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A lejandra P izarnik
Extracção da Pedra
da Loucura
(1968)
língua morta
À minha mãe
I
(1966)
CANTORA NOCTURNA
A Olga Orozco
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VERTIGENS OU CONTEMPLAÇÃO DE
QUALQUER COISA QUE TERMINA
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LANTERNA SURDA
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PRIVILÉGIO
II
O mais belo
na noite dos que partem,
ó desejado,
é sem fim o teu não voltar,
sombra és até ao dia dos dias.
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CONTEMPLAÇÃO
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NUIT DU COEUR
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CONTO DE INVERNO
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NA OUTRA MADRUGADA
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DESFUNDAÇÃO
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FIGURAS E SILÊNCIOS
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FRAGMENTOS PARA DOMINAR O SILÊNCIO
II
19
III
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SORTILÉGIOS
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II
(1963)
UM SONHO ONDE O SILÊNCIO É DE OURO
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TÊTE DE JEUNE FILLE (ODILON REDON)
de música a chuva
de silêncio os anos
que passam numa noite
o meu corpo de si jamais
poderá lembrar-se.
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RESGATE
A Octavio Paz
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ESCRITO NO EL ESCORIAL
chamo-te
tal como outrora ao amigo a amiga
em pequenas canções
tementes da alva
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O SOL, O POEMA
29
ESTAR
30
AS PROMESSAS DA MÚSICA
31
IMINÊNCIA
32
CONTINUIDADE
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OS ADEUSES DO VERÃO
34
COMO ÁGUA POR SOBRE UMA PEDRA
35
NUM OUTONO ANTIGO
A Marie-Jeanne Noirot
36
III
(1962)
CAMINHOS DO ESPELHO
II
III
IV
39
V
VI
VII
VIII
40
IX
XI
XII
41
XIII
XIV
XV
XVI
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onde ninguém me esperou, pois ao procurar quem me espera-
va não vi outra coisa senão a mim mesma.
XVII
XVIII
XIX
43
IV
(1964)
EXTRACÇÃO DA PEDRA DA LOUCURA
Ruysbroeck
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te outra. A outra que és deseja-se outra. Que acontece na
verde alameda? Acontece que não é verde e nem sequer há uma
alameda. E agora brincas a ser escrava para ocultar a tua coroa
outorgada por quem, quem te ungiu, quem te consagrou? A
invisível aldeia da memória mais velha. Perdida por desígnio
próprio, renunciaste ao teu reino pelas cinzas. Quem te ma-
goa recorda-te antigas homenagens. Não obstante, choras fu-
nestamente e evocas a tua loucura e desejas até extraí-la de ti
como se fosse uma pedra, justamente a ela, o teu único privi-
légio. Num muro branco desenhas as alegorias do repouso, e é
sempre uma rainha louca jazendo sob a lua sobre a triste erva
do velho jardim. Mas não fales dos jardins, não fales da lua,
não fales da rosa, não fales do mar. Fala do que sabes. Fala
do que vibra em tua medula e produz luzes e sombras no teu
olhar, fala da dor incessante dos teus ossos, fala da vertigem,
fala da tua respiração, da tua desolação, da tua traição. É tão
obscuro, tão em silêncio o processo a que me obrigo. Oh!
Fala do silêncio!
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da aurora de dedos negros. O meu ofício (também no sonho
o exerço) é conjurar e exorcizar. A que horas principiou a des-
graça? Não quero saber. Não quero mais que um silêncio para
mim e para as que fui, um silêncio como a pequena cabana que
as crianças perdidas encontram no bosque. Que sei eu sobre o
que há-de ser de mim se nada rima com nada?
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Vai e vem dizendo-se só em solitário vaivém. Um per-
der gota a gota o sentido dos dias. Engodos de conceitos. En-
ganos de vogais. A razão mostra-me a saída do cenário onde
levantaram uma igreja sob a chuva: a mulher-loba deposita
o seu filhote no umbral e foge. Há uma luz tristíssima de
tochas veladas por um sopro maligno. Chora a menina-loba.
Nenhum dos adormecidos a escuta. Todas as pestes e as pra-
gas para os que dormem em paz.
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que sejam distintos. Eu estou fora da moldura mas o modo
de oferendar-se é o mesmo.
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Sorri e eu sou uma minúscula marioneta rosa com um
chapéu-de-chuva celeste eu entro pelo seu sorriso adentro eu
faço a minha casinha na sua língua eu habito na palma da sua
mão fecha os seus dedos um pó doirado um pouco de sangue
adeus oh adeus.
Como uma voz não longe da noite arde o fogo mais exa-
cto. Sem pele nem ossos andam os animais pelo bosque feito
cinzas. Certa vez, o canto de um só pássaro aproximou-te do
calor mais agudo. Mares e diademas, mares e serpentes. Por
favor, vê como a pequena caveira de cão suspensa do céu raso
pintado de azul se balança como folhas secas que estremecem
em seu redor. Gretas e buracos na minha pessoa foragida de
um incêndio. Escrever é procurar no tumulto dos queimados
o osso do braço que corresponda ao osso da perna. Miserável
mistura. Eu restauro, eu reconstruo, eu ando assim cercada
de morte. E é sem graça, sem auréola, sem trégua. E essa voz,
essa elegia a uma causa primeira: um grito, um sopro, um
respirar entre deuses. Eu relato a minha véspera. E tu o que
consegues? Sais do teu refúgio e não entendes. A ele regressas
e entender já não importa. Voltas a sair e não entendes. Não
há por onde respirar e tu falas do sopro dos deuses.
Não me fales do sol porque morreria. Leva-me como a
uma princesinha cega, como quando lenta e cuidadosamente
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o Outono surge num jardim.
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tens cara de menina; mais alguns anos e não cairás na graça
nem dos cães.)
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único bem, alguém me viu a chorar no sonho e eu expliquei
(dentro do possível), utilizando palavras simples (dentro do
possível), palavras boas e certas (dentro do possível). Asse-
nhorei-me da minha pessoa, arranquei-a do belo delírio, na-
difiquei-a a fim de serenar o terror que alguém tinha a que eu
morresse em sua casa.
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luz, o vinho proibido, as vertigens, para quem escreves? Ruí-
nas de um templo olvidado. Se celebrar fosse possível.
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O SONHO DA MORTE OU O LUGAR
DOS CORPOS POÉTICOS
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E as danças mecânicas dos bonecos antigos e as desditas
herdadas e a água veloz em círculos, por favor, não tenhas
medo de dizê-lo: a água veloz em círculos fugacíssimos en-
quanto na margem o gesto suspenso dos braços suspensos
num apelo ao abraço, na nostalgia mais pura, no rio, na névoa,
no sol debilíssimo filtrando-se através da névoa.
Mais desde dentro: o objecto sem nome que nasce e se
pulveriza no lugar em que o silêncio pesa como barras de ouro
e o tempo é um vento afiado que atravessa uma greta e é essa a
sua única declaração. Falo do lugar em que se fazem os corpos
poéticos – como uma cesta cheia de cadáveres de raparigas. E
é nesse lugar que a morte está sentada, veste uma roupa muito
antiga e tange uma harpa na margem o rio lúgubre, a morte
num vestido rubro, a bela, a funesta, a espectral, a que toda
a noite tangeu uma harpa até que adormeci dentro do sonho.
Que existiu no fundo do rio? Que paisagens se faziam e
desfaziam atrás da paisagem em cujo centro havia um quadro
onde estava pintada uma bela dama que tange um alaúde e
canta junto ao rio? Atrás, a poucos passos, via o cenário de
cinzas onde representei o meu nascimento. O nascer, que é
uma acção lúgubre, dava-me graça. O humor corroía os limi-
tes reais do meu corpo de modo que depressa fui uma figura
fosforescente: a íris de um olho lilás cambiante; uma cinti-
lante menina de papel prateado meio afogada dentro de um
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copo de vinho azul. Sem luz nem guia avançava pelo caminho
das metamorfoses. Um mundo subterrâneo de criaturas de
formas não acabadas, um lugar de gestação, um viveiro de
braços, de troncos, de caras, e as mãos dos bonecos suspensas
como folhas das frias árvores afiadas adejavam e ressoavam
movidas pelo vento, e os troncos sem cabeça vestidos de cores
tão alegres dançavam rondas infantis junto a um ataúde cheio
de cabeças de loucos que uivavam como lobos, e a minha ca-
beça, de súbito, parece querer sair agora pelo meu útero como
se os corpos poéticos insistissem em irromper na realidade,
nascer para ela, e há alguém na minha garganta, alguém que
esteve a gerar-se em solidão, e eu, não acabada, ardente por
nascer, abro-me, abre-se-me, vai vir, vou vir. O corpo poé-
tico, o herdado, o não filtrado pelo sol da lúgubre manhã, um
grito, uma chamada, uma chamarada, um chamamento. Sim.
Quero ver o fundo do rio, quero ver se aquilo se abre, se ir-
rompe e floresce do lado de cá, e virá ou não virá porém sinto
que teima, e quem sabe e talvez seja somente a morte.
A morte é uma palavra.
A palavra é uma coisa, a morte é uma coisa, é um corpo
poético que se anima no lugar do meu nascimento.
Nunca deste modo lograrás circundá-lo. Fala, mas so-
bre o cenário de cinzas; fala, mas desde o fundo do rio onde
está a morte cantando. E a morte é ela, disse-mo o sonho,
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disse-mo a canção da rainha. A morte de cabelos de cor de
corvo, vestida de rubro, brandindo nas suas mãos funestas um
alaúde e ossos de pássaro para bater no meu túmulo, afastou-
-se cantando e contemplada desde trás parecia uma velha
mendiga e as crianças atiravam-lhe pedras.
Cantava na manhã de névoa mal filtrada pelo sol, a
manhã do nascimento, e eu caminharia com uma tocha na
mão por todos os desertos do mundo e mesmo que morresse
continuaria a procurar-te, amor meu perdido, e o canto da
morte desdobrou-se no termo de uma só manhã, e cantava, e
cantava.
Também cantou na velha taberna próxima do porto.
Havia um palhaço adolescente e eu disse-lhe que nos meus
poemas a morte era minha amante e a minha amante era a
morte e ele disse: os teus poemas dizem a verdade exacta.
Eu tinha dezasseis anos e não tinha outro remédio para além
de procurar o amor absoluto. E foi na taberna do porto que
cantou a canção.
Escrevo com os olhos fechados, escrevo com os olhos
abertos: que se desmorone o muro, que o muro se transforme
em rio.
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A roupa azul e prata fosforescente da carpideira na noite
medieval de toda a morte minha.
A morte está cantando junto ao rio.
E foi na taberna do porto que cantou a canção da morte.
Vou morrer, disse-me, vou morrer.
À alvorada vinde, meu bom amigo, à alvorada vinde.
Reconhecemo-nos, desaparecemo-nos, amigo aquele que
eu mais queria.
Eu, assistindo ao meu nascimento. Eu, à minha morte.
E eu caminharia por todos os desertos do mundo e mes-
mo que morresse continuaria a procurar-te, a ti que foste o
lugar do amor.
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NOITE PARTILHADA NA RECORDAÇÃO
DE UMA FUGA
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E há quantas centenas de anos estou morta e te amo?
Escuto as minhas vozes, os coros dos mortos. Encer-
rada entre as rochas; embutida na fenda de uma rocha. Não
sou eu a falante: é o vento que me faz adejar para que eu
acredite que estes cânticos da sorte que se formulam por obra
do movimento são palavras vindas de mim.
Foi quando principiei a morrer, quando bateram nos
cimentos e lembrei-me de mim.
Ouvem-se as trompetas da morte. O cortejo de bonecas
de corações espelhados com os meus olhos azuis-verdes re-
flectidos em cada um dos corações. Imitas velhos gestos her-
dados. As damas de outrora cantavam entre muros leprosos,
escutavam as trompetas da morte, viam desfilar – elas, as ima-
ginadas – um cortejo imaginário de bonecas com corações
espelhados e em cada coração os meus olhos de pássaro de
papel doirado abalroado pelo vento. A imaginada passarinha
julga cantar; na verdade, apenas murmura como um salgueiro
inclinado sobre o rio.
Bonequinha de papel, eu a recortei em papel celeste,
verde, rubro, e ficou no chão, no máximo da carência de rele-
vos e de dimensões. A meio do caminho te incrustaram, figu-
rinha errante, estás a meio do caminho e ninguém te distingue
pois não te diferencias do chão mesmo que às vezes grites,
mas há tantas coisas que gritam num caminho, porque iriam
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tentar descobrir o que significa essa mancha verde, celeste,
rubra?
Se fortemente, a sangue e fogo, se gravam as minhas ima-
gens, sem sons, sem cores, sem sequer o branco. Se se inten-
sifica o rasto dos animais nocturnos nas inscrições dos meus
ossos. Se me fixo no lugar da memória como uma criatura se
apoia à saliência de uma montanha e ao mais pequeno movi-
mento feito de esquecimento cai – falo do irremediável, peço
o irremediável –, o corpo desatado e os ossos derramados no
silêncio da neve traidora. Projectada para o regresso, cobre-
-me uma mortalha lilás. E depois canta-me uma canção de
uma ternura sem precedentes, uma canção que não fale da
vida nem da morte mas de gestos levíssimos como o mais im-
perceptível aceno de aquiescência, uma canção que seja menos
que uma canção, uma canção como um desenho que represen-
ta uma pequena casa debaixo de um sol ao qual faltam alguns
raios; nela há-de poder viver a bonequinha de papel verde,
celeste e rubro; nela há-de poder erguer-se e talvez andar na
sua casinha desenhada sobre uma página em branco.
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Apêndice
SALA DE PSICOPATOLOGIA (1971)1
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aqui estou, entre as inocentes almas da sala 18,
persuadindo-me dia após dia
de que a sala, as almas puras e eu temos um sentido,
temos um destino,
– uma senhora originária do mais obscuro bairro de
uma aldeia que não figura no mapa diz:
– O doutor disse-me que tenho problemas. Eu não
sei. Eu tenho alguma coisa aqui (toca nas mamas) e uma von-
tade de chorar que mamma mia.
Nietzsche: «Esta noite terei uma mãe ou deixarei de
ser.»
Strindberg: «O sol, mãe, o sol.»
P. Éluard: «É preciso bater na mãe enquanto é jovem.»
Sim, senhora, a mãe é um animal carnívoro que ama
a vegetação luxuriosa. No momento em que a pariu abre as
pernas, ignorante do sentido da sua posição destinada a dar à
luz, à terra, ao fogo, ao ar,
mas depois uma pessoa quer voltar a entrar nessa
maldita vulva,
depois de ter tentado nascer por mim mesma extrain-
do a minha cabeça pelo meu útero
(e como não consegui, procuro morrer e entrar no
pestilento refúgio da oculta ocultadora cuja função é ocultar)
falo da vulva e falo da morte,
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tudo é vulva, eu já lambi vulvas em vários países e tudo
o que senti foi orgulho pelo meu virtuosismo – a Mahatma
Gandhi do linguajar, a Einstein do minete, a Reich da lam-
bidela, a Reik de abrir caminho entre pêlos como os de sujos
rabinos – oh! o gozo da ronha!
Vós, os insignificantes médicos da 18 são ternos e até
beijam o leproso, mas
casar-se-iam com o leproso?
Um instante de imersão no baixo e no obscuro,
sim, disso são capazes,
mas logo vem a vozinha que acompanha os jovenzi-
nhos como vós:
– Poderias fazer de tudo isto uma piada, não é ver-
dade?
E
sim,
aqui no Pirovano
há almas que NÃO SABEM
por que motivo receberam a visita das desgraças.
Pretendem explicações lógicas os pobres pobrezinhos,
querem que a sala – verdadeira pocilga – esteja muito as-
seada, porque a ronha causa-lhes horror, e a desordem, e a
solidão dos dias vazios habitados por antigos fantasmas emi-
grantes das maravilhosas e ilícitas paixões da infância.
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Oh! beijei já tantas betinhas para dar por mim de re-
pente numa sala cheia de carne de prisão onde as mulheres
vêm e vão falando das melhoras!
Mas
curar o quê?
E começar a curar por onde?
É verdade que a psicoterapia na sua forma exclusiva-
mente verbal é quase tão bela como o suicídio.
Fala-se
Mobila-se o cenário vazio do silêncio.
Ou, se há silêncio, este transforma-se na mensagem.
– Porque está calada? Em que pensa?
Não penso, pelo menos não executo o que chamam
pensar. Assisto ao inesgotável fluir do murmúrio. Às vezes
– quase sempre – estou húmida. Sou uma cabra, apesar de
Hegel. Fosse eu um tipo com uma betinha assim e comia-me
e ela levava com ele até que acabasse a ver curandeiros (que
sem dúvida mo chupariam) a fim de que me exorcizem e me
procurem uma boa frigidez.
Húmida
Vulva do coração de criatura humana,
coração que é um pequeno bebé inconsolável,
«Como uma criança que mama silenciei a minha alma»
(Salmo)
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Ignoro o que faço na sala 18, para além de honrá-la
com a minha presença prestigiosa (se minimamente gostas-
sem de mim ajudar-me-iam a anulá-la)
oh! não é que eu queira flirtar com a morte
eu quero apenas pôr termo a esta agonia que se torna
ridícula à força de prolongar-se,
(Ridiculamente te adornaram para este mundo – diz
uma voz apiedada de mim)
E
Que te encontres contigo mesma – disse.
E eu disse-lhe:
Para reunir-me com o migo de comigo e ser uma só e a
mesma entidade com ele tenho de matar o migo para que assim
morra o co e, deste modo, anulados os contrários, a dialéctica
supliciante finaliza na fusão dos contrários.
O suicídio determina
uma faca sem lâmina
à qual falta o cabo.
Então:
adeus sujeito e objecto,
tudo se unifica como noutros tempos, no jardim dos
contos infantis repleto de regatos de frescas águas pré-natais,
esse jardim é o centro do mundo, é o lugar do encon-
tro, é o espaço feito tempo e o tempo feito espaço, é o alto
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momento da fusão e do encontro,
fora do espaço profano no qual o Bem é sinónimo da
evolução das sociedades de consumo,
e longe dos merdosos simulacros de medir o tempo
através de relógios, calendários e outros objectos hostis,
longe das cidades nas quais se compra e se vende (oh!
nesse jardim para a menina que fui, a pálida alucinada nos
subúrbios malsãs pelos quais errava pela mão das sombras:
menina, minha querida menina que não tiveste mãe (nem pai,
é claro)
De maneira que arrastei o meu rabo até à sala 18,
na qual finjo acreditar que a minha doença de distân-
cia, de separação de absoluta NÃO-ALIANÇA com Eles
– Eles são todos e eu sou eu –
finjo, pois, que logro melhorar, finjo acreditar nes-
tes rapazes de boa vontade (oh! os bons sentimentos!), que
poderão ajudar-me,
mas às vezes – muitas – devolvo-lhes o insulto desde
as minhas sombras interiores que estes insignificantes médi-
cos jamais poderão conhecer (a profundidade, quanto mais
profunda, mais indizível) e insulto-os porque evoco o meu
amado velho, o Dr. Pichon R., tão filho da puta como nunca
o será nenhum dos insignificantes médicos (tão bons, hélas!)
desta sala,
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mas o meu velho morre-me e estes falam e, pior ainda,
estes têm corpos jovens, saudáveis (maldita palavra), ao passo
que o meu velho agoniza na miséria por não ter sabido ser um
merdas prático, por ter enfrentado o terrível mistério que é
a destruição de uma alma, por ter metido o nariz no oculto
como um pirata – não pouco funesto posto que as moedas
de ouro do inconsciente levavam carne de enforcado, e num
recinto cheio de espelhos partidos e sal derramado –
velho duas vezes maldito, espécie de aborto pestífero
de fantasmas sifilíticos, como te adoro na tua tortuosidade
semelhante somente à minha,
e é hora de dizer que sempre desconfiei do teu génio
(não és genial; és um saqueador e um plagiador) e ao mesmo
tempo confiei em ti,
oh! é a ti que o meu tesouro foi confiado,
amo-te tanto que mataria todos estes médicos adoles-
centes para dar-te a beber do seu sangue para que vivesses tu
por um minuto ainda, por mais um século,
(tu, eu, aqueles que a vida não merece)
Sala 18
quando penso em terapia ocupacional apetece-me ar-
rancar os olhos numa casa em ruínas e comê-los pensando nos
meus anos de escrita contínua,
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15 ou 20 horas escrevendo sem cessar, incitada pelo
demónio das analogias, tratando de configurar o meu atroz
material verbal errante,
porque – ó velho belo Sigmund Freud – a ciência
psicanalítica esqueceu algures a chave:
abrir abre-se
mas como fechar a ferida?
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Estava um tanto ou quanto sozinho, não é verdade?
(– Ó Lichtenberg!, pequeno corcunda, eu ter-te-ia
amado!)
E a Kierkegaard
E a Dostoiévski
E sobretudo a Kafka
a quem aconteceu o mesmo que a mim, se bem que ele
era pudico e casto – «Que fiz do dom do sexo?» – e eu sou
uma puta como não existe outra;
mas aconteceu-lhe (a Kafka) o mesmo que a mim:
separou-se
foi demasiado longe na sua solidão
e soube – teve de saber –
que dali não se regressa
afastou-se – afastei-me –
não por desprezo (claro está que o nosso orgulho é
infernal)
mas porque uma pessoa é estrangeira
uma pessoa é de outra parte,
eles casam-se,
procriam,
veraneiam,
têm horários,
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não se assustam com a tenebrosa
ambiguidade da linguagem
(Não é o mesmo dizer Boa noite que dizer Boa noite)
A linguagem
– eu não aguento mais,
alma minha, pequena inexistente,
decide-te;
ou apostas ou desistes,
mas não me toques assim,
com pavor, com confusão,
ou partes ou apostas,
eu, pela minha parte, não aguento mais.
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índice
I
Cantora Nocturna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Vertigens ou contemplação de qualquer coisa
que termina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
Lanterna surda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Privilégio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Contemplação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Nuit du coeur . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Conto de Inverno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Na outra madrugada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Desfundação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Figuras e silêncios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Fragmentos para dominar o silêncio . . . . . . . . 19
Sortilégios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
II
III
Caminhos do espelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
IV
Apêndice
Sala de psicopatologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
CATÁLOGO DA EDITORA
edlinguamorta.blogspot.pt
CONTACTO
edlinguamorta@gmail.com
Lisboa, 9.3.2013