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Cidadania Cultural: entre a democratização da cultura e a democracia cultural

Article  in  PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura · May 2018


DOI: 10.22409/pragmatizes2018.14.a10477

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1 author:

Valmir de Souza
Universidade Guarulhos
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Ano 8, número 14, semestral, out/2017 a mar/ 2018

Cidadania Cultural:
entre a democratização da cultura e a democracia cultural

Cidadania Cultural:
entre la democratización de la cultura e la democracia cultural

Cultural Citizenship:
between democratization of the culture and cultural democracy

Valmir de SouzaI

Resumo:

Palavras chave: Análise de dois paradigmas de políticas culturais, democratização da


cultural e democracia cultural, apresentando diferentes experiências de
Cultura gestão cultural na Europa e no Brasil que adotaram estes dois modelos,
com ênfase na gestão cultural em São Paulo.
Democracia

Democratização

Gestão

Política cultural

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pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura

Resumen:

Análisis de dos paradigmas de políticas culturales, democratización de Palabras clave:


la cultura y democracia cultural, presentando diferentes experiencias de
gestión cultural en Europa y Brasil que adoptaron estos dos modelos, Cultura
con énfasis en la gestión cultural en São Paulo.
Democracia

Democratización

Gestión

Política Cultural

Abstract:

Keywords: Analysis of two paradigms of cultural policies, cultural democratization


and cultural democracy, presenting different experiences of cultural
Culture management in Europe and Brazil that adopted these two models,
with emphasis on cultural management in São Paulo.
Democracy

Democratization

Management

Cultural Policy

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direito ao acesso à cultura artística. Mas


além do acesso, também pressupõe a pro-
dução de um tipo de arte e cultura que se
Cidadania Cultural: baseia na cultura estabelecida. Portanto,
entre a democratização da cultura junto com a distribuição dos bens culturais
e a democracia cultural de uma elite, haveria a possibilidade de se
fazer arte, com os critérios da produção
cultural vigente.
Serão discutidos, neste artigo, dois
paradigmas de política cultural: a demo- Esta prática apoia-se na burocracia
cratização da cultura, voltada para a di- cultural para dar conta destas tarefas, o
fusão da cultura de elite e a democracia que pressupõe a ação do Estado. O mote
cultural que enfatiza o reconhecimento aqui seria a cultura ao alcance de todos, e
da produção autônoma. Este tema tem o cidadão seria visto como receptáculo de
recebido a atenção por parte de estudio- uma ação cultural do Estado ou da iniciati-
sos das políticas culturais com enfoques va privada (ANDER-EGG, 1987, p. 42-45).
mais voltados para as produções e ativi-
dades culturais. Depois de apresentar os Corroborando esta linha de racio-
paradigmas, apontaremos para algumas cínio, e centrado na experiência de pa-
políticas clássicas que operaram com es- íses latino-americanos, Nestor Garcia
tes modelos, principalmente na Inglaterra Canclini afirma: “Este paradigma [demo-
e na França. À luz dos dois paradigmas, cratização da cultura] concebe a política
vamos analisar a gestão cultural em São cultural como um programa de distribui-
Paulo e sua Política de Cidadania Cultural ção e popularização da arte, o conheci-
que incorporava elementos dos dois mo- mento científico e as demais formas de
delos, ainda que na prática da gestão te- ‘alta cultura’. Sua hipótese se baseia na
nha preponderado a estratégia da difusão ideia de que uma melhor difusão poderá
e fruição de bens culturais. corrigir as desigualdades no aceso aos
bens simbólicos.” (CANCLINI, 1987, p.
46, tradução própria).
Democratização da cultura
Esta concepção, tendo como obje-
Para Ezequiel Ander-Egg (1987), o tivo a difusão cultural, opera com o con-
paradigma da democratização da cultura ceito de cultura restrito ao campo das
pretende ampliar o acesso do grande pú- artes consagradas. Estas ideias têm sido
blico à cultura e à vida artística, caracte- disseminadas e praticadas por duas tra-
rizando-se por distribuir os benefícios da dições de políticas culturais, que iremos
cultura para a população, mediante a difu- revisar brevemente por trazerem elemen-
são desde as instituições, e consistiria em tos que auxiliam no estudo da gestão cul-
proporcionar conhecimentos e serviços tural em São Paulo.
da elite cultural, buscando diminuir a de-
sigualdade no acesso aos bens culturais,
bem como ao patrimônio histórico. A tradição inglesa

Aí predomina a ideia de um público A primeira tradição, iniciada nos


consumidor de cultura, receptor de bens anos 1940, tem como base a atuação do
e serviços, e se utiliza dos “templos cul- Arts Council (A.C.), na Inglaterra, inaugu-
turais” como lugares privilegiados de re- rado por John Maynard Keynes, em 1946.
alização da ação cultural, com ênfase no Este órgão foi criado em um momento

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em que o Estado, através das artes e da tura de classes alta e média, principalmente
cultura, trabalharia para levantar a auto- na fase “fundacional” (1945-65), considera-
estima da população inglesa, no Pós-Se- da “idealista”, e que baseava seu discurso
gunda Guerra, apoiando uma política de na universalização de uma monocultura
retomada do desenvolvimento econômico, branca e urbana, pretendendo ao mesmo
buscando, além de financiar as artes, pre- tempo o “esclarecimento” artístico de uma
servar a herança cultural nacional. Este é camada social de produtores e fruidores de
o momento do Welfare State (VOLKER- artes (VOLKERLING, 1996, p. 193-4).
LING, 1996, p. 196)

O Arts Council estabeleceu uma A tradição francesa


política que operava no sentido de investir
nas artes através de “corpos governamen- A segunda tradição, francesa, te-
tais semiautônomos” que repassavam ria a centralidade do Estado como di-
fundos às instituições privadas. Sobre a ferencial em relação à política cultural
instalação do A.C, Keynes observa, em inglesa. A ideia de cidadania e de polí-
um programa de rádio da BBC, que “um tica cultural tem sido considerada uma
corpo semi-independente é dotado de “invenção” francesa, tradição na qual o
fundos modestos para estimular e manter Estado teria o papel de subvenciona-
quaisquer corpos ou sociedades [artísti- dor de programas culturais e artísticos,
cos] sejam da iniciativa privada ou local.” apoiando projetos e criando empregos
(apud UPCHURCH, 2004, p. 203, trad. públicos (URFALINO, 1989 e 2004). En-
própria). Essa modalidade de política cul- fim, o Estado atuaria diretamente como
tural era operada por comissões indepen- patrocinador das artes e da cultura.
dentes que julgariam os projetos e pro-
postas artísticas (avaliação pelos pares), Nesta tradição, principalmente em
aplicando-se o princípio do “arm’s length” seus inícios, o domínio das políticas cul-
(administração a distância), ainda que se turais do Estado se limitou, durante mui-
considerasse o papel do Estado como fo- to tempo à preservação do patrimônio, à
mentador das artes. Para a época, esta difusão do que era produzido pela elite
política se apresentava como uma inova- cultural, apoiando a criação artística tra-
ção no financiamento das artes. dicional. Mais recentemente, ampliou o
escopo da atuação do Estado, com a des-
Em sua atuação no A.C., Keynes centralização cultural, mas ainda assim,
sofreu críticas sobre o direcionamento dos conservaram-se as tradições de apoio es-
subsídios. Para alguns, suas intervenções tatal (MOULINIER, 1999, p. 27 e 29). As-
não procuravam desenvolver a criativida- sim como na tradição inglesa, esta política
de artística, mas sim as instituições que cultural ainda estaria pautada pela prática
abrigavam os artistas de áreas como ópe- difusionista da cultura consagrada, não
ra, dança e teatro, que teriam recebido as levando em conta a produção cultural de
maiores porcentagens das verbas públicas grupos e comunidades não hegemônicos
(UPCHURCH, 2004, p. 204, 214 e 216). presentes na sociedade francesa. O con-
ceito subjacente nessas duas tradições de
Esta política cultural tinha como ob- política cultural estava restrito às produ-
jetivo investir na produção da “boa cultura” ções artísticas estabelecidas.
para todos e não apenas para uma classe
alta que já era consumidora dessa cultura. A experiência francesa dos anos
Ainda assim, este modelo estava voltado 1950 a 1970 sofreu reavaliações e críti-
para a produção e reprodução de uma cul- cas por parte de estudiosos e pesquisado-

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res que se debruçaram sobre as gestões desenvolver o conjunto de suas potenciali-


culturais daquele país, devido ao caráter dades, com especial atenção à identidade
“restrito” da política francesa de democra- cultural. Esta política busca valorizar as
tização da cultura. Sabe-se que a partir produções e ações culturais independen-
dos 1970, a ideia de desenvolvimento cul- tes, sem que o Estado interfira nas esco-
tural e a ampliação do conceito de cultura, lhas e nos fazeres de grupos e comunida-
a política tradicional do Ministério da Cul- des (ANDER-EGG, 1987, p. 41-45).
tura teve de ser revista à luz dessas novas
percepções (DONNAT, 2003). Neste diapasão, Néstor Garcia
Canclini (1987), adota a expressão demo-
Assim, o que diferencia as duas tra- cracia participativa com sentido asseme-
dições acima citadas, é a menor ou maior lhado ao de democracia cultural como si-
ênfase dada ao papel do Estado. Na tra- nônimo de um projeto abrangente em que
dição inglesa, este teria função de finan- a população participasse das decisões do
ciar sem interferir no processo de escolha fazer cultural. Afirma o autor:
do que viria a ser financiado, utilizando-se
para isso de comissões julgadoras autô- Diferentemente das posições unidi-
nomas do poder público. Já na tradição mensionais e elitistas que sustentam
francesa, o Estado teria função precípua os paradigmas do mecenato, tradi-
na definição dos investimentos públicos, cionalista, estatal e privatizante, e se
através de subvenções diretas. As duas infiltram inclusive no modelo demo-
políticas, no entanto, convergem quan- cratizador, esta concepção defende
to ao paradigma da democratização do a coexistência de múltiplas culturas
acesso às belas artes. em uma mesma sociedade, propicia
seu desenvolvimento autônomo, e re-
lações igualitárias de participação de
Democracia cultural cada indivíduo em cada cultura e de
cada cultura em relação às demais.
O outro paradigma de política pú- Posto que não há somente uma cultu-
blica voltada para a cultura, a democracia ra legítima, a política cultural não deve
cultural, teria a função de proporcionar a dedicar-se a difundir só [cultura] hege-
indivíduos, grupos e comunidades ins- mônica, mas a promover o desenvolvi-
trumentos necessários para desenvolver mento de todas que sejam representa-
suas potencialidades culturais, com a tivas de toda a sociedade (CANCLINI,
possibilidade de os cidadãos participarem 1987, p. 50, 51, tradução própria).
ativamente da vida social. Nesta perspec-
tiva, a população se apropriaria de meios Canclini destaca que seria natural
necessários para desenvolver suas pró- que os partidos de esquerda se envolves-
prias práticas, dinamizando a cultura local sem com esta concepção, já que histori-
a partir de suas referências e não tendo camente lutaram por democracia e pela
como horizonte somente as práticas ar- democratização da cultura. Mas aponta
tísticas consagradas. O centro desta con- que mesmo partidos progressistas “parti-
cepção tem a ver com a cultura local e au- ciparam de concepções antidemocráticas,
tônoma, enfatizando-se a cultura realizada ou pela via do estatismo, ou pela do par-
por todos. O mais importante passa a ser tidocratismo, e acabaram em alguns mo-
a participação na criação e nos proces- mentos impondo “às classes subalternas
sos culturais. Aqui, a cultura é vista como concepções paternalistas de democratiza-
processo em que cada um possa conduzir ção.” (CANCLINI, 1987, p. 50, 51, tradu-
sua vida de modo autônomo, com o fim de ção própria).

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Canclini e Ander-Egg concordam lares urbanas que tinham poucas oportu-


que este paradigma se baseia num con- nidades de produzir cultura (BIANCHINI,
ceito ampliado de cultura, indo além da 1987, p. 103 e 104).
cultura mainstream. Essa abrangência do
conceito se fez notar em vários lugares Essa política de democracia cul-
que buscaram inovar as políticas culturais tural, no âmbito da “virada comunitária”,
com a participação de um maior núme- passou a dar destaque ao multicultura-
ro de pessoas no campo da cultura. Por lismo, se posicionando na contracorrente
exemplo, no caso da tradição inglesa, es- da fase fundacional da política cultural in-
pecialmente do Arts Council, Franco Bian- glesa. Passou-se a valorizar a presença
chini (1987) mostra como a gestão dos tra- e o trabalho de vários grupos, e também
balhistas no Conselho (GLC, 1981 a 1986) a se pensar no desenvolvimento comu-
politizou a questão cultural, promovendo nitário. Essa prática se disseminou por
uma visão de cultura mais ampla, depois vários países, como Austrália, Nova Ze-
de um período de despolitização do A. C., lândia e Canadá, incluindo questões li-
que também tinha como horizonte as prá- gadas às etnias e povos nativos dessas
ticas culturais do establishment. regiões. Previa-se aí a participação direta
de grupos e comunidades, no sentido de
Neste período, o Conselho incen- empoderar esses sujeitos para efetuar
tivou ações ligadas a grupos e movimen- mudanças culturais, inclusive escolhendo
tos sociais, de gênero, etnias, etc, indo suas próprias criações e ações culturais.
além da área estritamente artística, am- (VOLKERLING, 1996, p. 194, 198). Com
pliando o conceito de cultura na política isso, percebe-se uma forte inflexão em
cultural. A política dos trabalhistas tam- relação à ideia da democratização da cul-
bém enfatizava a manutenção e melhoria tura, promovendo uma guinada também
dos equipamentos tradicionais, a progra- na concepção de cultura pressuposta nas
mação cultural em praças públicas para políticas culturais.
ampliar o acesso da sociedade londrina
aos eventos, especialmente das popula- A tabela 1 ilustra e sintetiza os dois
ções das periferias e das culturas popu- paradigmas analisados.

Tabela 1: Políticas clássicas de produção e difusão cultural


Tabela reproduzida (com alterações) a partir do trabalho de Luciana Lima, Pablo Ortellado e Valmir de Souza (2013)

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Contexto da Política de Cidadania São Paulo teria que se constituir com


Cultural (1989-1992) base na ideia de direito à cultura preco-
nizado no Programa de Governo (CHAUÍ,
Durante os anos 1980 houve gran- 2006, p. 136). Conceber a cultura como
de efervescência nos debates sobre as direito constituiu, para a época, uma no-
questões culturais no Brasil. No campo vidade no campo das políticas públicas, e
político progressista foram elaboradas implicava colocar novas tarefas ao Esta-
propostas de políticas culturais, que não do como indutor do fazer cultural.
eram levadas em conta no conjunto das
políticas sociais. Alguns governos locais Essa política se posicionava como
progressistas passaram a destacar a antagonista em relação à fragilização do
questão cultural nos programas e políticas papel do Estado no campo social nos anos
sociais, como foi o caso da administração 1980-90, e invocava o papel das políticas
em São Paulo, com a política de Cidada- públicas como essenciais para a popula-
nia Cultural que passou a ser uma das re- ção. Para isso a política de Cidadania Cul-
ferências no país. Outras administrações tural teria de enfrentar a tradição do popu-
também incrementaram seus orçamentos lismo cultural e a onda neoliberal (CHAUÍ,
na área de cultura, como Santo André, 1992, p. 5). Marilena Chauí se opunha
Porto Alegre, São Bernardo do Campo, frontalmente às forças de mercado e às
como documentado na Revista N. 12 Do forças da indústria cultural, predominan-
Instituto Pólis. O caso de São Paulo se tes no período da gestão, contrapondo a
tornou emblemático devido à importância essas forças a ideia de direito à cultura.
estratégica do município no contexto na-
cional e também pela dimensão territorial Assim, a política cultural desse pe-
e simbólica da cidade. ríodo pretendia promover uma política de
acesso à cultura, combinada com a expe-
A gestão pública municipal se de- rimentação como um direito. Em seu dis-
parou com a falta de uma tradição de curso de posse, a secretária indica uma
política cultural que tivesse a cidadania política direcionada aos produtores e cria-
como foco, o que a levaria a romper com dores de símbolos, à experimentação ar-
a série histórica da ausência do Estado tística “de vanguarda”, mas também aos
nesse campo. O problema da falta de trabalhadores. Vejamos:
tradição nessa área se localizava em
outros lugares do Brasil, como registra- Se a Secretaria de Cultura pretende
do no Modo Petista de Governar: “... no ser espaço de representação e de par-
caso da cultura, os secretários munici- ticipação dos que trabalham na cria-
pais e coordenadores municipais tiveram ção dos símbolos que constituem a
que inventar por conta e risco uma polí- cultura, se pretende ser o espaço de
tica cultural no âmbito dos municípios” encontro para os que desejam fruir os
(BITTAR, p. 194). Para a “reinvenção de bens culturais e descobrir suas capa-
uma tradição” a gestão revisitou gesto- cidades como criadores de símbolos,
res públicos anteriores, ressignifican- ela só poderá fazê-lo concebendo a
do projetos culturais que se orientavam cultura do ponto de vista da cidada-
pelo paradigma da democratização da nia cultural. Isto significa que tomará
cultura, e buscando a participação das a cultura como um direito do cidadão
comunidades nos projetos da cidade. e, em particular, como direito à cria-
ção desse direito por todos aqueles
Um do s pilares da reinven- que têm sido sistemática e delibera-
ção da política cultural para cidade de damente excluídos do direito à cultu-

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ra neste país: os trabalhadores, tidos fase no direito à cultura e direito à cida-


como incompetentes sociais, políticos de, esbarrou na burocracia despreparada
e culturais, submetidos à condição para implementar projetos que não se en-
de receptores de ideias, ordens, nor- quadrassem na visão cultural hegemôni-
mas, valores e práticas cuja origem, ca. Assim, a estrutura do Estado colocou
cujo sentido e cuja finalidade lhes es- grandes empecilhos para gerir a cultura
capam. Mas esta Secretaria também na cidade, principalmente no que se refe-
dedicará seus esforços para promover re ao arcabouço jurídico.
o direito à cultura daqueles criadores
cujo trabalho experimental nas artes,
nas técnicas, nas ciências e nas prá- Política de Cidadania Cultural
ticas socioculturais têm sido bloquea- e os dois paradigmas
do, impedido, censurado e não reco-
nhecido pelos poderes estabelecidos Parte da tradição inglesa de políti-
(CHAUÍ, 1989, p.3). ca cultural voltada para a população teve
ressonância nas diretrizes do Projeto de
Depreende-se daí que a criativida- Cidadania Cultural, desenvolvido durante
de dos trabalhadores e a criação artística a gestão cultural de Marilena Chauí (1989-
experimental seriam tratadas igualmente. 92), que apontava para uma visão repu-
Sem abandonar as práticas mais consa- blicana e democrática (FARIA, 1997). Em
gradas de produção cultural, a política si- seu discurso de posse, Chauí aponta para
nalizava um avanço significativo nos direi- o direito à cultura dos velhos, crianças, jo-
tos culturais dos “não-artistas”. Esta tensão vens, estudantes, diferentes etnias, pes-
perpassa o projeto, pois ainda que reco- soas com necessidades especiais, ecolo-
nheça a cultura criada pelos trabalhadores gistas, mulheres, etc. (CHAUÍ, 1989, p. 4),
(bailes da periferia e festas populares), o pautas identitárias que eram um avanço
texto afirma a necessidade de “descobrir notável em relação aos discursos prece-
(…) suas [dos trabalhadores] capacidades dentes na cidade de São Paulo. Também
como criadores de símbolos”, em outras houve eventos realizados em praças,
palavras, de ajudar os trabalhadores a de- eventos de rua e “aulas públicas” que te-
senvolverem suas capacidades de produ- matizaram questões sociais e políticas, o
tores culturais, através do ensino da arte que lembra a política cultural do GLC em
aos que querem praticar cultura amadora. Londres no período mencionado. Enfim,
pode-se perceber a tentativa de estabele-
Essa política promoveu a democra- cer uma política cultural que abrangesse
tização dos bens artísticos, mas encontrou a população como um todo e não só seg-
barreiras para implementar a democracia mentos artísticos, o que denota o possível
cultural nos termos propostos inicialmen- alargamento do conceito de cultura.
te, pois esta exigiria um esforço coletivo
para romper com as práticas conceituais Porém, no caso do direito à produ-
então vigentes. ção de cultura por parte da população, a
gestão paulistana teria se limitado a pro-
Um dos avanços dessa experiên- porcionar instrumentos para produzir um
cia foi a ampliação da ideia de cultura, determinado tipo de cultura, não indo
repensada na dimensão cidadã e a re- além da capacitação de agentes culturais,
visão da atuação do Estado em relação o que coloca em questão a proposta de
às manifestações culturais e artísticas da uma política cultural “radicalmente” demo-
sociedade. Uma política que pretendia crática, isto é, uma democracia cultural
transformações profundas, com forte ên- efetiva, que valorizasse a cultura pratica-

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da pela população. O que a aproximava e externo da Secretaria.” (CHAUÍ, 1989, p.


mais ao paradigma de democratização 5). Depreende-se daí o peso que a ação
cultural francês. Isso demonstra os limites política seria o norte da ação cultural da
e dilemas das políticas culturais que pre- SMC. Essa ideia carregava muito da práti-
tendiam alterar as condições de produção ca petista que investia na participação da
e criação culturais e artísticas. sociedade (movimentos sociais, sindica-
tos, associações) em decisões de gover-
Lembre-se que a expressão demo- no, o que implicava, de certa forma, uma
cracia participativa, pensada por Canclini, “politização” dos processos culturais.
se aproximava da formulação apresen-
tada por Marilena Chauí da democracia Na perspectiva do documento de
cultural, enfatizando a ideia de participa- Chauí, as noções de democratização da
ção política. Vejamos a proposta de Chauí cultura e democracia cultural são de al-
para a atuação da Secretaria Municipal de guma forma embaralhadas, denotando
Cultura (SMC) de São Paulo, no discurso que uma expressão implica a outra, con-
de posse, “Reflexos da cidadania”: cretizado nas expressões “direito à pro-
dução” e “direito à participação” - como
[...] a Secretaria de Cultura do gover- se o incremento da participação política
no do PT, enquanto campo de cultura (nas políticas culturais) implicasse na
política, irá pautar-se por duas ideias- participação na produção cultural. No
-práticas fundamentais: e de que seu polo da democratização da cultura terí-
trabalho principal é o da criação de amos a difusão e produção cultural, en-
condições para o advento da cidada- quanto que no polo da democracia cul-
nia político-cultural dos trabalhadores tural teríamos a “participação cultural”.
e de que esse advento exige um tra- Junto com esta última, na prática a de-
balho de modificação nos valores e mocratização da cultura em sentido ar-
comportamentos da classe dominante tístico-cultural ganhou grande destaque
para que esta tenha condições de pas- na ação cultural da Secretaria. Só no
sar de um universo determinado por final da gestão é que a democracia cul-
valores e comportamentos senhoriais tural começou a dar frutos, por exemplo,
para um campo de forças políticas com o aumento significativo de presen-
conflitante e com direito à expressão e tes em assembleias e audiências para
ao exercício efetivo, isto é, à compre- definição do orçamento.
ensão de que a classe trabalhadora
não é escrava nem serva, mas cidadã. Além das tradições internacionais
É nessa perspectiva que definimos a já citadas, Chauí dialoga com as gestões
democracia cultural e a democratiza- e políticas culturais anteriores a ela na
ção da cultura. (CHAUÍ, 1989, p. 3, cidade de São Paulo. Vale lembrar o tra-
grafia atualizada) balho realizado por várias administrações
culturais, desde Mário de Andrade até
Para a autora, a democracia cul- Gianfrancesco Guarnieri. Em geral, estas
tural estaria articulada à ideia de partici- gestões culturais se orientavam pelo para-
pação, cabendo à Secretaria, “em seu digma da democratização da cultura, ain-
trabalho de cultura política, [...] criar um da que em alguns momentos buscassem
campo concreto de participação cultural a participação das comunidades nos pro-
capaz de intervir ativamente no todo da jetos culturais da SMC. Mas o foco dessas
política.” “Democratizar a cultura signifi- administrações anteriores foi uma políti-
ca fazer do direito à opinião e à decisão o ca de difusão dos bens culturais da elite.
campo definido do funcionamento interno (SOUZA, 2012, p. 54).

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No caso da Cidadania Cultural, o sociedade, com ênfase na participação


projeto colocava em jogo também as no- política, incentivando atividades artísti-
ções expostas anteriormente, tanto em ní- cas amadoras nas Bibliotecas, Casas de
vel internacional como em nível nacional. Cultura e em outros equipamentos, o que
No entanto, a proposta da SMC de trans- sinaliza a transição do modelo da demo-
formar as práticas culturais teria enfatizado cratização da cultura para o da democra-
mais uma política de democratização da cia cultural. Havia aí a abertura de espa-
cultura do que a política de democracia cul- ços públicos para a apreciação e fruição
tural como forma de radicalizar os direitos das linguagens artísticas e o incentivo à
de grupos e pessoas a produzir sua própria participação cultural característicos da
cultura de modo autônomo, ainda que hou- democracia comunitária.
vesse intenção explícita dos governantes
de valorizar as culturas das camadas mais Também nota-se a combinação
pobres da população e dos trabalhadores. de práticas culturais amadoras, verifica-
da em atividades como oficinas e cursos.
Desse modo, a política adquiriu caracte-
Democratização e democracia cultural rísticas que mesclavam os dois paradig-
mas em suas variantes. Sublinhe-se que
Apesar de não explicitar referên- a conotação de apoio à arte amadora não
cias teóricas e experiências de gestão se encontrava explicitada e, a princípio,
cultural de outros países, o projeto de não orientava a política de democracia
Cidadania Cultural da Secretaria Mu- cultural de São Paulo.
nicipal de Cultura de São Paulo estava
sintonizado com as propostas da de- Assim, para além de uma lógica
mocratização da cultura e da democra- binária, os dois paradigmas coexistem
cia cultural das experiências na Euro- em diversos programas e projetos da
pa (CHARTRAND, 1989; VOLERLING, SMC. Vista deste ponto de vista, a ex-
1996) e também na América Latina. pressão “democracia cultural” compor-
taria dois sentidos: o sentido da parti-
Em se u discurso de posse já men- cipação (com resultados incipientes) e
cionado, Chauí propunha a garantia do di- o sentido pragmático de colocar bens
reito à cultura (produção, experimentação, culturais à disposição da população
fruição, participação e informação) e sina- (bastante evidenciado). Assim, a polí-
lizava para o direito de vários segmentos tica de democracia cultural avançou no
da sociedade (Chauí, 1989, p. 4). Para sentido de propiciar ferramentas para
isso, acionou um repertório de atividades a prática e fruição cultural nos limites
– cursos, oficinas, eventos em praças, da arte tradicional, o que a aproxima-
ruas e “aulas públicas” - que tematizaram ria ao paradigma da democratização
questões sociais e políticas da época. da cultura.

Esta política abria o leque da SMC Apesar dos esforços da SMC para
para a população em geral e não apenas quebrar barreiras administrativas e con-
para segmentos artísticos, o que lembra a ceituais, junto com a política de demo-
política do Arts Council inglês. Os elemen- cratização, e das propostas de criar me-
tos que lembram a tradição francesa cons- canismos de participação, incentivando
tavam das ideias de Cidadania Cultural. mudanças da cultura política; apesar de
ampliar os direitos culturais como direito
A política da SMC preconizava o de cidadania, resultou disso uma política
apoio à produção cultural de grupos da predominantemente difusionista.

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Bibliografia PAOLI, Maria Célia. Diálogos com Marilena Chauí.


São Paulo: Barcarolla, 2011.
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Rio de Janeiro: 2013. lhos e coordenador da área de cultura do Instituto Pólis.
Contato: valmir@polis.org.br

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br
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