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Viagens • Literatura Portuguesa • 10.

º ano Materiais de apoio ao estudo de


outras obras do Programa

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA Padre António Vieira

OS SERMÕES DE VIEIRA

Os Sermões de Vieira apresentam temas sociais e políticos (por exemplo, contra os


holandeses, e em defesa das armas portuguesas; em favor dos índios e dos escravos, contra os
colonos; contra a universal roubalheira e corrupção dos governantes; contra a lentidão burocrática
que assimila à preguiça, animal que vive dependurado das árvores); e temas religiosos (estes, afinal,
os mais naturais num jesuíta e missionário, como as reflexões sobre a morte e os mistérios
religiosos); muitas vezes exprime e defende opiniões heterodoxas. […]
No seu conjunto, os Sermões de Vieira representam o que se poderia chamar uma oratória
funcional, dirigida para a ação imediata no campo moral, social, económico, político, religioso,
recorrendo nomeadamente a argumentos pseudo-lógicos: análises de tipo escolástico, explicações
vocabulares, etimologias pouco científicas, explicações gramaticais, etc.
Uma outra característica dos Sermões consiste no geometrismo e rigor na disposição de
frases e argumentos: os argumentos convergem num ponto central, a tese proposta; formalmente,
recurso à disposição em simetria, paralelismos, anáforas, oposições, etc.: - o “xadrez de palavras”
que criticou noutros pregadores (Sermão da Sexagésima).
O Padre António Vieira foi porventura o mais alto expoente do chamado “estilo engenhoso” do
barroco português. Com ele a prosa portuguesa ganhou a sua perfeita maturidade, como havia
acontecido para a poesia com Camões, um século antes. Para tal contribuíram as seguintes
características estilísticas:
- propriedade vocabular; precisão; clareza; harmonia expressiva; sentido do ritmo;
- construção hábil e geométrica de frases e parágrafos;
- grande frequência de verbos dinâmicos (dinamismo): uso de metáforas, imagens,
hipérboles, hipérbatos, etc… - numa “hábil combinação do estilo amplo, espraiado, com a densidade
concisa, própria do estilo humilde, familiar, introspetivo”, segundo Jacinto do Prado Coelho;
E […] grande importância dada à palavra do ponto de vista fónico, gráfico, morfológico,
sintático, semântico – e aos ‘jogos de palavras’, à maneira bem típica do Barroco.

PAIS, Amélia Pinto, 2004. História da Literatura em Portugal – Uma Perspetiva Didática. Vol. 1.
Época Medieval e Clássica. Porto: Areal

Os sermões constituem, incontestavelmente, a parte mais viva da herança literária de Vieira.


Globalmente falando, podemos dividi-los em dois grupos: os sermões estritamente religiosos […] e os
sermões que tratam de um determinado assunto político ou social então em debate, mas sempre com
um fundo religioso e tendo por ponto de partida um texto bíblico, geralmente extraído do missal da
festa litúrgica do dia.
Os sermões estritamente religiosos são hoje em dia menos lidos e estudados que os da outra
categoria. O facto explica-se só parcialmente pela circunstância de que o público moderno, em geral,
não está muito propenso a ler livros edificantes e devocionais; deve-se também à circunstância de

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que Vieira, neste género, não se mostra do seu lado mais original ou pessoal. […] O nosso pregador
era, sem dúvida, sacerdote piedoso e tinha um grande zelo apostólico, mas estava longe de ser
espírito meditativo. Antes de mais nada, queria impressionar e comover o seu auditório para o ativar.
A sua vocação consistia em “moralizar”, promover a reforma da mentalidade e da atitude ética, o que
o induzia muitas vezes a castigar e ridicularizar os vícios do seu tempo. Em cada moralista se
esconde um satírico.
Ao ler os sermões “empenhados” de Vieira, o leitor moderno dificilmente deixará de ficar
espantado, se não escandalizado, com a abundância neles encontrada de tantos assuntos políticos,
sociais e até económicos, por sinal de forma muito concreta. É que vive numa sociedade
secularizada, na qual estes terrenos são considerados autónomos, suscetíveis de serem
influenciados só indiretamente pela religião. Vieira vivia em plena época sacral, em que tudo estava
impregnado de religiosidade, tanto no setor coletivo como na vida particular. Claro está que sabia
distinguir nitidamente o sacro do profano, mas uma distinção teórica é muito diferente de uma
separação prática. Na realidade, ligava os dois terrenos entre si: as coisas temporais eram sobretudo
avaliadas como instrumentos da salvação eterna do homem. Até podemos dizer que Vieira, filho do
Barroco peninsular, não raro confundia as duas zonas.
O púlpito era, para ele como para muitos dos seus contemporâneos, uma tribuna pública que
gozava de liberdade quase inexistente em outros foros. Ali ele comentava com franqueza os grandes
problemas da época, não hesitando em sugerir soluções concretas, e sempre à luz de textos bíblicos
habilmente interpretados. Tudo isso ele fazia não só com franqueza, mas também com coragem,
porque se não limitava a sancionar e aplaudir a política oficial, como se atrevia a criticá-la e censurá-
la. Intrepidamente, fustigava os defeitos e pecados dos seus compatriotas, inclusive os dos
poderosos, e defendia com brio os direitos dos fracos e desprotegidos. O povo português ― do
plebeu mais ínfimo até ao próprio rei ― devia estar à altura da sua missão histórica. Os crimes
cometidos com a conivência do governo são nele castigados: “Os ladrões não podem ir ao inferno
sem levar consigo os reis.”
O púlpito era muitas vezes também um teatro, em Portugal. Muitas pessoas cultas afluíam às
igrejas para ouvir a pregação de um célebre orador, por não terem a possibilidade de assistirem a
uma representação teatral em outros sítios. […]
A verdade obriga-nos a reconhecer que o próprio Vieira nem sempre conseguiu manter-se
distante dessas exibições teatrais. Era filho do seu tempo. Mas apesar desses deslizes acidentais,
podemos afirmar que poucos sermões da época barroca, ainda hoje em dia, se leem com tanto
interesse e prazer como os de Vieira. Era irremediavelmente um retórico, mas a sua arte retórica
parece coisa tão natural e espontânea que zomba da retórica. […]
Vieira sabia brincar com as regras do jogo conceptista, no que consiste a verdadeira mestria.
Mas o seu jogar e brincar não era apenas um passatempo nem uma decoração exterior da vida,
como era tantas vezes na literatura barroca. A sua arte retórica estava ao serviço de uma causa
calorosamente proclamada e tenazmente defendida: a fé católica e o império cristão de Portugal, com
todos os seus corolários. Apesar de toda a sua pirotécnica literária, sabia dizer verdades duras,
lapidares, escandalosas, que toda a gente entendia e podia referir a si mesma. […]

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As ideias do autor sobre a arte de pregar encontram-se no seu famoso “Sermão da


Sexagésima” de 1655, sermão considerado tão importante por ele que lhe deu o primeiro lugar entre
todos na sua edição. Além de um sermão modelar, é um pequeno tratado homilético, em que Vieira
não se limita a uma exposição meramente técnica do ofício do pregador, mas salienta as condições
imprescindíveis a que um sermão deve satisfazer para poder vir a ser pregação da Palavra de Deus.
Elas implicam uma disposição evangélica tanto da parte do pregador como dos ouvintes. O pregador
deve pregar palavras e obras, como o faziam os apóstolos, não só palavras e conceitos: “O melhor
conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito que de sua vida têm os
ouvintes.” E para os ouvintes poderem receber a Palavra de Deus é necessário que não tenham o
coração endurecido pelas paixões mundanas nem a inteligência voltada para saborear as “agudezas”
do pregador: devem ouvir com humildade a mensagem da sua salvação.
Partindo do texto evangélico do domingo: “Saiu o semeador a semear a sua semente” e
citando a explicação de Jesus: “A semente é a Palavra de Deus”, Vieira diz que o pregar deve ser
como o semear […].
Vieira tira habilmente um argumento do facto de existirem, na língua portuguesa, três
substantivos derivados do verbo “cair”: a queda (ou a propriedade do assunto), a cadência (ou a
harmonia e eufonia das palavras) e o caso (ou a naturalidade da composição). O carácter natural e
desafetado do sermão lembra ao autor o versículo do Salmo 18, que diz: “Os céus manifestam a
glória de Deus.” Mas sendo assim, o céu é pregador, e como é pregador, deve ter sermões e
palavras […].
Aí se segue uma invetiva contra os pregadores que fazem o sermão em xadrez de palavras,
isto é, fazem emprego excessivo de antíteses, e contra os que se servem de circunlocuções
enigmáticas, isto é, que dizem “O Cetro Penitente” para designar David, ou “O Favo de Claraval” por
São Bernardo. Não adianta querer defender esse abuso com o exemplo de alguns Padres antigos: os
imitadores prezam-se de beber destes rios sem terem a sua profundidade, é o comentário irónico de
Vieira.

BESSELAR, José Van Den, 1981. António Vieira: O Homem, a Obra e as Ideias. Lisboa:
Instituto de Língua e Cultura Portuguesa

O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

Não é por acaso que Vieira colocou este sermão a abrir a edição princeps, como uma espécie
de manifesto ou de arte poética, onde se encontraria exposta a razão de ser da forma dada a toda a
criação oratória do autor, espalhada por 15 volumes. Do ponto de vista didático, toda essa produção
poderia passar a funcionar como uma exemplificação, uma ilustração abundante do modelo delineado
no primeiro sermão, o da Sexagésima. […]
Olhemos mais de perto o sermão em causa. No início do capítulo IV Vieira enumera 5
“circunstâncias: a Pessoa, a Ciência, a Matéria, o Estilo, a Voz”, e depois distribui cada uma dessas
“circunstâncias” pelos capítulos seguintes: no IV trata da pessoa, no V do estilo, no VI da matéria, no
VII da ciência, no VIII da voz. […]

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No capítulo VI Vieira expõe as regras da Disposição do sermão, e que segundo Aníbal Pinto de
Castro são as do “método português” […].
Seriam estas as regras e partes constitutivas desse “método”: o tema (em latim), a proposição,
a divisão, a prova ou confirmação com os textos das Escrituras, ou seja “o conceito predicável”, a
amplificação com recurso aos lugares comuns, a confutação e a peroração, local onde se deveria
colocar a conclusão e insistir na persuasão.
Aqui se encontram, também as marcas deixadas pela intensa formação retórica de Vieira: as
autoridades onde pretende enraizar o seu método são os tratadistas clássicos, resumidos nos
manuais de retórica usados então no ensino – Aristóteles, Quintiliano, Túlio (Cícero), e os oradores
Padres da Igreja – S. Basílio, S. Cipriano, etc., que constituem o mais frequente intertexto dos seus
sermões.
Verifica-se ainda neste sermão a divisão Pregador/Ouvinte, pois se nos capítulos centrais se
fala do primeiro, no III e no X fala-se do segundo. […] Fazia parte da tradicional teorização retórica a
inclusão do auditório como fator determinante.

MENDES, Margarida Vieira, 1987. “A retórica no Sermão da Sexagésima” in VIEIRA, António, Sermões
do Padre António Vieira. Lisboa: Editorial Comunicação

O sermão em estudo é o primeiro da edição princeps dos Sermões, e foi proferido em 1655 na
capela real, depois do regresso do autor da Missão do Maranhão. Foi composto em dez capítulos e
tem como tema o pregador e seu sermão. Analisemos assim estes capítulos:
CAPÍTULO I: De acordo com o previsto nos tratados de retórica, é a parte onde o pregador cria
o suspense do sermão, faz entrar os destinatários – o público – dentro do enunciado, apresenta-se a
si próprio e insere no discurso os seus companheiros missionários do Maranhão. Estimulando a
atenção do público, o orador lança mão da técnica da confutação, formulando ao mesmo objeções e
interrogações. É nesta parte também que o texto bíblico será aproximado ao presente do autor e dos
ouvintes.
A aproximação do momento bíblico com o seu mundo vai ser tal, que o autor relacionará
explicitamente o semeador bíblico com os “semeadores Evangélicos da Missão”, e, as dificuldades
encontradas à frutificação das sementes aos padecimentos desses missionários no Maranhão. Não
sobra espaço para deduções, sendo a exemplificação um elemento dominante na Sexagésima. É
como se para o entendimento tudo no texto bíblico devesse ser exemplificado com o quotidiano. […]
Ao terminar o primeiro capítulo, Vieira, já tendo criado o suspense, convida-nos a ouvi-lo na
tentativa de desvendar o mistério do semeador e suas sementes. […]
CAPÍTULO II: Nesta parte haverá uma amplificação das associações analógicas anteriores a
partir da imagem criada da semeadura […].
CAPÍTULO III: É aqui que o autor procede à divisão do assunto em três princípios relacionados
com a frutificação da palavra: a parte do pregador, a parte do ouvinte e a parte de Deus. E desta
divisão partem as associações do pregador com a doutrina, do ouvinte com o entendimento e de
Deus com a luz. […]

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CAPÍTULO IV: Neste capítulo Vieira analisará as qualidades do pregador, baseando-se em cinco
circunstâncias: a Pessoa, a Ciência, a Matéria, o Estilo e a Voz.
Neste capítulo, no qual ele trata da Pessoa, ressaltam-se dois binómios importantes:
palavra/obra e olhos/ouvidos.
Palavra/obra: A presença do lugar-comum “pratica o que pregas” (baseado na exemplaridade da
vida do orador sagrado) vai caracterizar a importância para Vieira da palavra ter que vir
obrigatoriamente acompanhada da obra (representando a realização, a ação do verbo que se fez
carne). Sintaticamente e estilisticamente este binómio estaria representado no seguinte trecho do
sermão:
O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação, e as ações são as que
dão o ser ao pregador [...] (IV:142)

Ora, “semeador” e “pregador” são nomes substantivos, e “semeia” e “prega” são formas verbais do
presente. E sintagmaticamente a relação estabelecida entre estes nomes e estas ações é, como está
claro no trecho do sermão, de sujeito e de verbo (ação), pois são as ações que movem o sujeito,
dando-lhe vida. Para estar em movimento o sujeito necessita da ação, para pregar o pregador
necessita da obra, a sua vida mesma dada como exemplo da palavra, pois sem a ação este pregador
(sujeito) esvazia-se na sentença, não se move, não é um ser, não poderá nunca converter o mundo.
Olhos/ouvidos: Neste par vemos claramente uma das características típicas do barroco que é a
visualidade. Este binómio vai revelar a importância da “narração” vir acompanhada pela “viva
representação”. Como se a palavra (enunciado sonoro) devesse refletir a imagem, assim como o
pregador deve refletir a doutrina (metáfora presente no capítulo III). Além do efeito sonoro causado
pelas constantes anáforas, interrogações, admirações exclamativas (a voz e a sua força de trovão) o
discurso vieiriano vem ornado de imagens […] que procuram causar um impacto visual no ouvinte por
meio de pathos e ainda facilitar a memorização da mensagem […].
CAPÍTULO V: É dedicado ao Estilo do pregador e mais especificamente às faculdades
INVENTIO, DISPOSITIO E ELOCUTIO. O autor condenará os excessos do conceptismo na
eloquência religiosa através de um estilo “empeçado”, “difucultoso”, “afetado”, em prol de um estilo
“muito fácil” e “natural”. Reprovará ainda o facto de muitos intertextos serem violentamente
incorporados ao texto do orador, “como quem vem ao martírio”, imagem que virá acompanhada de
verbos com forte significado semântico (aprisionamento, dor, sofrimento) em estreita relação com a
imagem do martírio e que dão força e movimento à estrutura frásica: “acarretados”, “estirados”,
“arrastados”, “despedaçados” e nunca bem “atados”. As analogias a partir da imagem do trigo que
caiu quatro vezes e só de 3 nasceu vêm amplificar a alegoria semeador-semente […].
Ainda neste mesmo capítulo temos uma bela associação analógica que é a do Céu (“o mais
antigo pregador do mundo”) com o pregador missionário. Como pregador o Céu tem palavras (as
estrelas) e sermões (a composição, a ordem, a harmonia e o curso das estrelas).
“As estrelas são muito distintas e muito claras” e um sermão para o ser deve estar composto de
palavras claras, simples, bem dispostas e ordenadas, palavras distribuídas harmoniosamente sem os
exageros do cultismo e do conceptismo (estilos ocultos). […]

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CAPÍTULO VI: O orador agora trata da Matéria que toma o pregador e vai assim expor as regras
da Disposição do sermão:

O SERMÃO:
há de ter um só assunto e uma só matéria
há de ser de uma só cor
há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria

A MATÉRIA:
há de defini-la para que se conheça (PROPOSIÇÃO)
há de dividi-la para que se distinga (DIVISÃO)
há de prová-la com a Escritura (CONFIRMAÇÃO)
há de declará-la com a razão (CONFIRMAÇÃO)
há de confirmá-la com o exemplo (CONFIRMAÇÃO)
há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as
circunstâncias, com as conveniências que de hão de seguir,
com os inconvenientes que se devem evitar
(AMPLIFICAÇÃO)
há de responder às dúvidas (CONFUTAÇÃO)
há de satisfazer as dificuldades (CONFUTAÇÃO)
há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os
argumentos contrários (CONFUTAÇÃO)

e depois disto:

há de colher
há de apertar (PERORAÇÃO)
há de concluir
há de persuadir
há de acabar

Vale ressaltar aqui a força sonora causada pela anáfora “há de” acompanhada de verbos na
forma infinitiva, que semanticamente também implica na urgência da realização da ação, do
movimento.
CAPÍTULO VII: Neste capítulo o autor dedica-se à Ciência, relacionada com o problema da
autoria do discurso, criando a dicotomia o próprio/ o alheio. […]
Para exemplificar o conceito ele vai usar a alegoria da rede (exemplo bíblico), que, construída
pelo próprio pescador e não por mãos alheias, lhe vai permitir pescar homens, pois construir esta
rede implica construir o discurso da pregação com as suas próprias palavras, o seu estilo próprio e
entendimento e não fazer uma colagem de textos alheios.
CAPÍTULO VIII: É dedicado à Voz e assim o debate do ethos do pregador e da sua linguagem
vem juntar-se o tema da ACTIO, do comportamento gestual e vocal no púlpito. Daí o surgimento da

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dicotomia antitética brado/razão, explicando a necessidade da voz do orador em ser


concomitantemente e paradoxalmente “travão” que assombre e faça tremer o mundo e “orvalho” que
se destila brandamente e sem ruído. O objetivo deste entrelaçar de contrários é o de causar o pathos
no ouvinte.
Como nos mostra neste mesmo capítulo, esta associação antitética já vem mesmo da tradição
bíblica. Na sua oração Moisés pede a Deus que a sua doutrina desça como orvalho, e depois Deus
recomenda a Isaías que fale com voz moderada, e, contrariamente a esses dois exemplos, temos o
profeta João Batista que bradava no deserto. Ora, é importante ressaltar que a diferença da voz tem
estreita ligação com o público ouvinte.
CAPÍTULO IX: Este é o momento em que Vieira se dedica à palavra e ao púlpito nos seus
diferentes e análogos significados dentro da Igreja-salão barroco e jesuítica.
É impressionante como Vieira consegue discorrer metalinguisticamente sobre a linguagem e o
seu poder de comunicação. O sermão é rico em comparações e pequenos estudos sobre o tema.
Com o reconhecimento do valor ambíguo que as palavras têm em si, dependendo do contexto em
que são usadas, ele critica a apropriação indevida de textos […]. A intenção é o que conta, e é o que
levará o farsante a fazer mau uso da palavra divina e a tomar o púlpito como um palco para a
comédia.
Por estar no alto o púlpito simbolizaria a posição privilegiada em que se encontra o orador em
relação ao ouvinte. Aquele encontra-se mais próximo de Deus e é um mediador entre Deus e o
público, o que justificaria também a sua autoridade para falar de Deus. O alto é também um dos
polos da dicotomia maniqueísta que tantas antíteses originou em Vieira e na literatura barroca, como
por exemplo: céu/terra, céu/inferno, descer/subir, cabeça/restante do corpo. Sendo o alto o lugar
normalmente mais nobre, nada mais justificável que aquele que conhece a palavra de Deus ocupe
este lugar.
CAPÍTULO X: No epílogo o autor volta a mencionar o “espaço do alto”, menciona as tribunas
dos Reis, dos Anjos e a tribuna e tribunal de Deus (que julga). Tem-se assim a representação
imagística de uma escala de importância e localização espacial do público, do pregador, dos Reis,
dos Anjos e de Deus. As dicotomias antitéticas céu/terra, visível/invisível, espaço divino/ espaço
humano são claramente sugeridas […].
Deus está no topo, enquanto o ouvinte no andar mais inferior em relação aos demais. E dentro
de uma perspetiva política é interessante notar a preocupação de Vieira em encaixar nesta imagem
os reis, reconhecendo a sua superioridade como homens de poder, mas inferiores a Deus.
E ao concluir o sermão, incitando e persuadindo o locutor à ação, Vieira vai incluir-se mais uma
vez no seu público (uso da 1ª pessoa do plural) e como que colhendo os frutos já da sua própria
pregação irá fechar a pregação com um grito de guerra:
Estamos às portas da Quaresma [...] Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados [...].
(X: 174)

SCHMIDT, Júlia Marina da Graça, “o Sermão da Sexagésima sob um ponto de vista retórico e estilístico”,
http://www.duo.uio.no/roman/Art/Rf15-02-1/Schmid.pdf [consult. 25-05-2013]
(adaptado para Português europeu)

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