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Extracção da Pedra da Loucura

A lejandra P izarnik

Extracção da Pedra
da Loucura
(1968)

Tradução de Miguel Filipe M.

língua morta
À minha mãe
I
(1966)
CANTORA NOCTURNA

Joe, macht die Musik von damals nacht…

A que morreu sobre o seu vestido azul está cantando.


Canta imbuída de morte ao sol da sua ebriedade. Dentro da
sua canção há um vestido azul, há um cavalo branco, há um
coração verde tatuado com os ecos do pulsar do seu coração
morto. Exposta a todas as perdições, ela canta junto a uma
menina extraviada que é ela: o seu amuleto de boa sorte. E,
apesar da névoa verde nos lábios e do frio cinzento nos olhos,
a sua voz corrói a distância que se abre entre a sede e a mão
que procura o copo. Ela canta.

A Olga Orozco

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VERTIGENS OU CONTEMPLAÇÃO DE
QUALQUER COISA QUE TERMINA

Este lilás desfolha-se.


De si mesmo cai
e oculta a sua antiga sombra.
Hei-de morrer de coisas assim.

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LANTERNA SURDA

Os ausentes sopram e a noite é densa. A noite tem a cor


das pálpebras do morto.
Toda a noite faço a noite. Toda a noite escrevo. Palavra
a palavra eu escrevo a noite.

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PRIVILÉGIO

Perdido já o nome que me chamava,


o seu rosto rola por mim
como o som da água na noite,
da água caindo na água.
E é o seu sorriso o último sobrevivente,
não a minha memória.

II

O mais belo
na noite dos que partem,
ó desejado,
é sem fim o teu não voltar,
sombra és até ao dia dos dias.

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CONTEMPLAÇÃO

Morreram as formas apavoradas e não houve mais um


fora e um dentro. Ninguém escutava o lugar porque o lugar
não existia.
Com o propósito de escutar escutam o lugar. No fundo da
tua máscara relampeja a noite. Atravessam-te com grasnidos.
Martelam-te com pássaros negros. Cores inimigas unem-se
na tragédia.

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NUIT DU COEUR

Outono no azul de um muro: conheço o agasalho das


pequenas mortas.
A cada noite, na duração de um grito, surge uma som-
bra nova. A sós dança a misteriosa autónoma. Partilho o seu
medo de animal muito jovem na primeira noite das caçadas.

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CONTO DE INVERNO

A luz do vento entre os pinheiros. Compreendo estes


símbolos de tristeza incandescente?

Um enforcado balança na árvore marcado com a cruz


lilás.

Até que logrou deslizar para fora do meu sonho e entrar


no meu quarto, pela janela, cúmplice do vento da meia-noite.

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NA OUTRA MADRUGADA

Vejo crescer para os meus olhos figuras de silêncio e


desesperadas. Escuto cinzentas, densas vozes no antigo lugar
do coração.

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DESFUNDAÇÃO

Alguém quis abrir alguma porta. As suas mãos amarra-


das à sua prisão de ossos de mau agoiro doem.
Toda a noite porfiou com a sua nova sombra. Choveu
dentro da madrugada e alguém martelava com salgueiros.
A infância implora desde as minhas noites de cripta.
A música exala cores ingénuas.
Pássaros cinzentos no amanhecer são para a janela
fechada o que os meus males são para o meu poema.

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FIGURAS E SILÊNCIOS

Mãos crispadas confinam-me ao exílio.


Ajuda-me a não pedir ajuda.
Querem anoitecer-me, vão morrer-me.
Ajuda-me a não pedir ajuda.

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FRAGMENTOS PARA DOMINAR O SILÊNCIO

As forças da linguagem são as damas solitárias, desola-


das, que cantam através da minha voz que escuto ao longe. E
longe, na negra areia, jaz uma menina densa de música ances-
tral. Onde está a verdadeira morte? Quis alumiar-me à luz da
minha falta de luz. Os ramos morrem na memória. A jazente
aninha-se em mim com a sua máscara de loba. A que não pôde
mais e implorou por chamas e ardemos.

II

Quando da casa da linguagem voa o telhado e as pala-


vras não nos protegem, eu falo.

As damas de rubro perderam-se dentro das suas más-


caras mas hão-de regressar para soluçar entre flores.

Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados se-


lando as fendas do silêncio. Escuto o teu dulcíssimo pranto
florescendo o meu silêncio cinzento.

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III

A morte restituiu ao silêncio o seu prestígio sedutor.


E eu não direi o meu poema e eu hei-de dizê-lo. Mesmo que
o poema (aqui, agora) não tenha sentido, não tenha destino.

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SORTILÉGIOS

E as damas vestidas de rubro para meu pesar e com o


meu pesar insubmissas em meu sopro, agachadas como fetos
de escorpiões no lado mais interno da minha nuca, as mães de
rubro que me aspiram o único calor que me dou com o meu
coração que mal pôde alguma vez pulsar, a mim que sempre
tive de aprender sozinha como se faz para beber e comer e
respirar e a mim que ninguém me ensinou a chorar e nin-
guém me ensinará nem sequer as grandes damas aderidas aos
segredos da minha respiração com babas avermelhadas e véus
flutuantes de sangue, do meu sangue, do meu apenas, o que
procurei e agora vêm beber de mim após ter morrido o rei
que flutua no rio e move os olhos e sorri mas está morto e
quando alguém está morto morto está por mais que sorria e
as grandes, as trágicas damas de rubro mataram aquele que
rio abaixo vai e eu permaneço como refém em perpétua pos-
sessão.

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II
(1963)
UM SONHO ONDE O SILÊNCIO É DE OURO

O cão do Inverno morde o meu sorriso. Foi na ponte.


Eu estava despida e tinha um chapéu com flores e arrastava
o meu cadáver também despido e com um chapéu de folhas
secas.
Tive muitos amores – disse – mas o mais belo foi o
meu amor pelos espelhos.

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TÊTE DE JEUNE FILLE (ODILON REDON)

de música a chuva
de silêncio os anos
que passam numa noite
o meu corpo de si jamais
poderá lembrar-se.

A André Pieyre de Mandiargues

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RESGATE

E é sempre o jardim de lilases do outro lado do rio. Se a


alma pergunta se fica longe responder-se-lhe-á: do outro lado
do rio, não deste mas daquele.

A Octavio Paz

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ESCRITO NO EL ESCORIAL

chamo-te
tal como outrora ao amigo a amiga
em pequenas canções
tementes da alva

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O SOL, O POEMA

Barcos sobre a água natal.


Água negra, animal de olvido. Água lilás, única vigília.
O soalheiro mistério das vozes no parque. Ó tão antigo.

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ESTAR

Vigias desde este quarto


onde a sombra temível é a tua.

Não há silêncio aqui


mas frases que evitas ouvir.

Símbolos nos muros


narram a bela distância.

(Não deixes que morra


sem voltar a ver-te.)

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AS PROMESSAS DA MÚSICA

Detrás de um muro branco a variedade do arco-íris.


O pulso na sua jaula está fazendo o Outono. É o despertar
das oferendas. Um jardim recém-criado, um pranto detrás da
música. E que se escute sempre, assim ninguém assistirá ao
movimento do nascimento, à mímica das oferendas, ao dis-
curso daquela que sou acorrentada a esta silenciosa que tam-
bém sou. E que de mim não reste mais que a alegria de quem
pediu licença para entrar e lhe foi concedida. É a música, é a
morte, o que eu quis dizer em noites variadas como as cores
do bosque.

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IMINÊNCIA

E o cais cinzento e as casas rubras E não é ainda a


solidão E os olhos vêem um quadrado negro com um círculo
de música lilás no centro E o jardim das delícias só existe fora
dos jardins E a solidão é não poder dizê-la E o cais cinzento
e as casas rubras.

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CONTINUIDADE

Não nomear as coisas pelos seus nomes. As coisas têm


limites dentados, vegetação luxuriosa. Mas quem fala no
quarto repleto de olhos? Quem mastiga com uma boca de
papel? Nomes que vêm, sombras com máscaras. Cura-me do
vazio – disse. (A luz amava-se na minha obscuridade. Soube
que não havia quando dei por mim dizendo: sou eu.) Cura-
-me – disse.

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OS ADEUSES DO VERÃO

Suave rumor da maleza crescendo. Sons do que destrói


o vento. Chegam-me como se eu fosse o coração do que existe.
Estivesse eu morta e entrasse também num coração alheio.

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COMO ÁGUA POR SOBRE UMA PEDRA

a quem regressa em busca da sua antiga busca


a noite se fecha como água por sobre uma pedra
como ar por sobre um pássaro
como se fecham dois corpos quando se amam

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NUM OUTONO ANTIGO

Como se chama o nome?

Uma cor como um ataúde, uma transparência que não


atravessarás.

E como é possível não saber tanto?

A Marie-Jeanne Noirot

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III
(1962)
CAMINHOS DO ESPELHO

E sobretudo olhar com inocência. Como se não acon-


tecesse nada, como é certo.

II

Mas a ti quero olhar-te até que o teu rosto se afaste do


meu medo como um pássaro do limite afiado da noite.

III

Como uma menina de giz rosado num muro muito ve-


lho subitamente apagada pela chuva.

IV

Como quando se abre uma flor e revela o coração que


não tem.

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V

Todos os gestos do meu corpo e da minha voz para


fazer de mim a oferenda, o ramo que abandona o vento no
umbral.

VI

Cobre a memória da tua cara com a máscara da que serás


e assusta a criança que foste.

VII

A noite dos dois se dispersou com a névoa. É a estação


dos alimentos frios.

VIII

E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no


fundo, no poço, eu bebia, recordo-me.

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IX

Cair como um animal ferido no lugar que ia ser de reve-


lações.

Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca re-


mendada. Pálpebras remendadas. Esqueci-me. Dentro o ven-
to. Tudo fechado e o vento dentro.

XI

Ao negro sol do silêncio as palavras se douravam.

XII

Porém o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e


escrevo. Não, não estou só. Há alguém aqui e estremece

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XIII

Mesmo quando digo sol e lua e estrela, refiro-me a coisas


que me acontecem.
E que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV

A noite tem a forma de um grito de lobo.

XV

Delícia de perder-se na imagem pressentida. Eu le-


vantei-me do meu cadáver, eu fui em busca de quem sou. Pere-
grina de mim, fui até àquela que dorme num país ao vento.

XVI

A minha queda sem fim para a minha queda sem fim

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onde ninguém me esperou, pois ao procurar quem me espera-
va não vi outra coisa senão a mim mesma.

XVII

Alguma coisa caía no silêncio. A minha última palavra


foi eu mas referia-me à alvorada luminosa.

XVIII

Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A


água treme cheia de vento.

XIX

Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na ma-


nhã. Uma mão desata trevas, uma mão arrasta os cabelos de
uma afogada que não pára de passar pelo espelho. Voltar à
memória do corpo, hei-de voltar aos meus ossos em dolo, hei-
-de compreender o que diz a minha voz.

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IV
(1964)
EXTRACÇÃO DA PEDRA DA LOUCURA

Elles, les âmes (…), sont malades et elles


souffrent et nul ne leur porte-remède; elles
sont blessées et brisées et nul ne les panse.

Ruysbroeck

A luz má aproximou-se e nada é certo. E se penso em


tudo o que li acerca do espírito… Fechei os olhos, vi corpos
luminosos que andavam na névoa, no lugar das ambíguas vizi-
nhanças. Não temas, nada te sobrevirá, já não há violadores
de túmulos. O silêncio, o silêncio sempre, as moedas de ouro
do sonho.

Falo como em mim se fala. Não a minha voz obstinada


em parecer uma voz humana mas a outra que testemunha que
não deixei de morar no bosque.

Se visses a que sem ti dorme num jardim em ruínas


na memória. Nele, eu, ébria de mil mortes, falo de mim a
mim apenas para saber se é verdade que estou debaixo da erva.
Não sei os nomes. A quem contarás que não sabes? Desejas-

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te outra. A outra que és deseja-se outra. Que acontece na
verde alameda? Acontece que não é verde e nem sequer há uma
alameda. E agora brincas a ser escrava para ocultar a tua coroa
outorgada por quem, quem te ungiu, quem te consagrou? A
invisível aldeia da memória mais velha. Perdida por desígnio
próprio, renunciaste ao teu reino pelas cinzas. Quem te ma-
goa recorda-te antigas homenagens. Não obstante, choras fu-
nestamente e evocas a tua loucura e desejas até extraí-la de ti
como se fosse uma pedra, justamente a ela, o teu único privi-
légio. Num muro branco desenhas as alegorias do repouso, e é
sempre uma rainha louca jazendo sob a lua sobre a triste erva
do velho jardim. Mas não fales dos jardins, não fales da lua,
não fales da rosa, não fales do mar. Fala do que sabes. Fala
do que vibra em tua medula e produz luzes e sombras no teu
olhar, fala da dor incessante dos teus ossos, fala da vertigem,
fala da tua respiração, da tua desolação, da tua traição. É tão
obscuro, tão em silêncio o processo a que me obrigo. Oh!
Fala do silêncio!

De súbito possuída por um funesto pressentimento


de um vento negro que me impede de respirar, procurei a
memória de alguma alegria que me servisse de escudo, ou de
arma de defesa ou mesmo de ataque. Parecia o Eclesiastes:
procurei em todas as minhas memórias e nada, nada debaixo

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da aurora de dedos negros. O meu ofício (também no sonho
o exerço) é conjurar e exorcizar. A que horas principiou a des-
graça? Não quero saber. Não quero mais que um silêncio para
mim e para as que fui, um silêncio como a pequena cabana que
as crianças perdidas encontram no bosque. Que sei eu sobre o
que há-de ser de mim se nada rima com nada?

Despenhas-te. És o sem-fim desesperante, igual e não


obstante contrário à noite dos corpos onde mal um manancial
cessa aparece outro que retoma o fim das águas.

Sem o perdão das águas não posso viver. Sem o már-


more final do céu não posso morrer.

Em ti é de noite. Em breve assistirás à corajosa exal-


tação do animal que és. Coração da noite, fala.

Ter morrido em quem se era e em quem se amava, ter e


não ter dado a volta como um céu ao mesmo tempo tormen-
toso e celeste.

Tivesse desejado mais que isto e ao mesmo tempo nada.

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Vai e vem dizendo-se só em solitário vaivém. Um per-
der gota a gota o sentido dos dias. Engodos de conceitos. En-
ganos de vogais. A razão mostra-me a saída do cenário onde
levantaram uma igreja sob a chuva: a mulher-loba deposita
o seu filhote no umbral e foge. Há uma luz tristíssima de
tochas veladas por um sopro maligno. Chora a menina-loba.
Nenhum dos adormecidos a escuta. Todas as pestes e as pra-
gas para os que dormem em paz.

Esta voz ávida vinda de antigos lamentos. Ingenua-


mente existes, mascaras-te de pequena assassina, a ti mesma
provocas medo em frente ao espelho. Fundir-me na terra e
que a terra se feche sobre mim. Êxtase desleal. Tu sabes que
te humilharam até quando te mostravam o sol. Tu sabes que
nunca saberás defender-te, que apenas desejas apresentar-lhes
o troféu, ou seja o teu cadáver, e que o comam e que o bebam.

As moradas do consolo, a consagração da inocência, a


alegria inqualificável do corpo.

Se de súbito uma pintura se anima e o rapaz floren-


tino que olhas ardentemente estende uma mão e te convida
a permanecer a seu lado na terrível sina de ser um objecto de
olhar e de admirar. Não (disse), para ser dois é necessário

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que sejam distintos. Eu estou fora da moldura mas o modo
de oferendar-se é o mesmo.

Ciscos, bonecos sem cabeça, eu chamo por mim, eu


chamo por mim toda a noite. E no meu sonho uma caravana
de circo cheia de corsários mortos nos seus caixões. Um mo-
mento antes, com belíssimos atavios e palas negras nos olhos,
os capitães saltavam de um bergantim a outro como ondas,
formosos como sóis.

De maneira que sonhei capitães e caixões de cores de-


liciosas e agora tenho medo por causa de todas as coisas que
guardo, não um cofre de piratas, não um tesouro bem enter-
rado, mas quantas coisas em movimento, quantas pequenas
figuras azuis e doiradas gesticulam e dançam (mas dizer não
dizem), e depois há o espaço negro – deixa-te cair, deixa-te
cair –, umbral da mais alta inocência ou talvez apenas da lou-
cura. Compreendo o meu medo à rebelião das pequenas figu-
ras azuis e doiradas. Alma pilhada, alma partilhada, vagueei e
errei tanto para fundar uniões com o rapaz pintado em forma
de objecto de contemplar e, não obstante, após analisar as
cores e as formas, dei por mim a fazer amor com um rapaz
vivente no mesmo momento que o do quadro se despia e me
possuía por trás das minhas pálpebras fechadas.

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Sorri e eu sou uma minúscula marioneta rosa com um
chapéu-de-chuva celeste eu entro pelo seu sorriso adentro eu
faço a minha casinha na sua língua eu habito na palma da sua
mão fecha os seus dedos um pó doirado um pouco de sangue
adeus oh adeus.

Como uma voz não longe da noite arde o fogo mais exa-
cto. Sem pele nem ossos andam os animais pelo bosque feito
cinzas. Certa vez, o canto de um só pássaro aproximou-te do
calor mais agudo. Mares e diademas, mares e serpentes. Por
favor, vê como a pequena caveira de cão suspensa do céu raso
pintado de azul se balança como folhas secas que estremecem
em seu redor. Gretas e buracos na minha pessoa foragida de
um incêndio. Escrever é procurar no tumulto dos queimados
o osso do braço que corresponda ao osso da perna. Miserável
mistura. Eu restauro, eu reconstruo, eu ando assim cercada
de morte. E é sem graça, sem auréola, sem trégua. E essa voz,
essa elegia a uma causa primeira: um grito, um sopro, um
respirar entre deuses. Eu relato a minha véspera. E tu o que
consegues? Sais do teu refúgio e não entendes. A ele regressas
e entender já não importa. Voltas a sair e não entendes. Não
há por onde respirar e tu falas do sopro dos deuses.
Não me fales do sol porque morreria. Leva-me como a
uma princesinha cega, como quando lenta e cuidadosamente

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o Outono surge num jardim.

Virás a mim com a tua voz mal colorida por um acen-


to que me fará evocar uma porta aberta, com a sombra de
um pássaro de belo nome, com o que essa sombra deixa na
memória, com o que permanece quando se dispersam as cin-
zas de uma jovem morta, com os traços que duram na folha
depois de apagar um desenho que representava uma casa, uma
árvore, o sol e um animal.

Se não veio é porque não veio. É como fazer o Outono.


Nada esperavas da sua vinda. Tudo esperavas. Vida da tua
sombra, que queres? Um decorrer a festa delirante, uma lin-
guagem sem limites, um naufrágio em tuas próprias águas, ó
avara.

A cada hora, a cada dia, pudera eu não ter de falar. Figu-


ras de cera os outros e sobretudo eu, que sou mais outra que
eles. Nada pretendo neste poema senão libertar a garganta.

Rápido, a tua voz mais oculta. Transmuta-se, trans-


mite-te. Tanto por fazer e eu desfazendo-me. Excomungam-
-te de ti. Sofro, logo não sei. No sonho o rei morria de amor
por mim. Aqui, pequena mendiga, imunizam-te. (E ainda

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tens cara de menina; mais alguns anos e não cairás na graça
nem dos cães.)

o meu corpo abria-se ao conhecimento do meu estar


e do meu ser confusos e difusos
o meu corpo vibrava e respirava
segundo um canto agora olvidado
eu não era ainda a fugitiva da música
eu sabia o lugar do tempo
e o tempo do lugar
no amor eu me abria
e ritmava os velhos gestos da amante
herdeira da visão
de um jardim proibido

A que sonhou, a que foi sonhada. Paisagens prodigiosas


para a infância mais fiel. À falta disso – que não é muito –,
a voz que ofende está certa.

A tenebrosa luminosidade dos sonhos afogados. Água


dolorosa.
O sonho demasiado tarde, os cavalos brancos demasia-
do tarde, o ter partido com uma melodia demasiado tarde. A
melodia latejava em meu coração e eu chorei a perda do meu

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único bem, alguém me viu a chorar no sonho e eu expliquei
(dentro do possível), utilizando palavras simples (dentro do
possível), palavras boas e certas (dentro do possível). Asse-
nhorei-me da minha pessoa, arranquei-a do belo delírio, na-
difiquei-a a fim de serenar o terror que alguém tinha a que eu
morresse em sua casa.

E eu? Quantos salvei eu?


O ter-me prosternado perante o sofrimento dos demais,
o ter-me calado em honra dos demais.
A minha rubra violência elementar retrocedia. O sexo
à flor do coração, a via do êxtase entre as pernas. A minha
violência de ventos rubros e de ventos negros. As celebrações
verdadeiras têm lugar no corpo e nos sonhos.

Portas do coração, cão espancado, vejo um templo,


tremo, que se passa? Nada. Eu pressentia uma escrita total. O
animal latejava em meus braços com rumores de órgãos vivos,
calor, coração, respiração, tudo musical e silencioso ao mesmo
tempo. Que significa traduzir-se em palavras? E os projectos
de perfeição a longo prazo; medir cada dia a provável elevação
do meu espírito, a extinção dos meus erros gramaticais. O
meu sonho é um sonho sem alternativas e quero morrer ao pé
da letra do lugar-comum que assegura que morrer é sonhar. A

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luz, o vinho proibido, as vertigens, para quem escreves? Ruí-
nas de um templo olvidado. Se celebrar fosse possível.

Visão enlutada, desgarrada, de um jardim com está-


tuas destruídas. À beira da madrugada doíam-te os ossos.
Tu desgarras-te. Previno-te e previne-te. Tu desarmas-te.
Digo-to, disse-to. Tu despes-te. Despossuis-te. Desunes-te.
Predisse-to. De súbito desfez-se: nenhum nascimento. Levas-
-te, sobrelevas-te. Apenas tu sabes deste ritmo quebrantado.
Agora os teus despojos, recolhê-los um a um, com fastio,
onde deixá-los? Por tê-la tido perto talvez tivesse eu vendido
a minha alma a troco de tornar-me invisível. Ébria de mim,
da música, dos poemas, porque não falei do buraco da ausên-
cia? Num hino desprezível rolava o pranto pela minha cara.
E porque não dizem alguma coisa? E para quê este grande
silêncio?

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O SONHO DA MORTE OU O LUGAR
DOS CORPOS POÉTICOS

Esta noite, disse, desde o ocaso, cobriam-me


com uma mortalha negra num leito de cedro.
Decantavam-me vinho azul misturado com
amargura.

O Cantar das Hostes de Igor

Toda a noite escuto o chamamento da morte, toda a


noite escuto o canto da morte junto ao rio, toda a noite escu-
to a voz da morte que me chama.
E tantos sonhos unidos, tantas possessões, tantas imer-
sões em minhas possessões de pequena defunta num jardim
de ruínas e de lilases. Junto ao rio a morte me chama. Desola-
damente desgarrada no coração escuto o canto da mais pura
alegria.
E é verdade que acordei no lugar do amor porque ao
ouvir o seu canto disse: é o lugar do amor. E é verdade que
acordei no lugar do amor porque com um sorriso de dolo eu
ouvi o seu canto e disse-me: é o lugar do amor (mas trémulo
mas fosforescente).

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E as danças mecânicas dos bonecos antigos e as desditas
herdadas e a água veloz em círculos, por favor, não tenhas
medo de dizê-lo: a água veloz em círculos fugacíssimos en-
quanto na margem o gesto suspenso dos braços suspensos
num apelo ao abraço, na nostalgia mais pura, no rio, na névoa,
no sol debilíssimo filtrando-se através da névoa.
Mais desde dentro: o objecto sem nome que nasce e se
pulveriza no lugar em que o silêncio pesa como barras de ouro
e o tempo é um vento afiado que atravessa uma greta e é essa a
sua única declaração. Falo do lugar em que se fazem os corpos
poéticos – como uma cesta cheia de cadáveres de raparigas. E
é nesse lugar que a morte está sentada, veste uma roupa muito
antiga e tange uma harpa na margem o rio lúgubre, a morte
num vestido rubro, a bela, a funesta, a espectral, a que toda
a noite tangeu uma harpa até que adormeci dentro do sonho.
Que existiu no fundo do rio? Que paisagens se faziam e
desfaziam atrás da paisagem em cujo centro havia um quadro
onde estava pintada uma bela dama que tange um alaúde e
canta junto ao rio? Atrás, a poucos passos, via o cenário de
cinzas onde representei o meu nascimento. O nascer, que é
uma acção lúgubre, dava-me graça. O humor corroía os limi-
tes reais do meu corpo de modo que depressa fui uma figura
fosforescente: a íris de um olho lilás cambiante; uma cinti-
lante menina de papel prateado meio afogada dentro de um

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copo de vinho azul. Sem luz nem guia avançava pelo caminho
das metamorfoses. Um mundo subterrâneo de criaturas de
formas não acabadas, um lugar de gestação, um viveiro de
braços, de troncos, de caras, e as mãos dos bonecos suspensas
como folhas das frias árvores afiadas adejavam e ressoavam
movidas pelo vento, e os troncos sem cabeça vestidos de cores
tão alegres dançavam rondas infantis junto a um ataúde cheio
de cabeças de loucos que uivavam como lobos, e a minha ca-
beça, de súbito, parece querer sair agora pelo meu útero como
se os corpos poéticos insistissem em irromper na realidade,
nascer para ela, e há alguém na minha garganta, alguém que
esteve a gerar-se em solidão, e eu, não acabada, ardente por
nascer, abro-me, abre-se-me, vai vir, vou vir. O corpo poé-
tico, o herdado, o não filtrado pelo sol da lúgubre manhã, um
grito, uma chamada, uma chamarada, um chamamento. Sim.
Quero ver o fundo do rio, quero ver se aquilo se abre, se ir-
rompe e floresce do lado de cá, e virá ou não virá porém sinto
que teima, e quem sabe e talvez seja somente a morte.
A morte é uma palavra.
A palavra é uma coisa, a morte é uma coisa, é um corpo
poético que se anima no lugar do meu nascimento.
Nunca deste modo lograrás circundá-lo. Fala, mas so-
bre o cenário de cinzas; fala, mas desde o fundo do rio onde
está a morte cantando. E a morte é ela, disse-mo o sonho,

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disse-mo a canção da rainha. A morte de cabelos de cor de
corvo, vestida de rubro, brandindo nas suas mãos funestas um
alaúde e ossos de pássaro para bater no meu túmulo, afastou-
-se cantando e contemplada desde trás parecia uma velha
mendiga e as crianças atiravam-lhe pedras.
Cantava na manhã de névoa mal filtrada pelo sol, a
manhã do nascimento, e eu caminharia com uma tocha na
mão por todos os desertos do mundo e mesmo que morresse
continuaria a procurar-te, amor meu perdido, e o canto da
morte desdobrou-se no termo de uma só manhã, e cantava, e
cantava.
Também cantou na velha taberna próxima do porto.
Havia um palhaço adolescente e eu disse-lhe que nos meus
poemas a morte era minha amante e a minha amante era a
morte e ele disse: os teus poemas dizem a verdade exacta.
Eu tinha dezasseis anos e não tinha outro remédio para além
de procurar o amor absoluto. E foi na taberna do porto que
cantou a canção.
Escrevo com os olhos fechados, escrevo com os olhos
abertos: que se desmorone o muro, que o muro se transforme
em rio.

A morte azul, a morte verde, a morte rubra, a morte


lilás, nas visões do nascimento.

60
A roupa azul e prata fosforescente da carpideira na noite
medieval de toda a morte minha.
A morte está cantando junto ao rio.
E foi na taberna do porto que cantou a canção da morte.
Vou morrer, disse-me, vou morrer.
À alvorada vinde, meu bom amigo, à alvorada vinde.
Reconhecemo-nos, desaparecemo-nos, amigo aquele que
eu mais queria.
Eu, assistindo ao meu nascimento. Eu, à minha morte.
E eu caminharia por todos os desertos do mundo e mes-
mo que morresse continuaria a procurar-te, a ti que foste o
lugar do amor.

61
NOITE PARTILHADA NA RECORDAÇÃO
DE UMA FUGA

Pancadas no túmulo. À beira das palavras, pancadas no


túmulo. Quem vive dentro, disse. Eu disse quem vive. E até
quando esta intromissão do externo do interno, ou do menos
interno do interno, que se vai tecendo como um manto de
serapilheira por sobre a minha pobreza indizível? Não foi o
sono, não foi a vigília, não foi o crime, não foi o nascimento:
apenas o bater como de uma pesada faca sobre o túmulo do
meu amigo. E o absurdo do meu lado direito, o absurdo de
um salgueiro inclinado para a direita sobre um rio, o meu
braço direito, o meu ombro direito, a minha orelha direita,
a minha perna direita, a minha possessão direita, a minha
despossessão. Desviar-me para a minha rapariga esquerda –
manchas azuis na minha palma esquerda, misteriosas manchas
azuis –, a minha zona de silêncio virgem, o meu lugar de
repouso no qual espero por mim. Não, ainda é demasiado
desconhecida, ainda não sei reconhecer estes sons novos que
principiam um canto de queixa diferente do meu que é um
canto de incêndio, que é um canto de menina perdida numa
silenciosa cidade em ruínas.

62
E há quantas centenas de anos estou morta e te amo?
Escuto as minhas vozes, os coros dos mortos. Encer-
rada entre as rochas; embutida na fenda de uma rocha. Não
sou eu a falante: é o vento que me faz adejar para que eu
acredite que estes cânticos da sorte que se formulam por obra
do movimento são palavras vindas de mim.
Foi quando principiei a morrer, quando bateram nos
cimentos e lembrei-me de mim.
Ouvem-se as trompetas da morte. O cortejo de bonecas
de corações espelhados com os meus olhos azuis-verdes re-
flectidos em cada um dos corações. Imitas velhos gestos her-
dados. As damas de outrora cantavam entre muros leprosos,
escutavam as trompetas da morte, viam desfilar – elas, as ima-
ginadas – um cortejo imaginário de bonecas com corações
espelhados e em cada coração os meus olhos de pássaro de
papel doirado abalroado pelo vento. A imaginada passarinha
julga cantar; na verdade, apenas murmura como um salgueiro
inclinado sobre o rio.
Bonequinha de papel, eu a recortei em papel celeste,
verde, rubro, e ficou no chão, no máximo da carência de rele-
vos e de dimensões. A meio do caminho te incrustaram, figu-
rinha errante, estás a meio do caminho e ninguém te distingue
pois não te diferencias do chão mesmo que às vezes grites,
mas há tantas coisas que gritam num caminho, porque iriam

63
tentar descobrir o que significa essa mancha verde, celeste,
rubra?
Se fortemente, a sangue e fogo, se gravam as minhas ima-
gens, sem sons, sem cores, sem sequer o branco. Se se inten-
sifica o rasto dos animais nocturnos nas inscrições dos meus
ossos. Se me fixo no lugar da memória como uma criatura se
apoia à saliência de uma montanha e ao mais pequeno movi-
mento feito de esquecimento cai – falo do irremediável, peço
o irremediável –, o corpo desatado e os ossos derramados no
silêncio da neve traidora. Projectada para o regresso, cobre-
-me uma mortalha lilás. E depois canta-me uma canção de
uma ternura sem precedentes, uma canção que não fale da
vida nem da morte mas de gestos levíssimos como o mais im-
perceptível aceno de aquiescência, uma canção que seja menos
que uma canção, uma canção como um desenho que represen-
ta uma pequena casa debaixo de um sol ao qual faltam alguns
raios; nela há-de poder viver a bonequinha de papel verde,
celeste e rubro; nela há-de poder erguer-se e talvez andar na
sua casinha desenhada sobre uma página em branco.

64
Apêndice
SALA DE PSICOPATOLOGIA (1971)1

Ao cabo de anos na Europa.


Isto é, Paris, Saint-Tropez, Cap
St. Pierre, Provença, Florença, Siena,
Roma, Capri, Ischia, São Sebastião,
Santillana del Mar, Marbella,
Segovia, Ávila, Santiago,
e tanto
e tanto
para não falar de Nova Iorque e de
West Village com rastos de raparigas estranguladas
– quero que um negro me estrangule
– disse
– o que queres é que te viole – disse
(ó Sigmund, contigo acabaram-se os homens do mercado
matrimonial que frequentei nas melhores praias da Europa)
e porque sou tão inteligente que já não sirvo para nada,
e porque tenho sonhado tanto que já não sou deste
mundo,
1 Texto escrito durante a estadia da autora no Hospital Pirovano para doen-
tes mentais. Incluído no conjunto intitulado «Textos de Sombra», encontrado
após a morte da autora e que incluía oito manuscritos inéditos.

67
aqui estou, entre as inocentes almas da sala 18,
persuadindo-me dia após dia
de que a sala, as almas puras e eu temos um sentido,
temos um destino,
– uma senhora originária do mais obscuro bairro de
uma aldeia que não figura no mapa diz:
– O doutor disse-me que tenho problemas. Eu não
sei. Eu tenho alguma coisa aqui (toca nas mamas) e uma von-
tade de chorar que mamma mia.
Nietzsche: «Esta noite terei uma mãe ou deixarei de
ser.»
Strindberg: «O sol, mãe, o sol.»
P. Éluard: «É preciso bater na mãe enquanto é jovem.»
Sim, senhora, a mãe é um animal carnívoro que ama
a vegetação luxuriosa. No momento em que a pariu abre as
pernas, ignorante do sentido da sua posição destinada a dar à
luz, à terra, ao fogo, ao ar,
mas depois uma pessoa quer voltar a entrar nessa
maldita vulva,
depois de ter tentado nascer por mim mesma extrain-
do a minha cabeça pelo meu útero
(e como não consegui, procuro morrer e entrar no
pestilento refúgio da oculta ocultadora cuja função é ocultar)
falo da vulva e falo da morte,

68
tudo é vulva, eu já lambi vulvas em vários países e tudo
o que senti foi orgulho pelo meu virtuosismo – a Mahatma
Gandhi do linguajar, a Einstein do minete, a Reich da lam-
bidela, a Reik de abrir caminho entre pêlos como os de sujos
rabinos – oh! o gozo da ronha!
Vós, os insignificantes médicos da 18 são ternos e até
beijam o leproso, mas
casar-se-iam com o leproso?
Um instante de imersão no baixo e no obscuro,
sim, disso são capazes,
mas logo vem a vozinha que acompanha os jovenzi-
nhos como vós:
– Poderias fazer de tudo isto uma piada, não é ver-
dade?
E
sim,
aqui no Pirovano
há almas que NÃO SABEM
por que motivo receberam a visita das desgraças.
Pretendem explicações lógicas os pobres pobrezinhos,
querem que a sala – verdadeira pocilga – esteja muito as-
seada, porque a ronha causa-lhes horror, e a desordem, e a
solidão dos dias vazios habitados por antigos fantasmas emi-
grantes das maravilhosas e ilícitas paixões da infância.

69
Oh! beijei já tantas betinhas para dar por mim de re-
pente numa sala cheia de carne de prisão onde as mulheres
vêm e vão falando das melhoras!
Mas
curar o quê?
E começar a curar por onde?
É verdade que a psicoterapia na sua forma exclusiva-
mente verbal é quase tão bela como o suicídio.
Fala-se
Mobila-se o cenário vazio do silêncio.
Ou, se há silêncio, este transforma-se na mensagem.
– Porque está calada? Em que pensa?
Não penso, pelo menos não executo o que chamam
pensar. Assisto ao inesgotável fluir do murmúrio. Às vezes
– quase sempre – estou húmida. Sou uma cabra, apesar de
Hegel. Fosse eu um tipo com uma betinha assim e comia-me
e ela levava com ele até que acabasse a ver curandeiros (que
sem dúvida mo chupariam) a fim de que me exorcizem e me
procurem uma boa frigidez.
Húmida
Vulva do coração de criatura humana,
coração que é um pequeno bebé inconsolável,
«Como uma criança que mama silenciei a minha alma»
(Salmo)

70
Ignoro o que faço na sala 18, para além de honrá-la
com a minha presença prestigiosa (se minimamente gostas-
sem de mim ajudar-me-iam a anulá-la)
oh! não é que eu queira flirtar com a morte
eu quero apenas pôr termo a esta agonia que se torna
ridícula à força de prolongar-se,
(Ridiculamente te adornaram para este mundo – diz
uma voz apiedada de mim)
E
Que te encontres contigo mesma – disse.
E eu disse-lhe:
Para reunir-me com o migo de comigo e ser uma só e a
mesma entidade com ele tenho de matar o migo para que assim
morra o co e, deste modo, anulados os contrários, a dialéctica
supliciante finaliza na fusão dos contrários.
O suicídio determina
uma faca sem lâmina
à qual falta o cabo.
Então:
adeus sujeito e objecto,
tudo se unifica como noutros tempos, no jardim dos
contos infantis repleto de regatos de frescas águas pré-natais,
esse jardim é o centro do mundo, é o lugar do encon-
tro, é o espaço feito tempo e o tempo feito espaço, é o alto

71
momento da fusão e do encontro,
fora do espaço profano no qual o Bem é sinónimo da
evolução das sociedades de consumo,
e longe dos merdosos simulacros de medir o tempo
através de relógios, calendários e outros objectos hostis,
longe das cidades nas quais se compra e se vende (oh!
nesse jardim para a menina que fui, a pálida alucinada nos
subúrbios malsãs pelos quais errava pela mão das sombras:
menina, minha querida menina que não tiveste mãe (nem pai,
é claro)
De maneira que arrastei o meu rabo até à sala 18,
na qual finjo acreditar que a minha doença de distân-
cia, de separação de absoluta NÃO-ALIANÇA com Eles
– Eles são todos e eu sou eu –
finjo, pois, que logro melhorar, finjo acreditar nes-
tes rapazes de boa vontade (oh! os bons sentimentos!), que
poderão ajudar-me,
mas às vezes – muitas – devolvo-lhes o insulto desde
as minhas sombras interiores que estes insignificantes médi-
cos jamais poderão conhecer (a profundidade, quanto mais
profunda, mais indizível) e insulto-os porque evoco o meu
amado velho, o Dr. Pichon R., tão filho da puta como nunca
o será nenhum dos insignificantes médicos (tão bons, hélas!)
desta sala,

72
mas o meu velho morre-me e estes falam e, pior ainda,
estes têm corpos jovens, saudáveis (maldita palavra), ao passo
que o meu velho agoniza na miséria por não ter sabido ser um
merdas prático, por ter enfrentado o terrível mistério que é
a destruição de uma alma, por ter metido o nariz no oculto
como um pirata – não pouco funesto posto que as moedas
de ouro do inconsciente levavam carne de enforcado, e num
recinto cheio de espelhos partidos e sal derramado –
velho duas vezes maldito, espécie de aborto pestífero
de fantasmas sifilíticos, como te adoro na tua tortuosidade
semelhante somente à minha,
e é hora de dizer que sempre desconfiei do teu génio
(não és genial; és um saqueador e um plagiador) e ao mesmo
tempo confiei em ti,
oh! é a ti que o meu tesouro foi confiado,
amo-te tanto que mataria todos estes médicos adoles-
centes para dar-te a beber do seu sangue para que vivesses tu
por um minuto ainda, por mais um século,
(tu, eu, aqueles que a vida não merece)

Sala 18
quando penso em terapia ocupacional apetece-me ar-
rancar os olhos numa casa em ruínas e comê-los pensando nos
meus anos de escrita contínua,

73
15 ou 20 horas escrevendo sem cessar, incitada pelo
demónio das analogias, tratando de configurar o meu atroz
material verbal errante,
porque – ó velho belo Sigmund Freud – a ciência
psicanalítica esqueceu algures a chave:
abrir abre-se
mas como fechar a ferida?

A alma sofre sem tréguas, sem piedade, e os maus mé-


dicos não restauram a ferida que supura.
O homem está ferido por um golpe que talvez, ou com
certeza, foi provocado pela vida que nos dão.
«Mudar a vida» (Marx)
«Mudar o nome» (Rimbaud)
Freud:
«A pequena A. está embelecida pela desobediência»,
(Cartas…)

Freud: poeta trágico. Demasiado apaixonado pela poe-
sia clássica. Sem dúvida muitas pistas extraiu dos «filósofos
da natureza», dos «românticos alemães» e, sobretudo, do meu
amadíssimo Lichtenberg, o genial físico e matemático que es-
crevia no seu Diário coisas como:
«Ele dera nomes aos seus dois chinelos»

74
Estava um tanto ou quanto sozinho, não é verdade?
(– Ó Lichtenberg!, pequeno corcunda, eu ter-te-ia
amado!)
E a Kierkegaard
E a Dostoiévski
E sobretudo a Kafka
a quem aconteceu o mesmo que a mim, se bem que ele
era pudico e casto – «Que fiz do dom do sexo?» – e eu sou
uma puta como não existe outra;
mas aconteceu-lhe (a Kafka) o mesmo que a mim:
separou-se
foi demasiado longe na sua solidão
e soube – teve de saber –
que dali não se regressa

afastou-se – afastei-me –
não por desprezo (claro está que o nosso orgulho é
infernal)
mas porque uma pessoa é estrangeira
uma pessoa é de outra parte,
eles casam-se,
procriam,
veraneiam,
têm horários,

75
não se assustam com a tenebrosa
ambiguidade da linguagem
(Não é o mesmo dizer Boa noite que dizer Boa noite)

A linguagem
– eu não aguento mais,
alma minha, pequena inexistente,
decide-te;
ou apostas ou desistes,
mas não me toques assim,
com pavor, com confusão,
ou partes ou apostas,
eu, pela minha parte, não aguento mais.

76
índice
I

Cantora Nocturna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Vertigens ou contemplação de qualquer coisa
que termina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
Lanterna surda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Privilégio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Contemplação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Nuit du coeur . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Conto de Inverno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Na outra madrugada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Desfundação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Figuras e silêncios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Fragmentos para dominar o silêncio . . . . . . . . 19
Sortilégios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

II

Um sonho onde o silêncio é de ouro . . . . . . . 25


Tête de jeune fille (Odilon Redon) . . . . . . . . 26
Resgate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Escrito no El Escorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
O sol, o poema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Estar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
As promessas da música . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Iminência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
Continuidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Os adeuses do Verão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Como água por sobre uma pedra . . . . . . . . . . . 35
Num Outono antigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

III

Caminhos do espelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

IV

Extracção da pedra da loucura . . . . . . . . . . . . 47


O sonho da morte ou o lugar dos corpos
poéticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Noite partilhada na recordação de uma fuga . . 62

Apêndice

Sala de psicopatologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
CATÁLOGO DA EDITORA
edlinguamorta.blogspot.pt

CONTACTO
edlinguamorta@gmail.com

Lisboa, 9.3.2013

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