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Oexp10 Vida Obra Camoes
Oexp10 Vida Obra Camoes
Faixa 13
O pouco que, com base documental segura, se conhece da sua vida tema dado lugar a uma
manente desencontro do indivíduo com toda uma sociedade em crise. Mas o “bicho da terra
vil e tão pequeno” que a vivera nos acasos da errância e no desconforto da sua constante inadap-
tação à realidade comezinha das coisas e dos homens, criara em poesia, mercê dessa penosa
experiência, a mais alta e bela expressão algum dia alcançada para o drama de ser português.
45 Essa criação, porém, só foi possível, porque as dolorosas vivências da sua rica e multímoda
personalidade […] se aliaram a uma cultura humanística variada e profunda, ainda quando de
grau desigual em alguns dos seus aspetos, que vai da literatura à filosofia, passando pela histó-
ria, pela mitologia e até pelas ciências exatas. […]
O ambiente cultural que então se respirava em Portugal caracterizava-se já, no segundo
50 quartel do século XVI, por uma entusiástica adesão aos ideais do Humanismo e do Renascimento
triunfantes por toda a Europa. E Camões não foi exceção. Pode sem receio de contradita afirmar-
-se que a sua cultura se define por uma fundamental e convicta adesão aos paradigmas renas-
centistas vigentes em Portugal, nos quais o saber livresco se conjugava com os dados da expe-
riência adquirida no nosso peregrinar coletivo por mares e continentes, até então desconhecidos,
55 numa síntese de harmoniosas, mesmo quando não muito equilibradas, proporções. Deste modo
se compreenderá o genial sentido de ecletismo cultural, e sobretudo literário, que marca indele-
velmente toda a sua obra. […]
Vista no seu conjunto, a obra de Camões aparece como a expressão perfeita de uma genial
capacidade de criação poética, onde os géneros ou modos (o lírico, o épico e o dramático) apenas
60 representam formas específicas de uma mensagem única, ainda que motivada pela vivência poé-
tica do indivíduo posto perante si próprio ou frente à sociedade que o rodeia. Em qualquer dessas
situações, porém, não se confina ao imediato que lhe está próximo; bem dentro do espírito renas-
centista, coloca-se no centro de um universo a que nem sequer a morte ou o tempo põem limites,
pois, por vezes dramaticamente, se alarga à esfera do eterno transcendente […].
65 Exprime a Lírica de Camões uma vivência humana muito compósita, onde o Amor é inques-
tionavelmente a força universal que tudo domina […]. Constituindo, porém, o núcleo temático
essencial de todo o universo poético manifestado por Camões, o Amor enriquece-se e aprofunda-
-se em função de uma visão do mundo e da vida equacionada segundo uma forte contraposição
dialética entre o indivíduo e os outros, que dá lugar a uma complexa e estreita rede de relações
70 que o associam a outros temas. […]
O sofrimento em que se vê mergulhado pelos enganos e desenganos do amor cresce desme-
suradamente pelo abissal isolamento psicológico e afetivo a que o reduz a hipertrofia da sua vida
emocional própria, sempre em conflito com tudo quanto o rodeia e, não raro, consigo próprio.
Quer isto dizer que a essência da Lírica camoniana reside num permanente e profundo dissídio
75 dialético, cuja consciência lhe traz simultaneamente dor e confusão e cuja responsabilidade atri-
bui, cada vez com maior desalento, à sanha persecutória do Destino, força perante a qual se vê
OEXP10DP © Porto Editora
inerme e desamparado.
O Destino, contra o qual nada pode o livre arbítrio apesar de, como a todo o seu semelhante,
lhe ter sido dado por Deus, transforma-se deste modo na força implacável que comanda a vida,
80 essência do universo poético por ele manifestado, determinando e agudizando toda a imensa
gama de dores recebidas do Amor e dos erros cometidos contra a sua própria vontade e contra
a mais evidente racionalidade da sua inteligência. Joguete de forças tão poderosas e desen
contradas, o poeta vê-se indefeso perante um mundo cuja estabilidade lhe aparece sempre com-
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85 acidentes do seu quotidiano perturbam, transformando-o num caos labiríntico, onde tudo lhe é
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