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LEITURA DELEUZIANA DE PLATÃO

PLATÃO E O SIMULACRO

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
A DIFERENÇA EM PLATÃO
O conflito entre as formulações de Heráclito e Parmênides, para
Chauí (2002), terminou por dar ensejo a uma “crise angustiante” na
filosofia grega, marcando as decisões que ela haveria de tomar e os
caminhos que ela haveria de percorrer dali por diante. Essa crise
nos interessa, pois envolve questões cruciais, tais como a da
existência ou inexistência do uno e do múltiplo, do ser e do devir,
da imobilidade e do movimento.

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
UM LEGADO PROBLEMÁTICO PARA PLATÃO I
• Tais questões formam uma complexa problemática, assim
expressa por Chauí (2002, p. 106 – grifos meus):

“Os que vieram depois de Heráclito e Parmênides já não


podiam aceitar que a razão ou o pensamento – o lógos –
coincidisse diretamente com a experiência sensível, como
supunham os que haviam filosofado antes deles. Seja para
afirmar a unidade múltipla do movimento, seja para afirmar a
unidade única imóvel, Heráclito e Parmênides haviam cavado
um fosso entre a realidade das coisas e a mera aparência
delas. Se, para Heráclito, a aparência, a ilusão, era a
estabilidade estática das coisas, enquanto para Parmênides a
aparência, a ilusão, era a mobilidade incessante das coisas,
para ambos, o verdadeiro é o que se oferece apenas ao e pelo
pensamento e é este que julga a experiência sensível (...)
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha) 3
UM LEGADO PROBLEMÁTICO PARA PLATÃO II

• Qual o problema que ambos deixam para os filósofos


que vieram em seguida, sobretudo, para Platão? A
questão deixada é: como manter a idéia de que o ser é
o ser verdadeiro porque sempre idêntico a si mesmo
(pois só o que permanece idêntico a si mesmo pode ser
pensado e dito) e, ao mesmo tempo, demonstrar que a
multiplicidade e o movimento, a diferença entre as
coisas e sua transformação também são verdadeiras?
Cabia aos filósofos a difícil tarefa de encontrar um
princípio para a mudança em cuja base, porém,
permanecesse salvaguardado o princípio de identidade
e, portanto, o ser imutável postulado por Parmênides.

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
A DIFERENÇA COMEÇA A SER ENCURRALADA
O IMPERATIVO DE SE MANTER O PRINCÍPIO DE
IDENTIDADE I
Examinemos melhor o modo como é posicionado esse
problema. Ora, nos termos de Marilena Chauí,
quaisquer que sejam as tentativas de encontrar saídas
ao mesmo, estas terão, no entanto, de partir de um
determinado pressuposto e, além disso, de assegurá-
lo. Esse pressuposto não é outro senão o formulado
por Parmênides, a saber: o de que o ser é (o ser), ou
seja, o de que o ser permanece idêntico a si mesmo, e
que, só nesses termos, ele pode ser pensado e dito.
Numa palavra, trata-se de encaminhar a solução do
problema mantendo-se o que poderíamos chamar de
“princípio de identidade”, de tal modo que o ser se
diga da identidade.
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
O IMPERATIVO DE SE MANTER O PRINCÍPIO DE
IDENTIDADE II
Isso, de certa forma, já condiciona a outra parte do
problema, ou seja, aquilo que, “ao mesmo tempo”,
também deve ser objeto de consideração e
demonstração, a saber: de que a multiplicidade, o
movimento, a diferença entre as coisas e sua
transformação também são verdadeiros. Tudo se
passa, pois, como se, para bem solucionar esse
problema e superar a crise que ele engendra, fosse
necessário estabelecer uma primazia da identidade
em face da diferença, uma hierarquia entre o uno e
o múltiplo, nas quais o movimento fosse situado
como segundo diante da imobilidade.
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha) 6
O IMPERATIVO DE SE MANTER O PRINCÍPIO DE
IDENTIDADE III
Por outro lado, se isso procede, devemos ter em mente que primazia e
hierarquia implicam também em valoração, ou melhor, em atribuição
de graus distintos de valor.
E, caso concorde-se com isso, não faz sentido pensar que, nesse
movimento, ao passo que a identidade, o uno e a imobilidade são
positivados, a diferença, a multiplicidade e o movimento, em
contrapartida, são negativados?
Então, se há algum problema, se há algo que faz problema à filosofia,
esse algo é constituído pelo trinômio composto pela diferença, pela
multiplicidade e pelo movimento. O que parece questionável, o que
parece estar sub judice, o que parece encarnar alguma periculosidade é,
numa palavra, a diferença.
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
O IMPERATIVO DE SE MANTER O PRINCÍPIO DE
IDENTIDADE IV
É preciso, de algum modo, tornar possível pensar a diferença, no
sentido de torná-la verdadeira e, assim, fazer com que ela se torne
dizível e pensável. O que está implícito, pois, como o grande
incômodo, é tornar a diferença pensável.

Essa leitura alternativa do problema acima evocado parece afinar-se


com a leitura deleuziana das motivações profundas do Platonismo,
mas também com a leitura deleuziana do modo como Aristóteles
buscou solucionar o conflito entre monismo e pluralismo, criticando
seu próprio mestre, Platão. Resta, todavia, conforme a avaliação de
Deleuze (1985, pp. 18-19 / grifos do autor), a qual ele não hesitaria
em dizer que coincidiria com o diagnóstico feito por Nietzsche, que,
uma vez tomada essa direção:

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Gadelha)
UM IMPERATIVO: MANTER O PRINCÍPIO DE
IDENTIDADE V

“era fatal que a filosofia só se desenvolvesse na história


degenerando, voltando-se contra si, deixando-se prender à sua
máscara. Em vez da unidade de uma vida activa e de um
pensamento afirmativo, vemos o pensamento dar-se por tarefa
julgar a vida, de lhe opor valores pretensamente superiores, de a
medir com esses valores e de a limitar, a condenar. Ao mesmo
tempo que o pensamento se torna assim negativo, vemos a vida
depreciar-se, deixar de ser ativa, reduzir-se às suas formas mais
fracas, a formas doentias só compatíveis com os valores ditos
superiores. Triunfo da <<reacção>> sobre a vida activa e da negação
sobre o pensamento afirmativo.”
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio
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Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO I

• “Para Platão, não se trata de negar a natureza de


um [ser] ou de outro [devir], mas de colocar cada
um em seu devido lugar. Segundo Platão,
Heráclito teria toda a razão em afirmar a
realidade do devir, desde que não negasse a
existência do ser em sua perfeita imutabilidade.”
(Shöpke, p.52 – grifos nossos)

• Todavia, “colocar cada um em seu devido lugar”


significa manter o princípio da identidade como
primeiro em face da diferença, do devir.
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Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO II
A teoria do conhecimento em “A República”

No Livro IV, ao expor sua teoria do conhecimento, Platão separa e


diferencia o sensível do inteligível (cada qual com seus modos de
conhecer, hierarquicamente distribuídos).

Obs. Agora, em lugar de os modos ou graus de conhecimento se


relacionarem por “fricção”, tal como na Carta Sétima, vão sendo
superados uns pelos outros, numa direção ascendente.

A B C

AC: totalidade do real


AB: domínio do sensível (visível, material, concreto)
BC: domínio do inteligível (invisível)

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PLATÃO E O SIMULACRO III

A teoria do conhecimento em “A República” (continuação)

Diferentemente do que se passa na Carta sétima, em que


Platão distingue os modos de conhecer e a coisa em si
mesma (objeto a ser conhecido), na República, por sua vez, a
cada modo ou grau de conhecimento corresponderá um tipo
de objeto ou de coisa, de tal maneira que, em cada um
deles, o filósofo nos mostra qual é a ação cognitiva realizada
pelo corpo e pela alma (ou só pela alma, nos modos ou
graus superiores) e quais são os objetos correspondentes a
cada uma dessas atividades cognitivas.

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
A teoria do conhecimento em “A República” (continuação)
A A’ B B’ C

eikasía pístis ou dianóia nóesis


dóxa raciocínio epistéme
imagem (opinião) discursivo ciência verdadeira


conhece conhece conhece conhece
por por por por


imagens crenças raciocínios intuição
das e dedutivos, intelectual
coisas opiniões, demonstração contemplação
sensíveis coisas coerente de
eikones sensíveis argumentos
(cópias) sensação p/ conclusão
simulacros percepção justificada


objetos objetos objetos objetos

Leitura deleuziana de Platão (Sylvio


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Gadelha)
A teoria do conhecimento em “A República” (continuação)

objetos objetos objetos objetos

poesia coisas objetos puras formas (eidos)


pintura naturais matemáticos as Idéias, essências
escultura seres aritmética verdade incondicionada
retórica vivos geometria o que é, em si, e por si
artefatos música

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Gadelha)
A ALEGORIA DA CAVERNA

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
O DIAGRAMA DA LINHA I
LUZ DO BEM

NOÉSIS (Dialética) A Beleza


MUNDO Ideias puras A Justiça
INTELIGÍVEL A Coragem

DIANÓIA
Ciências Geometria Objetos
Superiores matemáticos

LUZ DO SOL

Saberes que se Plantas


CRENÇA apoiam no sensível
MUNDO SENSÍVEL na experiência (objetos sensíveis) Animais

Imagens
Reflexos
IMAGINAÇÃO Artes Sombras
Aparências

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
O DIAGRAMA DA LINHA II

MUNDO SENSÍVEL MUNDO INTELIGÍVEL

Sol Bem

Luz Verdade

Cores Ideias

Olhos Alma racional, ou inteligência

Visão Intuição

Trevas, cegueira, privação de luz Ignorância, opinião, privação da verdade

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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO IV
A reversão do platonismo
Em Platão e o simulacro (Apêndice de Lógica do
sentido), Deleuze indaga sobre o significado da
expressão reversão do platonismo, e afirma que, só
aparentemente, ela constituiria a tarefa da filosofia de
Nietzsche, ou de uma filosofia do futuro.
Na verdade, continua Deleuze, essa expressão, que
acena com uma dupla recusa, das aparências e das
essências, remontaria a Hegel e a Kant.
O inconveniente dessa fórmula, segundo Deleuze,
reside em que ela é abstrata, mostrando-se incapaz de
dar conta da real motivação do platonismo.
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio
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Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO V

A reversão do platonismo (continuação)

A verdadeira reversão do platonismo requer a


exposição de sua verdadeira motivação; é
necessário encurralá-la, assim como Platão faz
com o sofista.
Mais do que a divisão do real em um mundo
inteligível e um mundo sensível, para Deleuze (p.
259), “o motivo da teoria das Ideias deve ser
buscado numa vontade de selecionar, de filtrar.
Trata-se de fazer a diferença. Distinguir a ‘coisa
mesma’ e suas imagens, o original e a cópia, o
modelo e o simulacro”.
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PLATÃO E O SIMULACRO VI
A reversão do platonismo (continuação)

Deleuze prossegue dizendo (p. 259) que “o


projeto platônico só aparece verdadeiramente
quando nos reportamos ao método de divisão”.
Esse método funde a potência da dialética com
outra potência, representando assim todo o
sistema.

Todavia, o método da divisão envolve dois


movimentos; o primeiro é superficial (e possui
um aspecto irônico); o segundo, por sua vez, é o
mais substancial e importante.
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO VII
A reversão do platonismo (continuação)

No primeiro sentido, segundo Deleuze (p. 259), o método


consistiria em “dividir um gênero em espécies contrárias para
subsumir a coisa buscada sob a espécie adequada”.
Exemplos:
a) o processo da especificação continuada na busca da
definição da pesca, tal como se vê no diálogo O sofista;
b) o processo da especificação continuada na busca da
definição do político, tal como se vê no diálogo O político;
c) o processo da especificação continuada na busca da
definição do delírio amoroso, tal como se vê no diálogo
Fedro;
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PLATÃO E O SIMULACRO VIII
A reversão do platonismo (continuação)

Por quê, assim entendido, esse movimento se mostra


superficial, guardando um aspecto irônico? O problema, aqui,
segundo Deleuze (p. 259-260), é que essa divisão revela-se
frágil, ilegítima (silogismo), haja vista que, nela, sempre “falta
um termo médio capaz, por exemplo, de nos fazer concluir
que a pesca está do lado das artes de aquisição e de aquisição
por captura etc.”
O objetivo essencial e mais importante da divisão é outro, a
saber: selecionar linhagens distinguindo, dentre os
pretendentes, quais deles são puros/autênticos e quais deles
são impuros/inautênticos.
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio
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Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO IX
O essencial no método da divisão: a dialética opera com o mito

O verdadeiro objetivo da divisão é, então, selecionar linhagens;


para isso, Platão recorre a uma dialética que não é propriamente
baseada na contradição nem na contrariedade, mas sim na
rivalidade (amphisbetesis) – uma dialética dos rivais, dos
pretendentes.

Curiosamente, à medida em que essa seleção de linhagens


prossegue, tudo se passa como se Platão, num gesto irônico,
renunciasse a dar-lhe prosseguimento, substituindo a seleção por
um mito. Assim, diz Deleuze (p. 260), “no Fedro, o mito da
circulação das almas parece interromper o esforço da divisão; da
mesma forma, no Político, o mito dos tempos arcaicos.” 23
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO X
Dialética e mito na divisão seletiva

Diz Deleuze (p. 260): “Tal é a segunda armadilha da divisão,


sua segunda ironia, esta escapada, esta aparência de
escapada ou de renúncia. Pois na realidade, o mito não
interrompe nada; ele é, ao contrário, elemento integrante da
própria divisão. É próprio da divisão ultrapassar a dualidade
entre o mito e a dialética e reunir em si a potência dialética e
a potência mítica. O mito, com sua estrutura sempre circular,
é realmente a narrativa de uma fundação. É ele que permite
erigir um modelo segundo o qual os diferentes pretendentes
poderão ser julgados. O que deve ser fundado, com efeito, é
sempre um pretensão.”
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO XI
Ilustração: a tríade neoplatônica

O Rei A Princesa O noivo


O imparticipável o participado o participante
O fundamento o objeto da pretensão o pretendente
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO XII

“E é preciso distinguir, sem dúvida, todo um conjunto de graus,


toda uma hierarquia, nesta participação eletiva. Aqueles que não
passam pelo crivo dessa seleção encarnam a ‘má potência’ do
falso pretendente.”

O IMPARTICIPÁVEL O PARTICIPÁVEL O PRETENDENTE


Como fundamento, possui É o que o imparticipável É o possuidor em segundo
alguma coisa em primeiro /fundamento dá a lugar, na medida em que
lugar, mas pode dá-la a participar; ele dá o soube passar pela prova do
participar a um terceiro participável aos fundamento
participantes/pretendentes

Leitura deleuziana de Platão (Sylvio


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Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO XIII
Dialética e mito na divisão seletiva
(continuação)

Exemplo no Fedro: “o mito da circulação [das almas] expõe o


que as almas puderam ver das Ideias antes da encarnação: por
isso mesmo nos dá um critério seletivo segundo o qual o
delírio bem fundado ou o amor verdadeiro pertence às almas
que viram muito e que têm muitas lembranças adormecidas,
mas ressuscitáveis – as almas sensuais, de fraca memória e de
vista curta, são, ao contrário, denunciadas como falsos
pretendentes.”
Leitura deleuziana de Platão (Sylvio
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Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO XIV
Dialética e mito na divisão seletiva
(continuação)

O exemplo no Político: “o mito circular mostra que a definição


do político como ‘pastor dos homens’ não convém literalmente
senão ao deus arcaico; mas um critério de seleção daí se
destaca, de acordo com o qual os diferentes homens da cidade
participam desigualmente do modelo mítico. Em suma, uma
participação eletiva responde ao problema do método seletivo.”
(p. 260-261) “O Político distingue em detalhe: o verdadeiro
político ou o pretendente bem fundado, depois parentes,
auxiliares, escravos, até os simulacros e contrafacções.” (p. 261)
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)
PLATÃO E O SIMULACRO XV

Dialética e mito na divisão seletiva (continuação)

Assim, o mito constrói o modelo imanente ou


o fundamento-prova de acordo com o qual os
pretendentes devem ser julgados e sua
pretensão medida. E é sob esta condição que
a divisão prossegue e atinge seu fim, que não
é a especificação do conceito mas a
autenticação da Ideia, não a determinação da
espécie, mas a seleção da linhagem.”
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Leitura deleuziana de Platão (Sylvio Gadelha)

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