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Nada se Pode Comparar Contigo

O ledo passarinho, que gorjeia 


D'alma exprimindo a cândida ternura; 
O rio transparente, que murmura, 
E por entre pedrinhas serpenteia; 

O Sol, que o céu diáfano passeia, 


A Lua, que lhe deve a formosura, 
O sorriso da Aurora, alegre e pura, 
A rosa, que entre os Zéfiros ondeia; 

A serena, amorosa Primavera, 


O doce autor das glórias que consigo, 
A Deusa das paixões e de Citera; 

Quanto digo, meu bem, quanto não digo, 


Tudo em tua presença degenera. 
Nada se pode comparar contigo. 
Já se afastou de nós o Inverno agreste

Já se afastou de nós o Inverno agreste

Envolto nos seus húmidos vapores;

A fértil Primavera, a mãe das flores

O prado ameno de boninas veste:

Varrendo os ares o subtil nordeste

Os torna azuis: as aves de mil cores

Adejam entre Zéfiros, e Amores,

E torna o fresco Tejo a cor celeste;

Vem, ó Marília, vem lograr comigo

Destes alegres campos a beleza,

Destas copadas árvores o abrigo:

Deixa louvar da corte a vã grandeza:

Quanto me agrada mais estar contigo

Notando as perfeições da Natureza!


Vénus, Vénus gentil! — Mais doce, e meigo

Soa este nome, ó Natureza augusta.

Amores, graças, revoai-lhe em torno,

Cingi-lhe a zona, que enfeitiça os olhos;

Que inflama os corações, que as almas rende.

Vem, ó Cípria formosa, oh! Vem do Olimpo,

Vem cum mago sorrir, cum terno beijo,

Fazer-me vate, endeusar-me a lira.

E quanto podes cum sorriso, ó Vénus!

Jove, que empunhe o temeroso raio;

Neptuno as ondas tempestuoso agite;

Torvo Sumano desenfreie as fúrias...

Se dos olhos gentis, dos lábios meigos

Desprender um sorriso a Idália deusa,

Rendido é Jove, o mar, o Averno, o Olimpo.


A Graça
Que harmonia suave 
É esta, que na mente 
Eu sinto murmurar, 
Ora profunda e grave, 
Ora meiga e cadente, 
Ora que faz chorar? 
Porque da morte a sombra, 
Que para mim em tudo 
Negra se reproduz, 
Se aclara, e desassombra 
Seu gesto carrancudo, 
Banhada em branda luz? 
Porque no coração 
Não sinto pesar tanto 
O férreo pé da dor, 
E o hino da oração, 
Em vez de irado canto, 
Me pede íntimo ardor? 

És tu, meu anjo, cuja voz divina 


Vem consolar a solidão do enfermo, 
E a contemplar com placidez o ensina 
De curta vida o derradeiro termo? 

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,. 


Da aurora à frouxa luz, 
Me dizias: «Acorda, inocentinho, 
Faz o sinal da Cruz.» 
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos 
De inda puro sonhar, 
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo 
Coas roupas a alvejar. 
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga, 
Junto ao bosque fremente, 
Me contavas mistérios, harmonias 
Dos Céus, do mar dormente. 
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta 
Modulavas o canto, 
Que de noite, ao luar, sozinho erguia 
Ao Deus três vezes santo. 
És tu, que eu esqueci na idade ardente 
Das paixões juvenis, 
E que voltas a mim, sincero amigo, 
Quando sou infeliz. 
Sinta a tua voz de novo, 
Que me revoca a Deus: 
Inspira-me a esperança, 
Que te seguiu dos Céus!... 
“Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. "Que horror de cidade!" — pensava. —"Que
tristeza!" E lembrava-lhe Paris, de verão; subia, à noite, no seu faéton, os Campos
Elísios devagar; centenares de vitórias descem, sobem rapidamente, com um trote
discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de
pontos de luz; vultos brancos e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas,
balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura aveludada, e os
castanheiros espalham um aroma sutil.”
“Depois de jantar, à janela da sala, ficou a reler a carta de Jorge. Pôs-se a recordar
de propósito tudo o que a encantava nele, do seu corpo e das suas qualidades. E
juntava ao acaso argumentos, uns de honra, outros de sentimento, para o amar, para o
respeitar. Tudo era por ele estar fora, na província! Se ele ali estivesse ao pé dela! Mas
tão longe, e demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra a sua vontade, a certeza
daquela ausência dava-lhe uma sensação de liberdade; a idéia de se poder mover à
vontade nos desejos, nas curiosidades, enchia-lhe o peito de um contentamento largo,
como uma lufada de independência.”
“Luísa vendo-o às vezes seguir Juliana com um olhar rancoroso, tremia! Mas o que a
torturava era a maneira que Jorge adotara de falar dela com uma veneração irônica;
chamava-lhe "a ilustre D. Juliana, a minha ama e senhora!" Se faltava um guardanapo
ou um copo, fingia-se espantado: "Como! a D. Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão
perfeita!" Tinha gracejos que gelavam Luísa.
— A que sabia o filtro que ela te deu? Era bom?
Luísa agora, diante dele, já nem se atrevia a falar a Juliana com um modo natural;
temia os sorrisos malignos, os apartes: "Anda, atira-lhe um beijo, conhece-se na cara
que estás com vontade de lho atirar!" E, receando as suspeitas dele, querendo mostrar-
se independente, começou na sua presença, a falar a Juliana com uma dureza brusca,
muito afetada. A pedir lhe água, uma faca, dava à voz inflexões de um rancor postiço.”
CONTEMPLAÇÃO

Sonho de olhos abertos, caminhando


Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...

Que é o Mundo ante mim? fumo ondeando,


Visões sem ser, fragmentos de existências...
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando...

E dentre a névoa e a sombra universais


Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das coisas, que procuram cegamente


Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentindo...
A VIOLA FRANCESA

Ao longo da viola morosa


Vai adormecendo a parlenda,
Sem que, amadornado, eu atenda
A lengalenga fastidiosa.

Sem que o meu coração se prenda,


Enquanto, nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.

Mas que cicatriz melindrosa


Há nele, que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitação dolorosa?

Ao longo da viola, morosa...

CANÇÃO DA PARTIDA
Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,


As penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.


O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro um carta...
--- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves --- a carta encantada!


E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para o molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.

Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça


D. Fernando Infante de Portugal
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me


A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gládio erguido dá


Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

OCCIDENTE
Com duas mãos — o Ato e o Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o fecho trêmulo e divino
E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia


A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal


A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.
A Melhor Maneira de Viajar é Sentir
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. 
Sentir tudo de todas as maneiras. 
Sentir tudo excessivamente, 
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas 
E toda a realidade é um excesso, uma violência, 
Uma alucinação extraordinariamente nítida 
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas, 
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas 
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. 

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, 


Quanto mais personalidade eu tiver, 
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, 
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, 
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, 
Estiver, sentir, viver, for, 
Mais possuirei a existência total do universo, 
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora. 
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, 
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo, 
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco. 

ÁLVARO DE CAMPOS.
Capítulo I
“Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis,
tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e
nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se
histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica — que o detestava —
costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de
sangue, muito enfartado:
— Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe — à hora em que defronte, na casa
do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi
pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os
modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito
rudes.”
Capítulo XVI
“Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas
visitas caridosas à paralítica perfizessem ao fim do mês o número simbólico de sete,
que devia corresponder, na idéia das devotas, às Sete Lições de Maria. Na véspera o
padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas
cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a prática do
senhor pároco. Amélia nesses dias erguiase cedo; tinha sempre alguma saia branca a
engomar, algum laçarote a compor; a mãe estranhava-lhe aqueles arrebiques, o
desperdício de água-de-colônia de que ela se inundava; mas Amélia explicava que "era
para inspirar à Totó idéias de asseio e de frescura". E depois de vestida sentava-se,
esperando as onze horas, muito séria, respondendo distraidamente às conversas da
mãe, com uma cor nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relógio: enfim a velha
matraca gemia cavamente as onze horas, e ela, depois de uma olhadela ao espelho,
saía, dando uma beijoca à mamã.”
Capítulo XXIV
“Amaro, ao sair do paço, foi direito à Sé. Fechou-se na sacristia, a essa hora deserta:
e depois de pensar muito tempo com a cabeça entre os punhos, escreveu ao cônego
Dias:
"Meu caro padre-mestre. — Treme-me a mão ao escrever estas linhas. A infeliz
morreu. Eu não posso, bem vê, e vou-me embora, porque, se aqui ficasse, estalava-me o
coração. Sua excelentíssima irmã lá estará tratando do enterro... Eu, como
compreende, não posso. Muito lhe agradeço tudo... Até um dia, se Deus quiser que nos
tomemos a ver. Por mim conto ir para longe, para alguma pobre paróquia de pastores,
acabar meus dias nas lágrimas, na meditação e na penitência. Console como puder a
desgraçada mãe. Nunca me esquecerei do que lhe devo, enquanto tiver um sopro de
vida. E adeus, que nem sei onde tenho a cabeça. — Seu amigo do C. — Amaro Vieira."
''P.S. — A criança morreu também, já se enterrou''.”
TRECHOS DA OBRA “O CRIME DE PADRE AMARO”

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