, a


opinio juris vel necessitatis. Como é de regra, a prática cons-

( 611) Sobre a relevância deste na integração de lacunas, cfr. Betti,


Teoria della interpretazione, 861-2.

249
tante deve gerar a convicção de que tal conduta é juridica-
mente obrigatória, e quando essa convicção se generaliza
nasce o costume. Ora bem, aqui é já insuficiente a convic-
ção dos próprios juízes: é ainda necessário que a sua con-
cepção tenha conseguido impor-se aos interessados. Por
outras palavras, é necessário que contra a orientação dos
tribunais não se levante a oposição dos interessados: nestes
deve ter-se radicado a convicção de que como o tribunal
diz é que deve ser ( 66 ). Acrescente-se que o costume juris-
prudencial não é prejudicado pela subsistência de certas
oposições, como a da doutrina: elas não afectam nem o
usus nem a opinio juris.

92. Distinção da jurisprudência. consta.ntie. Apli~


prática.

I - E. preciso não confundir o costume jurisprudencial


com a jurisprudência constante.
Esta última figura ganhou com o tempo um relevo que
talvez não tenha sido ainda devidamente avaliado. Com
grande frequência vemos sentenças, e nomeadamente acór-
dãos de tribunais superiores, prescindir de toda e qualquer
fundamentação em questão controvertida, dado haver «juris-
prudência constante» em certo sentido ... Há aqui um ele-
mento obscuro, talvez um trânsito para se vir a tomar a
jurisprudência constante como fonte de direito, o que aliás
ainda seria diverso da adopção da regra do precedente. Tal
atitude, porém, não seria conforme com o sistema normativo.
O que nos interessa agora sublinhar é que nem em todos
os casos de jurisprudência constante há costume jurispru-
dencial. O que fàcilmente se compreende, se tivermos em
conta que a mera verificação da jurisprudência constante
não exclui a viragem jurisprudencial, a qual será tanto

(r.r.) Cfr. Enneccerus-Nipperdey, § 39, 1, 3. e H, 3.

250
mais significativa quanto mais constante for a jurisprudên-
cia. Não seria mesmo conveniente tomar demasiado rígida
a acção jurisdicional, impedindo-a de se abrir a novas solu-
ções só pelo facto de dada solução se ter tornado constante.
Pelo contrário, o costume, como fonte de direito, impõe-se
à aplicação dos tribunais.

II - ~ que o costume jurisprudencial, supondo embora


uma jurisprudência constante, não se esgota nela. Dois aspec-
tos significativos nos revelam o que o costume tem a mais:

1) No que respeita ao elemento material, o costume


jurisprudencial exige uma massa considerável de decisões
e uma constância protraída durante um longo período de
tempo, enquanto a ·jurisprudência constante tem exigências
menores.

2) No que respeita à opinio juris, exige-se que se tenha


criado, antes de mais no próprio julgador, a convicção de
que deve ser assim, de que aquela solução vincula por si
e não pode ser ai tera da ( 67 ).

III - Podemos ilustrar estas observações com um exem-


plo tirado da prática anterior ao Código Civil de 1966.
Desde a publicação do Código de Seabra - por mais
aberrante que possa parecer! - esteve em dúvida, não dire-
mos já o conteúdo, mas o próprio número dos regimes matri-
moniais de bens regulados por lei: diziam uns que eram três,
outros quatro, outros cinco. Modernamente, Paulo Cunha
enunciou uma posição, fundada numa argumentação convin-
cente, que influenciou parte da doutrina posterior. Segundo
ele, seriam quatro os regimes-tipos, a saber, a comunhão
geral de bens, a simples comunhão de adquiridos, a separa-

( 67 ) Larenz, Methodenlehre, págs. 271-2. Cfr. também E.nneccerus-


·Nipperdey, § 58, IV.

251
ção relativa e o regime dotai. Quanto à chamada separação
absoluta não seria um regime-tipo, mas um regime pre-
visto ( 68 ).
Apesar disso, a jurisprudência não tergiversou: foi sem-
pre considerando que a separação absoluta era um regime-
-tipo, a que acresceriam a comunhão geral, a simples comu-
nhão de adquiridos e o regime dotai.
Perante tanta persistência, sustenta Gomes da Silva que
se formou um costume jurisprudencial ( 69 ). Esta posição
parece-nos inteiramente de apoiar; criou-se efectivamente
uma juridicidade nova, que permitiu à jurisprudência ser
insensível às razões da doutrina. O que valia, já não era
propriamente o que estava no código, mas o que os tribu-
nais decidiam. Essa prática, comunicando-se aos particula-
res e às demais autoridades interessadas, ganhara os extre-
mos de um costume.

IV - Concluímos pois que a repetição dos julgados não


é de todo irrelevante para o mundo da norma. Dela pode
resultar a formação de uma nova norma - e nomeadamente,
de uma norma que preveja um novo direito real. Temos,
pois, outra negação frontal da interpretação legalista do
art. 1306.º, 1.
Em todo o caso, o nosso fim era indagar se a jurispru-
dência podia ser fonte de direito. O que encontrámos não
representa um fenómeno desta ordem; vimos que nestes
casos pode haver criação normativa de direitos reais em
consequência da actividade dos tribunais, mas a fonte do
direito não é directamente a jurisprudência, mas o costume.
Não haverá então casos em que a jurisprudência valha
por si como fonte de direito?

(&~) Direito da Familia, págs. 592 e segs.


('•!!) Direito da Família, pág. 249.

252
93. ós assenfios
I - Se se fixa doutrina por meio de ass~nto, a juris-
prudência é fonte de direito. Temos aqui a figura específica
da ordem jurídica portuguesa, que torna inúteis construções
moldadas nos quadros de ordens jurídicas em que não existe
nada de semelhante.
O Código de 1966 integrou os assentos entre as fontes
de direito, se bem que tenha evitado comprometer-se dema-
siado quanto à natureza deles. Diz o art. 2.º que, nos casos
declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de
assentos, doutrina com força obrigatória geral. Do assento
resulta, pois, uma norma que se impõe à observância de
todos. Esta era já a situação no direito anterior, pelo menos
desde que o Código do Processo Civil excluíra a possibili-
dade de o próprio Supremo Tribunal de Justiça alterar um
assento.
Repare-se também que o código não diz que a doutrina
do assento é obrigatória «para todos os tribunais», como se
fazia no n.º 2 do art. 769.º do Código de Processo Civil:
fala-se antes em força obrigatória geral. Parece-nos que
assim se liquida a doutrina que concebia o assento como
uma «Ordem de serviço» dada aos tribunais ( 70 ).

II - Aqueles que anseiam por reduzir todas as fontes


de direito à lei podem pretender, mesmo perante o assento,
que a fonte de direito é a lei, e não a jurisprudência. Talvez
se orientasse neste sentido quem, no domínio do código
antigo, qualificava o assento como «lei interpretativa».

(7°) Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8.ª ed.,


n.º 55, mantém todavia esta posição, considerando que seria incons-
titucional atribuir a um tribunal, por lei ordinária, função legislativa.
Mas não cremos que a argumentação seja procedente, antes de mais
porque no caso do assento a fonte do direito não está na lei, mas
na jurisprudência. O Código Civil, que legltimamente fixa os princí-
pios básicos sobre fontes de direito, pode também fixar o valor da
jurisprudência.

253
Não se pode porém confundir assento e lei. A investi-
gação que realizámos sobre a lei, por um lado, e sobre a
elaboração jurisprudencial, por outro, torna claro que não
há qualquer ponto de contacto entre as duas realidades, para
além da genérica integração de ambas no conceito de «fonte
de direito».

III - Partindo todavia desta qualificação do assento


como lei interpretativa (tomando-a embora como enuncia-
dora de uma mera afinidade e não como rigorosa qualifica-
ção), suscita-se novo problema: o assento poderá verdadei-
ramente interessar à matéria da integração? Não suporá
interpretações divergentes da lei? A ser assim, respeita à
interpretação e não à integração: o preenchimento de casos
omissos escapa-lhe.
Não cremos que a solução obrigue a profundas análises.
Já para o direito anterior escrevia Cabral de Mancada que,
ao menos no caso de integrar uma lacuna, o assento «assu-
mirá então o carácter duma verdadeira fonte imediata de
direito» ( 71 ); do mesmo modo que para o código novo escre-
vem Pires de Lima e Antunes Varela que «O assento tanto
pode fixar uma das várias interpretações possíveis da lei,
como preencher uma lacuna do sistema, criando a norma
correspondente» ( 72 ).
Efectivamente, o art. 763.º, 1., do Código de Processo
Civil apenas exige que haja soluções opostas «relativamente
à mesma questão fundamental de direito». Nunca ninguém
pretendeu, nem se pode pretender, que se devam conside-
rar excluídos os casos em que a divergência de julgados

(11) Vol. J, pág. 122.


(í:t) Código, sub art. 2.º. Esclarecem os mesmos autores que
cm qualquer das situações o que vale como fonte (imediata) de
direito é o preceito genérico, e não a aplicação dele ao caso real que
serve de base ao recurso.

254
nasça de uma lacuna da lei. Antes se poderia afirmar que
nessas hipóteses é particularmente visível a necessidade (que
está na origem desta especial valia dos assentos) de tornar
certo o direito e uniformizar a jurisprudência. Pensamos
ser pois indiscutível que por meio de assento se pode preen-
cher uma lacuna da lei: e toda a espécie de lacunas, sejam
patentes ou ocultas, visto que não há nenhuma base para
distinções. Por esse caminho pode pois, em teoria, um assento
consagrar um direito real, para além dos previstos na lei
como tal.

IV-O assento aparece-nos como a segunda forma de


elevação a fonte de direito de uma orientação jurispruden-
cial. Em certos casos, pode o assento ser o coroamento de
um costume jurisprudencial, o que explicaria a tendência de
o confundir com aquele. Normalmente, porém, estes dois
meios funcionam em direcções diversas, mas complemen-
tares, permitindo resolver satisfatoriamente os casos em
dúvida.
Como regra, o costume jurisprudencial supõe uniformi-
dade, e o assento discrepância. Certa orientação constante-
mente seguida nunca se consolidará em assento porque falta
a divergência de julgados que está na base deste: só o
costume lhe pode dar estabilidade. Pelo contrário, se há dis-
crepância de julgados não pode haver costume, mas pode o
assento transcender as oposições e trazer a solução que fal-
tava. Estes dois meios funcionam pois em direcções opostas.
Mas como se vê, também são complementares; e a sua
conjugação permite estabelecer o sistema de que derivará
o quantum de elaboração jurisprudencial que deverá ser
admitido na nossa ordem jurídica. Esse sistema tem um
grau bastante mais elevado de precisão do que aqueles a
que, como dissemos, se tem de recorrer noutras ordens
jurídicas.

255
94. Conclusão

1- Resta agora tirar outra conclusão parcelar, depois


desta nova ordem de observações. Fundamentalmente, pode-
mos dizer que dela resultou ( 73 ) que, onde o n.º 1 do art. 1306.º
prevê a lei, o intérprete deverá ler fonte de direito, pois de
toda a fonte de direito podem derivar direitos reais. O texto
do art. 1306.º tem pois de ser assim interpretado.
Que desta maneira não sairemos do seu autêntico sen-
tido, resulta da segunda parte do mesmo texto: a violação
da proibição contida na primeira parte consiste na criação,
por negócio jurídico, de figuras atípicas. A preocupação do
legislador foi pois afastar a intervenção da autonomia pri-
vada na criação de direitos reais. Essa preocupação em nada
fica abalada com a nossa interpretação.

II - Para chegarmos a este resultado que espécie de


interpretação empregámos?
Partimos de um preceito em que se limitavam os direi-
tos reais aos que estivessem previstos na lei. Como logo
observámos, a palavra lei é passível de vários entendimen-
tos, dos quais só dois poderiam estar em causa:

1) um restrito, segundo o qual a lei é uma fonte par-


ticular de direito;

2) outro lato, segundo o qual a lei equivale ao próprio


sistema positivo. E. uma acepção também muito frequente.

o demento sistemático deu-nos uma espécie de presun-


ção en1 favor da primeira hipótese: era de supor que lei
significasse sempre uma fonte de direito entre as outras,
num código cujo preceito inicial proclamava logo esse sen-

P;,\ra
(; .i) al~m dos problemas específicos ligados à própria lei
como uma das fonk~ d~ dirc!ito.

256
tido do termo. Só da lei (neste sentido restrito) poderiam
pois resultar direitos reais.
A investigação posterior levou-nos porém a repudiar este
entendimento: outros elementos, mais fortes que o elemento
sistemático, fizeram-nos concluir que pode haver outras fon-
tes de direitos reais, além da lei (em sentido restrito).
Regressemos então ao texto do art. 1306.º, 1., e procure-
mos conjugá-lo com estes resultados. Consegue-se isto pela
interpretação declarativa (lata) ou será necessário recorrer
à interpretação extensiva?
Devemos optar pela primeira alternativa. Os resultados
a que se chega cabem ainda dentro dos sentidos possíveis
da palavra lei: está-se pois no domínio da interpretação
declarativa. Não é necessário arredar o texto, considerando-o
inidóneo para suportar o sentido preceptivo. Na realidade,
o texto ainda basta, desde que se chegue a um entendimento
lato da palavra lei. A presunção derivada do elemento siste-
mático cede perante a apreciação de conjunto.
É claro que esta interpretação não exclui a observação
de que é pouco adequado usar a palavra lei, neste e certa-
mente em muitos outros lugares, num sentido que tanto se
distancia do do art. 1.º do código: mas esta é já uma consi-
deração de ordem muito diversa.

III - Qual é então a fisionomia que o numerus clausus


nos revela, após esta nova achega?
O esclarecimento que tem de ser feito concerne exclusi-
vamente à indicação da lei como fonte monopolística dos
direitos reais. Dizendo-se que só se admitem os tipos pre-
vistos na lei, têm-se em vista todos os tipos previstos por
uma fonte de direito ou, o que é o mesmo, admitidos pela
ordem jurídica objectiva. É esta, e não só a lei em sentido
restrito, quem tem o poder de criar tipos de direitos reais.

257
17

CAPITULO VI

A AUTONOMIA PRIVADA

95. R83.âo deste capitulo

Passamos a uma investigação que nos coloca num pólo


oposto àquele em que estivemos. Analisámos a criação nor-
mativa; apurámos pois como entender a primeira parte do
n.º 1 do art. 1306.0 • Agora interessa-nos a segunda parte:
temos de ver qual a relevância da autonomia privada, e até
onde pode ela chegar na base do seu instrumento, o negócio
jurídico.
A pergunta pode parecer ociosa. Vimos, logo no capí-
tulo I, que uma tipicidade taxativa implica a exclusão da
autonomia privada na criação de novos tipos. O art. 1306.º
vai inteiramente neste sentido, como resulta da investigação
que realizámos a respeito do prisma do numerus clausus.
Como se explica que ainda nos proponhamos dedicar um
capítulo ao problema da autonomia privada?
Na realidade, nem tudo está resolvido. É necessário
saber:
a) Se não haverá sectores da ordem jurídica em que
leis especiais, em concorrência com o art. 1306.º, consagrem
o princípio do numerus apertus;
b) Se, mesmo no domínio que é coberto pelo art. 1306.º,
o preenchimento das lacunas rebeldes à analogia não poderá
equivaler a uma criação autónoma de direitos reais;

259
e) Se as partes não podem modificar os direitos reais
normativamente admitidos.

A estes problemas dedicaremos as três secções seguintes.

SECÇÃO I

DIREITOS SOBRE BENS INTELECTUAIS

96. Posição do Código Civil nesta matéria

I-Ao art. 1306.º não pode estar subjacente a preten-


são de penetrar todos os sectores da ordem jurídica portu-
guesa. Numerosos limites 1hc temos apontado ou apontare-
mos ainda. Indo ao que interessa neste lugar, fàcilmcnte se
concederá que ele tem cm vista o domínio correntemente
designado por direito privado.
E mesmo neste domínio, é sabido que a nova codifica-
ção da lei civil não pretendeu revestir feição exclusivista.
Verifica-se até que sectores que tinham sido incluídos no
Código de Seabra estão agora abandonados à legislação espe-
cial. Justamente no Direito das Coisas encontram-se repeti-
das manifestações desta tendência.
Na medida em que há uma legislação especial, o direito
codificado guarda ainda um carácter de lei normal, que
poderá ser subsidiàriamcnte aplicada, mas não poderá ter
a pretensão de estabelecer todos os princípios gerais da res-
pectiva matéria.

II -A investigação poderia estender-se a cada um dos


ramos que se não encontram contidos no Código Civil. Mas
vamos já dircctamcntc ao ponto cm que a admissão «regio-
nal» de um numerus apertus pode ser sustentada com pos-
sibilidades de êxito. Referimo-nos aos direitos sobre bens
in telcctuais.

260
Tomemos o art. 1303 .., (propriedade intelectual). Nele
se prescreve que os direitos de autor e a propriedade índua·
trial estão sujeitos a legislação especial. As disposições do
Código Civil são-Jhes subsidiàriamente aplicáveis, quando se
harmonizem com a natureza daqueles direitos e não con-
trariem o regime para eles especialmente estabelecido.
Temos assim uma matéria autónoma, denominada pro-
priedade intelectual, que engloba dois capítulos distintos:

- o direito de autor, regulado quase exclusivamente pelo


Código do Direito de Autor, aprovado pelo Decreto-
-Lei n.0 46 980, de 27 de Abril de 1966, e que não é
qualificado como propriedade;

- a chamada «propriedade industriah, assim qualifi-


cada pelo vigente Código da Propriedade Industrial
(Decreto n.º 30 679, de 24 de Agosto de 1940).

97. DlreltoH derivados : Hua atlplcldade

1 - Deixamos de parte, de momento, uma rigorosa qua-


lificação destes ramos do direito. Verificamos antes que,
entre as situações jurídicas subjectivas que regulam, se
encontram, não só o direito pleno à obra intelectual ou ao
bem industrial, como ainda outros direitos derivados daque-
les. Podíamos dizer que há não só um direito maior como
direitos menores, com a condição de, também aqui, não
cairmos logo na identificação deste direito maior e da pro-
priedade.

II -Tradicionalmente, não são típicos os direitos a for-


mas de aproveitamento limitadas dos bens intelectuais. As
partes podem, nos seus contratos, dar vida às formas que
entenderem, desde que não contrariem eventuais normas
proibitivas. Este convencimento é um dos pressupostos que
paira, mais implícito que explicito, nas obras dos autores

261
que a esta matéria se referem. Não deixamos todavia de
encontrar referências, em autores de muito relevo, a uma
ausência de Typenzwang ( 1 ) ou a um numerus apertus ( 2 ).
A lei estrangeira que imediatamente precedeu o Código
do Direito de Autor português - a importante lei alemã de
16 de Setembro de 1965 - mantém a mesma linha, admi-
tindo todas as formas de disposição e, mais especifica-
mente, a constituição de direitos de gozo, exclusivo ou não
(§ 31 )( 3 ).

III - Esta é também a orientação das leis portuguesas.


Assim o demonstra um breve exame dos textos fundamentais.
No Código do Direito de Autor, interessa-nos sobretudo
a secção intitulada «Da transmissão do direito de autor e
da autorização para a utilização da obra» (arts. 38.º e segs.).
Logo o art. 38.º permite a transmissão total ou parcial
do direito de autor. O art. 40.º distingue destas a simples
autorização concedida a terceiros pelo autor ou outro titu-
lar do respectivo direito, para explorar a obra intelectual
por qualquer processo.
O art. 47. prevê o usufruto, o art. 48.º o penhor e o
0

art. 49. 0 a penhora e o arresto de obras intelectuais.


Abstraiamos por agora das dificuldades inerentes à
ampla utilização do conceito de transmissão, dificuldades
que aliás surgem da mesma maneira a propósito dos direi-
tos sobre bens industriais. Se assim fizermos, podemos afir-
mar que da simples leitura dos referidos preceitos resulta
a impressão de que houve uma grande latitude na admissão
de direitos derivados do direito de autor.

IV - Se passarmos ao Código da Propriedade Indus-


trial, o panorama não é diverso. Vamos limitar-nos, por

( 1) Ulmer, § 65, II.


( 2) Heck, § 23, 10. Também von Tuhr, II, 1., § 45, U, 1. e § 51, 1,
nota 14, diz que não há um numerus clausus de direitos derivados.
( 3) Hubmann, § 41; Fromm, sub § 32, n. 09 3 e 14.

262
simplicidade, ao que respeita às patentes, embora esta regu-
lamentação pareça aplicável aos modelos e desenhos indus-
triais e, em medida mais limitada, às marcas.
A concessão da patente dá o direito exclusivo de explo-
rar o invento (art. 8.º); mas a patente «pode ser transmi-
tida por título gratuito ou oneroso, total ou parcialmente,
por todo o tempo da sua duração ou por prazo inferior,
para ser utilizada em toda a parte, ou em determinados luga-
res» (corpo do art. 24.º). Essa transmissão não produzirá
efeitos, em relação a terceiros, antes de autorizada pela
Repartição da Propriedade Industrial (art. 25.º).
Da hipótese da transmissão se distingue a da mera con-
cessão de licença de exploração, que pode ser ou não exclu-
siva, isto é, acompanhada de exclusivo (art. 29.º)( 4 ). Tam-
bém aqui a lei não estabelece qualquer restrição quanto ao
conteúdo dos direitos derivados. Confirma-se assim a impres-
são de uma atipicidade na constituição de situações desta
ordem.

V- Em todo o caso, e apesar do carácter sumário desta


descrição, não podemos deixar de fazer uma reserva, essen-
cial para a compreensão do verdadeiro âmbito desta atipi-
cidade.
Todas as disposições em que nos baseámos respeitam
a formas de utilização ou aproveitamento do próprio bem
intelectual: são direitos de gozo da patente ou da obra lite-
rária ou artística, por assim dizer. Assim acontece na licença
de exploração da patente, ou na «transmissão» parcial do
direito de autor, que o art. 40.º do respectivo código declara
restrita aos modos de utilização designados no acto que a
determina ... Este é o domínio em que é claro o numerus
apertus.

(') Pode também a licença de exploração ser compulsiva, se


tiver como pressuposto a inactividade ou a negligência do titular da
patente (art. 30.º).

263
Já não se encontra, porém, qualquer abertura na lei
para afirmar a atípicidade na constituição de outros direi-
tos sobre os bens intelectuais, direitos de garantia ou de
aquisição, por exemplo. No que respeita aos direitos de
garantia sobre obras literárias ou artísticas, a própria lei
sentiu a necessidade de tipificar o penhor, e a penhora e o
arresto (arts. 48.º e 49.''), e não se encontra qualquer aber-
tura para outros direitos, nomeadamente nas normas sobre
registo.
J;: aliás compreensível que assim aconteça, pois de outro
modo a lei positiva não estaria equipada com instrumentos
suficientes para afastar limitações anti-sociais, que tanto
podem surgir neste como noutros sectores. Isso torna-se
muito claro se tivermos em atenção a situação do conce-
dente. Este não se poderia reservar um direito de sequência
sobre a obra se a lei o não previsse (art. 59.º do Código do
Direito de Autor); e de qualquer modo não pode garantir-se,
cm termos absolutos (como veremos, estes direitos deriva-
dos podem ser absolutos) direitos inominados a outras van-
tagens que não estejam previstas na lei, para além das ofe-
recidas por esse mesmo art. 59.º.
O numerus apertus aparece-nos pois, após este rápido
exame, acantonado ao domínio dos direitos de gozo dá obra
intelectual. Isso em nada inquina a conclusão a que chegá-
mos: há em todo o caso um domínio em que impera a atípi-
cidade na constituição de direitos limitados. J;: quanto basta
para que possamos proceder à nossa investigação, tendente
a apurar o significado desta atípicidade para a tipologia dos
direitos reais.

98. Carácter absoluto

1 - Estes direitos limitados podem ser concebidos como


direitos absolutos ou como direitos relativos, para usar a
linguagem corrente. Embora com repugnância, dada a grande

264
equivocidade destes termos, empregamo-los só para evitar
a complicação terminológica.
Como é evidente, a referência a esta categoria de direi-
tos absolutos em nada implica a admissão duma relação
absoluta: já noutro lugar indicámos as razões porque rejei-
tamos esta construção ( 5 ). O que é decisivo para caracteri-
zar os direitos absolutos, é a observação de que há direitos
que na sua existência estão ao abrigo da actuação de outros
sujeitos - até do próprio concedente desse direito, caso se
trate do direito derivado - e direitos que estão sujeitos a
essa actuação. Os primeiros são os direitos absolutos (ou
independentes, no sentido originário da palavra); os segun-
dos são os direitos relativos. Como justamente tem sido
observado, a oposição direitos reais - créditos é apenas um
aspecto da oposição mais vasta, entre direitos absolutos e
relativos.

II - Como dissemos, os direitos limitados sobre bens


intelectuais podem ser concebidos como absolutos ou rela-
tivos. Decisivo é saber se a posição do beneficiário é oponí-
vel a qualquer pessoa, mesmo a terceiro que eventualmente
tenha recebido do concedente o direito pleno sobre o bem
intelectual, ou se se esgota num direito ao aproveitamento
do bem que só é oponível ao concedente. O exame de ordens
jurídicas estrangeiras mostra-nos que há grandes variações
quanto a este ponto.
Assim, para o direito alemão, Ulmer considera a consti-
tuição de direitos derivados como aparentada com a consti-
tuição de direitos reais limitados (ainda que, numa complexa
análise, procure demonstrar que não são a mesma coisa)( 6 ).
Hubmann fala-nos «numa espécie de direito real» ( 7 ), quer
a propósito das «licenças simples», quer no referente às
«licenças exclusivas». Todos concordam que, mesmo nestas

( :i) Cfr. Relações Reais, n.º" 5 a 12.


( 6)§§ 65 e 68.
(1) § 41.

265
concessões não acompanhadas de exclusivo, a situação do
beneficiário não é a de mero credor de uma prestação nega-
tiva, até porque ele continua legitimado a exercei o direito,
mesmo se o concedente fizer posteriormente nova disposi-
ção a que atribuir o exclusivo ( 8 ). O mesmo se aplicará às
autorizações para exploração de patentes.
Já os autores franceses fazem a distinção entre cessão
(total ou parcial) do direito, e concessão de licença. A cessão
tem carácter absoluto; a concessão dá origem a um mero
direito pessoal(º).
Mais radicalmente ainda se passarão as coisas no direito
suíço, que excluirá qualquer oponibilidade a terceiros. Troller
dá como justificação não ser a vontade das partes bastante
para vincular terceiros; ora as leis que permitem a trans-
missão, diz, nada dispõem sobre estas matérias, ao contrário
das leis referentes a direitos reais (1°).

99. O problema na propriedade industrial

I - À luz das regras legais portuguesas, que pos1çao


adoptar? Vamos analisar separadamente o que respeita ao
direito de autor e à propriedade industrial.
Comecemos pela propriedade industrial. Um exame com-
pleto da matéria exigiria uma larga exposição, em que se
deveria explicar a contraposição entre transmissão e licença,
procurando-se fixar o conceito desta. Sabemos efectivamente
que ela representa necessàriamente algo de menos firme que
a transmissão do direito sobre o bem industrial. Mas onde
acaba a concessão da licença exclusiva e começa a trans-
missão parcial e limitada do direito de autor?

(ª) Cfr. Ulmer, § 67; Hubmann, § 41, li; Fromm, § 32, n." 14.
(º) Desbois, 1.ª ed., n.º 491 e segs.; Roubier, pág. 301.
(1º) Pág. 97.

266
II- Cremos poder evitar este rodeio, afirmando que
em qualquer caso, mesmo no das simples licenças, os direi-
tos derivados têm carácter absoluto. ~ o que se depreende
do § 2.º do art. 29.º do Código da Propriedade Industrial,
segundo o qual «a licença de exploração constitui ónus real
da patente de invenção ... »
Não nos parece que este preceito possa ser minimizado,
quando expressamente declara que as licenças de explora-
ção, que como vimos já podem ser livremente outorgadas
e ter qualquer conteúdo, são ónus reais.
Para entendermos o significado desta expressão deve-
mos recorrer ao art. 949.º do Código Civil ao tempo vigente.
Por ele se qualificavam como ónus reais variadas figuras,
da hipoteca até ao dote ou ao arrendamento por mais de
quatro anos, para efeitos da sujeição a registo predial. Cre-
mos que é relativamente segura a afirmação de que seme-
lhante categoria não passava dum expediente terminológico
do legislador, para abranger todas as situações em que se
verificasse a inerência, mas que por qualquer motivo repug-
nava considerar direito real.
O Código da Propriedade Industrial navegou nas mes-
mas águas. Não querendo qualificar estas figuras como direi-
tos reais, falou genericamente em ónus real, ficando eviden-
temente muito longe do significado técnico da expressão,
que atrás procurámos fixar ( 11 ). A nós basta sublinhar que
a qualificação como ónus real significa afinal a qualificação
como direito real, pois assenta na verificação da inerência.

III - Coerentemente, o mesmo § 2.º acrescenta que a


licença de exploração, como ónus real da patente de inven-
ção, «será averbada ao seu registo no livro respectivo». Esta
sujeição a registo, não apenas das transmissões, mas tam-
bém das meras licenças de exploração, confirma quanto

( 11) Supra, n.º 43.

267
dissemos. i:. porque entende estas situações como uma espé-
cie de direitos reais que o legislador quer regular a sua
oponibilidade a terceiros.
Mas o que de momento interessa não é ainda a qualifi-
cação destas situações como direitos reais. O que interessa
é que tal qualificação traz implícita a qualificação dos direi-
tos derivados como absolutos. É justamente porque a situa-
ção é independente de quaisquer posições· que terceiros
possam invocar que é necessário dar a todos a possibili-
dade de a conhecerem através dum registo público.

100. O problema no direito de autor

I - Passando ao campo do direito de autor, encontra-


mos a já referida distinção da transmissão do direito de
autor (art. 38.º do respectivo código) e da autorização para
a utilização da obra (art. 40.º).
A transmissão pode ser total ou parcial, e esta última
é a que «é restrita aos modos de utilização designados no
acto que a determina, quer esta designação se faça em ter-
mos genéricos, quer com especificação dos poderes transmi-
tidos» (art. 39.º).
Não é fácil distinguir a transmissão parcial da autoriza-
ção para a utilização da obra. Poderia pensar-se que a dife-
rença estaria em a transmissão implicar a concessão de exclu-
sivo, ao contrário da mera autorização; mas o art. 40.º, 2.,
mostra-nos que pode haver autorizações reforçadas pelo
exclusivo. Dir-se-ia então que a transmissão envolve uma
generalidade de poderes, e a mera autorização um poder
ou forma de utilização específicos, mas o art. 39.º mostra-
-nos que na transmissão pode haver especificação dos pode-
res transmitidos e o art. 45.º que nos contratos de autoriza-
ção o objecto pode também ser indicado de forma genérica.
Pensamos que o índice fornecido pelo registo, nos ter-
mos atrás indicados a propósito dos bens industriais, nos
levará à solução.

268
O art. 189. do Código do Direito de Autor declara sujei-
0

tos a registo os actos que envolvam transmissão total ou


parcial do direito de autor, os actos de constituição de
penhor, e a penhora e o arresto. Nenhuma referência faz a
uma sujeição a registo das autorizações para utilização da
obra. Sabendo que na técnica das nossas leis sobre registo
a expressão «Sujeição a registo» equivale simplesmente a
registabilidade, devemos concluir que as meras autorizações
não são registáveis.
Por este caminho já encontramos uma diferença entre
transmissão e autorização que justifica a clara separação
feita na lei. A mera autorização não é registável porque tem
natureza creditícia: por ela, o titular do direito de autor
obriga-se a permitir e a tornar possível a exploração da obra
intelectual pelo processo ou processos que forem indicados.
A transmissão, mesmo quando parcial, é, pelo contrário,
dotada de eficácia absoluta. Por isso está sujeita a registo,
para que terceiros saibam com o que devem contar.

II - Em conclusão, vamos encontrar duas situações


diversas em matéria de atribuição pela lei de carácter abso-
luto aos direitos derivados.
Na propriedade industrial, a todos os direitos deriva-
dos pode ser dado carácter absoluto. A distinção entre trans-
missões e licenças é, por este ângulo, irrelevante. Pelo con-
trário, no direito de autor, enquanto a transmissão origina
um direito absoluto, a autorização tem carácter meramente
relativo, não podendo ser oposta a terceiros transmissários
do direito.
Todavia, ainda que tenhamos sido levados a uma con-
clusão negativa no capítulo específico das meras autoriza-
ções dadas pelo titular do direito de autor, não fica com
isso inquinada a conclusão geral que resulta desta investi-
gação: os direitos derivados podem ter carácter absoluto.
Associando as conclusões parcelares a que fomos conduzi-
dos, diremos que há direitos derivados sobre bens intelec-
tuais que podem ser constituídos em regime de numerus

269
apertus; e que a nossa ordem jurídica os concebe como
direitos absolutos.

101. Tn.nsmissão ou constituição de direit.os derivados

I - Passaríamos imediatamente à verificação da rele-


vância dos fenómenos verificados sobre a tipicidade dos
direitos reais se não subsistisse um elemento perturbador,
que de\·emos previamente arredar.
~ que, como já observámos atrás, os textos legais por-
tugueses não falam em liberdade de oneração, não falam
sequer em constituição de direitos limitados: falam em
iransmi.ssão, limitada ou não, do direito intelectual, trans-
missão que se contraporia às meras licenças ou autoriza-
ções não exclusivas para utilização da obra. ~ certo que o
Código da Propriedade Industrial admite o usufruto, e o
Código do Direito de Autor o usufruto e o penhor: aí haverá
5ê':D dú\ida uma verdadeira constituição de um direito novo.
li.as pode justamente perguntar-se se não será só nesses
.'.:a.SOS que é admissível uma oneração do direito-base, e se
7-1:-~to não serão afinal típicas as hipóteses de oneração.
X?S restantes casos não haveria factos constitutivos, mas
f~.rJS transmissivos desses direitos, ou de partes deles.

II - Começamos por observar que a objecção nunca


-=.:r.giria todas as modalidades de direitos derivados. Além
~ trammissões, há ainda as licenças no direito indus-
ª'
~--.al. autorizações no direito de autor. No que respeita às
: ...:.eiv,ai, que vimos já terem oponibilidade erga omnes, é
;.~?A•íve1 dizer que há uma transmissão. Elas têm carácter
~.J'x.·1ti~'JtÍVfJ, rc..'J)rescntam onerações do direito-base, como
:-"fJA'ihtt..é '' art. 29.'', § 2.(j, do Código da Propriedade Indus-
".t.a!. ~ q1ialífícá-Ja1S como ónus real. Portanto, mesmo que
•, ')';1.~ ~ ~ limitado a essas situações, o problema da

~1.;\\ir11líd~ de uma constituição de direitos reais em


:"-t;:t,;; d.e numeru" apertus subsistia.

270
Mas na realidade, mesmo nos outros casos a dificuldade
é aparente. A previsão legal da transmissão não impede que
consideremos nela incluída a constituição de direitos reais.

III - Fàcilmente se concederá que é ainda tosca a téc-


nica das leis sobre direitos intelectuais, neste ponto. No
Código do Direito de Autor, a previsão do usufruto surge-
-nos no art. 47.º, sem que se esclareça se se está perante
uma transmissão ou uma constituição. Poderia preferir-se
este segundo entendimento, tendo em conta a natureza da
figura e o facto de, logo a seguir, se falar em constituição
de penhor. Todavia, não é esse o sistema da lei. Para esta,
o estabelecimento dum usufruto é ainda uma transmissão.
Por isso, o art. 189.º sujeita a registo as transmissões totais
ou parciais do direito de autor e a constituição de penhor,
mas nenhuma especificação faz do usufruto - este está
abrangido na referência à transmissão.
A história explica esta técnica anómala. No art. 100.º do
Decreto n.º 13 725 previa-se a transmissão, somente em usu-
fruto, do direito de autor. A previsão do art. 47.º do actual
Código do Direito de Autor foi proposta pela Câmara Corpo-
rativa para manter «o princípio consagrado no decreto» ( 12 ).
Por isso o art. 189.º do mesmo código reproduz a disposição
do art. 105.º do Decreto n.º 13 725, sobre registo ( 13 ). Temos
assim, em conclusão, que a lei faz coexistir uma transmissão
em usufruto e uma constituição de penhor ...

( 12) Parecer, pág. 124. Note-se que logo a seguir, na pág. 125,
se fala em constituição do usufruto, o que traduz o escasso amadu-
recimento do tema na lei portuguesa.
( 1 ª) Note-se ainda que este art. 105.º falava, no seu n.º 1.º, dos
«actos de transmissão da propriedade literária ou artística, total ou
imperfeita», fazendo uma elucidativa referência ao conceito de pro-
priedade imperfeita, constante do Código Civil então em vigor.
O Código do Direito de Autor actual fala em transmissão total ou
parcial para exprimir a mesma ideia: a alteração terminológica foi
imposta, por um lado, por se ter deixado de falar em propriedade
literária nas leis sobre direito de autor, por outro, por se ter deixado
de falar em propriedade imperfeita na lei civil fundamental.

271
As mesmas incertezas vamos encontrar no Código da
Propriedade Industrial. É assim que a referência ao usufru-
tuário da patente nos surge inopinadamente no art. 27.º, para
regular um aspecto acessório da situação dele, quando a
própria admissibilidade da constituição do usufruto não
fora ainda referida.
E todavia também aqui esta situação só se explica por
a própria constituição do usufruto se incluir nas genéricas
referências à transmissão ( 14 ). Estas só se compreendem se
englobarem também aquelas figuras a que devemos outor-
gar natureza constitutiva. Veja-se por exemplo o art. 29.º,
em que, para preencher a categoria dos transmissários, se
contrapõe o usufrutuário ao titular da licença, quer exclu-
siva quer simples. A analogia com o legislado sobre o direito
de autor fortalece esta conclusão. Assim como reconhecêra-
m-os já carácter constitutivo à atribuição de licenças (recor-
demos que a lei fala em ónus real, confirmando a existência
de oneração), o mesmo devemos entender desta categoria
de transmissões.

IV -Mas há ainda argumentos específicos.


Dispõe o art. 45.º, 1., do Código do Direito de Autor que
«nos contratos de transmissão dos direitos de autor e nos
de autorização para a utilização da obra em que o objecto
do contrato for indicado por forma genérica, o adquirente
só poderá exercer os direitos adquiridos ou utilizar a obra
nos termos e cm conformidade da legislação existente no
momento do contrato». Permite-se a estipulação em con-
trário; mas esta regra é quanto basta para significar que,
mesmo nas hipóteses cm que a lei fala em transmissão, se

( u) Para o demonstrarmos não precisamos de nos deter, como


o não fizemos a propósito do direito de autor, numa técnica especí-
fica que foi usnda cm leis estrangeir~ls sobre bens intelectuais e que
tt•rn inrlu<-nciaclo o nosso legislador, sem que este aliás se tivesse
dntlo c:ontu, ao que p~msamos. das opções substanciais que estavam
cm cl\Usa. Bnstn examinar o problema na lógica da ordem jurídica
port u1iuesa.

272
mantém uma ligação do criador intelectual à própria obra,
ligação esta que só seria dissolvida por estipulação em con-
trário. Quer dizer, haveria uma espécie de domínio eminente
do criador sobre a obra. Indo por este caminho, põe-se
necessàriamente em causa a qualificação como transmissi-
vos dos contratos em que se atribuem direitos a terceiras
pessoas; antes, o carácter constitutivo destes resultaria de
limitarem mas não excluírem a posição do titular do direito-
-base, o que significaria que este poderia voltar à totalidade.
Até se pode chegar à posição extrema: ao menos nos casos
normais, não são admissíveis transmissões mas tão-somente
onerações do direito de autor, uma vez que a ligação do
criador intelectual à raiz se não perde.

V- Não é difícil explicar a orientação dogmática que


está na base de semelhante técnica. Basta pensar em toda
a polémica que se travou em torno das teorias da oneração
ou do desmembramento quanto à génese dos direitos reais
e em que já anteriormente tivemos de nos deter ao exami-
nar a própria formulação legal do numerus clausus dos
direitos reais ( 1G). Para as teorias da oneração, a constitui-
ção do direito derivado representaria verdadeiramente uma
constituição - os poderes atribuídos surgiriam ex novo no
beneficiário. Para as do desmembramento, todo o direito
menor representaria uma fracção do direito de propriedade,
que seria transferida ao novo sujeito.
Estes esquemas são aplicáveis, mutatis mutandis, aos
direitos intelectuais. E nestes, vemos que a lei adoptou a
óptica do desmembramento. O direito derivado supõe a
transmissão, do titular originário ao novo sujeito, de parte
do conteúdo do direito.
Como é natural, a construção que o legislador adapta
não vincula o intérprete. Este poderá limitar-se a explicar
por que se orientou a lei assim, e os motivos que tem para

( 2~) Supra, n.º 66.

273
18
. .
tomar orientação diversa. Os nossos são os motivos gerais
que expusemos (supra, n.º 66, III), e que não é necessário
repetir a propósito dos direitos intelectuais. Uma concepção
quantitativa destes seria tão falsa como a concepção quan-
titativa da propriedade.
Em conclusão: a referência das leis a uma transmissão
parcial dos direitos intelectuais não impede que o intérprete
considere que ela abrange a constituição de direitos meno-
res, que onerem o direito maior sobre o bem intelectual.

102. A natureza jurídica. Crirerios insuficientes

I - Os direitos intelectuais fornecem-nos pois exemplos


de direitos que podem ser constituídos em regime de nume-
rus apertus, apesar de terem carácter absoluto: é esta, em
resumo, a lição das análises anteriores. Resta saber se podem
ser considerados direitos reais, caso em que a afirmação
duma tipologia taxativa dos direitos reais não poderia deixar
de ser reconsiderada.
Alguns autores, como De Gregorio, inclinam-se para a
resposta afirmativa unicamente por esses direitos terem
carácter absoluto ( 16 ). Mas do que atrás dissemos resulta
já o nenhum valor desta orientação; há outros direitos
absolutos além dos direitos reais. Temos por isso de veri-
ficar positivamente se os direitos intelectuais são direitos
reais ( 17 ).

Págs. 770 e segs.


( ii::)
( 11) Outro aspecto da importância desta observação. Wolff-
·Raiser excluem a admissibilidade duma propriedade sobre bens ima-
teriais alegando que "nenhum dos princípios que regem a proprie-
dade corpórea se aplica à ... propriedade espiritual : não há nenhuma
reivindicação, as normas sobre a aquisição da propriedade não se
aplicâm, etc.» (§ 51, IV, 1.). Ulmer contesta, observando que a actio
negatoria é comum (§ 17, IV, 2.). A observação é em si verdadeira,
míts bto porque a actio negatoria, qualquer que seja a fisionomia
que Jhe queiramos atribuir, nada tem de característico da proprie-

274
11 - Poderíamos ser tentados ainda aqui a apoiar-nos
fundamentalmente no § 2.º do art. 29.º e na sua qualificação
das licenças de exploração como ónus reais. Como vimos já,
com esta qualificação esconde-se o reconhecimento da natu-
reza real da figura.
Mas o recurso à qualificação legal não seria bastante( 18 ).
Como dissemos já, pertence à lei a criação de direitos reais,
mas não a qualificação de direitos como reais (rn). A dou-
trina tem pois liberdade de verificar se o legislador respei-
tou efectivamente o seu próprio sistema de valorações ao
fazer determinada qualificação.
É certo que o art. 29.º, § 2.0 , vai além de uma simples
qualificação; está nele implícito um regime. Dizendo-se que
a licença é ónus real, e será averbada ao registo, logo se
deduz que ela pode ser oposta a terceiros, dada a função
normal do registo. Este artigo relaciona-se pois directamente
com formas de oponibilidade. Mas, acabamos de o ver, desta
oponibilidade poderia inferir-se o carácter absoluto dos direi-
tos intelectuais, mas não o seu carácter real.

III -Tão-pouco podemos imediatamente qualificar os


direitos assim formados (todos ou parte deles) como direi-
tos reais, baseando-nos nas referências das próprias leis a
conhecidas figuras de direitos reais - como o usufruto, a
que recorrem os Códigos da Propriedade Intelectual e do
Direito de Autor. Isto, só por si, não é bastante para poder-
mos concluir que estamos perante verdadeiros direitos reais.
Antes de mais, não bastaria um nomen juris para poder-
mos aceitar a validade de uma qualificação; sempre se teria
de ver se existia um verdadeiro usufruto, ou qualquer outro
direito limitado.

dade ou do direito real, e antes se aplica a todo o direito absoluto


(Wolff-Raiser, § 87, III). Portanto, esta coincidência em nada enfra-
quece o argumento de Wolff-Raiser.
( 18 ) Não falando já das dificuldades que resultariam da trans-
posição da sua doutrina ao ramo do direito de autor.
( 19 ) Supra, n.º 40.

275
Mas para além disso, e supondo que teríamos verdadei-
ros usufrutos ou outros direitos de gozo, ainda não pode-
ríamos inferir, por paradoxal que pareça, que estaríamos
perante verdadeiros direitos reais.
J;: uma realidade a que se não tem prestado suficiente
atenção a de que as figuras tradicionalmente consideradas
como de direito real, ou pelo menos algumas delas, exce-
dem o campo do Direito das Coisas: representam direitos
unitários, funcionalmente dirigidos ao gozo, ou à garantia,
ou à aquisição, mas que ora têm natureza real, ora a
não têm.
No que respeita aos direitos de aquisição, o facto é
nítido, por exemplo, nos direitos de preferência: o perfil
unitário que a própria lei dá à figura não impede que se
distinga, duma preferência real, uma preferência meramente
obrigacional.
No que respeita aos direitos de garantia, podemos argu-
mentar com certas figuras de hipoteca de coisa futura, pre-
vistas por lei. Poderíamos rebelar-nos contra a qualificação
destas situações como hipoteca, afirmando que a existência
actual da coisa é uma característica essencial de todo o
direito real. Mas não seria este o caminho mais correcto,
e a prática tem razão quando acentua a unidade da situa-
ção jurídica. Na realidade, há sempre uma hipoteca: mas
só haverá direito real quando a situação passar a recair
sobre uma coisa individualizada.
Se considerarmos enfim os direitos de gozo, o próprio
usufruto nos proporciona elementos que parecem decisivos.
Tomemos o usufruto de créditos, cuja natureza jurídica
é muito discutida. Tudo se pode resumir, colocando a ques-
tão nos seus termos mais simples, a esta pergunta: qual o
objecto do usufruto de créditos? Ele recai sobre o direito
de crédito, e representa pois uma modalidade de «direito
sobre direito» - caso em que poderá vir a ser considerado
um verdadeiro direito real, se concluirmos que a afectação
se faz em termos reais? Ou recairá sobre a prestação, objecto
do direito de crédito em causa, e deverá portanto ser antes

276
considerado um direito de crédito, uma vez que o direito a
uma prestação é, por definição, um direito de crédito?
Quanto a nós, e não obstante a complexidade do pro-
blema, pensamos que a verdade está na segunda solução.
Basta um confronto com as situações comuns, em que o
usufruto recai sobre uma coisa, para disso nos convencer-
mos. Com efeito, nestes casos não se diz que o objecto do
usufruto é a propriedade, ou em geral o direito maior, que
recaía sobre essa coisa: o objecto do usufruto é a coisa que
é já objecto desses direitos. Também no chamado usufruto
de créditos não devemos considerar objecto do usufruto o
direito que o usufruto limita- a propriedade ou titulari-
dade do crédito - mas o objecto desse direito, ou seja, a
prestação. O usufruto de créditos é pois, afinal, o direito
a uma prestação, e portanto um direito de crédito.
Apesar disso, o legislador continua a colocar estas maté-
rias no título do usufruto, e a nosso ver com razão. A figura
de direito continua a ser a mesma, embora neste caso não
tenha natureza real. O usufruto é o genérico direito de gozo
de um bem previamente afecto a outrem, cuja situação trans-
cende o Direi to das Coisas.
Temos de encerrar aqui este parêntese, que já vai longo,
e tirar imediatamente as conclusões que interessam ao campo
dos direitos sobre bens intelectuais.
E estas resumem-se ao seguinte: o facto de a lei recorrer
a uma figura que tem sido integrada no Direito das Coisas,
não significa necessàriamente que essa figura tenha natu-
reza real. Direitos há, entre os quais se encontram justa-
mente o usufruto, que ora têm natureza real, ora natureza
diversa. l! pois necessário averiguar se o usufruto ou outro
direito limitado de gozo do direito de autor, ou da patente,
não configuram novas hipóteses em que estas modalidades
de direitos de gozo não têm natureza real.

IV - Temos pois de encetar uma investigação substan-


cial sobre a natureza <lestas situações. E como as formas
limitadas de gozo só poderão ser direitos reais se o direito

277
maior a que corresponderem for também real, temos de
começar por averiguar se o direito de autor ou o direito
à patente são direitos reais.
Assim faremos nos números seguintes, tão sucintamente
quanto for compatível com a complexidade do assunto. Por
simplicidade, e por ser esta a matéria em que a elaboração
está mais aprofundada, começaremos por nos centrar no
direito de autor. Veremos depois em que medida as con-
clusões a que chegarmos são aplicáveis à chamada proprie-
dade industrial.

103. Teorias em presença

1 - Há numerosas teorias sobre a natureza jurídica do


direito de autor. Limitar-nos-emos a mencionar as princi-
pais, seguindo quanto possível a ordem histórica da sua
formulação.

1) Monopólio

A necessidade de uma regulamentação especial neste


sector só se começou a fazer sentir com a descoberta dos
meios mecânicos, que permitem a reprodução de uma obra
num número muito elevado de exemplares. Mas foram os
editores, e não os autores, os primeiros beneficiários desta
protecção. Em seu proveito se estabeleceram privilégios de
impressão, que se subsumiam portanto na categoria do
monopólio. E este foi o primeiro enquadramento jurídico
da figura.
Tais privilégios foram hostilizados, dentro do quadro
geral da Revolução Francesa, pois repugnava~lhe profunda-
mente a própria expressão. Criou-se então um novo regime,
agora em benefício do autor. Mas até hoje, nunca se inter-
romperam completamente as vozes dos que continuaram
a encarar as novas realidades legislativas pelo ângulo da
velha figura.

278
2) Propriedade

·O espírito revolucionário trouxe para o primeiro plano


a figura do autor, em detrimento do editor. Atribui-se àquele
a propriedade da obra - «a mais sagrada de todas as pro-
priedades». E esta concepção vulgarizou-se, se bem que cedo
surgissem as reacções contra ela.
Varia um tanto a justificação própria de cada adepto.
Camelutti, num trabalho de juventude, dava ao problema
uma grande generalidade, observando que toda a proprie-
dade nasce como direito de autor, e prolonga-se como direito
de propriedade ( 20 ). Em geral os autores contentam-se em
acentuar que sobre a coisa há um poder exclusivo, da mesma
natureza que a propriedade; dividindo-se depois quando se
trata de determinar se este direito se integra totalmente no
conceito de propriedade, ou se antes deve considerar-se uma
subespécie desta ( 21 ). Esta segunda posição é largamente a
dominante ( 22 ).

3) Direito de personalidade

Esta teoria, que tem como defensor mais significativo


Otto von Gierke, representa uma reacção radical contra a
teoria da propriedade. O direito de autor seria um direito
de personalidade. Toda a regulamentação está centrada na

( 20) Privativa, 925 e segs.


( 21) g curiosa a posição da doutrina alemã. Como o Código
Civil Umitou os direitos reais às coisas corpóreas, a concepção do
direito de autor como propriedade perdeu vigor. Mas recentemente
essa teoria voltou ao primeiro plano, sob a roupagem de uma «pro-
priedade espiritual»-cujas relações com o conceito comum de pro-
priedade permanecem ·todavia indefinidas.
(22) g vasta a bibliografia sobre este ponto, e nem sempre a
mais recente é a mais elucidativa. Têm interesse os escritos de Ulmer,
§ 17; Hubmann, § 8, III; Troller, pâgs. 85 e segs.; Greco, pâgs. 22
a 27; Are, págs. 295 a 306; Pouillet, n.°' 9 e 10; e muitos outros. Entre
nós, cfr. Cunha Gonçalves, Tratado, IV, n.º 451, numa apaixonada
auto-defesa; Abel de !Andrade, págs. 35-38.

279
defesa de uma personalidade, sendo secundárias as faculda-
des de carácter patrimonial que se consagrem.

4) Direito sui generis

A fuga para categorias novas não deixou de ser tentada


ao longo dos anos. De entre as várias doutrinas orientadas
nesse sentido, a mais conhecida é a dos direitos sobre bens
imateriais, formulada por Kohler. Mas pode objectar-se que
não basta a referência à especificidade do objecto, antes
seria necessário demonstrar que a maneira como o direito
se refere a esse objecto não o faz cair em qualquer das gran-
des categorias existentes ( 2 ª).
Picard, por sua vez, criou uma nova categoria de direi-
tos subjectivos, que designou direitos intelectuais ( 24 ).

II - Não incluímos entre as teorias sobre a natureza


do direito de autor duas que são referidas com muita fre-
quência: a teoria dualista e a teoria monista. ~ que, verda-
deiramente, elas não respeitam à natureza, mas sim à estru-
tura do direito de autor. Pergunta-se se o direito atribuído
ao autor é unitário, ou se pelo contrário devemos distin-
guir nele duas situações jurídicas autónomas - uma pessoal,
outra patrimonial. Mas parece-nos claro que, resolvido este
problema estrutural, ainda não ficamos a saber qual a natu-
reza jurídica do direito unitário, ou do direito pessoal, ou
do direito patrimonial. ..
Não pretendemos que a resolução do problema estru-
tural seja indiferente para a determinação da natureza jurí-
dica do direito de autor. Pelo menos, se se adaptasse uma
concepção dualista, desde logo poderíamos excluir que a

(23) Note-se ainda que o autor deixava de fora da sua cons-


trução as faculdades de carácter pessoal.
(24) A concepção deste autor encontrou uma cer-ta audiência,
sendo posteriormente aplicada por Colin e Capitant, n.º 92.

280
teoria da propriedade, tal como a da personalidade, fossem
suficientes para explicar toda a posição jurídica em que o
criador intelectual é investido pela lei. Mas como não esta-
mos a fazer um estudo ex professo da natureza do direito
de autor, podemos prescindir das indicações resultantes da
análise estrutural, bastando-nos verificar se, no seu âmago,
o direito de autor pode ser efectivamente retratado como
um direi to real.

104. Crítica da teoria do direit.o de personalidade

A teoria do direito de personalidade está hoje pràtica-


mente abandonada, e cremos que justificadamente. A cres-
cente complexidade do aspecto patrimonial do direito de
autor é ignorada nos quadros estreitos desta teoria. Onde
se encontra ligação com esta figura quando, por exemplo,
se consideram os direitos do produtor na exploração da
obra cinematográfica?
Há, é certo, um aspecto pessoal dentro da posição do
criador intelectual da obra. Caso esse aspecto pessoal dê
lugar a situação jurídica autónoma, nos termos da teoria
dualista, poderá entender-se que representa um direito de
personalidade, ou pode pelo contrário entender-se que é um
direito pessoal distinto dos direitos de personalidade. De
qualquer forma, nunca pode ser direito real, e isto por defi-
nição, visto que os direitos pessoais se situam no pólo oposto
ao dos direitos reais. Este aspecto pessoal é pois irrelevante
para a nossa investigação ( 25 ).

(25) Podemos aliás acrescentar que esse direito pessoal não


recairia directamente sobre a coisa «obra intelectual», e portanto
também por esse caminho não se poderia confundir com os direi-
tos reais.

281
105. Critica da teoria do direito de propriedade

I - O Código do Direito de Autor evitou cuidadosamente


a qualificação do direito de autor como propriedade ( 26 ).
Poucos meses, porém, esteve essa qualificação banida da lei
portuguesa. O Projecto de Código Civil, se bem que poste-
rior ao Código do Direito de Autor, continuava a falar de
«propriedade literária, artística e científica».~ certo que esta
expressão não passou ao texto definitivo ( 27 ), mas o pre-
ceito fundamental sobre a matéria, que é o art. 1303.º, está
integrado nas disposições gerais sobre propriedade, e subor-
dinado à epígrafe «Propriedade intelectual». Conhecemos já
o texto do n.º 1 desse artigo: «Os direitos de autor e a pro-
priedade industrial estão sujeitos a legislação especial».
Qual a exacta relação desta «propriedade intelectual»
com o tipo geral da propriedade, não é fácil determiná-lo.
O art. 1302.º, estabelecendo que só as coisas corpóreas podem
ser objecto do direito de propriedade regulado no código,
parece excluir toda a ligação; mas a fórmula não é categó-
rica. Falar-se de uma propriedade regulada no código pode
ser entendido como significando que há uma propriedade
que no código não é regulada. E o artigo seguinte, que prevê
uma propriedade intelectual, pode dar uma achega neste
sentido. E isto, quer na chamada propriedade industrial,
quer no que toca àquilo que o Código Civil designou direi-
tos de autor. Com extrema infelicidade, note-se de passa-
gem, porque o ramo da ordem jurídica que regula os direi-
tos sobre obras literárias e artísticas tem a designação de
Direito de Autor. Direitos de autor- à semelhança de direi-
tos aduaneiros e outros - são as quantias que o titular do
direito pode cobrar em contrapartida da utilização da obra
por outrem: veja-se o recurso que a esta expressão se faz

( 26 ) Sobre este ponto, cfr. as observações contidas no notável


Parecer da Câmara Corporativa, de que foi relator J. G. Pinto Coelho.
( 21 ) Veja-se a crítica que lhe dirigimos em «Direitos sobre Coisas
Incorpóreas», nas nossas Observações, cap. IX.

282
nos arts. 53.º e 54.º do Código do Direito de Autor, por
exemplo.
De qualquer maneira, é motivo de estranheza que ao
abandono da referência à propriedade literária, artística e
científica não tenha correspondido o abandono da referên-
cia à propriedade intelectual, que continua contida dentro
da regulamentação geral da propriedade. E isto poderia ser
tomado como uma indicação legal no sentido da qualifica-
ção dos direitos sobre coisas incorpóreas como reais.

II - Pensamos porém que deparamos com mais um


caso em que a qualificação legal deve ser rejeitada. Essa
qualificação desconhece a essência do bem a que o direito
de autor se refere - a obra intelectual. Esta, uma vez divul-
gada, comunica-se por natureza a todos os que dela parti-
ciparem. Não pode estar submetida ao domínio exclusivo
de um só.
Quem recita um poema ou fixa numa folha de papel
os contornos de uma obra das artes plásticas, está a fazer
as utilizações a que a obra por natureza se destina. Não
vale tentar fugir, dizendo como Greco, que enquanto bem
económico, e em particular como bem instrumental produ-
tivo de uti'lidades económicas, a obra pertence ao autor ( 28 ).
A obra intelectual não é evidentemente um bem de produ-
ção. O circunlóquio a que se recorre só vem afinal a signi-
ficar que a coisa não foi atribuída ao titular como seria
característico da propriedade, e há utilizações de terceiros
que continuam lícitas, e têm de o ser sempre, dada a des-
tinação social do bem intelectual.

III -A única escapatória estaria em se afirmar que a


possibilidade de gozo por parte de terceiros é juridicamente
irrelevante. Haveria efectivamente a sujeição da obra inte-
lectual ao gozo público, mas este gozo é meramente de facto

( 28 ) Págs. 200-1.

283
e resulta da tolerância do titular do direito. Este caminho
foi seguido por vários autores. Assim, Greco recusa-se a
encontrar qualquer diferença em relação ao que se passa
com os bens materiais: também o prédio vizinho agrada ou
dá vantagem mesmo a quem não tiver sobre ele uma ser-
vidão altius non tollendi ( 20 ). Are compara com o cheirar
flores alheias, que em nada atinge a integddade do respec-
tivo direito patrimonial ( 30 ). Troller afirma que a ubiqui-
dade não traz dificuldades: «O autor tem sempre o direito
de fixar a espécie de materialização e de colocação à dispo-
sição de terceiros nos quadros da lei vigente». Tão-pouco
seriam relevantes os poderes de terceiro: não prejudicam
mais que os visitantes dum hotel prejudicam os direitos do
proprietário ( 31 ).
Pensamos que estes argumentos acabam por se voltar
destruidoramente contra os que os empregam. No que res-
peita ao gozo de bens materiais, a posição do público é efec-
tivamente irrelevante, porque o seu gozo é devido somente
a uma to'lerância do proprietário: tolerância que pode a todo
o tempo cessar porque o proprietário arrancou as flores,
ou construiu e tapou as vistas, etc.
Aqui não. Todos os outros disfrutam directamente dos
bens, e o seu gozo está subtraído à alçada do titular do
direito de autor. Este não pode proibir o disfrute intelec-
tual da sua obra por parte de outrem. Pode não autorizar
a reprodução, em casos extremos pode mesmo retirar do
mercado os exemplares existentes, etc.: mas tudo isto res-
peita à materialização da obra, e não à obra em si. Esta
pertence a todos, por natureza, e não por qualquer tolerân-
cia do criador intelectual ou do transmissário do direito
de autor.

( 29 ) Pág. 183.
( 30 ) Pág. 304.
( 31 ) Págs. 94-5.

284
IV - Os autores que criticamos tentam implkitamente
defender-se alegando um certo carácter excepcional destas
faculdades dos estranhos, que não impediriam que a obra
no seu conjunto ficasse sujeita ao titular. A verdade é que
o que é restrito e demarcado são as utilizações que se reser-
vam ao titular do direito de autor: só lhe cabem aquelas
faculdades (quer tomadas individualmente quer em globo)
que representam exploração económica da obra ( 32 ). Vere-
mos depois o que isso pode significar.
Em conclusão, a obra não pode caber em propriedade
a ninguém. Na exposição subsequente esclarecer-se-á se sobre
ela podem recair direitos menores, ou poderes limitados.

106. O direit.o patrimonial como exclusivo de exploração


económica

1 - Para chegarmos a uma conclusão sobre a natureza


do direito de autor devemos começar por determinar qual
é o seu objecto. Efectivamente, ele só pode ter natureza
real se concluirmos que recai efectivamente sobre a obra,
coisa incorpórea, visto que por definição todo o direito real
recai directamente sobre uma coisa ( 33 ).
Como é claro, só as faculdades de natureza patrimonial
podem interessar neste lugar. Estas dirigem-se todas à atri-
buição de um exclusivo na exploração económica da obra.
Será exacto afirmar que os poderes, nos quais se concre-
tiza, recaem directamente sobre a obra?

{ 32) Esta crítica não atinge Are, pela simples razão de que este
limita o conteúdo da pretensa propriedade às formas de gozo que têm
significado económico (págs. 283 e segs. e 304 ). Mas assim o autor
deixa de poder continuar a falar em propriedade, pois esta repre-
senta sempre a atribuição como universalidade dos poderes sobre
uma coisa, e não é compatível com a atribuição de poderes de uma
só espécie, que caracterizaria quando muito um direito limitado.
( 3 3) Sobre o conceito de direito real devemos remeter para as
nossas Relações Reais, bem como para as Lições de Direitos Reais.

285
li - A posição corrente é a afirmativa: toma-se como
uma evidência que o objecto do direito de autor é a obra.
A própria obra intelectual ficaria pois afecta ao autor. Mas
com isto de novo se desconhece a essência da obra intelec-
tual, que se destina a todos e não suporta atribuições exclu-
sivas. Os poderes conforidos ao autor e que aparentemente
recaem sobre a obra, poderes de usar, reproduzir, transfor-
mar, na realidade não são diversos dos poderes de qualquer
um C:H), com a única diferença de que os outros sujeitos
não os podem utilizar para efeitos de exploração económica.
As actuações sobre a obra permitidas a terceiros, não se
diferenciam daquelas que são permitidas ao autor. A norma
vem s6 proibir a todos, com cxcepção do autor, as utiliza-
ções que estejam ligadas a formas de exploração económica
da obra.
Um direito que não outorga sobre a obra poderes diver-
sos do que cabem a qualquer pessoa não pode ser um
direito real.

III - Mas não basta dizer que os poderes do titular


não são, na sua incidência sobre a obra, diversos dos de
qualquer pessoa; impõe-se concluir que na realidade, não
recaem sobre a obra. Esta, como ente intelectual, permanece
sempre intacta.
A lei permite ao autor certas actividades que se referem
à obra, o que se revela pela imposição de um dever gené-
rico de abstenção de intervir no círculo reservado ao autor.
Parece claro que a reprodução da obra, no sentido em que
esta palavra é normalmente utilizada nas leis sobre direito
de autor - ou seja, no de multiplicação dos exemplares

( s•) De qualquer um, acentue-se, e não apenas dos proprietá-


rios de exemplares da obra, como por vezes erradamente se afirma.
Não tem por isso razão Casanova, pág. 81, que centra o direi·to na
atribuição, como faculdade absoluta e exclusiva, da faculdade de
reprodução, que doutra maneira estaria integrada no conteúdo nor-
mal da propriedade dos exemplares da obra.

286
materiais da obra - deixa esta tal qual era: a obra é um
a propósito da protecção legal, mas não o seu objecto (~).
Isto está aliás plenamente de acordo com a caracterização
das faculdades patrimoniais como um exclusivo de explora·
ção económica da obra; este exclusivo refere·se, como qual·
quer outro, a uma actividade que a todos se proíbe, a um
campo reservado de actuação.

107. Acei~ da tieoria do monopólio

I - Assim nos aproximamos da teoria do monopólio,


que com a necessária reelaboração acaba por se revelar
aquela que mais próxima está da verdade.
Efectivamente, a classificação dos direitos subjectivos
em pessoais ( 86 ), reais e obrigacionais, está longe de nos
parecer exaustiva. Alguns acrescentam os direitos potesta·
tivos, outros os direitos sociais; outros ainda referem os
direitos de monopólio ( 87 ). Efectivamente, neste último caso
há uma forma de atribuição, cuja fisionomia é irredutível
a qualquer das categorias acima mencionadas.

(ª11) A excepção parece ser representada pelo poder de modifi·


cação; mas este é integrado por lei nos direitos morais (art. 55.º)
e por isso nos dispensamos de o examinar agora. Apenas notamos
que mesmo aí não há verdadeiramente alteração da obra existente
(a primeira edição de uma obra é ainda uma obra, aberta a todos)
mas adjunção à primeira de uma obra nova, em que a essência cria·
dora é todavia a mesma.
(ªª) Alguns falam antes em direitos de personalidade, o que
nos parece demasiado restrito.
(ª7) Assim, entre nós, 1. Galvão Telles, Teoria Geral, págs. 41
e segs. Este professor constrói-os como categoria autónoma, carac-
teriza-os como patrimoniais e absolutos, e opõe-se à sua confusão
com os direitos de crédito ou com os direitos reais. Em relação a
estes últimos observa que o monopólio não recai sobre uma coisa,
antes exclui os outros duma actividade que primeiramente lhes deve-
ria ser facultada.
Note-se em todo o caso que para Galvão Telles o direito de autor
não é um monopólio, antes se integraria na categoria dos direitos
intelectuais, subespécie dos direitos ·reais (págs. 38 a 41).

287
Pensamos, pois, que só mediante um aprofundamento da
categoria «direito de monopólio» se pode chegar ao devido
esclarecimento do lado patrimonial do direito de autor.
Semelhante aprofundamento seria neste lugar deslocado.
A aceitação da teoria do monopólio só interessa aqui na sua
projecção negativa: enquanto comprova que o afastamento
das teorias realistas - quer a teoria da propriedade, quer
as que falam num direito real sui generis - não vem criar
um vácuo que não seja suprível pelo recurso a outra cate-
goria jurídica, e nos force portanto a uma qualificação de
todo específica do direito de autor.
Como dissemos já, a orientação que adaptamos teve
sempre os seus defensores. Dentre os mais recentes é signi-
ficativo Roubier, que propõe a categoria dos direitos de
clientela, visto que todos estes direitos tendem à conquista
da clientela ( 38 ); e o mesmo caminho foi seguido por Des-
bois ( 39 ). Também Casanova afirma que os direitos sobre
bens imateriais se cifram numa proibição ou exclusão da
concorrência ( 40 ). Mas em nenhum caso parece que a situa-
ção seja caracterizada com inteira fidelidade.

II -As considerações precedentes foram feitas tendo


prevalentemente em conta a categoria do direito de autor.
Mas elas podem sem dificuldade generalizar-se à chamada
propriedade industrial. Nesta, também só aparentemente
encontramos propriedades, ou ónus reais. Na realidade, os

( 3'>) Pág. 291. Observe-se todavia que assim nada s~ diz sobre
a estrutura ou natureza destas situações, mas unicamente sobre a
função. O critério seria pois diverso do que está na base das classi-
ficações fundamentais dos direitos subjectivos.
( 39) Na 1.• ed., págs. 293 e segs.
("º) Pág. 84. Já não poderíamos porém aceitar esta classificação
se fosse essencial ao monopólio, como afirma o mesmo Casanova,
a referência a uma actividade industrial ou comercial. A ser assim,
poderia recorrer-se a uma categoria mais ampla, de direitos de exclu-
siYo, de que o monopólio seria Unicamente uma modalidade.

288
bens em causa não são afectos a ninguém, e ás actividades
que se garantem não recaem sobre o hem patente, ou outro,
apenas são de certa forma referidas a ele. Há também aqui
um campo reservado de actuação que nos leva a aceitar a
teoria do monopólio.
Digamos até: a aceitá-la por maioria de razão. Neste
sector- e ao contrário do que aconteceu no direito de
autor-, as considerações ideológicas não lograram sobre-
por-se à análise jurídica da situação. A escassa relevância
de aspectos pessoais rlão traz os mesmos elementos de com-
plicação que aparecem no direito de autor. A curta duração
do exclusivo - quinze anos - não convida à aproximação de
uma propriedade tendencialmente perpétua. Enfim e sobre-
tudo, a interposição de um acto administrativo de concessão,
que relega para segundo plano a invenção ( 41 ), dificulta que
se fale de uma propriedade derivada da natureza das coisas
mediante o trabalho ou a criação do sujeito, como se tende
a fazer no domínio do direito de autor.
Por estes motivos supomos que, caso as teorias rea-
listas não forem aceites no direito de autor, a doutrina as
rejeitará com mais forte razão a respeito da chamada pro-
priedade industrial. Mais um motivo, pois, para lastimar
a referência à propriedade que se manteve no texto do
art. 1303.º, embora paradoxalmente limitada à «propriedade
industrial».

108. Significado para a tipologia dos direitos reais

I - ~ a altura de fazer um balanço de quanto temos


apurado, e de verificar qual o seu significado no tocante à
tipicidade dos direitos reais.

( u) Repare-se que a novidade que se exige no art. 10.º do Código


da Propriedade Industrial consiste simplesmente no facto de a inven-
ção ainda não ter sido divulgada, não relevando que ela já tenha
sido feita anteriormente por outrem: cfr. Roubier, pág. 279.

289
19
Para muitos, partidários do carácter real dos direitos
1

sobre bens intelectuais, haverá neste caso uma criação de


direitos reais em regime de numerus apertus. Baseiam-se
no facto de as situações subjectivas aqui admitidas terem
carácter absoluto, mas não estarem encerradas num catá-
logo legal. Isso não contrariaria efectivamente o art. 1306.º, 1.,
pois representaria uma regulamentação própria dos direi-
tos intelectuais; o art. 1306.º só lhes é aplicável se não con-
trarir o regime para eles especialmente estabelecido ( art.
1303.0 , 2.).
Mas, como vimos, os direitos intelectuais não podem
verdadeiramente ser considerados direitos reais, antes caem
na categoria dos direitos de monopólio. Assim sendo, em
nada acrescentam ou corrigem o princípio constante do
art. 1306.º, que respeita exclusivamente à tipologia dos direi-
tos reais.
Se, como dissemos de início, o Direito Intelectual é o
único ramo em que seria verosímil a admissão sectorial de
um numerus apertus, depreende-se deste resultado negativo
a conclusão mais vasta de que a exclusão da autonomia pri-
vada na criação de direitos reais é um princípio válido em
toda a ordem jurídica. O facto de o Código Civil remeter
certos ramos de direito para legislação especial não afecta
esse princípio.

II-Não cremos porém que nos devamos limitar a estes


resultados negativos. Justamente o Direito Intelectual for-
nece-nos elementos importantes para a delimitação do prin-
cípio da tipicidade.
É que se poderá estranhar que, após termos apurado
a oponibilidade erga omnes destas situações, acabemos por
nos desinteressar delas por verificarmos que o seu objecto
não são coisas.
Devemos recordar a afirmação anterior de que os direi-
tos intelectuais são direitos absolutos. Por outro lado, os
direitos de monopólio são justamente uma modalidade de

290
direitos absolutos. Atribui-se a alguém um campo reservado
de actuação, de modo a colocá-lo ao abrigo das investidas
de qualquer um. A concorrência de terceiros é ilícita, e a
ela se pode opor o beneficiário utilizando meios civis e
penais. Pelo menos, é esse o desenho que à titularidade de
um exclusivo foi atribuído pela nossa lei.
J

III -E isto terá alguma relevância, relativamente ao


numerus clausus?
Directamente não a tem, pois, como já vimos, este sector
não é abrangido pelo art. 1306.º, 1. Mas indirectamente a sua
relevância é grande. Desde logo porque impede uma gene-
ralização apressada, pela qual se quisesse deduzir, da tipi-
cidade dos direitos reais, a tipicidade de todos os direitos
absolutos. Vemos que afinal, ao menos neste caso, há hipó-
teses em que a criação autónoma de direitos absolutos é
expressamente admitida por lei. O que quer dizer que a
opção-numerus clausus ou ntunerus apertus-é uma opção
que terá de ser feita especificamente a propósito de cada
categoria de direitos absolutos, sendo abusiva qualquer solu-
ção unilateral. A conclusão a que chegámos, a propósito dos
direitos reais, não é pois exportável para as restantes cate-
gorias de direitos absolutos.
Enfim, o que dissemos demonstra o acerto da afirma-
ção atrás feita ( 42 ), sobre a relevância de pretensos argu- 1
1

'
mentos dogmáticos na fundamentação do princípio do nume- 1
rtts clausus. Como se recorda, alguns desses argumentos
assentavam justamente no carácter absoluto dos direitos
reais. Excluímos então a sua procedência; e encontramos
agora uma nova razão em reforço da posição tomada. Há
sectores em que a própria lei positiva permite a constitui-
ção de direitos abso]utos em regime de nu111erus apertus.

('2) Supra, n.º 24.

291
SECÇÃO II

A I~IEGRAÇÃO DAS LACUNAS REBELDES


A ANALOGIA

109. Posição do problema

Deixamos agora os sectores que devemos considerar


alheios ao art. 1306.º, 1. Situemo-nos no domínio deste e
verifiquemos se ele ainda deixa lugar a uma criação autó-
noma de direitos reais, para além dos previstos na lei. Temos
em vista a situação que pode apresentar-se nas hipóteses
em que se registe uma lacuna e se deva proceder à sua inte-
gração.
Este problema só terá razão de ser se se deparar com
uma lacuna rebelde à analogia. Neste e noutros casos, ao
longo de toda esta secção, teremos aliás de dar continua-
mente por pressuposto tudo o que dissemos no capítulo
anterior sobre a criação jurisprudencial do direito, e para
já o que dissemos sobre a categoria das lacunas rebeldes
à analogia ( 43 ); sem que o que as nossas actuais conside-
rações não poderiam ser devidamente entendidas.
Pensamos que, para tomar uma posição, é necessário
voltar a distinguir duas situações: a que se verificava até
à entrada em vigor do novo código e a situação actual.

110. A sito.ação no dominio do Código de Seabra

1 - No domínio do Código de 1867, vigorava entre nós


o princípio do numerus clausus, como resultou da análise

( 43 ) Atenda-se ao que sobre estas dizemos nos n. 09 85 e segs.

292
anterior. A este princípio se chegava pela valoração do mate-
rial legislativo, que permitia a generalização final. Se certa
situação não fosse prevista na lei como real, caía nas malhas
do princípio, o que significava que a qualificação como real
estava excluída. Este procedimento nunca foi contestado
entre nós.

II - Queremos acentuar que justamente esta elabora-


ção e utilização do princípio do numerus clausus patenteava
um exemplo expressivo do processo conhecido por analogia
juris, ou analogia de direito.
Não havendo nenhuma regra expressa sobre esta maté-
ria, seria impossível falar de analogia legis. O que se fazia
era a conjugação de indícios que despontavam aqui e além,
no material normativo disponível, até se chegar à conclusão
de que um princípio, imanente na ordem jurídica portu-
guesa, proibia a constituição de direitos reais fora dos casos
previstos na lei. Nós próprios reconstituímos anteriormente
essa operação, e concluímos que era bem fundada ( 44 ). Ora
bem, uma vez assente o princípio, nunca a jurisprudência
ou a doutrina hesitaram em aplicá-lo aos casos em que se
discutia a admissão de direitos reais atípicos. Nunca se disse
que teria de recorrer-se à equidade, ao direito natural, ou
semelhantes, nem se duvidou que tais direitos não eram
admissíveis. Praticou-se, como uma evidência, a analogia
juris. Sintoma bem claro do reconhecimento tácito desta
dimensão da analogia.
Não admira que assim tenha acontecido, pois não é de
uso entre nós discutir em geral a analogia juris, em que
esta atitude se inspirou. Mesmo partidários da jurisprudên-
cia dos interesses, que se poderia supor que lhe seriam con-
trários, lhe dão abertura ( 45 ). Cremos que perante o novo

( 44)Supra, cap. II.


( 45)Cfr. Manuel de Andrade, Evolução, pág. 290, ambiguamente
embora; Cabral de Moncada, vol. I, pág. 192, nota 1.

293
código a situação se não altera ( 46 ). Dada esta pacificidade,
e porque em estudo sobre integração de lacunas examinámos
já este tema com o possível desenvolvimento ( 47 ), escusa-
mos de efectuar mais um rodeio para provar a correcção do
método utilizado.

III-Mas sendo assim, como se poderia formular sequer


a hipótese do preenchimento autónomo de uma lacuna?
A aplicação do princípio não forçaria em todos os casos não
expressamente regulados a excluir a existência de lacuna?
Não o cremos. Teoricamente, é admissível que certas
hipóteses não fossem abrangidas pelo princípio, e isto por
mera aplicação da doutrina geral sobre esta forma de ana-
logia. Justamente porque ela se baseia numa indução incom-
pleta, os seus resultados nunca podem considerar-se defini-
tivos, e têm de ser sujeitos a confirmação perante cada
nova hipótese. Também aqui temos de deixar pressuposta
uma orientação geral ( 48 ), e passar imediatamente à sua
aplicação ao sector que nos interessa.

IV- O princípio do numerus clausus era (situamo-nos


sempre perante o Código de 1867), um princípio doutrinà-
riamente construído sobre o direito positivo. Como todos
os princípios de base legal, representava uma generalização
daquilo que se verificava em situações determinadas. Podia-se
por isso demonstrar, nos termos comuns, que a sua aplica-
ção não era adequada numa situação que a lei não qualifi-
cava como real. Essa situação faria pois descobrir uma

( 48 ) Cfr. a anotação de Dias Marques ao art. 10.º, na publica-


ção do código de que é responsável.
( 47) Integração, n. 08 14 e segs.
( 4 ~) Remetemos para a nossa Integração, n.º 18. Também atrás
tivemos já ocasião de dizer que este era um dos casos em que se
poderiam encontrar lacunas ocultas (cap. V, ID..º 86, II).

294
lacuna (escondida): a lei era omissa, como dissemos, e o
princípio do numerus clausus não seria aplicável. A lacuna
teria então de ser preenchida pelo intérprete.

V - Se essa lacuna se revelasse rebelde à analogia, como


poderia ser integrada? Diz-nos o art. 16.º do código velho:
de harmonia com os princípios de direito natural, segundo
as circunstâncias do caso.
Que significa isto? O preenchimento da lacuna pelo
intérprete poderia levar à criação de um novo direito real?
A resposta afirmativa seria forçosa, se aceitássemos a posi-
ção daqueles que pretendem que a lei antiga continha já a
solução que a nova lei consagra. Parece-nos porém que onde
o código antigo dizia direito natural era mesmo este que
se devia entender. O sistema legal era diverso do que hoje
vigora.
Tendo sido alterada a lei positiva, parece-nos deslocado
estruturar a posição a nosso ver correcta, bem como demons-
trar que, nos seus termos, se poderia proceder à criação de
direitos reais. Tão-pouco interessa averiguar se essa possibi-
lidade teve concretização prática. Limitamo-nos a assinalar
que, mesmo sob a lei antiga, o problema da integração de
lacunas em termos reais estava em aberto. Daqui por diante,
concentraremos a nossa atenção no direito vigente.

111. O art. 1306.º e a detectação de lacunas

I - Surge o novo código e o princípio do numerus clau-


sus continua a dominar o sistema do Direito das Coisas.
Consequentemente, poderia pensar-se que a situação não
sofrera alteração. No entanto, como veremos, da consagra-
ção legal do princípio do numerus clausus resultam conse-
quências práticas. O tratamento jurídico não pode já ser o
mesmo que se impunha no domínio da lei anterior.

295
An~s d~ ntais: um «prin"ípio~ ronsqrado na lei passou
a s<-r unl.:.l rqra junJkn l.'Wllo outra qualquer. Uma posst..
\'d tn~h...- lat ihtJ~ na pr~visâo nlo in1plka n1ais que uma
Jif(\'~"~~ J<- an\u. CünSt'QU~nh.'n1e-ntt'. tudo o que se pode--
ria dittr quanto à t't'lc...,·And3 dos prindpios no direito, e
"1.'m\C'AJ~nlt'nh.' qum\h.l à S\ll\ hnportt\nda pnra efeitos de
.m.1/t>,:_-ic1 juris. ddxou J~ t('r Yalor. Agora, há apenas um
r•~x-ito jurtJk")· ('nl ~-uJn análise ~ n~'\'essário utilizar os
m<'Stl\()S instrun1<.'ntos qu(' nn anális~ dt• qualquer outro p~
\"<'ito.
Atas sendo l\S$im, h.'n'\ nqui nplknção tudo o que ante..
riom\('.Ott' di~semo,~ sobt~ as lnc-unns ocultas e a sua de-ter-
ntinaçlo por interpretação restritiva. Efectivamente. já
\imos(º) que a aplkaçfio dos princípios ~rais nos levava
a ron~·luir ~la possibilidade abstracta da c-riaçlo de direi·
tos reais para al~m da p~\·isão do art. 1306.º; e que essa
~-nação não t'quivalia a uma criação normativa. O que vamos
qora di1cr é mera aplicação, se não recapitulação. dessas
~"00\:'1us~s ..

II - Pergunta-se. pois: é possí\"el a criação autónoma


de direitos reais. no domínio do código actual? Não encon-
tnunos razio que nos leve a excluir que o art . 1306.º, 1., seja
obje'\:'to de intcrp~t:u;io restritiva. Pode a todo o momento
\'t'rific-ar-se que a proibição legal não tc\·e em conta certas
hipótc.~. ou ~rtas categorias de hipóte~s. que fugiriam
ao espuito da proibição. Teríamos assim uma lacuna, o que
abriria a possibilidade de uma criação no seu preenchimento,
~que ~ria resultar o in~sso de novos direitos reais .
Se-ri~ <-stc o caso se SC' demonstrasse que os direitos reais
~ aquisição. ou as e.~~tath-as reais. ou outras categorias,
t'S\."apayam ao espirito da regra.
O f~ continua pois a poder verificaNe, se bem
q~ por \ia di\~na da anterior.
Não encontrámos nenhuma situação em que houvesse
qualquer verosin1ilhança da sua verificação, ~ é até e:<tre-
mamente pouco provávd que nos tempos mais próximos se
wnha a concluir que à previsão do art. 1306.º, apesar da
sua preocupação de segurança (ou até justamente por causa
dela) escapou certa categoria de hipóteses; mas isto não
atinge a admissibilidade tcóricn do fenómeno. A suscepti·
bilidadc da sua verificação prática ir--se-á acentuando, à
medida que as alterações sociais e jurídicas forem colo-
cando sob uma nova luz o sistema de valorações em que
o princípio do tmm~rus clatlslls assenta.

III - Com isto não t~mos porém o problema resolvido.


Verificán1os a possibilidade abstracta da detectação de uma
lacuna oculta. :Mas é necessário ainda saber como se fará
a sua integração, se se pode originar uma situação real e,
no e.aso afirmativo, se se pode falar da criação autónoma
dum direito real.

1 - Temos de partir do te.~to do art. 10.->, 3.: «Na falta


de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma
que o próprio intérprete criaria. se hou\·esse de legislar
dentro do espirito do sistema-.
Este preceito, cuja índole é estranha aoo juristas por-
tugueses. traz grandes dificuldades de interpretação. Para
fixarmos consdentemmte os pontos que interessam à nossa
in\-estigação teríamos de proceder a longos desen\-ohimen-
tos. que transtornariam o equilibrio desta monografiL No
estudo já mendonado sobre a integração das lacunast \"el'-
sámos o tema ~. .t prof~.sso. Podemo--nos agora limitar a e:tpOr
sintetkamente os resultados a que chegámos. remetendo
quem de~jar mais longa fundamentaçio ~ra os pa.sso.s
que formos assinalando..
I I - Uma das mais importantes conclusões é a de que
0 acento subjectivo do texto é aparente: a lei não está a
remeter para o critério de cada um, mas antes a impor uma
criação em objectividade. Isto torna-se visível, desde que
separemos naquele texto o que respeita ao agente do que
respeita ao critério de tal criação. O agente é efectivamente
o intérprete, mas o critério da criação é-nos dado pela refe-
rência ao acto de legislar dentro do espírito do sistema ( 50 ).
Este espírito do sistema (que se não confunde com o con-
junto das soluções materiais) não é um elemento subjec-
tivo: à luz dele a solução é ou não correcta, e pode por-
tanto ser objectivamente controlada por outro intérprete.

III - Outra conclusão, igualmente importante, e a que


fizemos já referência no capítulo anterior, é a de que não
há nenhuma criação normativa. Aqui está a face sombria
do texto em causa: enquanto fala da norma que o intér-
prete criaria, pode ser interpretado como prevendo a cria-
ção de uma autêntica norma. A criação a que efectivamente
se assiste é uma criação intelectual e não uma mera sub-
sumpção, mas nada acrescenta ao sistema das normas.
Na verdade, está-se a resolver um caso concreto, não a
realizar aquela produção jurídica que é apanágio das fontes
de direito. :i;:. por exemplo seguro que, se um novo caso se
discutir, a sua resolução não está subordinada à «norma»
que foi criada pelo intérprete anterior ...
A referência à norma tem outro sentido: traduz afinal
a intenção generalizadora do legislador ( 51 ). As hipóteses
não reguladas não devem pois ser resolvidas segundo as
circunstâncias do caso concreto, mas antes de mais através
do recurso à categoria abstracta de situações em que se
enquadram.

( 50 ) Nossa Integração, nomeadamente no n.º 12.


( 51 ) Nossa Integração, n.º 11.

298
IV - Enfim, tem de se saber quem é este intérprete a
que o texto se refere. O código suíço, em que o legislador
português manifestamente se inspirou, atribui ao juiz a fun-
ção de integrar a lacuna segundo as regras que ele estabe-
leceria ... (art. 1.0 ) . Permitir-nos-á isto afirmar que o intér-
prete de que se fala é afinal o julgador?
A ser assim, teríamos desde logo de concluir que se
poderia quando muito assistir a uma criação judicial de
direitos reais, mas a matéria estaria deslocada num capítulo
dedicado à autonomia privada. Na verdade, porém, quando
se fala num intérprete é mesmo um intérprete, portanto toda
e qualquer pessoa, que se quer referir, e não meramente o
julgador. O nosso código é criterioso nas referências que
faz ao intérprete e ao julgador: basta o confronto com os
dois artigos anteriores, 8.º e 9. 0 , para o demonstrar. A refe-
rência ao intérprete não é casual, e tem na sua base a pon-
derosa consideração de que o direito se realiza quase sem-
pre extra-judicialmente, graças ao acordo ou pelo menos à
conformidade das partes. Nenhuma razão há para pensar
diferentemente quando se depara uma lacuna da lei: o intér-
prete deve integrá-la, sem ter de esperar uma actuação dos
tribunais ( 62 ).
Temos pois sumariadas as bases que nos abrem ao
entendimento da lei. Passamos ao estudo do âmbito e do
significado, no que à tipicidade se refere, desta criação pelo
intérprete quando aplicada a direitos reais.

113. A eventualidade da int.egração da lacuna em t.ermos


reais

1 - A criação que nos interessa só pode ser a criação


duma situação jurídica concreta. Não pode ser uma criação
normativa, que aqui se não verifica, nem a criação intelec-

c~2) Nossa Integração, n.º 7.

299
tual que vimos existir em todo o preenchimento de lacunas
rebeldes à analogia, pois essa é irrelevante no que respeita
à criação de direitos reais. A máxima de decisão a que se
chega em cada caso não altera a abstracta tipologia dos
direitos reais, nem acrescenta as suas manifestações sin-
gulares.

II - Semelhante criação pode aliás revestir duas moda-


lidades, visto basear-se na verificação de que:
1) ou determinada situação concreta deve ter um
regime real;
2)ou há todo um sector que é regido pelo princípio
do numerus apertus.

Na primeira hipótese não se poderia dizer que resulta


da lei, mesmo implicitamente, a admissão de um numerus
apertus. Não se chegaria a uma norma geral permissiva -
à semelhança da que permite constituir obrigações em todos
os casos não exceptuados na lei. Antes, seria só tendo em
vista uma situação determinada que o intérprete verificaria
que esta, se bem que não prevista na lei, deve ser regulada
em termos reais. Não há pois possibilidade de separar, do
momento da verificação da lacuna, um segundo momento
em que livremente se poderia integrá-la em termos reais.

III - Esta descrição pode parecer anómala, mas apenas


representa uma aplicação dos princípios gerais sobre inte-
gração das lacunas.
Utilizando a investigação de Canaris, podemos dizer que
com a interpretação restritiva se realiza sempre o apura-
mento da lacuna e normalmente a integração desta ( 6 ª}.

( .~ 3 ) §§ 145 e segs. Note-se que Canaris tinha em vista a redu-


ção teleológica, mas as suas conclusões parecem"'llos perfeitamente
adaptáveis à interpretação restritiva, pois vimos no capítulo anterior
( n.º 88) como são estreitas as ligações entre os dois institutos.

300
Basta que a mesma valoração que, negativamente, nos per-
mite afirmar que certa situação não pode ser abrangida por
um preceito de lei nos permita também, positivamente, indi-
car qual o regime que para ela é adequado. Nos casos que
temos em vista, se se afirma que certa situação, não pre-
vista na lei (ou não prevista em termos reais, o que para
o efeito que nos interessa é a mesma coisa) não pode estar
abrangida pelo princípio do numerus clausus, afirma-se
implicitamente que essa situação deve ser regulada em ter-
mos reais ( 54 ). O mesmo raciocínio que serviu para detectar
a lacuna serviu para a preencher. Nunca ficou um espaço em
branco que pudesse depois ser colmatado de várias manei-
ras. Assim, se por hipótese se concluísse que o art. 1306.º
não abrangia certos direitos sobre águas, pressuponha-se
(ao menos na normalidade dos casos) que a natureza da
situação implicava uma regu1amentação em termos reais.
Esta, encontrando embora o obstáculo da letra do art. 1306.º,
não contrariaria o espírito do mesmo artigo.

IV - Resta fixar qual a relevância desta conclusão para


a tipologia taxativa dos direitos reais.
Recorde-se que dissemos há pouco que esta criação de
direitos reais supõe uma norma que atribua à situação em
causa a qualificação de real; mas que tal norma não está
explícita. Não há pois na lei um tipo de direito real corres-
pondente. E isto poderá acontecer, quer quando uma situa-
ção estiver prevista na lei mas faltar a estatuição do corres-
pondente regime real, quer quando a lei omitir até a própria
descrição essencial da situação em referência.
~ escusado insistir mais uma vez no carácter pensado
de todo o fenómeno que descrevemos; como dissemos, não

( 54 ) Por isso nos não preocuparia a possível existência de uma


categoria de lacunas insusceptíveis de integração: cfr. Larenz, Metho-
denlehre, 300 e segs.; Canaris, §§ 186 e segs. Aqui, verificada a lacuna,
automàticamente se verificou que era integrável, e integrável em
termos reais.

301
conhccrmos, nem cremos que proximamente s·e possa apon-
lar, um caso concreto desta ordem, mas interessa deixar
uma porta aberta com a qual fiquemos já prevenidos para
uma futura e sempre possível evolução.

V - Pressupõe-se pois a norma que estabeleça que a


situação, mesmo não abrangida na tipologia dos direitos
reais, pode ou deve ser regulada cm termos reais. Há,
mesmo aqui, o primado da norma em relação ao caso indi-
vidua]. Mas, no que respeita à tipologia dos direitos reais,
não podemos deixar de reconhecer que o caso não está pre-
visto- e que portanto esta criação concreta de direitos reais
não supõe um tipo previsto na lei. Chega-se pois à criação
pelas partes num caso não previsto, mas simplesmente admi-
tido pela lei, o que é uma realidade de ordem muito diversa.
~ um resultado importante da intervenção da autono-
mia privada, que não estava contido nas referências à tipo-
logia (legal) taxativa dos direitos reais, e que por isso se
sublinha. Ainda que em casos-limites, o art. 1306.º não proíbe
em absoluto a criação concreta de direitos reais, fora da
abstracta tipificação legal.

114. A eventualidade dum «numeras apertos» sec1iorial

I - Não vemos porém razão para que se diga que só


esta categoria de hipóteses é concebível, e que a interpre-
tação restritiva não pode levar a verificar que, não uma
situação determinada, mas todo um sector de direitos reais
- uma classe, em sentido técnico (cfr. supra, n.º 8) -escapa
à regra da tipicidade taxativa. Raciocinando sempre em
abstracto, pode-se imaginar que se conclua que o numerus
clausus não abrange, não apenas um dado direito sobre
águas, mas genericamente os direitos sobre águas, ou que
não abrange os direitos reais de aquisição. Em todos os
casos, seria um amplo sector dos direitos reais que ficaria
de fora da tipologia taxativa. Consequentemente, preen-

302
chendo a lacuna, dever-se-ia concluir que aí haveria uma
liberdade genérica de constituição de direitos reais inomi-
nados, portanto um numerus apertus.
A possível existência de um numerus apertus sectorial
nada tem de anómalo. Já no que respeita ao ramo paralelo
dos direitos intelectuais encontrámos situação análoga: vimos
que havia um numerus apertus de formas limitadas de uti-
lização dos bens intelectuais, mas que quando se passava
a outros tipos de oneração, como os representados pelos
direitos de garantia, se deparava já a taxatividade. Também
aqui se pode pois em abstracto supor uma classe que a inter-
pretação restritiva do princípio do art. 1306.º nos leve a con-
cluir que está sujeita ao princípio da liberdade de consti-
tuição.

I I - Sendo assim, Jª não parece necessano distinguir


esta modalidade de criação concreta de direitos reais da que
ficou caracterizada no número anterior, por não pressupor
um sector que fique submetido à regra do numerus apertus.
Em qualquer caso, concebem-se direitos reais válidos, fora
dos casos previstos na lei; portanto, há um afastamento da
tipologia taxativa dos direitos reais. Não há criação norma-
tiva, se bem que essa criação concreta pressuponha sempre
a descoberta de uma norma ou de uma máxima de decisão;
mas há criação de um direito real atípico, pois transcende
o catálogo legal.
Concluindo: o art. 1306.º consagra uma tipologia taxa-
tiva. Mas perante ele, como perante qualquer preceito jurí-
dico, fica sempre aberta a possibilidade de uma interpreta-
ção restritiva que poderia levar à descoberta de uma lacuna
escondida. Essa lacuna eventual seria integrada, ou pela
verificação de que a situação em causa deveria ter natureza
real, ou pela afirmação da vigência do princípio do numerus
apertus no tocante a certa classe de direitos reais.

303
. ;..
SECÇAO 111

OS TIPOS DE DIREITOS REAIS SÃO TIPOS ABERTOS

115. A auiionomia na fixação do conteúdo do direito


real segundo a doutrina estrangeira

I - Fora destas hipóteses, e aceitando definitivamente


o círculo de situações que compõem a tipologia dos direitos
reais, devemos dizer que o carácter taxativo desta exclui
toda a intervenção da autonomia privada?
Sem ·dúvida que a exclui na criação de novos tipos de
direitos reais; mas pode ser que a não exclua na modelação
do conteúdo dos direitos reais admitidos. Para isso temos
pois de verificar se o efeito prático que se pretende, a indi-
cação das vinculações admissíveis dos bens, só se satisfaz
desde que se atinja também o efeito jurídico, a constituição
de direitos inerentes às coisas.
Este enunciado dá-nos já a ligação com um tema atrás
abordado, o da distinção entre tipos abertos e tipos fecha-
dos. Recorde-se que concluímos então que tipo fechado é o
que contém todos os elementos juridicamente relevantes do
facto ou da situação que é o objecto daquela tipologia; tipo
aberto é o que representa um quadro ou descrição funda-
mental, mas não exclui que fora dele se encontrem ainda
elementos relevantes para a realidade que se tipifica ( 55 ).
São noções muito maleáveis, pois assim tinha de ser para se
adaptarem à tão grande variação das tipologias normativas.

II-Vejamos de que maneira se põe o problema perante


a tipologia taxativa dos direitos reais.
A posição da doutrina mais antiga pode ser generica-
mente descrita do seguinte modo: não se falava em tipici-

(55) Cap. 1, n. 09 16 e 17.

304
dade, mas em numerus clausus; o numerus clausus equivalia
à exclusão .da autonomia privada; as partes não poderiam
consequentemente alterar ou completar os modelos legais.
Ou aceitariam em globo as previsões da lei, ou teriam de
renunciar a negociar em termos reais ( 56 ).
Mas mesmo quando se passou a recorrer à categoria
da tipicidade, o panorama não mudou logo. Assim, Wolff-
-Raiser, reflectindo uma posição muito corrente, fazem equi-
valer Typenzwang e exclusão da autonomia privada ( 57 ).
Outros autores começam porém a manifestar hesitação.
Assim, no comentário de Palandt, se bem que se continue
a intitular a matéria «exclusão da liberdade contratual», já
se chega a outra observação: a de que o conteúdo dos direi-
tos reais só pode ser modificado quando a lei o admitir ( 58 ).
Ora bem, Wolff e Raiser também falam de «modificações»
de direitos reais, que aliás expressamente declaram que se
integram no conteúdo destes; simplesmente, fazem-no caso
por caso, e não relacionam esta matéria com o Typenzwang,
que caracterizaram, sem fazer reservas, como a exclusão da
autonomia privada.

III - Enfim, é de mencionar uma corrente mais apu-


rada, que procura enquadrar estes elementos acidentais no
próprio esquema da tipicidade. A posição mais caracterís-
tica é a de Baur: a tipificação (Typisierung) teria duas mani-
festações: o numerus clausus (Typenzwang) e a fixação do
conteúdo (Typenfixierung). O conteúdo das situações reais,
pelo menos nas suas linhas mestras, tem obrigatoriamente

( 56) Cfr. por todos Wieland, pág. 4. Toda a matéria vem subor-
dinada à epígrafe: «Falta de liberdade contratual». Em contrário, há
apenas algumas observações isoladas, a mais significativa de todas
é a de Staudinger, que referiremos depois.
(57) § 2.º, J.I, 1.
(liB) Introdução ao§ 854, 2), b). Cfr. também IA.ubry e Rau, II,
6.• ed. (actualização de Bartin) § 172, ·texto e nota 1 quater.

305
20
de estar fixado na lei. Não há liberdade de estipulação, ou
só limitadamente esta nos surge (G 9).
Adaptando a mesma terminologia, Meier-Hayoz admite
todavia a fixação do conteúdo com uma extensão conside-
ràvelmente maior. Propugna expressamente, mesmo neste
campo, o princípio da liberdade contratual: acontece é que
os limites legais são aqui muito mais extensos que noutros
lugares. Além das normas que protegem o próprio ou ter-
ceiros, têm natureza injuntiva as que contribuem para a
definição do conceito dos direitos reais. Conclui que o con-
teúdo destes tem de ser vastamente fixado por lei, pois
assim o exige a observância coerente da tipicidade. Isso não
o impede de considerar admissível que se chegue à anticrese,
mesmo na ausência de previsão legal, tomando como base
o penhor ( 60 ), o que nos parece francamente exagerado.
Não vamos fazer o exame individualizado da posição
de cada autor. Estas rápidas referências bastam para fixar
afirmações significativas, originais ou não, que serão muito
úteis para a construção que empreenderemos mais adiante.

116. A posição da doutrina portuguesa

Como é natural, até há pouco o problema não se fazia


sentir entre nós. A organização da propriedade é de ordem
pública, dizia-se ( 61 ), e deste ambíguo princípio se poderia
deduzir, não só que os direitos reais constituem um número
cerrado, mas também o carácter inalterável do seu conteúdo.
Manuel de Andrade dá porém uma certa abertura à
autonomia privada. Escreve, por exemplo: «Quanto à orga-
nização da propriedade em geral, só imperam as normas

(:i9) § 1, II e § 49, II.


(6º) N.º 41.
( "1) Pires de Lima e Antunes Varela, Noções, II, pág, 116; Pires
de Lima, Lições, pág. 296 e nota; Manuel de Andrade, Relação Jurl-
dica, II, pág. 53; Pactos de Preferência, pág. 144.

306
legais; não as estipulações negoc1a1s, salvo quando e onde
haja texto legal reconhecendo-lhes validade» ( 62 ).
Sempre em relação ao Código de 1867-pois nada é
possível ainda apontar quanto ao código novo - foi dado
um pàsso em frente por Dias Marques, até pela conexão que
estabeleceu entre esta matéria e a tipicidade: «A tipicidade
dos direitos reais apenas se refere ao seu número e não,
necessàriamente, ao seu conteúdo. Ou seja que, embora se
não possa variar o elenco legal daqueles direitos é, no
entanto, lícito, quanto a alguns deles, introduzir no respec-
tivo conteúdo uma certa variabilidade. Assim sucede, por
exemplo, com o usufruto (art. 2201.º do Código Civil) e as
servidões (art. 2267.º do Código Civil)» ( 63 ).
Este trecho marca dois progressos em relação à dou-
trina corrente. Por um lado, expressamente relaciona a tipi-
cidade e a fixação do conteúdo dos direitos reais, concluindo
pela dissociação dos dois aspectos, o que nos parece intei-
ramente de aplaudir; por outro, o seu tom é menos restri-
tivo no que respeita à intervenção da autonomia privada.

117. A pretensa tipicidade das obrig~es «propt.er rem»

~ interessante notar que outros autores têm debatido


o que nos parece ser exactamente o mesmo problema mas
por um caminho muito diverso. Pergunta-se se as obriga-
ções propter rem são típicas, ou podem ser livremente cria-
das pelas partes.
Quem defende o numerus apertus dos direitos reais é
impelido a defender também o numerus apertus das obri-
gações propter rem: assim procede, coerentemente, a juris-
prudência francesa. Com efeito, se as partes podem livre-

( 62 ) Pactos de Preferência, pág. 144. E mais abaixo explica esta


restrição por a organização da propriedade contender fortemente com
vários interesses da comunidade, entre outros os da economia geral.
( aa) Direitos Reais, pág. 23.

307
mente criar direitos reais, é lógico que possam também criar
situações jurídicas que se subordinem a direitos reais exis-
tentes, ou que alterem o seu conteúdo.
Já aqui nos surgem porém contrastes doutrinários.
Assim, Marty e Raynaud declaram-se partidários da limita-
ção ( 64 ); embora, um tanto obscuramente, pretendam depois
que o princípio da liberdade na criação de direitos reais se
resume à liberdade na criação destas figuras acessórias ( 66 ).
Pelo contrário, mesmo em ordens jurídicas em que se con-
clui pelo numerus clausus dos direitos reais emitem-se pare-
ceres contra a tipicidade das obrigações propter rem. Na
Itália, é o caso de Barbero, que se funda na natureza que
atribui a estas figuras: se se trata de verdadeiras obriga-
ções, compreende-se que «não esteja no jus privatorum o
tipo de direito real a que a obrigação é inerente, mas não
a própria obrigação» ( 66 ).
A maioria dos pareceres vai todavia no sentido da tipo-
logia taxativa, embora mais por razões de conveniência que
por raciocínios científicos. Em geral, pensa-se que as situa-
ções jurídicas propter rem são meras obrigações, com a
única característica de a sua titularidade activa, e possivel-
mente a passiva também, estarem conexas à titularidade de
um direito real: mas diz-se que esta conexão é tal que elas
não podem deixar de estar submetidas à mesma tipicidade
que domina os direitos reais ( 6 i).

( 64) Pág. 15.


(6") Págs. 16-7.
( 66) Pág. 2, nota 1.
( 67) Assim Grosso, pág. 223. Ao que informa ·Pugliese, pág. 775,
nota 78, a maioria da jurisprudência italiana parece ter acatado tam-
bém esta posição.
Para o direito suíço, é típica a construção de Jost das Realobli-
gationen, que se caracterizariam simplesmente como obrigações posi-
tivas ligadas à titularidade de um direito real, o que lhes daria uma
(relativa) protecção real. O autor dá uma lista dos tipos admissíveis,
que iriam desde as obrigações de vizinhança até àquelas a que é
atribuída protecção real através do registo provisório. Aqui não vale-

308
118. As várias modalidades de situações jurídicas «prop-
t.er rem»

!-Tomando uma pos1çao, recorde-se que afirmámos


que, quer se discuta a admissibilidade de alterações ao con-
teúdo do direito real, quer se discuta a tipicidade das situa-
ções jurídicas propter rem, se discute exactamente o mesmo
problema. Com efeito, a modificação do conteúdo do direito
real só pode resultar da intervenção de situações jurídicas
propter rem. Um direito real só se modifica mediante vín-
culos de natureza também real, e esses vínculos são justa-
mente as situações jurídicas propter rem.
É indispensável termos presentes as características des-
tas situações. Elas não têm necessàriamente estrutura obri-
gacional (pelo que falar de obrigações propter rem é dema-
siado restrito) e integram-se no conteúdo dos direitos a que,
activa ou passivamente, são inerentes. Mas como todos estes
pontos foram por nós amplamente tratados em As Relações
Jurídicas Reais, limitamo-nos a remeter para aí.
--~

II - Estas situações jurídicas serão típicas, só podendo


ter vida nos casos previstos na lei?
Para a análise do tema é forçoso recorrer à distin-
ção entre:

a) situações jurídicas propter rem em sentido restrito;

b) relações jurídicas reais, ou propter rem ( 68 ).

ria a liberdade contratual: a Realobligation estaria sujeita ao nume-


rus clausus dos direitos reais, urna vez que ela não poderia dilatar
o número limitado dos direitos reais tipificados nem modificar o seu
conteúdo essencial. Sobre esta construção vejam-se as observações
de Raiser, Rabels Zeitsclirift, essencialmente críticas e a nosso ver
muito correctas.
(6 8) Cfr. Relações Reais, nomeadamente nos n.º" 42 e 43.

309
As primeiras relacionam o titular de um direito real
com um sujeito individualmente determinado, ou exprimem
uma mera restrição, por interesse público ou privado, de
um direito real, sem que haja outro sujeito que esteja em
relação com o ti tu lar do direito real.
As segundas são caracterizadas por, quer o seu sujeito
activo, quer o passivo, serem determinados pela titularidade
de um direito real. Assim, os vínculos, estabelecidos pelo
título constitutivo ou pela lei, entre proprietário e usufru-
tuário, representam relações jurídicas reais ou propter rem;
os deveres impostos aos titulares de prédios urbanos em
matéria de canalizações e esgotos, em defesa da salubridade
pública, representam meras situações jurídicas propter rem.
Sob o ponto de vista da tipicidade as duas figuras têm
significado diverso. As situações jurídicas propter rem em
sentido restrito ou não interessam à tipologia dos direitos
reais ou estão subtraídas à autonomia privada; mas as rela-
ções jurídicas reais são genericamente permitidas, o que
prova que os tipos de direitos reais são tipos abertos. E o
que passamos a demonstrar.

119. Vmculações de sujeitos individualmente determi-


nados em benefício do titular dum direitio real

1-As meras situações jurídicas propter rem, a ser pos-


sível a criação de situações jurídicas desta ordem, só pode-
riam revestir duas fisionomias:

- ou o titular do direito real ficaria na situação activa:


quem quer que fosse, poderia exigir uma prestação,
por exemplo, a sujeitos determinados;

- ou ficaria na posição passiva: quem quer que fosse


o titular de um direito real teria de sofrer uma res-
trição atípica na sua situação jurídica real.

310
II - A primeira hipótese é ilustrada por antigos vín-
culos feudais, como os que permitiam ao senhor, quem quer
que fosse, exigir aos seus vassalos a entrega de produtos
ou a prestação de dias de trabalho. Mas podem imaginar-se
hipóteses no direito moderno: assim seria se se atribuísse
carácter propter rem à pretensão do titular do direito real
à indemnização dos prejuízos causados à coisa, de tal modo
que essa pretensão passasse automàticamente a todo o trans-
missário do direito real.
Será hoje admissível a constituição de situações dessa
ordem? Comecemos por verificar se elas estão excluídas pelo
numerus clausus, quer tomando como ponto de partida o
texto do art. 1306.º, 1., quer a elaboração da tipologia taxa-
tiva que já realizámos.
O art. 1306.º não abrange estas situações. Elas não repre-
sentam «restrições ao direito de propriedade», seja qual for
o sentido que se atribua a esta expressão, visto que o único
direito em causa, o do sujeito activo, não é restringido, mas
ampliado. E tão-pouco representam «figuras parcelares» da
propriedade, pois parece claro que ao titular do direito real
não se opõe outro sujeito que tenha um direito que possa
ser concebido como uma fracção da propriedade, antes o
sujeito passivo é apenas titular de uma obrigação.
Se deixarmos o texto e recorrermos directamente à tipo-
logia taxativa, como a delineámos, continuamos a não abran-
ger estas situações. Ela é uma tipologia dos direitos reais:
ora aqui a situação propter rem do sujeito activo é acessó-
ria da titularidade de um direito real, mas não representa
ela própria um novo direito real. Basta pensarmos que não
recai sobre uma coisa, antes se dirige a um sujeito deter-
minado a quem se poderá exigir aquela prestação: é um
puro crédito.
Temos assim que a tipicidade dos direitos reais não
exclui esta modalidade de situações activas propter rem.

III - Com isto não pretendemos que a constituição


destas situações seja livre. Provàvelmente não será permi-

311
tida esta específica forma de determinação do titular de um
direito, que escapa às que são previstas na lei (69) e que
implicaria anomalias nos modos de transmissão e extinção
do direito: pode haver outro limite à autonomia privada,
para além do art. 1306.º, 1., que exclua a constituição de
semelhantes figuras. Mas se é assim ou não, não interessa
debatê-lo aqui.
Temos pois que esta categoria de situações não atinge
o catálogo normativo dos direitos reais, e é indiferente para
a qualificação do tipo de direito real como tipo aberto.
Vamos por isso deixá-la de lado, daqui por diante.
Maiores dificuldades se suscitam na segunda categoria
de situações propter rem em sentido restrito que enunciá-
mos: o sujeito activo não é o titular de um direito real,
pelo contrário, é o titular do direito real, quem quer que
seja, quem está vinculado. Esta hipótese será examinada no
número seguinte.

120. Vinculações do titular dum direitio real em bene-


fício de sujeitos individualmente det.enninados

I -Vejamos primeiro se há uma tipologia destas situa-


ções e, no caso afirmativo, se ela se confunde com a própria
tipologia taxativa dos direitos reais.
Abstraindo do art. 1306.º, 1., encontramos várias refe-
rências legais a situações desta ordem. Logo no art. 1307. 0 , 2.,
se dispõe que a propriedade temporária só é admitida nos
casos especialmente previstos na lei. Ora na propriedade
temporária há necessàriamente uma restrição ao direito de
propriedade (7~), q~e origina uma das hipótes:s mais carac-
terísticas de s1tuaçao propter rem em que nao há relação

(69) E~ectivamente, não conhecemos nenhuma previsão duma


. ação acuva desta índole.
situ (7º) Cfr. por todos Allara, 79 e segs.

312
jurídica real. O legislador indica claramente a tipicidade
desta situação.

II - O mesmo tratamento se aplica noutros casos em


que o titular dum direito real é atingido em termos reais,
portanto com inerência, sem que todavia se pense normal-
mente que o beneficiário ou sujeito activo é titular dum
direito real verdadeiro e próprio.
Um exemplo muito característico é-nos dado pelo pacto
de non alienando.
António vende um prédio a Manuel, obrigando-se Manuel
a não alienar o prédio comprado. Supondo que a esta res-
trição se quis dar carácter real, portanto que não há uma
mera obrigação de Manuel, mas algo que atinge o prédio
com a inerência característica das situações jurídicas reais,
teríamos uma restrição do direito de propriedade com carác-
ter real. Será válida?
O problema era discutido no domínio do Código de
Seabra. A doutrina, escudando-se na proclamação genérica
do direito de alienação, constante do art. 2359.º, conside-
Tava inadmissíveis estipulações de inalienabilidade com natu-
reza real, desde que não autorizadas por disposição legal
expressa ( 71 ). Não interessa, para os nossos fins, desenvol-
ver ou criticar esta orientação.
O novo Código, se bem que pudesse ter sido mais claro,
seguiu estas pisadas. No art. 1305. considera-se conteúdo
0

do direito de propriedade o direito de disposição, donde da


mesma forma se pode inferir um princípio geral de aliena-
bilidade; e aqui e além deparamos com aplicações deste
princípio. Assim, o art. 2232.º, considerando contrária à lei
a condição, estabelecida em testamento, de não transmitir
a determinada pessoa os bens deixados, já dava a entender

(11) Cfr. J. G. Pinto Coelho, Condição, 288 a 297; Manuel de


Andrade, Teoria Geral, 1, 279, nota 1; Rodrigues Nunes, 220 a 227.

313
que seria inválida a cláusula em que a proibição de dispor
se estendesse a toda e qualquer pessoa. E efectivamente, o
art. 2295.º confirma-nos nesta suposição, ao estabelecer que
são havidas como fideicomissárias as disposições pelas quais
o testador proíbe o herdeiro de dispor dos bens hereditá-
rios, seja por acto entre vivos, seja por acto de última von-
tade ( 72 ). O que aqui se estabelece é uma conversão legal,
e a conversão legal, como toda a conversão, pressupõe a
nulidade da cláusula ou do negócio que é objecto dela.
Dir-se-á: se a característica distintiva do direito real é a
inerência, deveremos considerar direi tos reais todos os direi-
tos munidos de inerência. Aquele que beneficia do poder de
proibir a alienação, a supor que o negócio fosse válido, goza-
ria sem dúvida de um direito subjectivo, e esse direito seria
inerente a uma coisa. Por que não qualificá-lo então como
direito real ( 73 )? O mesmo se passaria no caso de um direito
real ser submetido a uma condição, suspensiva ou resolu-
tiva, o que é genericamente admitido no art. 1307.0 , 1. e 3.
(e não no art. 1306.º, 1.) sempre com referência à proprie-
dade. Aquele que não tem a propriedade mas pode benefi-
ciar da verificação ou da não verificação da condição tem
uma expectativa, que aliás é registável nos termos do art. 2.º,
1., i), do Código do Registo Predial. Esta expectativa é um
direito subjectivo: cremos mesmo que é um direito real, que
se integra na categoria ampla das expectativas reais ( 74 ).
Daqui se pode chegar pois à afirmação de que em todas
essas hipóteses sempre haveria, afinal, a pretensa consti-
tuição de direitos reais, que seria ilícita se se não baseasse
numa previsão da lei.

( 72 ) Esta disposição é aplicável às doações por força do


art. 962.º, 2.
( 73 ) O problema é ruito discutido no direito alemão, dadas
as dificuldades resultantes do carácter negativo destas situações.
Veja-se a con;;t:ução de Wolff-Raiser, § 48, VII, 2., dos «direitos nega-
tivos de domm10».
( ª) Cfr. Relações Reais, págs. 246 e segs.

314
Outros preceitos do Código do Registo Predial concorre-
riam no mesmo sentido. Na sequência do art. 1.º, que dispõe
que o registo predial tem essencialmente por fim dar publi-
cidade aos direitos inerentes às coisas imóveis, enumera o
art. 2.º esses direitos; e da enumeração constam numerosas
situações que dificilmente se poderiam qualificar como
direito real no entendimento comum, como a constituição
do dote, o ónus de eventual redução das doações sujeitas
a colação, o ónus emergente do registo de casas de renda
limitada e de renda económica, a renúncia a indemnização
em casos de futura expropriação de certos imóveis, etc. Mas
há a tal inerência, o que parece bastante para fazer cair
qualquer figura no círculo dos direitos reais.

121. Relevância para a tipologia taxativa

1 -A esta possível argumentação pode-se opor uma


razão de texto: o legislador prevê especificamente restri-
ções desta ordem, ou pelo menos algumas delas, o que signi-
ficaria que afinal não estariam abrangidas no art. 1306.º, 1.
~ extremamente elucidativo o art. 1307.º, 2., pois segue logo
o art. 1306.º e indica que a propriedade temporária só é
admitida nos casos especialmente previstos na lei. Isto
demonstraria que para o legislador também estas situações
propter rem em sentido restrito escapariam à previsão do
numerus clausus dos direitos reais, constante do art. 1306.º.
Cremos todavia que há uma composição entre as duas
posições extremas aventadas. Tais situações, conforme os
casos, interessam ou não ao numerus clausus dos direitos
reais, e é para que nenhuma hipótese fique de fora que o
legislador expressamente as prevê para além do art. 1306.º.
Com efeito, nem todas as restrições de um direito em
que se não encontre um beneficiário que seja determinado
pela titularidade dum direito real são atingidas pela exclu-
são, fora dos casos previstos na lei, de direitos inerentes aos

315
imóveis. Para se falar de direitos teria de se pressupor sem-
pre um beneficiário destas situações, um titular duma posi'."
ção activa que seria contrapartida da restrição. Mas esta
posição activa pode faltar.
Efectivamente, o titular de um direito real ( determi-
nado, portanto, propter rem) pode ser atingido por uma
vinculação, sem que se encontre o correlativo beneficiário,
pelo menos actualmente. Assim aconteceria se se estabele-
cesse simplesmente que certos bens ficavam sujeitos ao
regime da impenhorabilidade, ou se tornavam inalienáveis.
Da mesma forma, pode o testador limitar a propriedade
a determinado prazo de duração - por trinta, por setenta
anos ... Desde que se não preveja a reversão para terceira
pessoa no fim desse prazo {i 5 ), não haveria um sujeito activo
a beneficiar da contrapartida da restrição; e todavia essa
restrição não pode deixar de se considerar proibida.
Essa distinção traz a chave do regime legal. As restri-
ções em que tanto se pode encontrar como não um benefi-
ciário activo foram afastadas, pelo legislador, do art. 1306.º, 1.
O sistema da lei parece claro: só as restrições que são a
necessária contrapartida da constituição de direitos reais,
como o penhor e o usufruto, estão incluídas naquele preceito.

II - Se isto é assim no plano da interpretação da lei,


nada força a que mantenhamos esta cisão no plano constru-
tivo. A tipologia taxativa abrange ainda todas as restrições,
estejam ou não previstas no art. 1306.º, 1., que tenham como
contrapartida um poder atribuído a um sujeito individual-
mente determinado. Só ficam de fora aquelas em que se não
encontre nenhum titular activo.

( 75 )Se se tratasse de um imóvel, deveria considerar-se que a


coisa reverteria para / Estado quando se tomasse nullius, em con-
sequência do art. 1345.º. Em todo o caso, o Estado nem por isso pode
ser considerado o sujeito activo desta situação, até porque a rever-
são para o Estado é automática, resulta de mero facto jurídico e
não de qualquer previsão negocial.

316
Com efeito, pensamos ser procedente a argumentação
que sugerimos há pouco: a constituição de semelhantes res-
trições implica necessàriamente a criação de um novo direito
real, o que contraria em absoluto o princípio da tipologia
taxativa. Basta notar que todo o direito real menor, excepto
a servidão, é uma situação jurídica propter rem em sentido
restrito: é estabelecida em benefício de um sujeito determi-
nado, e vincula o titular do direito maior, seja quem for.
Esta conclusão pode até ter importância prática. A apro-
ximação substancial das previsões dos arts. 1306.º, 1. e
1307.º, 2., leva-nos a concluir que, apesar de no primeiro se
falar nos casos previstos na lei, e no segundo nos casos espe-
cialmente previstos na lei, a regra é afinal a mesma. Efecti-
vamente, como toda a tipificação legal pressupõe uma espe-
cificação, há sempre casos especialmente previstos na lei.
O que se não pode é ler, onde estão especialmente previstos,
expressamente previstos, e concluir que na determinação
dos tipos de propriedade temporária é defeso o uso da
interpretação extensiva ( 76 ).

I I I - Em compensação, já não pode dizer-se que a todas


estas situações que substancialmente são abrangidas pelo
princípio do numerus clausus, mas formalmente não foram
integradas no art. 1306.º, 1., se aplica por analogia o regime
estabelecido naquele artigo.
Com efeito, esse regime resume-se à cominação da nuli-
dade e à imposição da conversão legal. Esta conversão legal
será aplicável às restantes hipóteses?
Não parece. A conversão legal é uma excepção à figura
normal da conversão, regulada no art. 293.º; como excepção
não pode ser estendida a novas situações.
Podem até verificar-se hipóteses curiosas.

( 1s) Recorde-se o que dissemos supra, n.º 38, III.

317
Assim, suponhamos que Abel, ao vender a Bento um
prédio de família, impõe a cJáusula de inalienabilidade inter
vivos. Temos aqui um dos casos em que há uma situação
jurídica propter rem em sentido restrito, pois o titular de
um direito real, como tal, fica vinculado: mas esse caso não
é previsto no art. 1306.", 1., pois tanto pode haver como não
haver um sujeito activo que seja beneficiário dessa limita-
ção. Em todo o caso, a cláusula é nula, como vimos; e é
também susceptívcl de conversão, ficando Bento pessoal-
mente vinculado a não alienar.
Mas essa conversão não é a especialmente prevista nos
arts. 2295. 0 , 1., al. a) e 962.º, 2., porque estamos perante uma
compra e venda; tão-pouco podemos recorrer, por analogia,
à conversão legal do art. 1306.º, 1., pois neste caso há uma
regra excepcional.
Acabamos assim por cair na conversão normal prevista
no art. 293.º: só se os respectivos requisitos forem satisfei-
tos é que Bento ficará obrigacionalmente adstrito a não
alienar (i7).

IV - Já as meras restrições de direitos reais, não corre-


lativas de qualquer situação activa, estão fora da tipologia
taxativa dos direitos reais.
Esta afirmação é coerente com o que verificámos ser o
prisma desta tipologia. A tipologia dos direitos reais indica-
-nos quais as vinculações das coisas que são admissíveis, e
não quais as situações inerentes às coisas; a permissão de
tais situações inerentes é como vimos, não o efeito prático,
mas o efeito jurídico visado pela norma. Sempre que surge
um novo direi to real há necessàriamen te uma nova vincula-

( 11 ) Esclareça-se que é conforme ao espírito da lei que mesmo


eisCia vinculação não seja havida como perpétua, antes tem de ser
reduzida a prazo limitado. Supomos que esse prazo deve ser de
dnco anos, por analogia com o disposto nos arts. 1412.º, 2. ( comu-
nhão) e 2101.º, 2. (indivisão hereditária).

318
ção. Pelo contrário, se se pretende constituir uma restrição
sem um beneficiário actual, não há uma nova vinculação
dos bens, há uma mera limitação de um direito típico, o
que é uma realidade muito diversa. Em vez de aumentar,
reduz-se a vinculação actual dos bens. A situação escapa
à tipologia dos direitos reais, pois não é abrangida pela
ratio desta.
Isto não impede que seja vedada a constituição de seme-
lhantes vinculações, fora dos casos previstos na lei. Assim
se concluía da análise anterior de vários preceitos, como o
do art. 1307.º, 2., que contemplam situações desta ordem,
e são aplicáveis tanto no caso de haver um beneficiário
determinado como no de não o haver. Mas tal exclusão não
deriva do princípio da tipicidade taxativa, pois a restrição
não representa um novo direito real.
Que representa, então? Representa uma modificação do
direito real admitido. Modificações desta ordem não são
autorizadas. Não é por este caminho que podemos consi-
derar os tipos de direitos reais tipos abertos.

IV - Em resumo, a difícil investigação que realizámos


até agora permite-nos concluir, no que a este capítulo inte-
ressa, que a modificação dos direitos reais não pode ser rea-
lizada por meio de situações jurídicas propter rem em sen-
tido estrito, fora dos casos especialmente previstos na lei.

122. As relações juridicas «proptier rem»: sua atipicidade

I - Mas, como dissemos, às situações jurídicas propter


rem em sentido estrito contrapõem-se as relações jurídicas
reais ou propter rem, que delas se distinguem por, quer a
posição activa, quer a posição passiva, estarem integradas
em direitos reais cujo conflito resolvem. Estarão estas tam-
bém sujeitas a uma tipicidade taxativa?

319
Perante o direito anterior, sustentámos a negativa,
embora por um ângulo diverso ( 78 ). A situação não se alte-
rou com o novo código. A lei prevê com frequência a inter-
venção da autonomia privada na modelação de direitos
reais; surgem mesmo disposições genericamente permissi-
vas, a propósito do usufruto (art. 1445.º) e da servidão
(art. 1564.º)( 79 ). Estas disposições são simples afloramen-
tos de um princípio geral- o de que os direitos reais meno-
res se regem pelo respectivo título ( 80 ); nada têm de excep-
cional, pelo que não é necessária uma norma expressa para
que caso a caso se possam estabelecer novas relações jurí-
dicas reais.
Isto mesmo se depreende do Código do Registo Pre-
dial, que vastamente admite a registabilidade das modifica-
ções dos direitos reais (art. 2.º, n.º 1 e art. 3.º). Ora as modi-
ficações dos direitos reais resultam justamente de se terem
estipulado relações jurídicas reais entre os titulares dos
direi tos reais em conflito ( 81 ).

II - Mesmo a propriedade pode, nas seguintes hipóte-


ses, ser modificada por relações jurídicas reais ( 82 ):

ps) Relações Reais, págs. 355 e segs. Note-se que aqui só pode
interessar aquilo a que chamámos as ·relações jurídicas reais simples
(ibid., págs. 75-ó e 115-ó ).
( 19) Diz-nos este que as servidões são reguladas, no que respeita
à sua extensão e exercício, pelo respectivo título.
( 80) As nossas leis usam em sinonímia as expressões título
(art. 1445.º) e título constitutivo (art. 1564.º). !Abrangem com isto,
não só os factos constitutivos, mas todos os factos que definem o
direito na sua existência concreta. l! neste sentido que o art. 2.º,
1., d), do Código do Registo Predial sujeita a registo as «alteraçé>es
do título constitutivo» da prppriedade horizontal.
(si) Aliás, todas estas previsões são superadas em generalidade
pelo art. 184.º do Código do Registo Predial, em que se estabelece:
cAlém dos requisitos previstos nos artigos ·anteriores, o extracto da
inscrição pode conter outras menções que não sejam supérfluas».
( 82 ) Sobre toda esta matéria, veja-se o que dissemos em Rela-
ções Reais, nomeadamente a págs. 355 e segs.

320
1) Se estiver onerada por direitos menores e no título
constitutivo se previr um regime diferente do normal.

2) Na compropriedade, se se estabelecer uma regula-


mentação especial, o que equivale a uma modificação das
várias propriedades que sobre a coisa recaem ( 83 ).

3) Se se alterarem as relações de vizinhança normais,


utilizando-se o tipo da servidão, ao qual as partes têm em
geral de se resignar.

4) Se, além deste caso, se constituírem puras relações


jurídicas reais entre propriedades vizinhas, o que parece ser
possível, pois a tipificação operada pela servidão não se fez
de maneira a cobrir todas as hipóteses ( 84 ).

III - O princípio que acabamos de enunciar poderá ser


posto em dúvida a partir do direito positivo.
Dir-se-á que, se o legislador só previu genericamente a
regulação pelo título constitutivo a propósito do usufruto
e da servidão, isso significa que em todos os outros direitos
não há uma faculdade geral de alteração da situação real.
Até se deveria dizer que nesses outros direitos, o facto de
a lei indicar em hipóteses específicas que se podem realizar
alterações, significaria que as possibilidades de alteração
são típicas, pois não poderiam exceder as previsões legais
expressas. Assim, na superfície, prevê-se a convenção sobre
o preço (art. 1530.º, 1.), a exclusão da indemnização em
consequência do decurso do prazo (art. 1538.0 , 2.), etc. Fora
destes casos, mais nenhumas alterações do regime legal
destes direitos seriam admitidas: toda a restante situação
real seria afinal típica.

( ss) Partindo do princípio, dominante entre nós, apesar da varie-


dade das formuJações, de que a compropriedade assenta na coexis-
tência de vários direitos de propriedade sobre a coisa.
( s4 ) Sobre esta matéria, cfr. Staudinger, 11.º ed., Introdução, III.

321
Estes argumentos não são procedentes. A única base de
tal interpretação das expressas previsões legais resume-se
à verificação de uma tipologia. Mas, como vimos (ª5), da
verificação de uma tipologia nenhuma ilação ou presunção
se pode extrair a favor da sua taxatividade, ou da exclusão
da analogia. Caso por caso se terá de verificar se há razões
de segurança que nos impulsionem a considerar típicas as
hipóteses previstas.

IV - Tomemos por exemplo um preceito imerso na


regulamentação da superfície, em relação ao qual não se
esclarece se as partes podem ou não dispor diversamente.
Seja o art. 1532.º, que estabelece: «Enquanto não se iniciar
a construção da obra ou não se fizer a plantação das árvo-
res, o uso e a fruição da superfície pertencem ao proprie-
tário do solo, o qual, todavia, não pode impedir nem tornar
mais onerosa a construção ou a plantação».
E se as partes convencionarem no título constitutivo
que o dono do chão pode usar a «Superfície» mesmo que
torne mais onerosa a obra? Ou se, pelo contrário, se con-
vencionar que o superficiário pode desde logo utilizar o
terreno para depósito dos materiais, por exemplo? Não são
válidas estas estipulações? Não lhes pode ser atribuída efi-
cácia real, como modificação do direito a que respeitam?
A solução depende exclusivamente de se saber se o
art. 1532.º tem carácter supletivo. Mas esta dúvida resolve-se
pelos critérios gerais. Tanto aqui como no sector das obri-
gações rege o art. 405.º, 1., que consagra a liberdade contra-
tual: «Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade
de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar con-
tratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes
as cláusulas que lhes aprouver». No Direito das Coisas há
um dos limites mencionados no início deste preceito: não
se podem constituir direitos reais diferentes dos previstos

( lir.) Supra, n. º 15.

322
no c6digo. Mas no restante a regra permissiva vale plena-
mente.
E não há razão para negar que o art. 405.0 , 1., se apli-
que também aos negócios reais. Confirma-o a circunstância
de pouco depois se encontrar a previsão fundamental do
art. 408.º, respeitante aos contratos com eficácia real.
Portanto: só se uma regra de lei dispusesse em con-
trário é que a regulamentação legal dos direitos reais não
poderia em geral ser afastada pelas partes.

123. O significado do art. 1306.0 , 1.

!-Justamente a única regra legal que pode ser invo-


cada para excluir a autonomia privada é a constante do
próprio art. 1306.º, 1., o que nos faz recair no âmago da
caracterização da tipologia dos direitos reais. Proíbe-se a
constituição de «restrições ao direito de propriedade ... »
Dir-se-á: todas as alterações ao conteúdo de direitos reais
caem na fórmula ampla: «restrições ao direito de proprie-
dade», e como tal não são admitidas «senão nos casos pre-
vistos na lei».
Assim se imporia a tipicidade das relações jurídicas
reais, ou propter rem. Estas são compatíveis com uma cons-
tituição negocial ( 86 ); ora, poderia dizer-se que o código pre-
tende aqui estatuir que a constituição negocial de relações
propter rem só é admitida onde a lei especificamente o
declarar ( 87 ).

( ss) Cfr. as nossas Relações Reais, págs. 345 e segs.


( s1) ;E nem valeria objectar que estas crestriçõesi. podem em
nada tocar o direito de propriedade, acenando para hipóteses como
a de dois credores hipotecários garantidos pelo mesmo direito de
usufruto convencionarem a mudança de grau das respectivas hi~
tecas. Poderia sempre retorquir-se que esta seria mais uma conse-
quência da infelicidade da óptica do art. 1306.º, que aparentemente
é específico da propriedade mas efectivamente traz um ·Princípio
válido para todo e qualquer direito real. Sendo ,assim, não haveria

323
II - Pode até acrescentar-se um argumento de direito
comparado. O art. 2502.º do Código Civil argentino que, num
ponto de vista objectivo, é o antecedente mais próximo da
nossa lei, proíbe, como vimos, «Constituir outros direitos
reais, ou modificar os que por este código se reconhecem ... ».
A referência do código português a restrições procuraria
reproduzir, total ou parcialmente, o conteúdo daquela pre-
visão.
Este argumento, como fàcilmente se concederá, teria
escassa valia, mas quisemos aventá-lo porque nos dá opor-
tunidade para afastar uma ambjguidade que na expressão
modificar um direito real se contém.
É que se pode falar em modificar em dois sentidos
muito diversos. Poderá com isso significar-se que se altera
o próprio tipo de direito, pelo afastamento de algum ele-
mento constitutivo. Assim se violaria a tipologia taxativa,
o que leva os autores com frequência a falar na proibição
de modificar os tipos de direitos reais. É certamente esta
a preocupação do código argentino, pois prevê as modifica-
ções na sequência da regra fundamental: «Os direitos reais
só podem ser criados por lei» ( 88 ).

motivo para considerar excluídas relações entre direitos reais diver-


sos da propriedade.
Com a ·mesma argumentação, talvez ainda se conseguisse afastar
a obje.cção de que as relações propter rem podem trazer, não uma
restrição, mas uma vantagem para a propriedade: por exemplo, se
no título constitutivo se excluem algumas faculdades de gozo do usu-
frutuário, não se pode dizer que isso representa uma restrição da
propriedade. Sempre se poderia replicar que também ·aqui, onde se
fala em restrição ao direito de propriedade, se deve ler pura e sim-
plesmente restrição ao direito real, seja ele qual for.
( 88 ) Encontramos em Baudry-Lacantinerie e Chauveau, n.º 193,
a afirmação de que «as partes podem modificar o tipo do direito real
que escolheram, nos limites especiais de cada um destes direitos».
É difícil determinar o sentido exacto desta observação, pois estes
autores escreveram antes de haver qualquer elaboração científica do
tipo, pelo que a utilização desta palavra deve ser reputada casual.
O texto transcrito tanto pode significar que o próprio tipo de direito
real pode ser alterado, o que não é de estranhar pois estes autores

324
Mas pode falar-se de modificação do direito real em
sentido muito diverso, que se torna compreensível se tiver-
mos em conta a problemática do tipo aberto. Pode-se signi-
ficar que, sem alterar o desenho essencial, se acrescentam
ao tipo elementos juridicamente relevantes. No domínio dos
direitos reais, isso realiza-se através da introdução de um
conteúdo acidental, que se concretizará pela substituição de
regras supletivas ( 80 ).
Sendo assim ambígua a terminologia, pode-se perguntar
por que a utilizamos. Fazemo-lo porque ela está consagrada,
com este sentido, na nossa ordem jurídica: como dissemos,
os arts. 2.º e 3.º do Código do Registo Predial referem modi-
ficações de direitos reais para exprimir a introdução deste
conteúdo acessório.

III - Não nos parece que uma cuidada ponderação dos


interesses em causa leve a aceitar os outros argumentos
que imaginámos.
Tradicionalmente, as relações propter rem mais impor-
tantes - as que resolvem o conflito de sobreposição da pro-
priedade e de um direito menor- são previstas, não com
referência à propriedade, mas a propósito de cada direito ~
real menor: a modificação da propriedade que elas acarre-
tam só é vista mediatamente, como modificação do direito
menor que com a propriedade está em conflito. A observa-
ção da situação legal permitiu-nos concluir, perante o direito
anterior, que havia a possibilidade genérica de constituição

são partidários do numerus apertus; como simplesmente que os direi-


tos reais previstos na lei têm um conteúdo acessório, pelo que o tipo
nã-O é destruído por esta intervenção da autonomia privada.
(ª 9 ) :!! curioso observar que o citado Acórdão do Sup. Trib.
de Just. de 3-111-67 dá abertura a este conteúdo acidental pela maneira
como define a tipicidade: o que não é lícito às partes é criar novos
direitos reais ou alterar a estrutura que a lei deu aos existentes
(Boi., n.º 165, pág. 343 ). Infere-se daqui a licitude duma modificação
que não consista na alteração da estrutura.

325
,-o)untária de relações jurídicas reais, como dissemos no
número antecedente.
Poderá aceitar-se que o novo código tenha invertido os
termos do problema? Isso suporia uma alteração profunda
das previsões em que, a propósito de cada direito, se estatui
a possibilidade ou impossibilidade de alteração do respec-
tiYo regime pelo título constitutivo. Nomeadamente, o legis-
:.a.d~r teria tido necessidade de indicar todas as regras sus-
·:.eptí\·,r:is de serem alteradas em termos reais, pois caso
·:.r.JDtrário tal aplicação da tipicidade levaria a concluir que
a modificação não seria viável. E todavia verificamos que,
:Y.J que toca às previsões específicas, não há nenhuma dife-
~~.ça de base em relação ao código anterior. Mesmo mudan-
;.a1 de pormenor quase se não encontram e, a existirem,
:-_..i...., :mplicam ampliação do núcleo das previsões a que é
-. :::. 'l.iid<J carácter supletivo. Isto só nos pode levar a con-
:..... ~~- que o princípio geral é o mesmo; e que, portanto,
. . : ~.:;:. :! . . , <J legislador proclama a taxatividade das restrições
~.. ::,,.. ~tr.J de propriedade, não são as relações jurídicas reais
",.!~ ~':Ttl em vista ( 00 ).

;·,- --- E~ta concJusão é fortalecida por uma observação


~~. ,~ ~1::11 t,j•,tcmática. I-Iá estreito paralelismo entre a pre-
..

.· ,~.., -:-4'~ ~.Jtua<,;.-Jcs jurídicas inerentes aos imóveis e a pre-


, .,M,, ..;;,i \.itu~c~ a que o registo dá publicidade. Vimos
.......... • :,~ 7,J dt1 art. 2.º, 1., do Código do Registo Predial
~-,. ~ •-s ~ 1jr,íf;,-. a registo quaisquer outras restrições ao
~·· ,, •. I';; 4v ''''1f1rl1 dade; e que esta é justamente a referência
1

""~ ·: -.. \ :11lod11m <lu do n.º 1 do art. 1306.º do Código Civil.

' , f t,'h' '''''/ff, Ili• pom·o n superfície como exemplo de situa-


·''; ,,. • i"·' ""'' ,,.,.., IHI 11
•1 JlJ,,.,~.,.~,unl"11te ser regida pelo título cons-
. , •A•· ,,,,;,
,,,.•. 1111 pn·vbii'k•s r~gistais refleotem já a intenção

,, ; , , .. ,~~,, ... ''" f.d ti"' 1. IH2.", l., e), do Código do Registo Predial
'"···ti''·,~,,..'',.,,,,.,'''''" J111u1h.Au dt\ suix'rfíde devemem:ionarainda
· ,.,., i•1/14~ '''' '"''"'rílc t~do, 11n pnrtc especialmente regulada pelo
'' l'/·r •' "tlt /lf li'

.l2rt
Mas tais restrições, qualquer que seja o sentido do termo,
não podem ser as relações jurídicas reais, pois estas, na
técnica do registo, estavam já previstas como modificações
dos direitos reais (arts. 2.º e 3.º do Código do Registo Pre-
dial)(91 ).
Sendo assim, mantém todo o valor quanto atrás disse-
mos, em defesa da atípicidade das relações jurídicas reais.

124. Limitações da aut.onomia privada

1- Convém fixar mais precisamente até onde pode che-


gar a autonomia privada na «modificação dos direitos reais».
Não basta invocar o limite geral das normas injuntivas: é
ainda necessário saber que motivos podem tornar injuntiva
uma regra. Continuamos a utilizar a qualificação doutriná-
rias de certas normas como injuntivas, apesar de o novo
código falar antes em normas ou disposições imperativas
(arts. l.º, 3. e 294.º, por exemplo), porque a terminologia
legal é infeliz; toda a norma jurídica é, por natureza, impe-
rativa.
O que está agora em causa, note-se, é só a possibilidade
de alterações em termos reais e não em termos obrigacio-
nais: os requisitos destas duas formas de intervenção dos
particulares são diversos, e certa regra, que não pode vàli-
damente ser afastada por uma estipulação em termos reais,
pode sê-lo pelo estabelecimento de uma obrigação. Simples-
mente, neste segundo caso não há propriamente uma actua-

(º1) Nossas Relações Reais, págs. 375 e segs. Aliás, resulta do


confronto das ais. a) e b) do n.º 1 do mencionado art. 2.º que se
mantém a técnica de considerar as relações jurídicas reais como
modificações dos direitos reais que com a propriedade se relacionam,
e não da propriedade directamente. Na al. a) submetem-se a registo
vários factos respeitantes à propriedade, mas não se fala na modi-
ficação; na ai. b ), pelo contrário, já se refere a sujeição a registo
das modificações de vários direitos reais menores.

327
ção sobre o direito real, há a justaposição de uma obriga-
ção, o que é um problema de natureza diversa. Daqui por
diante só nos preocuparemos com as verdadeiras modifica-
ções de direitos reais, pois são estas que justificam que
qualifiquemos estes tipos como abertos.

II - A primeira categoria de regras injuntivas resulta


com carácter de evidência do próprio princípio do numerus
clausus: não se podem alterar os elementos que pertencem
à própria definição do tipo de cada direito real (modificar
o tipo, no sentido restrito atrás indicado). Porque a não
ser assim, através da porta travessa da modificação do con-
teúdo, viríamos a liquidar a tipicidade taxativa dos direitos
reais. Por isso, não se pode dar de penhor um imóvel, ou
estabelecer uma superfície em que a propriedade da obra
implantada pertença ao dono do chão.
Isto exige um trabalho rigoroso de demarcação de cada
tipo de direito real {92 ). Partir-se-á das definições legais, caso
existam; mas com frequência estas, apesar de todo o cuidado
do legislador, são insuficientes, e será necessário recorrer
a outros elementos, como dissemos supra, n.º 35, III ( 93 ).
Surgem depois os limites derivados da existência de
outras normas injuntivas, mesmo que regulem aspectos
marginais do direito em causa. Que fundamentos poderão
justificar essa injuntividade?

( 92) Não podemos acompanhar Larenz, Methodenlehre, pág. 343,


quando afirma que esta tarefa é impossível, com o fundamento de
que as fronteiras dos tipos são por definição fugidias. O autor
baseia-se na visão dos tipos jurídicos como conceitos de ordem, que
afa:~támos Jogo de início (supra, n.º 5 ).
=( 0 1) Koller, págs. 126 a 128, distingue as limitações à autonomia
privada derivadas do numerus clausus-proibição de criação de novas
figuras - das que estão ligadas às exigências legais mínimas, ou defi-
niçôes, de cada figura. Mas a distinção não nos parece ter relevância.
Se o numerus clausus significa que há uma tipologia taxativa, ele
implica necec.,sàriamonte, não só a proibjção da criação de novos
típ<1<;, mas ·também a exclusão de alterações dos tipos existentes.

328
Com razão observa Staudinger que o problema não é
específico do Direito das Coisas, antes se põe da mesma
forma em qualquer ramo do direito ( 0 4 ).
Se quisermos todavia indicar ordenadamente quais os
fundamentos das normas injuntivas que surgem em maté-
ria de direitos reais, diremos que elas podem visar a pro-
tecção de interesses:

- colectivos;
- de terceiros;
- dos próprios intervenientes.

As normas que visam a protecção de interesses colecti-


vos são as que excluem formas de aproveitamento social-
mente nocivas, e em geral aquelas a que se pode atribuir
um fundamento de ordem pública, como as que tutelam os
bons costumes.
As normas que visam a protecçã'> de interesses de ter-
ceiros podem atender à situação -de futuros adquirentes dos
bens, ou dos terceiros que com essa situação jurídica por
qualquer forma se possam relacionar.
As normas que visam a protecção dos próprios inter-
venientes concernem à situação dos economicamente fracos
ou dos inexperientes.
Este é um esboço geral do fundamento das limitações
à autonomia privada. Para além disso, só uma valoração de
cada situação (por vezes muito difícil) nos permitirá con-
cluir quando um preceito é injuntivo e quando é dispositivo.
A consciência destas ordens de limitações vai-nos levar
a restringir as próprias normas legais permissivas, que se

( 1H) Introdução, Ili, e). Observações semelhantes, a propósito


de problema .paralelo nas sociedades comerciais, se encontram em
La Lumia, pág. 230, que distingue dos contratos constitutivos de socie--
dades comerciais atípicas as cláusulas atípicas de contratos consti-
tutivos de sociedades comerciais típicas. Cfr. também Koller, pág. 133.

329
revelam de teor demasiado amplo. Assim, a crermos na letra
do art. 1445.0 , todas as disposições do código respeitantes
ao regime do usufruto seriam supletivas. Afinal, examinan-
do-as uma por uma, concluiremos que há-as que se impõem
sempre, quer por serem essenciais para a determinação da
própria figura do usufruto, quer porque a sua ratio nos .faz
reconhecer que têm carácter injuntivo.

IV - Se houver violação de uma destas normas inJun-


tivas, a consequência será a nulidade da cláusula que a rea-
lizar. Devemos todavia ser cautos ao afirmar semelhante
violação, pois, como dissemos, os pressupostos da exclusão
de modificações de natureza real são diversos dos relativos
a modificações de natureza obrigacional. Quer dizer que a
uma estipulação, a que não possa atribuir. .se natureza real,
poderá em princípio reconhecer-se natureza obrigacional.
Verificando-se pois que era vontade das partes a natureza
obrigacional, nenhuma violação se verificou.
Se verdadeiramente as partes quiseram a natureza real,
é em abstracto admissível a conversão: a estipulação a que
antijurldicamente se pretendeu atribuir natureza real é
objecto de conversão, e é válida como regra obrigacional.
A conversão pode referir-se apenas a uma cláusula, não
sendo pressuposto do seu funcionamento que todo o negó-
cio esteja viciado (ºr>).
Sendo assim, e uma vez que se não pode utilizar, nem
por analogia, a conversão legal do art. 1306.º, 1. ( 06 ), cai-se
no regime geral da conversão estabelecido no art. 293.º.

( 9 ~) Cfr. Betti, Negozio, n.º 61, que caracteriza a conversão como


uma «corrccção da qualificação jurídica do negócio ou de qualquer
dos seus elementos». :e. um aspecto que não tem interessado os auto-
res portugueses.
( 90 ) Recorde-se o que dissemos supra, n. º 121, III.

330
125. Tipo abert.o e tipologia dos direitios reais

1 - Resta apurar o significado do que dissemos para


a configuração da tipologia taxativa dos direitos reais.
Se o prisma por que essa tipologia se configura é o das
vinculações admissíveis das coisas, não admira que tenha-
mos chegado à conclusão de que os tipos de direitos reais
são tipos abertos. Na verdade, a respectiva tipologia satis-
faz-se com a descrição fundamental das situações com natu-
reza real, mas não exclui que nelas se encontre ainda um
conteúdo acessório, que pode ser obra das partes.

II - E isto é tanto mais seguro quanto é certo que a


lei tomou precauções para evitar que as modificações dos
direi tos reais pusessem em perigo as finalidades que estão
na origem do próprio sistema do numerus clausus.
Assim, para que através do referido conteúdo acessório
não se introduzam estipulações inconvenientes no ponto de
vista económico-social, a lei estabeleceu em cada caso nor-
mas injuntivas, que proscrevem as situações consideradas
nocivas.
Para que este conteúdo diferente do normal não fique
oculto e vá surpreender o transmissário dos bens, a lei tor-
nou extensivas a estes vínculos as cautelas tomadas no
tocante à publicidade dos direitos reais. E é assim que
vemos que as modificações de direitos reais estão sujeitas
a registo; defendemos já a generalização das previsões espe-
cíficas da lei do registo.
Também não se verifica a perda de clareza do sistema
dos direitos sobre as coisas, pois os tipos não são altera-
dos; e para que estas relações não dificultassem o funcio-
namento do registo, a lei organiza a sua inscrição, que não
é autónoma, antes se integra na inscrição dos restantes factos
que se referem aos «direitos inerentes a imóveis». !! parti-
cularmente importante o art. 182.º do Código do Registo
Predial, nas -suas várias alíneas.

331
Portanto, a tipologia taxativa não impede que se admi-
tam modificações dos direitos reais. Efectivamente, o direito
real tem todo um conteúdo acessório, que é vastamente mol-
dável pelas partes, mediante a substituição de disposições
supletivas. Esse conteúdo é estranho à descrição fundamen-
tal em que consiste o tipo; faz parte do direito real, mas
escapa ao objectivo que ditou o art. 1306.º, L

IV- Quisemos debater o problema em geral, abstraindo


das implicações que aqui tem a interpretação, já atrás rea-
lizada, do art. 1306.º. Mas chegados à meta, é a altura de
recordar que assim fica confirmada a afirmação de que o
art. 1306.º só abrange a criação de direitos reais, e não quais-
quer outras realidades (supra, n.º 67). A referência ao nume-
rus clausus tem na nossa lei um sentido útil, que é de todo
independente deste problema.
Concluímos, pois, que nenhum indício se extrai da nossa
lei, em abono do pretenso carácter injuntivo geral das nor-
mas que disciplinam os .direitos reais.
E com isto nos encontramos com o que já em 1926 se
escrevia no comentário de Staudinger, embora independen-
temente da consideração da tipicidade: devem-se distinguir
as regras que respeitam ao conceito do direi to real e as
que respeitam às consequências dos negócios reais. As pri·
rneiras são injuntivas; as segundas são injuntivas ou suple-
tivas, consoante as respectivas finalidades. Na medida em
que são supletivas, concluía o autor que sempre pode o
conteúdo de um direito real ser modificado pelas partes,
embora somente através de estipulação expressa ( 97 ). Utili-
za-se técnica diversa da nossa, mas regista-se a concordân-
cia fundamental de posições.
Em conclusão, a tipologia taxativa dos direitos reais
não exclui que estes sejam na ordem jurídica portuguesa
tipos abertos.

'" 7 J 9." ed., Intr<>dução, págs. 5-6.

332
CAPITULO VII

ENTIDADES EXCLUIDAS DO ÂMBITO


DE APLICAÇÃO DO PRINCIPIO

SECÇÃO 1

GENERALIDADES

126. O problema

1 - Verificámos já quais os termos em que se realizava


a criação normativa ou abstracta de direitos reais; e aca-
bámos de fixar as balizas da intervenção da autonomia pri-
vada na criação concreta de direitos reais, atendendo mesmo
a sectores que não são cobertos pelo art. 1306.º.
Mas com isto não esgotámos as hipóteses concebíveis
de criação de direitos reais. Pois, para além dos particula-
res, há outras entidades cujos actos podem em abstracto
ser fonte de tais direitos.
Essas entidades-é este um ponto que teremos ocasião
de aprofundar-não foram visadas pelo art. 1306.º. Este
não só deixa de fora, como vimos, sectores dentro do cha-
mado direito privado, mas também necessàriamente lhe
escapa o direito das instituições públicas. Não nos podemos
iludir com o pretenso carácter absoluto da regra contida
na primeira parte do art. 1306.0 , 1., que só admite a cons-
tituição de direitos reais nos casos previstos na lei. Logo

333
a segunda parte, ao prever a violação do princípio, fala em
«restrição resultante de negócio jurídico», denunciando que
é exclusivamente a autonomia privada, com o seu instru-
mento, o negócio jurfdico, que se tem em vista (1 ). E a
criação concreta de tais situações por outros meios, nomea-
damente por lei, por acto administrativo, por sentença?
Parece-nos claro que estão fora das preocupações do pre-
ceito. Quais são as regras que valem para estes casos? Podem
então criar-se direitos reais em regime de numerus apertus?

I I - Este enunciado é ainda demasiado vasto e impre-


ciso. Temos de proceder por aproximações sucessivas.
As entidades que podem agir nestes termos devem ser
entidades públicas; e devem agir como tal, ou seja, não
devem utilizar os meios comuns, ou de direito privado.
A criação de direitos reais que se pode verificar aqui não
é urna criação normativa, portanto no plano das situações
jurídicas abstractas, mas sim uma criação caso por caso,
portanto no plano das situações jurídicas concretas. A cria-
ção normativa de direitos reais ficou já tratada quando refe-
rimos as fontes de direito: preocupou-nos então averiguar
se era exacta a referência ao monopólio legal na criação de
direitos reais. Nessa altura, uma constituição individual de
direitos reais não interessava, ou só mediatamente inte-
ressava.
Agora, pelo contrário, é ela que está em primeiro plano.
Queremos saber se há possibilidade de constituição, por
essas entidades, de situações jurídicas concretas de natu-
reza real, que não correspondam a um modelo previamente
estabelecido na ordem jurídica.

( 1) Isto é reconhecido no Acórdão .do Sup. Trib. de Just. de


3-III-67 (Boi., n.º 165, 343) .pois, definindo-se tipiddade dos direitos
reais, acrescenta-se: «não sendo lícito às partes criar novos direitos
reais». Não se suspeita nenhuma limitação quando os órgãos públicos
actuam como tal.

334
Efectivamente, as referidas entidades, no desempenho
das suas funções e portanto em posição de supremacia em
relação aos particulares, são levadas com frequência a deter-
minar a atribuição dos bens. Em abstracto, nada impede que
as situações jurídicas assim criadas sejam qualificadas como
direitos reais, tendo em conta a concepção já atrás enun-
ciada do direito real como manifestação de direito comum,
e portanto como figura que não está cingida ao quadro do
direito civil.

III - Teremos de nos vergar ainda a outras limitações.


Não podemos ser exaustivos na análise dos casos em que
é em abstracto possível a criação por entidades públicas
de situações individualizadas de direitos reais. Mesmo uma
investigação interdisciplinar como a nossa deve ter em
conta, como um dado, a repartição das matérias no ensino
jurídico.
Vamos por isso deixar de fora a hipótese, certamente
pouco frequente, da criação por actos legislativos de situa-
ções jurídicas concretas; tão-pouco nos ocuparão as hipó-
teses de criação individualizada que se devam reportar ao
Direito Internacional Público. Limitar-nos-emos por isso a
levantar o problema no que respeita à actividade adminis-
trativa, e examinaremos depois mais de perto o que está
ligado à actuação dos órgãos judiciais.
Este segundo plano vai ainda exigir distinções. Consi-
deraremos primeiro a actuação normal dos tribunais, inda-
gando em que domínios se esbarra com a criação de direi-
tos reais; veremos depois esped.ficamente em que termos
pode resultar da figura da providência cautelar a introdu-
ção de um direito real na ordem substantiva.

127. Direiiios reais administrativos

1 - O domínio público é essencialmente um regime jurí-


dico peculiar a que ficam sujeitos direitos de entes públicos

335
sobre certas categorias de coisas. Com esse regime jurídico
se relacionam mais ou menos estreitamente três modalida-
des de situaçõe~ jurídicas reais:

1)A «propriedade pública», ou seja, o próprio direito


dos órgãos públicos sobre esses bens, enquanto reforçado
ou especializado pela sujeição àquele regime jurídico.

2) As restrições consequentes à repercussão sobre os


prédios dos particulares daquela propriedade pública; o
exercício dos direitos reais sobre imóveis vizinhos daqueles
que estão submetidos ao domínio público sofre limitações
mais ou menos profundas. Tais restrições integram-se, ao
menos na generalidade dos casos, na categoria das servi-
dões administrativas.

3) A terceira modalidade de situações interessa espe-


~1ficamen te ao nosso estudo. Também aos particulares são
'.l'.I!orgados direitos sobre os bens sujeitos ao domínio
7.íbHco. Esses direitos são em grande parte regidos por
:~as públicas, mas em abstracto nada impede que sejam
-:.,'.,nsiderados direitos reais, pois o ·direito real, como figura
:/)mum, pode surgir em qualquer ramo institucionalizado
-:f. ._, direito. São estas as figuras que os autores designam,
e\;>e.c.1fícamente, como direitos reais administrativos.

Ap(,'i um período de hesitação, a doutrina latina tem-se


'J:~t:ntado para a admissão de uma categoria de direitos
: 1 ::,j\ admjnistrativos, quer em consequência de concessões
~ ~n\ <1u de serviços públicos ( 2 ), quer em consequência
..;,; ffJ':rá~) autorizações para utilização de bens dominiais.
'/11.tu11Jà a ~r muito útil o estudo de Rigaud, justamente
-:)/!,~_~lJ,, ~. t<:<>ria dos direitos reais administrativos. Na dou-
:·-'·'* .1•~Jw.11a, há a tendência de considerar que existem ver·

1 ·, ''' 9'#lv,-~1d,n.•12.

336
dadeiros direi tos reais no tocante à generalidade dos aspec-
tos, mas «enfraquecidos» no que respeita à sua oponibilidade
à Administração. Utiliza-se assim a categoria do diritto affie-
volito, que tem sido objecto de estudo sistemático na dou-
trina publicista italiana ( 8 ). Já os autores alemães só relu-
tantemente falam em direitos reais administrativos, e a
categoria é mencionada apenas no respeitante a certas con-
cessões relativas a águas, caminhos ou cemitérios ( 4 ).

III - Também entre nós esta orientação se ia introdu-


zindo sem deparar dificuldades de maior ( 5 ).
Em estudo recente, porém, Diogo do Amaral criticou a
noção de direito real administrativo, à qual opôs dois argu-
mentos que seriam definitivos para excluir a natureza real
dos usos privativos do domínio público ( 6 ). Não podemos
- dada a exclusão, que a nós próprios nos impusemos, da
investigação de matérias exclusivas do chamado direito
público - controlar a correcção dos dados em que o autor
se apoia; mas já podemos discutir o bem fundado das con-
clusões, no plano da teoria geral. ~ o que vamos fazer.
O primeiro obstáculo que o autor aponta à qualificação
das situações em causa como direitos reais está no facto de,
uma vez constituído o direito de uso privativo, o particular
não ficar logo investido no poder de gozar a coisa. Apenas

(s) Sundulli, n.º 168; Vitta, pág. 921. Veja-se também Zano-
bini, IV, págs. 36-7. :e. justo :reconhecer que actualmente as investi-
gações mais válidas sobre as modalidades de situações jurídicas
subjectivas são da autoria dos estudiosos italianos <lo direHo público.
(") Cfr. Hans J. Wolff, §§ 48, 57 e 59; Wolff-Raiser, § 101, III,
em especial n." 4.
( 11) Em Murcello Caetano, Mcmual de Direito Administrativo,
7.• ed., encontram-se reforências à categoria do dirdto real adminis-
trativo, por exemplo no n.º 302, a propósito da qualifkação do «uso
especial» do domínio pí1blko.
(<1 ) Note-se que o autor se dissocia daqueles que, como Ca.mmeo,
pretendem que o conceito de direito real seria exclusivamente pri-
vntistn, nl\o podendo passnr as fronteiras do direito público ( cfr.
págs. 265-7 ).

337
H
lhe competiria o poder de exigir da Administração que lha
entregue e lhe permita gozá-la: «Na verdade, se a Adminis-
tração recusa a posse do local, o particular não pode ser
nela investido sem a cooperação da Administração: não há
organizado nenhum meio jurídico para o fazer» (7).
O facto de o beneficiário só entrar no gozo da coisa
mediante a entrega desta pela Administração será um obstá-
culo ao carácter real do direi to do beneficiário?
Em rigor não o é, pois a ser autêntico apenas signifi-
caria que estamos perante um negócio real-no sentido
de um negócio que só fica perfeito após a transferência da
posse da coisa ( 8 ). Nada impede que de tais negócios reais
derivem direitos reais. Assim acontece com o penhor, como
cabalmente estatui o n.º 1 do art. 669.º, conformando-se com
uma tradição milenária: «0 penhor só produz os seus efei-
tos pela entrega da coisa empenhada, ou de documento que
confira a exclusiva disponibilidade dela ao credor ou a ter-
ceiro». Ninguém encontra aqui fundamento para contestar
a caracterização do penhor como direito real.
Temos pois que, a ser verdadeira a circunstância apon-
tada, ela só teria a consequência de nos levar a considerar
os factos constitutivos de eventuais direitos reais adminis-
trativos como factos jurídicos reais, no sentido indicado.

IV - O segundo argumento de Diogo do Amaral fun-


da-se na situação do beneficiário perante terceiros. O direito
de uso privativo não é um direito absoluto, mas relativo,
no sentido «de que a sua defesa ante terceiros só é possível

(') Págs. 271-3. Talvez esta última observação prove de mais.


A falta de meio jurídico organizado para a realização da pretensão
do particular não deveria levar a concluir que a pretensão era obri-
gacional e não real. Se alguma relevância tivesse, seria a de demons-
trar que não havia tutela jurídica, qualquer que fosse a natureza da
prt.>tensão. Também o titular duma obrigação tem, nos casos nor-
mili. o poder de fazer vingar contenciosamente a sua pretensão.
.\las vamos limitar-nos ao núcleo do raciocínio em análise.
( ') Cfr. sobre esta figura I. Galvão Telles, Dos Contratos, n.º 193.

338
mediante o cumprimento pela Administração da obrigação
de assegurar o gozo da coisa ao particular• ( 8 ). O autor
baseia-se na incomerciabilidade das coisas públicas e na
consequente insusceptibilidade de constituírem objecto de
posse civil.
Posta nestes termos, a demonstração não seria con\in-
cente, uma vez que a defesa possessória não é necessária
nem suficiente para a caracterização de uma situação como
de natureza real. Mas o autor acrescenta (1°): cA defesa
contra terceiros do uso privativo do domínio público e, hem
assim, a respectiva tutela possessória não podem ser exer-
cidas ante as instâncias de ordem judicial, pelos meios ci\is•.
Sendo assim, já não é meramente o possessório, mas o
próprio petitório, que é posto em causa ( 11 ). O problema
apresenta-se pois em toda a sua gravidade. A sua resolução
não depende já dos instrumentos da teoria geral, mas de
uma análise dos institutos próprios do Direito Administra-
tivo, em que como dissemos não vamos entrar.

V- Desejamos apenas fazer duas observações:

1) Há um caso em que o autor reconhece que a defesa


destas situações pode ser feita perante os meios civis: é o
que resulta do art. 86.º da Lei das Aguas, pois aí se diz que
os direi tos emergentes de concessões de interesse privado
se consideram «encorporados» nos respectivos prédios. Os
meios de defesa seriam pois os mesmos que os do direito

(9) Pág. 273.


(tº) Pág. 277.
(11) Todavia, como a natureza real duma situação administra-
·tiva não depende evidentemente do facto de ser admitida a sua tutela
.pelos meios civis, ainda interessaria averiguar até que ponto a defesa
perante os meios administrativos pode traduzir o carácter real da
pretensão. O autor dá uma resposta negativa: só a Administração
poderia efectivar a garantia do direito do particular. Eis mais um
1

tema que nos abstemos de debater.

339
de propriedade sobre o prédio ( 12 ). Ao menos aqui haveria
que debater o problema da natureza do direito concedido
e (uma vez verificado que era um direito real) da possibi-
lidade de constituição de semelhantes direitos em regime
de numerus apertus.

2) A jurisprudência mantém-se fiel à admissão da


defesa pelos meios civis das situações resultantes das con-
cessões realizadas nos cemitérios ( 13 ). Baseia-se no Assento
de 14 de Dezembro de 1937 ( 14 ) que, considerando que a
propriedade se manifesta pela posse, estatui: «OS túmulos
construídos em cemitérios municipais ou paroquiais são
susceptíveis de posse, a qual os concessionários e seus suces-
sores podem defender pelos respectivos meios». São igual-
mente categóricos os acórdãos de 4 de Janeiro de 1955 ( 15 )
e 8 de Janeiro de 1965 ( 16 ). Temos aqui mais um impor-
tante filão, que deve ser devidamente explorado, e que se
afigura favorável à categoria dos direitos reais adminis-
trativos.

128. Atípicidade destes direit.os

I - Pode afirmar-se a tendencial atipicidade dos direi-


tos constituídos pela Administração, cm bencficício de par-
ticulares, sobre coisas sujeitas ao domínio público? Vamos
discutir primeiro o problema cm abstracto, e verificaremos
depois que consequências comportaria a qualificação daque-
les direi tos c:omo direi tos reais.

( '~ J f'(1)(. 276, notu .'i.


(' 'J H•(.'tmtwn.·
('.110111 Marn·llo Cu1.:tano, Mmmal de Direito Admi-
nh 1ftll Jvo, 7." •·d., 11 •· .11H.
{,.' 1'11hlh ;u!11 "'' l>J<lritJ tio Gow.·rt1tJ, i.~ sérk. de 28 de Dezem-
b 1 ,, j lc- l 'J fl
(, ., ) /111/. M/11. ,,,,,., H." 47, 4~'i.
<,,, J /111/ Mif1. 111~1. 11." 14\ 2U.
Não entrando no exame em especial, não se encontra
regra que imponha a tipicidade. Nunca se diz genericamente
que sobre o domínio público só se podem constituir em
benefício de particulares os direitos previstos na lei. O que
é compreensível, pois justamente o estado embrionário da
regulamentação do domínio público não aconselhava que
ele ficasse submetido desde já a um molde que tolhesse
toda a evolução, mas sim que fosse deixada à discriciona-
ridade da Administração a modelação de figuras que o legis-
lador se sentia, ex ante, inábil para prever. Regulam-se pois
os factos constitutivos, como a concessão, mas não as situa-
ções que deles resultam.

II - Isto basta para afastarmos a suJeiçao generica


deste sector a uma tipologia taxativa; mas não fica excluída
uma sujeição específica. Na investigação caso por caso, que
se torna a única decisiva, pode concluir-se que o legislador
ora se orienta numa direcção, ora noutra. Recorrendo a
uma observação de direito comparado, vemos que na Ale-
manha há certos Estados em que há um numerus clausus
de direitos sobre águas, enquanto que na Baviera e no Würt-
temberg a concessão já está sujeita ao numerus apertus ( 17 ).
A resposta está pois condicionada a uma apreciação
especializada das várias categorias de bens dominiais a pro-
pósito das quais o problema se pode suscitar. Teríamos de
estudar individualizadamente os princípios sobre concessões
de serviços públicos ( 18 ), a legislação mineira, as regras
sobre autorizações referentes ao domínio público marítimo ...
~ esta evidentemente mais uma investigação em que nos
abstemos de entrar. Assinalando que há aqui a possibilidade

( 11) Cfr. Wolff-Raiser, § 101, III, 1. e nota 15.


(ts) Como é evidente, a lei que permite concessões não cria um
tipo de direito real, mas o título de que podem derivar os direitos
reais. O direito real é uma situação jurldica, enquanto que a con-
cessão é um facto.

341
de uma particular intromissão de uma atipicidade, termi-
namos a investigação de teoria geral.
Resta-nos observar que nos casos normais nada parece
impedir, se a lei não especifica o conteúdo das situações
que se podem constituir, que se sustente a existência de
um numerus apertus dos chamados direitos reais adminis-
trativos.

129. Direit.o real administmtivo e lei civil

1 - Suponhamos agora que estas situações consubstan-


ciam verdadeiros direitos reais administrativos. Teremos de
alterar a conclusão anterior, de uma tendencial atipicidade,
sempre que no caso concreto não for imposta uma limita-
ção? l! que é preciso verificar se a Administração, ao cons-
tituir direitos reais sobre bens dominiais, está sujeita ao
art. 1306.º do Código Civil.
Em princípio não o estaria, pois, como vimos, o código
restringe-se ao direito dos particulares, e deixa fora de si
todo o sector designado por direito público. Surge porém
um elemento perturbador no art. 1304.º, que dispõe: «0 domí-
nio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras
pessoas colectivas públicas está igualmente sujeito às dis-
posições deste código em tudo o que não for especial-
mente regulado e não contrarie a natureza própria daquele
domínio».
Fala-se em «domínio das coisas pertencentes ao Estado
ou a quaisquer outras pessoas colectivas públicas», o que
não é sem dúvida uma fórmüla muito límpida. Pelo con-
fronto com a epígrafe do artigo, verificamos que significa
o mesmo que o «domínio do Estado e de outras pessoas
colecth·as públicas». Mas tem-se em vista o domínio público,
o domínio privado, ou ambas as formas de domínio de entes
públicos?
A categoria do domínio público não é desconhecida da
:ej :.ivil: veja-se a sua utilização no art. 202.º, 2. Dado que

342
o art. 1304.º não a utilizava, podemos inferir que a omissão
obedeceu ao propósito de incluir na mesma previsão o domí-
nio privado. Mas não terá querido incluir também o domí-
nio público?
Aqui temos outro problema que nos limitamos a deixar
assinalado, pois nos parece requerer uma análise que trans-
cende o campo em que nos movemos. Teria de se verificar
se uma sujeição de princípio do domínio público à lei civil
é compatível com a substância daquele, o que pressuporia
a fixação de um conceito do domínio público, tarefa que
está longe de ser rotineira.

II - Mesmo assentando em que o art. 1304.º se aplica


ao domínio público, não poderíamos desde logo concluir
que a tendencial sujeição à lei civil, nele prevista, atinja
os direitos reais administrativos ( 19 ). Em princípio, pelo
menos, o que aquele preceito contempla é o domínio, por-
tanto a propriedade que cabe a entes públicos, não os direi-
tos sobre as coisas públicas que beneficiam os particulares.
De facto, a preocupação do legislador pode ter sido a de
afirmar a unidade da propriedade pública e da propriedade
em geral, mas nunca a de atender à situação particular
resultante da admissão desta categoria de direitos adminis-
trativos.
Deixando também em aberto este problema, podemos
esquematizar assim o caminho da indagação subsequente:
ou os direitos reais administrativos estão previstos no
art. 1304.0 ou não estão. Se o estão, é necessário \·erificar
se o art. 1306.º lhes é aplicável: não o será, se não corres-
ponder à natureza daqueles direitos ou se houver regula-
mentação especial, nos próprios termos do art. 1304.º. Se o
não estão, o art. 1306. nem sequer tendencialmente é apli-
0

( 19 ) Repita-se que o problema da integração dos direitos reais


administrativos no art. 1304.º só se levanta no caso de serem verda-
deiros direitos reais; se- o não forem, estão automàticamente excluí-
dos dessa previsão.

343
cável, e haverá verdadeiros direitos reais administrativos
criados em regime de numerus apertus, salvo nos casos con~
eretos em que a lei impuser uma tipologia taxativa.
Quer dizer que nas duas hipóteses seremos afinal con-
duzidos a uma verificação caso por caso da admissibilidade
do numerus apertus, só com uma diferença de ponto de
partida: na primeira hipótese teremos tendencialmente um
numerus clausus, mas devemos verificar caso por caso se
ele é afastado; na segunda, poderemos fazer a investigação
sem entrar em conta com qualquer presunção de tipicidade
ou atípicidade. A diferença, como vemos, é muito ténue.

III - Mas ainda com referência à primeira hipótese,


que é a dos direitos reais administrativos estarem tan1bém
incluídos no art. 1304.º, dissemos que haveria antes de mais
que verificar se a regulamentação do art. 1306.º corresponde
à natureza própria daqueles direitos. Pensamos que não, e
por duas razões principais.
A primeira, porque (como tivemos já ocasião de acen-
tuar) o art. 1306.º, 1., está centrado na limitação da auto-
nomia privada, como ficou expresso na segunda parte do
preceito; é a criação autónoma que está sujeita a prévia
autorização normativa. Por natureza, não encontramos no
direito real administrativo nada que se relacione com essa
forma de criação.
Mas mesmo para além deste aspecto poderemos per-
guntar simplesmente se um numerus clausus é conforme
com a natureza do direito real administrativo. A resposta
deve ser negativa. A preocupação que norteia a lei não é
então, em abstracto, a de estabelecer limitações, é antes a
de garantir a discricionaridade da Administração.
E compreende-se por que assim é, se recordarmos quais
CJS fundamentos do princípio da tipicidade taxativa. Quer-se
impedir a estipulação de limitações inconvenientes no ponto
de vista económico-social, evitar que existam ónus ocultos
que entravariam a circulação dos bens e dar clareza ao sis·

344
tema dos direitos sobre as coisas, facilitando o funciona-
mento do registo predial ( 20 ).
No que aos direitos reais administrativos respeita:
1) não se manifesta o perigo de onerações inconvenientes
como acontece perante os negócios dos particulares, por-
que a sua criação está sempre sujeita ao critério da Admi-
nistração e faz-se com a precariedade que caracteriza os
direitos reais administrativos; 2) não se criam ónus ocultos,
pois a transmissão dos direitos reais administrativos só se
processa por meios específicos, que oferecem ao transmis-
sário garantias tais que esta preocupação se toma despi-
cienda; 3) toda a falta de clareza do sistema dos direitos
reais sobre as coisas públicas não teria repercussões sobre
o registo, e por outro lado escassamente se faz sentir num
sector ainda em formação, em que é sempre e só a Admi-
nistração quem está em condições de dar vida gradualmente
a novas .figuras.
Vemos pois que a constelação de preocupações que mo-
tivaram o sistema do numerus clausus perde sentido uma
vez transposta para a categoria dos direitos reais adminis-
trativos.

VI - Em conclusão: sobre os bens do domínio público


podem constituir-se direitos dos particulares. Esses direitos
podem ser considerados direitos reais, sob reserva de uma
investigação mais completa que caberia ao Direito Adminis-
trativo. A ser assim, a constituição de tais direitos far-se-ia
em regime d.e numerus apertus, salvo se em categorias deter-
minadas de direitos reais administrativos a lei impusesse
urna tipologia taxativa.

(2º) Supra, n.º 29, IV.

345
SECÇÃO II

A ACTIVIDADE JUDICIAL EM GERAL

130. A aUeração da ordem substantiva por actos judiciais

Da actuação dos tribunais resultam na ordem substan-


tiva repercussões numerosas e variadas. Estas vão desde a
sentença constitutiva às providências cautelares, o que torna
problemática a sua redução a um sistema. Suscitam-se tam-
bém problemas muito complexos (e nem sempre tidos em
conta, porque invadem os domínios de mais de uma disci-
plina) quando se trata da conjugação da ordem substan-
tiva preexistente e das situações resultantes da actividade
judicial.
Examinaremos em particular uma hipótese desta ordem:
a que resulta de se decretarem providências cautelares. Neste
caso, a actividade judicial é especificamente destinada a
uma intervenção na ordem substantiva preexistente.
Outra situação foi já aventada ao fixarmos os limites
implícitos do preceito que estabelece o numerus clausus:
a que resultaria da «adaptação» em Direito Internacional
Privado, a serem admitidas as soluções de direito material
que para essa questão foram propostas. Então, como disse-
mos, o juiz do foro seria chamado a uma modelação espe-
cial do direito normalmente aplicável, de maneira a evitar
soluções contraditórias ou injustificadas: e nessa modela-
ção poderia ser conduzido à criação de direitos reais ( 21 ).
Não adiantaremos agora mais.

131. A sentença Injusta

Também provoca problemas de considerável gravidade


a possibilidade da pronúncia de uma sentença errada.

{21) Supra, n." 53.

346
Suponhamos que incorrectamente uma decisão judicial
irrecorrível atribuiu a determinada situação a natureza de
um direito real- seja à situação do depositário em relação
à coisa depositada, por exemplo. Dando por suposto que
na realidade a ordem jurídica não suporta essa qualificação,
teríamos um erro judiciário. Todavia, o caso julgado vem
dar estabilidade à solução, e o depositário poderá efectiva-
mente comportar-se como titular de um direito real, nos
limites da eficácia dessa sentença. Houve, ao que parece,
criação de um direito real num caso em que faltava a pre-
visão normativa.
Temos aqui um problema verdadeiro, mas que só aces-
soriamente pode ser mencionado neste trabalho. Ele é antes
um aspecto do magno problema da eficácia do caso julgado,
e do seu significado sobre a ordem substantiva. A hipótese
é análoga à que se verifica quando erradamente o juiz con-
sidera uma das partes titular de um direito real previsto
na lei, mas que ela efectivamente não tinha - uma proprie-
dade ou uma hipoteca, por exemplo. Também então há alte-
ração da ordem substantiva, e parece-nos que se não pode
negar à sentença carácter constitutivo, embora com todas
as restrições que a doutrina do caso julgado estabelece ( 22 ).
A diferença entre os dois casos está em que este último
é indiferente no ponto de vista do numerus clausus, enquanto
que o primeiro representa uma ampliação do círculo limi-
tado dos direitos reais. Diríamos então que há uma criação
contra legem de direitos reais. ~ evidente que tal criação
não se pode dizer submetida ao princípio do numerus clau-
sus. Na medida em que a decisão foi antijurídica, haverá
pelo contrário um afastamento do princípio.

(2 2) Limitam<rnos a apontar neste sentido Boehmer, págs. 125


e segs., porque este autor encara expressamente o problema pelo
ângulo da elaboração jurisprudencial do direito.

347
Todavia a situação jurídica concretamente constituída
é válida. Há uma criação de um direito real atípico, uma
criação não submetida pois ao numerus clausus. Mas dada
a problemática muito particular a que está associada, con-
tentamo-nos com chamar a atenção para este novo caso,
sem mais indagar do seu âmbito e do seu significado.

132. Criação jurisprudencial e int.e~ de lacunas

I - Pode ainda pergun tar..1se se não haverá formas de


criação jurisprudencial a que poderíamos chamar praeter
legem ( 23 ). Os pressupostos desta situação foram já ante-
riormente lançados, quando falámos da elaboração jurispru-
dencial, da possibilidade de verificação de «lacunas escon-
didas» ( 24 ) e do significado da sua integração no ponto de
vista do numerus clausus. Concluímos então que nestes
casos não cabia à jurisprudência a criação normativa (afora
a categoria dos assentos) e devemos agora acrescentar que
tão-pouco lhe cabe a criação individual de situações de
direito real.
Recorde-se que ·se discutia se os princípios referidos
justificariam uma elaboração jurisprudencial de direitos
reais; e mais especificamente, se se poderia verificar uma
lacuna que caísse no âmbito do n.º 3 do art. 10.0 , e que os
princípios aplicáveis levassem justamente a integrar em ter-
mos reais.

II - O problema não escapou completamente à dou-


trina mais moderna. Tomemos por exemplo Raiser, um dos
mais significativos estudiosos do Direito das Coisas na Ale-

fórm~~:> co1:r~~t:.mpregar uma fórmula expressiva, ma.is do que uma


( 24) Cap. V, n.o. 86 e segs.; e cap VI n º• 109 e
· , · segs.
348
manha, e verificamos que este autor chega a uma resposta
afirmativa, justamente com base nas teorias da elaboração
jurisprudencial. O direito, diz-nos, mesmo onde está legis-
lativamente fixado, encontra-se em contínuo movimento. Isto
repercute-se no número e no conteúdo dos direitos reais.
O princípio do numerus clausus continuaria a valer como
um dos limites da autonomia privada, mas não evitaria que,
gradualmente, a jurisprudência fosse atribuindo natureza
real a novas figuras ( 25).
Não nos parece que estas considerações sejam proba-
tórias, e tão-pouco que os fenómenos mencionados devam
ser qualificados como uma elaboração juri·sprudencial do
direito. Tudo se resume a bem pouco: à verificação de que
o sentido das fórmulas legais não está fixado de uma vez
para todo o sempre, antes varia com a ordem social em que
elas se integram, nos termos mencionados quando falámos
em geral da lei, entre as fontes do direito ( 26 ). Porque esse
sentido varia objectivamente, a jurisprudência pode hoje
considerar real uma situação que ontem caracterizara diver-
samente; não estará contudo a criar um direito real, mas
tão-somente a qualificar como real certa situação. Mais uma
vez, a previsão normativa precedeu a constituição concreta.
De qualquer maneira, mais do que apreciar posições
que historicamente tenham sido sustentadas, interessa-nos
pôr na generalidade o problema da criação jurisprudencial.

III - Sendo assim, basta-nos remeter para os passos


citados no início deste número, a que só aditaremos uma
observação.
Quem é que cria, verdadeiramente, o direito real, st-
se configurar uma hipótese que escape à previsão do art.

(2:1) Anwartschaften, 55-6.


(26) Supra, n.º 72.

349
1306.º, 1.? São as partes, no uso da sua autonomia? Ou é o
tribunal, quando as partes a ele recorrem?
Não nos parece sustentável que nestas hipóteses a sen·
tença revista carácter constitutivo. O juiz verifica a lega:li-
dade de uma pretensão que lhe é apresentada, não opera
uma alteração na ordem jurídica substantiva. Por tal motivo,
a situação em causa existe desde que as partes lhe deram
vida, ex tunc, e não ex nunc, ·desde a decisão judicial. Para
se pensar doutra maneira teria de se atribuir carácter não
apenas constitutivo, mas retroactivo, à decisão judicial.
Em tudo o resto a situação ·se conforma plenamente
aos princípios gerais sobre a actuação dos tribunais. Nomea-
damente, também aqui o juiz não poderá ir além do pedido.
O juiz não está a inovar na ordem substantiva, está a
reconhecer legalidade à pretensão de uma das partes. Mas
justamente porque se reconhece razão a uma das preten-
sões, reconhece-se também que, objectivamente, aquela era
já a situação válida, que é levada ao tribunal tão-só para
que o juiz a confirme. Houve criação autónoma das partes,
e não actuação constitutiva do juiz.
Todos os alicerces que gradualmente fomos erguendo
produzem efeito nesta ocasião. Recordemos por çxemplo o
que respeita ao carácter objectivo, e não subjectivo, desta
forma de criação ( 27 ). Tem-se em vista uma actividade objec-
tivamente controlável, e não há qualquer abandono a uma
opinião, que então só poderia ser a do juiz. Podemos segu-
ramente concluir que a criação pertence às partes, e não
ao tribunal.
Neste sentido, não se pode dizer que haja aqui mais
uma hipótese de actuação judicial que inovaria na ordem
substantiva, ao arrepio do princípio do numerus clausus.

(2 1 ) Supra, n.º 112. Cfr. também a nossa Integração, n.º 11.

350
SECÇAO III

PROVID:t;:NCIAS CAUTELARES

133. Generalidades

1-0 capítulo dos procedimentos cautelares é um ·daque-


les a que a prática mais espectacularmente tem recorrido em
todos os países. Várias circunstâncias estão na origem desta
tendência, nomeadamente a aceleração da vida moderna e a
consequente reacção contra o formalismo que continua a
dominar, em parte inelutàvelmente, os processos definitivos.
Em consequência, exploram-se os vários meios processuais
destinados a obter uma acção imediata sobre a situação
substantiva, sem incorrer nas delongas do processo normal,
que 'Se receia que não baste, mesmo que termine por uma
sentença favorável, para assegurar o efeito útil que se pre-
tende. A evolução é tão acentuada que em estudo de 1967
calcula Baur que a percentagem de procedimentos caute-
lares em relação aos procedimentos definitivos era na Ale-
manha já de um para três!
Compreensivelm·ente, o interesse da doutrina tem sido
solicitado para a figura da providência cautelar, focando
várias incidências processuais e de direito substantivo que
estavam na sombra. Não foi porém ainda, ao que saibamos,
considerada uma que nos interessa muito particularmente,
e por isso nos vai de seguida ocupar.

II - Nada impede que o decretamento de uma prÓvi-


dência cautelar signifique a constituição de um direito real.
Basta para tanto que a situação criada, embora a título pro-
visório, implique a atribuição de um poder inerente a uma
coisa. Não parece que a doutrina levante objecção a esse
modo de ver, pois que entre as providências cautelares se
encontra o arresto, e este é dominantemente considerado
um direi to real.

351
Mesmo a objecção genérica de que a transitoriedade
destas situações contraindicaria a natureza real seria clara-
mente improcedente: a natureza real de uma situação jurí-
dica em nada depende da maior ou menor duração. Poucos
são aliás os direitos reais perpétuos, ou tendencialmente
perpétuos ( 28 ). Esta posição pode considerar-se definitiva,
desde que o próprio Código Civil prevê a propriedade tem-
porária (art. 1307.º, 2.) (2º).

III - São frequentes as referências legais a providên-


cias destinadas a evitar, mesmo antes da decisão definitiva
dum litígio, um prejuízo que se receia. O tratamento mais
desenvolvido encontra-se no capítulo que o Código de Pro-
cesso Civil dedica aos procedimentos cautelares (arts. 381.º
e segs.). Mas, esparsas pela lei, prevêem.JSe outras provi-
dências.
A necessidade de concretizar levou o legislador, também
aqui, a criar tipos: há providências cautelares nominadas
ou especificadas, como o arrolamento ou a suspensão de
deliberações sociais (ao).

(2ª) Também nunca se negou a natureza real de um direito


de uso por neste estar necessàriamente prevista a própria extinção.
Tão-pouco seria correcto dizer que o direito real se não extingue com
o exercício, ao contrário da obrigação. Trata-se de uma mera tendência
que não oferece nenhuma virtualidade de servir como critério de
distinção. Há obrigações tendencialmente perpétuas e há direitos
reais, como a hipoteca, que se extinguem com o exercício.
(29) Veja-se o que a este propósito dissemos, supra, n.º 120.
(ao) Não se confunda esta categoria com a referida por Castro
Mendes, dos procedimentos cautelares típicos, que se oporiam aos
atípicos (págs. 51 a 53). Estes últimos, que não estariam integrados
no capítulo que o Código de Processo Civil dedica a esta matéria,
realizariam também a composição provisória de um litígio, mas não
apresentariam todas as restantes características dos procedimentos
cautelares. No plano substantivo, que é o nosso, norteia-nos antes
uma noção geral de «providência cautelar», e a distinção referida
não apresenta interesse.

352
134. Providências cautielares inominadas

1 -Mas a especificação não bastaria para satisfazer os


interesses que se pretendem assegurar, e que levaram a lei
a proclamar, com a mesma generalidade com que proclama
o princípio de que a todo o direito corresponde uma acção,
que lhe correspondem também as providências necessárias
para acautelar o efeito útil da acção (art. 2.º do Código de
Processo Civil). Não se podem prever todos os meios ade-
quados para a defesa preventiva do direito, em futuras situa-
ções.
Por isso se admite a concessão de providências caute-
lares inominadas, ou não especificadas. Há casos em que as
providências que as partes podem requerer, e o juiz pode
decretar, não se encontram preestabelecidas na lei. Assim
se quis dar o máximo de maleabilidade ao sistema, acom-
panhando aliás o que acontece nas ordens jurídicas moder-
nas ( 31 ).

II - A previsão destas providências inominadas consta


logo da lei civil. Assim, dispõe o art. 90.º do Código Civil
que podem ser estabelecidas as providências cautelares que
se mostrem indispensáveis em relação a quaisquer bens do
ausente; pelo art. 2048.º essa disposição é aplicável ao caso
da herança jacente. Adjectivando estas previ·sões, temos o
art. 1450.º do Código de Processo Civil, integrado na regu-
lamentação dos processos de jurisdição voluntária, que prevê
não só estas duas situações, mas todas aquelas em que, por
haver bens abandonados, seja necessário evitar a sua perda
ou deterioração. A providência que tipicamente se concede
é o arrolamento: mas admitem-se outras providências que
se considerem indispensáveis (n.º 2)( 32 ).

( 31 ) Cfr. J. Alberto dos Reis, Código Anota.do, pág. 686; Redenti,


pág. 94; Calamandrei, pág. 49; Baur, Einstweilige, pág. 27.
( s2) Também o art. 1481.º do Código de !Processo Civil contém
uma previsão de «providências conservatórias» inominadas.

353
A sede desta matéria encontra-se todavia na secção V
daquele mesmo capítulo que o Código de Processo Civil
dedica, como dissemos, aos procedimentos cautelares. Sobre
ela vai incidir preferentemente a nossa atenção. Tem por
epígrafe «Providências cautelares não especificadas». Inicia-a
o art. 399.º, que pela sua importância transcrevemos:
«Quando alguém mostre fundado receio de que outrem,
antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause
lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode
requerer, se ao caso não convier nenhum dos procedimentos
regulados neste captíulo, as providências adequadas à situa-
ção, e nomeadamente a autorização para a prática de deter-
minados actos, a intimação para que o réu se abstenha de
certa conduta, ou a entrega dos bens móveis ou imóveis, que
constituem objecto da acção, a um terceiro, seu fiel depo-
sitário».
Disposições desta ordem encontram-se actualmente em
quase todos os países, como dissemos. São caracterizadas
por se não indicar antecipadamente qual o conteúdo da pro-
vidência a determinar pelo tribunal: «cabe ao juiz, caso por
caso, não só valorar as razões de oportunidade e de urgên-
cia, mas também moldar o conteúdo da providência» ( 33 ).

135. «A entrega dos bens» a wn fiel depositário

1 - Também de providências cautelares inominadas


pode resultar a constituição de direitos reais? Eis o grande
problema que nos vai ocupar, pois que o seu significado
para a tipologia dos direitos reais nüo escapará a ninguém:
se a resposta for afirmativa, teremos um importante sector
em que a produção de direitos reais não estará subn1ctida
ao princípio do niunerus clat1.sus.

( ~:') Rcd~nti, púg. 94. O Ac. do Sup. Trib. de Just. de 21-l·V-53


(Boi., n." 36, 238) ao afirmar q111.· •pdas pr<.)vid~nci:ts cautclu1'\.~S nllo
se criam <lirl'itos» p~nx:(• tomar posi,·tio divl'r~·nll.'; mus nilo há. con-
tr:.H.li~·ào, pois qu~r l\'fc.·tir c..·xdusiv1.1nw11k• o tlil''l.~ito dd'initivo.

354
A ordem de investigação que nos parece mais frutuosa
é a seguinte: começaremos por analisar as modalidades de
providências não especificadas referidas genericamente no
art. 399.º do Código de Processo Civil, avaliando a possi-
bilidade da sua natureza real; e só depois passaremos a
outras categorias de providências cautelares não especifi-
cadas. O que tivermos apurado quanto às primeiras facili-
tará a apreciação das segundas.

II - Dentro dessas modalidades de providências caute-


lares não especificadas exemplificativamente referidas está
a «entrega dos bens móveis ou imóveis, que constituem
objecto da acção, a um terceiro, seu fiel depositário». Poderá
esta situação ter natureza real?
Pensamos que a solução afirmativa se impõe. Se o
arresto tem natureza real, este depósito por ordem do tri-
bunal também o poderá ter.
Que assim é, confirma-o a sujeição a registo desta situa-
ção; porque, como já anteriormente frisámos {34 ), só as
situações de natureza real são atingidas pela tipologia dos
direitos sujeitos a registo.
Para melhor compreensão, começaremos por examinar
o sistema das previsões registais sobre providências caute-
lares, e faremos a seguir as aplicações que se impõem.

III - O art. 2.º, 1., do Código do Registo Predial insere,


no fundamental, a lista das figuras que são objecto do
registo. Interessam-nos as ais. n) e o):

«n) O penhor, a penhora, o arresto e o arrolamento


de créditos hipotecários, ou de créditos garantidos por con-
signação de rendimentos de coisas imóveis, e quaisquer
outros actos ou providências que incidam sobre os mesmos
créditos ( 3 is);

( 84 ) Supra, n.º 35, 1.


(ª 5 } Veja-se ainda o art. 192.", a).

355
o) A penhora, o arresto, o arrolamento de imóveis ou
de direitos sobre eles, bem como quaisquer outros actos
ou providências que afectem a sua livre disposição».

Resulta destas previsões, e sobretudo da segunda que


é de âmbito mais vasto, a registabilidade geral das provi-
dências que forem decretadas pelo tribunal. Quer dizer,
encontramos também, directamente estabelecida na lei, esta
consequência normal do carácter real de uma situação res-
peitante a imóveis - a registabilidade.
Por outro lado, o facto de as alíneas citadas falarem
genericamente em «actos ou providências», como objecto do
registo, e não especificamente em providências cautelares
não pode dar aso a dúvidas quanto à registabilidade destas.
Tanto assim que os arts. 179.º, q) e 180.º, 2., regulam expres-
samente o registo provisório da providência cautelar, antes
de transitar em julgado o respectivo despacho.
A al. o) do art. 2.º, 1., do Código do Registo Predial está
claramente estruturada de maneira a abranger estas situa-
ções; e os arts. 179.º e 180.º, com a sua referência ao arro-
lamento e a «outras providências cautelares», confirmam
quanto dizemos, visto que a única das restantes providên-
cias cautelares específicas que poderia interessar para efei-
tos do registo era o arresto, e este foi previsto à parte. São
pois as situações mencionadas no art. 399.º do Código de
Processo Civil que podem integrar esta previsão ( 36 ); e entre
elas, é antes de mais a entrega dos bens a um fiel deposi-
tário que está em condições de satisfazer o dispositivo legal.

IV - Note-se que não dizemos que todos os casos de


entrega dos bens a um depositário tenham natureza real;
dizemos antes que podent ter natureza real, e só então se
concretiza a previsão do Código do Registo Predial.

( :in) Neste sentido, cfr. Catarino Nunes, pág. 411.

356
Quanto ao mais, e nomeadamente quanto à afirmação
de que um depósito em poder de terceiro pode ter natureza
real, terá de ficar sem demonstração específica, porque só
incidentalmente o problema toca a nossa investigação. Pare-
ce-nos suficiente o que dissemos quando atrás apurámos o
objecto do numerus clausus, e interpretámos a expressão:
restrição ao direito de propriedade ( ª7 ).

136. «A intimação para que o réu se absiienha de certa


conduta».

1 - E «a intimação para que o réu se abstenha de certa


conduta», que é também exemplificativamente referida no
art. 399.º? Pode igualmente originar situações de natureza
real?
Parece-nos que sim: basta que essa intimação seja estru-
turada de molde a não atingir apenas aquele réu, individual-
mente determinado, mas sim o réu como titular de bens;
portanto, que atinja também todos os que venham a substi-
tuí-lo na titularidade dos mesmos bens. Há então a inerên-
cia, que é a característica dos direitos reais.
Neste caso surge porém uma dificuldade específica,
resultante das regras do registo.

II -A ai. o) do art. 2.º, 1., só declara sujeitos a registo


os actos ou providências que afectem a livre disposição
dos bens.
Poderia por isso supor-se que, se essa intimação afecta
a livre disposição dos bens, terá natureza real e está sujeita
a registo; se, pelo contrário, não estiver em causa o poder
de disposição, mas por exemplo o uso ou a fruição, para
recorrer à terminologia do art. 1305.0 do Código Civil, já a
providência cautelar não terá efeito real. Nesta medida,

(ª7) Vejam-se sobretudo os n.º' 65 a 67.

357
haveria uma considerável limitação do poder do tribunal
de ordenar providências com carácter real.
Procuremos equacionar correctamente a questão.
Apresentado assim, o suposto argumento seria incorrecto.
Não é o registo que dá natureza real a um direito, mesmo
sobre imóveis. Rigorosamente, a sujeição a registo não acres-
centa nada ao direito real, antes condiciona de certo modo
a eficácia de que aquele é já em princípio dotado ( 38 ). Por
isso, uma providência cautelar de natureza real que não fosse
submetida a registo não perdia em nada a natureza real.
Mas o argumento pode ser apresentado doutra forma.
Dir-se-á então que a sujeição a registo só de certa categoria
de providências revela que o legislador não admitiu que as
restantes pudessem ter carácter real. Sempre se concluiria
que a intimação ao réu para se abster de certa conduta só
teria carácter real quando afectasse a livre disposição dos
bens.
Mas nem assim o raciocínio seria correcto. Encontra-
mos afinal mais uma vez uma utilização inadequada do argu-
mento a contrario. Vai-se dizer que, se esses casos merecem
tal tratamento tabular, isso quer dizer que eles têm natu-
reza real, e todos os outros não. Mas ficou por demonstrar
a suficiência das premissas para a conclusão.

III - Pensamos que tudo o que se pode extrair deste


preceito é um indício de que só os casos nele referidos
teriam natureza real. Para comprovar este indício, teríamos
de demonstrar seguidamente que a índole das providências
cautelares exige a natureza real, quando afecta a disposição
dos bens, ao passo que, havendo uma proibição que atinja

( :1~) Cfr. as nossas Relações Reais, n.º 146, li. J;: pois equivoca-
damen tc que no Acórdão do Sup. Trib. de Just. de 3-111-67 (Boi. Min.
Just., n." 165, 343) se apresenta como argumento em favor do nume-
r11s clausus dos direitos reais o numerus clausus dos direitos sujei-
to'i a registo. Cfr. ainda o que dizemos supra, n.º 35, I, sobre esta
últim..i tipologia.

358
o uso ou a fruição, se contentaria com uma eficácia obri-
gacional.
Mas essa demonstração não parece poder fazer-se. Ela
não encontra a mínima ressonância no texto do art. 399.º
do Código de Processo Civil, e não seria a lei do registo o
lugar adequado para fazer a restrição.
Teleologicamente, a conclusão será a mesma. Se para
evitar uma dada lesão pode ser necessário restringir, com
eficácia real, o poder de disposição, por que não se verifi-
cará a mesma necessidade no que respeita aos poderes de
uso ou de fruição? Há pelo menos maioria de razão para
se excluírem determinadas formas de actuação em relação
aos bens quando se quer evitar um prejuízo potencial. Assim
acontecerá se se quiserem, por exemplo, prevenir os riscos
de uma mudança de titular.
Pensamos pois que, de harmonia com o Código de Pro-
cesso Civil, ou entendemos que todas as providências têm
carácter real ou que todas têm carácter obrigacional. Esta-
belecer distinções é que é arbitrário. E pensamos ainda que
a amplitude com que a lei permite ao juiz moldar o con-
teúdo da providência, bem como a existência de necessida-
des práticas, levam também aqui a concluir pela genérica
admissibilidade de um conteúdo real.

IV- Que pensar então da al. o) do art. 2.0 , 1., que só


refere a sujeição a registo de actos ou providências que
afectem a livre disposição dos bens? Há duas possibilida-
des de interpretação:

a) só estas providências senam registáveis;

b) todas as providências seriam registáveis.

A primeira posição, que é a que corresponde à letra do


preceito, é seguida por Catarino Nunes ( 3 º}, mas é muito

( 39) Págs. 133-4.

359
insatisfatória, pois não se vê nenhuma razão para limitar
a registabilidade a estas hipóteses. E todavia, este autor
mesmo dissera, e com muita razão, que o numerus clausus
no registo predial não excluía a interpretação extensiva nem
a analogia ( 40 ).
Este é justamente um dos casos em que nos surge uma
lacuna na previsão do objecto do registo, e é necessário
integrá-Ia. Talvez a omissão legal resulte da utilização de
uma técnica infeliz: a de acopular nas previsões das als. n)
e o) actos (negócios jurídicos) e decisões judiciais, desde
que incidam sobre créditos hipotecários ou garantidos por
consignação de rendimentos de imóveis, ou afectem a livre
disposição de direitos sobre imóveis.

V - Dissemos que a referência daquelas alíneas a actos


pressupõe a natureza negocial destes, e a referência a pro-
vidências a natureza judicial. Isto resulta do art. 182.º, 1., n),
em que se indicam os requisitos especiais de certas inscri-
ções. Em referência implícita ao art. 2.º, 1., o), menciona-se
o arrolamento e acrescenta-se: «nas de outros actos ou pro-
vidências: a sua descrição, data do negócio jurídico ou do
respectivo despacho e a menção de este ter passado em jul-
gado»: há pois um acopulamento de previsões.
Ora, terá sido justamente levado por essa imprópria
mistura que o legislador referiu o poder de disposição que,
se se adequa ao negócio jurídico, não tem sentido no que
respeita às providências cautelares. Para a sujeição a registo
das providências que limitam o gozo, por exemplo, proce-
dem todas as razões justificativas da sujeição a registo das
que afectam a disposição. Há pois base para a aplicação
analógica, o que nos leva a concluir que todas as providên-
cias cautelares que atingem as coisas em termos reais são
afinal sujeitas a registo.

( 4 º) Págs. 16-7. Veja-se o que a este propósito dissemos, supra,


n.º 59, III.

360
VI-Mas não vale a pena adiantarmo-nos mais nesta
investigação. De todo o modo, dissemos já que o Código de
Processo Civil admite que todas essas providências tenham
natureza real; mas ainda que se não pensasse assim, o mais
que poderia resultar da interferência do Código do Registo
Predial seria a atribuição da natureza real somente às pro-
vidências de que resultasse limitação do poder de disposi-
ção. Ora, é quanto basta. De qualquer modo, sempre se
admitirá que pela imposição de providências cautelares não
especificadas que afectem o poder de disposição dos direi-
tos, o juiz venha a constituir situações jurídicas reais.

137. «A autorização para a prática de deU,rminados


actios»

1 - O que dissemos simplificou o exame das providên-


cias cautelares da terceira espécie prevista exemplificativa-
mente no art. 399.º do Código de Processo Civil: aquelas que
consistem na «autorização para a prática de determinados
actos».
Se esses actos recaírem sobre coisas e puderem ser exer-
cidos com inerência, teremos um direito real. Mas aqui se
levantam todas as dificuldades de ordem registai com que
tomámos já contacto a propósito da segunda categoria de
hipóteses, ainda acrescidas, digamos: não há nessas provi-
dências, em caso nenhum, afectação da livre disposição dos
bens, no entendimento comum da expressão.
Nada vamos acrescentar ao que deixámos dito. Cremos
que a finalidade do art. 399. º exige que estas providências
possam ser estabelecidas em termos reais; e ainda que se
concluísse que o registo não era possível, a natureza real
não ficaria prejudicada. Mas mesmo que assim não fosse,
e essa ordem de providências não pudesse ter natureza real,
restava sempre aquele mínimo, que basta para a sequência
da nossa investigação: através das providências cautelares
exemplificativamente previstas no art. 399.º do Código de

361
Processo Cívil poderiam criar-se, ao menos em certas hipó-
teses, direitos reais. Esta conclusão parece-nos inegável
quando se trate de providências que afectem a livre dispo-
sição dos bens ( 41 ).

138. Outras providências não especilicadas

1 - Até agora falámos das três modalidades de provi-


dências não especificadas, exemplificativamente referidas no
art. 399.º. Mas as providências inominadas não se esgotam
nestas três modalidades. O texto é expresso em admitir
outras situações.
E nestes casos, podem-se originar direitos reais?
Não vemos razão para um tratamento diverso. Também
aqui, ou sobretudo aqui, o juiz mantém o poder de moldar
o conteúdo da providência. Se os interesses a acautelar exi-
girem uma providência com carácter real, o juiz deve poder
decretá-la.

II - Esta pos1çao terá interesse prático? Haverá hipó-


teses em que a constituição cautelar de uma figura com
natureza real seja a «providência adequada à situação», para
empregar os termos do art. 399.º?
Comecemos por demonstrar que pode haver interesse
na constituição, na base de um procedimento cautelar ino-
minado, de um direito real nominado. Recorramos a uma
hipótese levantada perante tribunais italianos (• 2 ). O usu-

( 41) Insistimos que pelo menos algumas providências não espe-


cificadas têm de poder ·revestir natureza real, pois as previsões regis-
tais abrangem, para além das providências cautelares especificadas,
várias outras modalidades de providências cautelares: não se satis-
fariam nomeadamente com a mera atribuição de natureza real à
entrega dos bens a um fiel depositário. O art. 179.º, ai. q), do Código
do Registo Predial expressamente refere o arrolamento ou outras
providências cautelares, com intenção evidentemente generalizadora
e não restritiva, como dissemos (n.º 135, III).
(42) Sentença do Tribunal de Nápoles, referida por Coniglio, 327-8.

362
frutuário do prédio encravado pediu e obteve, na pendência
do processo para constituição coactiva de servidão de trân-
sito pelo prédio circundante, a concessão provisória de ser-
vidão de passagem. É certo que a providência cautelar se
destinava a conjurar o mesmo dano que se repara com a
retroacção da decisão definitiva ao momento da petição ini-
cial. Mas como este efeito jurídico não basta para evitar
danos, permite-se a antecipação, no plano dos factos, da
situação jurídica que será garantida se a sentença de fundo
for favorável ao requerente.

III - Mas também pode ser necessária a constituição


de direitos reais inominados. Suponhamos um litígio refe-
rente a um prédio donde um construtor civil costuma tirar
areia para construção. O possuidor arroga-se a propriedade
plena, e como tal opõe-se à continuação daquela prática;
o construtor, que reivindica o usufruto do prédio, afirma
que a detenção da coisa pelo seu antagonista era devida a
mera tolerância da sua parte, pois aquele gozo limitado bas-
tava-lhe. Pela interposição de um procedimento cautelar,
pede ainda que lhe seja concedido, com carácter real, con-
tinuar a retirar a areia do prédio. Atendendo ao seu con-
teúdo, esta providência consistiria num direito limitado de
gozo, concedido a uma pessoa individualmente determinada:
consistiria pois numa manifestação da •servidão pessoal, e
como tal ultrapassaria o limiar do numerus clausus, pois
dissemos já que esta como figura geral tem carácter mera-
mente doutrinário (cfr. supra, n.ºs 39, II e 42, III).
Se as condições gerais que podem levar ao êxito dos
procedimentos cautelares se verificarem, não vemos que
seja válida qualquer objecção fundada na natureza da pro-
vidência pedida.
Pode perguntar-se por que se há-de proceder assim. Não
bastaria a intimação pessoal ao proprietário para que per-
mita a continuação da prática daqueles actos?
Os efeitos não seriam os mesmos. A intimação pessoal
só poderia por natureza opor-se àquele sujeito, não a qual-

363
quer outro a quem ele eventualm·ente transmitisse o direito
no decurso da acção. Ora o construtor pode sofrer um grande
prejuízo com a interrupção que isso viria trazer à sua acti-
vidade. Não se vê que este interesse não seja digno de tutela
cautelar.
Esta tutela não pode conseguir-se recorrendo a um dos
meios exemplificativamente previstos no art. 399.º - a proi-
bição ao proprietário de alienar o seu direito, no decurso
da acção?
Para que a hipótese da equivalência de resultados seja
sequer admissível, tem de se reconhecer à providência carác-
ter real, porque se fosse meramente pessoal não poderia
ser oposta a terceiros. Mas mesmo por este caminho viola-
ríamos outro princípio que domina os procedimentos cau-
telares - o de que a composição provisória dos interesses
se deve fazer com a maior vantagem para o requerente e o
menor sacrifício para a parte contrária.
Aqui, enquanto nada interessa ao requerente que o
prédio em causa permaneça no domínio do demandado, a
proibição de alienar pode trazer ao proprietário um pre-
juízo injustificado. Ao construtor só interessa que o seu
direito, provisório embora, goze de oponibilidade a tercei-
ros; e esta é dada (e só pode ser dada) pela atribuição de
natureza real. A admissão de providências com natureza
real representa assim simultâneamente o meio mais simples
e 0 menos gravoso de se conseguir que a tutela cautelar
desempenhe cabalmente a função a que se destina.

IV - Mas poderia insistir-se que ainda neste caso não


estaríamos perante outras providências cautelares inomina-
das, além das referidas na lei: mesmo a hipótese apresen-
tada caberia na previsão da autorização para a prática de
determinados actos, contida no art. 399.º do Código de Pro-
cesso Civil.
Assim é, dada a extrema latitude desta previsão: mas
não esqueçamos que as referências do art. 399.º são expres-
samente apresentadas como exemplificativas, e na verdade

364
não cobrem todas as hipóteses imagináveis. Para dar um
exemplo que nestas não caiba, basta pensar nos casos em
que a providência adequada é a intimação ao réu para que
pratique certo acto. Também nesses casos se podem confi-
gurar situações de natureza real.
Imaginemos que, litigando-se sobre a propriedade de
um pomar, o requerente demonstra que sofrerá um pre-
juízo grave e de difícil reparação, se não receber, mesmo
na pendência da acção, uma certa porção de frutos. O tri-
bunal pode impor à parte contrária a entrega desses frutos;
e pode fazê-lo de modo que essa vinculação não tenha carác-
ter meramente obrigacional, e antes revista carácter real.
A sua transitoriedade em nada prejudica, como vimos, que
a consideremos uma espécie de ónus real atípico.

139. Atipicidade das providências cautelares e «numerus


clausus»

1 -Algum princípio geral contrariará a admissão de


providências cautelares atípicas com natureza real, que
parece resultar das previsões específicas da lei?
Esta posição nunca foi, que saibamos, sustentada por
ninguém. Nenhuma das objecções que apresentarmos corres-
ponde pois a argumentos historicamente formulados; são
pensadas ou supostas por nós, como obstáculos a vencer
para firmar a conclusão de que nos aproximamos: a de que,
por providência cautelar, se podem criar direitos reais em
regime de numerus apertus.

II- Não poderá sem dúvida alegar-se que o juiz não é


livre de decretar quaisquer providências adequadas àquela
situação, pois só poderia decretar as que estão previstas na
ordem substantiva, e portanto não criaria inteiramente de
novo. As figuras inominadas estariam excluídas.
Semelhante limitação não se ajustaria aos fins da defesa
cautelar.
I
!
365
Com efeito, vimos logo de início que o que domina este
sector é a outorga ao juiz da liberdade de modelação do
conteúdo da providência que for adequada àquela situação.
Que corresponda ou não a figura prevista na lei, é algo de
inteiramente alheio às preocupações deste instituto, pelo
que pode ser considerado irrelevante.
~ certo que a doutrina estabeleceu uma limitação que
poderia desprevenidamen te confundir-se com a que acaba-
mos de criticar. Diz-se que as providências cautelares devem
ser susceptíveis de execução forçada ( 43 ), ou até que têm
de se ajustar a uma das figuras típicas de execução da lei
processual ( 44 ). Mas repare ..se, exige-se que seja típica a
forma de execução a que pode dar lugar a providência, e
não a providência em si. Esta pode ter qualquer conteúdo,
com a reserva de que esse conteúdo há-de ser ta1 que lhe
permita passar a barreira da exequibilidade.
Portanto, parece que encontramos uma larga liberdade
de modelação do conteúdo da providência cautelar.

III - Nesta base, dividiremos a demonstração subse-


quente em duas partes:

- o numerus clausus não impede que por providências


não previstas na lei se criem novos direitos reais;

- de qualquer modo, mesmo em relação às providên-


cias mencionadas no art. 399.º do Código de Processo
Civil, a admissão de uma possível natureza real basta
para afastar a aplicação do princípio do numerus
clausus, como demonstraremos no número seguinte.

Há-de haver providências cautelares inominadas com


natureza real. Isto resultou já de passos anteriores da nossa
investigação, e nomeadamente da verificação da sujeição a

( •:i) Redcnti, 95.


( H) Baur, Einstweilige, 28.

366
registo, e do consequente argumento a favor da natureza
real que esta traz consigo. Outras figuras, além do arresto
ou do arrolamento, são aqui implicitamente admitidas como
tendo carácter real.
A própria consagração legal do numerus clausus não
atinge esta posição. Como também vimos, este sector não
está sujeito ao art. 1306.º, 1., do Código Civil ( 45 ). Devemos
recordar as conclusões a que chegámos já a propósito do
art. 1306.º, e sobretudo, como verificámos pela última parte
do seu n.º 1., que a preocupação dominante deste era excluir
a criação pelas partes através de negócio jurídico. Esta preo-
cupação é aqui evidentemente satisfeita. Não são as partes,
não é quem requer a providência que cria o direito real;
quem o cria é o tribunal que a concede.

IV - E se percorrermos a constelação de preocupações


que, como vimos ( 46 ), está na origem do numerus clausus,
mais confirmada fica esta orientação.
Visava-se evitar a constituição de situações inconvenien-
tes no ponto de vista económico..social. Tal objectivo é atin-
gido neste caso, pois a constituição da situação é confiada
a uma entidade eminentemente qualificada e colocada super
partes. A transitoriedade das referidas situações faz aliás
perder relevo a estes receios, e permite maior maleabilidade
na modelação do conteúdo.
Visava. .se evitar a criação de ónus ou vinculações ocultas:
ora aqui existem as mesmas garantias de publicidade que
nos restantes casos, e nomeadamente há sempre a regista-
bilidade, como dissemos já e melhor demonstraremos no
número seguinte.

Note-se que o art. 1306.º nunca poderia restringir o art. 399.º


( 45 )
do Código de Processo Civil, até porque este último é um dos artigos
que foram alterados pelo Decreto-Lei n.º 47 690, de 11 de Maio de 1967
- posterior, portanto, à publicação do Código Civil.
(46) Supra, n.º 29, IV.

367
Visava-se, acessoriamente, dar clareza ao sistema dos
direitos sobre as coisas, facilitando o funcionamento do
registo. Aqui haverá uma certa perda de clareza, mas o
título privilegiado que é a sentença permite definir segu-
ramente as situações criadas; compreende-se por isso que,
sob a pressão de preocupações muito individualizadas, se
chegue a uma especialização da tutela, prescindindo da pre-
visão legal. E a técnica adoptada no nosso registo, como
veremos, permite que o sistema funcione sem quaisquer
dificuldades derivadas da natureza real destas providên-
cias ( 47 ).
Não relevando as preocupações que estão na origem
do art. 1306.º, não tem sentido procurar através dele, mesmo
por analogia, limitar os resultados a que se chega com o
art. 399.º do Código de Processo Civil.
Portanto, por este caminho encontramos realmente um
sector em que a criação de direitos reais está sujeita ao
princípio do numerus apertus. Também aqui, o juiz cria
uma nova situação jurídica real, sem atingir o sistema nor-
mativo. Passa a haver mais um direito real, além dos pre-
vistos na lei ( 4 s).

140. A repercussão no registo predial

1 - Esta atípicidade tem a sua repercussão no registo


predial.

(H) O art. 192.º, a), permite m·esmo que em certos casos o


registo da providência cautelar se faça por simples averbamento à
inscrição.
( "s) Quando muito, poderiamos chegar a uma posição diferen-
ciadora, análoga à que aventámos perante as providências exemplifi-
cadas no art. 399.º: as providências de que resultasse a afectação .da
livre disposição de bens poderiam ter carácter real; as outras, não.
Isto seria bastante, pois sempre implicaria o reconhecimento de que
através de providências cautelares, nem sequer exemplificativamente
referidas, se poderiam criar direitos reais.

368
Seria arbitrário excluir a registabilidade das providên-
cias cautelares nem sequer exemplificativamente referidas
na lei. Para isto teria de se ler o Código do Registo Predial
como se ele sujeitasse a registo somente «as providências
não especificadas que forem mencionadas no art. 399.º do
Código de Processo Civil». Mas as als. n) e o) do art. 2.0 , 1.,
falam indistintamente de «Outras providências», com intuito
claramente generalizador, de modo a abranger tudo o que,
com natureza real, resulte daqueles actos processuais. Os
arts. 179.º, q), 182.º, 1., n) e 192.º, a) do mesmo código man-
têm este acento.
Aliás, é a altura de sublinhar uma característica muito
curiosa desta sujeição a registo, que permite completar as
considerações atrás encetadas sobre o objecto do registo.

II- Dissemos então ( 49 ) que são típicos os direitos que


são objecto da publicidade registai, não os factos que são
objecto da inscrição. Mas dissemos também que esta regra
tem excepções, pois em certos casos indicam-se factos como
objecto do registo. Isto resulta do art. 3.º e das als. n) e o)
do art. 2.0 , 1., do Código do Registo Predial, justamente.
Quando se submetem a registo as acções ou decisões, nos
termos do art. 3.º, são factos que se têm em vista. l! certo
que ainda então há certos nexos com um numerus clausus
de direitos submetidos a registo; por exemplo, na al. a),
quando se diz que o fim das acções tem de ser uma vicis-
situde dos direitos referidos no artigo anterior. Mas há sem-
pre a especialidade de os factos acção e decisão serem pre-
vistos em conjunto, e não dispersamente, a propósito de
cada um dos direitos sobre imóveis que são objecto da
publicidade registai.
O mesmo se passa no caso das als. n) e o) do art. 2.0 , 1.
Começa por ise falar no penhor, penhora, arresto e arrola-
mento, portanto de situações jurídicas que são objccto da

(49) Supra, n.º 59, llll.

369
24
publkidaJC' registai; mas quando se acrescentam outros·actos
~ pro,·i~ndas que incidam sobre os créditos (al. n)) ou
4~ afc.'\:'te-m a livre disposição dos direitos (al. o)), enca-
ra-~ um ângulo muito diverso, pois o que é decisivo agora
~ os actos de qualquer natureza que provoquem uma
~ruação inerente a um imóvel, seja ela qual for.

III - i:. este um aspecto que desejamos sublinhar, por-


~ quadra à maravilha com uma atipicida-de das providên-
::is cautelares ( 50 ). Estas não podem ser referidas a pro-
M-:to de cada direito, porque isso não seria suficiente para
abranger as que criassem direitos reais inominados. Altera-se
e:J.'lâo a técnica: sujeitam-se a registo as providências, facto
jurídico, sem menção específica do direito real que elas vêm
:r.ar: isto permite abranger qualquer conteúdo.

141. A8 previsões do art. 899.º do C6digo de Processo


Civil nio são tipos

J · ·- há mais. Podemos imaginar um suposto inter·


Má\
;,~,-.,.;~/,, 14w~ hu~a <.:avalo de batalha das previsões do art. 399.º
~" '/Ai~J de Processo Civil e diga que elas representariam
, ~A 1!>~ 1Jirr,it<1• n•ais. 1sto bastaria para se continuar a
J,,, -,·.•·1,1•1 ;.,. ;ipJi, ahilldu<lc shuultun~a deste preceito e do
.,.,,_,,, ;,,~· J ?1'1 '' 1J11 Clu.li&lo Civil. O juiz scn1pre obedeceria ao
y 10 '.~"°'' ,,,, 11111111•111 •, da11s11s e: h.'rin pois de se limitar aos
•• ·JI'"" , '"':'' ª"'''" do url. ·'''~:· uu n outros esparsos na lei.

' / 1•· ,, -·· ,,,,.,,, t 11l111 l1h1 Nww~. 1.\.\, t'nquantu liga esta pre-
, . , . J: .• ,,,,,.,11k11• "'" , 1111h·lnh's ní\,, \':ii\X~ifk~ldas (arts. 3~.·
' I
· , , / '1''- "'' , ,._ t' 1111 • ·ti~11 e 1v11 \ ,, ,u, \lll<' it'St~\s, por sua própna
1 ~·, ,,. 1 ,,,,,, 11d•1 ut.11111 1" '''""'"h' hhlt•t\'1·mim\vd e insuscep-
; , •d, ., 1 l''"' ''""\"'"'
11111 ... , 111.11111 int('~:\S<.' o trat~~o
, 11·1: , ., •• , , . ll ,. l"'''"'"'\\~h d:\ prov1dbc1a
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I ,., , ,.,,i .. , I• 111 qlh' •h ,•Ih\ l.1 U'A~s. t\+.,.;),

i!rl
~ a altura de demonstrar que também esta argumen-
tação não serve; e que, mesmo que a criação de direitos
reais se limitasse às hipóteses mencionadas no art. 399.º,
ainda então haveria criação em regime de numerus apertus.
Porque aquelas previsões não revestem as características
necessárias para funcionar como novos elos da tipologia
dos direitos reais.

II - Talvez que, ao longo desta exposição sobre as pro-


vidências cautelares, já alguém se tenha sentido chocado ao
ver incluir, entre as providências cautelares não especifica-
das, as três modalidades de providências cautelares mencio-
nadas no art. 399.º: isto não significará uma especificação?
E não é contraditório falar em especificação de providên-
cias cautelares não especificadas?
A ser assim, a contradição residiria na lei, que sob a
epígrafe: «Providências cautelares não especificadas» per-
mite, «Se ao caso não convier nenhum dos procedimentos
regulados neste capítulo», que se requeiram as providên-
cias adequadas, nomeadamente ... (art. 399.º). Mas talvez
a contradição seja só verbal, e o esquema geral da tipici-
dade baste para esclarecer a situação.
Há uma tipologia de providências cautelares, que é exem-
plificativa. Pelo prisma dessa tipologia, não basta a mera
nominação por lei para que se possa dizer que encontramos
um novo tipo de providência cautelar. Como acontece em
muitos outros casos ( 51 ), o prisma da tipicidade impõe ainda
que as figuras previstas sejam reguladas por lei, como o
indicia o próprio art. 399.º do Código de Processo Civil ao
falar dos procedimentos regulados neste capítulo ... Por-
tanto, uma especificação como a do art. 399.º não basta
para a tipologia das providências cautelares.

(51) Supra, n.º 1 10 e 35.

371
III-Menos ainda basta para a tipologia dos direitos
reais. Para haver um tipo de direito real é necessário que
conste da lei a descrição fundamental de uma situação· a
que ·corresponda um regime real ( 52 ). Nem um nem outro
requisito são satisfeitos pelas previsões do art. 399.º.
No que respeita à descrição fundamental, vemos que
nem a autorização para a prática de determinados actos,
nem a intimação para que o réu se abstenha de certa con-
duta possuem a concretização suficiente para nos permitir
falar de um novo direito real. Basta pensar que os direitos
de gozo, e até quase todos os direitos de aquisição, envol-
vem autorização para a prática de determinados actos ...
Quanto à intimação para que o réu se abstenha de certa
conduta, é uma espécie de denominador comum dentro das
relações jurídicas reais (que resolvem, recorde-se, conflitos
de direitos reais); quase sempre sobre o titular da posição
passiva incide a proibição da prática de determinados actos.
Estamos assim muito longe de um tipo, com a consequente
especificação que ele envolve.
Na realidade, dessa especificação resultaram antes clas-
ses ( 53 ) de providências cautelares - reúnem-se em certos
grupos, consoante o conteúdo, as modalidades não especi-
ficadas de providências cautelares, sem que sequer a clas-
sificação tenha chegado ao fim ( 54 ).
Por outro lado, também não encontramos estabelecido
um regime real. Não o encontramos antes de mais porque
o regime real tem de ser atribuído pela lei a situações espe-
cíficas, e aqui só considerações genéricas nos permitem con-
cluir que as providências cautelares podem gerar situações
de natureza real. Não o encontramos ainda porque o Código
do Registo Predial trata em bloco essas situações, •sem

( :;2) Supra, n.º 35, III.


( :;3) Sobre especificação e classificação, cfr. supra, n.º 8, em
especial na divisão III.
( :; 4 ) Falta, por exemplo, como vimos, a modalidade de provi-
dência que consiste na imposição ao réu da prática de certo acto.

372
qualquer correspondência com a especificação operada pelo
art. 399.º do Código de Processo Civil; o que se compreende,
pois as figuras do art. 399.º podem ser também obrigacio-
nais. Isto é mais um argumento contra a sua consideração
como tipos de direitos reais.
Se a situação é assim clara, não vale a pena entrar na
anális·e da previsão da entrega dos bens a um fiel deposi-
tário, para saber se nesta hipótese há a concretização que
permita falar de um tipo de direito real.

IV - Em conclusão: mesmo a criação de direitos reais


dentro das modalidades exemplificativamente mencionadas
no art. 399.º do Código -de Processo Civil representa uma
criação de direitos reais inominados, pois aquelas previsões
não podem considerar-se tipos de direitos reais. Ainda que
nos restringíssemos à hipótese em que a criação de figuras
de natureza real não pode em qualquer caso ser negada
-a intimação ao réu de abstenção de certa conduta que
a.fecte a livre disposição das coisas - ainda então haveria
um sector em que a criação de direitos reais se faria em
regime de numerus apertus.
Temos pois a confirmação de que, ainda neste caso, da
actuação de entidades que não são atingidas pela imposi-
ção da tipicidade aos direitos reais, pode resultar a cons-
tituição de direitos reais inominados.

V - Para além disso, poderemos sintetizar o que este


capitulo nos revelou, confrontando a tipologia dos direitos
reais com a dos crimes.
Diz o art. S.º do Código Penal que nenhum facto se
pode julgar criminoso sem que uma lei anterior o qualifi-
que como tal. Adaptando essa fórmula, podere·mos dizer
simplesmente que só existem direitos reais nos casos fixa-
dos pela ordem jurídica?
Não podemos, pois temos de reconhecer que há aqui
uma restrição dirigida só aos particulares. ~ o que o
art. 1306.º quer significar, ao excluir as restrições resul-

373
twtes de ~gócio jurtdico, e não de sentença ou quaisquer
cL nltMtos da mesma ordem, pois o negócio jurídico é 0
imíco instrumento que os particulares poderiam utilizar.
A criação de direitos reais por entidades públicas escapa
naturalmente a esta previsão, e poderá fazer-se em regime
de numerus apertus -sempre que não haja nenhuma proibi-
ção específica.

374
CONCLUSÃO

Damos aqui por encerrada a nossa investigação. Resta-


-nos resumir, numa visão de conjunto, os resultados a que
chegámos, abstraindo da ordem da análise que no-los revelou.
O art. 1306.º, 1., do Código Civil actual expressamente
consagra a regra do numerus clausus dos direitos reais, que
no direito anterior vigorava já tàcitamente. De jure consti-
tuendo, a solução não é de aplaudir.
O art. 1306.º tem limites implícitos - temporais, locais,
pessoais, internacionais ... - como toda a norma jurídica.
O numerus clausus traduz-se na exigência de uma prévia
criação normativa dos direitos reais. As referências moder-
nas à tipicidade dos direitos reais querem atingir precisa-
mente o mesmo fenómeno.
Na verdade, quando correntemente se fala na tipicidade
de uma figura jurídica, quer-se significar que a figura se
exprime numa tipologia, e que essa tipologia é taxativa.
Assim acontece com o direito real: a ordem jurídica prevê
vários modelos de direitos reais, que preenchem incornplc-
tamente o conceito de direito real; e nenhuns outros são
admitidos.
Esta tipicidade caracteriza-se pela origem, pela natu-
reza, pelos destinatários e pelo objecto.
Quanto à origem temos uma tipologia exclusivamente
normativa. A norma que prevê um direito real não necessita
aliás de ser uma norma legal. De toda a fonte de direito,
como o costume, pode resultar a modelação de ·um novo
tipo. O tipo de direito real consiste na descriçãô essencial
de uma situação a que é outorgado um regime real. ..

375
Pela sua natureza, a tipologia dos direitos reais, porque
taxativa, implica a exclusão da analogia na determinação
dos tipos admitidos. Consequentemente, a autonomia pri-
vada está afastada da criação de novos direitos reais (se
excluirmos a possibilidade teórica da sua actuação na inte-
gração ·de lacunas rebeldes à analogia), mesmo em sectores
do direito dos particulares cuja regulan1entação fundamen-
tal se não encontra no Código Civil.
Não obstante, os tipos de direitos reais são tipos abertos
- os direitos reais abrangem um conteúdo acidental juri-
dicamente relevante, e a autonomia privada pode exprimir-se
na modificação desse conteúdo.
Os destinatários são os particulares, como o próprio
art. 1306.º, 1., evidencia, ao falar em restrição resultante de
negócio jurídico quando quer excluir a constituição de novos
direitos reais. A imposição da tipicidade taxativa não atinge
pois as entidades públicas, quando actuam como tal. Fica
assim aberta a possibilidade ·de, no domínio de actuação
específica dessas entidades, vigorar o numerus apertus na
criação concreta de direitos reais. Assim se passará, nomea-
damente, quando o tribunal impuser providências cautela-
res não especificadas, que podem originar direitos reais
atípicos.
O objecto desta tipicidade são os direitos reais, e só os
direitos reais, se bem que a lei fale equivocamente em res-
trições e parcelas da propriedade. Por natureza, ficam abran-
gidos os direitos reais complexos, pois estes originam ainda
novos tipos de direitos reais. Ficam de fora figuras afins
mas de natureza diversa, nomeadamente:

- os factos constitutivos de direitos reais;


- outros direitos «absolutos» (para usar a terminolo-
gia corrente), diversos dos direitos reais.

Da taxatividade d?s direitos reais nenhuma presunção


resulta quanto ao caracter taxativo das tipologias das figu-
ras afins.

376
Sendo assim, podemos conceber uma fórmu\a muito s\m-
ples para exprimir esta tipicidade normativa dos c\ire\\os
reais, que só não abrange o dominio do chamado d\-re\\o
público: não pode haver um direito real, como situação
jurídica concreta, se não existir norma que o preveja.. Ou
dito positivamente, e com referência ex-pressa à <:.atecior\a
«tipo» de direito real (que sabemos 1á (\Ue é aberto): ca.be
à norma indicar os tipos de direitos reais que são admitidos,
fNDICE BIBLIOGRAFICO

Contém as indicações bibliográfi--


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