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CANÇÃO DA PARTIDA
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
Lançá-lo ao mar.
OCCIDENTE
Com duas mãos — o Ato e o Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o fecho trêmulo e divino
E a outra afasta o véu.
ÁLVARO DE CAMPOS.
Capítulo I
“Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis,
tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e
nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se
histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica — que o detestava —
costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de
sangue, muito enfartado:
— Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe — à hora em que defronte, na casa
do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi
pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os
modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito
rudes.”
Capítulo XVI
“Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas
visitas caridosas à paralítica perfizessem ao fim do mês o número simbólico de sete,
que devia corresponder, na idéia das devotas, às Sete Lições de Maria. Na véspera o
padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas
cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a prática do
senhor pároco. Amélia nesses dias erguiase cedo; tinha sempre alguma saia branca a
engomar, algum laçarote a compor; a mãe estranhava-lhe aqueles arrebiques, o
desperdício de água-de-colônia de que ela se inundava; mas Amélia explicava que "era
para inspirar à Totó idéias de asseio e de frescura". E depois de vestida sentava-se,
esperando as onze horas, muito séria, respondendo distraidamente às conversas da
mãe, com uma cor nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relógio: enfim a velha
matraca gemia cavamente as onze horas, e ela, depois de uma olhadela ao espelho,
saía, dando uma beijoca à mamã.”
Capítulo XXIV
“Amaro, ao sair do paço, foi direito à Sé. Fechou-se na sacristia, a essa hora deserta:
e depois de pensar muito tempo com a cabeça entre os punhos, escreveu ao cônego
Dias:
"Meu caro padre-mestre. — Treme-me a mão ao escrever estas linhas. A infeliz
morreu. Eu não posso, bem vê, e vou-me embora, porque, se aqui ficasse, estalava-me o
coração. Sua excelentíssima irmã lá estará tratando do enterro... Eu, como
compreende, não posso. Muito lhe agradeço tudo... Até um dia, se Deus quiser que nos
tomemos a ver. Por mim conto ir para longe, para alguma pobre paróquia de pastores,
acabar meus dias nas lágrimas, na meditação e na penitência. Console como puder a
desgraçada mãe. Nunca me esquecerei do que lhe devo, enquanto tiver um sopro de
vida. E adeus, que nem sei onde tenho a cabeça. — Seu amigo do C. — Amaro Vieira."
''P.S. — A criança morreu também, já se enterrou''.”
TRECHOS DA OBRA “O CRIME DE PADRE AMARO”