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Antropologia e anarquismos, a oxigenação de u... http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevis...

Antropologia e anarquismos, a
oxigenação de um pensar e a obra
de Graeber. Entrevista especial
com Orlando Calheiros
O professor compreende que o anarquismo é uma abordagem
possível quando há entrega ao ato de ‘pensar sobre o pensar’ e
analisa as contribuições de David Graeber nesse mesmo movimento

La Ocupa | Foto: Wikimedia Commons

Por: João Vitor Santos | 09 Outubro 2020

Não é estranho afirmar que anarquismo e antropologia se cruzam, mas o


interessante é pensar como o primeiro subverte o cânone do campo antropológico.
É nesse sentido que vai a reflexão do professor e pesquisador Orlando Calheiros,
que tensiona esses campos a partir de uma análise de parte da obra de David
Graeber. “Considero Dívida a sua obra de maior impacto”, destaca na entrevista
concedida por e-mail à IHU On-Line. “Este livro demonstra que a
antropologia, que um trabalho propriamente antropológico, tem algo de

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E não é sem motivo que essa obra tem vindo à tona, pois a atual conjuntura
evidencia, entre os múltiplos estados de crises, um importante desajuste de
ordem macroeconômica. E mais: a experiência da pandemia provocada pela
covid-19 trouxe ainda mais luz sobre esse problema macro, mas que se revela
implacável sobre vidas humanas mais vulneráveis. “A pandemia escancarou um
problema óbvio: que o sistema que vivemos, o capitalismo global, o
neoliberalismo etc…, tem um limite. O limite não é apenas a terra, como os
liberais colocavam, mas a própria vida como um todo”, enfatiza Orlando. Afinal,
“os mais pobres foram os mais sacrificados pela pandemia, foram eles, seus
corpos, sua vida, o que garantiu ao sistema sobreviver quando todos os demais
podiam se preservar em seus lares”.

No entanto, não pense que o professor faz uma leitura apaixonada dos escritos de
Graeber, tomando seus insights como única saída para nossos problemas. Pelo
contrário, traz uma leitura crítica capaz de apreender potências e ver nas
fragilidades questões a serem desenvolvidas. “Acho que alguns dos problemas
levantados em seu livro Dívida nos oferecem argumentos interessantes para
entender como esse processo se tornou global, como ainda persiste”,
contextualiza.

Por fim, ainda observa como a fricção entre antropologias e anarquias pode
fazer avançar as reflexões sobre nossos problemas e também como pensamos
sobre eles. “Anarquia não é sinônimo de desordem, de voluntarismo, muito pelo
contrário, ela aponta para uma relação não régia com a vida, isto é, busca uma
solução não estatal para os problemas. E que o ato de pensar – pensar sobre o
pensar – pode e deve ser encarado como um desses ‘problemas’ e, portanto,
passível de uma abordagem anarquista”, resume.

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o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do
Núcleo de Antropologia Simétrica - NAnSi. Trabalhou como pesquisador sênior do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, coordenando o
Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Atuou ainda
como pesquisador colaborador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade -
PPBio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Realizou pós-doutorado no
Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor
visitante.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que conexões podemos estabelecer entre antropologia


e anarquismo?

Orlando Calheiros – Existe uma relação congênita entre antropologia e


anarquismo, melhor, entre as antropologias e as anarquias. Bem, é inegável que
o berço da antropologia foi o colonialismo, que ela é uma expressão dessa
tecnologia de opressão/dominação: seja como apêndice da operação colonial –
pense aqui no seu papel da própria administração das colônias –, seja reforçando
a concepção de uma suposta singularidade, uma excepcionalidade euro-
americana (citadina, branca, masculinista etc.) – pensando aqui em Morgan,
por exemplo.

Isso é inegável, contudo, também o é que a antropologia, ao voltar suas atenções


para sociedades outras, outros mundos que não o nosso, se confrontou com os
próprios limites da sua linguagem descritiva, da sua própria antropologia.

Basicamente, os bons antropólogos e antropólogas – da maneira como os concebo


– são/foram aqueles, aquelas que se mostram/mostraram capazes de adequar a
sua linguagem descritiva à própria linguagem daqueles com os quais estudam.
Fazer (boa) antropologia é pensar com o outro – não sobre o outro –, é um
encontro no sentido técnico do termo. Esse é um ponto importante, muito bem
notado por Clastres: o paradoxo da antropologia é, justamente, ser uma

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Fazer (boa) antropologia é pensar com o


outro – não sobre o outro –, é um encontro
no sentido técnico do termo – Orlando
Calheiros

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Do diálogo com o diferente ao anarquismo


A boa antropologia se funda nesse diálogo com o diferente, não para
sobrecodificá-lo, como nos moldes do projeto colonial original, mas para, por
meio desse contato, se transformar, produzindo uma linguagem descritiva – e
uma imaginação – menos viciada, coloquemos assim, pela metafísica liberal
que está na origem da disciplina.

E aí que nos deparamos com o anarquismo. Acontece que a antropologia sempre


teve como seu elemento crucial essa relação com povos outros, povos cuja vida,
pensamento, é marcado por uma existência para além e para aquém da marca
estatal. Com outras palavras, povos que organizaram sua existência, que criaram
uma forma de vida que não se baseia nos princípios dos estados nacionais
modernos (ou das monarquias europeias).

Não é coincidência que, por exemplo, Mauss em seu célebre Ensaio sobre a
Dádiva nos fale sobre uma vida social que se funda na troca e não na sujeição à
sociedade (como no pensamento liberal), que Radcliffe-Brown vá buscar nos
escritos sobre solidariedade de Kropotkin uma linguagem capaz de dar conta
da criatividade social dos andamaneses.

Nesse ponto, querendo ou não, a antropologia se aproxima das anarquias

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régia.

IHU On-Line – Quais as contribuições de David Graeber para o campo


da antropologia?

Orlando Calheiros – De um lado, a grande contribuição dele foi chamar a


atenção para um debate sobre os intramuros da disciplina (e da própria
produção universitária estadunidense) e fazê-lo de uma ótica muito específica – e
explicitar isso. E esse é um ponto importante, pois a dimensão propriamente
política de seus escritos nunca ficou em segundo plano, algo que você poderia
apenas intuir. Pelo contrário, ele incorpora o problema à própria linguagem
descritiva, uma linguagem que se imagina comprometida com uma perspectiva
não estatal. Se ele foi capaz de se manter fiel a essa perspectiva ao longo de seus
escritos, e o que significa esta perspectiva não estatal em seus termos, é uma outra
discussão. Mas esse tipo de movimento deve ser saudado, sem dúvida.

Não é à toa que em seus escritos posteriores ele vai se debruçar sobre os
“empregos de merda”, sobre o dispositivo da “dívida” e, de forma mais
abrangente, sobre os dispositivos de dominação, buscando fundar uma espécie de
teoria etnográfica da origem das realezas (seu último livro).

Criatividade da dominação
Sua obra se debruça sobre uma certa “criatividade da dominação”, vamos
chamar assim. E esse é um ponto interessante. Sobre como a dominação não cria
apenas um vácuo criativo etc., mas como ela está na origem de movimentos,
espaços que consideramos insuspeitos, até mesmo “livres”. Isso não é exatamente
algo novo na antropologia, nas humanidades, muito pelo contrário, mas ele o
fez de uma perspectiva assumidamente anarquista. E isso me parece
interessante, apesar de certas reservas que tenho com seus resultados.

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IHU On-Line – Na sua opinião, qual a melhor obra de David Graeber?


Por que e quais as maiores contribuições desse trabalho?

Orlando Calheiros – Considero Dívida a sua obra de maior impacto. Primeiro


em sua difusão, foi uma obra que reverberou em cenários usualmente avessos ao
discurso antropológico, especialmente, um discurso antropológico
comprometido com uma certa vertente política. Estudantes de Economia leram
Dívida, estudantes de Direito também.

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este debate é importante demais para ficar restrito aos economistas e ou cientistas
políticos – não se trata aqui de uma crítica aos meus colegas de humanidades,
friso. O livro cria uma narrativa interessante sobre este dispositivo de dominação e
conversão, de como ele foi e permanece sendo utilizado – em um sentido quase
estrutural – em diferentes contextos. O livro descreve a “invenção da dívida”,
isto é, aquilo que ela inventa, sobre como ela se torna um código que atravessa
nossas relações.

Mas isso não é tudo, esta obra, como a antropóloga Isabela Kalil bem notou, abre
espaço para se repensar o próprio conceito de classe em ambientes citadinos, uma
atualização da marcação/demarcação econômica da população: abre espaço para
um vocabulário (e uma mobilização) que leve em conta a forma como estas
populações estão endividadas. É como se diz na minha terra, pobre tem
dívida, rico tem crédito. Por incrível que pareça, essa frase diz algo muito
profundo sobre a forma como somos marcados pela nossa relação com a dívida.

É como se diz na minha terra, pobre tem


dívida, rico tem crédito. Por incrível que
pareça, essa frase diz algo muito profundo
sobre a forma como somos marcados pela
nossa relação com a dívida – Orlando
Calheiros

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IHU On-Line – Recentemente, você resenhou On Kings (Chicago:


HAU; Illustrated Edition, 2017), uma das últimas obras de Graeber. De
forma breve, qual sua avaliação sobre a obra e como se revelam nela as

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Orlando Calheiros – Esse é um dos trabalhos que mais me incomodou. Para
começar é fundamental salientar que o livro não é apenas de Graeber, ele é o autor
de metade do livro, enquanto a outra metade é escrita por Marshall Sahlins.
Tanto que temos, ali, duas descrições paralelas e algo concorrentes sobre a
emergência do poder régio. Meus problemas com Graeber começam no
momento em que ele se propõe a criar uma teoria do sentido para fundamentar a
fratura social que funda uma monarquia, no momento em que ele atribui a
emergência de uma instância régia a uma espécie de incapacidade interpretativa
dos humanos, melhor, dos “outros humanos”.

Basicamente, a instância régia, um patamar divino, é aquilo que aparece diante da


nossa incapacidade de interpretar certos fenômenos. E isso me parece uma ideia
tão fora do lugar no atual cenário antropológico que compromete toda a sua
descrição do fenômeno.

Esse tipo de interpretação – já presente em alguns de seus artigos pretéritos – me


parece muito pouco comprometida com uma perspectiva “não régia” da ciência.
Me parece muito típica de um certo regime moral do pensamento que marca a
história clássica da antropologia. Aquele excepcionalismo dos modernos
diante dos outros povos, enquanto os modernos “sabem”, os outros povos
“acreditam”, enquanto os modernos encontram explicações precisas para os
fenômenos da natureza, os outros povos inventam deuses, reis etc. Em certo
momento, ele afirma categoricamente “It is in this absolute absence of meaning
that we encounter the Divine”, ainda, faz algumas generalizações sobre a ideia de
sagrado que nos remetem às repisadas teses dos estudos de religião comparada do
estruturalismo britânico.

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IHU On-Line – Para Graeber, o anarquismo não pode ser
compreendido como uma identidade. Mas, para você, o que é o
anarquismo? E como analisa essa percepção do autor?

Orlando Calheiros – Condensar o anarquismo enquanto uma identidade é


condená-lo a ser mais um produto na prateleira do shopping da metafísica liberal.
Como bem diz meu amigo Acácio Augusto, cientista político – ninguém é perfeito
–, o ideal não é falarmos de anarquismo, mas de anarquias. Por qual motivo?

Bem, simples, quando olhamos para as diversas correntes do anarquismo com


atenção, percebemos que a única coisa que as unifica é o seguinte: todas estão
ligadas a um problema fundamental, uma cena originária – para falarmos como os
psicanalistas. Sempre há um problema e – esse é o ponto – uma forma específica
de se lidar com ele. Da maneira como vejo, esse é o fundamento dos
anarquismos (ou das anarquias, para falarmos como o Acácio). Uma forma de
se engajar em um problema, antes uma forma de se relacionar com ele – um tipo
de relação –, do que propriamente uma solução.

E que relação é essa? Uma que aponta sempre para aquém e além da forma
estatal. Basicamente, cada anarquismo se remete a um problema e a uma forma
de pensá-lo para além ou para aquém do campo estatal. Do anarquismo verde,
as anarcafeministas, anarquismo cristão, anarquismo ontológico etc…
as vertentes do anarquismo, os múltiplos anarquismos nos remetem a problemas
específicos (e ao mesmo tempo muito amplos) e de uma forma muito específica.

Por esta razão fica difícil – para não dizer até contraditório – pensar no
anarquismo, nos anarquismos em termos de uma identidade, seria antes uma
prática, uma forma de engajamento.

Condensar o anarquismo enquanto uma


identidade é condená-lo a ser mais um
produto na prateleira do shopping da

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IHU On-Line – Você trabalha com Isabelle Stengers e chegou a


considerar que sua obra está no oposto da de David Graeber. Por quê?
E onde é possível encontrar conexão entre os dois autores?

Orlando Calheiros – A obra de Stengers busca, continuamente, recolocar o


problema sob outros termos. Por meio de seus textos, intervenções, a autora busca
inscrever uma outra perspectiva de fenômenos que “supostamente” nos são
familiares. Uma verdadeira ontologia do tempo presente – se fôssemos utilizar
termos foucaultianos. Ou seja, ela não apenas descreve “como chegamos até
aqui”, como o faz de uma forma que nos permita resistir a isso. Por isso ela busca
se alinhar com linguagens estranhas: para expandir os termos dessa resistência.

Por exemplo, a ciência, o capitalismo, a crise ecológica. Sua própria escrita


busca refletir isto: imprimir uma resistência pelo estranhamento. É, ainda como
exemplo, a forma como ela reconfigura a crise ambiental sob os termos de uma
intrusão de Gaia ou o capitalismo nos termos de um grande complexo de
feitiçaria. Ela não o faz de forma leviana, ela o faz visando certos efeitos sobre seus
leitores.

Existe toda uma relação de sua obra com aquilo que Deleuze e Guattari chamaram
de o “novo idiota” que valeria a pena explorar em outra oportunidade. Mas o que
nos importa é que Graeber parece operar na chave contrária, sua obra procura
evidências, remetendo o seu sentido a uma espécie de verdade oculta dos agentes.
Lembram do divino que emerge da ausência de sentido, pois então: a obra de
Graeber parece estar sempre se remetendo a essa verdade oculta dos atores
sociais.

Graeber parece almejar uma verdade, Stengers um “outramento” do


pensamento. A segunda proposta me parece mais interessante.

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Wall Street como precursor de grandes
mobilizações ao redor do globo. Antes, é
sintoma de uma forma de se mobilizar e
protestar que apareceu nos anos 90, avançou
no começo dos anos 2000 e se consolidou no
começo da última década – Orlando
Calheiros

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IHU On-Line – Em que medida Occupy Wall Street transforma o


ativismo político e as mobilizações sociais neste século? Como
compreender essas mobilizações, que varreram o mundo de Ocidente
a Oriente, a partir dos conceitos de Graeber?

Orlando Calheiros – Occupy Wall Street é antes de tudo um sintoma do que


uma causa, poderíamos falar do altermundismo, das reverberações dos Fóruns
Sociais Mundiais - FSM. Mesmo a tática de ocupação, adaptada para a questão da
dívida universitária, não é nova, muito pelo contrário, você vai encontrá-la em
diversos movimentos ao longo da história. E, veja bem, não apenas ao longo da
história dos Estados Unidos, é algo muito mais difundido. Então, ao contrário
de muitos, eu sei, não vejo o Occupy Wall Street como precursor de grandes
mobilizações ao redor do globo. Antes, ele é sintoma de uma forma de se mobilizar
e protestar que apareceu nos anos 90, avançou no começo dos anos 2000 e se
consolidou no começo da última década. Especialmente por conta das redes
sociais.

Um exemplo de como o Occupy não foi um raio em céu azul: tivemos o 15-M na
Espanha. Antes tivemos a Primavera Árabe. E aqui começa algo interessante,
pois todos estes se articularam por via das redes sociais. Nesse momento se
começa a ver o potencial das redes para a articulação rápida, mobilizações
capilares descentralizadas etc. Tudo se passa como se os movimentos de certa

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conformação e orientação de uma libido revoltosa.

E esse me parece ser um ponto muito importante que tem sido ignorado. Inclusive
pela obra de Graeber, que parte de uma perspectiva típica do seu tempo – como
as coisas avançam rápido –, um certo otimismo diante dessa difusão virtual de
ideias.

IHU On-Line – Como você analisa as manifestações atualmente,


sobretudo no cenário brasileiro, depois de toda a experiência de
Occupy Wall Street, Primavera Árabe, entre outras, especialmente as
marchas de 2013?

Orlando Calheiros – Como disse, todos estes movimentos tiveram em comum


uma relação profunda com as redes sociais. Com e como efeito, tiveram como
marca um certo caráter difuso e uma certa velocidade típica das redes. Mais do
que isso, foram movimentos descentralizados, compostos por grupos diversos a
partir de uma causa original, mas que rapidamente ultrapassaram o seu problema
inicial e deram voz a demandas políticas heterogêneas. Tudo se passa como
se, durante estes eventos, uma timeline estivesse nas ruas: inúmeras pessoas
revoltadas, reclamando de coisas diferentes e em um mesmo lugar.

Precisaríamos abrir uma outra entrevista apenas para falar sobre isso, mas o
ponto é: tais revoltas, insurreições, movimentos, como você quiser chamá-los,
refletiram de forma profunda a estrutura das redes onde foram gestados. E não
apenas em termos organizacionais, mas em termos de uma subjetividade
revoltosa.

Os mais pobres foram os mais sacrificados


pela pandemia, foram eles, seus corpos, sua
vida, o que garantiu ao sistema sobreviver
quando todos os demais podiam se preservar

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IHU On-Line – Nesses tempos pandêmicos, somos tensionados a


pensar novas formas de sociedade, especialmente ligadas à relação
com o planeta, o consumo, a concepção de outras cidades, e até uma
outra economia. Em que medida o pensamento de Graeber pode
iluminar essas reflexões?

Orlando Calheiros – A pandemia escancarou um problema óbvio: que o


sistema que vivemos, o capitalismo global, o neoliberalismo etc…, tem um limite.
O limite não é apenas a terra, como os liberais colocavam – pensando aqui na
oposição entre Terra e Mundo na obra de Arendt –, mas a própria vida como
um todo. A vida é o limite do capitalismo, pois o capitalismo opera, avança,
consumindo-a. Os mais pobres foram os mais sacrificados pela pandemia, foram
eles, seus corpos, sua vida, o que garantiu ao sistema sobreviver quando todos os
demais podiam se preservar em seus lares. A pandemia explicitou o óbvio: que o
capitalismo é a grande religião sacrificial da nossa hora.

E o que nos leva a isso? O que nos leva a naturalizar esse holocausto em nome
dos fluxos do capital? Acho que alguns dos problemas levantados em seu livro
Dívida nos oferecem argumentos interessantes para entender como esse processo
se tornou global, como ainda persiste.

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voluntarismo, muito pelo contrário, ela
aponta para uma relação não régia com a
vida – Orlando Calheiros

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IHU On-Line – Esses tempos também têm revelado uma série de


questões, e até limites, a algumas instituições. Entre elas o próprio
saber científico e a academia. Pensando numa ideia de renovação,
reavaliações, um pouco mais de anarquismo poderia contribuir com
uma oxigenação da academia?

Orlando Calheiros – Como o próprio Graeber demonstrou, não é como se o


anarquismo não estivesse ali na academia, ele apenas não estava de forma
explícita. Contudo, acho que o anarquismo, a sua essência – que diz mais respeito
a uma forma de se relacionar com um problema do que a uma solução específica –
pode sim oxigenar a academia. Na medida em que a análise, o engajamento,
deveria se comprometer com um aspecto não régio, não estatal. E isso, esse
movimento, poderia, por fim, libertar as potências criativas, verdadeiramente
criativas da ciência. É assim que vejo, por exemplo, o Une autre science est
possible de Isabelle Stengers (e uma série de outros escritos).

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como mero apêndice do projeto colonial. O que vale por aqui, vale alhures.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Orlando Calheiros – Gostaria de ressaltar que anarquia não é sinônimo de


desordem, de voluntarismo, muito pelo contrário, ela aponta para uma relação
não régia com a vida, isto é, busca uma solução não estatal para os
problemas. E que o ato de pensar – pensar sobre o pensar – pode e deve ser
encarado como um desses “problemas” e, portanto, passível de uma abordagem
anarquista.

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