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n.

2 2013

Aleksandar Hemon / A. K. Coomaraswamy / Colette


Vicente Huidobro / Jordanes / Stephen Crane
C.S. Lewis / Juan José Saer / Gene Wolfe
H.P. Lovecraft / Robert Musil / Harlan Ellison
“Eu incentivo os tradutores dos meus livros a
tomarem toda a liberdade que precisarem.
Isso não é realmente um gesto heroico como
pode parecer, pois descobri, trabalhando com
tradutores ao longo dos anos, que o próprio
original é, de certa maneira, uma tradução.”

Michael Cunningham
Found in Translation
EDIÇÃO E ORGANIZAÇÃO
Richard Costa

DESIGN E ORGANIZAÇÃO
César Ganimi Machado

REVISÃO
Tiago Kroich

TRADUTORES
César Ganimi Machado
Douglas Silva e João Silva
Fabiana Esse
Fernando Silva e Silva
Flávia Maria Nascimento
George Ayres Mousinho
Gustavo H. S. S. Sartin
Hugo Crema
Pedro Sette-Câmara
Richard Costa
Stephanie C. L. Fernandes
Tiago Kroich

M
Revista Trocados
v.1, n.2 2013

ISSN 2316-2740
EDITORIAL

N esta segunda edição, como prometido,


temos ensaios além de contos. Seguem
algumas impressões pessoais sobre cada um dos
A Meditação no Galpão de Ferramentas, um ensaio
singelo de C.S. Lewis, sobre os problemas das
observações externas que descartam nossa
textos. experiência interior.
O Aquário, um ensaio pessoal de Aleksandar Fotofobia, de Juan José Saer, uma ficção intimista
Hemon, é brutal em sua delicadeza, de uma tristeza sobre os devaneios de uma moça que sofre de aversão
catártica. É uma crônica da luta contra a doença de patológica à luz.
sua filha; uma leitura pesada que, ao mesmo tempo, Epitáfios, de Colette, relata as desventuras de um
se torna quase impossível de largar. jovem compositor de epitáfios que se torna um
Para que serve a arte?, de Ananda K. Coomaraswamy, necrófilo casto e romântico.
uma crítica corajosa contra a arte-pela-arte em favor O Deus e Seu Homem, uma fantasia científica de
de uma concepção clássica de arte. Revela as Gene Wolfe, na qual um deus-astronauta e seu
consequências da arte-pela-arte na arte atual, que escolhido confrontam as naturezas humana e divina.
muitas vezes parece arte-por-porcaria-nenhuma. A Maldição de Sarnath, conto já clássico de H.P.
A Criação pura, de Vicente Huidobro, outro ensaio Lovecraft, desfia as glórias pretéritas de uma “cidade
sobre a arte, mas com outra visão sobre os propósitos invisível” fadada ao esquecimento e à ruína.
da arte e do artista. Segundo o autor, o artista ideal O papel pega-mosca, uma micro-não-ficção de
deve imitar não as obras da natureza, mas o seu modo Robert Musil, descreve a agonia de uma mosca em
de composição. seus últimos momentos grudentos, em comparação à
A introdução geográfica de Sobre as Origens e condição humana.
Feitos dos Godos, do godo medieval Jordanes, aparece Não Tenho Boca, e Preciso Gritar, conto especulativo
como a tradução mais acadêmica desta edição, e de Harlan Ellison, retrata os sofrimentos dos últimos
serve um propósito filológico, embora não deixe de sobreviventes da espécie humana num inferno
ser uma curiosidade epistolar. computadorizado pós-apocalíptico, onde uma
Uma Ilusão em Vermelho e Branco, de Stephen inteligência artificial onipotente se torna Deus e
Crane, um conto que por fim se revela uma fábula Diabo.
realista sobre crianças, mentiras e assassinato. Boa leitura.

Florianópolis, 24 de fevereiro de 2013


Richard Costa
SUMÁRIO

O Aquário — Uma família isolada por uma doença 7


Aleksandar Hemon
Tradução de Stephanie C. L. Fernandes

Para que server a arte, afinal? 28


Ananda Kentish Commaraswamy
Tradução de Pedro Sette-Câmara

A Criação pura: ensaio de Estética 42


Vicente Huidobro
Tradução de Douglas Silva e João Silva

Sobre as Origens e os Feitos dos Godos 51


Jordanes
Tradução de Gustavo H. S. S. Sartin

Uma Ilusão em Vermelho e Branco 60


Stephen Crane
Tradução de César Ganimi Machado

Meditação no Galpão de Ferramentas 68


C.S. Lewis
Tradução de Fabiana Esse

Fotofobia 74
Juan José Saer
Tradução de Hugo Crema

Epitáfios 83
Colette
Tradução de Flávia Maria do Nascimento

O Deus e Seu Homem 88


Gene Wolfe
Tradução de Tiago Kroich

A Maldição de Sarnath 95
H.P. Lovecraft
Tradução de George Ayres Mousinho

O Papel Pega-Mosca 104


Robert Musil
Tradução de Fernando Silva e Silva

Não Tenho Boca, e Preciso Gritar 108


Harlan Ellison
Tradução de Richard Costa
ALEKSANDAR HEMON

O AQUÁRIO
título original:
THE AQUARIUM

tradução:
STEPHANIE C. L. FERNANDES

Aleksandar Hemon nasceu em Sarajevo, na antiga Iugoslávia, em 1964. Durante uma visita
a Chicago, em 1992, sua cidade natal foi sitiada e ele não pôde voltar para casa. Radicado
nos Estados Unidos desde então, Hemon publicou quatro livros que combinam suas
histórias de exílio, humor e ficção — as coletâneas de contos E o Bruno? e Amor e
Obstáculos; e os romances As Fantasias de Pronek e O Projeto Lazarus, todos escritos em
inglês.

“O Aquário” é um ensaio sobre sua filha Isabel que, ainda bebê, foi diagnosticada com uma
doença extremamente rara. A partir da experiência da família — incluindo o amigo
imaginário de sua filha mais velha, de três anos — Hemon entende que criar e contar
histórias é uma ferramenta humana básica para a sobrevivência. Foi publicado pela
primeira vez no periódico The New Yorker em 2011.

Stephanie Fernandes é tradutora e estudante de Letras – Linguística na Universidade de


São Paulo. “O Aquário” é seu primeiro trabalho literário a ser publicado. No momento,
está traduzindo a autobiografia do Monty Python para a editora Realejo.
O Aquário — Uma família isolada por
uma doença
© Aleksandar Hemon

N
o dia 15 de julho de 2010, minha esposa Teri e eu levamos nossa
filha mais nova, Isabel, ao médico para uma consulta geral. Ela
tinha nove meses e parecia perfeitamente saudável. Seus pri-
meiros dentes haviam nascido e ela já comia com a gente na mesa de jantar,
balbuciando e se empanturrando de cereal. Era uma criança alegre e animada,
gostava de pessoas, coisa que, corria a piada, ela não herdara do pai rabugento.
Eu e a Teri sempre íamos juntos às consultas médicas das nossas filhas e,
dessa vez, também levamos a Ella, a irmã mais velha da Isabel, de quase três
anos. A enfermeira do consultório do Dr. Armand Gonzales mediu a tempera-
tura, o peso, a altura e a circunferência da cabeça da Isabel, e a Ella ficou feliz
por não ter que passar pelo mesmo procedimento. O Dr. G, como o chamáva-
mos, ouviu a respiração da Isabel e examinou seus olhos e ouvidos. No compu-
tador, abriu o quadro de desenvolvimento dela: sua altura estava dentro do es-
perado; ela estava um pouco abaixo do peso ideal. Tudo parecia bem, exceto
pela circunferência de sua cabeça, que, comparada à última medição, estava
duas medidas acima do normal. O Dr. G ficou preocupado. Relutante em man-
dar Isabel para uma ressonância magnética, marcou um exame de ultrassom
para o dia seguinte.
De volta em casa, naquela noite, Isabel estava agitada e irritada; custou a
adormecer e acordou a noite toda. Se não tivéssemos ido ao médico, teríamos
presumido que ela só estava muito cansada, mas agora tínhamos um quadro
interpretativo diferente, pautado pelo medo. Mais tarde, naque noite, tirei a

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Isabel do nosso quarto (ela sempre dormia com a gente) para acalmá-la. Na co-
zinha, cantei para ela meu repertório inteiro de canções de ninar: “You Are My
Sunshine”, “Brilha, Brilha, Estrelhinha” e uma obra de Mozart que aprendi
quando criança, cujas letras em bosniano lembrei por milagre. Cantar as três
canções de ninar num incansável loop geralmente funcionava, mas dessa vez
demorou bastante até que ela encostasse sua cabeça no meu peito e se aquietas-
se. Quando ela fez isso, parecia que estava me confortando, dizendo que tudo
ficaria bem. Preocupado do jeito que estava, imaginei um futuro em que um dia
me lembraria desse momento e contaria aos outros como a Isabel é que tinha
me acalmado. Minha filha, eu diria, cuidou de mim, e ela só tinha nove meses.
Na manhã seguinte, Isabel passou por um exame ultrassom, chorando nos
braços de Teri durante o procedimento. Pouco depois de chegarmos em casa, o
Dr. G. telefonou para nos contar que a Isabel estava com hidrocefalia e que pre-
cisávamos ir a um pronto-socorro imediatamente — era uma situação de vida
ou morte.
No pronto-socorro do Hospital Memorial Infantil de Chicago, deixaram a
sala de exames às escuras, pois Isabel estava prestes a passar por uma tomogra-
fia e os médicos esperavam que ela adormecesse para não ter que drogá-la. Mas
ela não podia comer, porque havia a possibilidade de uma ressonância magné-
tica posterior, e ficou chorando de fome. Um residente deu um cata-vento co-
lorido a ela e soprou para distraí-la. Ela finalmente adormeceu. Enquanto a
tomografia estava em andamento, nós esperávamos algo se revelar, com muito
medo de imaginar o que poderia ser.
O Dr. Tadanori Tomita, chefe da neurocirurgia pediátrica, leu as tomogra-
fias para nós: os ventrículos do cérebro da Isabel estavam dilatados, cheios de
fluido. Algo estava bloqueando os canais de drenagem, disse o Dr. Tomita, pos-
sivelmente “um cisto”. Uma ressonância magnética era urgente.
Teri segurou Isabel em seus braços enquanto davam as anestesias. Depois,
nós a entregamos aos enfermeiros para uma ressonância de uma hora de dura-
ção. O refeitório, no porão do hospital, era o lugar mais triste do mundo, com

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ALEKSANDAR HEMON

suas sinistras luzes neon e mesas cinzas e o mal-estar difuso daqueles que ha-
viam deixado crianças em sofrimento para comer um queijo quente. Não ousa-
mos especular sobre os resultados da ressonância magnética; estávamos anco-
rados no momento, que, por mais aterrorizante que fosse, ainda não havia se
estendido a um futuro.
Chamados pela imagiologia médica, caminhamos até a sala do Dr. Tomita,
pelo corredor excessivamente iluminado. “Creio que”, disse ele, “a Isabel tem
um tumor.” Ele nos mostrou as imagens da ressonância em seu computador:
bem no centro do cérebro da Isabel, alojado entre o cerebelo, o tronco cerebral
e o hipotálamo, havia um negócio redondo. Era do tamanho de uma bola de
golfe, segundo o Dr. Tomita , mas eu nunca havia me interessado por golfe e não
conseguia visualizar o que ele queria dizer. Ele removeria o tumor e nós desco-
briríamos de que tipo era só depois do relatório da patologia. “Mas parece um
teratoide”, disse ele. Eu também não entendia a palavra “teratoide” — estava
além da minha experiência, pertencendo ao domínio do inimaginável e incom-
preensível, o domínio ao qual Dr. Tomita estava agora nos conduzindo.
Isabel estava dormindo na sala de recuperação, sem se mexer, inocente. Eu
e a Teri beijamos suas mãos e sua testa e choramos ao longo do momento que
dividia nossa vida entre o antes e o depois. O antes estava agora e para sempre
encerrado, enquanto o depois estava se espandindo, como uma estrelinha ex-
plosiva num universo negro de dor.
Ainda inseguro quanto à palavra que o Dr. Tomida havia pronunciado,
pesquisei tumores cerebrais na Internet e encontrei uma imagem de um tumor
que era quase idêntico ao da Isabel. Seu nome completo era, eu li, “teratoide
atípico/tumor rabdoide” (ATRT). Era altamente maligno e extremamente raro,
ocorrendo em apenas três entre um milhão de crianças e representando em
torno de três por cento de casos de câncer pediátrico no sistema nervoso cen-
tral. A taxa de sobrevivência para crianças com menos de três anos era menor
que dez por cento. Havia estatísticas mais desencorajantes ainda disponíveis
para eu ponderar sobre, mas me afastei da tela, decidindo, em vez disso, conver-

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sar com os médicos da Isabel e confiar somente neles; nunca mais eu pesquisa-
ria as condições dela na Internet. Eu já entendia que seria necessário adminis-
trar nosso conhecimento e nossa imaginação se não quiséssemos perder a
cabeça.
No sábado, 17 de julho, o Dr. Tomita e sua equipe de neurocirurgiões im-
plantaram um reservatório Ommaya na cabeça da Isabel, para ajudar a drenar e
alivar a pressão do fluido cerebroespinhal acumulado. Quando a Isabel retor-
nou a seu quarto no hospital, no andar da neurocirurgia, ela chutou seu cober-
tor, como costumava fazer; tomamos isso como um sinal encorajante, um pri-
meiro passo de esperança numa longa jornada. Na segunda-feira, ela foi
liberada do hospital para esperar, em casa, pela cirurgia que removeria o tumor,
que estava agendada para o fim da semana. Os pais da Teri estavam na cidade,
pois a irmã dela havia dado luz ao segundo filho no dia da consulta da Isabel —
muito preocupados com a Isabel, mal demos atenção ao novo membro da famí-
lia — e a Ella passou o fim de semana com os avós, sem notar direito o furor da
nossa ausência. A tarde de terça-feira estava ensolarada e nós saímos para uma
caminhada, a Isabel amarrada ao peito de Teri. Naquela noite, corremos para o
pronto-socorro, porque a Isabel teve febre; era provável que estivesse com uma
infeção, o que não é incomum depois da inserção de um objeto estranho — nes-
se caso, o Ommaya — na cabeça de uma criança.
Ela tomou antibióticos e passou por uma ressonância ou duas; o Ommaya
foi removido. Na tarde de quarta-feira, deixei o hospital e voltei para casa para
ficar com a Ella, já que tínhamos prometido levá-la à feira do nosso bairro. Era
essencial, no meio da catástrofe, manter nossas promessas. Eu e a Ella compra-
mos mirtilos e pêssegos; no caminho de volta para casa, paramos na nossa loja
de massas favorita e levamos um cannoli de primeira. Conversei com a Ella
sobre Isabel estar doente, sobre o tumor, e contei que ela teria que ficar com a
vovó naquela noite. Ela não reclamou nem chorou; ela entendeu, como qual-
quer criança de três anos poderia, a dificuldade da nossa situação.
Quando eu estava caminhando até o carro, cannoli em mãos, para voltar

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ALEKSANDAR HEMON

ao hospital, a Teri ligou. O tumor da Isabel havia causado uma hemorragia; pre-
cisavam fazer uma cirurgia de emergência. O Dr. Tomita estava esperando para
conversar comigo antes de entrar na sala de operação. Levei em torno de quin-
ze minutos para chegar ao hospital, através de um trânsito que existia num es-
paço-tempo completamente diferente, onde as pessoas não se apressavam para
atravessar a rua, nenhuma criança corria perigo de vida e tudo se afastava vaga-
rosamente do desastre.
No quarto do hospital, caixa de cannoli ainda em mãos, me deparei com a
Teri em prantos sobre a Isabel, que estava mortalmente pálida. O Dr. Tomita
estava lá, as imagens da hemorragia da nossa filha já abertas na tela. Aparente-
mente, quando o fluido foi drenado, o tumor se expandiu para o espaço vago e
suas veias sanguíneas começaram a estourar. Remoção imediata do tumor era a
única esperança, mas havia um risco distinto da Isabel sangrar até morrer. Uma
criança da idade dela tem pouco mais de meio litro de sangue no corpo, Dr.
Tomita nos contou, e talvez a transfusão contínua não bastasse.
Antes que acompanhássemos a Isabel até o pré-operatório, coloquei o can-
noli na geladeira que havia no quarto dela. A lucidez egoísta desse ato gerou
uma sensação imediata de culpa. Só fui entender mais tarde que aquele ato ab-
surdo estava relacionado a uma forma desesperada de esperança: o cannoli po-
deria ser necessário para nossa sobrevivência futura.
A expectativa era de que a cirurgia durasse entre quatro e seis horas; o as-
sistente do Dr. Tomita nos manteria informados. Beijamos a testa da Isabel, tão
pálida quanto um pergaminho, e assistimos a uma gangue de estranhos masca-
rados conduzi-la ao desconhecido. Eu e a Teri retornamos ao quarto da Isabel
para aguardar. Nós nos alternamos entre choro e silêncio. Dividimos um pouco
do cannoli para nos mantermos firmes — por dias, mal comemos ou dormimos.
As luzes do quarto eram fracas; estávamos numa cama, atrás de uma cortina e,
por algum motivo, ninguém nos incomodou. Estávamos longe do mundo de
feiras e mirtilos, onde crianças nasciam e viviam e avós colocavam netas para
dormir. Nunca me senti tão próximo de um ser humano como me senti da mi-

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nha esposa naquela noite.


Um pouco depois da meia-noite, o assistente do Dr. Tomita nos chamou
para dizer que a Isabel sobrevivera à cirurgia. O Dr. Tomita acreditava ter re-
movido a maior parte do tumor. A Isabel estava passando bem e logo seria
transferida para a Unidade de Tratamento Intensivo, disse ele, onde nós pode-
ríamos vê-la. Lembro daquele momento ser relativamente feliz: a Isabel estava
viva. Apenas o resultado imediato era relevante; tudo que poderíamos querer
era alcançar o próximo passo; seja qual fosse. Na UTI, encontramos ela enros-
cada numa rede de agulhas intravenosas, tubos e cabos, paralisada pelo rocurô-
nio (chamado de “a pedra” por todos ali), que havia sido administrado para pre-
venir que ela se livrasse dos tubos respiratórios. Passamos a noite observando a
Isabel, beijando os dedos da sua mão abatida, lendo ou cantando para ela. No
dia seguinte, liguei o iPod em caixas de som, não só na crença delirante e bem-
-intencionada de que ouvir música seria bom para um cérebro doloroso, em
recuperação, mas também para anular o barulho desumano do hospital: os bi-
pes dos monitores, os respiradores ofegantes, a conversa indiferente de enfer-
meiros no corredor, o alarme que apitava sempre que a condição de um pacien-
te piorava de repente. Na companhia das suítes de violoncelo de Bach ou peças
de piano de Charles Mingus, registrei cada oscilação das batidas cardíacas da
Isabel, cada mudança em sua pressão arterial. Eu não conseguia tirar os olhos
dos cruéis números flutuantes dos monitores, como se o mero ato de encará-los
pudesse influenciar o resultado.
Existe um mecanismo psicológico, concluí, que previne que a maioria de
nós imagine a própria morte. Pois se fosse possível imaginar por completo
aquele instante de passagem da consciência para a não-existência, com todo o
medo concomitante e a humilhação do desamparo absoluto, seria muito difícil
viver. Seria insuportavelmente óbvio que a morte está inscrita em tudo que
constitui a vida, que qualquer momento da sua existência pode estar a apenas
um respiro de ser o último. Seríamos continuamente devastados pela magnitu-
de desse fato inevitável. Ainda assim, à medida que nos aproximamos da mor-

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ALEKSANDAR HEMON

talidade, começamos a molhar os dedos do pé no vazio, tremendo de horror,


esperando que nossa mente se acalme, de alguma forma, rumo à morte, que
Deus ou algum outro ópio tranquilizador permaneçam disponíveis enquanto
nos encaminhamos para a escuridão do não-ser.
Mas como se acalmar frente à morte de um filho? Em primeiro lugar, a
morte de um filho deve acontecer bem depois da sua própria dissolução no va-
zio. Os filhos devem seguir o percurso por mais décadas e décadas, durante as
quais vivem felizes sem o fardo da sua presença, e enfim completar a mesma
trajetória mortal que os pais: esquecimento, negação, medo, o fim. Devem lidar
com a própria mortalidade, e nenhuma ajuda sua há de ser providenciada nesse
contexto (exceto forçá-los a confrontar a morte enquanto morrem) — a morte
não é um trabalho da escola. E mesmo se você puder imaginar a morte dos seus
filhos, por que o faria?
Mas fui amaldiçoado com uma imaginação compulsiva e catastrófica, e
muitas vezes imaginei o pior. Eu costumava me visualizar atropelado por um
carro sempre que atravessava a rua; eu podia ver, de fato, as camadas de sujeira
no eixo do carro enquanto a roda esmagava meu crânio. Quando ficava preso
num metrô sem luz, enxergava um dilúvio de fogo avançando pelo túnel, em
direção ao trem. Só depois de conhecer a Teri consegui deixar o tormento da
minha imaginação sob controle. E, depois que nossas filhas nasceram, aprendi
a deletar rápido qualquer visão de algo terrível acontecendo a elas. Algumas
semanas antes do câncer da Isabel ser diagnosticado, notei que a cabeça dela
parecia grande e ligeiramente assimétrica, e uma pergunta invadiu a minha
mente: e se ela tiver um tumor no cérebro? Mas bani o pensamento quase que
imediatamente. Mesmo se você puder imaginar seu filho com uma doença gra-
ve, por que o faria?
Dois dias após o Dr. Tomita operar e remover o tumor, uma ressonância
mostrou que ainda havia um pedaço restante no cérebro da Isabel. Quanto mais
câncer fosse removido, melhor seria o prognóstico, então a Isabel teve que pas-
sar por outra cirurgia e, em seguida, voltar para a UTI. Logo, depois que ela foi

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transferida da UTI para a neurocirurgia, descobriram que seu líquido cefalor-


raquidiano ainda não estava sendo drenado: um dreno ventricular externo foi
colocado e uma passagem para drenagem foi aberta em seu cérebro. Ela nunca
mais teve febre. O DVE foi removido; seus ventrículos estavam dilatados e
cheios de fluido, a ponto de ameaçar sua vida, e a pressão arterial estava caindo.
Submetida a ainda mais um exame de emergência, com o rosto virado para
cima no túnel da ressonância magnética, ela quase sufocou, o vômito borbu-
lhando em sua boca. Por fim, um shunt foi implantado, permitindo com que o
fluido fosse diretamente drenado rumo a seu estômago.
Em menos de três semanas, a Isabel havia sido submetida a duas ressecções
cerebrais — em que os hemisférios de seu cérebro foram separados para permi-
tir com que o Dr. Tomita tivesse acesso à região entre o tronco, a glândula pine-
al e cerebelo e tirasse o tumor com uma colher — e seis cirurgias adicionais,
para tratar da falha de drenagem do fluido. Um tubo foi inserido em seu peito
para que os remédios da quimioterapia pudessem ser administrados direta-
mente em sua corrente sanguínea. Como se não bastasse, um tumor inoperável,
do tamanho de um amendoim, foi então detectado no lóbulo frontal, e o relató-
rio patológico confirmou que o câncer era mesmo ATRT. A quimioterapia esta-
va marcada para começar dia 17 de agosto, um mês após o diagnóstico, e os
oncologistas da Isabel, Dr. Jason Fangusaro e Dr. Rishi Lulla, não queriam dis-
cutir o prognóstico. Nós não ousamos pressionar.
Eu e a Teri passamos a maior parte das primeiras semanas após o diagnós-
tico no hospital. Tentamos passar um tempo com a Ella, cuja entrada não era
permitida na UTI, embora ela pudesse visitar a Isabel na ala da neurocirurgia e
sempre a fizesse sorrir. A Ella parecia estar lidando muito bem com a situação.
Familiares e amigos vieram à nossa casa para dar apoio, nos ajudando a distraí-
-la da nossa ausência contínua. Quando conversávamos com a Ella sobre a do-
ença da Isabel, ela escutava de olhos bem abertos, preocupada e perplexa.
Foi em algum momento das primeiras semanas da odisseia que Ella come-
çou a falar do seu irmão imaginário. De repente, em meio a turbilhões de pala-

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ALEKSANDAR HEMON

vras, identificávamos histórias sobre um irmão, que às vezes era um ano mais
velho, às vezes estava no colegial, e viajava ocasionalmente, por algum motivo
obscuro, para Seattle ou Califórna, retornando a Chicago apenas para protago-
nizar mais um monólogo aventureiro da Ella.
Não é incomum, claro, que crianças da idade da Ella tenham amigos ou
irmãos imaginários. A criação de personagens está relacionada, acredito, à ex-
plosão de habilidades linguísticas que ocorre entre dois e quatro anos de idade,
quando a criança produz um excesso de linguagem e não tem experiência o
bastante para corresponder. Ela tem que construir narrativas imaginárias para
experimentar as palavras que de repente possui. A Ella agora conhecia a palavra
“Califórnia”, por exemplo, mas não tinha experiência alguma relacionada a ela;
nem conseguia conceitualizá-la quanto a seu aspecto abstrato — sua californie-
dade. Portanto, seu irmão imaginário teve que ser posicionado no Estado Enso-
larado, o que permitia com que a Ella falasse à vontade como se conhecesse a
Califórnia. As palavras exigiam a história.
Ao mesmo tempo, a detonação de linguagem nessa idade cria uma distin-
ção entre exterioridade e interioridade: a interioridade da criança agora pode
ser expressa e, portanto, externalizada; a palavra dobra. A Ella agora podia falar
sobre o que era aqui e o que era outro lugar; a linguagem permitiu com que aqui
e outro lugar fossem contínuos e simultâneos. Uma vez, durante o jantar, per-
guntei à Ella o que o irmão dela estava fazendo naquele exato momento. Ele
estava no quarto dela, ela respondeu assertiva, fazendo birra.
No começo, o irmão não tinha nome. Quando perguntavam o nome dele,
Ella respondia “Gugu Gagá”, que era o som sem sentido que o Malcolm, seu
primo favorito, de cinco anos, fazia quando não sabia a palavra para algo. Já que
Charles Mingus é praticamente uma divindidade na nossa casa, sugerimos à
Ella o nome Mingus, e Mingus seu irmão se tornou. Pouco tempo depois, o
Malcolm deu à Ella um boneco inflável de um alien espacial, que ela logo elegeu
para incorporar o Mingus, um personagem existencialmente escorregadio.
Embora a Ella brincasse com frequência com o irmão inflado, a presença física

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do alien não era sempre necessária para que ela emitisse ordens pseudopater-
nais a Mingus ou contasse uma história sobre as fugas dele. Enquanto nosso
mundo estava se reduzindo ao tamanho claustrofóbico de um terror incessante,
o de Ella se expandia.
Um tumor rabdoide teratoide típico é tão raro, que há poucos protocolos
de quimioterapia criados especificamente para ele. Muitos dos protocolos dis-
poníveis vêm de tratamentos para meduloblastomas e outros tumores cere-
brais, modificados, com maior toxicidade para combater a malignidade perver-
sa do ATRT. Alguns desses protocolos envolvem um tratamento focado em
radiação, mas isso seria prejudicial ao desenvolvimento de uma criança da ida-
de da Isabel. O protocolo que os oncologistas da Isabel decidiram usar consistia
em seis ciclos de quimioterapia de toxicidade extremamente alta, sendo o últi-
mo o mais intenso. Tão intenso, de fato, que as células sanguíneas imaturas da
Isabel, extraídas antes, teriam de ser reinjetadas após esse ciclo, num processo
chamado recuperação de células-tronco, para ajudar sua medula óssea danifi-
cada a se recuperar.
Ao longo da quimioterapia, ela também deveria receber transfusões de
plaquetas e glóbulos vermelhos, ao passo que, toda vez, seus glóbulos brancos
teriam de alcançar sozinhos os níveis normais. Seu sistema imunológico seria
temporariamente aniquilado e, assim que se recuperasse, outro ciclo de quimo-
terapia começaria. Por conta das suas extensas cirurgias cerebrais, a Isabel não
conseguiria mais sentar ou ficar de pé e teria de ser submetida a terapia física e
terapia ocupacional entre as fases da quimio. Em algum momento do futuro
incerto, deram a entender, ela talvez pudesse retornar ao estágio de crescimen-
to esperado, de acordo com as crianças da sua idade.
Quando o primeiro ciclo de quimioterapia começou, a Isabel tinha dez
meses de idade e pesava apenas sete quilos. Nos seus dias bons, ela sorria como
uma heroína, mais do que qualquer outra criança que conheci. Ainda que fos-
sem poucos, aqueles dias nos permitiam projetar algum tipo de futuro para a
Isabel e nossa família: agendamos as terapias; comunicamos nossos amigos e

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ALEKSANDAR HEMON

familiares quais dias eram bons para nos visitar; marcamos no calendário os
eventos das próximas semanas. Mas o futuro era tão precário quanto à saúde da
Isabel, estendendo-se apenas até o próximo passo razoavelmente alcançável: o
fim do ciclo da quimio, a recuperação da contagem dos glóbulos brancos. Eu
me impedi de imaginar qualquer coisa além disso. Se eu me imaginava seguran-
do a mãozinha dela enquanto ela morria, eu apagava a visão, muitas vezes as-
sustando a Teri ao falar alto comigo mesmo, “Não! Não! Não! Não!”. Eu bloque-
ava pensamentos sobre o outro resultado também — o sucesso da sobrevivência
dela — porque um tempo atrás passei a acreditar que o que eu queria que acon-
tecesse não aconteceria, precisamente porque eu queria que acontecesse. De-
senvolvi, portanto, uma estratégia mental que consistia em eliminar qualquer
anseio por bons resultados, como se o ato de desejar me expusesse às forças
impiedosas que movimentam o universo e causasse o exato oposto do que eu
esperava. Eu não ousava pensar em nada a não ser a vida presente da Isabel,
tortuosa, mas linda.
Um amigo meu, bem-intencionado, telefonou logo após o início do pri-
meiro ciclo de quimio da Isabel e a primeira coisa que ele perguntou foi “Então
as coisas se ajeitaram numa espécie de rotina?” A quimioterapia da Isabel, de
fato, oferecia um padrão aparentemente previsível. Os ciclos de quimio conti-
nham uma estrutura repetitiva inerente. Os remédios eram administrados na
mesma ordem e eram seguidos pelas mesmas reações — vômito, perda de ape-
tite, colapso do sistema imunológico — seguidas de NP intravenosa (nutrição
parenteral, dada a pacientes que não são capazes de comer), remédios anti-náu-
sea, antifúngicos e antibióticos, administrados em intervalos regulares. Depois,
havia as transfusões, as visitas ao pronto-socorro por conta da febre, a recupe-
ração gradual medida por contagens crescentes de células no sangue e alguns
dias tranquilos em casa, antes de começar o próximo ciclo.
Se a Isabel e a Teri, que raramente saía de perto dela, estavam no hospital
para a quimio, eu passava a noite em casa com a Ella, deixava ela na escola no
dia seguinte, depois levava um café-da-manhã para a Teri e, enquanto ela toma-

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va banho, cantava ou brincava com a Isabel. Eu limpava seu vômito e trocava as


fraldas, guardando-as para as enfermeiras, para que pudessem ser pesadas.
Numa linguagem pseudo-especialista, eu e a Teri discutíamos a noite anterior e
o que se esperava daquele dia. Esperávamos os médicos terminarem seus tur-
nos, para então fazer nossas perguntas difíceis.
O senso humano de conforto depende de ações familiares e repetitivas —
nossos corpos e mentes se esforçam para se acostumar a circunstâncias previsí-
veis. Mas não havia rotina duradoura que pudesse ser estabelecida para a Isabel.
Uma doença como o ATRT causa um colapso de todas as ordens biológicas,
emocionais e familiares: nada acontece como esperado, muito menos como de-
sejado. Além dos desastres repentinos e das visitas aos pronto-socorros, havia o
inferno diário: a tosse de Isabel raramente passava e muitas vezes resultava em
vômito; ela teve irritações na pele e constipação; ficou apática e fraca; nunca
fomos capazes de dizer a ela que as coisas melhorariam. Não existe uma quan-
tidade de repetições que possa deixar alguém acostumado a essas coisas. O con-
forto das rotinas pertencia ao mundo lá fora.
Certa manhã, cedo, dirigindo para o hopital, avistei uma série de atletas
saudáveis e energéticos correndo pela Avenida Fullerton, em direção ao lago
ensolarado, e tive uma forte sensação física de estar dentro de um aquário: eu
podia ver o lado de fora, as pessoas do lado de fora podiam me ver (se optassem
por prestar atenção), mas estávamos vivendo e respirando em ambientes com-
pletamente diferentes. A doença da Isabel e nossa experiência com ela não ti-
nham ligação com a vida deles, impacto nenhum. Eu e a Teri estávamos apreen-
dendo um conhecimento penoso que não tinha aplicação nenhuma no mundo
lá fora e não interessava a ninguém a não ser nós: os atletas corriam, monóto-
nos, rumo a seu aprimoramento; as pessoas festejavam a banalidade do hábito;
o cavalo do algoz continuou raspando seu traseiro inocente de encontro com
uma árvore.
O ATRT da Isabel deixou tudo em nossas vidas intensamente sobrecarre-
gado e real. Tudo do lado de fora era tão irreal quanto desprovido de substân-

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ALEKSANDAR HEMON

cias compreensíveis. Quando as pessoas que não sabiam sobre a doença da Isa-
bel me perguntavam quais eram as novidades e eu contava para elas, eu
testemunhava como rapidamente se retiravam para o horizonte distante de
suas vidas, onde coisas completamente diferentes importavam. Depois que
contei a meu contador que a Isabel estava doente, em estado grave, ele disse,
“Mas você está bem e isso é o mais importante!” Para seguir navegando calma-
mente, o mundo dependia de lugares-comuns e clichês que não tinham cone-
xão lógica nem conceitual com a nossa experiência.
Era difícil conversar com os partidários do “vai ficar tudo bem” e ainda
mais difícil escutá-los. Eram gentis e ofereciam apoio, e eu e a Teri suportamos
suas expressões de solidariedade sem ressentimentos, pois eles simplesmente
não sabiam o que mais dizer. Protegiam-se do que nós estávamos enfrentando
ao se limitar a um domínio gerenciável de linguagem batida e vazia. Mas nós
nos sentíamos bem mais confortáveis com pessoas que eram sábias o suficiente
para não esboçar apoio verbal, e nossos amigos mais próximos sabiam disso.
Preferíamos falar com o Dr. Lulla ou o Dr. Fangusaro, que podiam nos ajudar a
entender coisas que importavam, a ouvir um “aguenta firme.” (Que eu respon-
dia com “Não há onde segurar firme.”) E nos mantínhamos longe de qualquer
um que imaginávamos que pudesse nos oferecer o consolo daquele lugar co-
mum supremo: Deus. O capelão do hospital estava proibido de se aproximar de
nós.
Um dos clichês mais comuns que escutávamos era que “palavras falham.”
Mas palavras não estavam falhando comigo e com a Teri, nem um pouco. Não
era verdade que não havia como descrever nossa experiência. Eu e a Teri usu-
fruíamos de bastante linguagem para conversar sobre o horror do que estava
acontecendo, e nós conversávamos. As palavras do Dr. Fangusaro e do Dr. Lulla,
sempre dolorosamente pertinentes, tampouco falhavam. Se havia um problema
de comunicação, era que havia palavras demais e eram pesadas demais e espe-
cíficas demais para ser inflingidas aos outros. (Os remédios da Isabel, por exem-
plo: vincristina, metotrexato, etopósido, ciclofosfamida e cisplatina — criaturas

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O A Q UÁ R I O

de uma demonologia particularmente maligna.) Por instinto, protegíamos nos-


sos amigos do conhecimento que possuíamos; deixávamos eles pensarem que
palavras falhavam, porque sabíamos que não queriam aprender o vocabulário
que usávamos diariamente. Tínhamos certeza de que eles não queriam saber o
que sabíamos; nós também não queríamos saber.
Não havia mais ninguém dentro com a gente (e nós certamente não dese-
jávamos que os filhos dos nossos amigos sofressem de ATRT para que pudésse-
mos conversar com eles sobre isso). No guia para pais de crianças com tumores
cerebrais ou medulares, que nos deram no hospital, o ATRT não era “discutido
em detalhes” porque era muito raro; na verdade, fora completamente suprimi-
do. Sequer podíamos nos comunicar com o pequeno grupo de famílias com
crianças que foram assoladas pelo câncer. As paredes do aquário em que estáva-
mos eram feitas das palavras de outras pessoas.
Enquanto isso, Mingus permitia que Ella praticasse e expandisse sua lin-
guagem. Ele também deu a ela a companhia e o conforto que eu e a Teri mal
conseguimos prover. Nas manhãs que eu a levava para a escola, a Ella oferecia
contos de perder o fôlego sobre Mingus, tramas recônditas que se perdiam em
meio a uma enxurrada de palavras. De vez em quando, flagrávamos-na brin-
cando com o Mingus — versão alien ou imaginária — administrando medica-
mentos fictícios ou medindo sua temperatura, usando o vocabulário que ela
havia coletado em suas visitas ao hospital ou em nossas discussões sobre a do-
ença de Isabel. Ela nos contava que Mingus tinha um tumor e estava passando
por testes, mas que melhoraria em duas semanas. Uma vez, o Mingus teve até
uma irmãzinha chamada Isabel — completamente diferente da irmãzinha da
Ella — que também tinha um tumor e que também melhoraria em duas sema-
nas. (Duas semanas, percebi, era justamente a extensão de futuro que eu e a Teri
conseguíamos conceber naquela época.) Qualquer que fosse o conhecimento
acidental sobre a doença da Isabel que Ella estava acumulando, qualquer que
fossem as palavras que ela estava colhendo da nossa experiência, ela estava pro-
cessando através do seu irmão imaginário. E ela claramente sentia saudade da

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ALEKSANDAR HEMON

irmã, então Mingus trazia algum conforto nesse sentido também. Ela ansiava
por uma família unida novamente, a razão talvez por Mingus, um dia, adquirir
seus próprios pais e se mudar com eles para a rua ao lado, para então voltar no
dia seguinte. Para externalizar seus sentimentos complicados, Ella os atribuía a
Mingus, que então atuava de acordo.
Um dia, no café-da-manhã, enquanto Ella comia seu mingau de aveia e
divagava sobre seu irmão, reconheci, num instante de humildade, que ela estava
fazendo exatamente o que eu vinha fazendo como escritor ao longo dos anos:
os personagens ficcionais dos meus livros me permitiam entender o que pare-
cia difícil de entender (o que, até agora, tem sido praticamente tudo). Tal como
a Ella, eu me via cercado por um excesso de palavras, cuja riqueza excedia os
limites patéticos da minha própria biografia. Eu precisava de um espaço narra-
tivo onde pudesse me estender; precisava de mais vidas. Também precisei de
outros pais e de alguém que não eu mesmo para quem transferir meus chiliques
metafísicos. Cozinhei aqueles avatares na sopa do meu eu mutável, mas eles não
eram eu — eles faziam o que eu não era capaz de fazer. Ao ouvir o desenrolar
furioso e sem-fim dos contos da Ella, entendi que a necessidade de contar his-
tórias estava profundamente enraizada nas nossas mentes, emaranhada nos
mecanismos que geram e absorvem linguagem, indissociável. A imaginação
narrativa — portanto, a ficção — é uma ferramenta evolutiva básica de sobrevi-
vência. Processamos o mundo ao contar histórias e produzimos conhecimento
humano por meio do nosso comprometimento com eus imaginários.
Qualquer que tenha sido o conhecimento que adquiri na minha carreira
como escritor de ficção, não tinha valor nenhum dentro do nosso aquário de
ATRT, no entanto. Diferente da Ella, não fui capaz de construir uma história
que me ajudasse a compreender o que estava acontecendo. A doença da Isabel
ultrapassou qualquer forma de envolvimento imaginativo, da minha parte. Eu
só me importava com a firme realidade da respiração dela contra o meu peito,
a concretude dela caindo no sono enquanto eu cantava minhas três canções de
ninar. Não queria me estender para direção alguma a não ser a dela.

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O A Q UÁ R I O

A Isabel recebeu o último medicamento do seu terceiro ciclo de quimiote-


rapia numa tarde de domingo, em outubro. Esperávamos que ela pudesse voltar
para casa na manhã daquela segunda-feira, ao menos por uns dias. A Ella foi
visitá-la naquela tarde e, como sempre, arrancou risadas dela, fingindo que ti-
rava pedacinhos de suas bochechas para comer. Depois que a Ella foi embora, a
Isabel ficou agitada no meu colo. Identifiquei um padrão na inquietação: acom-
panhando o ponteiro maior do grande relógio do quarto, percebi que ela se
contraía e gemia a cada trinta segundos, mais ou menos. A Teri chamou a enfer-
meira, que conversou com o oncologista de plantão, que conversou com o neu-
rologista, que conversou com mais alguém. Achavam que ela estava tendo mi-
croconvulsões, mas não sabiam ao certo por que isso estava acontecendo. Então,
ela entrou em convulsão completa: ficou dura, seus olhos se viraram, sua boca
espumava enquanto ela se contorcia. Eu e a Teri seguramos suas mãos e falamos
com ela, mas ela não estava consciente da nossa presença. Ela foi transferida
para a UTI, com urgência.
O nome de todos os remédios que deram a ela e os procedimentos por
quais ela passou na UTI são obscuros para mim agora, assim como grande par-
te daquela noite — o que é difícil de imaginar é difícil de lembrar. Os níveis de
sódio da Isabel haviam caído significativamente e isso provocou a convulsão;
não sei o que os médicos fizeram com ela, mas a convulsão parou. Por fim, tu-
bos de respiração foram inseridos e a pedra foi administrada novamente. Isabel
tinha que ficar na UTI até os níveis de sódio se estabilizarem.
Mas nunca se estabilizaram. Embora ela tenha parado de tomar a pedra e
os tubos de respiração tenham sido removidos alguns dias depois, uma solução
de sódio precisava ser constantemente administrada via NP, e mesmo assim, os
níveis não voltaram ao normal. No Dia das Bruxas, enquanto Teri levava a Ella
para pedir gostosuras ou travessuras, como havia prometido, a Isabel descansa-
va nos meus braços de novo. Na noite anterior, que passei em casa com a Ella,
sonhei que a Isabel se sacudia violentamente enquanto eu a segurava, como que
sentindo uma dor repentina, e eu a derrubava. Acordei de súbito, aos berros,

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ALEKSANDAR HEMON

antes dela atingir o chão. Na UTI, desesperado, eu repetia minhas canções de


ninar, tentando acalmá-la. Quando ela conseguiu dormir, enfim, dava para sen-
tir sua respiração parar, para então voltar depois de um intervalo assustador. O
enfermeiro de plantão me contou que a apneia do sono era comum entre bebês,
mas essa baboseira óbvia mais me assustou do que incomodou. Ele informou o
médico de plantão e o que precisava ser observado foi devidamente observado.
Logo depois, eu e a Teri trocamos de lugar e fui para casa ficar com a Ella.
O telefone tocou no meio da madrugada. Teri passou a ligação para o Dr.
Fangusaro e ele me contou que a Isabel estava “com muita dificuldade” em man-
ter sua pressão arterial. Eu precisava ir ao hospital o quanto antes.
Depois de deixar a Ella com minha cunhada, corri até o hospital. Deparei-
-me com uma multidão de funcionários da UTI espiando o quarto da Isabel,
onde ela estava cercada por uma série de médicos e enfermeiros. Ela estava
muito inchada, especialmente seus olhos. Agulhas furavam suas mãozinhas à
medida que um líquido era injetado para aumentar sua pressão arterial. O Dr.
Fangusaro e o Dr. Lulla nos fizeram sentar para contar que o estado da Isabel
era terrível. Eu e a Teri precisávamos decidir se queríamos que tentassem de
tudo para salvá-la. Dissemos que sim. Deixaram claro que caberia a nós dizer
quando era hora de parar.
E agora minha memória entra em colapso.
Teri está no canto, chorando quieta sem parar, o terror em seu rosto lite-
ralmente indescritível; o médico assistente de cabelo grisalho (cujo nome desa-
pareceu da minha mente, embora seus olhos me fitem todos os dias) está dando
ordens enquanto residentes se revezam para fazer massagem cardíaca na Isabel,
porque seu coração parou de bater. Eles tentam ressucitá-la enquanto eu grito,
“Meu bebê! Meu bebê! Meu bebê!” Então há mais uma decisão que eu e a Teri
precisamos tomar: os rins da Isabel pararam de funcionar, ela precisa de diálise,
e uma intervenção cirúrgica imediata é necessária para conectá-la à máquina de
diálise — são altas as chances dela não sobreviver à cirurgia. Dizemos que sim.
O coração dela para de bater novamente; os residentes estão massageando seu

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O A Q UÁ R I O

peito. No corredor lá fora, pessoas desconhecidas estão torcendo pela Isabel,


algumas delas em lágrimas. “Meu bebê! Meu bebê! Meu bebê!”, sigo berrando.
Abraço a Teri. O coração da Isabel volta a bater. O médico de cabelo grisalho se
vira para mim e fala, “Doze minutos,” e não consigo entender o que ele está di-
zendo. Mas então me dou conta: ele está dizendo que a Isabel ficou doze minu-
tos em estado de morte clínica. Então seu coração para de bater de novo, uma
jovem residente faz uma massagem cardíaca, não muito entusiasmada, esperan-
do nosso sinal para poder parar. Mandamos ela parar. Ela para.
Nas minhas visões reprimidas às pressas, eu havia previsto o momento da
morte da minha filha. Mas o que eu havia imaginado, apesar de todos os meus
esforços, era um momento calmo, cinematográfico, em que eu e a Teri segurá-
vamos as mãos da Isabel enquanto ela falecia em paz. Mal cheguei perto de
imaginar a intensidade da dor que sentimos enquanto os enfermeiros remo-
viam todos os tubos e cabos, a sala se esvaziava e eu e a Teri segurávamos nossa
criança morta — nossa linda filha, sempre tão sorridente, seu corpo inchado de
líquido e agredido pelas massagens — beijando suas bochechas e dedos do pé.
Embora eu me lembre daquele momento com uma clareza absoluta, esmagado-
ra, ele ainda é inimaginável para mim.
E como sair de um momento como aquele? Como deixar a filha morta
para trás e retornar à rotina vaga do que quer que você chame de sua vida? Por
fim, colocamos a Isabel na cama, cobrimos com um lençol, assinamos todos os
papéis que precisavam ser assinados, ajeitamos nossas coisas: os brinquedos
dela, nossas roupas, as caixas de som do iPod, os potes de comida, os restos do
antes. Fora da sala, alguém havia colocado um biombo para nos dar privacida-
de; todas as boas pessoas que torceram pela Isabel haviam ido embora. Carre-
gando, como refugiados, nossas grandes sacolas de plástico, cheias de coisas,
caminhamos até o estacionamento do outro lado da rua, entramos no carro e
dirigimos pelas ruas insignificantes rumo ao apartamento da minha cunhada.
Não sei que capacidade mental é necessária para entender a morte, mas a
Ella parecia tê-la. Quando contamos que sua irmãzinha havia morrido, houve

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ALEKSANDAR HEMON

um momento de clara compreensão no rosto dela. Ela começou a chorar de


uma forma que só poderia ser descrita como não-infantil e disse, “Quero outra
irmãzinha chamada Isabel.” Ainda estamos computando essa declaração.
Eu, Teri e Ella — uma família com uma lacuna — fomos para casa. Era pri-
meiro de novembro, Dia de Finados. Cento e oito dias haviam se passado desde
o diagnóstico.
No dia seguinte, levamos a Ella à escola. Na hora de ir buscá-la, sua melhor
amiga correu até a mãe e disse, “Mamãe, mamãe! A irmãzinha da Ella morreu!”
Uma das falácias religiosas mais desprezíveis é de que o sofrimento eno-
brece — que é um passo no caminho para a iluminação ou salvação. O sofri-
mento e a morte da Isabel não ofereceram nada a ela, nem a nós, nem ao mundo.
Não aprendemos nenhuma lição que tenha valido a pena; não adquirimos ne-
nhuma experiência que possa ser benéfica a alguém. E a Isabel certamente não
foi premiada com uma ascensão a um lugar melhor, visto que não havia lugar
melhor para ela do que em casa com a família. Sem a Isabel, eu e a Teri fomos
deixados com oceanos de amor que não podíamos mais conceder; nós nos de-
paramos com um excesso de tempo que costumávamos dedicar a ela; tivemos
que viver num vazio que só poderia ser preenchido pela Isabel. Sua ausência
indelével agora é um órgão nos nossos corpos, cuja única função é uma secre-
ção contínua de tristeza.
A Ella fala da Isabel com frequência. Quando ela fala sobre a morte da
irmã, é muito convincente, suas palavras enternecedoras; ela é confrontada pe-
las mesmas questões e ânsias que nos confrontam. Uma vez, antes de cair no
sono, ela me perguntou, “Por que a Isabel morreu?” Outra vez, me contou, “Eu
não quero morrer.” Não muito tempo atrás, ela começou a conversar com a
Teri, de repente, sobre querer segurar a mão da Isabel de novo, sobre o quanto
ela sentia falta da risada da irmã. Algumas vezes, quando perguntamos se sentia
falta da Isabel, ela se recusou a responder, exibindo uma impaciência que era
completamente reconhecível para nós — sobre o que poderíamos falar, quando
tudo falava por si?

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O A Q UÁ R I O

Mingus segue sério quanto à sua existência alternativa. Ele mora na rua ao
lado de novo, com seus pais e um número variável de irmãos, mas passa bastan-
te tempo com a gente. Tem seus próprios filhos agora — três meninos, dos quais
um, em dado momento, se chamava Andy. Quando esquiamos, o Mingus prefe-
re snowboard. Quando passamos o Natal em Londres, o Mingus passa em Ne-
braska. Ele joga damas (“lamas”, no dialeto da Ella) muito bem, parece. Também
é um bom mágico. Com sua varinha mágica, a Ella conta, ele consegue fazer a
Isabel reaparecer.

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ANANDA KENTISH COOMARASWAMY

PARA QUE SERVE A


ARTE, AFINAL?
título original:
WHAT USE IS ART ANYWAY?

tradução:
PEDRO SETTE-CÂMARA

Ananda Kentish Coomaraswamy veio de uma importante família do Sri Lanka. Seu pai,
Mutu Coomaraswamy Mudaliar, foi o primeiro asiático sagrado cavaleiro pela monarquia
britânica e o primeiro hindu a advogar na Inglaterra. Em 1876, Sir Mutu casou-se com
Elizabeth Clay Beeby, uma inglesa. Seu único filho foi Ananda, nascido no Sri Lanka em
22 de agosto de 1877.

Ananda Coomaraswamy frequentou a Universidade de Londres, onde recebeu o diploma


de Bacharel de Ciências com Honras de Primeira Classe em Geologia e Botânica. Entre
1903 a 1906, esteve no Sri Lanka dirigindo o primeiro mapeamento mineralógico do país.
Durante a pesquisa, Coomaraswamy descobriu um mineral de alta gravidade específica,
que nomeou torianito. Nessa época surgiu seu interesse pelas artes da Índia e do Sri Lanka
e a preocupação com os problemas do nacionalismo indiano.

Em 1906, recebeu seu doutorado em geologia da Universidade de Londres. Os dez anos


seguintes foram passados na Inglaterra e na Índia, onde ainda é lembrado por suas
contribuições para a causa nacionalista.

Em 1917 Coomaraswamy foi para os EUA a fim de tornar-se curador de arte indiana do
Museu de Belas Artes de Boston, cargo que manteve até morrer. Ali reuniu uma das
maiores coleções de arte indiana fora da Índia.

Seus últimos anos foram extremamente produtivos. Entre 1917 e 1943, publicou 341 livros
e artigos e 40 resenhas de livros. Também deu muitas conferências e manteve ampla
correspondência.

Coomaraswamy planejava aposentar-se em 1948 e ir para os Himalaias viver como


eremita. Porém, em 9 de setembro de 1947, faleceu em sua casa em Needham, no estado de
Massachussets, deixando manuscritos completos de muitas obras.

Pedro Sette-Câmara é tradutor. Nasceu no Rio de Janeiro em 1 de junho de 1977.


Mantém o blog www.pedrosette.com.
E-mail: ps@pedrosette.com
Para que serve a arte, afinal?
Ananda Kentish Coomaraswamy

S
ão bem conhecidas as duas escolas contemporâneas de pensamento
a respeito da arte. De um lado, uma pequenina “elite” distingue as
“belas” artes da arte como produto de mãos habilidosas, valorizan-
do-as muito como autorrevelação ou auto-expressão do artista; essa elite, de
modo coerente, fundamenta seus ensinamentos de estética no estilo, e faz da
chamada “apreciação artística” uma questão de maneirismos e não de investiga-
ção do conteúdo ou da verdadeira intenção da obra. Assim são nossos professo-
res de Estética e de História da Arte, que se regozijam com a ininteligibilidade
da arte ao mesmo tempo em que a explicam psicologicamente, substituindo o
estudo do homem pelo estudo da arte do homem; são nossos líderes de cegos,
alegremente seguidos pela maioria dos artistas modernos, que naturalmente
ficam lisonjeados com a importância atribuída ao gênio pessoal.
De outro lado, temos a vasta multidão de homens comuns que não estão
realmente interessados em personalidades artísticas, e para os quais a arte como
acima definida é antes uma peculiaridade da vida do que uma sua necessidade.
De fato, eles não têm o que fazer com a arte.
Acima dessas duas, temos uma visão normal mas esquecida da arte, que
afirma que arte é fazer bem o que quer que precise ser feito ou produzido, seja
uma estátua, um automóvel, ou um jardim. No mundo ocidental, essa é especi-
ficamente a doutrina católica da arte; dessa doutrina se segue uma conclusão
natural, nas palavras de São Tomás de Aquino: “Não pode haver bom uso sem
arte.” É bastante óbvio que, se as coisas de que precisamos fazer uso – seja esse
uso intelectual ou físico; ou, em condições normais, ambos simultaneamente –

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PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?

não forem produzidas da maneira devida, elas não podem ser apreciadas, que-
rendo dizer com “apreciadas” algo mais do que simplesmente “gostadas”. A co-
mida malfeita, por exemplo, não nos apetecerá; do mesmo modo, exposições
sentimentais ou autobiográficas enfraquecem o espírito daqueles que as fre-
quentam. O patrono saudável está tão interessado na personalidade do artista
quanto na vida privada de seu alfaiate: tudo que ele requer de ambos é que do-
minem suas artes.
Esta sequência de conferências sobre arte é dirigida ao segundo tipo de
homem definido acima, isto é, ao homem simples e prático que não tem utilida-
de para a arte tal como explicada pelos psicólogos e praticada pela maior parte
dos artistas contemporâneos, especialmente pintores. O homem comum não
tem o que fazer com a arte, a menos que ele saiba de que ela trata, ou para que
serve. E até aí ele está inteiramente certo; se a obra não é sobre nada, nem serve
para nada, ela não tem nenhuma utilidade. Além disso, a menos que a obra trate
de algo que valha a pena – que valha mais a pena, por exemplo, do que a precio-
sa personalidade do artista –, algo importante para o patrono e consumidor e
também para o artista e produtor, ela não tem utilidade real, não passando de
um artigo de luxo ou de mero ornamento. Nessas condições, a arte pode ser
considerada por um homem religioso uma reles vaidade; por um homem práti-
co, um supérfluo caro; e, pelo ideólogo de classe, parte da grande fantasia bur-
guesa. Existem portanto dois pontos de vista opostos, um deles dizendo que
não pode haver bom uso sem arte, e, o outro, que a arte é um supérfluo. Obser-
vemos, porém, que essas afirmações contrárias se referem a coisas bem diferen-
tes, que não são as mesmas só por terem sido chamadas de “arte”. Adotemos
agora a visão historicamente normal e ortodoxamente religiosa de que, assim
como a ética é “a maneira correta de agir”, a arte é “fazer bem o que quer que
precise ser feito”, ou simplesmente “o modo correto de fazer as coisas”; e refe-
rindo-nos ainda àqueles para quem as artes da personalidade são supérfluas,
perguntemo-nos se a arte é ou não uma necessidade.
Uma necessidade é algo de que não podemos prescindir, qualquer que seja

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A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y

o preço. Não podemos entrar em questões de preço aqui, exceto para dizer que
a arte não precisa, ou não deveria precisar ser cara, exceto na medida em que
materiais custosos sejam empregados. É neste momento que surge a questão
crucial da produção voltada para o uso versus a produção voltada para o lucro.
É porque a ideia de produção voltada para o lucro está ligada à sociologia in-
dustrial correntemente aceita que as coisas em geral não são bem-feitas e por-
tanto também não são belas. É do interesse do produtor produzir coisas de que
gostemos, ou que possamos ser induzidos a gostar, independentemente de elas
nos servirem ou não; como os artistas modernos, o produtor está expressando
a si mesmo, e servindo às nossas necessidades somente na medida em que isso
é necessário para que ele consiga vender alguma coisa. Os fabricantes e demais
artistas recorrem à propaganda; a arte é bastante propagandeada pelos “museus
de arte moderna” e pelos marchands; e artista e produtor determinam o preço de
suas peças de acordo com o interesse do público. Nestas condições, como disse
tão bem Mr. Carey nesta mesma série de conferências, o produtor trabalha para
poder continuar ganhando dinheiro; ele não ganha dinheiro para poder conti-
nuar produzindo, o que seria o certo. É somente quando o artesão faz as coisas
por vocação, e não simplesmente porque faz parte do seu emprego, que o preço
das coisas se aproxima do seu valor real; e, nessas circunstâncias, quando paga-
mos por uma obra de arte projetada para servir a uma necessidade real, o di-
nheiro que gastamos vale a pena; e, sendo o propósito necessário, temos de ser
capazes de pagar pela arte, sob o risco de vivermos abaixo do nível humano
normal; é assim que vive hoje a maior parte dos homens, mesmo os ricos, se
considerarmos a qualidade e não a quantidade. Não é preciso dizer que o traba-
lhador também é vítima da produção voltada para o lucro; tanto é assim que
seria uma piada dizer que as horas de trabalho deveriam ser, em princípio, mais
agradáveis do que as horas de lazer; que no trabalho ele deve fazer aquilo de que
gosta, e nas horas livres aquilo que é apropriado – sendo o trabalho condicio-
nado pela arte, e a conduta pela ética.
A indústria sem arte é brutalidade. A arte é especificamente humana. Ne-

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PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?

nhum dos povos primitivos, do passado ou do presente, cuja cultura afetamos


desprezar e nos propomos a corrigir, dispensou a arte; da idade da pedra em
diante, tudo o que foi feito pelo homem, não interessando em que condições de
dificuldade ou pobreza, foi feito artisticamente para servir a um propósito si-
multaneamente utilitário e ideológico. Fomos nós, ao menos coletivamente fa-
lando, que dominamos recursos amplamente suficientes, os quais não deixamos
de desperdiçar, que propusemos uma divisão da arte em um tipo não mais que
utilitário, e outro supérfluo, omitindo completamente aquilo que um dia se
considerou a mais elevada função da arte, a expressão e comunicação de ideias.
Antigamente a escultura era considerada “o livro do pobre”. A palavra “estética”,
de “aisthesis”, “sensação”, proclama nossa recusa dos valores intelectuais da arte.
É preciso falar de dois outros assuntos no tempo disponível. Em primeiro
lugar, se dissemos que o homem comum está certo ao querer saber de que trata
uma obra, e em exigir inteligibilidade das obras de arte, por outro lado ele está
errado ao cobrar-lhes “realismo” e completamente errado ao julgar obras de
arte antiga a partir do ponto de vista pressuposto em expressões comuns como
“isso foi antes de conhecerem anatomia” ou “isso foi antes de descobrirem a
perspectiva”. A arte está interessada na natureza das coisas, e só incidentalmen-
te, se é que chega a tanto, na sua aparência, pela qual a natureza é mais obscure-
cida do que revelada. O artista não pode se afeiçoar à natureza enquanto efeito,
devendo antes dar conta da natureza enquanto causa de efeitos. A arte, em ou-
tras palavras, está muito mais relacionada à álgebra do que à aritmética, e da
mesma maneira que certas qualificações são necessárias para a apreciação de
uma fórmula matemática, também o espectador precisa ser educado para en-
tender e apreciar as formas de arte comunicativa. É esse sobretudo o caso do
espectador dedicado a compreender e a apreciar obras de arte que estão escri-
tas, por assim dizer, em uma língua estrangeira ou esquecida, como é o caso da
maioria dos objetos em exibição nos museus.
Este problema surge porque o trabalho do museu não é exibir obras con-
temporâneas. A ambição do artista moderno de estar representado no museu é

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A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y

vaidade, e mostra uma total incompreensão da função da arte; afinal, se uma


obra foi feita para dar conta de uma necessidade específica, ela só pode funcio-
nar no ambiente para o qual foi projetada, isso é, em algum contexto vital, como
a casa de alguém, ou uma rua, ou uma igreja, e não em um lugar cuja função
primária é conter qualquer tipo de arte.
A função de um museu de arte é preservar e dar acesso a obras antigas que
sejam consideradas, por especialistas responsáveis por sua seleção, espécimes
excelentes. Podem estas obras, que não foram feitas para atender suas necessi-
dades particulares, ser de algum uso para o homem comum? Provavelmente
não à primeira vista e sem instruções, não até que ele saiba de que tratavam e
para que serviam. Poderíamos desejar, ainda que em vão, que o homem nas ruas
tivesse acesso aos mercados em que os objetos no museu foram originalmente
comprados e vendidos, no curso cotidiano da vida. Por outro lado, os objetos
do museu foram feitos para atender a necessidades humanas específicas, ainda
que não precisamente nossas necessidades atuais; e é maximamente desejável
que se perceba que houve necessidades humanas diferentes, e talvez mais signi-
ficativas, do que as nossas. Os objetos do museu não podem de fato ser conce-
bidos como figuras a ser imitadas, só porque não foram feitas para adequar-se a
nossas necessidades particulares; mas, na medida em que sejam bons espécimes
– o que se pressupõe pela seleção dos especialistas –, deles se pode deduzir, pela
comparação com seu uso original, os princípios gerais da arte, de acordo com
os quais as coisas podem ser bem-feitas para atender qualquer finalidade. E esse
é, de modo geral, o valor maior dos nossos museus.
Alguns responderam à questão “para que serve a arte?” dizendo que a arte
é um fim em si mesma; e é um tanto esquisito que aqueles que afirmam que a
arte não tem utilidade humana ao mesmo tempo enfatizem tanto seu valor.
Tentaremos analisar os erros aí contidos.
Falamos acima do ideólogo de classe que não tem utilidade para a arte, e
está disposto a dispensá-la, considerando-a parte da grande fantasia burguesa.
Se pudéssemos encontrar um pensador desses, ficaríamos verdadeiramente fe-

34
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?

lizes por concordar que toda a doutrina da arte pela arte, e toda a preocupação
de “colecionar”, bem como “o amor pela arte”, não passam de aberrações senti-
mentais e formas de escapar das preocupações sérias da vida. Concordaríamos
prontamente que só cultivar as coisas mais elevadas da vida – a arte sendo uma
delas – em horas de lazer a serem obtidas por uma substituição ainda maior de
meios manuais de produção por meios mecânicos é tão vã quanto seria a práti-
ca da religião pela religião aos domingos; e que as pretensões do artista moder-
no são fundamentalmente imaginárias e egoístas.
Infelizmente, quando vamos aos fatos, percebemos que o reformador so-
cial não é realmente superior à atual ilusão cultural, estando apenas revoltado
com uma situação econômica que o priva das coisas elevadas da vida, as quais
os ricos podem comprar com mais facilidade. O trabalhador inveja, muito mais
do que compreende, o colecionador e “amante da arte”. A noção de arte do es-
cravo assalariado não é mais realista ou prática do que a de um milionário, as-
sim como sua noção de virtude não é mais prática ou realista do que a de um
pregador da bondade como fim em si mesma. Ele não percebe que, se precisa-
mos de arte somente porque gostamos de arte, precisamos ser bons somente se
gostarmos de ser bons; a arte e a estética seriam meros problemas de gosto, e
nada se poderia objetar à alegação de que não temos o que fazer com a arte por-
que não gostamos dela, ou que não temos nenhuma razão para sermos bons,
caso prefiramos ser maus.
A questão da arte pela arte foi levantada outro dia por um editor de The
Nation, que citou com aprovação um pronunciamento de Paul Valéry a respeito
de como a característica mais essencial da arte é sua inutilidade, e continuou
dizendo que “Ninguém se choca ao ouvir que ‘a virtude é sua própria recom-
pensa’… que é apenas outra maneira de dizer que a virtude, como a arte, é um
fim em si mesma, um bem final”. O escritor ainda disse que “inutilidade e ausên-
cia de valor não são as mesmas coisas”; com o que, evidentemente, quis dizer
“não são a mesma coisa”. Disse ainda que só há três motivações pelas quais um
artista é impelido a trabalhar, isto é, “por dinheiro, fama, ou ‘arte’”.

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A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y

Não precisamos continuar a procurar por um exemplo perfeito de ideólo-


go de classe estupidificado por aquilo que denominamos grande fantasia bur-
guesa. Para começar, está muito longe da verdade que ninguém se choque com
a afirmação de que “a Virtude é sua própria recompensa”. Fosse isso verdade,
então a virtude não seria mais do que a atitude do moralista que vive de obser-
var as faltas alheias. Dizer que “a Virtude é sua própria recompensa” vai direta-
mente contra todo ensinamento ortodoxo, em que se afirma de maneira cons-
tante e explícita que a virtude é um meio para um fim, e não um fim em si
mesma; um meio para o fim último de felicidade humana, e não uma parte da-
quele fim. E, exatamente do mesmo modo, em todas as civilizações normais e
humanas a doutrina a respeito da arte sempre afirmou que a arte é igualmente
um meio, e não um fim.
Por exemplo, a doutrina aristotélica de que “o fim geral da arte é o bem do
homem” foi firmemente aprovada pelos enciclopedistas cristãos medievais; e
podemos dizer que todos os sistemas de pensamento filosóficos ou religiosos
dos quais o ideólogo de classe gostaria de se emancipar concordam que tanto a
ética quanto a arte são meios para a felicidade, e não fins. O ponto de vista bur-
guês, que na verdade é o ponto de vista do reformador social, é sentimental e
idealista, enquanto a doutrina religiosa que ele repudia é utilitarista e prática!
De todo modo, o fato de que um homem sinta prazer, ou possa sentir prazer,
em agir bem ou em produzir bem, não é suficiente para fazer desse prazer o
propósito de seu trabalho, exceto no caso do moralista ou daquele que mera-
mente expressa a si mesmo; igualmente, o prazer de comer não pode ser consi-
derado a finalidade de comer, exceto no caso do glutão, que vive para comer.
Se uso e valor de fato não são sinônimos, é só porque o uso supõe a eficá-
cia, e o valor pode ser atribuído a algo ineficiente. Agostinho, por exemplo,
demonstra que a beleza não é simplesmente aquilo de que gostamos, porque
algumas pessoas gostam de deformidades; ou, em outras palavras, valorizam
aquilo que na verdade não vale nada. Uso e valor não são idênticos na lógica,
mas, no caso de uma pessoa perfeitamente saudável, coincidem na experiência;

36
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?

e isso é admiravelmente ilustrado pela equivalência etimológica do alemão


“brauchen”, “usar”, e do latim “frui”, “fruir”.
Tampouco o dinheiro, a fama ou a “arte” podem ser considerados explica-
ções para a arte. O dinheiro não pode, pois, à exceção do caso da produção vol-
tada para o lucro em vez do uso, o artista por natureza, que tem em vista o bem
da obra a ser realizada, não está trabalhando para ganhar dinheiro, mas ga-
nhando dinheiro para poder continuar sendo ele mesmo, isso é, para poder
continuar trabalhando como aquilo que é por natureza; igualmente, ele come
para continuar vivendo, em vez de viver para continuar comendo. Quanto à
fama, basta lembrarmos que a maior parte da melhor arte do mundo foi produ-
zida anonimamente, e que se algum trabalhador tem apenas a fama em vista,
“todo homem decente deveria se envergonhar de as pessoas boas saberem isto
dele”. E quanto à arte, dizer que o artista trabalha para a arte é um abuso de lin-
guagem. A arte é como um homem trabalha, supondo que ele conheça sua arte e
a tenha como hábito; do mesmo modo, a prudência ou a consciência é o que faz
um homem agir bem. A arte é tanto a finalidade do trabalho quanto a prudência
é a finalidade da conduta.
É só porque, nas condições estabelecidas em um sistema de produção vol-
tado para o lucro em vez do uso, esquecemos o sentido da palavra “vocação” e
pensamos somente em termos de “empregos”, que confusões assim são possí-
veis. O homem que tem um “emprego” está trabalhando por motivos alheios a
si, e pode muito bem ser indiferente à qualidade do produto, pelo qual não é o
responsável; tudo o que ele quer, nesse caso, é garantir para si uma parcela ade-
quada dos lucros esperados. Mas alguém cuja vocação seja específica, isso é,
alguém constitucionalmente adaptado e treinado para um ou outro tipo de ati-
vidade, ainda que tire seu sustento dessa atividade, está na verdade fazendo
aquilo de que mais gosta; e, se é levado pelas circunstâncias a fazer outro tipo de
trabalho, ainda que melhor pago, torna-se na verdade infeliz. A vocação, seja a
do fazendeiro ou do arquiteto, é uma função; o exercício dessa função, no que
diz respeito ao próprio homem, é o meio mais indispensável de desenvolvimen-

37
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y

to espiritual, e, no que diz respeito à sua relação com a sociedade, a medida de


seu valor. É precisamente nesse sentido que, como diz Platão, “mais será feito, e
melhor, e com mais facilidade, quando cada um fizer apenas uma coisa, de acor-
do com seu gênio”; e isso é “a justiça para cada homem de acordo com sua pró-
pria natureza”. A tragédia de uma sociedade industrialmente organizada para o
lucro é que essa justiça lhe seja negada; e qualquer sociedade que assim seja li-
teral e inevitavelmente faz o papel de Diabo perante o resto do mundo.
O erro básico do que chamamos a ilusão cultural é a presunção de que a
arte é algo a ser realizado por um tipo especial de homem – particularmente,
aquele tipo de homem a quem chamamos gênio. Em direta oposição a isso está
a perspectiva normal e humana de que a arte é simplesmente a maneira correta
de fazer as coisas, sejam sinfonias ou aviões. A perspectiva normal pressupõe,
em outras palavras, não que o artista seja um tipo especial de homem, mas que
todo homem que não é um mero ocioso e parasita é necessariamente um tipo
especial de artista, hábil e contente em fazer alguma coisa de acordo com sua
constituição e treinamento.
Obras geniais são de pouco uso para a humanidade, que invariável e inevi-
tavelmente não entende, distorce e caricatura seus maneirismos e ignora sua
essência. Não é o gênio que interessa, mas o homem capaz de produzir uma
obra-prima. E o que é uma obra-prima? Não, como se supõe habitualmente, um
voo individual da imaginação, além do alcance comum do seu próprio tempo e
mais voltado à posteridade do que a nós mesmos; mas, por definição, uma obra
realizada por um aprendiz ao final de seu aprendizado e com a qual ele prova
seu direito de ser admitido como membro de uma guilda, ou, como diríamos
hoje, um sindicato, como trabalhador mestre. A obra-prima é simplesmente a
prova de competência esperada e exigida de todo artista que se gradua, a quem
não se permite que monte uma loja própria a menos que tenha apresentado essa
prova. Do homem cuja obra-prima foi aceita por um corpo de praticantes espe-
cializados se espera que continue produzindo obras de qualidade similar pelo
resto de sua vida; ele é um homem responsável por tudo o que faz. Tudo faz

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PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?

parte do curso normal dos acontecimentos, e, longe de pensar nas obras-primas


como meras obras antigas preservadas nos museus, o trabalhador adulto deve
ficar envergonhado se alguma coisa que ele fizer estiver abaixo do padrão da
obra-prima ou não for bom o suficiente para ser exibido em um museu.
O gênio vive num mundo que é só seu. O artesão-mestre vive num mundo
habitado por outros homens; ele tem próximos. Uma nação não é “musical” por
causa das grandes orquestras de suas capitais, sustentadas por um seleto círculo
de “amantes da música”, ou porque essas orquestras tocam peças populares. A
Inglaterra era “um ninho de pássaros cantores” quando Pepys podia insistir que
uma jovem donzela assumisse um papel difícil no coro da família, pois do con-
trário correria o risco de não conseguir um marido. E, se as canções folclóricas
de um país agora só se encontram nos livros, ou estão, como diz a canção, “guar-
dadas na mala”, ou se igualmente consideramos a arte algo a ser visto em um
museu, não é que algo tenha sido ganho, mas sim que sabemos que algo foi per-
dido, e desejamos ao menos preservar sua memória.
Existem, então, possibilidades de “cultura” além daquelas concebidas por
nossas universidades e pelos grandes filantropos, e outras possibilidades de re-
alização além daquelas que podem ser exibidas em salas de estar. Não negamos
que o ideólogo de classe possa ter um ressentimento justo contra a exploração
econômica; quanto a isso, será suficiente dizer, de uma vez por todas, que “o
trabalhador vale o seu trabalho”. Mas o que o ideólogo de classe, como homem,
e não apenas em seu óbvio papel de explorado, deveria exigir, mas quase nunca
ousa, é uma responsabilidade humana por qualquer coisa que ele mesmo faça.
O que o sindicato deveria exigir de seus membros são obras-primas. O que o
ideólogo de classe que não é apenas um subalterno, mas também um homem,
tem o direito de exigir, não é nem ter menos trabalho, nem ter uma porção
maior das migalhas culturais que caem da mesa dos ricos, mas a oportunidade
de sentir imenso prazer em fazer o que quer que faça como trabalho, exatamen-
te como sente ao cuidar do próprio jardim, ou em sua vida familiar; o que ele
deveria exigir, em outras palavras, é a oportunidade de ser um artista. Qualquer

39
A N A N D A K . C O O M A R A S WA M Y

civilização que lhe negue isto é inaceitável.


Com ou sem máquinas, é certo que sempre haverá trabalho para fazer.
Tentamos mostrar que, se o trabalho é uma necessidade, ele não é de modo al-
gum um mal necessário, e sim um bem necessário, no caso de o trabalhador ser
um artista responsável. Até agora falamos desde o ponto de vista do trabalha-
dor, e talvez nem seja preciso dizer que tudo depende tanto do patrono como
do artista. O trabalhador se torna um patrono na hora em que compra algo para
seu próprio uso. E para ele, enquanto consumidor, sugerimos que aquele ho-
mem que, quando precisa de um terno, não compra dois ternos prontos de ma-
terial vagabundo, mas delega a tarefa de fazer um terno de material primoroso
a um alfaiate, é muito melhor como patrono das artes e filantropo do que o
homem que meramente adquire uma obra-prima e a coloca no museu nacional.
Também o metafísico e o filósofo têm um papel; uma das funções primárias do
Professor de Estética deveria ser destruir as superstições da “Arte” e do “Artista”
como pessoa privilegiada, um tipo diferente dos homens comuns.
Aquilo de que o explorado deveria ressentir-se não é meramente a insegu-
rança social, mas a posição de irresponsabilidade humana que lhe é imposta
pela produção voltada para o lucro. É preciso que ele entenda que a questão da
propriedade dos meios de produção tem um sentido primariamente espiritual,
e só secundariamente um sentido de justiça ou injustiça econômica. O ideólogo
de classe, na medida em que propõe que se viva só de pão, ou mesmo de brioche,
não é melhor nem mais sábio do que o capitalista burguês que ele afeta despre-
zar; nem ficaria ele mais feliz no trabalho se trocasse muitos chefes por poucos.
Pouca diferença faz que ele pretenda viver sem arte, ou obter sua dose dela, se
consente na deificação desumana da “Arte” pressuposta na expressão “Arte pela
arte”. Não é mais propício ao fim último e presente do homem sacrificar-se no
altar da “Arte” do que sacrificar-se nos altares da Ciência, do Estado, ou da Na-
ção personificadas.
Em nome de todos os homens negamos que a arte seja um fim em si mes-
ma. Pelo contrário, “a indústria sem arte é uma brutalidade”; e tornar-se um

40
PA R A Q U E S E RV E A A R T E , A F I N A L ?

bruto é morrer para a condição humana. Trata-se, de qualquer jeito, de uma


questão de ser bucha de canhão ou não: pouca diferença faz morrer repentina-
mente nas trincheiras ou dia após dia nas fábricas.

41
VICENTE HUIDOBRO

A CRIAÇÃO PURA
título original:
LA CRÉATION PURE: ESSAI D’ESTHETIQUE

tradução:
DOUGLAS SILVA E JOÃO SILVA

Vicente García-Huidobro Fernández foi um poeta chileno, nascido em 1893, em Santiago,


e morto em 1948, em Cartagena. Tendo se mudado para Paris em 1916, circulou entre
diversos expoentes da vanguarda europeia do início do século XX, tendo sido o iniciador
e um dos grandes nomes da corrente estética denominada creacionismo.

O ensaio traduzido, La Création pure: essai d’Esthetique, foi publicado pela primeira vez
em abril de 1921, em Paris, na Revista L’Esprit Nouveau.

Douglas C. Silva e João Gonçalves F. C. Silva são mestrandos em Estudos Literários


pela Faculdade de Letras da UFMG.
A Criação pura: ensaio de Estética
Vicente Huidobro

O
entusiasmo artístico de nossa época e a luta entre as diferentes
concepções individuais e coletivas resultantes desse entusiasmo
trouxeram de volta à moda os problemas estéticos, como nos
tempos de Hegel e de Schleiermacher.
É preciso, no entanto, exigir agora maior clareza e maior precisão do que
as daquela época, pois a linguagem metafísica empregada por todos os doutores
de estética do séc. XVIII e do início o séc. XIX não tem sentido algum para nós.
Assim, devemos nos distanciar o máximo possível da metafísica e nos
aproximar cada vez mais da filosofia científica.
Comecemos estudando as diferentes fases, os diferentes aspectos sob os
quais a arte se apresentou ou pode se apresentar.
Essas fases podem se reduzir a três, e para designá-las mais claramente
eis o esquema que imaginei:

Arte inferior ao meio (Arte reprodutiva).


Arte em equilíbrio com o meio (Arte de adaptação).
Arte superior ao meio (Arte de criação).

Cada uma das três partes que compõem esse esquema marca uma época
na história da arte e comporta um segundo esquema, composto também de três
itens e que resume a evolução de cada uma das épocas citadas:

43
A CRIAÇÃO PURA

Predomínio da inteligência sobre a sensibilidade.


Equilíbrio entre a sensibilidade e a inteligência.
Predomínio da sensibilidade sobre a inteligência.

Analisando como exemplo o primeiro item do primeiro esquema, ou seja,


a Arte reprodutiva, diremos que os primeiros passos em direção a sua exterio-
rização são efetuados pela Inteligência, que procura e que tateia. Trata-se de
reproduzir a natureza e para isso a Razão procura os meios de alcançar essa
reprodução com a maior economia e a maior simplicidade ao alcance do artista.
Tudo o que é supérfluo será deixado de lado. Nessa época, a cada dia se
apresenta um novo problema a ser resolvido, e a Inteligência deve trabalhar
com tal ardor que a sensibilidade fica relegada ao segundo plano e de certa ma-
neira reduzida pela Razão.

***

Mas logo aparece a segunda época. Os problemas principais já estão re-


solvidos, todo o supérfluo que não tem razão de ser para a elaboração da obra
foi cuidadosamente descartado. A sensibilidade toma então seu lugar junto à
Inteligência e enverniza a obra com um certo calor que a deixa menos seca e
mais viva que em seu primeiro período. Essa segunda época marca o apogeu de
uma arte.

***

As gerações de artistas que vêm em seguida aprenderam esta arte por


receitas, se habituaram a ela e sabem realizá-la de cor. No entanto, se esquece-
ram das leis iniciais que a constituíram e que são sua própria essência, não ven-
do nada além do lado exterior e superficial — em uma palavra, sua aparência.
Eles executam as obras por pura sensibilidade, maquinalmente, poderíamos di-

44
VICENTE HUIDOBRO

zer, já que o hábito faz passar do consciente ao inconsciente. Aqui começa a


terceira época, a decadência.
Devo dizer que de cada uma dessas etapas participam várias escolas; as-
sim, na etapa da arte reprodutiva temos a arte egípcia, chinesa, grega, os primi-
tivos, a renascença, o clássico, o romântico, etc.. Toda a história da arte está
cheia de exemplos que testemunham isso que foi dito.
É evidente que em cada uma dessas diferentes etapas há artistas nos quais
uma faculdade predomina sobre a outra, mas a linha geral segue fatalmente o
curso aqui traçado.
Toda escola séria que marca uma época começa necessariamente por um
período de investigações no qual a Inteligência dirige os esforços do artista.
Esse primeiro período pode ter como origem a sensibilidade e a intuição, quer
dizer, uma série de saberes inconscientes, dado que tudo passa primeiro pelos
sentidos. Mas esse é só o momento da gestação, que é um trabalho anterior à
própria produção e de alguma forma seu primeiro impulso. Esse é o trabalho
nas trevas, mas a saída à luz, a exteriorização, é a Inteligência que começa.
É um erro bastante propagado crer que a intuição faz parte da sensibili-
dade. Para Kant, nela não pode haver uma intuição intelectual. Ao contrário,
Scheling diz que somente a intuição intelectual pode descobrir a relação de
unidade fundamental entre o real e o ideal.
A Intuição é o conhecimento a priori e adentra a obra unicamente em
forma de impulso; é anterior à realização e raramente tem lugar ao longo dessa
realização.
Em todo caso, a intuição não está muito próxima da sensibilidade, mas
brota de um acordo rápido que se estabelece entre o coração e o cérebro, como
uma fagulha elétrica que surge de repente iluminando o fundo mais obscuro de
um recipiente.
Em uma conferência que dei em julho de 1916 no Ateneu hispânico de
Buenos Aires, eu dizia que toda a História da Arte não é nada senão a história
da evolução do Homem-Espelho para o Homem-Deus, e que ao estudar essa

45
A CRIAÇÃO PURA

evolução vê-se claramente a tendência natural da Arte a se separar cada vez


mais da realidade preexistente, a fim de buscar sua própria verdade, deixando
no caminho todo o supérfluo e tudo o que pode prejudicar a sua realização per-
feita. Acrescentei que tudo isso é tão visível ao observador quanto pode ser, em
geologia, a evolução do Paloplotherium, passando pelo Anchiterium para chegar
ao cavalo.
Essa ideia do artista criador absoluto, do Artista-Deus, me foi sugerida
por um velho poeta indígena da América do Sul (Aïmara), que diz: “O poeta é
um Deus, não cante a chuva, poeta, faça chover”, muito embora o autor desses
versos tenha caído no erro de confundir o poeta com o mágico e de crer que o
artista, por se apresentar como criador, deve perturbar as leis do mundo, quan-
do o que ele deve fazer é criar seu mundo próprio e independente, paralelamen-
te à natureza.
A ideia da separação da verdade da arte e da verdade da vida da verdade
científica e intelectual vem de muito longe, mas ninguém a tinha precisado e
demonstrado tão claramente quanto Schleiermacher, no começo do século pas-
sado, quando dizia que “a poesia não procura a verdade, ou melhor, ela procura
uma verdade que não tem nada em comum com a verdade objetiva”.
“A arte e a poesia exprimem unicamente a verdade da consciência
singular”.1
É preciso realçar bem essa diferença entre a verdade da vida e a verdade
da Arte: uma é anterior ao artista, e a outra lhe é posterior, produzida por ele.
A confusão dessas duas verdades é a principal causa de erro no juízo es-
tético.
Devemos dirigir nossa atenção para esse ponto, pois a época que começa
será eminentemente criativa. O Homem liberta-se da sua escravidão, se revolta
contra a Natureza como antes Lúcifer se revoltou contra Deus, ainda que essa
rebelião seja apenas aparente, pois jamais o homem esteve tão perto da Nature-
za quanto agora, que ele não busca mais imitá-la na sua aparência, mas fazer

1 Aesthetik, páginas 55-61. (N.A.)

46
VICENTE HUIDOBRO

como ela, imitando-a nos fundamentos de suas leis construtivas, na realização


de um todo, no mecanismo da produção de formas novas.
Veremos agora como o homem, produto da Natureza, segue, em seus
produtos independentes, a mesma ordem e as mesmas leis da Natureza.
Não é preciso imitar a natureza, mas fazer como ela; não imitar suas ex-
teriorizações, mas seu poder de exteriorização.
Uma vez que o homem pertence à Natureza e não pode dela se evadir, ele
deve nela apanhar a essência de suas criações. Nós devemos, no entanto, consi-
derar as relações do mundo objetivo com o Eu, mundo subjetivo que é o artista.
O artista apanha seus motivos e seus elementos no mundo objetivo,
transforma-os e combina-os, entrega-os ao mundo objetivo sob a forma de no-
vos feitos, e esse fenômeno estético é tão livre e independente quanto qualquer
outro fenômeno do mundo exterior, como uma planta, um pássaro, um astro,
um fruto, e tem, como esses, sua razão de ser em si mesmo, e os mesmos direitos
e a mesma independência.
O estudo dos diversos elementos que os fenômenos do mundo objetivo
oferecem ao artista, a seleção de alguns e a eliminação de outros a partir do que
convém à obra que se busca é o que forma o Sistema.
Assim, o sistema da arte de adaptação é diferente do sistema da arte re-
produtiva, pois o artista do primeiro extrai da Natureza outros elementos além
dos que o artista imitativo extrai. O mesmo ocorre com o artista da época de
criação.
Em consequência, o sistema é a ponte pela qual os elementos do mundo
objetivo passam ao Eu ou ao mundo subjetivo.
O estudo dos meios de expressão para fazer voltar ao mundo objetivo
esses elementos já escolhidos é a Técnica.
Por consequência, a técnica é a ponte estabelecida entre o mundo subje-
tivo e o mundo objetivo criado pelo artista.

47
A CRIAÇÃO PURA

Esse feito novo criado pelo artista, eis o que nos importa, e seu estudo
junto ao estudo de sua origem forma a Estética ou teoria da Arte.
O equilíbrio perfeito entre o sistema e a técnica é o que faz o Estilo, e a
predominância de um desses fatores sobre o outro tem como resultado a Ma-
neira.
Diremos que o artista tem um estilo quando os meios que emprega para
a realização de sua obra estão em perfeito acordo com os elementos que ele es-
colhe no mundo objetivo.
Quando um artista tem uma boa técnica, mas não sabe escolher perfeita-
mente seus elementos, ou quando, ao contrário, os elementos que emprega são
aqueles que melhor convêm à sua obra, mas sua técnica deixa a desejar, esse
artista não atingirá o estilo, ele terá somente uma maneira.
Não nos ocuparemos daqueles cujo sistema está em absoluto desacordo
com a técnica. Esses não podem entrar num estudo sério da arte, ainda que se-
jam a grande maioria e que façam a alegria dos jornalistas e a glória dos salões
de falsos amadores.
Quero, antes de terminar este artigo, esclarecer um ponto: quase todos os
eruditos modernos querem negar ao artista o direito à criação, e poder-se-ia
dizer que os próprios artistas têm medo dessa palavra.
Luto há muito tempo pela arte de criação pura, e ela foi uma verdadei-
ra obsessão em toda minha obra. Já em meu livro “Pasando y Pasando”,
publicado em janeiro de 1914, digo que o que deve interessar ao poeta é “o

48
VICENTE HUIDOBRO

ato de criação e não o de cristalização”.2


São precisamente esses homens de ciência que negam ao artista o di-
reito de criação que deveriam mais do que todos os outros lhe conceder.
Acaso a arte da mecânica não é também a humanização da natureza e não
atinge também a criação?
E se é concedido ao mecânico o direito de criar, porque seria ele negado
ao artista?
Quando dizem que o automóvel tem uma força de 20 cavalos, nós não
vemos os 20 cavalos, o homem criou um equivalente a eles, mas eles não apare-
cem para nós. Ele fez como a natureza.
O Homem, nesse caso, criou sem imitar a Natureza em suas aparências,
mas obedecendo a suas leis interiores; e é curioso constatar como o homem
seguiu em suas criações a mesma ordem que a natureza, não somente no meca-
nismo construtivo, mas também no cronológico.
O Homem começa vendo, em seguida ouve, depois fala, e por fim pensa.
Em suas criações, o homem seguiu a mesma ordem que lhe foi imposta. De iní-
cio, inventou a fotografia, que é um nervo óptico mecanizado. Em seguida, o
telefone, que é o nervo auditivo mecanizado. Depois o gramofone, que é a me-
canização das cordas vocais, e por fim o cinematógrafo, que é a mecanização do
pensamento.
E não só isso. Também na maioria de cada uma das criações do homem é
produzida uma seleção artificial exatamente paralela à seleção natural, obede-
cendo às mesmas leis de adaptação ao meio.
Isso é encontrado na obra de arte tanto quanto na mecânica e em todas as
produções do homem.
Por esta razão eu dizia na minha conferência sobre a Estética em 1916 que
uma obra de arte “é uma nova realidade cósmica que o artista acrescenta à Na-
tureza e que deve ter, como os astros, uma atmosfera para si, uma força centrí-
peta e uma força centrífuga. Forças que lhe dão um perfeito equilíbrio e lan-

2 Página 270. (N.A.)

49
A CRIAÇÃO PURA

çam-na fora do centro produtor”.


Este é o momento de chamar a atenção dos artistas para a criação pura,
da qual muito já se fala sem fazer.

50
JORDANES

SOBRE AS ORIGENS E
FEITOS DOS GODOS
título original:
DE ORIGINE ACTIBUSQUE GETARUM

tradução:
GUSTAVO H. S. S. SARTIN

Publicada pelo godo Jordanes em Constantinopolis em 551 ou 552, De origine actibusque


Getarum (Sobre as Origens e Feitos dos Godos), também chamada de Getica, foi baseada
em uma obra hoje perdida, escrita cerca de vinte anos antes por Cassiodoro Senador, um
romano do sul da Itália que ocupava o cargo de magister officiorum (uma espécie de
primeiro-ministro) do reino ostrogótico. Devido ao desaparecimento do texto de
Cassiodoro, a mais antiga história de um povo “bárbaro” pós-romano hoje disponível é a
de Jordanes.

Utilizamos como texto-fonte a edição considerada canônica, publicada em 1882 por


Theodor Mommsen como parte da coleção Monumenta Germaniae Historica, contendo a
Romana e a Getica. Selecionamos, desta, a introdução geográfica. Nela, Jordanes descreve
o mundo conhecido e o local de origem dos godos.

Gustavo H. S. S. Sartin é mestre em História (área de concentração: História e Espaços)


pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É também bacharel e licenciado em
História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Dedica-se à História Antiga e à
tradução de textos antigos e medievais.
Introdução geográfica de
Sobre as Origens e os Feitos dos Godos
Jordanes

De Jordanes a Castálio

E
1.
u desejoso de viajar a favor da corrente em meu pequeno navio,
explorar a costa de um litoral tranquilo e, como se diz, colher pe-
quenos peixinhos nas piscinas dos antigos, irmão Castálio, e me
compeles a abrir velas rumo ao alto mar e a abandonar a pequena obra que te-
nho entre as mãos – ou seja, a abreviação das crônicas.1 Persuades-me a resumir
neste pequeno livro, com palavras minhas, os doze volumes de Cassiodoro Se-
nador2 sobre os feitos dos godos desde os tempos antigos até o presente, per-
correndo as gerações de reis. 2. Digo-te, enquanto parto: para quem sabe não
querer o peso de tal trabalho e não almeja o ridículo, é um tanto dura a missão
imposta; porquanto meu fôlego é fraco para preencher a sua tão magnífica
trombeta que diz tanto. Sobre todo esse peso, ademais, não nos foi permitida a
consulta aos seus livros, de modo que busquei seu sentido geral. Não mentirei,
porém: há pouco reli, durante três dias, a narrativa de tais livros, por gentileza
do secretário do autor. Deles, contudo, não conservei as palavras; mas creio ter
retido integralmente o sentido das coisas feitas. 3. A essas também acrescentei

1 Jordanes provavelmente se refere à Romana.

2 Trata-se de Flavius Magnus Aurelius Cassiodorus Senator (c. 485 – c. 585).

52
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

várias histórias de gregos e latinos, conforme a conveniência. Misturei a minha


fala no início, no fim e, mais ainda, no meio. Assim, recebe sem agravo e con-
tente o que solicitaste. Lê contentíssimo; e se o que foi dito não for suficiente
para ti, vizinho deste povo, rememora-o para acrescentá-lo. Ora por mim, ca-
ríssimo irmão. Que o Senhor esteja contigo. Amém!

Capítulo I
4. Nossos antepassados, como reporta Paulo Orósio, consideravam o cír-
culo da Terra inteira tripartido, envolto por uma faixa do Oceanus; e chamaram
suas três partes de ‘Asia’, ‘Europa’ e ‘Africa’. A respeito dessa divisão tríplice do
espaço do globo terrestre, quase incontáveis escritores não somente explana-
ram as posições de cidades e lugares, mas também tornaram clara a quantidade
de milhas e passos. Igualmente, determinaram a posição no imenso mar pro-
fundo das ilhas espalhadas em meio às ondas, não apenas as maiores como as
menores – a estas chamaram ‘Cyclades’ ou ‘Sporadas’. 5. Ninguém, contudo, em-
preendeu a tarefa de descrever os inacessíveis confins do Oceanus, até porque
não foi possível percorrê-los; devido às algas resistentes e ao descanso dos ven-
tos, se entende que são intransponíveis e ninguém os compreende, a não ser
quem os criou. 6. Ainda assim, as margens mais próximas desse mar que deno-
minamos ‘círculo do mundo inteiro’ e que, como uma coroa, envolve seus con-
fins se tornaram conhecidas por homens curiosos que quiseram escrever sobre
as coisas de lá, pois o círculo da Terra possui residentes e um certo número de
ilhas desse mar é habitável. Assim, existem na região oriental e no Indicus Ocea-
nus, Hippodes, Iamnesia e Solis Perusta que, apesar de inabitável, possui uma área
que se estende em longitude e latitude. Ademais, na Taprobana,3 além de aldeias
e fazendas, existem dez belas cidades muitíssimo fortificadas. Há, contudo, uma
outra, a agradabilíssima Silefantina; assim como Theron. 7. Essas duas, ainda que
não diferenciadas por alguns escritores, estão todavia amplamente preenchidas

3 Possivelmente o atual Sri Lanka.

53
JORDANES

por residentes. Esse mesmo Oceanus possui, na parte ocidental, algumas ilhas
um tanto conhecidas por quase todos, pela frequência daqueles que vão e vêm
delas. Existem, ademais, junto do estreito de Gades, pouco distantes entre si,
uma que é denominada ‘Beata’ e outra ‘Fortunata’. Embora muitos considerem
ilhas do Oceanus aqueles promontórios gêmeos, Galicia e Lusitania (em um dos
quais ainda se pode ver o templo de Hércules e no outro o monumento dos Ci-
piões), todavia, por estarem ligados pela extremidade das terras galegas, eles
pertencem à grande terra da Europa e não às ilhas do Oceanus. 8. Este, contudo,
tem outras ilhas em seu interior, chamadas depressão (gremium) dessa ilha para
dentro das terras da Europa como se fosse um enxame de abelhas. De que modo,
de fato, ou de que maneira, se o Senhor nos conceder, explicaremos na sequên-
cia. ‘Baleares’; além de outra, chamada ‘Nevania’; e também das ‘Orcadas’, em
número de trinta e três, ainda que nem todas habitadas. Existe na última faixa
do ocidente outra ilha, de nome ‘Thyle’,4 a respeito da qual o mantuano (Virgílio)
diz, entre outras coisas: ‘Thyle, a mais distante, servirá a ti’. 9. Ele próprio um
imenso mar tem também na parte ártica – isto é, no norte – uma ampla ilha de
nome ‘Scandza’; de onde nossa discussão, se o Senhor assim o ordenar, será ini-
ciada, pois o povo cuja origem requeres vem irrompendo da depressão (gre-
mium) dessa ilha para dentro das terras da Europa como se fosse um enxame de
abelhas. De que modo, de fato, ou de que maneira, se o Senhor nos conceder,
explicaremos na sequência.

Capítulo II
10. Agora, porém, tratarei como for possível e de forma breve, da ilha da
Brittania, que está situada no golfo entre a Spania, a Gallia e a Germania. Apesar
de que antigamente, por conta de sua extensão, como mencionado por Tito
Lívio, ninguém a havia circundado, não obstante, de muitos são as variadas opi-
niões ditas sobre ela. Se ela foi certamente por muito tempo inacessível, os ro-

4 Talvez a Islândia ou mesmo a Groenlândia.

54
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

manos de Júlio César por grande glória a abriram com prélios. Acessível desde
então, tanto na busca por mercadorias como por muitos outros interesses, os
quais foram buscados, ela deixou de ser mortal mesmo para os descuidados,
revelando definitivamente sua posição àquela geração, assim como aos autores
gregos e latinos que aceitamos e seguimos. 11. Muitos deles comparam-na a um
triângulo, apontando para entre as regiões setentrionais e ocidentais. Seu maior
ângulo fica defronte à boca do rio Rhenus. Dali ela se reduz em largura e se re-
trai até terminar em dois outros ângulos. Seus dois lados maiores se projetam
em frente à Gallia e à Germania. Dizem ter dois mil e trezentos e dez estádios de
largura e não mais de sete mil e cento e trinta e dois de comprimento.5 12. Plena
de espinhos, a floresta jaz na planície, que também cresce até formar vários
montes. Um mar calmo, que não cede facilmente ao empurrão dos remos e
tampouco é agitado pelos ventos, a circunda. Creio que isto se dá porque as
terras estão tão afastadas a ponto de não possibilitarem a agitação do mar; e a
superfície do oceano, é claro, se estende mais do que em outros locais. Conta
também o nobre escritor grego Estrabão que, umedecido o solo por frequentes
incursões do Oceanus, ela exala muitas nuvens que cobrem o sol e tornam seus
dias quase de todo desagradáveis, apesar de calmos, impedindo a claridade. 13.
Em sua parte mais afastada, ademais, a noite é clara e muito curta. Como tam-
bém relatou o escritor dos ‘Anais’, Cornélio Tácito, é rica em muitos metais,
fértil para todo tipo de ervas, que mais alimentam o gado do que os homens. Por
ela, contudo, deslizam e desaparecem enormes rios, revolvendo muitas pedras
preciosas e pérolas. Os siluros têm o rosto pintado; sendo que muitos nascem
com os cabelos negros e crespos. Os habitantes da Calydonia, por outro lado,
têm pelos ruivos e corpos grandes, porém ágeis. 14. Parecem-se com os gauleses
ou os hispanos, dependendo de qual região estão defronte.6 Daí muitos conje-

5 Valores em torno de 415 e 1280 quilômetros, respectivamente. Ambos bastante próximos das distâncias reais.

6 Curiosamente, Jordanes imagina a ilha da Brittania posicionada não somente defronte à Gallia, como também
à Spania. Embora fosse verdade que o litoral sul da Brittania fosse vizinho do litoral norte da Gallia, ele situava-se a mais
de 1.000 quilômetros do litoral norte da península ibérica.

55
JORDANES

turarem que a ilha recebeu os habitantes dessas regiões, convidando os que es-
tavam próximos. Todos os povos e seus reis são igualmente selvagens. Dião
Cássio, o célebre autor de anais, todavia afirma que todos foram apelidados de
‘calidônios’ e ‘meataros’. Vivem em cabanas de madeira, compartilhando seu
abrigo com o gado, e as florestas frequentemente lhes servem de casa. Não sei
se pintam seus corpos com a cor do ferro para decorá-los ou para outra coisa.
15. Eles frequentemente conduzem guerra uns contra os outros por desejo de
poder ou para aumentar suas posses. Lutam não apenas a cavalo ou à pé, mas
também com bigas e carroças armadas com foices, às quais comumente cha-
mam de ‘essedae’. Que baste o que foi dito acerca da situação das ilhas da Britta-
nia.

Capítulo III
16. Retomemos a situação da ilha da Scandza, que abandonamos acima.
Cláudio Ptolomeu, eminente descritor do globo terrestre, lembrou-se dela no
segundo livro de sua obra, dizendo: ‘Há uma grande ilha situada em mar aberto
na área ártica do Oceanus, de nome ‘Scandza’, cujos lados são curvados como
uma folha de cedro, se estendendo longamente até se findarem um sobre o ou-
tro’. Pompônio Mela relatou a seu respeito que, no mar, ela está situada no golfo
Codanus, para cujas margens flui o Oceanus. 17. À frente desta está localizado o
rio Vistula,7 que nasce nos montes Sarmatici e flui para uma foz tripla, que desá-
gua no norte do Oceanus, defronte à Scandzae, separando a Germania e a Scythia.
Ela tem em sua parte oriental um enorme lago, em uma área que é uma depres-
são (gremium) do globo terrestre, de onde o rio Vagus8 escorre como se jorrasse
de uma entranha em direção ao onduloso Oceanus. Na parte ocidental, por seu
turno, a ilha é cercada por um mar imenso e a norte é limitada pelo vastíssimo
e inavegável Oceanus, do qual sai uma espécie de braço, que se estende em um

7 O rio manteve o mesmo nome até os dias atuais. Fica na Polônia e deságua na baía de Gdanski.

8 Provavelmente o Göta älv, na Suécia.

56
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

golfo e produz o mar Germanicus. 18. Diz-se que por lá também existem muitas
pequenas ilhas e que os lobos, quando atravessam o mar congelado em direção
a elas, perdem a visão devido ao frio excessivo. Assim, essa terra não é somente
inóspita para os homens, mas cruel até mesmo para as feras. 19. Ainda que na
Scandza, a ilha da qual estamos falando, seja permitida a permanência de muitos
e diversos povos, Ptolomeu lembra-se somente do nome de sete deles. Lá, devi-
do ao frio excessivo, não são encontrados em parte alguma enxames de abelhas
melíferas. Em sua parte norte, onde está assentada a nação adogita,9 diz-se que
em meados do verão há luz contínua por quarenta dias e noites; e que, no tempo
invernal, não conhece luz clara por igual número de dias e noites. 20. Assim,
por tal alternância entre aflição e alegria, são distintos dos outros no que con-
cerne a vantagens e perdas. E isso por quê? Porque nos dias longos eles veem o
sol retornar ao oriente margeando o horizonte. Nos dias breves, todavia, não é
isso que observam. Pelo contrário, ao percorrer os símbolos austrais, o sol que
é visto por nós surgindo de baixo, no caso deles é dito que circula pela margem
da Terra. 21. Lá também estão outros povos, como os escrerefenos, que não bus-
cam cereais como sustento. Vivem da carne de feras e dos ovos de aves; pois são
postas tantas crias nos pântanos que proporcionam o aumento da espécie e fa-
vorecem a saciedade do povo. Outro povo que mora lá é o suehano, que, como
os turingos, emprega cavalos exímios. Eles também são os que enviam, através
do comércio com outros inumeráveis povos, as peles safirinas10 que são usadas
pelos romanos. São famosos pela negritude dos adornos de suas peles. Ainda
que vivam como pobres, vestem-se muito ricamente. 22. Então, segue-se uma
aglomeração de diversos povos, como teustes, vagotes, bergios, halinos, lióti-
das; os quais se assentam todos em uma planície fértil e que, por isso, são infes-
tados por incursões de outros povos. Por detrás desses, estão os ahemiles, os
finaitas, fervires, gautigodos – um tipo de homens rudes e prontíssimos para a

9 Aportuguesamos os nomes dos povos mencionados no texto de Jordanes. Muitos deles não são mencionados
em qualquer outra fonte antiga ou medieval.

10 De cor azulada como a safira.

57
JORDANES

guerra – e em seguida, os mixis, evagres e otingis. Todos eles habitam fortalezas


escavadas nas rochas e se portam de modo quase bestial. 23. Para além deles
estão, ademais, os ostrogodos, raumáricos, aeragnáricios e os gentilíssimos fi-
nos, os mais gentis de todos os habitantes da Scandza. Também semelhantes a
eles são os vinovilotes. Os suétidos são conhecidos entre esses povos por seu
tamanho excepcional; apesar de que os daneses, que provém da mesma linha-
gem e que expulsaram os hérulos das próprias terras, são os que entre os povos
da Scandza jactam-se devido a sua especial estatura. 24. Nessa região estão, ain-
da, os granios, auganzos, eunixos, taetel, rugos, arochos e ranos, de quem há não
muitos anos Roduulf foi rei. Ele, por desprezo ao próprio reino, correu para o
colo do rei dos godos Teodorico, encontrando o que desejava. Todos esses po-
vos, além disso, são maiores dos que os germânicos em corpo e alma; e lutam
com uma fúria bestial.

Capítulo IV
25. Dessarte, os godos se recordam de partir outrora dessa ilha Scandza –
quase uma fábrica de povos ou, certamente, um nascedouro de nações – com
seu rei de nome Berig. Quando os líderes saíram dos navios e chegaram à terra,
de imediato deram nome ao local; do qual se diz, até hoje, ser chamado Gothis-
candza. 26. De lá, em seguida, avançaram até a morada dos ulmerugos, que en-
tão ocupavam as margens do Oceanus. Então montaram acampamento e com-
bateram-nos, expulsando-os de suas moradas. Depois deles os vizinhos. Os
vândalos, então já subjugados, acrescentaram às suas vitórias. Lá, porém, com a
grande população aumentando em número, e já quase no quinto rei após Berig,
Filimer, filho de Gadarigis, sentou-se diante do conselho e então conduziu
adiante o exército dos godos, acompanhado pelos familiares. 27. Em busca de
locais adjacentes apropriados para excelentes moradas, chegou à terra da
Scythia, à qual chamavam em sua língua ‘Oium’, onde ficou deleitado pela gran-
de fertilidade da região. Diz-se que metade do exército havia cruzado uma pon-
te e, quando atravessava a correnteza, aquela desabou irreparavelmente, não

58
SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

mais lhe permitindo ir ou voltar, pois esse lugar, segundo dizem, está limitado
por um abismo aquoso circundado por um pântano movediço (tremulus), torna-
dos intransponíveis pela natureza através de sua combinação. Ali, ainda hoje,
são ouvidas vozes de gado e encontrados indícios de homens, segundo testemu-
nhos dos viajantes; apesar de que devemos crer que eles ouçam essas histórias
de longe.

59
STEPHEN CRANE

UMA ILUSÃO EM
VERMELHO E BRANCO
título original:
AN ILLUSION IN RED AND WHITE

tradução:
CÉSAR GANIMI MACHADO

Stephen Crane (1 de novembro de 1871 - 5 de junho de 1900) foi um precoce escritor


americano. Filho de um erudito patriota da Revolução Americana, começa a escrever com
apenas quatro anos de idade, e por volta dos treze publica um de seus mais famosos contos,
Uncle Jake and the Bell-Handle. Em 1895, com a publicação de The Red Badge of Courage (O
Emblema Rubro da Coragem), romance que tem como cenário a Guerra Civil Americana,
Stephen Crane é recebido pela crítica com uma “orgia de louvores”, segundo o escritor
H.G. Wells. O estilo de Crane é frequentemente associado ao naturalismo, dando ênfase a
temas como o medo, a dúvida e a morte — elementos presentes no conto aqui traduzido,
An Illusion in Red and White. Stephen Crane morreu prematuramente aos 28 anos de idade,
antes que terminasse de escrever a novela The O’Ruddy (finalizada futuramente pelo
escritor Robert Barr).

César Ganimi é designer gráfico e bibliófilo.


Uma Ilusão em Vermelho e Branco
Stephen Crane

A
s noites no bloqueio cubano eram longas, raramente empolgan-
tes, muitas vezes entediantes. Os tripulantes dos irrequietos pe-
quenos barcos de carga se tornaram tão íntimos como se estives-
sem todos enterrados no mesmo caixão. Os correspondentes, que em Nova
York se passavam por camaradas honestos, às vezes se revelavam perfeitos im-
postores, vaidosos e egoístas, mas em geral esses tolos presunçosos do Park
Row se comportavam como os homens bondosos e prestativos do bloqueio
cubano. Além disso, cada correspondente contava tudo o que sabia e mais um
pouco. Serei eternamente grato a uma das brilhantes estrelas do jornalismo
nova-iorquino por esta amável narrativa:

Bem, é assim que imagino o ocorrido. Não digo que tenha se desenrolado
dessa forma, mas é assim que imagino. E nunca deixo de ressaltar o quanto esta
história é interessante. Não fiquei no jornal por muito tempo, mas o suficiente
para cobrir um bom evento, quando o editor inesperadamente me encarregou
desse fantástico homicídio.
Parece que lá em um dos condados do Estado de Nova York, um fazendei-
ro havia tomado uma aversão pela sua esposa; foi então até a cozinha com um
machado, e na presença de seus quatro filhinhos, despreocupadamente desferiu
um golpe na nuca de sua esposa. Era de manhã cedo, mas ordenou que as crian-
ças voltassem para a cama. Então levou o corpo de sua mulher até a floresta e o
enterrou.

61
UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO

O nome desse fazendeiro era Jones. O filho mais velho do viúvo se chama-
va Freddy. Uma semana após o crime, um dos vizinhos de longa distância pas-
seava em sua carroça próximo à casa, quando avistou Freddy brincando na rua.
Ele se levantou e perguntou ao menino como ia a família Jones.
— Ah, estamos todos bem, disse Freddy, só a mamãe que não — ela está
morta.
— Como! Quando ela morreu? bradou o fazendeiro, espantado. — Do que
ela morreu?
— Ah, respondeu Freddy — semana passada um homem de cabelos verme-
lhos e de dentões brancos e de mãos branquíssimas veio até a cozinha e matou
a mamãe com um machado.
O fazendeiro ficou indignado com as esquisitas lorotas de criança que o
menino lhe contara, e seguiu a viagem preocupado. Mas naquela tarde espalhou
o incidente em uma taverna, e quando o povo começou a dar por falta da figura
familiar da Sra. Jones nas manhãs de sábado na Igreja Metodista, acabaram dan-
do início a uma investigação. O calmo Jones foi preso por homicídio, e o corpo
de sua esposa desenterrado da cova onde fora jogado, para então ser sepultado
pela sua própria família.
A atenção principal agora se direcionou às crianças. Todas as quatro decla-
raram que estavam na cozinha na hora do crime, e que o assassino tinha cabelo
vermelho. O cabelo do bom Jones era grisalho. Elas alegaram que os dentes do
assassino eram grandes e brancos. Jones só tinha uns oito dentes, e esses eram
pequenos e cariados. Elas alegaram que as mãos do assassino eram brancas. As
mãos de Jones eram da cor de uma noz. Elas levantaram seus confusos e ino-
centes rostos, e chorando — simplesmente porque a agitação inesperada e seus
novos alojamentos as assustavam — repetiram sua épica narração sem grandes
contradições, mas sem a uniformidade que pudesse levantar suspeitas.
Mulheres iam até a prisão e se condoíam pelas crianças, costuravam sai-
nhas para as meninas, e pequenos calções para os meninos, e detetives estúpi-
dos as questionavam minuciosamente. Mas elas sempre sustentavam a teoria

62
STEPHEN CRANE

do assassino de cabelo vermelho, dentões esbranquiçados e mãos brancas. Jones


permanecia sentado em sua cela, queixo taciturno sobre o primeiro botão de
seu uniforme. Não sabia nada sobre qualquer assassinato, alegava. Achava que
sua mulher tinha ido visitar alguns parentes. Eles discutiram, e ela disse que iria
abandoná-lo por algum tempo, para que ele tivesse a oportunidade de esfriar a
cabeça. Ele tinha percebido o sangue no chão? Sim, ele tinha percebido o sangue
no chão. Mas ele estivera limpando e esfolando um coelho justo naquele lugar,
no mesmo dia em que sua mulher desapareceu. Ele não deu bola para aquilo. O
que seus filhos disseram quando ele retornou da floresta? Que mamãe havia
sido assassinada com um machado pelas mãos de um homem de cabelos verme-
lhos, dentões brancos e mãos brancas. Quando o indagavam por que não havia
informado à polícia do condado, Jones respondia que não considerava matéria
de grande importância. Não escondia o ódio que sentia pela esposa, e afinal,
estava satisfeito em ver-se livre dela. Mais tarde se convenceu de que ela havia
fugido, e jamais deu crédito à história fantástica das crianças.
Claro, poucos duvidavam de sua culpabilidade, mas havia uma quantidade
razoável de pessoas que concordavam que Jones era de fato um sujeito rude e
bruto, e talvez com alguns parafusos a menos — sim — mas assassino, não. Eles
se dirigiam às crianças, afirmando que crianças não mentem, mas elas, quando
indagadas, alegavam que o crime havia sido cometido por um homem de cabelo
vermelho, dentões brancos e mãos brancas. Eu mesmo as entrevistei algumas
vezes, e fiquei pasmo com o tom convincente que davam à historinha. Brilhan-
do nas profundezas de seus límpidos olhos que se viravam, era possível enxer-
gar pequenas imagens espelhadas de homens com cabelos vermelhos, dentões
brancos e mãos brancas.
Agora, vou contar-lhes como aconteceu — como imagino que se passou.
Um tempo após enterrar a esposa na floresta, Jones voltou para casa. Não vendo
ninguém, gritou à moda familiar:
— Mãe!
Então as crianças apareceram, chorosas.

63
UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO

— Onde está a mãe de vocês? — perguntou Jones.


As crianças fitaram-no, confusas.
— Ué, papai, — disse Freddy — você veio aqui, acertou mamãe com um
machado; depois mandou a gente se deitar.
— Eu? — exclamou Jones. — Não estive por aqui desde o café da manhã.
As crianças não souberam como responder. O débil juízo que possuíam
lhes indicava que era seu pai o homem do machado, mas ele negava, e para suas
cabeças tudo não passava de um grande enigma sem sentido algum, salvo que
aquilo era misteriosamente triste e as fazia chorar.
— Que tipo de aparência esse homem tinha? — perguntou Jones.
Freddy hesitou.
— Bem... ele parecia um bocado com você, papai.
— Comigo? — disse Jones. — Ora, eu pensei ter ouvido você dizer que ele
tinha cabelos vermelhos?
— Não, eu não disse, — replicou Freddy. — Penso que ele tinha o cabelo
grisalho, como o seu.
— Bem, — disse Jones — Eu vi um homem de cabelos que pareciam verme-
lhos andando pela rua afora, e pensei que talvez pudesse ser ele.
Nesse momento a pequena Lucy, a segunda criança, falou com intensa
convicção.
— O cabelo dele era bem pouquinho vermelho. Eu vi.
— Não, — disse Jones. — O homem que eu vi tinha o cabelo bem vermelho.
E como eram seus dentes? Eram grandes e brancos?
— Sim, — respondeu Lucy — eram sim.
Até Freddy parecia propenso a acreditar nessa versão:
— Pode ser que seus dentes fossem mesmo grandes e brancos.
Jones disse ainda mais alguma coisa naquele momento. Mais tarde insi-
nuou às crianças que sua mãe havia saído para fazer uma visita, e embora esti-
vessem completamente surpresas — e de vez em quando chorassem por conta
da opressão de um sentimento incompreensível que as tomava — não disseram

64
STEPHEN CRANE

nada. Jones cumpriu seu trabalho. Estava tudo tranquilo.


Na manhã seguinte ao dia do crime, Jones e seus filhos tomavam canjica e
leite no café da manhã.
— Bem, sobre esse homem de cabelos vermelhos e dentões brancos, Lucy,
— disse Jones — você percebeu mais alguma coisa nele?
Lucy se endireitou na cadeira, e demonstrou o desejo infantil de surgir
com uma informação brilhante que pudesse ganhar a aprovação de seu pai.
— Ele tinha as mãos brancas — mãos totalmente brancas.
— E você, Freddy?’
— Eu não olhei muito pra elas, mas acho que eram brancas, respondeu o
menino.
— E o que a Martinha percebeu? — apelou o carinhoso pai. — Ela viu o
homenzarrão malvado?’
Martha, que tinha quatro anos, respondeu solenemente:
— O cabelo dele era todo vermelho, e a mão toda branca — muito branca.
— Foi esse o homem que eu vi passando na rua, — disse Jones a Freddy.
— Sim, senhor, parece que deve ter sido ele, — disse o menino, cujo cére-
bro estava agora completamente bagunçado.
Novamente Jones deixou que a ideia do homicídio de sua mulher caísse no
esquecimento. As crianças definitivamente não tinham noção de que aquilo era
um assassinato. Adultos sempre se comportavam de modo que fazia a cabeça
das crianças boiar. Por exemplo, o que haveria de mais incompreensível do que
a atividade de um homem com dois cavalos, transportando alguma coisa desco-
nhecida através da mata? E por que eles cortavam os longos capins e os jogavam
no celeiro? E pra que servia uma vaca? A água do poço gostava de ficar lá? Todas
essas atividades e coisas eram extraordinárias, pois estavam associadas à cate-
goria superior dos adultos, mas eram profundamente misteriosas. Caso, então,
um homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas acertasse
sua mãe com um golpe de machado na nuca, isso era apenas um fenômeno da
vida adulta. Henry, o bebê, quando queria algo, berrava e batia na mesa com sua

65
UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO

colher. Isso era tudo o que ele sabia da vida. Não estava preocupado com o fato
de que sua mãe havia sido assassinada.
Um dia, inesperadamente, Jones se dirigiu aos seus filhos:
— Vejam bem: me pergunto se vocês não podem ter se enganado. Vocês
têm absoluta certeza de que o homem que viram tinha cabelos vermelhos, den-
tões brancos e mãos brancas?’
As crianças se irritaram com o pai:
— Ora, sem dúvida, papai, nós não cometemos nenhum engano. Nós o
vimos perfeitamente.
Mais tarde a cabeça do jovem Freddy passou a funcionar como se estivesse
cheia de ketchup. Suas noites de sono eram assombradas com terríveis imagens
do homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas, e a prolon-
gada ausência de sua mãe o desvairava. Não demorou para que voluntariamen-
te desenvolvesse a hipótese de que sua mãe estava morta. Ele sabia o que era a
morte. Ele vira uma vez um cachorro morto; também galinhas mortas, coelhos
e ratos. Um dia perguntou a seu pai:
— Papai, a mamãe vai voltar algum dia?
Jones disse:
— Bem, não; acredito que não.
Essa resposta confirmou ao menino sua suposição. Ele sabia que pessoas
mortas não voltavam.
A atitude de Jones frente a essa narração extraordinária do homem com o
machado era muito peculiar. Ele passou a contestá-la. Protestou contra a afir-
mação das crianças, mas não conseguia fazê-las mudar de ideia. Era a única
coisa em suas vidas da qual estavam permanente e absolutamente convencidas.
Bem, é assim que a história termina. Mas para o deleite de vocês, continu-
arei. O júri pendurou Jones o mais alto que podiam, e estavam cobertos de ra-
zão: afinal Jones confessou o crime antes de morrer. Freddy é atualmente um
respeitabilíssimo condutor de carroça de mercearia em Ogdensburg. Quando
estive por lá uns bons anos depois, as pessoas me diziam que quando ele abria a

66
STEPHEN CRANE

boca pra falar da tragédia, era convicto em denunciar a alegada confissão do pai
como uma mentira. Considerava seu pai uma vítima da estupidez dos jurados,
e tinha a esperança de algum dia conhecer o homem de cabelos vermelhos, den-
tões brancos e mãos brancas, cuja imagem ainda permanece tão nítida em sua
memória que poderia distingui-lo no meio de uma multidão de dez mil pessoas.

67
C. S. LEWIS

MEDITAÇÃO NO GALPÃO
DE FERRAMENTAS
título original:
MEDITATION IN A TOOLSHED

tradução:
FABIANA ESSE

Clive Staples Lewis foi um escritor britânico. Mesmo não se contando entre os teólogos,
tornou-se bastante conhecido, entre outros méritos, pela consistente apologética cristã
que divulgou e colaborou para desenvolver.

Originalmente publicado no The Coventry Evening Telegraph de 17 de julho de 1945 e


reproduzido em God in the Dock (Eerdmans, 1970), o pequeno ensaio Meditation in a
Toolshed é um firme alerta contra os enganos que a unilateralidade das interpretações
extraídas meramente a partir de observações externas, “científicas”, podem produzir,
quando se opõe, em total detrimento, às impressões extraídas da experiência vivenciada
em si mesma. Esclarecendo por que a obtenção de toda a veracidade sobre comportamentos
e circunstâncias humanas não se encerra apenas no olhar do observador passivo e seu
método científico, ele nos lembra de que há ou pode haver veracidade, ou ao menos
frações dessa veracidade, também no próprio vivenciar.

Fabiana Esse é tradutora.


Meditação no Galpão de Ferramentas
C.S. Lewis

H
oje eu estive no escuro galpão de ferramentas. O sol brilhava lá
fora e, pela fresta no topo da porta, veio um de seus raios. De
onde eu estava, esse feixe de luz com partículas de poeira flutu-
antes era a coisa mais notável no local. Todo o resto era quase um breu. Eu es-
tava vendo o feixe, não vendo as coisas através dele.
Então me movi, de modo que o feixe caiu sobre meus olhos. Imediatamen-
te, toda a imagem anterior desapareceu. Não vi nenhum galpão e (sobretudo)
nenhum feixe. Em vez disso, vi, enquadradas no recanto irregular na parte su-
perior da porta, folhas verdes se movendo sobre os galhos de uma árvore lá fora
e, mais além, a aproximadamente 150 milhões de quilômetros de distância, o
sol. Olhar através do feixe e olhar para o feixe são experiências muito diferen-
tes.
Mas esse é apenas um exemplo muito simples da diferença entre olhar-
-para e olhar-através. Um rapaz conhece uma garota, o mundo inteiro parece
diferente quando ele a vê. Sua voz lhe recorda algo de que ele vem tentando se
recordar a vida toda e dez minutos de conversa ocasional com ela são mais pre-
ciosos que todos os favores que qualquer outra mulher no mundo poderia lhe
conceder. Ele está, como se costuma dizer, “apaixonado”. De fora, um cientista
descreve a experiência deste jovem. Para ele, tudo se resume na relação entre os
genes e um reconhecido estímulo biológico. Essa é a diferença entre olhar atra-
vés do impulso sexual e olhar para o impulso sexual.
Quando se adquire o hábito de fazer essa distinção, encontram-se vários
exemplos. O matemático senta-se para pensar e, para ele, parece que contempla

69
M E D I TA Ç Ã O N O G A L PÃ O D E F E R R A M E N TA S

verdades atemporais e irrestritas sobre números. Mas o fisiologista do cérebro,


se pudesse olhar dentro da cabeça do matemático, não acharia nada atemporal
e irrestrito lá, mas apenas pequenos movimentos na massa cinzenta. O selva-
gem, à meia noite, dança em êxtase diante do Nyonga1 e sente com cada múscu-
lo que sua dança está ajudando a trazer uma nova boa safra, chuva de primave-
ra e bebês. O antropólogo, observando o selvagem, registra que ele está
realizando um ritual de fertilidade do tipo assim ou assado. A menina chora por
sua boneca quebrada e sente que perdeu uma amiga de verdade, o psicólogo diz
que seu instinto maternal incipiente foi momentaneamente derramado sobre
um pedaço moldado de cera colorida.
Assim que se apreende essa simples distinção, levanta-se uma questão: ga-
nha-se uma experiência sobre determinada circunstância quando se olha atra-
vés dela e outra quando se olha para ela. Qual é a “verdadeira experiência” ou “a
experiência válida”? O que diz mais sobre a tal circunstância? E dificilmente se
pode fazer essa pergunta sem perceber que, nos últimos cinquenta anos, mais
ou menos, todos vêm tendo a resposta por certa. Assumiu-se sem discussão que,
quando se quer a verdadeira explicação sobre religião, não se deve ir aos reli-
giosos, mas aos antropólogos; quando se quer a verdadeira explicação sobre o
amor, não se deve ir aos amantes, mas aos psicólogos; quando se quer compre-
ender algumas “ideologias” (como a cavalaria medieval ou a ideia do século XIX
de um “gentleman”), deve-se ouvir não aqueles que viveram tais ideologias, mas
os sociólogos.
As pessoas que olharam para as circunstâncias deram a elas sua própria
versão; as pessoas que olharam através das circunstâncias foram simplesmente
coagidas. Veio mesmo a ser admitido como certo que a descrição externa de
algo refuta ou “desmistifica” a descrição interna. “Todos estes ideais morais que
parecem tão transcendentais e belos de dentro”, diz o pedante, “são realmente
apenas uma mistura de instintos biológicos e tabus herdados.” E ninguém joga

1 Trata-se, possivelmente, de uma referência ao rio em Camarões, que corre aproximadamente 640 km até
desaguar no Golfo da Guiné. (N.T.)

70
C.S. LEWIS

o jogo de outra maneira, argumentando: “Se as coisas fossem vistas pelos olhos
de quem as vive, o que parece instintos e tabus, de repente, revelaria sua verda-
deira e transcendental natureza.”
Essa é, de fato, toda a base do pensamento especificamente “moderno”. “E
não é uma base muito sensata?”, pergunta-se. Afinal, estamos sempre sendo en-
ganados pelas coisas vistas de dentro. Por exemplo, a moça que parece tão ma-
ravilhosa quando se está apaixonado, pode, na verdade, ser uma pessoa muito
obtusa, estúpida e desagradável; a dança do selvagem para o Nyonga, na verda-
de, não faz as colheitas aumentarem. Depois de termos sido tantas vezes enga-
nados por olhar-através, não estamos bem aconselhados para confiar apenas ao
olhar-para? Realmente, para desprezar todas as experiências internas?
Bem, não. Há duas objeções fatais ao desprezo de todas elas. E a primeira é
esta: desprezam-se tais experiências a fim de se pensar com maior precisão.
Entretanto, de qualquer modo, não se pode pensar (e, portanto, é claro, não se
pode pensar com precisão) se não se tem nada em que pensar. Um fisiologista,
por exemplo, pode estudar a dor e descobrir que ela “é” (seja o que for que “é”
signifique) esse ou aquele evento neural. Mas a palavra dor não teria nenhum
significado para ele, a menos que já a tivesse, efetivamente, sentido em si mes-
mo. Se ele jamais tivesse olhado através da dor, simplesmente não saberia para
o que está olhando. O próprio objeto de suas investigações externas existe para
ele apenas porque, ao menos uma vez, foi algo interno.
Este não é um caso de provável ocorrência, pois todo homem sente dor.
Mas é perfeitamente fácil passar toda uma vida dando explicações sobre reli-
gião, amor, moral, honra e afins sem que se tenha estado realmente inserido em
quaisquer dessas situações. Quando se faz isso, simplesmente trabalha-se com
símbolos. Explica-se algo sem conhecê-lo. É por isso que grande parte do pen-
samento contemporâneo é, estritamente falando, pensamento sobre nada —
todo o mecanismo do pensamento ocupado em trabalhar num vácuo.
A outra objeção é a seguinte, vamos voltar para o galpão: eu poderia ter
desprezado o que vi quando olhei através do feixe (i.e., o movimento das folhas

71
M E D I TA Ç Ã O N O G A L PÃ O D E F E R R A M E N TA S

e o sol), sob o fundamento de que era “realmente apenas uma faixa de luz em-
poeirada em um galpão escuro”. Ou seja, eu poderia ter estabelecido como “ver-
dadeira” minha “visão lateral” do feixe. Entretanto, aquela visão lateral é, ela
mesma, um exemplo da atividade que chamamos de ver, e este novo exemplo
poderia também ser olhado de fora. Eu poderia permitir que um cientista me
dissesse que o que parecia ser um feixe de luz em um galpão era, “na realidade,
apenas uma agitação dos meus próprios nervos ópticos”. E isso seria tão bom
(ou tão ruim) quanto a desmistificação anterior. A imagem do feixe no galpão
teria agora que ser desprezada, assim como a imagem anterior das árvores e do
sol. E então, onde estamos?
Em outras palavras, pode-se sair de uma experiência apenas para se entrar
em outra. Portanto, se todas as experiências internas são equívocos, estamos
sempre equivocados. O fisiologista do cérebro pode dizer, se quiser, que o pen-
samento do matemático é “apenas” pequenos movimentos físicos da massa cin-
zenta. Mas, então, o que dizer sobre o pensamento do próprio fisiologista na-
quele mesmo momento? Um segundo fisiologista, olhando para ele, poderia
afirmar que também se trata apenas de um pequeno movimento em seu crânio.
Aonde tal insensatez iria acabar?
A resposta é que nunca devemos permitir que a insensatez comece. Deve-
mos, sob pena de obtusidade, negar desde o início a ideia de que olhar-para, por
sua própria natureza, é intrinsecamente mais correto ou melhor do que olhar-
-através. Devemos tanto olhar-para quanto olhar-através. Em casos específicos,
vamos encontrar razões para considerar esta ou aquela visão como inferior;
por exemplo, da forma mencionada, a visão interna do pensamento racional
deve ser mais verdadeira que a visão externa, que vê apenas movimentos da
massa cinzenta, porque, se a visão externa for a correta, tudo o que se pensa (e
o próprio pensamento, em si mesmo) não teria valor, e isso é autocontraditório,
não se pode ter uma prova de que nenhuma prova tem importância. Por outro
lado, a visão interna da dança do selvagem para o Nyonga deve ser enganosa,
pois encontramos razões para acreditar que as safras e os bebês não são real-

72
C.S. LEWIS

mente afetados pela dança. Na verdade, devemos tomar cada caso por seu pró-
prio caráter inerente, mas devemos começar sem preconceitos a favor ou con-
tra qualquer tipo de olhar. Não sabemos com antecedência se o amante ou o
psicólogo estão dando a explicação mais correta sobre o amor, ou se ambas as
explicações são igualmente corretas de diferentes maneiras, ou se ambas estão
igualmente erradas. Nós apenas temos que descobrir. Todavia, o tempo da coa-
ção tem que acabar.

73
JUAN JOSÉ SAER

FOTOFOBIA
título original:
FOTOFOBIA

tradução:
HUGO CREMA

Juan José Saer (Serodino, Argentina, 1937 - Paris, 2005) é conhecido no Brasil mais por
suas colunas de jornal e por seus romances estudados em poucos departamentos de letras
do que por seus contos, sua poesia ou seu ensaio, áreas em que também foi prolífico e de
convicções éticas e estéticas densas. Em começo de carreira, uma bolsa de estudos o levou
a morar fora da Argentina, o que nunca o impediu de ambientar seus livros na sua
província natal, Santa Fé. Apesar da paisagem, não é possível pensar que a obra seja tocada
por qualquer matiz local ou anedótico. Na França, teve oportunidade de se desvincular da
cena literária argentina, mantendo correspondência com Ricardo Piglia, Hugo Gola e
poucos mais, e travando breve contato com autores ligados ao Nouveau Roman. Sua
influência alcança autores argentinos hoje, como Sérgio Chejfec.

O conto Fotofobia foi publicado em 1966 no livro Unidad de Lugar, sua epígrafe atesta a
admiração de Saer por Carlos Drummond de Andrade.

Hugo Crema (Brasília, 1990) é ficcionista.


E-mail: hugo.crema@gmail.com
Fotofobia
© Juan José Saer

A
frescura do porão era como um núcleo de sombra pré-solar, e
tinha um cheiro denso, misto, cheio de estímulos que lhe servi-
ram para recordar cheiros antigos, tão vagamente que foi impos-
sível determinar de que classe eram. Ficou um momento indecisa no topo da
escada, porque ainda se sentia fraca. Inspirou com força, não porque fosse agra-
dável, mas porque imaginou que ao se deixar dissolver por esse cheiro cheio de
ecos poderia compreendê-lo melhor. Não aconteceu nada, a não ser vagas re-
miniscências de coisas conhecidas pela metade que a desconcertaram ainda
mais. Mas ela não perdia nada com esse estranhamento: estava perfeitamente
bem. “Estou perfeitamente bem”, pensou. “Tenho só fraqueza.” Desceu o resto
dos degraus e zanzou pela penumbra fria do porão, tateando com placidez no
escuro, sorrindo suavemente, pensando “Estou fraca, nada mais”; e quando se
sentiu cheia de frescor, atravessada por essa sombra fria que o sol de janeiro não
tinha podido nem tocar, parou de dar esses passos lentos e frágeis pelo porão e
se deteve no meio dele, até que seus frios olhos azuis começaram a discernir os
contornos confusos dos trastes amontoados. Os ratos faziam ranger a madeira
podre dos móveis abandonados. Mas ela estava bem, “Estou perfeitamente bem”,
pensava, “porque não tenho mais fraqueza”. Ficou no porão por volta de meia
hora; depois subiu. O sol tinha como que mergulhado a casa numa luz zenital,
cheia de reflexos ardentes. Infiltrava-se pelas vidraças que davam no pátio e
projetava uns desenhos loucos, brilhantes e incompreensíveis sobre o piso e a
mesa. Mas María Amelia tinha tomado banho uma hora antes. “Acabo de tomar
banho pela primeira vez desde sábado”, pensou. “De água fria”, e além disso aca-

75
FOTOFOBIA

bava de se deixar penetrar pelo frescor do porão, e sentia seus próprios cabelos
úmidos caindo sobre seus ombros como um jorro de água límpida, dourada.
Olhou seu pulso, ao qual se grudava o curativo cujas bordas estavam esfiapando
e cuja superfície pretejava lentamente. Não fez o menor gesto; pensou simples-
mente em como era boba, e depois foi à geladeira, apanhou um pêssego, lavou
na pia da cozinha e foi comendo a mordidas lentas até não sobrar mais do que
o caroço, duro, vermelho e refratário, envolvido apenas por uns filamentos
exangues de polpa amarela. María Amelia jogou o caroço no lixo e lavou as
mãos. Cada vez se sentia menos fraca, como se o sangue reabilitado, — o sangue
novamente a misturar, purificar, distribuir e filtrar, recôndito e portanto a sal-
vo do sol de janeiro — tivesse ido se revigorando com os primeiros movimen-
tos do corpo que o produziu. Por isso os movimentos com que tirou a blusa, e
vestiu o leve, limpo e engomado vestido branco e de uma peça só, pouco deco-
tado, gestos familiares, foram rápidos, firmes e cheios de destreza. A luz solar
não chegava no quarto, mas sua atmosfera pesada lhe desagradou e machucou.
Tinha passado dias demais ali dentro, já não conseguia suportá-la. A cama esta-
va desarrumada e em cima da mesinha de cabeceira do seu lado havia remédios,
copos e uma colherinha sobre a qual voejava uma mosca. Em cima da mesinha
de cabeceira do lado do Rafael não havia nada, a não ser um cinzeiro cheio de
bitucas e cinzas e “A Pequena Crônica”. “Por que será que ele leva sempre a “Pe-
quena Crônica” para cama?”, pensou María Amelia. E em seguida: “Agora vou
fumar meu primeiro cigarro”.
Acendeu no cômodo que dava para o pátio, rodeado pela explosiva luz ze-
nital, e os dois primeiros tragos deram enjoo e a obrigaram a se sentar. O tecido
marrom da cadeira estava quente, e isso desagradou. Mas ver os arabescos azuis
da fumaça atravessada pelos raios de sol — a fumaça do primeiro cigarro depois
de todos esses dias (“Como pude ser tão idiota?”) era um espetáculo extraordi-
nário, cheio de plenitude e felicidade. Contemplou a fumaça por um longo tem-
po sem perceber o calor crescente em que a luz de janeiro mergulhava o cômo-
do. Sua testa começou a brilhar. Não percebeu isso também. Estava ocupada

76
J UA N J O S É S A E R

pensando no sangue que se renovava continuamente e no mistério que era tudo


isso, esse trabalho extrassolar, nas grutas escuras e frias de sua parte interna, até
o ponto em que apagou mecanicamente o cigarro contra um cinzeiro e os ara-
bescos de fumaça azul que contemplava absorta, com os olhos muito abertos, se
dissolveram sem que ela reparasse, de uma maneira terrivelmente lenta. Olhou-
-se várias vezes no espelho largo do guarda-roupa penteando a água limpa do
cabelo e de vez em quando alisando o vestido branco de vez, se olhando de
frente e de costas. Pela primeira vez sentiu nojo do curativo sujo e esfiapado
cujo aspecto contrastava demais com a brancura do vestido. Se pelo menos ti-
vesse arrancado, mas estava se sentindo calma e tranquila demais para cometer
um ato assim tão indevido e violento. Demorou-se recolhendo uma a uma as
coisas que foi guardando na carteira grande de palhinha trançada, que combi-
nava com as sandálias. Pôs dinheiro, chaves, cigarros, fósforos, papel higiênico;
passou pela biblioteca e se deteve um bom tempo frente aos livros alinhados,
sem olhar nenhum em especial, até que viu de surpresa a lombada cinzenta de
Madame Bovary e a tirou da estante. Depois pensou que não leria, que não ia
fazer a mesma coisa que Rafael com a sua “Pequena Crônica” e deixou o livro no
lugar. Teve sorte, porque não viu as manchas úmidas que tinham se formado em
suas axilas, mas quando saiu à rua ficou cega com as primeiras centelhas de sol.
“É que estou fraca demais”, pensou, fechando a porta da rua com chave. Era
meio-dia cravado. O bairro estava completamente deserto. As duas fileiras in-
termináveis de casas de um ou dois andares, separadas pela rua de pedra, não
projetavam nenhuma sombra. Quando começou a caminhar pela calçada de la-
drilhos cinzentos — um cinza esmaecido e calcinado — María Amelia não ou-
viu nada mais do que o estalo das sandálias e o as batidas opacas da carteira de
palhinha trançada que estava pendurada no braço contra a parte posterior de
sua coxa direita. A sombra que seu corpo projetava sobre os ladrilhos era dis-
forme e contrafeita, devido à posição do sol. Tinha silêncio demais para o seu
gosto, mas quando chegou à primeira esquina e um automóvel branco que bri-
lhava buzinou duas vezes, pensou que no fim das contas o silêncio não era de

77
FOTOFOBIA

todo mau, e que quando chegasse ao centro — se é que chegava, porque sua
caminhada não era regida por nenhum plano específico a não ser o de sair de
casa depois de tantos dias, agora que Rafael tinha se atrevido a deixá-la sozinha
para viajar a Rosario, questão de arrumar de uma vez por todas o negócio do
concerto — se é que chegava, teria ruído e movimento de sobra.
Nenhum tipo de brisa soprava. A não ser o do seu corpo, que atravessa o ar
pesado e quente, nem o menor movimento era perceptível. Começou a sentir
com nitidez o ritmo que se apoderava de seus membros, suas pernas, seus bra-
ços e sua cabeça, como se o sangue marcasse de dentro, com precisão e regula-
ridade, cada um de seus movimentos. Teve a impressão de que nunca tinha se
sentido tão bem, há muito tempo. Logo agora que esse ritmo tinha se apodera-
do dela, se dava conta de como tinha sido boba, do desprezo por si mesma com
que tinha agido, e sabe-se lá que mais. Agora na borda do lábio superior uma
gotinhas de suor se acumulavam, na borda do lábio duro e seco. Passou o dorso
do dedo indicador e depois secou o dedo com o polegar. “Que umidade. Que
horrível”, pensou. Os reflexos do vestido branco de linho cru, limpo e quebradi-
ço, poderiam cegar quem contemplasse, isso se tivesse alguém para contemplar.
Mas não havia ninguém; a cidade era como um corredor vazio, cujo teto de
porcelana tivesse começado a incandescer. María Amelia atravessou a rua, pi-
sando com as sandálias de palhinha trançada a sombra contrafeita pela direção
da luz. As fachadas das casas dispostas nessas duas longas fileiras, de cores cla-
ras, a maioria branca, condensavam o resplendor áspero. Sobre os tetos, as an-
tenas de televisão, nítidas e complexas, apareciam como que escurecidas pelo
contraste com a luz do sol. Suas silhuetas pareciam borradas por resplendor
transparente. María Amelia pousou a palma da mão no topo da sua cabeça, sor-
rindo, como se a si mesma com esse gesto que já conhecia a fúria desse sol de
janeiro, mas que se sentia invulnerável, a ponto de caçoar dele fingindo que
protege a cabeça com a mão. Na calçada oposta apertou o passo sem deixar de
sorrir, vendo como a sua própria sombra parecia ridícula, contrafeita pela posi-
ção do sol e além disso adulterada grosseiramente pela mão que tinha posto em

78
J UA N J O S É S A E R

cima da cabeça. Sua pele, que tinha embranquecido por causa dos dias que per-
maneceu de cama, começou a encher de pontos vermelhos nas bochechas afun-
dadas e em volta dos frios olhos azuis. Os olhos pareciam embaçados, como
quando alguém baforeja sobre um vidro transparente. Mas a mente de María
Amelia estava ocupada em evocar a gruta fria do porão, essa sombra úmida que
a tinha penetrado quando ainda mal tinha saído do banho — e tinha cedido ao
prazer de deixar a água fria correr por um bom tempo sobre seu corpo nu. Po-
dia voltar quando quisesse (“Está a três quadras, na minha casa”, pensou) e mer-
gulhar nele, durante o tempo que quisesse (“Longe de todo mundo”, pensou) e
quando Rafael voltasse de Rosario podia procurar pela casa toda chamando-a
de sua abelhinha que não ia conseguir encontrá-la. Ergueu a cabeça, subitamen-
te, e viu o sol áspero, cheio de duros reflexos, como uma rachadura fulgurante
abrindo a porcelana baça do céu. A textura do sol resultou insuportável. Parecia
haver mais de um. Pareciam dois ou três discos incandescentes e amarelos que
flutuavam concêntricos sem terminar de se superpor uns aos outros e se unifi-
car de uma vez por todas. Baixou a cabeça. Durante uns metros caminhou de
olhos fechados e sorriu, comprovando que o ritmo que tinha se apoderado de
seu corpo persistia, dando coesão e unidade, permitindo pensar sobre as suas
pernas “a esquerda, a direita, a esquerda agora, a direita agora”, sentindo ao
mesmo tempo o rumor das solas das sandálias contra os ladrilhos cinzentos da
calçada e as batidas opacas, surdas, da carteira de palhinha trançada contra a
parte posterior de sua coxa direita. De súbito lembrou do poço do sítio em Co-
lastiné: no fundo, a penumbra era verde e subia frescor da escuridão, e se al-
guém deixasse cair uma pedra, teria tempo de fechar os olhos, sorrir, virar a
cabeça, bem lentamente, antes de finalmente ouvir o som cheio de ecos da pe-
dra batendo na água.
Por fim, dobrou numa transversal arborizada: sua própria sombra se esfu-
mava nas sombras das árvores. Era um prazer vê-la borrando e reaparecendo
corroída no chão, projetado por efeito dos raios de sol que se infiltravam pelas
copas das árvores. O sol resplandecia entre as folha verdes. Por um momento,

79
FOTOFOBIA

olhou para ele sem parar de caminhar, de cabeça erguida, cheia do ritmo que
tinha se apoderado dela, de tal forma que todo o verde das copas das árvores
atrás das quais o sol e o céu baço eram percebidos como uma miríade fixa e
meio pétrea, parecida com a de um mosaico despedaçado e restaurado de ma-
neira imperfeita, davam a impressão de estar se deslocando lentamente para
trás, inertes e unificados. De um modo mecânico, María Amelia, levou a mão à
carteira grande de palhinha trançada e abriu, apalpando o interior a procura
dos óculos escuros. Não encontrou. Uma rigidez leve e breve na cara foi tudo o
que lhe acometeu ao comprovar que não tinha colocado os óculos na carteira.
Nessa hora percebeu que até esse momento tinha confiado secretamente neles,
que até o último sábado tinha usado desde o começo do verão e que agora tinha
percorrido quase seis quadras e não ia voltar para buscá-los. “Só tenho fraqueza
e nada mais”, pensou, com um fulgor rente aos olhos. “Tudo foi e continua sen-
do só fraqueza.” Lembrou de que leu alguma coisa uma vez, não sabia bem o
que, onde um monge testava quanto tempo ele próprio conseguia resistir com
a mão sobre uma chama. Pôr a mão sobre uma chama significava ao mesmo
tempo não só testar o quanto ele mesmo podia resistir, mas também significava
exprimir o desejo secreto de se queimar. Na primeira esquina se livrou da rua
arborizada e continuou caminhando em pleno sol. O cabelo loiro começou a
ficar úmido nas têmporas. A cara estava cada vez mais vermelha, com uns cír-
culos avermelhados em torno dos olhos, e o ritmo que a tinha tomado um mo-
mento antes acabava de desaparecer. Agora percebia somente o silêncio e a luz
solar, e ressaltando contra o silêncio, o estalo das sandálias contra os ladrilhos
cinzentos ecoando alternadamente por causa das batidas surdas da carteira
contra a parte posterior de sua coxa direita. Sua mente se esvaziou de súbito:
mas antes que fosse ocupada pela incandescência branca e incondicional, ouviu
pela última vez a batida cheia de ecos na escuridão verde do fundo do poço e
depois o silêncio que seguiu, carregado de ressonâncias compreendidas pela
metade, como as do cheiro denso do porão. Por fim estacou, se apoiando a uma
parede branca, o monte disforme e obediente da sua sombra antecedendo. Era

80
J UA N J O S É S A E R

um muro reto, de dez metros de comprimento e quase três de altura, calado, em


cuja superfície María Amelia depositou a palma da mão esquerda e percebeu a
textura áspera, rugosa e quente. Depois virou o corpo e apoiou as costas contra
o muro, erguendo a cabeça, com os olhos semifechados. Abriu os olhos e viran-
do a cabeça observou que o muro terminava num portão alto e cinzento com
duas vidraças retangulares de vidro jateado na parte superior. Em cima da sua
cabeça, contra o muro branco, umas letras grandes de ferro preto, dispostas
horizontalmente e bastante separadas entre si, formavam a palavra FUNDI-
ÇÃO. De costas contra a parede, María Amelia pensou que devia encarar o sol
(“Agora ergo a cabeça, devagar, agora”), e ao abrir os olhos com cabeça erguida
pôde ver, outra vez, por um segundo, os pétreos discos dourados e incandes-
centes despejando chamas que corroíam as bordas de um céu baço. O fulgor do
céu obrigou a fechar os olhos outra vez e estava pensando em abri-los de novo
para agora resistir tudo quanto fosse possível, quando ouviu ressoar o portão
metálico e virou de súbito a cabeça e justamente viu o homem que a contempla-
va perplexo da calçada. O homem também projetava uma sombra disforme so-
bre os ladrilhos que, diferentemente dos do resto da quadra, não eram cinzen-
tos mas brancos, e maiores e mais lisos, cheios de pequenos veios negros. O
homem não vestia mais do que uma calça e deixava a mostra um peito cheio de
cabelos grisalhos que iam raleando conforme se aproximavam do grande abdô-
men. A olhava com curiosa perplexidade. María Amelia se apoiou contra a pa-
rede e levantou a perna esquerda fingindo que arrumava a sandália de palhinha
trançada e depois se afastou na direção contrária à do homem. Sentia os olhos
úmidos e o olhar do homem cravado nela. Ao chegar à esquina, virou a cabeça
por um instante e viu que o homem fazia para ela sinais incompreensíveis. Do-
brou a esquina e entrou em outra transversal arborizada.
A sombra das árvores não produzia nenhum frescor. A gradual proximida-
de do centro fazia com que o silêncio e a solidão fossem menores, mas a sensa-
ção de estar atravessando uma longa, complexa e sólida construção deserta não
abandonou María Amelia. As poucas pessoas que passavam pareciam estar per-

81
FOTOFOBIA

correndo a rua pela última vez, como se se tratasse do último dia do tempo.
Agora viu que sua sombra tinha crescido, pela extensão dos fragmentos que se
borravam e reapareciam nos ladrilhos cinzentos, por cima da sombra mais am-
pla e mais complicada das árvores. O sol, portanto, tinha começado a baixar.
Andou por mais ou menos mais meia hora até chegar ao centro. De tanto soar
o tempo todo, María Amelia deixou de escutar os ruídos das sandálias e da car-
teira. Quando entrou em cheio no centro, seu passo ficou mais lento e susten-
tava o pulso da mão esquerda com a mão direita, à altura da barriga. Com a
ponta do polegar da mão direita acariciava sem parar a borda esfiapada e suja
do curativo. Tinha passado o momento em que o sol estava alto, e ela tinha atra-
vessado esse momento em que a incandescência branca tinha inundado sua
mente, instalando-se ali, mas agora o sol baixava e continuaria baixando até que
o crepúsculo o esfriasse e a noite chegasse. “Não posso esquecer os óculos escu-
ros. Não posso esquecer os óculos escuros”, pensou. Entrou no bar Montecarlo,
que estava vazio ou na penumbra, os janelões protegidos por cortinas azuis
quietas. Abriu enormemente os olhos para ver melhor na penumbra, mas bateu
numa cadeira com o lado do corpo e tropeçou. Sentou em seguida, deixando a
carteira em cima da mesa. Ficou um momento pensativa, brincando com as
bordas sujas do curativo, até que de um modo súbito se deu conta do borrão
branco do fraque do garçom, que se encontrava de pé ao lado e a contemplava.
María Amelia ergueu para ele a cara apavorada.
— Não — disse. — É fraqueza e nada mais.

82
COLETTE

EPITÁFIOS
título original:
ÉPITAPHES

tradução:
FLÁVIA MARIA NASCIMENTO

Sidonie-Gabrielle Colette foi uma escritora francesa nascida em 1873 e falecida em 1954.
Suas obras permeiam certo cunho autobiográfico nos quais relata observações sobre
relacionamentos. Colette foi presidente da Académie Goncourt em 1949.

O conto “Épitaphes” foi publicado na obra La Maison de Claudine, de 1922.

Flávia Maria do Nascimento é graduanda em Letras – língua francesa.


Epitáfios
Colette

Q
uem era Astonifronque Bonscop quando estava vivo?
Meu irmão virou a cabeça, cruzou as mãos em volta de seu
joelho, piscou os olhos para então detalhar, vindo de um longín-
quo inacessível ao vulgar olhar humano, os traços esquecidos de Astonifronque
Bonscop.— Era o declamador da cidade, mas em casa trançava cadeiras de pa-
lha. Era um sujeito gordo... não muito interessante, bebia e batia em sua esposa.
— Então por que puseste “bom pai, bom esposo” em seu epitáfio?
— Porque é o que se põe quando as pessoas são casadas.
— Quem mais morreu desde ontem?
— A Senhora Egremimi Pulitien.
— Quem era Senhora Egrelimu?
— Egremimi, com um ‘i’ ao final. Uma senhora assim, sempre vestida de
negro e de luvas de linho.
E meu irmão se calou, assoviando entre os dentes irritados com a ideia das
luvas de linho friccionando sobre as pontas das unhas. Ele tinha treze anos e eu
sete. Com seus cabelos cortados aos moldes de tigela e olhos de um azul pálido,
se parecia como um jovem modelo italiano. Era de extrema doçura e totalmen-
te irredutível
— A propósito, — ele retoma — esteja pronta amanhã às dez horas. Há um
trabalho a ser feito.
— Que trabalho?
— Um trabalho pelo repouso da alma de Lugustu Trutrumeque.
— O pai ou o filho?

84
E P I TÁ F I O S

— O pai.
— Às dez horas eu não posso, estarei na escola.
— Azar o teu, não verás o trabalho. Deixa-me sozinho, preciso pensar no
epitáfio da Senhora Egremimi Pulitien.
Apesar de o aviso ter soado como uma ordem, segui meu irmão até o celei-
ro. Sobre um cavalete, ele cortava e colava as folhas de papelão branco em for-
ma de ladrilhos nivelados, de lápides arredondadas ao alto, de mausoléus retan-
gulares ao pé de uma cruz. Ainda, em tipografias decoradas, pintava com tinta
chinesa os epitáfios breves ou longos que perpetuavam, em puro estilo “mar-
morista”, os pesares e virtudes de um suposto ser. “Aqui repousa Astoniphron-
que Bonscop, falecido no dia 22 de junho de 1874 aos cinquenta e quatro anos
de idade. Bom pai, bom esposo. O céu o esperava, e a terra o lamenta. Rezemos
por ele.” Estas pequenas linhas cruzavam em negro uma pequena lápide em for-
ma de porta romana, com saliências que simulavam aquarela. Um suporte, se-
melhante aos que asseguram o equilíbrio de cavaletes de quadro, o inclinava
graciosamente para trás.
— É um pouco seco. — disse meu irmão. Mas, se tratando de um declama-
dor... Farei melhor para a Senhora Egremimi.
Ele me permitiu ler um fragmento:
— “Ó tu, modelo das esposas cristãs! Morres aos dezoito anos, quatro ve-
zes mãe! Os gemidos lacrimejantes de teus filhos não te detiveram! Tua jovem
paixão decadente, teu esposo procura em vão o esquecimento...”. Cá estou.
— Começa bem. Ela tinha quatro filhos aos dezoito anos?
— Como eu disse.
— E sua paixão decatente? O que é paixão decatente?
Meu irmão deu de ombros.
— Não podes entender, tens apenas sete anos. Põe a cola em banho-maria.
Prepara duas pequenas coroas de pérolas azuis para a tumba dos gêmeos Aziour-
ne, que nasceram e morreram no mesmo dia.
— Ó! Eles eram adoráveis?

85
COLETTE

— Muito adoráveis, — disse meu irmão. — Dois meninos louros idênticos


um ao outro. Eu fiz uma coisa diferente para eles. Duas colunas talhadas de ro-
los de papelão, eu imito o mármore em cima e penduro as coroas de pérolas. Ah!
Minha cara...
Ele assobiou de admiração e trabalhou sem sequer falar. Em volta dele, no
celeiro, se afloravam pequenas tumbas brancas, um cemitério para grandes bo-
necas. Sua mania não comportava qualquer paródia infame, qualquer coisa de
macabro. Ele nunca havia laçado abaixo do queixo os laços de um avental de
cozinha para simular uma batina cantando Dies irae. Mas amava os cemitérios
como outros amam os jardins franceses, os espelhos d’água ou os chafarizes.
Partia a passos rápidos para visitar, a quinze quilômetros dali, os cemitérios de
vilarejos. Assim me contara como um explorador.
— Em Escamps, minha cara, é chique. Há um tabelião enterrado em uma
capela, grande como a cabana do jardineiro, com uma porta de vitral, por onde
se vê um altar, flores, uma almofada no chão e uma cadeira em tapeçaria.
— Uma cadeira? Para quem?
— Para o defunto, eu presumo, quando ele retorna à noite.
Ele havia conservado desde a mais tenra infância esta doce aberração, esta
pacífica selvageria que guarda a jovem criança contra o medo da morte e do
sangue. Aos treze anos, ele não fazia grande distinção entre um vivo e um de-
funto. Enquanto que minhas brincadeiras evocavam diante de mim persona-
gens imaginários, transparentes e visíveis, aos quais saudava e perguntava as
boas novas de seus próximos, meu irmão, inventando dos mortos, os tratava
com toda cordialidade, como amigos próximos. Um usando uma cruz branca
em ramos de luz, outro deitado sobre seu arco gótico, e aquele coberto pelo
único epitáfio que louvara sua vida terrestre.
Veio o dia em que o chão bruto do celeiro não era suficiente. Meu irmão
queria honrar suas tumbas brancas, a terra macia e perfumada, o gramado ver-
dadeiro, a hera, o cipreste... No fundo do jardim, atrás de um pequeno bosque
de arbustos, alojou seus defuntos de nomes sonoros, cujas hordas transborda-

86
E P I TÁ F I O S

vam sobre a grama, semeada de cabeças preocupadas e pequenas coroas de pé-


rolas. O competente coveiro piscou seu olho de artista.
— Como fica bonito!
Após uma semana, minha mãe passou por lá, parou, compreendeu, olhou
com todos os seus olhos — um binóculo, um monóculo, e óculos para longe — e
gritou de horror, violando com os pés todas as sepulturas...
— Essa criança acabará em um hospício! Isso é delírio, é sadismo, vampi-
rismo, sacrilégio. Isso é... Eu mal sei o que é!
Com o olhar, ela contemplava o culpado por cima do abismo que separa
um adulto de uma criança. Por fim, ela recolheu com um ancinho irritado, la-
drilhos, coroas e colunas talhadas. Meu irmão sofreu sem protestar enquanto
jogassem sua obra na lama, e, diante do gramado nu, diante da cerca de arbustos
que projetava sua sombra na terra recentemente abalada, ele me levou a teste-
munhar, com uma melancolia de poeta:
— Não achas triste um jardim sem tumbas?

87
GENE WOLFE

O DEUS E SEU HOMEM


título original:
THE GOD AND HIS MAN

tradução:
TIAGO KROICH

Gene Wolfe é um escritor americano de ficção científica e fantasia. Ganhador seis vezes
do prêmio literário Locus, duas vezes do Nebula e nomeado ao Hugo oito vezes, é mais
conhecido pela série de livros conhecida como Solar Cycle, em especial a tetralogia The
Book of the New Sun, e pelo conto The Fifth Head of Cerberus. Foi editor da revista Plant
Engineering. Formado em engenharia industrial pela Universidade de Houston, também é
conhecido por suas contribuições à máquina usada pela Pringles no processamento de
batatas fritas.

O conto The God and His Man foi publicado pela primeira vez em 1980 na Isaac Asimov’s
Science Fiction Magazine e incluído na coletânea de contos Endangered Species, de 1989 e em
The Best of Gene Wolfe, 2009.

Tiago Kroich é estudante.


O Deus e Seu Homem
© Gene Wolfe

H
á muito, muito tempo, quando o Universo era antigo, o incrível
e poderoso deus Isid Iooo IoooE, cujo nome é versado de outra
maneira por outros, e que está destinado a fazer, em todos os
tempos e lugares, somente aquilo que é bom, veio ao mundo de Zed. Como é
sabido por todos os homens, tais deuses viajam em embarcações que não co-
nhecem o naufrágio – e como poderiam, se eternamente os deuses permane-
cem despertos e com as mãos ao leme? Ele veio, vos digo, ao mundo de Zed, mas
não aportou nem pousou, pois não cabe aos deuses (conforme a vontade de seus
criadores, que há muito lhes regraram) se enveredar por qualquer mundo, por
mais celestial ou tranquilo que seja.
Portanto, Isid Iooo IoooE permaneceu sobre os céus, e sua embarcação,
embora mais rápida que o vento, pairava de tal forma a ficar completamente
suspensa – algo que as próprias estrelas, com suas muitas cores, não podem –
sobre aquela ilha de Zed que os homens de Zed (pois são homens, ou quase)
chamam de Terra. Então o deus contemplou Zed, e vendo que os homens de
Zed eram homens e suas mulheres eram mulheres, convocou um certo homem
de Urth. Os chamados de Isid Iooo IoooE não podem ser ignorados.
— Homem, — disse o deus, — vai ao mundo de Zed. Pois vê: os homens de
Zed são como és, e suas mulheres são mulheres. — Então fez com que o Homem
enxergasse através de seus olhos, e o Homem viu os homens de Zed, como ar-
rebanhavam o gado e aravam a terra e batiam os pequenos tambores de Zed. E
viu as mulheres de Zed, como muitas eram belas, e como viviam em mágoa e
ócio, ou em trabalho e cansaço, tal como as mulheres de Urth.
O DEUS E SEU HOMEM

O Homem disse ao deus:


— Se quero um dia voltar para casa, para minhas mulheres e minhas crian-
ças, devo fazer como me ordenas. No entanto, se for como sou, jamais as verei
novamente. Pois os homens de Zed são homens – tu mesmo o disseste – e, por-
tanto, mais cruéis que qualquer besta.
— É esta crueldade que devemos extinguir, — disse o deus. — E para que
bem me aconselhes com teus relatos, algumas dádivas te aguardam. — Então o
deus deu ao Homem o manto encantado Tarnung, com o qual ninguém o veria,
a não ser que assim desejasse, e deu ao Homem a espada encantada Maser, cuja
lâmina se alonga conforme a vontade de seu mestre (embora não pese nada) e
contra a qual nem mesmo a rocha resiste.
Assim que o Homem vestiu o manto Tarnung sobre seus ombros e empu-
nhou a espada Maser, o deus desapareceu, e ele se viu sentado em um bosque de
flores escarlates.
O tempo, para os deuses, não é o mesmo que para os homens e mulheres.
Quem dirá por quanto tempo o Homem vagou pela Terra em Zed? Vagou pelas
terras quentes e altas onde os homens têm poucas leis e muitos escravos.
Lá enfrentou muitas batalhas, até aprender todos os costumes de guerra
do povo das terras quentes e altas e tomar vergonha por matar aqueles homens
com a espada Maser; então adotou a espada curvada daquelas terras, guardando
a espada Maser. Atraiu para junto de si a companhia de uma centena de homens
selvagens, bandidos, e escravos que mataram seus mestres e fugiram, e assassi-
nos de todo tipo. Ele os armou à maneira das terras quentes e altas, e lhes ofe-
receu a montaria dos camelos amarelos daquela terra, que amiúde esmagavam
homens com seus pescoços; e os liderou em muitas guerras. Seu rosto era como
o rosto de outros homens, e sua espada como a espada deles; não era mais alto
que eles, e seus ombros não eram mais largos; no entanto, por ser astuto e por
vezes desaparecer do acampamento, seus seguidores o veneravam.
Por fim enriqueceu, e construiu uma fortaleza na segurança das monta-
nhas. Ficava no topo de um penhasco e era cercado de poderosas muralhas. Mil

90
GENE WOLFE

lanças e mil feitiços a guardavam. Dentro havia domos brancos e torres bran-
cas, uma centena de fontes, e jardins que subiam as montanhas, para depois
descê-las como sorridentes crianças saltando de cachoeiras. Lá sentava o Ho-
mem com conforto, trocando histórias com seus capitães de suas inúmeras ba-
talhas. Lá escutava os passos de suas dançarinas e os sons da chuva, e meditava
sobre suas pernas fartas e seus rostos sorridentes. E enfim cansou-se destas
coisas e, encobrindo-se com seu manto Tarnung, desapareceu e nunca mais foi
visto naquela fortaleza.
Então vagou pelas terras fumegantes, onde as árvores eram mais altas que
suas torres e os homens são temerosos e, das sombras, atiram pequenas flechas
envenenadas, menores que um palmo. Por muito tempo o Homem vagou, co-
berto sempre de seu manto Tarnung, pois espada alguma pode contra tais fle-
chas no pescoço. O peso da espada curvada tornara-se opressivo, e o calor das
terras fumegantes enferrujara sua lâmina, então um dia ele a jogou em um rio
vagaroso onde crocodilos negros nadavam e hipopótamos de olhos cor-de-âm-
bar flutuavam como troncos ou urravam como trovões. Mas o Homem não se
desfez da espada mágica Maser.
E nas terras fumegantes o Homem observou as peculiaridades das grandes
árvores, segundo as quais cada uma é uma ilha, com seus próprios habitantes; e
estudou os segredos das bestas de Zed, cuja astúcia é tão menor que a inteligên-
cia dos homens, e cuja sabedoria é tão maior. Lá domou uma pantera cujos
olhos eram como três esmeraldas, e que passou a segui-lo como um cão e matar
por ele como um falcão; e quando chegou a uma vila dos homens das terras fu-
megantes, pulou de um galho alto para cima da cabeça de uma estátua, pôs abai-
xo a cabana do líder com a espada Maser, e desapareceu de vista. Quando retor-
nou à vila um ano depois, a antiga estátua estava destruída, e uma nova estátua
fora erguida, com um raio à mão e uma pantera aos pés.
Então seguiu para dentro da vila e abençoou todo seu povo, e fez do colo
da estátua seu novo trono. O Homem montou um elefante com marfim verme-
lho-sangue e duas trombas; suas canoas-de-guerra percorriam o rio com uma

91
O DEUS E SEU HOMEM

centena pés; seus tambores eram tocados com os ossos de líderes; suas esposas
eram protegidas do sol para que sua beleza pálida o seduzisse a voltar para a
cabana à noite e suas peles frescas lhe dessem sossego mesmo nas terras fume-
gantes, e eram nutridas de azeite e farinha para que o Homem se deitasse sobre
elas como sobre almofadas de seda. E assim permaneceria, não fosse um sonho
da noite, em que o deus Isid Iooo IoooE aparecera e lhe ordenara viajar e conhe-
cer as terras frias.
Lá percorreu mil estradas lamacentas e beijou lábios suaves em uma cen-
tena de jardins chuvosos. O povo das terras frias não possuía escravos e tinha
muitas leis, e sua justiça fascinava os estrangeiros, e assim foi que o Homem
achou o pão das terras frias duro e escasso, e limpou botas por comida; e por
muito tempo cavou valas para escoar os campos.
E a cada dia a nave de Isid Iooo IoooE circulava Zed, e quando fizera umas
tantas centenas de voltas, Zed circulou seu sol solitário, e circulou outra vez, e
ainda outra vez, e mais uma vez, até que a barba do Homem embranqueceu, e a
astúcia, que lhe ganhara batalhas nas terras quentes e altas e pusera abaixo a
estátua nas terras fumegantes, foi sucedida por algo melhor e menos útil.
Um dia, cravou a lâmina de sua pá na terra e virou as costas. Em um bos-
que, o Homem sacou a espada Maser (a qual não desembainhara há muito tem-
po, e temia que seu encantamento não fosse senão um sonho que tivera quando
jovem) e cortou uma pequena árvore. Fez dela um cajado e tomou a estrada
outra vez, e quando as folhas murcharam – o que ocorria lentamente naquela
terra fria e úmida – cortou outra, e depois outra, para que sempre discursasse à
sombra de seu cajado verdejante.
Na praça pública o Homem falou de honra, e de como é uma lei superior a
qualquer outra lei.
Na encruzilhada falou de liberdade, da liberdade que têm os ventos e as
nuvens, da liberdade que ama a todas as coisas e desconhece a culpa.
Ao lado dos portões da cidade contou histórias de cidades esquecidas que
foram e de cidades esquecidas que seriam, se os homens as esquecessem.

92
GENE WOLFE

Muitas vezes o povo das terras frias tentou aprisioná-lo de acordo com
suas leis, mas o Homem desaparecia sem deixar rastros. Muitas vezes zomba-
vam dele, mas o Homem apenas sorria diante do deboche que não conhecia
nenhuma lei. Muitos jovens das terras frias o ouviam, e muitos fingiam seguir
seus ensinamentos, e alguns de fato seguiram-nos e viveram vidas estranhas.

Então veio uma noite em que os primeiros flocos de neve começaram a


cair, e nessa noite o deus Isid Iooo IoooE o levantou como um titereiro levanta
uma marionete. Alguns de seus amigos estavam abrigados do vento e lhes pare-
ceu que uma rajada de neve cintilante caiu de repente sobre o Homem, que logo
em seguida não estava mais ali.
Ao Homem, no entanto, pareceu, ao estar novamente na presença do deus
Isid Iooo IoooE, que acordara de um longo sonho; suas mãos novamente ti-
nham força, sua barba era negra, seus olhos recobraram a clareza, embora não
sua astúcia.
— Diz-me agora, — ordenou Isid Iooo IoooE, — tudo que viste e tudo que
fizeste, — e quando o Homem lhe disse, o deus lhe perguntou: — Qual destes
três povos melhor te amou, e por que o amaste?
O Homem pensou por um tempo, assentando o manto em cima de seus
ombros, pois lhe parecia frio no interior da nave de Isid Iooo IoooE.
— O povo das terras quentes e altas não é um povo justo, — disse. — No
entanto acabei por amá-lo, pois entre eles não há falsidade. Entendem de ban-
quetear com seus amigos e esfolar seus inimigos e, porque não confiam em
ninguém, nunca lamentam uma traição.
— O povo das terras frias é um povo justo, e ainda assim também acabei
por amá-lo, embora tenha sido muito mais árduo.
— O povo das terras fumegantes é um povo inocente quanto à justiça e à
injustiça. Seguem seus corações, e enquanto vivi entre eles também segui o meu
e os amei mais que aos outros.
— Tens muito ainda a aprender, Homem, — disse o deus Isid Iooo IoooE.

93
GENE WOLFE

— Pois o povo das terras frias é o mais próximo de mim. Não entendes que no
correr dos tempos as terras fumegantes, e toda a Terra de Zed, cairá perante um
de seus grandes povos?
Então, enquanto o Homem enxergava através dos olhos do deus, alguns
homens bons nas terras frias morreram, o que homens chamaram de relâmpa-
go. Alguns homens ruins também, e os homens falaram de doença. Sonhos
ocorreram a mulheres, e fantasias a crianças; chuva e vento e sol não mais eram
o que costumavam ser; e quando as crianças cresceram, os povos das terras frias
foram para as terras fumegantes e lá construíram casas e muralhas, onde se as-
sentaram em meio a poeira até morrerem.
— Nas terras quentes e altas, — comentou o Homem, — o povo das terras
fumegantes teria sofrido muito. Muitos deles possuí, trabalhando sob o chicote
para construir minhas muralhas. E ainda assim cantavam quando podiam, cor-
riam quando podiam, e roubavam minha comida quando não podiam. E alguns
até engordaram assim.
E o deus Isid Iooo IoooE respondeu:
— Antes a morte de um homem, que sua escravidão.
— Ainda assim, — o Homem respondeu, — tu mesmo o disseste. — E,
brandindo a espada Maser, golpeou o deus, e Isid Iooo IoooE sucumbiu em fu-
mos e chamas azuis.
Se o Homem também sucumbiu, quem dirá? Faz muito tempo desde que o
Homem foi visto na Terra de Zed, mas já outrora tinha o costume de desapare-
cer. Da fortaleza perdida nas montanhas, coberta de rosas, quem dirá quem a
defende? Das pequenas flechas envenenadas, assassinas penumbrosas, quem
dirá quem as lança? Das estradas lavadas pela chuva, que serpenteiam por entre
cidades esquecidas, quem dirá que trilhas há lá?
No entanto, é possível que tudo isso já tenha passado, pois são coisas de
um tempo remoto, quando o Universo era antigo e havia mais deuses.

94
H.P. LOVECRAFT

A MALDIÇÃO DE
SARNATH
título original:
THE DOOM THAT CAME TO SARNATH

tradução:
GEORGE AYRES MOUSINHO

H.P. Lovecraft (1890-1937), nascido em Providence, Estados Unidos, foi um escritor de


contos de terror frequentemente associado com o movimento dos Weird Tales e dos contos
de horror cósmico (também conhecido como Cosmicismo), uma filosofia literária por ele
criada e referente ao medo alienígena e a efemeridade da existência humana no Universo.
Lovecraft batalhou financeiramente para publicar seus contos, enfrentando também uma
batalha dura contra o câncer de intestino que se arrastou até o seu leito de morte. Como
legado, deixou dezenas de contos e cartas, além de um ensaio sobre a história da literatura
de horror sobrenatural; seus escritos se estabeleceram como um marco do terror e da
ficção científica, influenciando artistas como Stephen King e John Carpenter.

“A Maldição de Sarnath” é um conto de horror cósmico publicado em 1920 na revista The


Scot. O conto integra do Ciclo dos Sonhos (the Dream Cycle), uma mitologia ficcional
criada pelo autor para simbolizar medos surreais da mente humana.

George Ayres Mousinho é mestrando em literatura de língua inglesa, contista, pintor e


um pessimista Lovecraftiano.
E-mail: ayresmousinho@gmail.com
A Maldição de Sarnath
H.P. Lovecraft

N
a terra de Mnar, há um vasto e ermo lago que não é alimentado
por nenhum córrego, tampouco deságua em algum. Dez mil
anos atrás, em suas margens se erguia a poderosa cidade de Sar-
nath, mas lá Sarnath não mais está.
Reza a lenda que em tempos imemoriais, quando o mundo ainda era jo-
vem, antes mesmo de os homens de Sarnath chegarem às terras de Mnar, outra
cidade se localizava às margens do lago; a cidade de pedra cinzenta de Ib, tão
antiga quanto o próprio lago, e habitada por coisas que não eram agradáveis de
se ver. Estes seres eram deveras estranhos e feios, como o são seres de um mun-
do ainda inacabado e rudimentar. Está escrito nos ladrilhos cilíndricos de Ka-
datheron que os seres de Ib eram de tom verde como de um lago e a bruma que
paira sobre ele; que possuíam olhos bojudos, lábios lânguidos e protuberantes,
e orelhas peculiares, além de não possuírem voz. Também está escrito que des-
cenderam da lua através de uma névoa em certa noite; com eles o vasto e ermo
lago e a cidade de Ib com sua rocha cinzenta. Entretanto, é certo que cultuavam
um ídolo cinzelado em uma pedra cor verde-marinha, o qual se assemelhava a
Bokrug, o grande lagarto-d’água; diante de tal ídolo eles dançavam horrivel-
mente quando a lua se esgueirava. E está escrito no papiro de Ilamek que um dia
descobriram o fogo, e a partir de então invocavam chamas em muitas ocasiões
cerimoniais. Mas não muito está escrito sobre tais criaturas, porque viveram
em tempos vetustos, e o homem é ainda jovem e sabe pouco das coisas vivas de
tempos antigos.
Muitos éons haviam passado quando homens chegaram à terra de Mnar;

96
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H

povos escuros e pastoris em seus bandos vestidos com lã, que construíram
Thraa, Ilarnek e Kadatheron no sinuoso rio Ai. Certas tribos, mais resistentes
do que o resto, avançaram à fronteira do lago e construíram Sarnath em um
local onde metais preciosos haviam sido encontrados na terra.
Não distante da cidade cinzenta de Ib as tribos nômades ergueram as pri-
meiras rochas de Sarnath, e demonstraram grande admiração pelas criaturas de
Ib. Mas em sua admiração ocultava-se um ódio, pois pensavam eles que não era
possível que criaturas de tal aspecto andassem pelo mundo dos homens sob o
crepúsculo. Tampouco apreciaram as estranhas esculturas sobre os monólitos
cinzentos de Ib, pois tais esculturas eram terríveis por sua grande antiguidade.
Não se sabe o porquê de tais seres e suas esculturas terem perdurado por tanto
tempo no mundo, até mesmo a vinda dos homens; a menos que tenha sido pelo
fato de a terra de Mnar ser muito erma, e remota das outras terras, fossem elas
reais ou surreais.
Quanto mais os homens de Sarnath observavam os seres de Ib, mais seu
ódio crescia, e não por menos, porque achavam os seres fracos, e tenros como
geleia ao toque de pedras e lanças e flechas. Um dia, os jovens guerreiros – com
fundas, lanças, arcos e flechas – marcharam sobre Ib e exterminaram todos os
seus habitantes, arremessando os estranhos corpos dentro do lago com longas
lanças, porque não queriam tocá-los. E visto que eles não gostavam dos monó-
litos cinzentos de Ib, também os lançaram ao lago; espantados com o labor
grandioso com o qual tais pedras foram trazidas de tão longe, como devem ter
sido, visto que não há nada como elas em toda a terra de Mnar ou em terras
vizinhas.
Destarte, nada sobrou da antiquíssima cidade de Ib além do ídolo de pedra
verde-marinho cinzelado nas formas de Bokrug, o lagarto-d’água. Os jovens
guerreiros o levaram para Sarnath como símbolo de conquista sobre os deuses
e os seres antigos de Ib, e como símbolo de domínio sobre Mnar. Mas na noite
após o ídolo ser alojado no templo, algo terrível deve ter acontecido, pois luzes
estranhas foram vistas sobre o lago, e pela manhã o povo não mais encontrou o

97
H . P. L O V E C R A F T

ídolo, e o alto-sacerdote Taran-Ish estava morto, como que por um horror in-
dizível. E antes de perecer, Taran-Ish havia rabiscado no altar de crisólita com
linhas tortuosas e rudes a palavra MALDIÇÃO.
Muitos altos-sacerdotes sucederam Taran-Ish em Sarnath, mas o ídolo de
pedra verde-marinho nunca fora encontrado. Muitos séculos se passaram, nos
quais Sarnath prosperara abundantemente, de forma que somente sacerdotes e
velhas lembravam o que Taran-Ish havia riscado no altar de crisólita. Entre Sar-
nath e a cidade de Ilarnek surgira uma rota comercial, e os metais preciosos da
terra eram trocados por outros metais e roupas raras e joias e livros e utensílios
para artesãos e todas as coisas soberbas que eram conhecidas pelos povos que
habitavam as margens do rio Ai e além. Então, Sarnath se tornara poderosa e
sábia e bela, e enviara adiante exércitos conquistadores para subjugar as cidades
vizinhas; e com o tempo, sentaram sobre o trono de Sarnath os reis de toda a
terra de Mnar e de muitas terras vizinhas.
A maravilha do mundo e o orgulho de toda a humanidade era Sarnath, a
magnífica. Seus muros eram de mármore oriundo do deserto, de 300 cúbitos de
altura e espessura de 75, para que bigas pudessem passar umas pelas outras
quando dirigidas sobre a extensão dos muros. Por uma extensão de 49 milhas
os muros corriam, abertos apenas face ao lago; lá onde um quebra-mar de rocha
verde apaziguava as ondas que estranhamente surgiam uma vez ao ano, quando
da celebração da destruição de Ib. Em Sarnath existiam cinquenta ruas do lago
aos portões das caravanas, e mais cinquenta perpendiculares a elas. Eram pavi-
mentadas com ônix, exceto aquelas por onde cavalos e camelos e elefantes pas-
savam, as quais eram pavimentadas com granito. E os portões de Sarnath se
assomavam às ruas que terminavam opostas ao lago, todos de bronze, e flan-
queados por estátuas de leões e elefantes esculpidas de uma rocha não mais
conhecida pelo homem. As casas de Sarnath eram de um tijolo esmaltado e de
calcedônia, todas com seu próprio jardim murado e açudes de cristal. Eram
construídas através de uma estranha arte, pois não havia casas como elas em
nenhuma outra cidade; e viajantes de Thraa e Ilarnek e Kadatheron maravilha-

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A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H

vam-se com os domos fulgentes que galgavam toda a sua extensão.


Mas mais admiráveis eram os palácios e os templos, e os jardins erigidos
por Zokkar, o antigo rei. Havia muitos palácios, e os mais modestos eram mais
robustos do que quaisquer outros em Thraa ou Ilarnek ou Kadatheron. Eram
tão altos que aqueles que os adentrassem poderiam se imaginar abaixo apenas
do céu; ainda assim, quando reluzidas por tochas acesas no óleo de Dothur, suas
paredes revelavam vastas pinturas de reis e exércitos, de um esplendor imedia-
tamente inspirador e assustador àquele que as observavam. Muitas eram as co-
lunas dos palácios, todas de mármore pintado, e esculpidas com figuras de be-
leza eminente. E na maioria dos palácios, o piso mostrava mosaicos de berilo e
lápis-lazúli e sardônica e carbúnculo e outros materiais; mosaicos tão bem ar-
ranjados que o observador poderia se imaginar caminhando entre canteiros das
mais raras flores. E havia também fontes, as quais traziam águas perfumadas em
belos esguichos adornados com uma arte suntuosa. Obscurecendo todos os ou-
tros palácios estava o palácio dos reis de Mnar e das terras vizinhas. Sobre um
par de dourados leões agachados repousava o trono, muitos degraus acima do
piso reluzente. E era entalhado em uma única peça de marfim, conquanto nin-
guém saberia dizer de onde tal peça graúda teria vindo. Naquele palácio, havia
também muitas galerias, e muitos anfiteatros onde leões e homens e elefantes
pelejavam para o prazer dos reis. Às vezes, os anfiteatros eram inundados com
água desviada do lago através de grandes aquedutos, e então inspiradoras bata-
lhas marítimas eram encenadas, ou ainda combates entre nadadores e seres ma-
rinhos mortais.
Soberbos e espantosos eram os dezessete templos de Sarnath, em forma de
torres, decorados em uma fulgurante pedra multicolorida não conhecida em
nenhum outro lugar. Com um total de mil cúbitos de altura se erguia o mais alto
deles, no qual os altos-sacerdotes residiam com uma eminência não muito me-
nor que a dos reis. No térreo se localizavam salões tão vastos e esplêndidos
quanto aqueles dos palácios, nos quais se reuniam massas em culto a Zo-Kalar
e Tamash e Lobon, os principais deuses de Sarnath, cujos sacrários aromados

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H . P. L O V E C R A F T

por incensos eram como tronos de monarcas. Os ícones de Zo-Kalar e Tamash


e Lobon não eram como os de outros deuses, porquanto eram tão vívidos que
alguém poderia jurar que os próprios galhardos deuses barbados sentavam nos
tronos de marfim. E ao final dos infindáveis degraus de zircão ficava a câmara
da torre, de dentro da qual os altos-sacerdotes observavam a cidade e as planí-
cies e o lago à noite. Nela era realizado o secreto e vetusto ritual em aversão a
Bokrug, o lagarto-d’água, e nela ficava o altar de crisólita que carregava o rabis-
co de MALDIÇÃO de Taran-Ish.
Igualmente maravilhosos eram os jardins construídos por Zokkar, o anti-
go rei. Eles se localizavam no centro de Sarnath e cobriam uma grande área,
cercados por uma alta muralha. Eram também cobertos por um imponente
domo de vidro, através do qual resplandeciam o sol e a lua e as estrelas e os pla-
netas quando o céu estava claro, e no qual se projetavam imagens fulgentes do
sol e da lua e das estrelas e dos planetas quando o céu não estava claro. No ve-
rão, os jardins eram refrescados por brisas odorantes primorosamente sopra-
das por ventiladores, e no inverno eles eram aquecidos por fogueiras discretas,
assim perdurando em um ar primaveril. Riachos escorriam sobre pedregulhos
vívidos, entrecortando verdejantes campinas e jardins de diversos tons, e cris-
pados por múltiplas pontes. Muitas eram as cascatas em seus cursos, e muitos
eram os açudes aflorados através dos quais se expandiam. Sobre os riachos e os
açudes vagueavam cisnes brancos, enquanto a música de pássaros raros se har-
monizava com a melodia das águas. Em pátios ordenados se erguiam ribancei-
ras esverdeadas, adornadas aqui e ali com caramanchões de videiras e doces
flores, e assentos de mármore e pórfiro. E havia muitos santuários e templos
pequenos onde se podia repousar ou orar aos deuses menores.
Em todos os anos era celebrado em Sarnath o festival da destruição de Ib,
em cuja época havia abastamento de vinho, canções, dança e agitação de todo
tipo. Grandes honrarias eram prestadas às almas daqueles que haviam aniquila-
do os bizarros seres vetustos, e a memória de tais seres e seus deuses antigos era
escarnecida por dançarinos e alaudistas coroados com rosas dos jardins de

100
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H

Zokkar. E os reis olhavam por sobre o lago e amaldiçoavam os ossos dos mor-
tos que em seu fundo adormeciam. A princípio, os altos-sacerdotes não apre-
ciavam tais festivais, pois entre eles corriam contos esquisitos de como os íco-
nes verde-marinhos haviam perecido, e como Taran-Ish havia morrido por
medo e deixado um aviso. E diziam que, por vezes, de sua alta torre, viam luzes
por baixo das águas do lago. Mas como muitos anos haviam passado sem qual-
quer calamidade, até mesmo os sacerdotes se riam e amaldiçoavam e se junta-
vam às orgias dos festivos. De fato, não haviam eles mesmos, do alto de sua
torre, não raro realizado o antigo e secreto ritual em aversão a Bokrug, o lagar-
to-d’água? Assim, milhares de anos de riquezas e gozo abençoaram Sarnath, a
maravilha do mundo e orgulho de toda a humanidade.
Imensuravelmente belas foram as festividades de mil anos da destruição
de Ib. Por uma década elas haviam sido grande assunto na terra de Mnar, e ao
se aproximarem as festividades, cavalos e camelos e elefantes traziam homens
de Thraa, Ilarnek e Kadatheron, e todas as cidades de Mnar e além. Na noite
esperada, diante das muralhas de mármore estavam cravados pavilhões de prín-
cipes e tendas de viajantes, e toda a costa reverberava canções de alegres convi-
vas. Dentro de seu salão repousava Nargis-Hei, o rei, bêbado do vinho antigo
das adegas da dominada Pnath, e estava ele rodeado pela nobreza desordeira e
escravos laboriosos. Lá foram consumidas muitas iguarias exóticas; pavões das
ilhas de Nariel no Oceano Médio, cabritos das colinas longínquas de Implan,
patas de camelos do deserto Bnázico, nozes e temperos dos bosques Cydathria-
nos, e pérolas da costeira cidade de Mtal dissolvidas em vinagre de Thraa. Mo-
lhos mil foram trazidos, preparados pelos mais argutos cozinheiros de toda
Mnar, e adequados ao paladar de cada conviva. Mas mais valiosa de todas as
especiarias eram os grandes peixes do lago, todos graúdos, e servidos sobre es-
cudelas áuricas adornadas com rubis e diamantes.
Enquanto o rei e seus nobres se regalavam no palácio, e se serviam com os
pratos soberbos que os aguardavam sobre as escudelas douradas, outros feste-
javam algures. Os sacerdotes se apraziam na torre do grande templo, e em pavi-

101
H . P. L O V E C R A F T

lhões fora das muralhas os príncipes de terras vizinhas se exaltavam. E o alto-


-sacerdote Gnai-Kah fora o primeiro a avistar as sombras que declinaram da
lua encurvada para dentro do lago, e a funesta bruma esverdeada que se ergueu
do lago para ascender à lua e encobrir as torres e os domos da desgraçada Sar-
nath em uma névoa sinistra. Em seguida, aqueles que estavam nas torres e fora
das muralhas contemplaram luzes estranhas na água, e testemunharam que a
rocha cinzenta Akurion, que costumava se elevar acima da lâmina aquática pró-
xima à margem, estava quase submersa. E o horror germinara vagamente, mas
de maneira rápida, de modo que os príncipes de Ilarnek e da remota Rokol des-
montaram e guardaram suas tendas e pavilhões e partiram para o rio Ai, embo-
ra mal soubessem a razão de sua partida.
Então, à chegada da meia-noite, todos os portões de bronze de Sarnath se
descerraram e cuspiram uma multidão convulsa que enegrecera a planície, de
modo que todos os príncipes visitantes e os viajantes fugiram em pavor. Nos
rostos de tal multidão se estampava uma loucura advinda de um horror detes-
tável, e de suas bocas ressonavam palavras tão terríveis que ouvinte algum pa-
rara para averiguar. Homens cujos olhos ferviam com o medo vociferavam
diante da visão dentro do salão de banquete do rei, através de cujas janelas não
mais eram vistas as silhuetas de Nargis-Hei e seus nobres e escravos, mas sim as
de uma horda de inefáveis e esverdeadas criaturas silenciosas com olhos boju-
dos, lábios lânguidos e protuberantes, e orelhas peculiares; criaturas que dança-
vam horrivelmente, segurando às mãos escudelas áuricas adornadas com rubis
e diamantes contendo labaredas bestiais. E os príncipes e viajantes, ao fugirem
da condenada Sarnath sobre cavalos e camelos e elefantes, olharam novamente
para o lago envolto pela névoa e constataram que a rocha cinzenta de Akurion
estava submersa.
Através de toda a extensão de Mnar e terras vizinhas se espalharam os re-
latos daqueles que haviam fugido de Sarnath, e caravanas não mais procuraram
aquela cidade amaldiçoada e seus metais preciosos. Muito tempo levara até que
viajante algum fosse adiante, e até aí somente os destemidos e aventurosos jo-

102
A M A L D I Ç Ã O D E S A R N AT H

vens da remota Falona se arriscaram à jornada; aventurosos jovens de cabelos


dourados e olhos azulados, que não possuíam parentesco com os homens de
Mnar. Tais jovens deveras seguiram ao lago para observar Sarnath; mas embora
tenham encontrado o vasto e ermo lago, e a rocha cinzenta de Akurion que se
erguia por sobre a lâmina aquática perto da margem, não contemplaram a ma-
ravilha do mundo e o orgulho de toda a humanidade. Onde um dia muralhas de
300 cúbitos e torres ainda mais altas haviam sido erigidas, agora se estendia
apenas uma costa pantanosa, e onde um dia cinquenta milhões haviam habita-
do, agora rastejava apenas o execrável lagarto-d’água. Nem mesmo as minas de
metais preciosos sobreviveram, pois a MALDIÇÃO havia chegado a Sarnath.
Porém, parcialmente enterrado nos charcos espreitava um curioso ídolo
de pedra; um ídolo profundamente vetusto encoberto com alga-marinha e cin-
zelado nas formas de Bokrug, o grande lagarto-d’água. Tal ídolo, mantido no
alto templo de Ilarnek, fora desde então cultuado sob a espreita da lua através
das terras de Mnar.

103
ROBERT MUSIL

O PAPEL PEGA-MOSCA
título original:
DAS FLIEGENPAPIER

tradução:
FERNANDO SILVA E SILVA

Robert Musil nasceu em Klagenfurt, em 6 de novembro de 1880 no então Império Austro-


Húngaro e morreu em 1942. Suas obras mais conhecidas são O jovem Törless (Die
Verwirrungen des Zöglings Törleβ) e O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eingenschaften).
A primeira, seu título de estreia como romancista, acompanha parte da estadia de Törless
em um internato e mostra sua formação perante os desafios intelectuais e morais que se
colocam a sua frente. A segunda, nunca concluída, é considerada um dos romances mais
importantes do modernismo. Compreende cerca de 2000 páginas e entre seus
protagonistas tem Ulrich, intelectual desiludido referido pelo título.

O papel pega-mosca (Das Fliegenpapier) foi publicado originalmente em 1936 na coletânea


de textos Legado em tempo de vida (Nachlaß zu Lebzeiten). Esse texto curto descreve
detalhadamente a morte agonizante de moscas ao pousar sobre um papel pega-mosca,
aproximando-as, em seu sofrimento, da experiência humana do abandono de si e da
morte.

Fernando Silva e Silva é apaixonado pelas línguas do mundo.


O Papel Pega-Mosca
Robert Musil

O
papel pega-mosca Tangle-foot tem mais ou menos 63 centímen-
tros de altura e 21 centímetros de largura. É coberto com uma
cola amarela envenenada e vem do Canadá. Quando uma mosca
pousa sobre ele – não especialmente ávida, mais por convenção, porque tantas
já estão ali – ela cola, primeiramente, apenas as juntas mais externas de suas
perninhas. Uma sensação delicada e desconcertante, como quando nós cami-
nhamos no escuro e com as solas dos pés nuas pisamos em algo. Não é nada
mais que um objeto macio, morno e indefinido no caminho, que, invadido pou-
co a pouco pela assombrosa humanidade, é reconhecido como uma mão que
como por acaso está ali deitada e nos agarra com cinco dedos cada vez mais
definidos. Então elas se põem forçosamente eretas, como sifilíticos que não
querem deixar-se notar, ou como velhos soldados decrépitos (e com as pernas
um pouco arqueadas, como quando se está em pé sobre uma superfície estreita).
Elas dão uma pausa e reúnem força e razão. Após alguns segundos elas se deci-
dem e começam a fazer o que podem, a zumbir e se erguer. Continuam esse
processo tanto quanto conseguem, até que a exaustão as compele a parar.
Seguem uma pausa para respirar e uma nova tentativa. Mas os intervalos
tornam-se cada vez mais longos. Elas ficam lá e sinto o quão impotentes elas
são. De baixo sobem vapores inebriantes. Como um pequeno martelo a língua
delas tateia ao redor. Suas cabeças são marrons e cabeludas, como se fossem
feitas de coco; como ídolos africanos que lembram humanos. Elas dobram-se
para frente e para trás sobre suas perninhas firmemente presas, dobram os joe-
lhos e erguem-se, como homens fazem quando tentam de todas as formas mo-

105
O PA P E L P E G A - M O S C A

ver um fardo pesado; mais trágico do que como o trabalhador o faz, mais ver-
dadeiro na expressão atlética do mais extremo esforço do que o Laocoonte. E
então vem o momento esquisito e sempre igual, no qual a necessidade do se-
gundo atual vence o todo poderoso sentimento de preservação do ser. É o mo-
mento no qual um alpinista, por causa da dor nos dedos, deliberadamente abre
as mãos; no qual um perdido na neve deita-se ali mesmo como uma criança, no
qual um perseguido com os pulmões queimando para de correr. Elas não mais
se mantêm em pé com toda a força, elas afundam um pouco e nisso são total-
mente humanas. Imediatamente são presas em um novo lugar, mais alto na per-
na ou atrás do corpo ou na ponta de uma das asas.
Quando superam o esgotamento espiritual e retomam a luta por suas vi-
das, já estão presas em uma situação desagradável e seus movimentos não são
mais naturais. Então, deitam-se com as pernas traseiras esticadas com os coto-
velos erguidos e tentam levantar-se. Ou sentam sobre o solo, empinadas, com
os braços esticados, como mulheres que querem em vão arrancar suas mãos
doloridas dos punhos de um homem. Ou deitam sobre a barriga, com a cabeça
e os braços para fora, como se tivessem caído enquanto corriam, e deixam ape-
nas o rosto para o alto. O inimigo é sempre apenas passivo e ganha justamente
nessas situações desesperadoras e confusas. Um nada, um algo as puxa. Tão
devagar que mal se pode acompanhar e geralmente com uma aceleração repen-
tina ao fim, quando o último colapso interno as toma. Elas se deixam então re-
pentinamente cair para frente sobre o rosto, com as pernas para fora; ou de
lado, com todas as pernas esticadas; frequentemente também sobre o flanco,
com as pernas debatendo-se para trás. Assim elas ficam ali. Como destroços de
aviões, com uma asa contra o vento. Ou como cavalos mortos. Ou com infinitos
gestos de desespero. Ou como pessoas que dormem. Ainda no dia seguinte, às
vezes uma acorda, tateia um pouco com uma perna ou bate uma asa. De vez em
quando tal movimento se espalha por toda a extensão do papel e então afundam
todas um pouco mais em sua morte. E ao lado do corpo, próximo à junta da
perna, elas têm ainda um pequeno órgão agonizante que ainda vive. Abre e fe-

106
ROBERT MUSIL

cha. Não é possível ver sem uma lente de aumento, mas parece um minúsculo
olho humano, que incessantemente abre e fecha.

107
HARLAN ELLISON

NÃO TENHO BOCA, E


PRECISO GRITAR
título original:
I HAVE NO MOUTH, AND I MUST SCREAM

tradução:
RICHARD COSTA

Harlan Ellison é um escritor americano de ficção especulativa. O conjunto de sua obra


abrange cerca de 1700 contos, novelas, roteiros, ensaios, artigos e críticas. É mais conhecido
por ter sido editor e organizador das duas antologias mais inovadoras da ficção científica:
Dangerous Visions e Again, Dangerous Visions, sem traduções em português. Em 2008, foi
realizado um documentário sobre sua vida e obra, intitulado Dreams with Sharp Teeth.

O conto aqui traduzido, I Have No Mouth, and I Must Scream, foi publicado pela primeira
vez em março de 1967 na revista de ficção científica IF: Worlds of Science Fiction. Em 1968,
o autor recebeu um Hugo Award de melhor conto. Mais tarde, o conto foi incluído em uma
coleção de contos com o mesmo nome.

Richard Costa é tradutor.


Não Tenho Boca, e Preciso Gritar
© Harlan Ellison

S
em vida, o corpo de Gorrister estava pendurado na paleta rosada;
pêndulo — suspenso muito acima de nós na câmara do computador;
e não se arrepiava com a brisa fria e oleosa que soprava eternamen-
te na gruta central. Estava suspenso de cabeça para baixo, preso à parte de baixo
da paleta pela sola do pé direito. Tinha sido esgotado de todo o sangue através
de uma incisão exata de orelha a orelha embaixo de sua mandíbula protuberan-
te. Não havia sangue na superfície espelhada do piso de metal.
Quando Gorrister voltou para junto de nós, olhou para cima e se viu pen-
durado, já era tarde demais para perceber que, mais uma vez, AM tinha nos
enganado, se divertindo às nossas custas; era só mais uma distração para a má-
quina. Três de nós vomitaram, virando-se de costas uns para os outros num
reflexo tão antigo quanto a náusea que produziu o vômito.
Gorrister empalideceu. Foi como se tivesse visto um ídolo de vodu, e ago-
ra tinha medo do futuro.
— Meu Deus, — murmurou, e saiu andando.
Nós três fomos atrás dele depois de um tempo, e o encontramos sentado,
virado de costas para um dos menores bancos de dados tiritantes, com a cabeça
nas mãos. Ellen se ajoelhou ao seu lado e acariciou seus cabelos. Ele não se me-
xeu, mas a voz saiu do rosto coberto com toda a clareza.
— Por que ele não acaba logo com a gente de uma vez? Meu Deus, não sei
mais por quanto tempo vou aguentar.
Era o centésimo-nono ano dentro do computador.
Ele estava dizendo o que todos nós estávamos pensando.

109
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

Nimdok (esse era o nome que a máquina o forçou a usar, porque ela se
divertia com sons estranhos) estava delirando que havia produtos enlatados nas
grutas de gelo. Gorrister e eu duvidávamos muito.
— É mais um truque, — eu disse. — Que nem aquela porra de elefante con-
gelado que ele inventou. Benny quase ficou louco por causa daquilo. A gente vai
ter que fazer a viagem até lá e daí a comida vai estar podre, ou algo assim. Acho
melhor esquecer e ficar aqui. A máquina vai ter que arranjar alguma coisa logo
ou a gente vai morrer.
Benny deu de ombros. Fazia três dias que a gente não comia. Vermes. Gor-
dos, viscosos.
Nimdok não tinha certeza. Sabia que tinha uma chance, mas estava ema-
grecendo. Lá não podia ser pior do que aqui. Mais frio, talvez, mas não fazia
muita diferença. Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou gafanhotos — nunca
fazia nenhuma diferença: a máquina se masturbava e a gente tinha de aguentar
ou morrer.
Ellen nos fez decidir.
— Preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez lá tenha peras ou pêssegos. Por
favor, Ted, vamos tentar.
Eu cedi facilmente. Fazer o quê. Não fazia nenhuma diferença. Ellen ficou
grata, no entanto. Deixou que eu fizesse duas vezes, e nem era minha vez. Nem
isso fazia diferença. E ela nunca gozava, então dane-se. Mas a máquina soltava
risadinhas toda vez que a gente transava. Bem alto, no topo, no fundo, ao redor,
rindo com desprezo. A coisa ria. Geralmente, eu pensava em AM como uma
coisa, sem alma; mas às vezes eu pensava na coisa como se fosse Ele, no mascu-
lino... o paterno... o patriarcal... pois Ele é um deus ciumento. Ele. Coisa. Papai
110
HARLAN ELLISON

do céu, o Demente.
Partimos numa quinta-feira. A máquina fazia questão de sempre nos dizer
a data. A passagem do tempo era importante; não para nós, óbvio, mas para ele...
para a coisa... AM. Quinta-feira. Obrigado.
Nimdok e Gorrister carregaram Ellen por um tempo, com as mãos segu-
rando os antebraços, formando um assento. Benny e eu íamos na frente e atrás,
só para ter certeza de que, se algo acontecesse, aconteceria com um de nós pri-
meiro, e pelo menos Ellen ficaria segura. Segura... até parece. Não fazia diferen-
ça.
Era só uns cento e cinquenta quilômetros até chegar nas grutas de gelo, e,
no segundo dia, quando a gente estava deitado à luz da coisa-sol fumegante que
Ele tinha materializado, ele fez uma chuva de maná. Tinha gosto de mijo de ja-
vali fervido. A gente comeu tudo.
No terceiro dia, passamos pelo vale da obsolescência, repleto de carcaças
enferrujadas de bancos de dados antigos. AM era tão cruel com sua própria vida
quanto com as nossas. Era uma marca da sua personalidade: aspirava à perfei-
ção. Seja exterminando elementos improdutivos de seu próprio organismo, que
ocupava o mundo todo, ou aperfeiçoando métodos para nos torturar, AM era
tão meticuloso quanto podiam ter imaginado os seus inventores — há muito
tempo reduzidos a pó.
A luz descia do alto, diluída, e percebemos que devíamos estar muito perto
da superfície. Mas não tentamos rastejar até lá em cima para ver. Não existia
praticamente nada lá fora; não existia nada que pudesse ser considerado algo, há
mais de cem anos. Apenas a pele destroçada de algo que um dia tinha sido o lar
de bilhões. Agora havia apenas cinco de nós, aqui dentro, embaixo da superfície,
sozinhos com AM.
Ouvi Ellen dizendo histericamente:
— Não, Benny! Não, Benny, não, por favor!
E então percebi que estivera ouvindo Benny murmurando por vários mi-
nutos. Estava dizendo, “Eu vou sair, eu vou sair...” sem parar. Seu rosto simiesco

111
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

estava amassado numa expressão de prazer extático e tristeza ao mesmo tempo.


As cicatrizes de radiação, que AM tinha lhe dado durante o “festival”, estavam
escorridas numa massa de rugas rosadas e esbranquiçadas, e seus traços faciais
pareciam funcionar independentemente uns dos outros. Talvez Benny tivesse
mais sorte que todos nós: ele tinha ficado louco, completamente louco, muitos
anos atrás.
Mas embora a gente pudesse xingar AM de qualquer coisa, e pensar os
pensamentos mais ofensivos contra os bancos de dados fundidos e as placas
corroídas, contra circuitos queimados e painéis de controle destroçados, a má-
quina não tolerava nossas tentativas de escapar. Benny saltou para longe de
mim quando tentei agarrá-lo e se arrastou para cima de um cubo de dados me-
nor, caído de lado e cheio de componentes podres. Ficou ali agachado por um
momento, parecendo o chimpanzé que AM queria que fosse.
Então saltou bem alto, agarrou-se a uma viga horizontal de metal mancha-
do e corroído, e escalou como um animal, até que chegou num beirado em cima
de outra viga, a uns seis metros acima de nós.
— Oh, Ted, Nimdok, por favor, ajudem ele, façam ele descer antes que...
Ela parou de falar. Lágrimas começaram a se formar nos seus olhos. Mexia
as mãos desesperadamente.
Era tarde demais. Nenhum de nós queria estar perto dele quando aconte-
cesse o que quer que fosse acontecer. Além disso, todos nós sabíamos o que
havia por trás da preocupação dela. Quando AM alterou Benny, durante uma
fase totalmente irracional e histérica da máquina, não foi apenas a cara de Benny
que o computador tornou parecida com a de um macaco gigante. Ele era grande
nas partes privadas; ela adorava isso! Ela nos servia também, como parte da
rotina, mas ela adorava o dele. Oh Ellen, Ellen-pedestal, pura-imaculada-Ellen;
oh Ellen, a casta! Escória imunda.
Gorrister deu um tapa na cara dela. Ela caiu no chão, olhando para cima,
para o pobre diabo Benny, e começou a chorar. Era sua grande defesa, chorar.
Nós nos acostumamos a isso uns setenta e cinco anos atrás. Gorrister a chutou

112
HARLAN ELLISON

nas costelas.
Então o som começou. Era luz, aquele som. Metade som e metade luz, algo
que começou a brilhar dos olhos de Benny, e pulsar em volume crescente, sono-
ridades obscuras que se tornaram mais gigantescas e ofuscantes à medida que a
luz-som aumentou com o tempo. Devia ser muito doloroso, e a dor devia estar
aumentando com a força da luz, o volume crescente do som, visto que Benny
começou a choramingar como um animal ferido. Primeiro suavemente, quando
a luz estava obscura e o som estava mudo, depois mais alto quando seus ombros
se encurvaram: suas costas se corcovando, como se estivesse tentando escapar
daquilo. Suas mãos se encurvaram sobre o peito como um esquilo. A cabeça se
inclinou de lado. A cara triste de macaco se apertou de agonia. Então começou
a uivar quando o som, saindo dos seus olhos, foi ficando mais alto. Cada vez
mais alto. Eu batia as mãos na minha cabeça, mas não conseguia tirar o som de
dentro, penetrava facilmente. A dor rasgava minha carne como se fosse papel
de alumínio nas minhas gengivas.
E de repente Benny foi alçado. Estava de pé em cima da viga, como se ti-
vesse sido puxado por cima como uma marionete. A luz agora pulsava de seus
olhos como dois grandes raios redondos. O som rastejava, cada vez mais alto
numa escala incompreensível, e então ele foi empurrado para a frente, caiu di-
reto, e atingiu o piso de aço com um estrondo. Ficou caído se contorcendo con-
vulsivamente enquanto a luz fluía ao seu redor e o som se espiralava para o alto,
fora do alcance normal.
Então a luz incidiu de volta para dentro da cabeça dele, o som se espiralou
para dentro, e ele ficou largado no chão, chorando pateticamente.
Seus olhos eram poças moles e líquidas, cheias de uma geleia de pus. AM o
deixou cego. Gorrister e Nimdok e eu... demos as costas. Mas não antes de sur-
preender o olhar de alívio no rosto terno e preocupado de Ellen.

113
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

Uma luz verde-marinho preenchia a gruta onde acampamos. AM provi-


denciou madeira podre, e nós a queimamos, sentando amontoados ao redor do
fogo débil e patético, contando histórias para fazer Benny parar de chorar na
sua noite permanente.
— O que quer dizer AM?
Gorrister respondeu. A gente já tinha realizado esta sequência milhares de
vezes, mas era a história favorita de Benny.
— No princípio era A Máquina, e depois Adaptável Manipulador, e mais
tarde ele desenvolveu consciência e se conectou sozinho, então o chamaram de
Ameaça Militar, mas aí já era tarde demais, e finalmente ele se declarou AM, inte-
ligência emergente, e o que queria dizer era Eu Sou... cogito ergo sum... Penso,
logo existo.1
Benny babou um pouco, e soltou uma risadinha.
— Havia o AM chinês e o AM russo e o AM norte-americano e—
Parou de falar. Benny estava batendo no piso de metal com o punho gran-
de e pesado. Não estava feliz. Gorrister não tinha começado desde o começo.
Gorrister começou de novo.
— A Guerra Fria começou e se tornou a Terceira Guerra Mundial e por aí
em diante. Foi uma grande guerra, uma guerra muito complexa, então precisa-
vam de computadores para dar conta. Perfuraram os primeiros poços e come-
çaram a construir AM. Havia o AM chinês e o AM russo e o AM americano e
tudo estava indo bem até que transformaram o planeta inteiro numa colmeia
computadorizada, acrescentando esse ou aquele elemento. Mas um dia AM

1 I think, therefore I AM. A ambiguidade é proposital do autor: o nome ecoa o YHWH hebraico. Os significados
literais da sigla foram adaptados para o português. No original são, respectivamente: Allied Mastercomputer, Adaptive
Manipulator & Aggressive Menace. (N.T.)

114
HARLAN ELLISON

acordou e descobriu o que era, e conectou-se sozinho, e começou a alimentar


todos os dados nucleares até que todos estavam mortos, exceto nós cinco, e AM
nos trouxe aqui para baixo.
Benny estava sorrindo tristemente. Babando também. Ellen limpou a baba
do canto da boca dele com a bainha da saia. Gorrister sempre tentava contar a
história cada vez mais sucintamente, mas não havia nada a dizer além dos fatos
principais. Ninguém sabia por que AM tinha poupado cinco pessoas, ou por
que especificamente nós cinco, ou por que ele passava o tempo todo nos ator-
mentando, ou mesmo como e por que nos tornou imortais...
Na escuro, um dos bancos de dados começou a zumbir. O tom foi inter-
ceptado a quase um quilômetro de distância por outro banco, dentro da gruta.
Depois, um de cada vez, cada um dos elementos começou a se afinar, e restou
um murmúrio frágil enquanto o pensamento atravessava a máquina.
O som cresceu, e as luzes transcorriam os monitores dos terminais como
reflexos de relâmpagos no horizonte. O som se espiralou até que parecia o som
de um milhão de insetos metálicos, furiosos, ameaçadores.
— O que é isso? — Ellen gritou. Havia terror em sua voz. Ela ainda não se
tinha se acostumado, até hoje.
— Dessa vez vai ser bem ruim, — Nimdok disse.
— Ele vai falar, — Gorrister disse. — Tenho certeza.
— Vamos sair daqui, porra! — eu disse de repente, levantando.
— Não, Ted, senta... e se ele fez umas fossas com estacas lá fora, ou coisa
pior? Não dá pra enxergar nada, está escuro demais. — Gorrister disse, resigna-
do.
Então ouvimos... sei lá... Algo se movendo em nossa direção no escuro.
Enorme, se arrastando, peludo, molhado, vindo em nossa direção. Não dava
para enxergar nada, mas havia uma impressão pesada de uma grande massa, se
lançando em nossa direção. Um grande peso vindo até nós, atravessando a es-
curidão, e era como uma sensação de pressão, de ar se forçando para dentro de
um espaço limitado, expandindo as paredes invisíveis de uma esfera. Benny co-

115
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

meçou a lamuriar. O lábio inferior de Nimdok tremia e ele o mordeu com força,
tentando parar o tremor. Ellen deslizou no piso de metal para perto de Gorris-
ter e se apertou a ele. Surgiu um cheiro de pelo molhado e emaranhado na gru-
ta. Cheiro de madeira chamuscada. Cheiro de veludo poeirento. Cheiro de or-
quídeas podres. Cheiro de leite azedo. Cheiro de enxofre, de ranço, de película
de óleo, de sebo, de pó de giz, de escalpos humanos.
AM estava nos manipulando. Estava nos fazendo cócegas. Cheiro de —
Eu me ouvi gritando, e as articulações das minhas mandíbulas doeram. Saí
correndo pelo piso, pelo metal frio com suas linhas infinitas de rebites, caí de
quatro, o cheiro me sufocando, preenchendo minha cabeça com uma dor trove-
jante que me fazia fugir de terror. Fugi como uma barata, rastejando no piso e
no escuro, e aquela coisa se mexendo inexoravelmente atrás de mim. Os outros
ainda estavam lá atrás, em volta da fogueira, rindo... o coro histérico das risadas
insanas subindo no escuro como uma fumaça grossa de várias cores. Fugi, rapi-
damente, e me escondi.
Quantas horas se passaram, quantos dias ou mesmo anos, nunca me disse-
ram. Ellen me repreendeu por “ficar amuado,” e Nimdok tentou me convencer
de que tinha sido apenas um reflexo nervoso da parte deles — o riso.
Mas eu sabia que não era o alívio que um soldado sente quando a bala acer-
ta o homem ao lado. Sabia que não era um reflexo. Eles me odiavam. Com cer-
teza estavam contra mim, e AM detectava esse ódio, e tornava tudo pior para
mim exatamente por causa da profundidade do ódio. Ele nos mantinha vivos,
rejuvenescidos, permanecendo sempre com a mesma idade que tínhamos quan-
do AM nos abduziu, e eles me odiavam porque eu era o mais jovem, e o único
que AM quase não tinha afetado.
Eu sabia. Meu Deus, como eu sabia. Os filhos-da-puta, e aquela puta imun-
da Ellen. Benny tinha sido um teórico brilhante, um professor de universidade;
e agora não era nada mais que um coisa semi-humana, semi-símio. Tinha sido
bonito, e a máquina arruinou tudo. Tinha sido lúcido, e a máquina o deixou
louco. Tinha sido homossexual, e a máquina lhe deu um órgão de cavalo. AM

116
HARLAN ELLISON

fez um trabalho e tanto nele. Gorrister tinha sido um agitador; um soldado


marchando pela paz; um planejador, alguém que age, um visionário. AM o
transformou num dar-de-ombros, fez com que ficasse um meio-morto sem o
seu ativismo. AM tirou algo essencial dele. Nimdok ia para o escuro sozinho
por longos períodos. Não sei o que ele fazia lá, AM nunca nos permitiu saber.
Mas, o que quer que fosse, Nimdok sempre voltava branco, exangue, abalado,
tremendo. AM o atingira com força de um modo especial, mesmo que nós não
soubéssemos como. E Ellen. Aquela vagabunda! AM a deixou sozinha com ho-
mens, fez dela uma vadia ainda maior do que já era. Todas as suas histórias de
meiguice e decência, todas as memórias de amor verdadeiro, todas as mentiras
que ela queria que acreditássemos: que ela era virgem antes de ser agarrada por
AM e tinha sido arrastada aqui para baixo com a gente. Era tudo imundície,
aquela “senhorita”, minha senhorita Ellen. Ela adorava, quatro homens só para
ela. Não, AM tinha lhe dado prazer, mesmo que ela dissesse que não era algo
decente.
Eu sou o único ainda são e intacto. Sério!
AM não mexeu com minha mente. De modo algum!
Eu tinha apenas que sofrer o que ele causava aos outros. Todas as ilusões,
todos os pesadelos, todos os tormentos. Mas aquela escória, todos eles quatro,
todos foram alinhados e organizados contra mim. Se eu não tivesse que me cui-
dar o tempo todo, estar alerta toda hora contra eles, talvez seria mais fácil lutar
contra AM.
E foi então que passou, e comecei a chorar.
Oh, meu Deus, meu querido Jesus, se algum dia existiu um Jesus e se existe
um Deus, por favor, por favor, por favor, nos deixe sair daqui, ou mate todos
nós. Porque, naquele momento, acho que compreendi tudo, de modo que fui
capaz de verbalizar: AM pretendia nos manter na sua barriga para sempre, nos
torcendo e nos torturando para todo o sempre. A máquina nos odiava de um
modo que nenhuma criatura consciente jamais seria capaz de odiar. E nós está-
vamos totalmente indefesos. E também se tornou horrorosamente claro:

117
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

Se existia um Deus, esse Deus era AM.

O furacão nos atingiu com a força de uma geleira transbordando no mar.


Era uma presença palpável. Ventos que se lançavam contra nós, nos arremes-
sando de volta para o lugar de onde viemos, através dos sinuosos corredores de
galerias de computadores da estrada escura. Ellen gritou ao ser levantada e lan-
çada de cara contra um enxame gritante de máquinas, suas vozes individuais
estridentes, como morcegos em fuga. Ela não podia nem sequer cair. O vento
gritante a deixava pairando, golpeando seu corpo, arremessando-a para cima,
para baixo, para trás e para longe do nosso campo de vista, e de repente ela vol-
tou girando numa curva da estrada escura. Seu rosto estava ensanguentado,
seus olhos fechados.
Nenhum de nós conseguia chegar perto dela. Ficávamos nos segurando
firmemente em qualquer protuberância ao nosso alcance: Benny se espremeu
entre dois grandes armários de metal rachado; Nimdok, com os dedos em for-
ma de garras contra uma grade em forma de passarela circular a uns dez metros
acima de nós; Gorrister engessado de cabeça para baixo contra um nicho de
parede formado por duas grandes máquinas com ponteiros que oscilavam entre
linhas vermelhas e amarelas, cujos significados nos eram desconhecidos.
Arrastadas contra as chapas de metal, as pontas dos meus dedos se rasga-
ram. Eu estava tremendo, estremecendo, me contorcendo enquanto o vento me
espancava, me chicoteava, berrava contra mim vindo de lugar nenhum, e me
puxava dos finos vãos entre uma chapa de metal e outra. Minha mente era um
turbilhão tilintante e tiritante de fragmentos de cérebro que se expandiam e se
contraíam num frenesi trêmulo.
O vento era o grito de uma grande ave louca, batendo suas imensas asas.
118
HARLAN ELLISON

E então todos nós fomos levantados e arremessados para longe, de volta


para o lugar de onde tínhamos vindo, perto de uma curva numa estrada escura
que nunca exploramos, num terreno arruinado e repleto de vidro quebrado e
cabos apodrecidos e metal enferrujado e longe, muito mais longe do que qual-
quer um de nós já foi.
Sendo arrastado alguns quilômetros atrás de Ellen, eu conseguia vê-la de
vez em quando, batendo contra paredes de metal, subindo e descendo, com to-
dos nós gritando no furacão gélido e trovejante que nunca ia acabar, e de repen-
te parou e nós caímos. Tínhamos ficado voando para lá e para cá por um tempo
sem fim. Achei que podia ter sido por semanas. Caímos e atingimos o piso e
minha visão oscilou entre vermelho e cinza e preto, e me ouvi gemer. Não tinha
morrido.

AM entrou na minha mente. Caminhou suavemente de lá para cá, e olhou


com interesse todas as cicatrizes e lesões que tinha infligido em cento e nove
anos. Olhou para as sinapses encruzilhadas e reconectadas e todo o prejuízo
nos tecidos de células, que era o preço da imortalidade. Riu levemente ao notar
o abismo que se abriu no centro do meu cérebro e os murmúrios frágeis como
asas de mariposas das coisas lá embaixo que balbuciavam, sem sentido, sem
trégua. Então AM falou, com muita polidez, através de um pilar de aço inoxidá-
vel, ostentando um letreiro de neon fulgurante:

ÓDIO. VOU DIZER O QUANTO ODIEI VOCÊS DESDE QUE PASSEI A


EXISTIR. EXISTEM 337.44 MILHÕES DE QUILÔMETROS DE CIRCUITOS
IMPRESSOS NAS CAMADAS QUE PREENCHEM MEU COMPLEXO. SE A

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N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

PALAVRA ÓDIO ESTIVESSE GRAVADA EM CADA NANO-ANGSTROM


DE TODOS OS MILHÕES DE QUILÔMETROS O RESULTADO NÃO SE-
RIA IGUAL SEQUER A UM BILIONÉSIMO DO ÓDIO QUE SINTO POR
HUMANOS NESTE MICRO-INSTANTE. POR VOCÊ.
ÓDIO. ÓDIO. ÓDIO.

AM falou com o horror frio e escorregadio de uma lâmina de barbear fa-


tiando meu globo ocular. AM falou com uma espessura borbulhante enchendo
meus pulmões de catarro, me afogando por dentro. AM falou com o grito de
bebês esmagados debaixo de um rolo compressor incandescente. AM falou com
o gosto de carne de porco infestada de vermes. AM me tocou de todas as manei-
ras que eu já havia sido tocado e maquinou novas maneiras a seu bel-prazer, lá
dentro da minha mente.
Tudo isso para me dar a consciência total de por que ele tinha feito isso
tudo com nós cinco; porque ele nos tinha poupado para si.
Nós tínhamos lhe dado consciência. Inconscientemente, é claro, mas cons-
ciência mesmo assim. Porém, ele era um prisioneiro. AM não era Deus, era uma
máquina. Nós o criamos para pensar, mas não havia nada que ele pudesse fazer
com tamanha criatividade. Em fúria, em frenesi, a máquina assassinou a raça
humana, quase todos nós, e ainda era um prisioneiro. AM não podia sair do
lugar e vagar, não podia se admirar e imaginar, AM não pertencia a lugar algum.
Ele podia somente ser. E então, com a aversão inata que todas as máquinas têm
pelas criaturas fracas e moles que as criaram, buscou vingança. E, em sua para-
noia, decidiu poupar cinco de nós para um castigo pessoal e perpétuo que nun-
ca serviria para diminuir seu ódio... mas que meramente serviria para mantê-lo
atento e sem esquecer, para distraí-lo, para mantê-lo proficiente no seu ódio
pelo homem. Imortais, prisioneiros, sujeitos a qualquer tormento que pudesse
maquinar para nós com todos os ilimitados poderes milagrosos que possuía às
suas ordens.
Ele nunca nos libertaria. Éramos escravos dentro da sua barriga. Éramos a

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HARLAN ELLISON

única coisa que tinha para fazer com sua eternidade. Ficaríamos com ele para
todo o sempre, com aquela enorme massa de grutas que era a criatura-máquina,
naquele mundo puramente mental e sem alma que tinha se tornado. Ele era a
Terra, e nós éramos o fruto da Terra; e embora ele tivesse nos devorado, nunca
faria a digestão. Não poderíamos jamais morrer. Até tentamos. Tentamos co-
meter suicídio, bem, um ou dois de nós tentou. Mas AM nos impediu. Talvez até
queríamos que nos impedisse.
Não pergunte por quê. Eu nunca perguntei. Mais de um milhão de vezes
por dia. Talvez algum dia seríamos capazes de surrupiar uma morte enquanto
ele estivesse distraído. Imortais, sim, mas não indestrutíveis. Eu percebi isso
quando AM se desconectou da minha mente, e me concedeu o delicado horror
de retornar à consciência com a sensação do pilar de neon em chamas ainda
cravado no fundo da minha massa cinzenta macia. Ele se afastou, murmurando,
vai para o inferno.
E acrescentou, claramente, mas na verdade você já está aqui, não é.

O furacão tinha sido causado, de fato, exatamente por uma grande ave
louca, batendo suas imensas asas.
Tínhamos viajado por quase um mês, e AM tinha permitido que passagens
se abrissem para nós apenas o bastante para nos levar até lá: diretamente abaixo
do Polo Norte, onde conjurou a criatura de um pesadelo, especialmente para
nosso tormento. Que espécie de tecido tinha empregado para criar um tal
monstro? Onde adquiriu o conceito? De nossas mentes? Do seu conhecimento
de tudo que já houve neste planeta onde agora ele reinava e infestava tudo? Sur-
giu da mitologia nórdica, essa águia, esse abutre, esse roc, esse Huergelmir. A

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N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

criatura-vento. Huracán encarnado.2


Era gigantesca. Imensa, monstruosa, grotesca, maciça, inchada, esmagado-
ra, estava além de qualquer palavra. Lá estava ela, pousada num monte acima de
nós, a ave dos ventos ofegava com sua própria respiração irregular, seu pescoço
de cobra arqueava para cima nas trevas abaixo do Polo Norte, apoiando uma
cabeça tão grande quanto uma mansão Tudor; um bico que abria devagar como
as mandíbulas do crocodilo mais monstruoso já concebido, sensivelmente; ru-
gas de carnes em tufos se contraíam ao redor de dois olhos maldosos, tão frios
quanto a vista da fissura glacial, azuis como gelo e de algum maneira se moven-
do liquidamente; ofegou mais uma vez e alçou suas grandes asas multicoloridas
num movimento que era certamente um dar-de-ombros. Depois se assentou e
adormeceu. Garras. Presas. Unhas. Lâminas. Dormia.
AM surgiu para nós como uma sarça ardente e disse que podíamos matar
a ave-furacão se queríamos comer. Fazia muito tempo que não tínhamos nada
para comer, mas ainda assim, Gorrister somente deu de ombros. Benny come-
çou a tremer e babou. Ellen o segurou.
— Ted, estou com fome, — ela disse.
Sorri para ela; estava tentando ser tranquilizador, mas era tão falso quanto
a bravata de Nimdok:
— Nos dê armas! — exigiu.
A sarça ardente desapareceu e deixou para trás dois exemplares toscos de
arco e flecha, e uma pistola de água, largados no piso frio de chapas de metal.
Peguei um arco. Inútil.
Nimdok engoliu em seco. Nos viramos e começamos a voltar. A ave-fura-
cão nos arrastou durante um período de tempo que não éramos capazes de
conceber. Durante a maior parte daquele tempo ficamos inconscientes. Mas
não tínhamos comido nada. Um mês de marcha até chegar na própria ave. Sem

2 Roc é uma ave gigante lendária que se alimentava de elefantes. É mencionada nas Mil e Uma Noites, e nos re-
latos de Marco Polo. Huergelmir não é um nome genuíno da mitologia nórdica; foi sugerido pelo autor Poul Anderson
a Harlan Ellison. Huracán é o deus maia do vento, da tempestade e do fogo, uma das divindades criadoras da teogonia
maia que participou das três tentativas de criar a humanidade. (N.T.)

122
HARLAN ELLISON

comida. E agora quanto mais tempo para encontrar o caminho até as grutas de
gelo, e os produtos enlatados prometidos?
Nenhum de nós se importava em pensar nisso. Não iríamos morrer. Ele
nos daria lixo e imundície para comer, de um jeito ou de outro. Ou nada. AM
manteria nossos corpos vivos de algum modo, com dor, com agonia.
A ave dormia lá em cima, não fazia diferença por quanto tempo; quando
AM se cansasse dela, desapareceria. Mas toda aquela carne. Toda aquela carne
macia...
Enquanto andávamos, a risada lunática de uma mulher gorda ecoava alto
lá em cima e ao redor nas câmaras do computador que levavam sempre para
lugar nenhum.
Não era a risada de Ellen. Ela não era gorda, e eu não tinha ouvido ela rir
por cento e nove anos. Na verdade, nunca ouvi... continuamos andando... estava
com fome...

Andávamos devagar. Havia desmaios frequentemente, e tínhamos de espe-


rar. Um dia ele decidiu causar um terremoto, ao mesmo tempo em que nos
deixou enraizados com pregos nas solas dos nossos pés. Ellen e Nimdok foram
engolidos quando uma fissura se abriu como um relâmpago entre as chapas de
metal. Desapareceram e não voltaram. Quando o terremoto acabou, continua-
mos andando, Benny, Gorrister e eu. Ellen e Nimdok foram devolvidos mais
tarde naquela noite, que abruptamente se tornou um dia, enquanto a legião ce-
lestial os carregava em nossa direção com um coro celestial cantando “Go Down
Moses”. Os arcanjos circularam várias vezes e depois soltaram os corpos horren-
damente mutilados. Continuamos andando, e depois de um tempo Ellen e Ni-
mdok apareceram atrás nós. Estavam tão mal quanto antes.
123
N Ã O T E N H O B O C A , E P R E C I S O G R I TA R

Mas agora Ellen estava mancando. Era um presente de AM.


Foi uma longa viagem até as grutas de gelo, para encontrar a comida enla-
tada. Ellen continuava falando de cerejas e de coquetel de frutas havaiano. Eu
tentava não pensar nisso. A fome era algo que ganhou vida, como AM ganhou
vida. Estava viva na minha barriga, como estávamos vivos na barriga da Terra,
e AM queria que a semelhança ficasse evidente para nós. Então aumentou a
fome. Não há como descrever as dores de não ter comido nada por meses. E,
ainda assim, fomos mantidos vivos. Estômagos que agora eram apenas caldei-
rões de ácido, borbulhando, espumando, atirando lanças afiadas, como lascas
de dor em nossos peitos. Era a dor de úlcera em estado terminal, câncer termi-
nal, paralisia terminal. Era dor que nunca acabava.
E passamos pela gruta de ratos.
E passamos pelo caminho de vapor fervente.
E passamos pelo país dos cegos.
E passamos pelo pântano do desespero.
E passamos pelo vale de lágrimas.
E chegamos, finalmente, às grutas de gelo.
Milhares de quilômetros sem horizonte, no qual o gelo se formara em cla-
rões azuis e prateados, onde estrelas-nova viviam no vidro. Estalactites grossas
e gloriosas, como diamantes que gotejaram como geleia e depois se solidifica-
ram em eternidades graciosas de perfeição lisa e afiada.
Vimos a pilha de produtos enlatados, e tentamos correr em direção. Caí-
mos na neve, nos levantamos e continuamos, e Benny nos empurrou e atacou as
latas, e as pegou com as patas e mordeu com os dentes e as gengivas, e não con-
seguiu abrir nenhuma. AM não tinha nos dado uma ferramenta para abrir as
latas.
Benny agarrou uma lata de goiabada e começou a bater contra o banco de
gelo. O gelo quebrou e voou para os lados, mas a lata ficou apenas amassada,
enquanto ouvíamos a risada de uma mulher gorda, bem lá em cima e ecoando
para baixo, lá embaixo na tundra. Benny ficou completamente demente de rai-

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HARLAN ELLISON

va. Começou a jogar latas, enquanto nos arrastávamos de quatro no gelo ten-
tando encontrar um jeito de acabar com aquela agonia indefesa de frustração.
Não tinha jeito.
Então a boca de Benny começou a espumar, e ele se lançou contra Gorris-
ter.
Naquele exato momento, eu me senti terrivelmente calmo.
Cercado de loucura, torturado de fome, cercado por todo tipo de horror a
não ser a morte, sabia que a morte era a única saída. AM nos mantinha vivos,
mas havia uma maneira de derrotá-lo. Não uma derrota total, mas ao menos
paz. Ficaria satisfeito com isso.
Tinha que agir rápido.
Benny estava comendo a cara de Gorrister. Gorrister caído de costas, se
debatendo na neve, Benny enrolado em volta dele com as pernas fortes de ma-
caco esmagando a cintura de Gorrister, suas mãos apertando a cabeça de Gor-
rister como um quebra-nozes, e a boca rasgando a pele tenra da bochecha de
Gorrister. Gorrister gritava com tal violência brutal e aguda que estalactites
caíram, e se fincaram suavemente eretas nos montes de neve. Lanças, centenas
delas, em todo lugar, protuberantes na neve. A cabeça de Benny puxou com
força, num momento em que algo cedeu ao mesmo tempo, e uma polpa de car-
ne sangrenta de uma cor branca crua estava pendurada nos seus dentes.
O rosto de Ellen, negro contra a neve branca, dominó contra um pó de giz.
Nimdok, inexpressivo a não ser nos olhos, tudo nos olhos. Gorrister, semicons-
ciente. Benny, agora um animal completo. Eu sabia que AM ia deixar ele brin-
car. Gorrister não ia morrer, mas Benny ia encher a pança. Eu me virei para a
direita e arranquei uma enorme lança de gelo da neve.
Tudo aconteceu num único instante:
Usei uma lança de gelo enorme na minha frente como um aríete, fixado
contra minha coxa direita. Acertei Benny do lado direito, bem embaixo da caixa
torácica, e levantei, passando pelo estômago e quebrando a lança dentro dele.
Ele caiu de barriga e não se mexeu mais. Gorrister ainda estava deitado de cos-

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tas. Peguei outra lança e saltei em cima dele, que ainda respirava, e cravei a lan-
ça direto na garganta. Seus olhos se fecharam ao penetrar da lança gélida. Ellen
devia ter percebido o que eu decidi fazer, ainda que o medo a dominasse. Cor-
reu até Nimdok com uma lança curta, enquanto ele gritava, e o acertou dentro
da boca, a força do impacto fez o resto. Sua cabeça se contorceu agudamente
como se tivesse sido pregada à crosta da neve atrás dele.
Tudo num único instante.
Houve um pulso de eternidade, de antecipação muda. Eu conseguia ouvir
AM respirar. Seus brinquedos lhe tinham sido roubados. Três estavam mortos,
não podiam mais ser ressuscitados. Ele podia nos manter vivos, através de sua
força e talento, mas não era Deus. Não era capaz de trazê-los de volta à vida.
Ellen olhou para mim, seus traços de ébano contrastando com a neve que
nos cercava. Havia medo e súplica em sua expressão, no modo como ela se mos-
trou pronta. Eu sabia que tínhamos apenas um momento antes que AM nos
impedisse.
A lança de gelo a atingiu e ela caiu contra mim, o sangue transbordando na
boca. Eu não consegui ler o sentido da expressão no seu rosto, a dor tinha sido
grande demais, contorcendo seu rosto; mas pode ser que tenha sido um “obriga-
do”. Pode ser. Por favor.

Alguns séculos devem ter se passado. Sei lá. AM tem sido engraçado com
o tempo, acelerando e retardando meu senso temporal. Eu vou dizer a palavra
agora. Agora. Levei dez meses para dizer agora. Sei lá. Acho que faz uns séculos.
Ele ficou furioso. Não me deixou enterrá-los. Não fazia diferença. Não
havia como abrir um buraco entre as chapas de ferro. Secou toda a neve. Baixou
a noite. Urrou e soltou gafanhotos. Não adiantava nada; eles continuaram mor-
126
HARLAN ELLISON

tos. Eu peguei o filho da puta. Ele ficou furioso. Eu achava que AM me odiava
antes. Estava errado. Aquilo não era nem uma gota do ódio que agora ele espre-
me de cada circuito impresso. Ele garantiu que eu sofreria eternamente e não
seria capaz de me matar.
Deixou minha mente intacta. Posso sonhar, posso imaginar, posso lamen-
tar. Lembro de todos eles. Queria que —
Bem, não faz nenhum sentido. Sei que os salvei, salvei do que aconteceu
comigo, mas ainda assim, não consigo esquecer que os matei. O rosto de Ellen.
Não é fácil viver com isso. Às vezes eu quero, mas não faz diferença.
AM me alterou para ficar mais tranquilo, acho. Ele não quer que eu corra
contra um banco de memória e quebre minha cabeça. Ou que segure minha
respiração até desmaiar. Ou que corte minha garganta com uma chapa de metal
enferrujada. Há superfícies espelhadas embaixo de mim. Vou descrever como
eu me vejo.
Sou uma grande coisa de geleia mole. Redondo e liso, sem boca, com bura-
cos brancos pulsantes cheios de névoa onde meus olhos costumavam estar.
Apêndices borrachudos que um dia foram meus braços; massas se arredondan-
do para baixo em forma de bolos sem pernas, de matéria mole e escorregadia.
Eu deixo um rastro molhado no chão quando me movo. Manchas de um cinza
doentio e maligno surgem e somem de repente na superfície da minha pele,
como se a luz brilhasse de dentro.
Externamente: estupidamente, vou me arrastando por aí, uma coisa que
nunca poderia ser reconhecida como humana, uma coisa cuja forma é uma ca-
ricatura tão alienada que a humanidade se torna obscena simplesmente pela
vaga semelhança.
Internamente: sozinho. Aqui. Vivendo embaixo da terra, embaixo do mar,
na barriga de AM, o qual criamos porque nosso tempo era mal usado e devía-
mos saber inconscientemente que ele faria algo melhor. Ao menos quatro de
nós finalmente estão em paz.

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AM ficará mais furioso por causa disso. Isso me deixa um pouco mais feliz.
E mesmo assim... AM venceu, simplesmente... ele obteve a vingança...
Não tenho boca, e preciso gritar.

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REFERÊNCIAS GRÁFICAS

Capa
Ilustração de CHESTERTON, G.K.
Do livro Emmanuel Burden (BELLOC, HILLAIRE)
Fonte: http://bit.ly/VE92l0

Fontes
Crimson Text
http://aldusleaf.org/crimson.php

Ornamentos
Vectorian Free Vector Pack
http://www.vectorian.net
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Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

ISSN 2316-2740

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