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Antropologia e anarquismos, a
oxigenação de um pensar e a obra
de Graeber. Entrevista especial
com Orlando Calheiros
O professor compreende que o anarquismo é uma abordagem
possível quando há entrega ao ato de ‘pensar sobre o pensar’ e
analisa as contribuições de David Graeber nesse mesmo movimento
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E não é sem motivo que essa obra tem vindo à tona, pois a atual conjuntura
evidencia, entre os múltiplos estados de crises, um importante desajuste de
ordem macroeconômica. E mais: a experiência da pandemia provocada pela
covid-19 trouxe ainda mais luz sobre esse problema macro, mas que se revela
implacável sobre vidas humanas mais vulneráveis. “A pandemia escancarou um
problema óbvio: que o sistema que vivemos, o capitalismo global, o
neoliberalismo etc…, tem um limite. O limite não é apenas a terra, como os
liberais colocavam, mas a própria vida como um todo”, enfatiza Orlando. Afinal,
“os mais pobres foram os mais sacrificados pela pandemia, foram eles, seus
corpos, sua vida, o que garantiu ao sistema sobreviver quando todos os demais
podiam se preservar em seus lares”.
No entanto, não pense que o professor faz uma leitura apaixonada dos escritos de
Graeber, tomando seus insights como única saída para nossos problemas. Pelo
contrário, traz uma leitura crítica capaz de apreender potências e ver nas
fragilidades questões a serem desenvolvidas. “Acho que alguns dos problemas
levantados em seu livro Dívida nos oferecem argumentos interessantes para
entender como esse processo se tornou global, como ainda persiste”,
contextualiza.
Por fim, ainda observa como a fricção entre antropologias e anarquias pode
fazer avançar as reflexões sobre nossos problemas e também como pensamos
sobre eles. “Anarquia não é sinônimo de desordem, de voluntarismo, muito pelo
contrário, ela aponta para uma relação não régia com a vida, isto é, busca uma
solução não estatal para os problemas. E que o ato de pensar – pensar sobre o
pensar – pode e deve ser encarado como um desses ‘problemas’ e, portanto,
passível de uma abordagem anarquista”, resume.
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o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do
Núcleo de Antropologia Simétrica - NAnSi. Trabalhou como pesquisador sênior do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, coordenando o
Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Atuou ainda
como pesquisador colaborador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade -
PPBio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Realizou pós-doutorado no
Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor
visitante.
Confira a entrevista.
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Não é coincidência que, por exemplo, Mauss em seu célebre Ensaio sobre a
Dádiva nos fale sobre uma vida social que se funda na troca e não na sujeição à
sociedade (como no pensamento liberal), que Radcliffe-Brown vá buscar nos
escritos sobre solidariedade de Kropotkin uma linguagem capaz de dar conta
da criatividade social dos andamaneses.
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régia.
Não é à toa que em seus escritos posteriores ele vai se debruçar sobre os
“empregos de merda”, sobre o dispositivo da “dívida” e, de forma mais
abrangente, sobre os dispositivos de dominação, buscando fundar uma espécie de
teoria etnográfica da origem das realezas (seu último livro).
Criatividade da dominação
Sua obra se debruça sobre uma certa “criatividade da dominação”, vamos
chamar assim. E esse é um ponto interessante. Sobre como a dominação não cria
apenas um vácuo criativo etc., mas como ela está na origem de movimentos,
espaços que consideramos insuspeitos, até mesmo “livres”. Isso não é exatamente
algo novo na antropologia, nas humanidades, muito pelo contrário, mas ele o
fez de uma perspectiva assumidamente anarquista. E isso me parece
interessante, apesar de certas reservas que tenho com seus resultados.
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este debate é importante demais para ficar restrito aos economistas e ou cientistas
políticos – não se trata aqui de uma crítica aos meus colegas de humanidades,
friso. O livro cria uma narrativa interessante sobre este dispositivo de dominação e
conversão, de como ele foi e permanece sendo utilizado – em um sentido quase
estrutural – em diferentes contextos. O livro descreve a “invenção da dívida”,
isto é, aquilo que ela inventa, sobre como ela se torna um código que atravessa
nossas relações.
Mas isso não é tudo, esta obra, como a antropóloga Isabela Kalil bem notou, abre
espaço para se repensar o próprio conceito de classe em ambientes citadinos, uma
atualização da marcação/demarcação econômica da população: abre espaço para
um vocabulário (e uma mobilização) que leve em conta a forma como estas
populações estão endividadas. É como se diz na minha terra, pobre tem
dívida, rico tem crédito. Por incrível que pareça, essa frase diz algo muito
profundo sobre a forma como somos marcados pela nossa relação com a dívida.
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Orlando Calheiros – Esse é um dos trabalhos que mais me incomodou. Para
começar é fundamental salientar que o livro não é apenas de Graeber, ele é o autor
de metade do livro, enquanto a outra metade é escrita por Marshall Sahlins.
Tanto que temos, ali, duas descrições paralelas e algo concorrentes sobre a
emergência do poder régio. Meus problemas com Graeber começam no
momento em que ele se propõe a criar uma teoria do sentido para fundamentar a
fratura social que funda uma monarquia, no momento em que ele atribui a
emergência de uma instância régia a uma espécie de incapacidade interpretativa
dos humanos, melhor, dos “outros humanos”.
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IHU On-Line – Para Graeber, o anarquismo não pode ser
compreendido como uma identidade. Mas, para você, o que é o
anarquismo? E como analisa essa percepção do autor?
E que relação é essa? Uma que aponta sempre para aquém e além da forma
estatal. Basicamente, cada anarquismo se remete a um problema e a uma forma
de pensá-lo para além ou para aquém do campo estatal. Do anarquismo verde,
as anarcafeministas, anarquismo cristão, anarquismo ontológico etc…
as vertentes do anarquismo, os múltiplos anarquismos nos remetem a problemas
específicos (e ao mesmo tempo muito amplos) e de uma forma muito específica.
Por esta razão fica difícil – para não dizer até contraditório – pensar no
anarquismo, nos anarquismos em termos de uma identidade, seria antes uma
prática, uma forma de engajamento.
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Existe toda uma relação de sua obra com aquilo que Deleuze e Guattari chamaram
de o “novo idiota” que valeria a pena explorar em outra oportunidade. Mas o que
nos importa é que Graeber parece operar na chave contrária, sua obra procura
evidências, remetendo o seu sentido a uma espécie de verdade oculta dos agentes.
Lembram do divino que emerge da ausência de sentido, pois então: a obra de
Graeber parece estar sempre se remetendo a essa verdade oculta dos atores
sociais.
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Wall Street como precursor de grandes
mobilizações ao redor do globo. Antes, é
sintoma de uma forma de se mobilizar e
protestar que apareceu nos anos 90, avançou
no começo dos anos 2000 e se consolidou no
começo da última década – Orlando
Calheiros
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Um exemplo de como o Occupy não foi um raio em céu azul: tivemos o 15-M na
Espanha. Antes tivemos a Primavera Árabe. E aqui começa algo interessante,
pois todos estes se articularam por via das redes sociais. Nesse momento se
começa a ver o potencial das redes para a articulação rápida, mobilizações
capilares descentralizadas etc. Tudo se passa como se os movimentos de certa
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conformação e orientação de uma libido revoltosa.
E esse me parece ser um ponto muito importante que tem sido ignorado. Inclusive
pela obra de Graeber, que parte de uma perspectiva típica do seu tempo – como
as coisas avançam rápido –, um certo otimismo diante dessa difusão virtual de
ideias.
Precisaríamos abrir uma outra entrevista apenas para falar sobre isso, mas o
ponto é: tais revoltas, insurreições, movimentos, como você quiser chamá-los,
refletiram de forma profunda a estrutura das redes onde foram gestados. E não
apenas em termos organizacionais, mas em termos de uma subjetividade
revoltosa.
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E o que nos leva a isso? O que nos leva a naturalizar esse holocausto em nome
dos fluxos do capital? Acho que alguns dos problemas levantados em seu livro
Dívida nos oferecem argumentos interessantes para entender como esse processo
se tornou global, como ainda persiste.
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voluntarismo, muito pelo contrário, ela
aponta para uma relação não régia com a
vida – Orlando Calheiros
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como mero apêndice do projeto colonial. O que vale por aqui, vale alhures.
Leia mais
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Line, Nº. 543
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