Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2 2013
Michael Cunningham
Found in Translation
EDIÇÃO E ORGANIZAÇÃO
Richard Costa
DESIGN E ORGANIZAÇÃO
César Ganimi Machado
REVISÃO
Tiago Kroich
TRADUTORES
César Ganimi Machado
Douglas Silva e João Silva
Fabiana Esse
Fernando Silva e Silva
Flávia Maria Nascimento
George Ayres Mousinho
Gustavo H. S. S. Sartin
Hugo Crema
Pedro Sette-Câmara
Richard Costa
Stephanie C. L. Fernandes
Tiago Kroich
M
Revista Trocados
v.1, n.2 2013
ISSN 2316-2740
EDITORIAL
Fotofobia 74
Juan José Saer
Tradução de Hugo Crema
Epitáfios 83
Colette
Tradução de Flávia Maria do Nascimento
A Maldição de Sarnath 95
H.P. Lovecraft
Tradução de George Ayres Mousinho
O AQUÁRIO
título original:
THE AQUARIUM
tradução:
STEPHANIE C. L. FERNANDES
Aleksandar Hemon nasceu em Sarajevo, na antiga Iugoslávia, em 1964. Durante uma visita
a Chicago, em 1992, sua cidade natal foi sitiada e ele não pôde voltar para casa. Radicado
nos Estados Unidos desde então, Hemon publicou quatro livros que combinam suas
histórias de exílio, humor e ficção — as coletâneas de contos E o Bruno? e Amor e
Obstáculos; e os romances As Fantasias de Pronek e O Projeto Lazarus, todos escritos em
inglês.
“O Aquário” é um ensaio sobre sua filha Isabel que, ainda bebê, foi diagnosticada com uma
doença extremamente rara. A partir da experiência da família — incluindo o amigo
imaginário de sua filha mais velha, de três anos — Hemon entende que criar e contar
histórias é uma ferramenta humana básica para a sobrevivência. Foi publicado pela
primeira vez no periódico The New Yorker em 2011.
N
o dia 15 de julho de 2010, minha esposa Teri e eu levamos nossa
filha mais nova, Isabel, ao médico para uma consulta geral. Ela
tinha nove meses e parecia perfeitamente saudável. Seus pri-
meiros dentes haviam nascido e ela já comia com a gente na mesa de jantar,
balbuciando e se empanturrando de cereal. Era uma criança alegre e animada,
gostava de pessoas, coisa que, corria a piada, ela não herdara do pai rabugento.
Eu e a Teri sempre íamos juntos às consultas médicas das nossas filhas e,
dessa vez, também levamos a Ella, a irmã mais velha da Isabel, de quase três
anos. A enfermeira do consultório do Dr. Armand Gonzales mediu a tempera-
tura, o peso, a altura e a circunferência da cabeça da Isabel, e a Ella ficou feliz
por não ter que passar pelo mesmo procedimento. O Dr. G, como o chamáva-
mos, ouviu a respiração da Isabel e examinou seus olhos e ouvidos. No compu-
tador, abriu o quadro de desenvolvimento dela: sua altura estava dentro do es-
perado; ela estava um pouco abaixo do peso ideal. Tudo parecia bem, exceto
pela circunferência de sua cabeça, que, comparada à última medição, estava
duas medidas acima do normal. O Dr. G ficou preocupado. Relutante em man-
dar Isabel para uma ressonância magnética, marcou um exame de ultrassom
para o dia seguinte.
De volta em casa, naquela noite, Isabel estava agitada e irritada; custou a
adormecer e acordou a noite toda. Se não tivéssemos ido ao médico, teríamos
presumido que ela só estava muito cansada, mas agora tínhamos um quadro
interpretativo diferente, pautado pelo medo. Mais tarde, naque noite, tirei a
8
O A Q UÁ R I O
Isabel do nosso quarto (ela sempre dormia com a gente) para acalmá-la. Na co-
zinha, cantei para ela meu repertório inteiro de canções de ninar: “You Are My
Sunshine”, “Brilha, Brilha, Estrelhinha” e uma obra de Mozart que aprendi
quando criança, cujas letras em bosniano lembrei por milagre. Cantar as três
canções de ninar num incansável loop geralmente funcionava, mas dessa vez
demorou bastante até que ela encostasse sua cabeça no meu peito e se aquietas-
se. Quando ela fez isso, parecia que estava me confortando, dizendo que tudo
ficaria bem. Preocupado do jeito que estava, imaginei um futuro em que um dia
me lembraria desse momento e contaria aos outros como a Isabel é que tinha
me acalmado. Minha filha, eu diria, cuidou de mim, e ela só tinha nove meses.
Na manhã seguinte, Isabel passou por um exame ultrassom, chorando nos
braços de Teri durante o procedimento. Pouco depois de chegarmos em casa, o
Dr. G. telefonou para nos contar que a Isabel estava com hidrocefalia e que pre-
cisávamos ir a um pronto-socorro imediatamente — era uma situação de vida
ou morte.
No pronto-socorro do Hospital Memorial Infantil de Chicago, deixaram a
sala de exames às escuras, pois Isabel estava prestes a passar por uma tomogra-
fia e os médicos esperavam que ela adormecesse para não ter que drogá-la. Mas
ela não podia comer, porque havia a possibilidade de uma ressonância magné-
tica posterior, e ficou chorando de fome. Um residente deu um cata-vento co-
lorido a ela e soprou para distraí-la. Ela finalmente adormeceu. Enquanto a
tomografia estava em andamento, nós esperávamos algo se revelar, com muito
medo de imaginar o que poderia ser.
O Dr. Tadanori Tomita, chefe da neurocirurgia pediátrica, leu as tomogra-
fias para nós: os ventrículos do cérebro da Isabel estavam dilatados, cheios de
fluido. Algo estava bloqueando os canais de drenagem, disse o Dr. Tomita, pos-
sivelmente “um cisto”. Uma ressonância magnética era urgente.
Teri segurou Isabel em seus braços enquanto davam as anestesias. Depois,
nós a entregamos aos enfermeiros para uma ressonância de uma hora de dura-
ção. O refeitório, no porão do hospital, era o lugar mais triste do mundo, com
9
ALEKSANDAR HEMON
suas sinistras luzes neon e mesas cinzas e o mal-estar difuso daqueles que ha-
viam deixado crianças em sofrimento para comer um queijo quente. Não ousa-
mos especular sobre os resultados da ressonância magnética; estávamos anco-
rados no momento, que, por mais aterrorizante que fosse, ainda não havia se
estendido a um futuro.
Chamados pela imagiologia médica, caminhamos até a sala do Dr. Tomita,
pelo corredor excessivamente iluminado. “Creio que”, disse ele, “a Isabel tem
um tumor.” Ele nos mostrou as imagens da ressonância em seu computador:
bem no centro do cérebro da Isabel, alojado entre o cerebelo, o tronco cerebral
e o hipotálamo, havia um negócio redondo. Era do tamanho de uma bola de
golfe, segundo o Dr. Tomita , mas eu nunca havia me interessado por golfe e não
conseguia visualizar o que ele queria dizer. Ele removeria o tumor e nós desco-
briríamos de que tipo era só depois do relatório da patologia. “Mas parece um
teratoide”, disse ele. Eu também não entendia a palavra “teratoide” — estava
além da minha experiência, pertencendo ao domínio do inimaginável e incom-
preensível, o domínio ao qual Dr. Tomita estava agora nos conduzindo.
Isabel estava dormindo na sala de recuperação, sem se mexer, inocente. Eu
e a Teri beijamos suas mãos e sua testa e choramos ao longo do momento que
dividia nossa vida entre o antes e o depois. O antes estava agora e para sempre
encerrado, enquanto o depois estava se espandindo, como uma estrelinha ex-
plosiva num universo negro de dor.
Ainda inseguro quanto à palavra que o Dr. Tomida havia pronunciado,
pesquisei tumores cerebrais na Internet e encontrei uma imagem de um tumor
que era quase idêntico ao da Isabel. Seu nome completo era, eu li, “teratoide
atípico/tumor rabdoide” (ATRT). Era altamente maligno e extremamente raro,
ocorrendo em apenas três entre um milhão de crianças e representando em
torno de três por cento de casos de câncer pediátrico no sistema nervoso cen-
tral. A taxa de sobrevivência para crianças com menos de três anos era menor
que dez por cento. Havia estatísticas mais desencorajantes ainda disponíveis
para eu ponderar sobre, mas me afastei da tela, decidindo, em vez disso, conver-
10
O A Q UÁ R I O
sar com os médicos da Isabel e confiar somente neles; nunca mais eu pesquisa-
ria as condições dela na Internet. Eu já entendia que seria necessário adminis-
trar nosso conhecimento e nossa imaginação se não quiséssemos perder a
cabeça.
No sábado, 17 de julho, o Dr. Tomita e sua equipe de neurocirurgiões im-
plantaram um reservatório Ommaya na cabeça da Isabel, para ajudar a drenar e
alivar a pressão do fluido cerebroespinhal acumulado. Quando a Isabel retor-
nou a seu quarto no hospital, no andar da neurocirurgia, ela chutou seu cober-
tor, como costumava fazer; tomamos isso como um sinal encorajante, um pri-
meiro passo de esperança numa longa jornada. Na segunda-feira, ela foi
liberada do hospital para esperar, em casa, pela cirurgia que removeria o tumor,
que estava agendada para o fim da semana. Os pais da Teri estavam na cidade,
pois a irmã dela havia dado luz ao segundo filho no dia da consulta da Isabel —
muito preocupados com a Isabel, mal demos atenção ao novo membro da famí-
lia — e a Ella passou o fim de semana com os avós, sem notar direito o furor da
nossa ausência. A tarde de terça-feira estava ensolarada e nós saímos para uma
caminhada, a Isabel amarrada ao peito de Teri. Naquela noite, corremos para o
pronto-socorro, porque a Isabel teve febre; era provável que estivesse com uma
infeção, o que não é incomum depois da inserção de um objeto estranho — nes-
se caso, o Ommaya — na cabeça de uma criança.
Ela tomou antibióticos e passou por uma ressonância ou duas; o Ommaya
foi removido. Na tarde de quarta-feira, deixei o hospital e voltei para casa para
ficar com a Ella, já que tínhamos prometido levá-la à feira do nosso bairro. Era
essencial, no meio da catástrofe, manter nossas promessas. Eu e a Ella compra-
mos mirtilos e pêssegos; no caminho de volta para casa, paramos na nossa loja
de massas favorita e levamos um cannoli de primeira. Conversei com a Ella
sobre Isabel estar doente, sobre o tumor, e contei que ela teria que ficar com a
vovó naquela noite. Ela não reclamou nem chorou; ela entendeu, como qual-
quer criança de três anos poderia, a dificuldade da nossa situação.
Quando eu estava caminhando até o carro, cannoli em mãos, para voltar
11
ALEKSANDAR HEMON
ao hospital, a Teri ligou. O tumor da Isabel havia causado uma hemorragia; pre-
cisavam fazer uma cirurgia de emergência. O Dr. Tomita estava esperando para
conversar comigo antes de entrar na sala de operação. Levei em torno de quin-
ze minutos para chegar ao hospital, através de um trânsito que existia num es-
paço-tempo completamente diferente, onde as pessoas não se apressavam para
atravessar a rua, nenhuma criança corria perigo de vida e tudo se afastava vaga-
rosamente do desastre.
No quarto do hospital, caixa de cannoli ainda em mãos, me deparei com a
Teri em prantos sobre a Isabel, que estava mortalmente pálida. O Dr. Tomita
estava lá, as imagens da hemorragia da nossa filha já abertas na tela. Aparente-
mente, quando o fluido foi drenado, o tumor se expandiu para o espaço vago e
suas veias sanguíneas começaram a estourar. Remoção imediata do tumor era a
única esperança, mas havia um risco distinto da Isabel sangrar até morrer. Uma
criança da idade dela tem pouco mais de meio litro de sangue no corpo, Dr.
Tomita nos contou, e talvez a transfusão contínua não bastasse.
Antes que acompanhássemos a Isabel até o pré-operatório, coloquei o can-
noli na geladeira que havia no quarto dela. A lucidez egoísta desse ato gerou
uma sensação imediata de culpa. Só fui entender mais tarde que aquele ato ab-
surdo estava relacionado a uma forma desesperada de esperança: o cannoli po-
deria ser necessário para nossa sobrevivência futura.
A expectativa era de que a cirurgia durasse entre quatro e seis horas; o as-
sistente do Dr. Tomita nos manteria informados. Beijamos a testa da Isabel, tão
pálida quanto um pergaminho, e assistimos a uma gangue de estranhos masca-
rados conduzi-la ao desconhecido. Eu e a Teri retornamos ao quarto da Isabel
para aguardar. Nós nos alternamos entre choro e silêncio. Dividimos um pouco
do cannoli para nos mantermos firmes — por dias, mal comemos ou dormimos.
As luzes do quarto eram fracas; estávamos numa cama, atrás de uma cortina e,
por algum motivo, ninguém nos incomodou. Estávamos longe do mundo de
feiras e mirtilos, onde crianças nasciam e viviam e avós colocavam netas para
dormir. Nunca me senti tão próximo de um ser humano como me senti da mi-
12
O A Q UÁ R I O
13
ALEKSANDAR HEMON
14
O A Q UÁ R I O
15
ALEKSANDAR HEMON
vras, identificávamos histórias sobre um irmão, que às vezes era um ano mais
velho, às vezes estava no colegial, e viajava ocasionalmente, por algum motivo
obscuro, para Seattle ou Califórna, retornando a Chicago apenas para protago-
nizar mais um monólogo aventureiro da Ella.
Não é incomum, claro, que crianças da idade da Ella tenham amigos ou
irmãos imaginários. A criação de personagens está relacionada, acredito, à ex-
plosão de habilidades linguísticas que ocorre entre dois e quatro anos de idade,
quando a criança produz um excesso de linguagem e não tem experiência o
bastante para corresponder. Ela tem que construir narrativas imaginárias para
experimentar as palavras que de repente possui. A Ella agora conhecia a palavra
“Califórnia”, por exemplo, mas não tinha experiência alguma relacionada a ela;
nem conseguia conceitualizá-la quanto a seu aspecto abstrato — sua californie-
dade. Portanto, seu irmão imaginário teve que ser posicionado no Estado Enso-
larado, o que permitia com que a Ella falasse à vontade como se conhecesse a
Califórnia. As palavras exigiam a história.
Ao mesmo tempo, a detonação de linguagem nessa idade cria uma distin-
ção entre exterioridade e interioridade: a interioridade da criança agora pode
ser expressa e, portanto, externalizada; a palavra dobra. A Ella agora podia falar
sobre o que era aqui e o que era outro lugar; a linguagem permitiu com que aqui
e outro lugar fossem contínuos e simultâneos. Uma vez, durante o jantar, per-
guntei à Ella o que o irmão dela estava fazendo naquele exato momento. Ele
estava no quarto dela, ela respondeu assertiva, fazendo birra.
No começo, o irmão não tinha nome. Quando perguntavam o nome dele,
Ella respondia “Gugu Gagá”, que era o som sem sentido que o Malcolm, seu
primo favorito, de cinco anos, fazia quando não sabia a palavra para algo. Já que
Charles Mingus é praticamente uma divindidade na nossa casa, sugerimos à
Ella o nome Mingus, e Mingus seu irmão se tornou. Pouco tempo depois, o
Malcolm deu à Ella um boneco inflável de um alien espacial, que ela logo elegeu
para incorporar o Mingus, um personagem existencialmente escorregadio.
Embora a Ella brincasse com frequência com o irmão inflado, a presença física
16
O A Q UÁ R I O
do alien não era sempre necessária para que ela emitisse ordens pseudopater-
nais a Mingus ou contasse uma história sobre as fugas dele. Enquanto nosso
mundo estava se reduzindo ao tamanho claustrofóbico de um terror incessante,
o de Ella se expandia.
Um tumor rabdoide teratoide típico é tão raro, que há poucos protocolos
de quimioterapia criados especificamente para ele. Muitos dos protocolos dis-
poníveis vêm de tratamentos para meduloblastomas e outros tumores cere-
brais, modificados, com maior toxicidade para combater a malignidade perver-
sa do ATRT. Alguns desses protocolos envolvem um tratamento focado em
radiação, mas isso seria prejudicial ao desenvolvimento de uma criança da ida-
de da Isabel. O protocolo que os oncologistas da Isabel decidiram usar consistia
em seis ciclos de quimioterapia de toxicidade extremamente alta, sendo o últi-
mo o mais intenso. Tão intenso, de fato, que as células sanguíneas imaturas da
Isabel, extraídas antes, teriam de ser reinjetadas após esse ciclo, num processo
chamado recuperação de células-tronco, para ajudar sua medula óssea danifi-
cada a se recuperar.
Ao longo da quimioterapia, ela também deveria receber transfusões de
plaquetas e glóbulos vermelhos, ao passo que, toda vez, seus glóbulos brancos
teriam de alcançar sozinhos os níveis normais. Seu sistema imunológico seria
temporariamente aniquilado e, assim que se recuperasse, outro ciclo de quimo-
terapia começaria. Por conta das suas extensas cirurgias cerebrais, a Isabel não
conseguiria mais sentar ou ficar de pé e teria de ser submetida a terapia física e
terapia ocupacional entre as fases da quimio. Em algum momento do futuro
incerto, deram a entender, ela talvez pudesse retornar ao estágio de crescimen-
to esperado, de acordo com as crianças da sua idade.
Quando o primeiro ciclo de quimioterapia começou, a Isabel tinha dez
meses de idade e pesava apenas sete quilos. Nos seus dias bons, ela sorria como
uma heroína, mais do que qualquer outra criança que conheci. Ainda que fos-
sem poucos, aqueles dias nos permitiam projetar algum tipo de futuro para a
Isabel e nossa família: agendamos as terapias; comunicamos nossos amigos e
17
ALEKSANDAR HEMON
familiares quais dias eram bons para nos visitar; marcamos no calendário os
eventos das próximas semanas. Mas o futuro era tão precário quanto à saúde da
Isabel, estendendo-se apenas até o próximo passo razoavelmente alcançável: o
fim do ciclo da quimio, a recuperação da contagem dos glóbulos brancos. Eu
me impedi de imaginar qualquer coisa além disso. Se eu me imaginava seguran-
do a mãozinha dela enquanto ela morria, eu apagava a visão, muitas vezes as-
sustando a Teri ao falar alto comigo mesmo, “Não! Não! Não! Não!”. Eu bloque-
ava pensamentos sobre o outro resultado também — o sucesso da sobrevivência
dela — porque um tempo atrás passei a acreditar que o que eu queria que acon-
tecesse não aconteceria, precisamente porque eu queria que acontecesse. De-
senvolvi, portanto, uma estratégia mental que consistia em eliminar qualquer
anseio por bons resultados, como se o ato de desejar me expusesse às forças
impiedosas que movimentam o universo e causasse o exato oposto do que eu
esperava. Eu não ousava pensar em nada a não ser a vida presente da Isabel,
tortuosa, mas linda.
Um amigo meu, bem-intencionado, telefonou logo após o início do pri-
meiro ciclo de quimio da Isabel e a primeira coisa que ele perguntou foi “Então
as coisas se ajeitaram numa espécie de rotina?” A quimioterapia da Isabel, de
fato, oferecia um padrão aparentemente previsível. Os ciclos de quimio conti-
nham uma estrutura repetitiva inerente. Os remédios eram administrados na
mesma ordem e eram seguidos pelas mesmas reações — vômito, perda de ape-
tite, colapso do sistema imunológico — seguidas de NP intravenosa (nutrição
parenteral, dada a pacientes que não são capazes de comer), remédios anti-náu-
sea, antifúngicos e antibióticos, administrados em intervalos regulares. Depois,
havia as transfusões, as visitas ao pronto-socorro por conta da febre, a recupe-
ração gradual medida por contagens crescentes de células no sangue e alguns
dias tranquilos em casa, antes de começar o próximo ciclo.
Se a Isabel e a Teri, que raramente saía de perto dela, estavam no hospital
para a quimio, eu passava a noite em casa com a Ella, deixava ela na escola no
dia seguinte, depois levava um café-da-manhã para a Teri e, enquanto ela toma-
18
O A Q UÁ R I O
19
ALEKSANDAR HEMON
cias compreensíveis. Quando as pessoas que não sabiam sobre a doença da Isa-
bel me perguntavam quais eram as novidades e eu contava para elas, eu
testemunhava como rapidamente se retiravam para o horizonte distante de
suas vidas, onde coisas completamente diferentes importavam. Depois que
contei a meu contador que a Isabel estava doente, em estado grave, ele disse,
“Mas você está bem e isso é o mais importante!” Para seguir navegando calma-
mente, o mundo dependia de lugares-comuns e clichês que não tinham cone-
xão lógica nem conceitual com a nossa experiência.
Era difícil conversar com os partidários do “vai ficar tudo bem” e ainda
mais difícil escutá-los. Eram gentis e ofereciam apoio, e eu e a Teri suportamos
suas expressões de solidariedade sem ressentimentos, pois eles simplesmente
não sabiam o que mais dizer. Protegiam-se do que nós estávamos enfrentando
ao se limitar a um domínio gerenciável de linguagem batida e vazia. Mas nós
nos sentíamos bem mais confortáveis com pessoas que eram sábias o suficiente
para não esboçar apoio verbal, e nossos amigos mais próximos sabiam disso.
Preferíamos falar com o Dr. Lulla ou o Dr. Fangusaro, que podiam nos ajudar a
entender coisas que importavam, a ouvir um “aguenta firme.” (Que eu respon-
dia com “Não há onde segurar firme.”) E nos mantínhamos longe de qualquer
um que imaginávamos que pudesse nos oferecer o consolo daquele lugar co-
mum supremo: Deus. O capelão do hospital estava proibido de se aproximar de
nós.
Um dos clichês mais comuns que escutávamos era que “palavras falham.”
Mas palavras não estavam falhando comigo e com a Teri, nem um pouco. Não
era verdade que não havia como descrever nossa experiência. Eu e a Teri usu-
fruíamos de bastante linguagem para conversar sobre o horror do que estava
acontecendo, e nós conversávamos. As palavras do Dr. Fangusaro e do Dr. Lulla,
sempre dolorosamente pertinentes, tampouco falhavam. Se havia um problema
de comunicação, era que havia palavras demais e eram pesadas demais e espe-
cíficas demais para ser inflingidas aos outros. (Os remédios da Isabel, por exem-
plo: vincristina, metotrexato, etopósido, ciclofosfamida e cisplatina — criaturas
20
O A Q UÁ R I O
21
ALEKSANDAR HEMON
irmã, então Mingus trazia algum conforto nesse sentido também. Ela ansiava
por uma família unida novamente, a razão talvez por Mingus, um dia, adquirir
seus próprios pais e se mudar com eles para a rua ao lado, para então voltar no
dia seguinte. Para externalizar seus sentimentos complicados, Ella os atribuía a
Mingus, que então atuava de acordo.
Um dia, no café-da-manhã, enquanto Ella comia seu mingau de aveia e
divagava sobre seu irmão, reconheci, num instante de humildade, que ela estava
fazendo exatamente o que eu vinha fazendo como escritor ao longo dos anos:
os personagens ficcionais dos meus livros me permitiam entender o que pare-
cia difícil de entender (o que, até agora, tem sido praticamente tudo). Tal como
a Ella, eu me via cercado por um excesso de palavras, cuja riqueza excedia os
limites patéticos da minha própria biografia. Eu precisava de um espaço narra-
tivo onde pudesse me estender; precisava de mais vidas. Também precisei de
outros pais e de alguém que não eu mesmo para quem transferir meus chiliques
metafísicos. Cozinhei aqueles avatares na sopa do meu eu mutável, mas eles não
eram eu — eles faziam o que eu não era capaz de fazer. Ao ouvir o desenrolar
furioso e sem-fim dos contos da Ella, entendi que a necessidade de contar his-
tórias estava profundamente enraizada nas nossas mentes, emaranhada nos
mecanismos que geram e absorvem linguagem, indissociável. A imaginação
narrativa — portanto, a ficção — é uma ferramenta evolutiva básica de sobrevi-
vência. Processamos o mundo ao contar histórias e produzimos conhecimento
humano por meio do nosso comprometimento com eus imaginários.
Qualquer que tenha sido o conhecimento que adquiri na minha carreira
como escritor de ficção, não tinha valor nenhum dentro do nosso aquário de
ATRT, no entanto. Diferente da Ella, não fui capaz de construir uma história
que me ajudasse a compreender o que estava acontecendo. A doença da Isabel
ultrapassou qualquer forma de envolvimento imaginativo, da minha parte. Eu
só me importava com a firme realidade da respiração dela contra o meu peito,
a concretude dela caindo no sono enquanto eu cantava minhas três canções de
ninar. Não queria me estender para direção alguma a não ser a dela.
22
O A Q UÁ R I O
23
ALEKSANDAR HEMON
24
O A Q UÁ R I O
25
ALEKSANDAR HEMON
26
O A Q UÁ R I O
Mingus segue sério quanto à sua existência alternativa. Ele mora na rua ao
lado de novo, com seus pais e um número variável de irmãos, mas passa bastan-
te tempo com a gente. Tem seus próprios filhos agora — três meninos, dos quais
um, em dado momento, se chamava Andy. Quando esquiamos, o Mingus prefe-
re snowboard. Quando passamos o Natal em Londres, o Mingus passa em Ne-
braska. Ele joga damas (“lamas”, no dialeto da Ella) muito bem, parece. Também
é um bom mágico. Com sua varinha mágica, a Ella conta, ele consegue fazer a
Isabel reaparecer.
27
ANANDA KENTISH COOMARASWAMY
tradução:
PEDRO SETTE-CÂMARA
Ananda Kentish Coomaraswamy veio de uma importante família do Sri Lanka. Seu pai,
Mutu Coomaraswamy Mudaliar, foi o primeiro asiático sagrado cavaleiro pela monarquia
britânica e o primeiro hindu a advogar na Inglaterra. Em 1876, Sir Mutu casou-se com
Elizabeth Clay Beeby, uma inglesa. Seu único filho foi Ananda, nascido no Sri Lanka em
22 de agosto de 1877.
Em 1917 Coomaraswamy foi para os EUA a fim de tornar-se curador de arte indiana do
Museu de Belas Artes de Boston, cargo que manteve até morrer. Ali reuniu uma das
maiores coleções de arte indiana fora da Índia.
Seus últimos anos foram extremamente produtivos. Entre 1917 e 1943, publicou 341 livros
e artigos e 40 resenhas de livros. Também deu muitas conferências e manteve ampla
correspondência.
S
ão bem conhecidas as duas escolas contemporâneas de pensamento
a respeito da arte. De um lado, uma pequenina “elite” distingue as
“belas” artes da arte como produto de mãos habilidosas, valorizan-
do-as muito como autorrevelação ou auto-expressão do artista; essa elite, de
modo coerente, fundamenta seus ensinamentos de estética no estilo, e faz da
chamada “apreciação artística” uma questão de maneirismos e não de investiga-
ção do conteúdo ou da verdadeira intenção da obra. Assim são nossos professo-
res de Estética e de História da Arte, que se regozijam com a ininteligibilidade
da arte ao mesmo tempo em que a explicam psicologicamente, substituindo o
estudo do homem pelo estudo da arte do homem; são nossos líderes de cegos,
alegremente seguidos pela maioria dos artistas modernos, que naturalmente
ficam lisonjeados com a importância atribuída ao gênio pessoal.
De outro lado, temos a vasta multidão de homens comuns que não estão
realmente interessados em personalidades artísticas, e para os quais a arte como
acima definida é antes uma peculiaridade da vida do que uma sua necessidade.
De fato, eles não têm o que fazer com a arte.
Acima dessas duas, temos uma visão normal mas esquecida da arte, que
afirma que arte é fazer bem o que quer que precise ser feito ou produzido, seja
uma estátua, um automóvel, ou um jardim. No mundo ocidental, essa é especi-
ficamente a doutrina católica da arte; dessa doutrina se segue uma conclusão
natural, nas palavras de São Tomás de Aquino: “Não pode haver bom uso sem
arte.” É bastante óbvio que, se as coisas de que precisamos fazer uso – seja esse
uso intelectual ou físico; ou, em condições normais, ambos simultaneamente –
30
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?
não forem produzidas da maneira devida, elas não podem ser apreciadas, que-
rendo dizer com “apreciadas” algo mais do que simplesmente “gostadas”. A co-
mida malfeita, por exemplo, não nos apetecerá; do mesmo modo, exposições
sentimentais ou autobiográficas enfraquecem o espírito daqueles que as fre-
quentam. O patrono saudável está tão interessado na personalidade do artista
quanto na vida privada de seu alfaiate: tudo que ele requer de ambos é que do-
minem suas artes.
Esta sequência de conferências sobre arte é dirigida ao segundo tipo de
homem definido acima, isto é, ao homem simples e prático que não tem utilida-
de para a arte tal como explicada pelos psicólogos e praticada pela maior parte
dos artistas contemporâneos, especialmente pintores. O homem comum não
tem o que fazer com a arte, a menos que ele saiba de que ela trata, ou para que
serve. E até aí ele está inteiramente certo; se a obra não é sobre nada, nem serve
para nada, ela não tem nenhuma utilidade. Além disso, a menos que a obra trate
de algo que valha a pena – que valha mais a pena, por exemplo, do que a precio-
sa personalidade do artista –, algo importante para o patrono e consumidor e
também para o artista e produtor, ela não tem utilidade real, não passando de
um artigo de luxo ou de mero ornamento. Nessas condições, a arte pode ser
considerada por um homem religioso uma reles vaidade; por um homem práti-
co, um supérfluo caro; e, pelo ideólogo de classe, parte da grande fantasia bur-
guesa. Existem portanto dois pontos de vista opostos, um deles dizendo que
não pode haver bom uso sem arte, e, o outro, que a arte é um supérfluo. Obser-
vemos, porém, que essas afirmações contrárias se referem a coisas bem diferen-
tes, que não são as mesmas só por terem sido chamadas de “arte”. Adotemos
agora a visão historicamente normal e ortodoxamente religiosa de que, assim
como a ética é “a maneira correta de agir”, a arte é “fazer bem o que quer que
precise ser feito”, ou simplesmente “o modo correto de fazer as coisas”; e refe-
rindo-nos ainda àqueles para quem as artes da personalidade são supérfluas,
perguntemo-nos se a arte é ou não uma necessidade.
Uma necessidade é algo de que não podemos prescindir, qualquer que seja
31
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y
o preço. Não podemos entrar em questões de preço aqui, exceto para dizer que
a arte não precisa, ou não deveria precisar ser cara, exceto na medida em que
materiais custosos sejam empregados. É neste momento que surge a questão
crucial da produção voltada para o uso versus a produção voltada para o lucro.
É porque a ideia de produção voltada para o lucro está ligada à sociologia in-
dustrial correntemente aceita que as coisas em geral não são bem-feitas e por-
tanto também não são belas. É do interesse do produtor produzir coisas de que
gostemos, ou que possamos ser induzidos a gostar, independentemente de elas
nos servirem ou não; como os artistas modernos, o produtor está expressando
a si mesmo, e servindo às nossas necessidades somente na medida em que isso
é necessário para que ele consiga vender alguma coisa. Os fabricantes e demais
artistas recorrem à propaganda; a arte é bastante propagandeada pelos “museus
de arte moderna” e pelos marchands; e artista e produtor determinam o preço de
suas peças de acordo com o interesse do público. Nestas condições, como disse
tão bem Mr. Carey nesta mesma série de conferências, o produtor trabalha para
poder continuar ganhando dinheiro; ele não ganha dinheiro para poder conti-
nuar produzindo, o que seria o certo. É somente quando o artesão faz as coisas
por vocação, e não simplesmente porque faz parte do seu emprego, que o preço
das coisas se aproxima do seu valor real; e, nessas circunstâncias, quando paga-
mos por uma obra de arte projetada para servir a uma necessidade real, o di-
nheiro que gastamos vale a pena; e, sendo o propósito necessário, temos de ser
capazes de pagar pela arte, sob o risco de vivermos abaixo do nível humano
normal; é assim que vive hoje a maior parte dos homens, mesmo os ricos, se
considerarmos a qualidade e não a quantidade. Não é preciso dizer que o traba-
lhador também é vítima da produção voltada para o lucro; tanto é assim que
seria uma piada dizer que as horas de trabalho deveriam ser, em princípio, mais
agradáveis do que as horas de lazer; que no trabalho ele deve fazer aquilo de que
gosta, e nas horas livres aquilo que é apropriado – sendo o trabalho condicio-
nado pela arte, e a conduta pela ética.
A indústria sem arte é brutalidade. A arte é especificamente humana. Ne-
32
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?
33
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y
34
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?
lizes por concordar que toda a doutrina da arte pela arte, e toda a preocupação
de “colecionar”, bem como “o amor pela arte”, não passam de aberrações senti-
mentais e formas de escapar das preocupações sérias da vida. Concordaríamos
prontamente que só cultivar as coisas mais elevadas da vida – a arte sendo uma
delas – em horas de lazer a serem obtidas por uma substituição ainda maior de
meios manuais de produção por meios mecânicos é tão vã quanto seria a práti-
ca da religião pela religião aos domingos; e que as pretensões do artista moder-
no são fundamentalmente imaginárias e egoístas.
Infelizmente, quando vamos aos fatos, percebemos que o reformador so-
cial não é realmente superior à atual ilusão cultural, estando apenas revoltado
com uma situação econômica que o priva das coisas elevadas da vida, as quais
os ricos podem comprar com mais facilidade. O trabalhador inveja, muito mais
do que compreende, o colecionador e “amante da arte”. A noção de arte do es-
cravo assalariado não é mais realista ou prática do que a de um milionário, as-
sim como sua noção de virtude não é mais prática ou realista do que a de um
pregador da bondade como fim em si mesma. Ele não percebe que, se precisa-
mos de arte somente porque gostamos de arte, precisamos ser bons somente se
gostarmos de ser bons; a arte e a estética seriam meros problemas de gosto, e
nada se poderia objetar à alegação de que não temos o que fazer com a arte por-
que não gostamos dela, ou que não temos nenhuma razão para sermos bons,
caso prefiramos ser maus.
A questão da arte pela arte foi levantada outro dia por um editor de The
Nation, que citou com aprovação um pronunciamento de Paul Valéry a respeito
de como a característica mais essencial da arte é sua inutilidade, e continuou
dizendo que “Ninguém se choca ao ouvir que ‘a virtude é sua própria recom-
pensa’… que é apenas outra maneira de dizer que a virtude, como a arte, é um
fim em si mesma, um bem final”. O escritor ainda disse que “inutilidade e ausên-
cia de valor não são as mesmas coisas”; com o que, evidentemente, quis dizer
“não são a mesma coisa”. Disse ainda que só há três motivações pelas quais um
artista é impelido a trabalhar, isto é, “por dinheiro, fama, ou ‘arte’”.
35
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y
36
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?
37
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y
38
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?
39
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y
40
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?
41
VICENTE HUIDOBRO
A CRIAÇÃO PURA
título original:
LA CRÉATION PURE: ESSAI D’ESTHETIQUE
tradução:
DOUGLAS SILVA E JOÃO SILVA
O ensaio traduzido, La Création pure: essai d’Esthetique, foi publicado pela primeira vez
em abril de 1921, em Paris, na Revista L’Esprit Nouveau.
O
entusiasmo artístico de nossa época e a luta entre as diferentes
concepções individuais e coletivas resultantes desse entusiasmo
trouxeram de volta à moda os problemas estéticos, como nos
tempos de Hegel e de Schleiermacher.
É preciso, no entanto, exigir agora maior clareza e maior precisão do que
as daquela época, pois a linguagem metafísica empregada por todos os doutores
de estética do séc. XVIII e do início o séc. XIX não tem sentido algum para nós.
Assim, devemos nos distanciar o máximo possível da metafísica e nos
aproximar cada vez mais da filosofia científica.
Comecemos estudando as diferentes fases, os diferentes aspectos sob os
quais a arte se apresentou ou pode se apresentar.
Essas fases podem se reduzir a três, e para designá-las mais claramente
eis o esquema que imaginei:
43
A CRIAÇÃO PURA
***
***
44
VICENTE HUIDOBRO
45
A CRIAÇÃO PURA
46
VICENTE HUIDOBRO
47
A CRIAÇÃO PURA
Esse feito novo criado pelo artista, eis o que nos importa, e seu estudo
junto ao estudo de sua origem forma a Estética ou teoria da Arte.
O equilíbrio perfeito entre o sistema e a técnica é o que faz o Estilo, e a
predominância de um desses fatores sobre o outro tem como resultado a Ma-
neira.
Diremos que o artista tem um estilo quando os meios que emprega para
a realização de sua obra estão em perfeito acordo com os elementos que ele es-
colhe no mundo objetivo.
Quando um artista tem uma boa técnica, mas não sabe escolher perfeita-
mente seus elementos, ou quando, ao contrário, os elementos que emprega são
aqueles que melhor convêm à sua obra, mas sua técnica deixa a desejar, esse
artista não atingirá o estilo, ele terá somente uma maneira.
Não nos ocuparemos daqueles cujo sistema está em absoluto desacordo
com a técnica. Esses não podem entrar num estudo sério da arte, ainda que se-
jam a grande maioria e que façam a alegria dos jornalistas e a glória dos salões
de falsos amadores.
Quero, antes de terminar este artigo, esclarecer um ponto: quase todos os
eruditos modernos querem negar ao artista o direito à criação, e poder-se-ia
dizer que os próprios artistas têm medo dessa palavra.
Luto há muito tempo pela arte de criação pura, e ela foi uma verdadei-
ra obsessão em toda minha obra. Já em meu livro “Pasando y Pasando”,
publicado em janeiro de 1914, digo que o que deve interessar ao poeta é “o
48
VICENTE HUIDOBRO
49
A CRIAÇÃO PURA
50
JORDANES
SOBRE AS ORIGENS E
FEITOS DOS GODOS
título original:
DE ORIGINE ACTIBUSQUE GETARUM
tradução:
GUSTAVO H. S. S. SARTIN
De Jordanes a Castálio
E
1.
u desejoso de viajar a favor da corrente em meu pequeno navio,
explorar a costa de um litoral tranquilo e, como se diz, colher pe-
quenos peixinhos nas piscinas dos antigos, irmão Castálio, e me
compeles a abrir velas rumo ao alto mar e a abandonar a pequena obra que te-
nho entre as mãos – ou seja, a abreviação das crônicas.1 Persuades-me a resumir
neste pequeno livro, com palavras minhas, os doze volumes de Cassiodoro Se-
nador2 sobre os feitos dos godos desde os tempos antigos até o presente, per-
correndo as gerações de reis. 2. Digo-te, enquanto parto: para quem sabe não
querer o peso de tal trabalho e não almeja o ridículo, é um tanto dura a missão
imposta; porquanto meu fôlego é fraco para preencher a sua tão magnífica
trombeta que diz tanto. Sobre todo esse peso, ademais, não nos foi permitida a
consulta aos seus livros, de modo que busquei seu sentido geral. Não mentirei,
porém: há pouco reli, durante três dias, a narrativa de tais livros, por gentileza
do secretário do autor. Deles, contudo, não conservei as palavras; mas creio ter
retido integralmente o sentido das coisas feitas. 3. A essas também acrescentei
52
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS
Capítulo I
4. Nossos antepassados, como reporta Paulo Orósio, consideravam o cír-
culo da Terra inteira tripartido, envolto por uma faixa do Oceanus; e chamaram
suas três partes de ‘Asia’, ‘Europa’ e ‘Africa’. A respeito dessa divisão tríplice do
espaço do globo terrestre, quase incontáveis escritores não somente explana-
ram as posições de cidades e lugares, mas também tornaram clara a quantidade
de milhas e passos. Igualmente, determinaram a posição no imenso mar pro-
fundo das ilhas espalhadas em meio às ondas, não apenas as maiores como as
menores – a estas chamaram ‘Cyclades’ ou ‘Sporadas’. 5. Ninguém, contudo, em-
preendeu a tarefa de descrever os inacessíveis confins do Oceanus, até porque
não foi possível percorrê-los; devido às algas resistentes e ao descanso dos ven-
tos, se entende que são intransponíveis e ninguém os compreende, a não ser
quem os criou. 6. Ainda assim, as margens mais próximas desse mar que deno-
minamos ‘círculo do mundo inteiro’ e que, como uma coroa, envolve seus con-
fins se tornaram conhecidas por homens curiosos que quiseram escrever sobre
as coisas de lá, pois o círculo da Terra possui residentes e um certo número de
ilhas desse mar é habitável. Assim, existem na região oriental e no Indicus Ocea-
nus, Hippodes, Iamnesia e Solis Perusta que, apesar de inabitável, possui uma área
que se estende em longitude e latitude. Ademais, na Taprobana,3 além de aldeias
e fazendas, existem dez belas cidades muitíssimo fortificadas. Há, contudo, uma
outra, a agradabilíssima Silefantina; assim como Theron. 7. Essas duas, ainda que
não diferenciadas por alguns escritores, estão todavia amplamente preenchidas
53
JORDANES
por residentes. Esse mesmo Oceanus possui, na parte ocidental, algumas ilhas
um tanto conhecidas por quase todos, pela frequência daqueles que vão e vêm
delas. Existem, ademais, junto do estreito de Gades, pouco distantes entre si,
uma que é denominada ‘Beata’ e outra ‘Fortunata’. Embora muitos considerem
ilhas do Oceanus aqueles promontórios gêmeos, Galicia e Lusitania (em um dos
quais ainda se pode ver o templo de Hércules e no outro o monumento dos Ci-
piões), todavia, por estarem ligados pela extremidade das terras galegas, eles
pertencem à grande terra da Europa e não às ilhas do Oceanus. 8. Este, contudo,
tem outras ilhas em seu interior, chamadas depressão (gremium) dessa ilha para
dentro das terras da Europa como se fosse um enxame de abelhas. De que modo,
de fato, ou de que maneira, se o Senhor nos conceder, explicaremos na sequên-
cia. ‘Baleares’; além de outra, chamada ‘Nevania’; e também das ‘Orcadas’, em
número de trinta e três, ainda que nem todas habitadas. Existe na última faixa
do ocidente outra ilha, de nome ‘Thyle’,4 a respeito da qual o mantuano (Virgílio)
diz, entre outras coisas: ‘Thyle, a mais distante, servirá a ti’. 9. Ele próprio um
imenso mar tem também na parte ártica – isto é, no norte – uma ampla ilha de
nome ‘Scandza’; de onde nossa discussão, se o Senhor assim o ordenar, será ini-
ciada, pois o povo cuja origem requeres vem irrompendo da depressão (gre-
mium) dessa ilha para dentro das terras da Europa como se fosse um enxame de
abelhas. De que modo, de fato, ou de que maneira, se o Senhor nos conceder,
explicaremos na sequência.
Capítulo II
10. Agora, porém, tratarei como for possível e de forma breve, da ilha da
Brittania, que está situada no golfo entre a Spania, a Gallia e a Germania. Apesar
de que antigamente, por conta de sua extensão, como mencionado por Tito
Lívio, ninguém a havia circundado, não obstante, de muitos são as variadas opi-
niões ditas sobre ela. Se ela foi certamente por muito tempo inacessível, os ro-
54
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS
manos de Júlio César por grande glória a abriram com prélios. Acessível desde
então, tanto na busca por mercadorias como por muitos outros interesses, os
quais foram buscados, ela deixou de ser mortal mesmo para os descuidados,
revelando definitivamente sua posição àquela geração, assim como aos autores
gregos e latinos que aceitamos e seguimos. 11. Muitos deles comparam-na a um
triângulo, apontando para entre as regiões setentrionais e ocidentais. Seu maior
ângulo fica defronte à boca do rio Rhenus. Dali ela se reduz em largura e se re-
trai até terminar em dois outros ângulos. Seus dois lados maiores se projetam
em frente à Gallia e à Germania. Dizem ter dois mil e trezentos e dez estádios de
largura e não mais de sete mil e cento e trinta e dois de comprimento.5 12. Plena
de espinhos, a floresta jaz na planície, que também cresce até formar vários
montes. Um mar calmo, que não cede facilmente ao empurrão dos remos e
tampouco é agitado pelos ventos, a circunda. Creio que isto se dá porque as
terras estão tão afastadas a ponto de não possibilitarem a agitação do mar; e a
superfície do oceano, é claro, se estende mais do que em outros locais. Conta
também o nobre escritor grego Estrabão que, umedecido o solo por frequentes
incursões do Oceanus, ela exala muitas nuvens que cobrem o sol e tornam seus
dias quase de todo desagradáveis, apesar de calmos, impedindo a claridade. 13.
Em sua parte mais afastada, ademais, a noite é clara e muito curta. Como tam-
bém relatou o escritor dos ‘Anais’, Cornélio Tácito, é rica em muitos metais,
fértil para todo tipo de ervas, que mais alimentam o gado do que os homens. Por
ela, contudo, deslizam e desaparecem enormes rios, revolvendo muitas pedras
preciosas e pérolas. Os siluros têm o rosto pintado; sendo que muitos nascem
com os cabelos negros e crespos. Os habitantes da Calydonia, por outro lado,
têm pelos ruivos e corpos grandes, porém ágeis. 14. Parecem-se com os gauleses
ou os hispanos, dependendo de qual região estão defronte.6 Daí muitos conje-
5 Valores em torno de 415 e 1280 quilômetros, respectivamente. Ambos bastante próximos das distâncias reais.
6 Curiosamente, Jordanes imagina a ilha da Brittania posicionada não somente defronte à Gallia, como também
à Spania. Embora fosse verdade que o litoral sul da Brittania fosse vizinho do litoral norte da Gallia, ele situava-se a mais
de 1.000 quilômetros do litoral norte da península ibérica.
55
JORDANES
turarem que a ilha recebeu os habitantes dessas regiões, convidando os que es-
tavam próximos. Todos os povos e seus reis são igualmente selvagens. Dião
Cássio, o célebre autor de anais, todavia afirma que todos foram apelidados de
‘calidônios’ e ‘meataros’. Vivem em cabanas de madeira, compartilhando seu
abrigo com o gado, e as florestas frequentemente lhes servem de casa. Não sei
se pintam seus corpos com a cor do ferro para decorá-los ou para outra coisa.
15. Eles frequentemente conduzem guerra uns contra os outros por desejo de
poder ou para aumentar suas posses. Lutam não apenas a cavalo ou à pé, mas
também com bigas e carroças armadas com foices, às quais comumente cha-
mam de ‘essedae’. Que baste o que foi dito acerca da situação das ilhas da Britta-
nia.
Capítulo III
16. Retomemos a situação da ilha da Scandza, que abandonamos acima.
Cláudio Ptolomeu, eminente descritor do globo terrestre, lembrou-se dela no
segundo livro de sua obra, dizendo: ‘Há uma grande ilha situada em mar aberto
na área ártica do Oceanus, de nome ‘Scandza’, cujos lados são curvados como
uma folha de cedro, se estendendo longamente até se findarem um sobre o ou-
tro’. Pompônio Mela relatou a seu respeito que, no mar, ela está situada no golfo
Codanus, para cujas margens flui o Oceanus. 17. À frente desta está localizado o
rio Vistula,7 que nasce nos montes Sarmatici e flui para uma foz tripla, que desá-
gua no norte do Oceanus, defronte à Scandzae, separando a Germania e a Scythia.
Ela tem em sua parte oriental um enorme lago, em uma área que é uma depres-
são (gremium) do globo terrestre, de onde o rio Vagus8 escorre como se jorrasse
de uma entranha em direção ao onduloso Oceanus. Na parte ocidental, por seu
turno, a ilha é cercada por um mar imenso e a norte é limitada pelo vastíssimo
e inavegável Oceanus, do qual sai uma espécie de braço, que se estende em um
7 O rio manteve o mesmo nome até os dias atuais. Fica na Polônia e deságua na baía de Gdanski.
56
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS
golfo e produz o mar Germanicus. 18. Diz-se que por lá também existem muitas
pequenas ilhas e que os lobos, quando atravessam o mar congelado em direção
a elas, perdem a visão devido ao frio excessivo. Assim, essa terra não é somente
inóspita para os homens, mas cruel até mesmo para as feras. 19. Ainda que na
Scandza, a ilha da qual estamos falando, seja permitida a permanência de muitos
e diversos povos, Ptolomeu lembra-se somente do nome de sete deles. Lá, devi-
do ao frio excessivo, não são encontrados em parte alguma enxames de abelhas
melíferas. Em sua parte norte, onde está assentada a nação adogita,9 diz-se que
em meados do verão há luz contínua por quarenta dias e noites; e que, no tempo
invernal, não conhece luz clara por igual número de dias e noites. 20. Assim,
por tal alternância entre aflição e alegria, são distintos dos outros no que con-
cerne a vantagens e perdas. E isso por quê? Porque nos dias longos eles veem o
sol retornar ao oriente margeando o horizonte. Nos dias breves, todavia, não é
isso que observam. Pelo contrário, ao percorrer os símbolos austrais, o sol que
é visto por nós surgindo de baixo, no caso deles é dito que circula pela margem
da Terra. 21. Lá também estão outros povos, como os escrerefenos, que não bus-
cam cereais como sustento. Vivem da carne de feras e dos ovos de aves; pois são
postas tantas crias nos pântanos que proporcionam o aumento da espécie e fa-
vorecem a saciedade do povo. Outro povo que mora lá é o suehano, que, como
os turingos, emprega cavalos exímios. Eles também são os que enviam, através
do comércio com outros inumeráveis povos, as peles safirinas10 que são usadas
pelos romanos. São famosos pela negritude dos adornos de suas peles. Ainda
que vivam como pobres, vestem-se muito ricamente. 22. Então, segue-se uma
aglomeração de diversos povos, como teustes, vagotes, bergios, halinos, lióti-
das; os quais se assentam todos em uma planície fértil e que, por isso, são infes-
tados por incursões de outros povos. Por detrás desses, estão os ahemiles, os
finaitas, fervires, gautigodos – um tipo de homens rudes e prontíssimos para a
9 Aportuguesamos os nomes dos povos mencionados no texto de Jordanes. Muitos deles não são mencionados
em qualquer outra fonte antiga ou medieval.
57
JORDANES
Capítulo IV
25. Dessarte, os godos se recordam de partir outrora dessa ilha Scandza –
quase uma fábrica de povos ou, certamente, um nascedouro de nações – com
seu rei de nome Berig. Quando os líderes saíram dos navios e chegaram à terra,
de imediato deram nome ao local; do qual se diz, até hoje, ser chamado Gothis-
candza. 26. De lá, em seguida, avançaram até a morada dos ulmerugos, que en-
tão ocupavam as margens do Oceanus. Então montaram acampamento e com-
bateram-nos, expulsando-os de suas moradas. Depois deles os vizinhos. Os
vândalos, então já subjugados, acrescentaram às suas vitórias. Lá, porém, com a
grande população aumentando em número, e já quase no quinto rei após Berig,
Filimer, filho de Gadarigis, sentou-se diante do conselho e então conduziu
adiante o exército dos godos, acompanhado pelos familiares. 27. Em busca de
locais adjacentes apropriados para excelentes moradas, chegou à terra da
Scythia, à qual chamavam em sua língua ‘Oium’, onde ficou deleitado pela gran-
de fertilidade da região. Diz-se que metade do exército havia cruzado uma pon-
te e, quando atravessava a correnteza, aquela desabou irreparavelmente, não
58
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS
mais lhe permitindo ir ou voltar, pois esse lugar, segundo dizem, está limitado
por um abismo aquoso circundado por um pântano movediço (tremulus), torna-
dos intransponíveis pela natureza através de sua combinação. Ali, ainda hoje,
são ouvidas vozes de gado e encontrados indícios de homens, segundo testemu-
nhos dos viajantes; apesar de que devemos crer que eles ouçam essas histórias
de longe.
59
STEPHEN CRANE
UMA ILUSÃO EM
VERMELHO E BRANCO
título original:
AN ILLUSION IN RED AND WHITE
tradução:
CÉSAR GANIMI MACHADO
A
s noites no bloqueio cubano eram longas, raramente empolgan-
tes, muitas vezes entediantes. Os tripulantes dos irrequietos pe-
quenos barcos de carga se tornaram tão íntimos como se estives-
sem todos enterrados no mesmo caixão. Os correspondentes, que em Nova
York se passavam por camaradas honestos, às vezes se revelavam perfeitos im-
postores, vaidosos e egoístas, mas em geral esses tolos presunçosos do Park
Row se comportavam como os homens bondosos e prestativos do bloqueio
cubano. Além disso, cada correspondente contava tudo o que sabia e mais um
pouco. Serei eternamente grato a uma das brilhantes estrelas do jornalismo
nova-iorquino por esta amável narrativa:
Bem, é assim que imagino o ocorrido. Não digo que tenha se desenrolado
dessa forma, mas é assim que imagino. E nunca deixo de ressaltar o quanto esta
história é interessante. Não fiquei no jornal por muito tempo, mas o suficiente
para cobrir um bom evento, quando o editor inesperadamente me encarregou
desse fantástico homicídio.
Parece que lá em um dos condados do Estado de Nova York, um fazendei-
ro havia tomado uma aversão pela sua esposa; foi então até a cozinha com um
machado, e na presença de seus quatro filhinhos, despreocupadamente desferiu
um golpe na nuca de sua esposa. Era de manhã cedo, mas ordenou que as crian-
ças voltassem para a cama. Então levou o corpo de sua mulher até a floresta e o
enterrou.
61
UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO
O nome desse fazendeiro era Jones. O filho mais velho do viúvo se chama-
va Freddy. Uma semana após o crime, um dos vizinhos de longa distância pas-
seava em sua carroça próximo à casa, quando avistou Freddy brincando na rua.
Ele se levantou e perguntou ao menino como ia a família Jones.
— Ah, estamos todos bem, disse Freddy, só a mamãe que não — ela está
morta.
— Como! Quando ela morreu? bradou o fazendeiro, espantado. — Do que
ela morreu?
— Ah, respondeu Freddy — semana passada um homem de cabelos verme-
lhos e de dentões brancos e de mãos branquíssimas veio até a cozinha e matou
a mamãe com um machado.
O fazendeiro ficou indignado com as esquisitas lorotas de criança que o
menino lhe contara, e seguiu a viagem preocupado. Mas naquela tarde espalhou
o incidente em uma taverna, e quando o povo começou a dar por falta da figura
familiar da Sra. Jones nas manhãs de sábado na Igreja Metodista, acabaram dan-
do início a uma investigação. O calmo Jones foi preso por homicídio, e o corpo
de sua esposa desenterrado da cova onde fora jogado, para então ser sepultado
pela sua própria família.
A atenção principal agora se direcionou às crianças. Todas as quatro decla-
raram que estavam na cozinha na hora do crime, e que o assassino tinha cabelo
vermelho. O cabelo do bom Jones era grisalho. Elas alegaram que os dentes do
assassino eram grandes e brancos. Jones só tinha uns oito dentes, e esses eram
pequenos e cariados. Elas alegaram que as mãos do assassino eram brancas. As
mãos de Jones eram da cor de uma noz. Elas levantaram seus confusos e ino-
centes rostos, e chorando — simplesmente porque a agitação inesperada e seus
novos alojamentos as assustavam — repetiram sua épica narração sem grandes
contradições, mas sem a uniformidade que pudesse levantar suspeitas.
Mulheres iam até a prisão e se condoíam pelas crianças, costuravam sai-
nhas para as meninas, e pequenos calções para os meninos, e detetives estúpi-
dos as questionavam minuciosamente. Mas elas sempre sustentavam a teoria
62
STEPHEN CRANE
63
UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO
64
STEPHEN CRANE
65
UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO
colher. Isso era tudo o que ele sabia da vida. Não estava preocupado com o fato
de que sua mãe havia sido assassinada.
Um dia, inesperadamente, Jones se dirigiu aos seus filhos:
— Vejam bem: me pergunto se vocês não podem ter se enganado. Vocês
têm absoluta certeza de que o homem que viram tinha cabelos vermelhos, den-
tões brancos e mãos brancas?’
As crianças se irritaram com o pai:
— Ora, sem dúvida, papai, nós não cometemos nenhum engano. Nós o
vimos perfeitamente.
Mais tarde a cabeça do jovem Freddy passou a funcionar como se estivesse
cheia de ketchup. Suas noites de sono eram assombradas com terríveis imagens
do homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas, e a prolon-
gada ausência de sua mãe o desvairava. Não demorou para que voluntariamen-
te desenvolvesse a hipótese de que sua mãe estava morta. Ele sabia o que era a
morte. Ele vira uma vez um cachorro morto; também galinhas mortas, coelhos
e ratos. Um dia perguntou a seu pai:
— Papai, a mamãe vai voltar algum dia?
Jones disse:
— Bem, não; acredito que não.
Essa resposta confirmou ao menino sua suposição. Ele sabia que pessoas
mortas não voltavam.
A atitude de Jones frente a essa narração extraordinária do homem com o
machado era muito peculiar. Ele passou a contestá-la. Protestou contra a afir-
mação das crianças, mas não conseguia fazê-las mudar de ideia. Era a única
coisa em suas vidas da qual estavam permanente e absolutamente convencidas.
Bem, é assim que a história termina. Mas para o deleite de vocês, continu-
arei. O júri pendurou Jones o mais alto que podiam, e estavam cobertos de ra-
zão: afinal Jones confessou o crime antes de morrer. Freddy é atualmente um
respeitabilíssimo condutor de carroça de mercearia em Ogdensburg. Quando
estive por lá uns bons anos depois, as pessoas me diziam que quando ele abria a
66
STEPHEN CRANE
boca pra falar da tragédia, era convicto em denunciar a alegada confissão do pai
como uma mentira. Considerava seu pai uma vítima da estupidez dos jurados,
e tinha a esperança de algum dia conhecer o homem de cabelos vermelhos, den-
tões brancos e mãos brancas, cuja imagem ainda permanece tão nítida em sua
memória que poderia distingui-lo no meio de uma multidão de dez mil pessoas.
67
C. S. LEWIS
MEDITAÇÃO NO GALPÃO
DE FERRAMENTAS
título original:
MEDITATION IN A TOOLSHED
tradução:
FABIANA ESSE
Clive Staples Lewis foi um escritor britânico. Mesmo não se contando entre os teólogos,
tornou-se bastante conhecido, entre outros méritos, pela consistente apologética cristã
que divulgou e colaborou para desenvolver.
H
oje eu estive no escuro galpão de ferramentas. O sol brilhava lá
fora e, pela fresta no topo da porta, veio um de seus raios. De
onde eu estava, esse feixe de luz com partículas de poeira flutu-
antes era a coisa mais notável no local. Todo o resto era quase um breu. Eu es-
tava vendo o feixe, não vendo as coisas através dele.
Então me movi, de modo que o feixe caiu sobre meus olhos. Imediatamen-
te, toda a imagem anterior desapareceu. Não vi nenhum galpão e (sobretudo)
nenhum feixe. Em vez disso, vi, enquadradas no recanto irregular na parte su-
perior da porta, folhas verdes se movendo sobre os galhos de uma árvore lá fora
e, mais além, a aproximadamente 150 milhões de quilômetros de distância, o
sol. Olhar através do feixe e olhar para o feixe são experiências muito diferen-
tes.
Mas esse é apenas um exemplo muito simples da diferença entre olhar-
-para e olhar-através. Um rapaz conhece uma garota, o mundo inteiro parece
diferente quando ele a vê. Sua voz lhe recorda algo de que ele vem tentando se
recordar a vida toda e dez minutos de conversa ocasional com ela são mais pre-
ciosos que todos os favores que qualquer outra mulher no mundo poderia lhe
conceder. Ele está, como se costuma dizer, “apaixonado”. De fora, um cientista
descreve a experiência deste jovem. Para ele, tudo se resume na relação entre os
genes e um reconhecido estímulo biológico. Essa é a diferença entre olhar atra-
vés do impulso sexual e olhar para o impulso sexual.
Quando se adquire o hábito de fazer essa distinção, encontram-se vários
exemplos. O matemático senta-se para pensar e, para ele, parece que contempla
69
M E D I TA Ç Ã O N O G A L PÃ O D E F E R R A M E N TA S
1 Trata-se, possivelmente, de uma referência ao rio em Camarões, que corre aproximadamente 640 km até
desaguar no Golfo da Guiné. (N.T.)
70
C.S. LEWIS
o jogo de outra maneira, argumentando: “Se as coisas fossem vistas pelos olhos
de quem as vive, o que parece instintos e tabus, de repente, revelaria sua verda-
deira e transcendental natureza.”
Essa é, de fato, toda a base do pensamento especificamente “moderno”. “E
não é uma base muito sensata?”, pergunta-se. Afinal, estamos sempre sendo en-
ganados pelas coisas vistas de dentro. Por exemplo, a moça que parece tão ma-
ravilhosa quando se está apaixonado, pode, na verdade, ser uma pessoa muito
obtusa, estúpida e desagradável; a dança do selvagem para o Nyonga, na verda-
de, não faz as colheitas aumentarem. Depois de termos sido tantas vezes enga-
nados por olhar-através, não estamos bem aconselhados para confiar apenas ao
olhar-para? Realmente, para desprezar todas as experiências internas?
Bem, não. Há duas objeções fatais ao desprezo de todas elas. E a primeira é
esta: desprezam-se tais experiências a fim de se pensar com maior precisão.
Entretanto, de qualquer modo, não se pode pensar (e, portanto, é claro, não se
pode pensar com precisão) se não se tem nada em que pensar. Um fisiologista,
por exemplo, pode estudar a dor e descobrir que ela “é” (seja o que for que “é”
signifique) esse ou aquele evento neural. Mas a palavra dor não teria nenhum
significado para ele, a menos que já a tivesse, efetivamente, sentido em si mes-
mo. Se ele jamais tivesse olhado através da dor, simplesmente não saberia para
o que está olhando. O próprio objeto de suas investigações externas existe para
ele apenas porque, ao menos uma vez, foi algo interno.
Este não é um caso de provável ocorrência, pois todo homem sente dor.
Mas é perfeitamente fácil passar toda uma vida dando explicações sobre reli-
gião, amor, moral, honra e afins sem que se tenha estado realmente inserido em
quaisquer dessas situações. Quando se faz isso, simplesmente trabalha-se com
símbolos. Explica-se algo sem conhecê-lo. É por isso que grande parte do pen-
samento contemporâneo é, estritamente falando, pensamento sobre nada —
todo o mecanismo do pensamento ocupado em trabalhar num vácuo.
A outra objeção é a seguinte, vamos voltar para o galpão: eu poderia ter
desprezado o que vi quando olhei através do feixe (i.e., o movimento das folhas
71
M E D I TA Ç Ã O N O G A L PÃ O D E F E R R A M E N TA S
e o sol), sob o fundamento de que era “realmente apenas uma faixa de luz em-
poeirada em um galpão escuro”. Ou seja, eu poderia ter estabelecido como “ver-
dadeira” minha “visão lateral” do feixe. Entretanto, aquela visão lateral é, ela
mesma, um exemplo da atividade que chamamos de ver, e este novo exemplo
poderia também ser olhado de fora. Eu poderia permitir que um cientista me
dissesse que o que parecia ser um feixe de luz em um galpão era, “na realidade,
apenas uma agitação dos meus próprios nervos ópticos”. E isso seria tão bom
(ou tão ruim) quanto a desmistificação anterior. A imagem do feixe no galpão
teria agora que ser desprezada, assim como a imagem anterior das árvores e do
sol. E então, onde estamos?
Em outras palavras, pode-se sair de uma experiência apenas para se entrar
em outra. Portanto, se todas as experiências internas são equívocos, estamos
sempre equivocados. O fisiologista do cérebro pode dizer, se quiser, que o pen-
samento do matemático é “apenas” pequenos movimentos físicos da massa cin-
zenta. Mas, então, o que dizer sobre o pensamento do próprio fisiologista na-
quele mesmo momento? Um segundo fisiologista, olhando para ele, poderia
afirmar que também se trata apenas de um pequeno movimento em seu crânio.
Aonde tal insensatez iria acabar?
A resposta é que nunca devemos permitir que a insensatez comece. Deve-
mos, sob pena de obtusidade, negar desde o início a ideia de que olhar-para, por
sua própria natureza, é intrinsecamente mais correto ou melhor do que olhar-
-através. Devemos tanto olhar-para quanto olhar-através. Em casos específicos,
vamos encontrar razões para considerar esta ou aquela visão como inferior;
por exemplo, da forma mencionada, a visão interna do pensamento racional
deve ser mais verdadeira que a visão externa, que vê apenas movimentos da
massa cinzenta, porque, se a visão externa for a correta, tudo o que se pensa (e
o próprio pensamento, em si mesmo) não teria valor, e isso é autocontraditório,
não se pode ter uma prova de que nenhuma prova tem importância. Por outro
lado, a visão interna da dança do selvagem para o Nyonga deve ser enganosa,
pois encontramos razões para acreditar que as safras e os bebês não são real-
72
C.S. LEWIS
mente afetados pela dança. Na verdade, devemos tomar cada caso por seu pró-
prio caráter inerente, mas devemos começar sem preconceitos a favor ou con-
tra qualquer tipo de olhar. Não sabemos com antecedência se o amante ou o
psicólogo estão dando a explicação mais correta sobre o amor, ou se ambas as
explicações são igualmente corretas de diferentes maneiras, ou se ambas estão
igualmente erradas. Nós apenas temos que descobrir. Todavia, o tempo da coa-
ção tem que acabar.
73
JUAN JOSÉ SAER
FOTOFOBIA
título original:
FOTOFOBIA
tradução:
HUGO CREMA
Juan José Saer (Serodino, Argentina, 1937 - Paris, 2005) é conhecido no Brasil mais por
suas colunas de jornal e por seus romances estudados em poucos departamentos de letras
do que por seus contos, sua poesia ou seu ensaio, áreas em que também foi prolífico e de
convicções éticas e estéticas densas. Em começo de carreira, uma bolsa de estudos o levou
a morar fora da Argentina, o que nunca o impediu de ambientar seus livros na sua
província natal, Santa Fé. Apesar da paisagem, não é possível pensar que a obra seja tocada
por qualquer matiz local ou anedótico. Na França, teve oportunidade de se desvincular da
cena literária argentina, mantendo correspondência com Ricardo Piglia, Hugo Gola e
poucos mais, e travando breve contato com autores ligados ao Nouveau Roman. Sua
influência alcança autores argentinos hoje, como Sérgio Chejfec.
O conto Fotofobia foi publicado em 1966 no livro Unidad de Lugar, sua epígrafe atesta a
admiração de Saer por Carlos Drummond de Andrade.
A
frescura do porão era como um núcleo de sombra pré-solar, e
tinha um cheiro denso, misto, cheio de estímulos que lhe servi-
ram para recordar cheiros antigos, tão vagamente que foi impos-
sível determinar de que classe eram. Ficou um momento indecisa no topo da
escada, porque ainda se sentia fraca. Inspirou com força, não porque fosse agra-
dável, mas porque imaginou que ao se deixar dissolver por esse cheiro cheio de
ecos poderia compreendê-lo melhor. Não aconteceu nada, a não ser vagas re-
miniscências de coisas conhecidas pela metade que a desconcertaram ainda
mais. Mas ela não perdia nada com esse estranhamento: estava perfeitamente
bem. “Estou perfeitamente bem”, pensou. “Tenho só fraqueza.” Desceu o resto
dos degraus e zanzou pela penumbra fria do porão, tateando com placidez no
escuro, sorrindo suavemente, pensando “Estou fraca, nada mais”; e quando se
sentiu cheia de frescor, atravessada por essa sombra fria que o sol de janeiro não
tinha podido nem tocar, parou de dar esses passos lentos e frágeis pelo porão e
se deteve no meio dele, até que seus frios olhos azuis começaram a discernir os
contornos confusos dos trastes amontoados. Os ratos faziam ranger a madeira
podre dos móveis abandonados. Mas ela estava bem, “Estou perfeitamente bem”,
pensava, “porque não tenho mais fraqueza”. Ficou no porão por volta de meia
hora; depois subiu. O sol tinha como que mergulhado a casa numa luz zenital,
cheia de reflexos ardentes. Infiltrava-se pelas vidraças que davam no pátio e
projetava uns desenhos loucos, brilhantes e incompreensíveis sobre o piso e a
mesa. Mas María Amelia tinha tomado banho uma hora antes. “Acabo de tomar
banho pela primeira vez desde sábado”, pensou. “De água fria”, e além disso aca-
75
FOTOFOBIA
bava de se deixar penetrar pelo frescor do porão, e sentia seus próprios cabelos
úmidos caindo sobre seus ombros como um jorro de água límpida, dourada.
Olhou seu pulso, ao qual se grudava o curativo cujas bordas estavam esfiapando
e cuja superfície pretejava lentamente. Não fez o menor gesto; pensou simples-
mente em como era boba, e depois foi à geladeira, apanhou um pêssego, lavou
na pia da cozinha e foi comendo a mordidas lentas até não sobrar mais do que
o caroço, duro, vermelho e refratário, envolvido apenas por uns filamentos
exangues de polpa amarela. María Amelia jogou o caroço no lixo e lavou as
mãos. Cada vez se sentia menos fraca, como se o sangue reabilitado, — o sangue
novamente a misturar, purificar, distribuir e filtrar, recôndito e portanto a sal-
vo do sol de janeiro — tivesse ido se revigorando com os primeiros movimen-
tos do corpo que o produziu. Por isso os movimentos com que tirou a blusa, e
vestiu o leve, limpo e engomado vestido branco e de uma peça só, pouco deco-
tado, gestos familiares, foram rápidos, firmes e cheios de destreza. A luz solar
não chegava no quarto, mas sua atmosfera pesada lhe desagradou e machucou.
Tinha passado dias demais ali dentro, já não conseguia suportá-la. A cama esta-
va desarrumada e em cima da mesinha de cabeceira do seu lado havia remédios,
copos e uma colherinha sobre a qual voejava uma mosca. Em cima da mesinha
de cabeceira do lado do Rafael não havia nada, a não ser um cinzeiro cheio de
bitucas e cinzas e “A Pequena Crônica”. “Por que será que ele leva sempre a “Pe-
quena Crônica” para cama?”, pensou María Amelia. E em seguida: “Agora vou
fumar meu primeiro cigarro”.
Acendeu no cômodo que dava para o pátio, rodeado pela explosiva luz ze-
nital, e os dois primeiros tragos deram enjoo e a obrigaram a se sentar. O tecido
marrom da cadeira estava quente, e isso desagradou. Mas ver os arabescos azuis
da fumaça atravessada pelos raios de sol — a fumaça do primeiro cigarro depois
de todos esses dias (“Como pude ser tão idiota?”) era um espetáculo extraordi-
nário, cheio de plenitude e felicidade. Contemplou a fumaça por um longo tem-
po sem perceber o calor crescente em que a luz de janeiro mergulhava o cômo-
do. Sua testa começou a brilhar. Não percebeu isso também. Estava ocupada
76
J UA N J O S É S A E R
77
FOTOFOBIA
todo mau, e que quando chegasse ao centro — se é que chegava, porque sua
caminhada não era regida por nenhum plano específico a não ser o de sair de
casa depois de tantos dias, agora que Rafael tinha se atrevido a deixá-la sozinha
para viajar a Rosario, questão de arrumar de uma vez por todas o negócio do
concerto — se é que chegava, teria ruído e movimento de sobra.
Nenhum tipo de brisa soprava. A não ser o do seu corpo, que atravessa o ar
pesado e quente, nem o menor movimento era perceptível. Começou a sentir
com nitidez o ritmo que se apoderava de seus membros, suas pernas, seus bra-
ços e sua cabeça, como se o sangue marcasse de dentro, com precisão e regula-
ridade, cada um de seus movimentos. Teve a impressão de que nunca tinha se
sentido tão bem, há muito tempo. Logo agora que esse ritmo tinha se apodera-
do dela, se dava conta de como tinha sido boba, do desprezo por si mesma com
que tinha agido, e sabe-se lá que mais. Agora na borda do lábio superior uma
gotinhas de suor se acumulavam, na borda do lábio duro e seco. Passou o dorso
do dedo indicador e depois secou o dedo com o polegar. “Que umidade. Que
horrível”, pensou. Os reflexos do vestido branco de linho cru, limpo e quebradi-
ço, poderiam cegar quem contemplasse, isso se tivesse alguém para contemplar.
Mas não havia ninguém; a cidade era como um corredor vazio, cujo teto de
porcelana tivesse começado a incandescer. María Amelia atravessou a rua, pi-
sando com as sandálias de palhinha trançada a sombra contrafeita pela direção
da luz. As fachadas das casas dispostas nessas duas longas fileiras, de cores cla-
ras, a maioria branca, condensavam o resplendor áspero. Sobre os tetos, as an-
tenas de televisão, nítidas e complexas, apareciam como que escurecidas pelo
contraste com a luz do sol. Suas silhuetas pareciam borradas por resplendor
transparente. María Amelia pousou a palma da mão no topo da sua cabeça, sor-
rindo, como se a si mesma com esse gesto que já conhecia a fúria desse sol de
janeiro, mas que se sentia invulnerável, a ponto de caçoar dele fingindo que
protege a cabeça com a mão. Na calçada oposta apertou o passo sem deixar de
sorrir, vendo como a sua própria sombra parecia ridícula, contrafeita pela posi-
ção do sol e além disso adulterada grosseiramente pela mão que tinha posto em
78
J UA N J O S É S A E R
cima da cabeça. Sua pele, que tinha embranquecido por causa dos dias que per-
maneceu de cama, começou a encher de pontos vermelhos nas bochechas afun-
dadas e em volta dos frios olhos azuis. Os olhos pareciam embaçados, como
quando alguém baforeja sobre um vidro transparente. Mas a mente de María
Amelia estava ocupada em evocar a gruta fria do porão, essa sombra úmida que
a tinha penetrado quando ainda mal tinha saído do banho — e tinha cedido ao
prazer de deixar a água fria correr por um bom tempo sobre seu corpo nu. Po-
dia voltar quando quisesse (“Está a três quadras, na minha casa”, pensou) e mer-
gulhar nele, durante o tempo que quisesse (“Longe de todo mundo”, pensou) e
quando Rafael voltasse de Rosario podia procurar pela casa toda chamando-a
de sua abelhinha que não ia conseguir encontrá-la. Ergueu a cabeça, subitamen-
te, e viu o sol áspero, cheio de duros reflexos, como uma rachadura fulgurante
abrindo a porcelana baça do céu. A textura do sol resultou insuportável. Parecia
haver mais de um. Pareciam dois ou três discos incandescentes e amarelos que
flutuavam concêntricos sem terminar de se superpor uns aos outros e se unifi-
car de uma vez por todas. Baixou a cabeça. Durante uns metros caminhou de
olhos fechados e sorriu, comprovando que o ritmo que tinha se apoderado de
seu corpo persistia, dando coesão e unidade, permitindo pensar sobre as suas
pernas “a esquerda, a direita, a esquerda agora, a direita agora”, sentindo ao
mesmo tempo o rumor das solas das sandálias contra os ladrilhos cinzentos da
calçada e as batidas opacas, surdas, da carteira de palhinha trançada contra a
parte posterior de sua coxa direita. De súbito lembrou do poço do sítio em Co-
lastiné: no fundo, a penumbra era verde e subia frescor da escuridão, e se al-
guém deixasse cair uma pedra, teria tempo de fechar os olhos, sorrir, virar a
cabeça, bem lentamente, antes de finalmente ouvir o som cheio de ecos da pe-
dra batendo na água.
Por fim, dobrou numa transversal arborizada: sua própria sombra se esfu-
mava nas sombras das árvores. Era um prazer vê-la borrando e reaparecendo
corroída no chão, projetado por efeito dos raios de sol que se infiltravam pelas
copas das árvores. O sol resplandecia entre as folha verdes. Por um momento,
79
FOTOFOBIA
olhou para ele sem parar de caminhar, de cabeça erguida, cheia do ritmo que
tinha se apoderado dela, de tal forma que todo o verde das copas das árvores
atrás das quais o sol e o céu baço eram percebidos como uma miríade fixa e
meio pétrea, parecida com a de um mosaico despedaçado e restaurado de ma-
neira imperfeita, davam a impressão de estar se deslocando lentamente para
trás, inertes e unificados. De um modo mecânico, María Amelia, levou a mão à
carteira grande de palhinha trançada e abriu, apalpando o interior a procura
dos óculos escuros. Não encontrou. Uma rigidez leve e breve na cara foi tudo o
que lhe acometeu ao comprovar que não tinha colocado os óculos na carteira.
Nessa hora percebeu que até esse momento tinha confiado secretamente neles,
que até o último sábado tinha usado desde o começo do verão e que agora tinha
percorrido quase seis quadras e não ia voltar para buscá-los. “Só tenho fraqueza
e nada mais”, pensou, com um fulgor rente aos olhos. “Tudo foi e continua sen-
do só fraqueza.” Lembrou de que leu alguma coisa uma vez, não sabia bem o
que, onde um monge testava quanto tempo ele próprio conseguia resistir com
a mão sobre uma chama. Pôr a mão sobre uma chama significava ao mesmo
tempo não só testar o quanto ele mesmo podia resistir, mas também significava
exprimir o desejo secreto de se queimar. Na primeira esquina se livrou da rua
arborizada e continuou caminhando em pleno sol. O cabelo loiro começou a
ficar úmido nas têmporas. A cara estava cada vez mais vermelha, com uns cír-
culos avermelhados em torno dos olhos, e o ritmo que a tinha tomado um mo-
mento antes acabava de desaparecer. Agora percebia somente o silêncio e a luz
solar, e ressaltando contra o silêncio, o estalo das sandálias contra os ladrilhos
cinzentos ecoando alternadamente por causa das batidas surdas da carteira
contra a parte posterior de sua coxa direita. Sua mente se esvaziou de súbito:
mas antes que fosse ocupada pela incandescência branca e incondicional, ouviu
pela última vez a batida cheia de ecos na escuridão verde do fundo do poço e
depois o silêncio que seguiu, carregado de ressonâncias compreendidas pela
metade, como as do cheiro denso do porão. Por fim estacou, se apoiando a uma
parede branca, o monte disforme e obediente da sua sombra antecedendo. Era
80
J UA N J O S É S A E R
81
FOTOFOBIA
correndo a rua pela última vez, como se se tratasse do último dia do tempo.
Agora viu que sua sombra tinha crescido, pela extensão dos fragmentos que se
borravam e reapareciam nos ladrilhos cinzentos, por cima da sombra mais am-
pla e mais complicada das árvores. O sol, portanto, tinha começado a baixar.
Andou por mais ou menos mais meia hora até chegar ao centro. De tanto soar
o tempo todo, María Amelia deixou de escutar os ruídos das sandálias e da car-
teira. Quando entrou em cheio no centro, seu passo ficou mais lento e susten-
tava o pulso da mão esquerda com a mão direita, à altura da barriga. Com a
ponta do polegar da mão direita acariciava sem parar a borda esfiapada e suja
do curativo. Tinha passado o momento em que o sol estava alto, e ela tinha atra-
vessado esse momento em que a incandescência branca tinha inundado sua
mente, instalando-se ali, mas agora o sol baixava e continuaria baixando até que
o crepúsculo o esfriasse e a noite chegasse. “Não posso esquecer os óculos escu-
ros. Não posso esquecer os óculos escuros”, pensou. Entrou no bar Montecarlo,
que estava vazio ou na penumbra, os janelões protegidos por cortinas azuis
quietas. Abriu enormemente os olhos para ver melhor na penumbra, mas bateu
numa cadeira com o lado do corpo e tropeçou. Sentou em seguida, deixando a
carteira em cima da mesa. Ficou um momento pensativa, brincando com as
bordas sujas do curativo, até que de um modo súbito se deu conta do borrão
branco do fraque do garçom, que se encontrava de pé ao lado e a contemplava.
María Amelia ergueu para ele a cara apavorada.
— Não — disse. — É fraqueza e nada mais.
82
COLETTE
EPITÁFIOS
título original:
ÉPITAPHES
tradução:
FLÁVIA MARIA NASCIMENTO
Sidonie-Gabrielle Colette foi uma escritora francesa nascida em 1873 e falecida em 1954.
Suas obras permeiam certo cunho autobiográfico nos quais relata observações sobre
relacionamentos. Colette foi presidente da Académie Goncourt em 1949.
Q
uem era Astonifronque Bonscop quando estava vivo?
Meu irmão virou a cabeça, cruzou as mãos em volta de seu
joelho, piscou os olhos para então detalhar, vindo de um longín-
quo inacessível ao vulgar olhar humano, os traços esquecidos de Astonifronque
Bonscop.— Era o declamador da cidade, mas em casa trançava cadeiras de pa-
lha. Era um sujeito gordo... não muito interessante, bebia e batia em sua esposa.
— Então por que puseste “bom pai, bom esposo” em seu epitáfio?
— Porque é o que se põe quando as pessoas são casadas.
— Quem mais morreu desde ontem?
— A Senhora Egremimi Pulitien.
— Quem era Senhora Egrelimu?
— Egremimi, com um ‘i’ ao final. Uma senhora assim, sempre vestida de
negro e de luvas de linho.
E meu irmão se calou, assoviando entre os dentes irritados com a ideia das
luvas de linho friccionando sobre as pontas das unhas. Ele tinha treze anos e eu
sete. Com seus cabelos cortados aos moldes de tigela e olhos de um azul pálido,
se parecia como um jovem modelo italiano. Era de extrema doçura e totalmen-
te irredutível
— A propósito, — ele retoma — esteja pronta amanhã às dez horas. Há um
trabalho a ser feito.
— Que trabalho?
— Um trabalho pelo repouso da alma de Lugustu Trutrumeque.
— O pai ou o filho?
84
E P I TÁ F I O S
— O pai.
— Às dez horas eu não posso, estarei na escola.
— Azar o teu, não verás o trabalho. Deixa-me sozinho, preciso pensar no
epitáfio da Senhora Egremimi Pulitien.
Apesar de o aviso ter soado como uma ordem, segui meu irmão até o celei-
ro. Sobre um cavalete, ele cortava e colava as folhas de papelão branco em for-
ma de ladrilhos nivelados, de lápides arredondadas ao alto, de mausoléus retan-
gulares ao pé de uma cruz. Ainda, em tipografias decoradas, pintava com tinta
chinesa os epitáfios breves ou longos que perpetuavam, em puro estilo “mar-
morista”, os pesares e virtudes de um suposto ser. “Aqui repousa Astoniphron-
que Bonscop, falecido no dia 22 de junho de 1874 aos cinquenta e quatro anos
de idade. Bom pai, bom esposo. O céu o esperava, e a terra o lamenta. Rezemos
por ele.” Estas pequenas linhas cruzavam em negro uma pequena lápide em for-
ma de porta romana, com saliências que simulavam aquarela. Um suporte, se-
melhante aos que asseguram o equilíbrio de cavaletes de quadro, o inclinava
graciosamente para trás.
— É um pouco seco. — disse meu irmão. Mas, se tratando de um declama-
dor... Farei melhor para a Senhora Egremimi.
Ele me permitiu ler um fragmento:
— “Ó tu, modelo das esposas cristãs! Morres aos dezoito anos, quatro ve-
zes mãe! Os gemidos lacrimejantes de teus filhos não te detiveram! Tua jovem
paixão decadente, teu esposo procura em vão o esquecimento...”. Cá estou.
— Começa bem. Ela tinha quatro filhos aos dezoito anos?
— Como eu disse.
— E sua paixão decatente? O que é paixão decatente?
Meu irmão deu de ombros.
— Não podes entender, tens apenas sete anos. Põe a cola em banho-maria.
Prepara duas pequenas coroas de pérolas azuis para a tumba dos gêmeos Aziour-
ne, que nasceram e morreram no mesmo dia.
— Ó! Eles eram adoráveis?
85
COLETTE
86
E P I TÁ F I O S
87
GENE WOLFE
tradução:
TIAGO KROICH
Gene Wolfe é um escritor americano de ficção científica e fantasia. Ganhador seis vezes
do prêmio literário Locus, duas vezes do Nebula e nomeado ao Hugo oito vezes, é mais
conhecido pela série de livros conhecida como Solar Cycle, em especial a tetralogia The
Book of the New Sun, e pelo conto The Fifth Head of Cerberus. Foi editor da revista Plant
Engineering. Formado em engenharia industrial pela Universidade de Houston, também é
conhecido por suas contribuições à máquina usada pela Pringles no processamento de
batatas fritas.
O conto The God and His Man foi publicado pela primeira vez em 1980 na Isaac Asimov’s
Science Fiction Magazine e incluído na coletânea de contos Endangered Species, de 1989 e em
The Best of Gene Wolfe, 2009.
H
á muito, muito tempo, quando o Universo era antigo, o incrível
e poderoso deus Isid Iooo IoooE, cujo nome é versado de outra
maneira por outros, e que está destinado a fazer, em todos os
tempos e lugares, somente aquilo que é bom, veio ao mundo de Zed. Como é
sabido por todos os homens, tais deuses viajam em embarcações que não co-
nhecem o naufrágio – e como poderiam, se eternamente os deuses permane-
cem despertos e com as mãos ao leme? Ele veio, vos digo, ao mundo de Zed, mas
não aportou nem pousou, pois não cabe aos deuses (conforme a vontade de seus
criadores, que há muito lhes regraram) se enveredar por qualquer mundo, por
mais celestial ou tranquilo que seja.
Portanto, Isid Iooo IoooE permaneceu sobre os céus, e sua embarcação,
embora mais rápida que o vento, pairava de tal forma a ficar completamente
suspensa – algo que as próprias estrelas, com suas muitas cores, não podem –
sobre aquela ilha de Zed que os homens de Zed (pois são homens, ou quase)
chamam de Terra. Então o deus contemplou Zed, e vendo que os homens de
Zed eram homens e suas mulheres eram mulheres, convocou um certo homem
de Urth. Os chamados de Isid Iooo IoooE não podem ser ignorados.
— Homem, — disse o deus, — vai ao mundo de Zed. Pois vê: os homens de
Zed são como és, e suas mulheres são mulheres. — Então fez com que o Homem
enxergasse através de seus olhos, e o Homem viu os homens de Zed, como ar-
rebanhavam o gado e aravam a terra e batiam os pequenos tambores de Zed. E
viu as mulheres de Zed, como muitas eram belas, e como viviam em mágoa e
ócio, ou em trabalho e cansaço, tal como as mulheres de Urth.
O DEUS E SEU HOMEM
90
GENE WOLFE
lanças e mil feitiços a guardavam. Dentro havia domos brancos e torres bran-
cas, uma centena de fontes, e jardins que subiam as montanhas, para depois
descê-las como sorridentes crianças saltando de cachoeiras. Lá sentava o Ho-
mem com conforto, trocando histórias com seus capitães de suas inúmeras ba-
talhas. Lá escutava os passos de suas dançarinas e os sons da chuva, e meditava
sobre suas pernas fartas e seus rostos sorridentes. E enfim cansou-se destas
coisas e, encobrindo-se com seu manto Tarnung, desapareceu e nunca mais foi
visto naquela fortaleza.
Então vagou pelas terras fumegantes, onde as árvores eram mais altas que
suas torres e os homens são temerosos e, das sombras, atiram pequenas flechas
envenenadas, menores que um palmo. Por muito tempo o Homem vagou, co-
berto sempre de seu manto Tarnung, pois espada alguma pode contra tais fle-
chas no pescoço. O peso da espada curvada tornara-se opressivo, e o calor das
terras fumegantes enferrujara sua lâmina, então um dia ele a jogou em um rio
vagaroso onde crocodilos negros nadavam e hipopótamos de olhos cor-de-âm-
bar flutuavam como troncos ou urravam como trovões. Mas o Homem não se
desfez da espada mágica Maser.
E nas terras fumegantes o Homem observou as peculiaridades das grandes
árvores, segundo as quais cada uma é uma ilha, com seus próprios habitantes; e
estudou os segredos das bestas de Zed, cuja astúcia é tão menor que a inteligên-
cia dos homens, e cuja sabedoria é tão maior. Lá domou uma pantera cujos
olhos eram como três esmeraldas, e que passou a segui-lo como um cão e matar
por ele como um falcão; e quando chegou a uma vila dos homens das terras fu-
megantes, pulou de um galho alto para cima da cabeça de uma estátua, pôs abai-
xo a cabana do líder com a espada Maser, e desapareceu de vista. Quando retor-
nou à vila um ano depois, a antiga estátua estava destruída, e uma nova estátua
fora erguida, com um raio à mão e uma pantera aos pés.
Então seguiu para dentro da vila e abençoou todo seu povo, e fez do colo
da estátua seu novo trono. O Homem montou um elefante com marfim verme-
lho-sangue e duas trombas; suas canoas-de-guerra percorriam o rio com uma
91
O DEUS E SEU HOMEM
centena pés; seus tambores eram tocados com os ossos de líderes; suas esposas
eram protegidas do sol para que sua beleza pálida o seduzisse a voltar para a
cabana à noite e suas peles frescas lhe dessem sossego mesmo nas terras fume-
gantes, e eram nutridas de azeite e farinha para que o Homem se deitasse sobre
elas como sobre almofadas de seda. E assim permaneceria, não fosse um sonho
da noite, em que o deus Isid Iooo IoooE aparecera e lhe ordenara viajar e conhe-
cer as terras frias.
Lá percorreu mil estradas lamacentas e beijou lábios suaves em uma cen-
tena de jardins chuvosos. O povo das terras frias não possuía escravos e tinha
muitas leis, e sua justiça fascinava os estrangeiros, e assim foi que o Homem
achou o pão das terras frias duro e escasso, e limpou botas por comida; e por
muito tempo cavou valas para escoar os campos.
E a cada dia a nave de Isid Iooo IoooE circulava Zed, e quando fizera umas
tantas centenas de voltas, Zed circulou seu sol solitário, e circulou outra vez, e
ainda outra vez, e mais uma vez, até que a barba do Homem embranqueceu, e a
astúcia, que lhe ganhara batalhas nas terras quentes e altas e pusera abaixo a
estátua nas terras fumegantes, foi sucedida por algo melhor e menos útil.
Um dia, cravou a lâmina de sua pá na terra e virou as costas. Em um bos-
que, o Homem sacou a espada Maser (a qual não desembainhara há muito tem-
po, e temia que seu encantamento não fosse senão um sonho que tivera quando
jovem) e cortou uma pequena árvore. Fez dela um cajado e tomou a estrada
outra vez, e quando as folhas murcharam – o que ocorria lentamente naquela
terra fria e úmida – cortou outra, e depois outra, para que sempre discursasse à
sombra de seu cajado verdejante.
Na praça pública o Homem falou de honra, e de como é uma lei superior a
qualquer outra lei.
Na encruzilhada falou de liberdade, da liberdade que têm os ventos e as
nuvens, da liberdade que ama a todas as coisas e desconhece a culpa.
Ao lado dos portões da cidade contou histórias de cidades esquecidas que
foram e de cidades esquecidas que seriam, se os homens as esquecessem.
92
GENE WOLFE
Muitas vezes o povo das terras frias tentou aprisioná-lo de acordo com
suas leis, mas o Homem desaparecia sem deixar rastros. Muitas vezes zomba-
vam dele, mas o Homem apenas sorria diante do deboche que não conhecia
nenhuma lei. Muitos jovens das terras frias o ouviam, e muitos fingiam seguir
seus ensinamentos, e alguns de fato seguiram-nos e viveram vidas estranhas.
93
GENE WOLFE
— Pois o povo das terras frias é o mais próximo de mim. Não entendes que no
correr dos tempos as terras fumegantes, e toda a Terra de Zed, cairá perante um
de seus grandes povos?
Então, enquanto o Homem enxergava através dos olhos do deus, alguns
homens bons nas terras frias morreram, o que homens chamaram de relâmpa-
go. Alguns homens ruins também, e os homens falaram de doença. Sonhos
ocorreram a mulheres, e fantasias a crianças; chuva e vento e sol não mais eram
o que costumavam ser; e quando as crianças cresceram, os povos das terras frias
foram para as terras fumegantes e lá construíram casas e muralhas, onde se as-
sentaram em meio a poeira até morrerem.
— Nas terras quentes e altas, — comentou o Homem, — o povo das terras
fumegantes teria sofrido muito. Muitos deles possuí, trabalhando sob o chicote
para construir minhas muralhas. E ainda assim cantavam quando podiam, cor-
riam quando podiam, e roubavam minha comida quando não podiam. E alguns
até engordaram assim.
E o deus Isid Iooo IoooE respondeu:
— Antes a morte de um homem, que sua escravidão.
— Ainda assim, — o Homem respondeu, — tu mesmo o disseste. — E,
brandindo a espada Maser, golpeou o deus, e Isid Iooo IoooE sucumbiu em fu-
mos e chamas azuis.
Se o Homem também sucumbiu, quem dirá? Faz muito tempo desde que o
Homem foi visto na Terra de Zed, mas já outrora tinha o costume de desapare-
cer. Da fortaleza perdida nas montanhas, coberta de rosas, quem dirá quem a
defende? Das pequenas flechas envenenadas, assassinas penumbrosas, quem
dirá quem as lança? Das estradas lavadas pela chuva, que serpenteiam por entre
cidades esquecidas, quem dirá que trilhas há lá?
No entanto, é possível que tudo isso já tenha passado, pois são coisas de
um tempo remoto, quando o Universo era antigo e havia mais deuses.
94
H.P. LOVECRAFT
A MALDIÇÃO DE
SARNATH
título original:
THE DOOM THAT CAME TO SARNATH
tradução:
GEORGE AYRES MOUSINHO
N
a terra de Mnar, há um vasto e ermo lago que não é alimentado
por nenhum córrego, tampouco deságua em algum. Dez mil
anos atrás, em suas margens se erguia a poderosa cidade de Sar-
nath, mas lá Sarnath não mais está.
Reza a lenda que em tempos imemoriais, quando o mundo ainda era jo-
vem, antes mesmo de os homens de Sarnath chegarem às terras de Mnar, outra
cidade se localizava às margens do lago; a cidade de pedra cinzenta de Ib, tão
antiga quanto o próprio lago, e habitada por coisas que não eram agradáveis de
se ver. Estes seres eram deveras estranhos e feios, como o são seres de um mun-
do ainda inacabado e rudimentar. Está escrito nos ladrilhos cilíndricos de Ka-
datheron que os seres de Ib eram de tom verde como de um lago e a bruma que
paira sobre ele; que possuíam olhos bojudos, lábios lânguidos e protuberantes,
e orelhas peculiares, além de não possuírem voz. Também está escrito que des-
cenderam da lua através de uma névoa em certa noite; com eles o vasto e ermo
lago e a cidade de Ib com sua rocha cinzenta. Entretanto, é certo que cultuavam
um ídolo cinzelado em uma pedra cor verde-marinha, o qual se assemelhava a
Bokrug, o grande lagarto-d’água; diante de tal ídolo eles dançavam horrivel-
mente quando a lua se esgueirava. E está escrito no papiro de Ilamek que um dia
descobriram o fogo, e a partir de então invocavam chamas em muitas ocasiões
cerimoniais. Mas não muito está escrito sobre tais criaturas, porque viveram
em tempos vetustos, e o homem é ainda jovem e sabe pouco das coisas vivas de
tempos antigos.
Muitos éons haviam passado quando homens chegaram à terra de Mnar;
96
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H
povos escuros e pastoris em seus bandos vestidos com lã, que construíram
Thraa, Ilarnek e Kadatheron no sinuoso rio Ai. Certas tribos, mais resistentes
do que o resto, avançaram à fronteira do lago e construíram Sarnath em um
local onde metais preciosos haviam sido encontrados na terra.
Não distante da cidade cinzenta de Ib as tribos nômades ergueram as pri-
meiras rochas de Sarnath, e demonstraram grande admiração pelas criaturas de
Ib. Mas em sua admiração ocultava-se um ódio, pois pensavam eles que não era
possível que criaturas de tal aspecto andassem pelo mundo dos homens sob o
crepúsculo. Tampouco apreciaram as estranhas esculturas sobre os monólitos
cinzentos de Ib, pois tais esculturas eram terríveis por sua grande antiguidade.
Não se sabe o porquê de tais seres e suas esculturas terem perdurado por tanto
tempo no mundo, até mesmo a vinda dos homens; a menos que tenha sido pelo
fato de a terra de Mnar ser muito erma, e remota das outras terras, fossem elas
reais ou surreais.
Quanto mais os homens de Sarnath observavam os seres de Ib, mais seu
ódio crescia, e não por menos, porque achavam os seres fracos, e tenros como
geleia ao toque de pedras e lanças e flechas. Um dia, os jovens guerreiros – com
fundas, lanças, arcos e flechas – marcharam sobre Ib e exterminaram todos os
seus habitantes, arremessando os estranhos corpos dentro do lago com longas
lanças, porque não queriam tocá-los. E visto que eles não gostavam dos monó-
litos cinzentos de Ib, também os lançaram ao lago; espantados com o labor
grandioso com o qual tais pedras foram trazidas de tão longe, como devem ter
sido, visto que não há nada como elas em toda a terra de Mnar ou em terras
vizinhas.
Destarte, nada sobrou da antiquíssima cidade de Ib além do ídolo de pedra
verde-marinho cinzelado nas formas de Bokrug, o lagarto-d’água. Os jovens
guerreiros o levaram para Sarnath como símbolo de conquista sobre os deuses
e os seres antigos de Ib, e como símbolo de domínio sobre Mnar. Mas na noite
após o ídolo ser alojado no templo, algo terrível deve ter acontecido, pois luzes
estranhas foram vistas sobre o lago, e pela manhã o povo não mais encontrou o
97
H . P. L O V E C R A F T
ídolo, e o alto-sacerdote Taran-Ish estava morto, como que por um horror in-
dizível. E antes de perecer, Taran-Ish havia rabiscado no altar de crisólita com
linhas tortuosas e rudes a palavra MALDIÇÃO.
Muitos altos-sacerdotes sucederam Taran-Ish em Sarnath, mas o ídolo de
pedra verde-marinho nunca fora encontrado. Muitos séculos se passaram, nos
quais Sarnath prosperara abundantemente, de forma que somente sacerdotes e
velhas lembravam o que Taran-Ish havia riscado no altar de crisólita. Entre Sar-
nath e a cidade de Ilarnek surgira uma rota comercial, e os metais preciosos da
terra eram trocados por outros metais e roupas raras e joias e livros e utensílios
para artesãos e todas as coisas soberbas que eram conhecidas pelos povos que
habitavam as margens do rio Ai e além. Então, Sarnath se tornara poderosa e
sábia e bela, e enviara adiante exércitos conquistadores para subjugar as cidades
vizinhas; e com o tempo, sentaram sobre o trono de Sarnath os reis de toda a
terra de Mnar e de muitas terras vizinhas.
A maravilha do mundo e o orgulho de toda a humanidade era Sarnath, a
magnífica. Seus muros eram de mármore oriundo do deserto, de 300 cúbitos de
altura e espessura de 75, para que bigas pudessem passar umas pelas outras
quando dirigidas sobre a extensão dos muros. Por uma extensão de 49 milhas
os muros corriam, abertos apenas face ao lago; lá onde um quebra-mar de rocha
verde apaziguava as ondas que estranhamente surgiam uma vez ao ano, quando
da celebração da destruição de Ib. Em Sarnath existiam cinquenta ruas do lago
aos portões das caravanas, e mais cinquenta perpendiculares a elas. Eram pavi-
mentadas com ônix, exceto aquelas por onde cavalos e camelos e elefantes pas-
savam, as quais eram pavimentadas com granito. E os portões de Sarnath se
assomavam às ruas que terminavam opostas ao lago, todos de bronze, e flan-
queados por estátuas de leões e elefantes esculpidas de uma rocha não mais
conhecida pelo homem. As casas de Sarnath eram de um tijolo esmaltado e de
calcedônia, todas com seu próprio jardim murado e açudes de cristal. Eram
construídas através de uma estranha arte, pois não havia casas como elas em
nenhuma outra cidade; e viajantes de Thraa e Ilarnek e Kadatheron maravilha-
98
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H
99
H . P. L O V E C R A F T
100
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H
Zokkar. E os reis olhavam por sobre o lago e amaldiçoavam os ossos dos mor-
tos que em seu fundo adormeciam. A princípio, os altos-sacerdotes não apre-
ciavam tais festivais, pois entre eles corriam contos esquisitos de como os íco-
nes verde-marinhos haviam perecido, e como Taran-Ish havia morrido por
medo e deixado um aviso. E diziam que, por vezes, de sua alta torre, viam luzes
por baixo das águas do lago. Mas como muitos anos haviam passado sem qual-
quer calamidade, até mesmo os sacerdotes se riam e amaldiçoavam e se junta-
vam às orgias dos festivos. De fato, não haviam eles mesmos, do alto de sua
torre, não raro realizado o antigo e secreto ritual em aversão a Bokrug, o lagar-
to-d’água? Assim, milhares de anos de riquezas e gozo abençoaram Sarnath, a
maravilha do mundo e orgulho de toda a humanidade.
Imensuravelmente belas foram as festividades de mil anos da destruição
de Ib. Por uma década elas haviam sido grande assunto na terra de Mnar, e ao
se aproximarem as festividades, cavalos e camelos e elefantes traziam homens
de Thraa, Ilarnek e Kadatheron, e todas as cidades de Mnar e além. Na noite
esperada, diante das muralhas de mármore estavam cravados pavilhões de prín-
cipes e tendas de viajantes, e toda a costa reverberava canções de alegres convi-
vas. Dentro de seu salão repousava Nargis-Hei, o rei, bêbado do vinho antigo
das adegas da dominada Pnath, e estava ele rodeado pela nobreza desordeira e
escravos laboriosos. Lá foram consumidas muitas iguarias exóticas; pavões das
ilhas de Nariel no Oceano Médio, cabritos das colinas longínquas de Implan,
patas de camelos do deserto Bnázico, nozes e temperos dos bosques Cydathria-
nos, e pérolas da costeira cidade de Mtal dissolvidas em vinagre de Thraa. Mo-
lhos mil foram trazidos, preparados pelos mais argutos cozinheiros de toda
Mnar, e adequados ao paladar de cada conviva. Mas mais valiosa de todas as
especiarias eram os grandes peixes do lago, todos graúdos, e servidos sobre es-
cudelas áuricas adornadas com rubis e diamantes.
Enquanto o rei e seus nobres se regalavam no palácio, e se serviam com os
pratos soberbos que os aguardavam sobre as escudelas douradas, outros feste-
javam algures. Os sacerdotes se apraziam na torre do grande templo, e em pavi-
101
H . P. L O V E C R A F T
102
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H
103
ROBERT MUSIL
O PAPEL PEGA-MOSCA
título original:
DAS FLIEGENPAPIER
tradução:
FERNANDO SILVA E SILVA
O
papel pega-mosca Tangle-foot tem mais ou menos 63 centímen-
tros de altura e 21 centímetros de largura. É coberto com uma
cola amarela envenenada e vem do Canadá. Quando uma mosca
pousa sobre ele – não especialmente ávida, mais por convenção, porque tantas
já estão ali – ela cola, primeiramente, apenas as juntas mais externas de suas
perninhas. Uma sensação delicada e desconcertante, como quando nós cami-
nhamos no escuro e com as solas dos pés nuas pisamos em algo. Não é nada
mais que um objeto macio, morno e indefinido no caminho, que, invadido pou-
co a pouco pela assombrosa humanidade, é reconhecido como uma mão que
como por acaso está ali deitada e nos agarra com cinco dedos cada vez mais
definidos. Então elas se põem forçosamente eretas, como sifilíticos que não
querem deixar-se notar, ou como velhos soldados decrépitos (e com as pernas
um pouco arqueadas, como quando se está em pé sobre uma superfície estreita).
Elas dão uma pausa e reúnem força e razão. Após alguns segundos elas se deci-
dem e começam a fazer o que podem, a zumbir e se erguer. Continuam esse
processo tanto quanto conseguem, até que a exaustão as compele a parar.
Seguem uma pausa para respirar e uma nova tentativa. Mas os intervalos
tornam-se cada vez mais longos. Elas ficam lá e sinto o quão impotentes elas
são. De baixo sobem vapores inebriantes. Como um pequeno martelo a língua
delas tateia ao redor. Suas cabeças são marrons e cabeludas, como se fossem
feitas de coco; como ídolos africanos que lembram humanos. Elas dobram-se
para frente e para trás sobre suas perninhas firmemente presas, dobram os joe-
lhos e erguem-se, como homens fazem quando tentam de todas as formas mo-
105
O PA P E L P E G A - M O S C A
ver um fardo pesado; mais trágico do que como o trabalhador o faz, mais ver-
dadeiro na expressão atlética do mais extremo esforço do que o Laocoonte. E
então vem o momento esquisito e sempre igual, no qual a necessidade do se-
gundo atual vence o todo poderoso sentimento de preservação do ser. É o mo-
mento no qual um alpinista, por causa da dor nos dedos, deliberadamente abre
as mãos; no qual um perdido na neve deita-se ali mesmo como uma criança, no
qual um perseguido com os pulmões queimando para de correr. Elas não mais
se mantêm em pé com toda a força, elas afundam um pouco e nisso são total-
mente humanas. Imediatamente são presas em um novo lugar, mais alto na per-
na ou atrás do corpo ou na ponta de uma das asas.
Quando superam o esgotamento espiritual e retomam a luta por suas vi-
das, já estão presas em uma situação desagradável e seus movimentos não são
mais naturais. Então, deitam-se com as pernas traseiras esticadas com os coto-
velos erguidos e tentam levantar-se. Ou sentam sobre o solo, empinadas, com
os braços esticados, como mulheres que querem em vão arrancar suas mãos
doloridas dos punhos de um homem. Ou deitam sobre a barriga, com a cabeça
e os braços para fora, como se tivessem caído enquanto corriam, e deixam ape-
nas o rosto para o alto. O inimigo é sempre apenas passivo e ganha justamente
nessas situações desesperadoras e confusas. Um nada, um algo as puxa. Tão
devagar que mal se pode acompanhar e geralmente com uma aceleração repen-
tina ao fim, quando o último colapso interno as toma. Elas se deixam então re-
pentinamente cair para frente sobre o rosto, com as pernas para fora; ou de
lado, com todas as pernas esticadas; frequentemente também sobre o flanco,
com as pernas debatendo-se para trás. Assim elas ficam ali. Como destroços de
aviões, com uma asa contra o vento. Ou como cavalos mortos. Ou com infinitos
gestos de desespero. Ou como pessoas que dormem. Ainda no dia seguinte, às
vezes uma acorda, tateia um pouco com uma perna ou bate uma asa. De vez em
quando tal movimento se espalha por toda a extensão do papel e então afundam
todas um pouco mais em sua morte. E ao lado do corpo, próximo à junta da
perna, elas têm ainda um pequeno órgão agonizante que ainda vive. Abre e fe-
106
ROBERT MUSIL
cha. Não é possível ver sem uma lente de aumento, mas parece um minúsculo
olho humano, que incessantemente abre e fecha.
107
HARLAN ELLISON
tradução:
RICHARD COSTA
O conto aqui traduzido, I Have No Mouth, and I Must Scream, foi publicado pela primeira
vez em março de 1967 na revista de ficção científica IF: Worlds of Science Fiction. Em 1968,
o autor recebeu um Hugo Award de melhor conto. Mais tarde, o conto foi incluído em uma
coleção de contos com o mesmo nome.
S
em vida, o corpo de Gorrister estava pendurado na paleta rosada;
pêndulo — suspenso muito acima de nós na câmara do computador;
e não se arrepiava com a brisa fria e oleosa que soprava eternamen-
te na gruta central. Estava suspenso de cabeça para baixo, preso à parte de baixo
da paleta pela sola do pé direito. Tinha sido esgotado de todo o sangue através
de uma incisão exata de orelha a orelha embaixo de sua mandíbula protuberan-
te. Não havia sangue na superfície espelhada do piso de metal.
Quando Gorrister voltou para junto de nós, olhou para cima e se viu pen-
durado, já era tarde demais para perceber que, mais uma vez, AM tinha nos
enganado, se divertindo às nossas custas; era só mais uma distração para a má-
quina. Três de nós vomitaram, virando-se de costas uns para os outros num
reflexo tão antigo quanto a náusea que produziu o vômito.
Gorrister empalideceu. Foi como se tivesse visto um ídolo de vodu, e ago-
ra tinha medo do futuro.
— Meu Deus, — murmurou, e saiu andando.
Nós três fomos atrás dele depois de um tempo, e o encontramos sentado,
virado de costas para um dos menores bancos de dados tiritantes, com a cabeça
nas mãos. Ellen se ajoelhou ao seu lado e acariciou seus cabelos. Ele não se me-
xeu, mas a voz saiu do rosto coberto com toda a clareza.
— Por que ele não acaba logo com a gente de uma vez? Meu Deus, não sei
mais por quanto tempo vou aguentar.
Era o centésimo-nono ano dentro do computador.
Ele estava dizendo o que todos nós estávamos pensando.
109
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
Nimdok (esse era o nome que a máquina o forçou a usar, porque ela se
divertia com sons estranhos) estava delirando que havia produtos enlatados nas
grutas de gelo. Gorrister e eu duvidávamos muito.
— É mais um truque, — eu disse. — Que nem aquela porra de elefante con-
gelado que ele inventou. Benny quase ficou louco por causa daquilo. A gente vai
ter que fazer a viagem até lá e daí a comida vai estar podre, ou algo assim. Acho
melhor esquecer e ficar aqui. A máquina vai ter que arranjar alguma coisa logo
ou a gente vai morrer.
Benny deu de ombros. Fazia três dias que a gente não comia. Vermes. Gor-
dos, viscosos.
Nimdok não tinha certeza. Sabia que tinha uma chance, mas estava ema-
grecendo. Lá não podia ser pior do que aqui. Mais frio, talvez, mas não fazia
muita diferença. Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou gafanhotos — nunca
fazia nenhuma diferença: a máquina se masturbava e a gente tinha de aguentar
ou morrer.
Ellen nos fez decidir.
— Preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez lá tenha peras ou pêssegos. Por
favor, Ted, vamos tentar.
Eu cedi facilmente. Fazer o quê. Não fazia nenhuma diferença. Ellen ficou
grata, no entanto. Deixou que eu fizesse duas vezes, e nem era minha vez. Nem
isso fazia diferença. E ela nunca gozava, então dane-se. Mas a máquina soltava
risadinhas toda vez que a gente transava. Bem alto, no topo, no fundo, ao redor,
rindo com desprezo. A coisa ria. Geralmente, eu pensava em AM como uma
coisa, sem alma; mas às vezes eu pensava na coisa como se fosse Ele, no mascu-
lino... o paterno... o patriarcal... pois Ele é um deus ciumento. Ele. Coisa. Papai
110
HARLAN ELLISON
do céu, o Demente.
Partimos numa quinta-feira. A máquina fazia questão de sempre nos dizer
a data. A passagem do tempo era importante; não para nós, óbvio, mas para ele...
para a coisa... AM. Quinta-feira. Obrigado.
Nimdok e Gorrister carregaram Ellen por um tempo, com as mãos segu-
rando os antebraços, formando um assento. Benny e eu íamos na frente e atrás,
só para ter certeza de que, se algo acontecesse, aconteceria com um de nós pri-
meiro, e pelo menos Ellen ficaria segura. Segura... até parece. Não fazia diferen-
ça.
Era só uns cento e cinquenta quilômetros até chegar nas grutas de gelo, e,
no segundo dia, quando a gente estava deitado à luz da coisa-sol fumegante que
Ele tinha materializado, ele fez uma chuva de maná. Tinha gosto de mijo de ja-
vali fervido. A gente comeu tudo.
No terceiro dia, passamos pelo vale da obsolescência, repleto de carcaças
enferrujadas de bancos de dados antigos. AM era tão cruel com sua própria vida
quanto com as nossas. Era uma marca da sua personalidade: aspirava à perfei-
ção. Seja exterminando elementos improdutivos de seu próprio organismo, que
ocupava o mundo todo, ou aperfeiçoando métodos para nos torturar, AM era
tão meticuloso quanto podiam ter imaginado os seus inventores — há muito
tempo reduzidos a pó.
A luz descia do alto, diluída, e percebemos que devíamos estar muito perto
da superfície. Mas não tentamos rastejar até lá em cima para ver. Não existia
praticamente nada lá fora; não existia nada que pudesse ser considerado algo, há
mais de cem anos. Apenas a pele destroçada de algo que um dia tinha sido o lar
de bilhões. Agora havia apenas cinco de nós, aqui dentro, embaixo da superfície,
sozinhos com AM.
Ouvi Ellen dizendo histericamente:
— Não, Benny! Não, Benny, não, por favor!
E então percebi que estivera ouvindo Benny murmurando por vários mi-
nutos. Estava dizendo, “Eu vou sair, eu vou sair...” sem parar. Seu rosto simiesco
111
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
112
HARLAN ELLISON
nas costelas.
Então o som começou. Era luz, aquele som. Metade som e metade luz, algo
que começou a brilhar dos olhos de Benny, e pulsar em volume crescente, sono-
ridades obscuras que se tornaram mais gigantescas e ofuscantes à medida que a
luz-som aumentou com o tempo. Devia ser muito doloroso, e a dor devia estar
aumentando com a força da luz, o volume crescente do som, visto que Benny
começou a choramingar como um animal ferido. Primeiro suavemente, quando
a luz estava obscura e o som estava mudo, depois mais alto quando seus ombros
se encurvaram: suas costas se corcovando, como se estivesse tentando escapar
daquilo. Suas mãos se encurvaram sobre o peito como um esquilo. A cabeça se
inclinou de lado. A cara triste de macaco se apertou de agonia. Então começou
a uivar quando o som, saindo dos seus olhos, foi ficando mais alto. Cada vez
mais alto. Eu batia as mãos na minha cabeça, mas não conseguia tirar o som de
dentro, penetrava facilmente. A dor rasgava minha carne como se fosse papel
de alumínio nas minhas gengivas.
E de repente Benny foi alçado. Estava de pé em cima da viga, como se ti-
vesse sido puxado por cima como uma marionete. A luz agora pulsava de seus
olhos como dois grandes raios redondos. O som rastejava, cada vez mais alto
numa escala incompreensível, e então ele foi empurrado para a frente, caiu di-
reto, e atingiu o piso de aço com um estrondo. Ficou caído se contorcendo con-
vulsivamente enquanto a luz fluía ao seu redor e o som se espiralava para o alto,
fora do alcance normal.
Então a luz incidiu de volta para dentro da cabeça dele, o som se espiralou
para dentro, e ele ficou largado no chão, chorando pateticamente.
Seus olhos eram poças moles e líquidas, cheias de uma geleia de pus. AM o
deixou cego. Gorrister e Nimdok e eu... demos as costas. Mas não antes de sur-
preender o olhar de alívio no rosto terno e preocupado de Ellen.
113
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
1 I think, therefore I AM. A ambiguidade é proposital do autor: o nome ecoa o YHWH hebraico. Os significados
literais da sigla foram adaptados para o português. No original são, respectivamente: Allied Mastercomputer, Adaptive
Manipulator & Aggressive Menace. (N.T.)
114
HARLAN ELLISON
115
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
meçou a lamuriar. O lábio inferior de Nimdok tremia e ele o mordeu com força,
tentando parar o tremor. Ellen deslizou no piso de metal para perto de Gorris-
ter e se apertou a ele. Surgiu um cheiro de pelo molhado e emaranhado na gru-
ta. Cheiro de madeira chamuscada. Cheiro de veludo poeirento. Cheiro de or-
quídeas podres. Cheiro de leite azedo. Cheiro de enxofre, de ranço, de película
de óleo, de sebo, de pó de giz, de escalpos humanos.
AM estava nos manipulando. Estava nos fazendo cócegas. Cheiro de —
Eu me ouvi gritando, e as articulações das minhas mandíbulas doeram. Saí
correndo pelo piso, pelo metal frio com suas linhas infinitas de rebites, caí de
quatro, o cheiro me sufocando, preenchendo minha cabeça com uma dor trove-
jante que me fazia fugir de terror. Fugi como uma barata, rastejando no piso e
no escuro, e aquela coisa se mexendo inexoravelmente atrás de mim. Os outros
ainda estavam lá atrás, em volta da fogueira, rindo... o coro histérico das risadas
insanas subindo no escuro como uma fumaça grossa de várias cores. Fugi, rapi-
damente, e me escondi.
Quantas horas se passaram, quantos dias ou mesmo anos, nunca me disse-
ram. Ellen me repreendeu por “ficar amuado,” e Nimdok tentou me convencer
de que tinha sido apenas um reflexo nervoso da parte deles — o riso.
Mas eu sabia que não era o alívio que um soldado sente quando a bala acer-
ta o homem ao lado. Sabia que não era um reflexo. Eles me odiavam. Com cer-
teza estavam contra mim, e AM detectava esse ódio, e tornava tudo pior para
mim exatamente por causa da profundidade do ódio. Ele nos mantinha vivos,
rejuvenescidos, permanecendo sempre com a mesma idade que tínhamos quan-
do AM nos abduziu, e eles me odiavam porque eu era o mais jovem, e o único
que AM quase não tinha afetado.
Eu sabia. Meu Deus, como eu sabia. Os filhos-da-puta, e aquela puta imun-
da Ellen. Benny tinha sido um teórico brilhante, um professor de universidade;
e agora não era nada mais que um coisa semi-humana, semi-símio. Tinha sido
bonito, e a máquina arruinou tudo. Tinha sido lúcido, e a máquina o deixou
louco. Tinha sido homossexual, e a máquina lhe deu um órgão de cavalo. AM
116
HARLAN ELLISON
117
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
119
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
120
HARLAN ELLISON
única coisa que tinha para fazer com sua eternidade. Ficaríamos com ele para
todo o sempre, com aquela enorme massa de grutas que era a criatura-máquina,
naquele mundo puramente mental e sem alma que tinha se tornado. Ele era a
Terra, e nós éramos o fruto da Terra; e embora ele tivesse nos devorado, nunca
faria a digestão. Não poderíamos jamais morrer. Até tentamos. Tentamos co-
meter suicídio, bem, um ou dois de nós tentou. Mas AM nos impediu. Talvez até
queríamos que nos impedisse.
Não pergunte por quê. Eu nunca perguntei. Mais de um milhão de vezes
por dia. Talvez algum dia seríamos capazes de surrupiar uma morte enquanto
ele estivesse distraído. Imortais, sim, mas não indestrutíveis. Eu percebi isso
quando AM se desconectou da minha mente, e me concedeu o delicado horror
de retornar à consciência com a sensação do pilar de neon em chamas ainda
cravado no fundo da minha massa cinzenta macia. Ele se afastou, murmurando,
vai para o inferno.
E acrescentou, claramente, mas na verdade você já está aqui, não é.
O furacão tinha sido causado, de fato, exatamente por uma grande ave
louca, batendo suas imensas asas.
Tínhamos viajado por quase um mês, e AM tinha permitido que passagens
se abrissem para nós apenas o bastante para nos levar até lá: diretamente abaixo
do Polo Norte, onde conjurou a criatura de um pesadelo, especialmente para
nosso tormento. Que espécie de tecido tinha empregado para criar um tal
monstro? Onde adquiriu o conceito? De nossas mentes? Do seu conhecimento
de tudo que já houve neste planeta onde agora ele reinava e infestava tudo? Sur-
giu da mitologia nórdica, essa águia, esse abutre, esse roc, esse Huergelmir. A
121
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
2 Roc é uma ave gigante lendária que se alimentava de elefantes. É mencionada nas Mil e Uma Noites, e nos re-
latos de Marco Polo. Huergelmir não é um nome genuíno da mitologia nórdica; foi sugerido pelo autor Poul Anderson
a Harlan Ellison. Huracán é o deus maia do vento, da tempestade e do fogo, uma das divindades criadoras da teogonia
maia que participou das três tentativas de criar a humanidade. (N.T.)
122
HARLAN ELLISON
comida. E agora quanto mais tempo para encontrar o caminho até as grutas de
gelo, e os produtos enlatados prometidos?
Nenhum de nós se importava em pensar nisso. Não iríamos morrer. Ele
nos daria lixo e imundície para comer, de um jeito ou de outro. Ou nada. AM
manteria nossos corpos vivos de algum modo, com dor, com agonia.
A ave dormia lá em cima, não fazia diferença por quanto tempo; quando
AM se cansasse dela, desapareceria. Mas toda aquela carne. Toda aquela carne
macia...
Enquanto andávamos, a risada lunática de uma mulher gorda ecoava alto
lá em cima e ao redor nas câmaras do computador que levavam sempre para
lugar nenhum.
Não era a risada de Ellen. Ela não era gorda, e eu não tinha ouvido ela rir
por cento e nove anos. Na verdade, nunca ouvi... continuamos andando... estava
com fome...
124
HARLAN ELLISON
va. Começou a jogar latas, enquanto nos arrastávamos de quatro no gelo ten-
tando encontrar um jeito de acabar com aquela agonia indefesa de frustração.
Não tinha jeito.
Então a boca de Benny começou a espumar, e ele se lançou contra Gorris-
ter.
Naquele exato momento, eu me senti terrivelmente calmo.
Cercado de loucura, torturado de fome, cercado por todo tipo de horror a
não ser a morte, sabia que a morte era a única saída. AM nos mantinha vivos,
mas havia uma maneira de derrotá-lo. Não uma derrota total, mas ao menos
paz. Ficaria satisfeito com isso.
Tinha que agir rápido.
Benny estava comendo a cara de Gorrister. Gorrister caído de costas, se
debatendo na neve, Benny enrolado em volta dele com as pernas fortes de ma-
caco esmagando a cintura de Gorrister, suas mãos apertando a cabeça de Gor-
rister como um quebra-nozes, e a boca rasgando a pele tenra da bochecha de
Gorrister. Gorrister gritava com tal violência brutal e aguda que estalactites
caíram, e se fincaram suavemente eretas nos montes de neve. Lanças, centenas
delas, em todo lugar, protuberantes na neve. A cabeça de Benny puxou com
força, num momento em que algo cedeu ao mesmo tempo, e uma polpa de car-
ne sangrenta de uma cor branca crua estava pendurada nos seus dentes.
O rosto de Ellen, negro contra a neve branca, dominó contra um pó de giz.
Nimdok, inexpressivo a não ser nos olhos, tudo nos olhos. Gorrister, semicons-
ciente. Benny, agora um animal completo. Eu sabia que AM ia deixar ele brin-
car. Gorrister não ia morrer, mas Benny ia encher a pança. Eu me virei para a
direita e arranquei uma enorme lança de gelo da neve.
Tudo aconteceu num único instante:
Usei uma lança de gelo enorme na minha frente como um aríete, fixado
contra minha coxa direita. Acertei Benny do lado direito, bem embaixo da caixa
torácica, e levantei, passando pelo estômago e quebrando a lança dentro dele.
Ele caiu de barriga e não se mexeu mais. Gorrister ainda estava deitado de cos-
125
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
tas. Peguei outra lança e saltei em cima dele, que ainda respirava, e cravei a lan-
ça direto na garganta. Seus olhos se fecharam ao penetrar da lança gélida. Ellen
devia ter percebido o que eu decidi fazer, ainda que o medo a dominasse. Cor-
reu até Nimdok com uma lança curta, enquanto ele gritava, e o acertou dentro
da boca, a força do impacto fez o resto. Sua cabeça se contorceu agudamente
como se tivesse sido pregada à crosta da neve atrás dele.
Tudo num único instante.
Houve um pulso de eternidade, de antecipação muda. Eu conseguia ouvir
AM respirar. Seus brinquedos lhe tinham sido roubados. Três estavam mortos,
não podiam mais ser ressuscitados. Ele podia nos manter vivos, através de sua
força e talento, mas não era Deus. Não era capaz de trazê-los de volta à vida.
Ellen olhou para mim, seus traços de ébano contrastando com a neve que
nos cercava. Havia medo e súplica em sua expressão, no modo como ela se mos-
trou pronta. Eu sabia que tínhamos apenas um momento antes que AM nos
impedisse.
A lança de gelo a atingiu e ela caiu contra mim, o sangue transbordando na
boca. Eu não consegui ler o sentido da expressão no seu rosto, a dor tinha sido
grande demais, contorcendo seu rosto; mas pode ser que tenha sido um “obriga-
do”. Pode ser. Por favor.
Alguns séculos devem ter se passado. Sei lá. AM tem sido engraçado com
o tempo, acelerando e retardando meu senso temporal. Eu vou dizer a palavra
agora. Agora. Levei dez meses para dizer agora. Sei lá. Acho que faz uns séculos.
Ele ficou furioso. Não me deixou enterrá-los. Não fazia diferença. Não
havia como abrir um buraco entre as chapas de ferro. Secou toda a neve. Baixou
a noite. Urrou e soltou gafanhotos. Não adiantava nada; eles continuaram mor-
126
HARLAN ELLISON
tos. Eu peguei o filho da puta. Ele ficou furioso. Eu achava que AM me odiava
antes. Estava errado. Aquilo não era nem uma gota do ódio que agora ele espre-
me de cada circuito impresso. Ele garantiu que eu sofreria eternamente e não
seria capaz de me matar.
Deixou minha mente intacta. Posso sonhar, posso imaginar, posso lamen-
tar. Lembro de todos eles. Queria que —
Bem, não faz nenhum sentido. Sei que os salvei, salvei do que aconteceu
comigo, mas ainda assim, não consigo esquecer que os matei. O rosto de Ellen.
Não é fácil viver com isso. Às vezes eu quero, mas não faz diferença.
AM me alterou para ficar mais tranquilo, acho. Ele não quer que eu corra
contra um banco de memória e quebre minha cabeça. Ou que segure minha
respiração até desmaiar. Ou que corte minha garganta com uma chapa de metal
enferrujada. Há superfícies espelhadas embaixo de mim. Vou descrever como
eu me vejo.
Sou uma grande coisa de geleia mole. Redondo e liso, sem boca, com bura-
cos brancos pulsantes cheios de névoa onde meus olhos costumavam estar.
Apêndices borrachudos que um dia foram meus braços; massas se arredondan-
do para baixo em forma de bolos sem pernas, de matéria mole e escorregadia.
Eu deixo um rastro molhado no chão quando me movo. Manchas de um cinza
doentio e maligno surgem e somem de repente na superfície da minha pele,
como se a luz brilhasse de dentro.
Externamente: estupidamente, vou me arrastando por aí, uma coisa que
nunca poderia ser reconhecida como humana, uma coisa cuja forma é uma ca-
ricatura tão alienada que a humanidade se torna obscena simplesmente pela
vaga semelhança.
Internamente: sozinho. Aqui. Vivendo embaixo da terra, embaixo do mar,
na barriga de AM, o qual criamos porque nosso tempo era mal usado e devía-
mos saber inconscientemente que ele faria algo melhor. Ao menos quatro de
nós finalmente estão em paz.
127
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R
AM ficará mais furioso por causa disso. Isso me deixa um pouco mais feliz.
E mesmo assim... AM venceu, simplesmente... ele obteve a vingança...
Não tenho boca, e preciso gritar.
128
REFERÊNCIAS GRÁFICAS
Capa
Ilustração de CHESTERTON, G.K.
Do livro Emmanuel Burden (BELLOC, HILLAIRE)
Fonte: http://bit.ly/VE92l0
Fontes
Crimson Text
http://aldusleaf.org/crimson.php
Ornamentos
Vectorian Free Vector Pack
http://www.vectorian.net
Termos de Uso
A Revista Trocados é publicada sob uma licença Creative Commons Internacional 3.0 —
permitindo seu compartilhamento com atribuição, sem usos comerciais e obras derivadas.
Capítulo IV
Das Limitações aos Direitos Autorais
ISSN 2316-2740