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4. Rimas de Camões   Manual · p. 214

Vida e obra de Luís de Camões 10 min 40 s

Faixa 13
O pouco que, com base documental segura, se conhece da sua vida tema dado lugar a uma

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biografia onde a lenda tomou em grande parte o lugar da história. Nascido provavelmente em
Lisboa, à roda de 1524, pertencia a uma família da pequena nobreza, de origem galega, que viera
para Portugal em tempos do rei D. Fernando e se espalhara depois por várias terras do reino, em
5 especial Lisboa e Coimbra. Dos seus estudos pouco também se conhece, embora as referências
que deixou na sua obra a esta segunda cidade permitam conjeturar que aí tenha adquirido boa
parte do seu notável cabedal cultural, talvez à sombra do Mosteiro de Santa Cruz, onde tinha
parentes, ainda que os dados cronológicos disponíveis ofereçam algumas dificuldades à afirma-
ção, corrente em alguns biógrafos, de que a sua formação contara com o patrocínio de D. Bento
10 de Camões, prior geral dos Crúzios. Aí lhe correriam dias de suave encanto, ao sabor das paixões
fagueiras da primeira juventude, sem que possamos, no entanto, identificar o objeto delas. Entre
1542 e 1545 deve ter-se deixado atrair pelo apelo de Lisboa, trocando os estudos pelo ambiente
de culta galanteria que então se respirava na corte de D. João III, depressa conquistando fama de
bom poeta, com a contrapartida de despeitos e invejas que a sua superioridade e o seu feitio al-
15 tivo e brigão não deixariam de suscitar. Diz a fantasia de alguns biógrafos que, por isso e por se
ter atrevido a levantar olhos de amor para a infanta D. Maria, teria caído em desgraça, a ponto de
ser desterrado para Constância. De tal situação, porém, não há o menor fundamento documen-
tal. Ligado provavelmente à poderosa casa do conde de Linhares. D. Francisco de Noronha, talvez
na qualidade de precetor do filho D. António, seguiria para Ceuta à roda de 1549 e por lá ficaria
20 até 1551. Tal aventura era então comum na carreira militar dos jovens da sua condição. Dela […]
lhe resultaria […] a perda de um dos olhos, pela “fúria rara de Marte”.
De regresso a Lisboa, não tarda em retomar a vida boémia. Não admira por isso que no dia do
Corpo de Deus de 1552 se tenha envolvido em encarniçada rixa, durante a qual feriu um moço do
Paço chamado Gonçalo Borges. Preso no tronco da cidade, é libertado por carta régia de perdão
25 de 7.3.1552, embarcando para a Índia na armada de Fernão Álvares Cabral, que largou de Lisboa
a 24 desse mesmo mês. […] Não seria exemplar o seu comportamento em terras do Extremo
Oriente […]. Na viagem de regresso, por fins de 1558 ou princípios de 1559, naufraga na foz do rio
Mekong, salvando apenas o manuscrito d’ Os Lusíadas, então certamente já em adiantada fase de
elaboração […]. No desastre teria perecido também uma moça chinesa que trazia como compa-
30 nheira, dando-lhe motivo à série de sonetos a Dinamene. […]
Chegado a Lisboa, consagra todos os cuidados à impressão da epopeia, para o que contou
com o patrocínio de D. Manuel de Portugal […]. A publicação do volume, em 1572, alguma coisa
melhorou as suas condições de vida, graças a uma tença de 15000 réis, que D. Sebastião lhe con-
cede por alvará de 28.8.1572. Em 1578 vê partir para o Norte de África as esperanças e vanglórias
35 do rei e do seu exército, que a derrota em breve afogaria em lágrimas de morte e de luto nos
areais de Alcácer Quibir. A 10.6.1580, mergulhado no pesadelo daquela “apagada e vil tristeza”
que, ensombrando a Pátria, lhe ensombrava a alma, Camões morria numa pobre casa da Cal-
çada de Santana, sendo enterrado em campa rasa, na igreja de um convento de freiras, que
lhe estava vizinha. Encerrava-se uma vida “pelo mundo em pedaços repartida”, que os erros, a
40 má fortuna e o amor ardente tinham transformado num angustioso dissídio interior e num per-
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manente desencontro do indivíduo com toda uma sociedade em crise. Mas o “bicho da terra

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vil e tão pequeno” que a vivera nos acasos da errância e no desconforto da sua constante inadap-
tação à realidade comezinha das coisas e dos homens, criara em poesia, mercê dessa penosa
experiência, a mais alta e bela expressão algum dia alcançada para o drama de ser português.
45 Essa criação, porém, só foi possível, porque as dolorosas vivências da sua rica e multímoda
personalidade […] se aliaram a uma cultura humanística variada e profunda, ainda quando de
grau desigual em alguns dos seus aspetos, que vai da literatura à filosofia, passando pela histó-
ria, pela mitologia e até pelas ciências exatas. […]
O ambiente cultural que então se respirava em Portugal caracterizava-se já, no segundo
50 quartel do século XVI, por uma entusiástica adesão aos ideais do Humanismo e do Renascimento
triunfantes por toda a Europa. E Camões não foi exceção. Pode sem receio de contradita afirmar-
-se que a sua cultura se define por uma fundamental e convicta adesão aos paradigmas renas-
centistas vigentes em Portugal, nos quais o saber livresco se conjugava com os dados da expe-
riência adquirida no nosso peregrinar coletivo por mares e continentes, até então desconhecidos,
55 numa síntese de harmoniosas, mesmo quando não muito equilibradas, proporções. Deste modo
se compreenderá o genial sentido de ecletismo cultural, e sobretudo literário, que marca indele-
velmente toda a sua obra. […]
Vista no seu conjunto, a obra de Camões aparece como a expressão perfeita de uma genial
capacidade de criação poética, onde os géneros ou modos (o lírico, o épico e o dramático) apenas
60 representam formas específicas de uma mensagem única, ainda que motivada pela vivência poé-
tica do indivíduo posto perante si próprio ou frente à sociedade que o rodeia. Em qualquer dessas
situações, porém, não se confina ao imediato que lhe está próximo; bem dentro do espírito renas-
centista, coloca-se no centro de um universo a que nem sequer a morte ou o tempo põem limites,
pois, por vezes dramaticamente, se alarga à esfera do eterno transcendente […].
65 Exprime a Lírica de Camões uma vivência humana muito compósita, onde o Amor é inques-
tionavelmente a força universal que tudo domina […]. Constituindo, porém, o núcleo temático
essencial de todo o universo poético manifestado por Camões, o Amor enriquece-se e aprofunda-
-se em função de uma visão do mundo e da vida equacionada segundo uma forte contraposição
dialética entre o indivíduo e os outros, que dá lugar a uma complexa e estreita rede de relações
70 que o associam a outros temas. […]
O sofrimento em que se vê mergulhado pelos enganos e desenganos do amor cresce desme-
suradamente pelo abissal isolamento psicológico e afetivo a que o reduz a hipertrofia da sua vida
emocional própria, sempre em conflito com tudo quanto o rodeia e, não raro, consigo próprio.
Quer isto dizer que a essência da Lírica camoniana reside num permanente e profundo dissídio
75 dialético, cuja consciência lhe traz simultaneamente dor e confusão e cuja responsabilidade atri-
bui, cada vez com maior desalento, à sanha persecutória do Destino, força perante a qual se vê
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inerme e desamparado.
O Destino, contra o qual nada pode o livre arbítrio apesar de, como a todo o seu semelhante,
lhe ter sido dado por Deus, transforma-se deste modo na força implacável que comanda a vida,
80 essência do universo poético por ele manifestado, determinando e agudizando toda a imensa
gama de dores recebidas do Amor e dos erros cometidos contra a sua própria vontade e contra
a mais evidente racionalidade da sua inteligência. Joguete de forças tão poderosas e desen­
contradas, o poeta vê-se indefeso perante um mundo cuja estabilidade lhe aparece sempre com-
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prometida por um vertiginoso movimento de mudança, que o Tempo possibilita e que os

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85 acidentes do seu quotidiano perturbam, transformando-o num caos labiríntico, onde tudo lhe é

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dor e confusão. […]
Nascida de uma cultura literária de forte marca renascentista, a obra camoniana rasgou de-
sassombradamente novos caminhos na criação poética portuguesa, porque o seu autor, cons-
ciente da pujança do seu poder criador, apostou sempre na […] expressão de uma maneira muito
90 própria de interpretar e de sofrer a vida, fosse, no seu mundo individual, fosse no quotidiano da
coletividade de que fazia parte.
CASTRO, Aníbal Pinto de, 1995. “Camões (Luís Vaz de)”. In Biblos – Enciclopédia Verbo das Literaturas
de Língua Portuguesa. Vol. 1. Lisboa: Verbo (pp. 884-901)

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