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Cadernos da Escola de Comunicação

ISSN 1679-3366

Artigo Estudos Culturais e Estudos de Gênero:


estendendo os olhares

Miriam Adelman

Palavras-chave Resumo
estudos culturais, estu- O conceito de cultura, conforme formulado desde olhares
dos de gênero, conceito disciplinares distintos (antropologia, sociologia, semiótica,
de cultura,sociologia da psicanálise, etc.) enfatiza dimensões diferentes que convergem
cultura. na abordagem crítica e interdisciplinar dos Estudos Culturais
- de acordo com a proposta e a síntese feitas inicialmente por
Keywords Raymond Williams e desenvolvidos posteriormente por Stuart
cultural studies, gender Hall e outros. Este artigo discute as possíveis vantagens desta
studies, concept of perspectiva nova (assim como suas relações “produtivas” com
culture, sociology of outras abordagens contemporâneas de cultura e “culturalidade”
culture. – culturalness), que se forja através de debates, conflitos e
“interrupções críticas”. Exemplo desta última foi a batalha
Biografia citada por Hall das teóricas feministas, que na década de
Miriam Adelman (M.Phil 1980 precisaram se empenhar em demonstrar a importância
em Sociology da New da dimensão de gênero nos fenômenos culturais da (pós)
York University e douto- modernidade.
ra pelo Doutorado Inter-
disciplinar em Ciências
Humanas, Universidade The Looking-Glass world which the brave and sensible Alice
Federal de Santa Catari- enters, refusing to be caught up in her own reflection over
the mantelpiece, is not a place of symmetrical reversal, of
na) é professora do De-
anti-matter, or a mirror-image inversion of one she comes
partamento de Ciências from. It is the world of discourse and of asymmetry, whose
Sociais da Universidade arbitrary rules work to displace the subject, Alice, from
Federal do Paraná des- any possibility of naturalistic identification. Although in
de 1992. É co-fundadora the transit Alice is divested of many a smug, self-righteous
e co-coordenadora do certainty, still she keeps on asking questions and wanting
Núcleo de Estudos de to know, who “dreamed it all?” Teresa de Lauretis, Alice
Gênero da mesma ins- Doesn’t: Feminism, Semiotics, Cinema.
tituição. Entre seus inte-
resses atuais (ensino e
pesquisa), os principais Cultural Studies and Gender Studies: On expanding
são: Teoria Sociológica our ways of seeing
Contemporânea; Es-
tudos Culturais; Teoria The concept of culture, as it has been formulated through
Feminista; Corporalida- distinct disciplinary gazes (Anthropology, Sociology, Semiotics,
des e Subjetividades. Psychoanalysis,
etc.) emphasizes different dimensions that converge in the
critical and interdisciplinary approach of Cultural Studies,

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Cadernos da Escola de Comunicação
ISSN 1679-3366

following the proposal and synthesis initially elaborated by Raymond Williams and further
developed by Stuart Hall and others. This article discusses the possible advantages of
such an approach (and its “productive” relations with other contemporary approaches to
culture and “culturalness”), as it has been forged through debates, conflicts and “critical
interruptions”. An example of the latter is the struggle cited by Hall in which feminist
scholars of the 1980s fought to demonstrate the importance of the gender dimension for
our understanding of the cultural phenomena of (post) modernity.

Introdução:
Da Sociologia da Cultura aos Estudos Culturais: uma
trajetória possível

Os Estudos Culturais encontram sua origem num momento de


transformação das perspectivas críticas que se gera, quase simultaneamente, dentro
e fora da academia. Trata-se de um momento histórico tão conturbado quanto
inesperado, período que continua inspirando tanto o fascínio das pessoas quanto
acirrados debates teóricos: “os anos sessenta” 1. Não é coincidência que um dos seus
textos fundantes – o livro de Raymond Williams, Cultura e Sociedade: 1780-1950 é
reconhecido como texto que marca o surgimento da Nova Esquerda Britânica. Fato
notável também porque o livro aparentemente tratava só indiretamente do momento
propriamente político da vida social, enquanto focalizava e analisava discursos -
principalmente literários – sobre cultura e sociabilidade desde a consolidação da
modernidade até o início do período de uma já inaugurada (sociedade da) cultura
de massas. No entanto, o desafio teórico despretensiosamente contido nas suas
páginas veio a aguçar os espíritos dos que, nesse momento, incomodavam-se com
as fórmulas de uma visão marxista mais tradicional que temia em não abandonar
noções como a do proletariado como sujeito universal de uma revolução
(igualmente universal), ou a das relações “materiais” e econômicas de classe como
os grandes “determinantes” da sociabilidade e da cultura, marcando estas últimas,
por tanto, como momentos subordinados de reprodução sistêmica. Assim, estes
novos esforços teóricos puderam fornecer um tão necessário impulso em direção
1 “The sixties is merely a name we give to a disruption of late capitalist ideological and political
hegemony, to a disruption of the bourgeois dream of unproblematic production, of everyday life as the
bureaucratic society of controlled consumption, of the end of history... a struggle over turf with the seizing
of the streets, of the Sorbonne, of the ideological apparatuses themselves... What you finally decide to
think the sixties was is one of the forms in which you affirm or repudiate a whole part of your own life”
(Sayres, Stephanson, Aronowitz and Jameson, 1984) Para uma breve discussão de alguns dos debates
que continuam se dando em torno da época e seu legado político e cultural, ver Adelman (2001).

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à uma visão crítica “pós-marxista” da que possuem hoje uma longa história.
sociedade e da política, que reconheceria Neste sentido, gostaria de ressaltar que,
outros sujeitos, diversas formas de fazer muito a partir dos impulsos dados pelos
política, e permitiria uma re-avaliação textos pioneiros de Raymond Williams
das relações entre as diversas esferas e (ver os comentários de Hall, 2003a, ao
dimensões da vida social – público e respeito), os Estudos Culturais iniciam
privado, “produção” e “reprodução, uma discussão teórico-metodológica que
trabalho, cultura e sociabilidade, assim instiga a repensar o próprio conceito de
como a antiga dicotomia marxista em cultura.
relação ao “material” e o simbólico. Entre os aspectos mais
Desde seus momentos iniciais significativos desta tentativa de rever
com o nascimento do CCS (Centre como trabalhamos com a noção de
for Cultural Studies) em Birmingham, cultura, destaco três. Primeiro, com
perpassando várias fases e espalhando-se um agudo senso histórico que nos leva
inicialmente mais pelo mundo anglofone, a refletir sobre as transformações sociais
os Estudos Culturais hoje gozam de que estão por trás da produção do termo
adeptos através do globo. Na América na sua utilização moderna (na língua
Latina assim como em outros lugares, inglesa, a palavra culture vinha de uma
os esforços de teorização que se juntam associação mais antiga aos processos de
nos Estudos Culturais marcam uma cultivação da terra) Williams promove
convergência de interesses de pesquisa e um distanciamento inicial de um certo
debate de estudiosos que provêm de uma “senso comum” incorporado também
ampla gama de disciplinas e campos do em alguns discursos acadêmicos sobre
saber: teoria literária, história, sociologia, cultura. A partir disso, nos permite
antropologia, lingüística, filosofia, entre uma reaproximação, re-avaliando nossa
os mais proeminentes. herança teórica também, promovendo
Mais do que voltar aqui para um trânsito muito frutífero para além de
reconstruir todo o processo histórico fronteiras disciplinares,3 que vão a passar
de construção dos Estudos Culturais 2,
para a presente discussão é importante 3 Neste sentido, ele resgata tanto o
tentar esclarecer qual sua proposta e suas conceito de cultura como “modo de vida singular
de um povo” advindo da antropologia clássica;
contribuições específicas para o estudo
quanto a noção de cultura como elaborações no
da cultura, o que também significa campo das idéias e da arte- e também como
entender sua relação com alguns ideologias que refletem e exprimem as lutas que
debates sobre arte, cultura e sociedade emergem de um mundo social profundamente
2 Para esta finalidade, existem vários estratificado - como vinha sendo tratado
trabalhos utéis. Além dos escritos de Hall (2003) numa sociologia da cultura mais tradicional,
os trabalhos de Mattelart (2004) e Tomaz Tadeu e finalmente, a acepção contribuída a partir da
da Silva (2000) fazem parte de uma bibliografia lingüística estruturalista e pós-estruturalista, que
inicial em língua portuguesa. sugere pensar cultura em termos mais amplos,
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a conviver no diálogo e mantendo, como nos sugere Williams, devemos pensar


Jane Flax diria (1991), suas tensões na (produção da) cultura de maneira
produtivas. mais parecida com o fenômeno da
É neste contexto que emerge linguagem, que só existe a partir de
também, diretamente do trabalho de estruturas partilhadas – e utilizadas, e
Williams, outro debate que permite transformadas cotidianamente – por
um avanço no nosso pensamento sobre todos os membros de uma sociedade,
cultura. Trata-se da polemização de claro está, a partir de posições socialmente
noções de cultura baseadas em binômios diferenciadas. Desta maneira também,
como “cultura erudita/cultura popular”4 podemos pensar no nosso mundo em
ou “alta cultura/cultura de massas”, termos de “cultura(s) em expansão”; em
distinções muitas vezes sustentadas na lugar, por exemplo, de produzir uma
tradição sociológica (como na conhecida visão mais pessimista, de declínio de
e muito influente caracterização da uma verdadeira cultura superior ( como
“indústria cultural” de Adorno e seria o caso da dimensão estética de
Horkheimer) e em algumas vertentes Marcuse) e da evolução dos novos meios
chaves da filosofia e da crítica literária.5 de comunicação como formas que se
Williams dá um primeiro e grande passo valem da reprodutibilidade técnica na
na desconstrução destes binômios ao “banalização” da cultura e a substituição
questionar o próprio conceito de “massa” de formas de sociabilidade mais
(as massas, ele sugere, não existem a não autônomas por outras que permitem
ser nas nossas próprias mistificações, a manipulação das massas, como os
pois estamos sempre colocando nossos frankfurtianos sustentavam. Sem deixar
outros nessa categoria), sugerindo de considerar as conseqüências destes
também que nos livremos do impulso novos meios que de fato produzem muito
de pensar “cultura” e “classe” como mais “para a classe trabalhadora” do que
termos coextensos conforme colocado por ela mesma, Williams alerta para a
em vertentes marxistas. Em lugar disto, necessidade de não tirar desta situação
conclusões fáceis ou simplificadoras
como “práticas de significação” (e que por demais. Por um lado, porque os novos
tanto, pode virar a abranger todas as práticas formatos midiáticos não determinam
cotidianas onde os diversos aspectos da vida são
seus conteúdos: a produção destes
significados e resignificados).
4 Presente, como Hall nos alerta, também
continua sendo um processo em aberto,
no trabalho pioneiro do autor russo M. Bakhtin e em disputa. Por outro, porque é
(Hall, op.cit. 2003a). necessário romper com a noção de existir
5 Por exemplo, no trabalho do filósofo uma “verdadeira cultura proletária” que
espanhol da “geração de 1914” Ortega e Gassett, se opõe claramente a uma cultura de elite,
e na escola inglesa de crítica literária, New para em lugar disto situar nossas análises
Criticism, outro movimento teórico da primeira no plano de instituições, processos e
parte do século XX.

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momentos históricos específicos, nos colonizados tendem a ser representados


quais a produção cultural se desdobra como tão contundentemente dominados
relacionalmente. E ainda mais, visto que pelas culturas colonialistas que reduzem-
–como já assinalamos - os novos formatos se, outra vez, ao seu outro passivo,
não predeterminam em si os conteúdos subjugado, aculturado7. Contudo,
nem os usos que lhes serão dados; muito para “continuar a conversa” e em alguns
pelo contrário, abrem para uma gama sentidos importantes, mudar seus termos,
ampla de possibilidades, contraditórias as teóricas feministas desenvolveram um
e passíveis de novos e surpreendentes outro olhar sobre os processos históricos
desdobramentos - um ponto que se conturbados, contestados e contraditórios
tornará um eixo de todo o posterior de construção da sociedade e culturas
desenvolvimento da perspectiva dos modernas, mostrando uma presença
Estudos Culturais. feminina que criava, desde as margens
Em terceiro lugar (e aqui não e os interstícios, mas também, por
nos remetemos mais a obra de Williams, vezes, forçando a entrada nos espaços
senão as contribuições posteriores, vindo institucionalizados, outros olhares.8
principalmente da teoria feminista e De forma semelhante, a teoria
dos estudos críticos sobre raça ), os pós-colonial, que se desenvolve a partir
Estudos Culturais nos encorajam a ver da obra pioneira de Edward Said (op.
os processos de produção cultural a cit.), recupera a atuação de outros
partir também da participação (atual e Outros da modernidade – como no
histórica) de grupos que, socialmente argumento de Paul Gilroy (2001) sobre
marginalizados, não eram reconhecidos a constituição de um Atlântico negro
pelas suas contribuições à cultura como contracultura da modernidade,
moderna. Assim como as mulheres os trabalhos de Hall (2003), Bhabha
vinham sendo representadas como “o (1994) e Canclini sobre as culturas
outro arcaico da modernidade” (cf. híbridas que moldam a modernidade9,
Felski, 1995)6, a representação ocidental 7 Os trabalhos de Appadurai ( 1996 )
dos “não ocidentais” também situava , Thompson (1995) e Canclini (1995 ) fazem
estes numa posição de ausência, negação importantes críticas dessa perspectiva.
ou oposição aos processos que fundam a 8 O que acontece quando o sujeito
historicamente colocado na posição de “objeto
cultura ocidental (cf. Said, 1979; Hall,
do olhar” inverte sua posição e verte sua própria
2003). Mesmo na crítica cultura inspirada forma de ver sobre os processos que o (a)
nas teorias marxistas do imperialismo, objetificavam? Esta grande questão estimula toda
as diversas culturas dos países e povos uma produção por parte de teóricas feministas
6 E/ou também, como tão astutamente que a estudam dentro do contexto midiático do
argumenta Huyssen (op.cit.) o veículo, cinema, desde os trabalhos pioneiros de Mulvey
receptáculo ou quinta-essência da cultura de (2000) Kaplan (2000) e Lauretis (1984) que
massas, que se oporia à cultura superior, erudita tornaram-se leituras indispensáveis.
e – no seu momento – modernista. 9 Como aponta Canclini sobre a
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assim como as elaborações de Arjun e dominados (passivos). Responde


Appadurai sobre uma esfera pública também, metodologicamente, à grande
diaspórica que transborda fronteiras preocupação dos Estudos Culturais com
nacionais e se faz como veículo de os fenômenos midiáticos, isto é, com
articulação de identidades e “formas de a grande importância que “as mídias”
imaginar o eu” baseadas em experiências têm, hoje, na produção dos discursos,
e processos dos povos das diásporas práticas e significados que constituem
atuais. Estas contribuições vêm a a cultura contemporânea. Falo aqui
complexificar os debates sobre cultura de dos estudos de recepção, como Stuart
uma forma realmente nova, inserindo Hall tratou nos seu texto pioneiro sobre
sujeitos e problemáticas teóricas, e a “codificação/decodificação” (2003)
balizando-se, nos Estudos Culturais, no e a antropóloga Heloisa Buarque de
aporte gramsciano de pensar e entender Almeida (2003) desenvolveu através de
a cultura como espaço de luta pela estudo etnográfico Telenovela, consumo
hegemonia - luta simbólica, sim, mas e gênero. Estes autores fazem parte de
não por isso, sem estar profundamente todo um movimento teórico que defende
imbricada nas dinâmicas institucionais e – e realiza -novas leituras dos momentos
“materiais” da vida social. de “produção” e “recepção” de discursos
Finalmente, há um quarto ponto midiáticos, na sua permeabilidade e
que se dá também como desdobramento interconexão. A visão mais convencional
das questões anteriores – da redefinição de dois momentos, um (determinante e
dos campos onde a cultura se forja e se “todopoderoso” ) de “produção/emissão”
transforma, da relativização das fronteiras de mensagens e um outro (dependente)
entre categorias antes tidas como nítidas, de “consumo” de mensagens, cede lugar
de “alta cultura” e “baixa cultura”, ou à esta nova visão de movimento mais
cultura erudita e cultura popular, de “cíclico” no qual a significação não
entender os sujeitos da cultura na sua ocorre num momento só, senão que se
complexidade, e não como agentes – constrói ao longo do ciclo. Por outro
ou “não-agentes” - fixos em categorias lado, mantém profunda conexão com os
simples e nítidas de dominadores (ativos) significados que estão sendo produzidos
em outros campos da vida social;
centralidade de uma visão de culturas híbridas
assim, os estudos contemporâneos da
nos Estudos Culturais: “... é conveniente deslocar
o eixo da análise para a heterogeneidade e a
recepção enfatizam que a mesma é
hibridação. O especialista em cultura ganha sempre contextual e envolve sujeitos
pouco estudando o mundo a partir de identidades diversos e diferentes entre si. Por tanto,
parciais: seja a partir das metrópoles, das nações as leituras que se fazem das mensagens
periféricas ou pós-coloniais, das elites, dos midiáticas também são heterogêneas
grupos subalternos, de uma disciplina isolada, ou e podem extrapolar em muito as
do saber totalizado. Aquele que realiza estudos expectativas dos seus “produtores” (strito
culturais fala a partir das interseções” (2006: 23)

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senso). Desta maneira, descobre-se que no palco da vida social. Embora a


mesmo tratando de textos midiáticos renovada importância destes processos
com intenções ideológicas relativamente de “produção de sujeitos” e identidades
claras e fechadas - ou seja, menos renovem a contribuição da metodologia
“ambíguos” do que costumam ser - é foucaultiana para que as mesmas sejam
possível fazer leituras “na contramão”, compreendidas em relação a regimes
leituras críticas e reflexivas, seja intenção de “poder/saber”, isto não precisa levar
consciente ou não. Consequentemente, a negar a relevância da insistência de
é preciso abrir espaço para estudar todos Giddens (1991) enquanto teoriza o
os momentos de produção e recepção, carater reflexivo da modernidade e
dando também destaque aos processos suas instituições sociais. Muito embora
complexos através dos quais as pessoas parece estar crescendo hoje o campo
interpretam, brincam com e incorporam de influência dos teóricos retratam o
reflexivamente – de formas mais ou momento como sendo mais caracterizado
menos “críticas” - estes significados na por perdas (de laços de sociabilidade, de
sua vida cotidiana. formas articuladas e “universalizantes”
Com certeza, o movimento de luta política e de possibilidades
teórico representado pelo nascimento e de articulação de discursos críticos
desenvolvimento dos Estudos Culturais coerentes),11 podemos argumentar que
pertence, como nos alerta Michelle se trata de teorizações feitas exatamente
Barrett (1999)10 ao nosso momento da com ênfase em ora uma, ora outra das
virada culturalista, isto é, um período linhas contraditórias dos nossos tempos.
histórico, que corresponde, a grosso Ou seja, as tensões entre as teorias são
modo, aquilo que por vezes é chamado uma forma de verter algumas das tensões
de “pós-modernidade”, no qual uma mais vivas, mais presentes de nossa vida
boa parte do “social” se desdobra através social e cotidiana.
da cultura. Neste cenário, o trabalho e Por outro lado, como outra vez
a “produção” relegam-se a posições é apontado por Barrett, reconhecer a
menos centrais na vida e na construção “virada cultural” não deve ser entendida
da identidade dos sujeitos ao longo de como se se estivesse negligenciando os
suas vidas; há uma intensa circulação de “aspectos materiais” e o poder nas suas
“discursos mediados” que encorajam, “raízes” sócio-econômicas. Este ponto
incitam, estimulam e disciplinam é também reforçado por Hall, quando
os sujeitos, e as lutas simbólicas pela chama nossa atenção para a necessidade
hegemonia de formas de olhar, pensar dos Estudos Culturais não descuidarem
e sentir ocupam cada vez mais espaço de tecer sempre interpretações sobre a
10 Socióloga, teórica feminista e cultura que incluam as dimensões que
pensadora associada à vertente dos Estudos
Culturais britânico com uma obra teórica ainda 11 Discuto estas visões sobre a pós-
pouco divulgada no Brasil. modernidade noutro texto (Adelman, no prelo.)
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codificamos como as da “economia revista internacional, Cultural Sociology


política” – as relações sociais de poder que no seu primeiro número se justifica
nas suas estruturais materializadas das em função de uma necessidade específica:
relações econômicas – mas sem retornar existem publicações de reconhecido
a uma “ ‘economia política’ mais clássica valor para disseminar trabalhos dos
da cultura” que “insiste que os processos Estudos Culturais e da Antropologia
econômicos e as estruturas de produção Cultural, mas ainda assim, haveria uma
cultural são mais significantes do que abordagem especificamente sociológica,
seu aspecto cultural-ideológico e que que valeria a pena manter, cultivar, e
estes são um tanto adequadamente pôr para dialogar com as pesquisas e
apreendidos na terminologia mais argumentos desenvolvidos nas áreas
clássica do lucro, exploração, mais valia afins. Sustentando um argumento sobre
e análise da cultura como mercadoria” ( uma contribuição disciplinar particular,
Hall, p.155) os autores da publicação, no editorial de
A partir destes desen- apresentação, insistem:
volvimentos teóricos, não só vem
crescendo o contingente de adeptos às Estudiosos que empregam formas
abordagens e às perspectivas teórico- sociológicas para compreender
questões de cultura tendem a falar
metodológicas dos Estudos Culturais, tanto sobre o ´social` quanto sobre
senão que desencadeia-se, dentro das o ´cultural´, relacionando ambas
áreas disciplinares mais tradicionais, re- esferas – independentemente de
avaliações de seus pressupostos, objetos como estas são definidas – de
e campos teóricos. “Antigas disciplinas” determinadas formas (e por vezes, até
negando que tal distinção analítica
como a Sociologia e a Antropologia são entre ambas esferas possa ser feita –
obrigadas, como disse Barrett (op.cit.), mas mesmo assim, exige-se alguma
a re-pensar seus projetos e fronteiras reflexão sobre ambos significantes,
disciplinares. Isto conduz a discussões “o social” e “o cultural”) . Colocado
valiosas sobre o sentido, no momento de uma forma mais simples, a
presença do significante “social” é
atual, de se abrir para maiores trânsitos menos pronunciado nos Estudos
“através das fronteiras” das disciplinas, ao Culturais do que na Sociologia.
mesmo tempo que algo delas se conserva Posições conceituais que tomam “o
– como “tensões criativas” entre olhares social” como objeto de interesse e
disciplinares que focalizam dimensões investigação podem considerar-se
como pertencendo ao amplo conjunto
diferentes dos processos sociais, como de “paradigmas” sociológicas. (Inglis,
nuances que sendo observados, permitem Blaikie e Wagner- Pacifici, 2007)12
perceber melhor a complexidade e o 12 “Scholars deploying sociological ways of
caráter contraditório da vida social. Um thinking to understand cultural matters tend to talk
exemplo interessante disto nos é servido about both the ‘social’ and the ‘cultural’, relating
pela ocasião de lançamento de uma nova these realms, however more specifically defined,
in certain particular ways (even sometimes

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Faz algum sentido argumentar durante um período de mais de 15 anos,


que manter algumas distinções – me parece possível dizer que a sociologia,
conceituais, mas relativas e mais como área disciplinar consolidada
“estratégicas” do que outra coisa – entre e no contexto específico brasileiro,
estas formas de abordar a cultura pode ser continua atrelada a noções do “cânone”
útil, para que nossas atuais abordagens sociológico que se resiste á incorporação
inter- (ou trans- ou multi-) disciplinares mais plenas das contribuições feministas
sejam construídas tecendo explicações e dos estudos de gênero (cf Adelman,
que unem contribuições específicas, 2004). Por outro lado, autores e
e que uma sociologia da cultura tenha autoras dos Estudos Culturais, que
uma função particular, de relembrar dos –no caso brasileiro - encontram maior
vários tipos de relações sociais e históricas receptividade fora da Sociologia13 -
que sustentam a produção da “cultura”. ensaiam uma nova perspectiva, “pós-
Mas exatamente neste espírito, de marxista”, para pensar o mundo a partir
validar contribuições específicas, saltam da complexa imbricação de questões de
a vista - de novo - algumas das grandes classe, raça e gênero, adotando uma
contribuições dos Estudos Culturais, que posição teórica que deshierarquiza estas
construíram um espaço que permitiu a relações entre si. Stuart Hall, intelectual
inclusão de temáticas, objetos e vozes jamaicano que fez sua carreira intelectual
que nas perspectivas mais clássicas das na Inglaterra, tornando-se um dos
ciências sociais foram pouco teorizados, principais nomes associados ao Centre
invisibilizados e por vezes, resistidos. for Cultural Studies (Birmingham), cita
– na sua discussão sobre a constituição
Estudos culturais e estudos do Centro – como “duas interrupções
de gênero: compartilhando críticas” fundantes de uma nova
caminhos.
perspectiva teórica, as contribuições da
teoria feminista e dos estudos críticos
A partir de experiências
13 Evidentemente, refiro-me a processos
próprias participando do cotidiano de permeados por mudanças, fluxos e novos
uma universidade federal brasileira e debates. Contudo, é significativo que o primeiro
as redes nacionais ás quais se integra volume que disponibiliza um bom conjunto
denying that such an analytical distinction between de textos do autor Stuart Hall em versão em
the two realms can be drawn – but such a claim língua portuguesa (Sovik e Hall, 2003) presenta
still involves reflecting on both the signifiers um esforço de pessoas associadas à área de
‘social’ and ‘cultural’) Simply put, the presence of literatura comparada; venho também observando
the signifier ‘social’ is much less pronounced in a crescente influência de vários autores
cultural studies than it is in sociology. Conceptual teoricamente afiliados aos Estudos Culturais em
positions that that take the ‘social’ as an object of cursos e programas da Comunicação Social, e
interest and investigation can be said to belong to mesmo na antropologia; na Sociologia, parece
the broad set of ‘sociological’ paradigms.” existir maior dificuldade para o estabelecimento
destes “novos diálogos”.
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sobre raça: rupturas, como ele diz, em homens, é claro – pensamos que fosse
referência particular à primeira, que o momento de introduzir trabalho
feminista de qualidade nos estudos
exigiram a reorganização do campo de culturais. E tentamos realmente
formas bastante concretas, incluindo atraí-lo, importá-lo, fazendo boas
questões como “a expansão radical da propostas a intelectuais feministas de
noção do poder” e “a centralidade das peso. Como seria de esperar, muitas
questões de gênero e sexualidade” para a mulheres nos estudos culturais não
estavam interessadas neste projeto
compreensão do mesmo, novas incursões “magnânimo”. Abríamos as portas
na indagação sobre “a área perigosa do aos estudos feministas, como bons
subjetivo e do sujeito” (Hall, op.cit. pp. homens transformados. E, mesmo
208-209). assim, quando o feminismo arrombou
O contraste então entre uma a janela, todas as resistências, por
mais insuspeitas que fossem, vieram à
“Sociologia da Cultura” clássica pré- tona – o poder patriarcal plenamente
feminista, que depois segue um caminho instalado, que acreditara ter-se
de evolução posterior ainda resistente desautorizado a si próprio. (ibidem,
à perspectiva de gênero, e um novo p. 209)
campo interdisciplinar, já produto de
outro momento histórico, que também Mais interessante ainda é
toma como objeto “a cultura”, fica saber, das próprias teóricas feministas
então de certa forma, “historicamente e estudiosas de gênero, como as lutas
explicado”. Contudo, o novo campo, para desenvolver uma abordagem que
que desde uma perspectiva e experiência realmente incorporasse as experiências
acadêmica feministas, torna-se um femininas e a “lente de gênero” se
campo particularmente fértil para seus iniciaram, quais os elementos das
interesses de teorização e de pesquisa, abordagens mais convencionais
e – na melhor das hipóteses - um espaço precisaram ser “modificadas” para
onde articulam-se novos diálogos e englobar as experiências femininas na
possibilidades de sair do que tem sido produção da cultura e do cotidiano, e
chamado de “gueto” dos estudos de quais os conceitos fundamentais que
gênero, também exigiu muito trabalho, permitiram que esta tarefa progredisse.
muito debate, e por vezes bastante Um exemplo que serve para
tensão e conflito. Como o mesmo ilustrar o sentido desta “interrupção” e
Hall reconhece, relativo à trajetória dos a profundidade das abordagens novas
estudos de gênero dentro dos EC: que instituía encontramos num antigo
texto, Girls and Subcultures (publicado
Dada a importância crescente do originalmente em 1975) de duas
trabalho intelectual feminista, bem pioneiras da época, Ângela McRobbie
como dos primórdios do movimento e Jenny Garber (1997). Exatamente
feminista no início da década de 70,
muitos de nós no Centro – na maioria
na época em que os pesquisadores de

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Birmingham estavam elaborando seus primeiros trabalhos sobre subculturas jovens


– hoje tidos como paradigmáticos para uma nova compreensão de como grupos
subalternos desenvolvem seus próprios códigos culturais como formas de resistência
da dominação dos grupos hegemônicos – estas pesquisadoras perceberam que
mais uma vez, corria-se o risco de reproduzir certas cegueiras canônicas. De fato,
nesta nova literatura etnográfica e de análise cultural, reproduzia-se o antigo viés
modernista que significava toda ação, e principalmente, toda ação “heróica”, como
masculina. Elas apontavam para a ausência de personagens femininas nestas novas
estórias e narrativas:
Percebe-se que muito pouco foi escrito sobre o papel das jovens nos agrupamentos
culturais dos jovens. Estão ausentes dos estudos etnográficos classicos, as histórias “pop”,
os relatos pessoais e as pesquisas jornalistas da área. As vezes que as meninas aparecem,
são retratadas ora de formas que reforçam acríticamente a imagem estereotipada das
mulheres que tão bem conhecemos... ora são apresentadas de forma fugaz e marginal.14
(p. 112; tradução minha)
Em seguida, examinando o discurso de alguns dos pesquisadores da sua
geração que sem qualquer questionamento reproduziam os julgamentos de seus
jovens informantes sobre “as meninas” (relativos a sua “passividade” e preocupação
com coisas “fúteis”; sobre seu apelo sexual e aparência ) o que elas sugerem que
pode refletir a partilha de um mesmo espaço discursivo, o da homossociabilidade -
elas levantam questões muito importantes sobre a capacidade destes pesquisadores
entenderem o universo simbólico e as práticas de negociação das jovens. Identificam
então a necessidade de re-pensar o trabalho dos seus colegas, para poder desenvolver
uma metodologia para pesquisa e refletir sobre a relação entre as meninas e as
subculturas, marcando continuidades e rupturas:
Retomamos muitos dos conceitos utilizados no estudo dos subculturas masculinas: por
exemplo, a centralidade de classe social, a importância da escola, do trabalho, do lazer e
da família, o contexto social geral dentro do qual as sub-culturas emergem, e as mudanças
estruturais da sociedade britânica do pós-guerra, que parcialmente definem as diversas sub-
culturas. Acrescentadas à estas questões são as importantes questões de sexo e gênero. A questão
crítica é a seguinte: Como é que esta questão re-dimensiona o campo de estudos culturais da
juventude, na forma em que veio a ser definido.15 (ibidem, p. 13; tradução minha)

14 “Very little seems to have been written about the role of girls in youth cultural groupings. They
are absent from the classical subcultural ethnographic studies, the pop histories, the personal accounts
and the journalistic surveys of the field. When girls do appear, it is either in ways which uncritically
reinforce the stereotypical image of women with which we are now so familiar ... or else they are
fleetingly and marginally presented”.
15 Many of the concepts utilised in the study of male subcultures are retained: for example, the
centrality of class, the importance of school, work, leisure and the family: the general social context
within which the subcultures have emerged, and the structural changes in post-war British society which
partially define the different subcultures. Added to these issues, are the important questions of sex and
gender. The crucial question is: How does this dimension reshape the field of youth cultural studies as it
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As autoras perguntam, e atraindo atenção popular e midiático


começam a responder à uma série de para seu lado. Mas outras perguntas
perguntas sobre a “invisibilização” das poderiam ser feitas. Por exemplo,
mulheres dentro do mundo subcultural, era amplamente discutido o papel da
iniciando com a indagação sobre a expansão das indústrias da cultura e do
própria verossimilhança desta ausência. lazer na formulação de novas identidades
Apontam para o fato de uma boa parte jovens; tratava-se da construção de novas
dos primeiros estudos de subculturas formas de inserção no público, novas
proletárias tomarem como objeto sociabilidades das quais as meninas e
exclusivamente a atividades que se as mulheres claramente participavam,
desenrolavam no espaço da “rua”, mesmo se esta participação ocorria
enfatizando neste contexto a relação entre parcialmente em espaços mais distantes
trabalho e lazer ou ócio (por exemplo, da “rua”. Por outro lado, os anos
interessando-se pela atitude de resistência 60 trazem novas modificações – a
dos homens às “formas alienadas” do emergência de uma “softer, more feminised
trabalho) e ignorando o que acontecia subculture” que incentivava uma maior
nos espaços mais “afastados” deste presença feminina e criava novos espaços
contexto, como os da família, o lar ou para manifestações subculturais com
mesmo os pontos dentro da comunidade participação majoritária de jovens de
onde aglomeravam-se as mulheres. Pois classe média, ajudando de certa forma a
muito mais nesta época do que hoje – quebrar mais as barreiras de gênero (pp.
eram estudos sobre subculturas dos anos 116).
50 - , o espaço pública da rua restringia Procuraram então identificar
a presença feminina, estando em alguns dos espaços “contraculturais” ou
vigor normas sociais que promoviam subculturais de participação feminina,
formas muito fortes de julgamento de perguntando, nestes casos, o que as
meninas e jovens que a freqüentassem jovens faziam dentro destes e em que
– paradoxalmente, o “desvio” masculino medida continuassem circunscritas às
chegava a ser celebrado, enquanto para fronteiras ou barreiras da “subordinação
as pessoas de sexo feminino, o duplo geral das mulheres na cultura” (ibidem).
padrão agia com força. 16. A questão do Escolheram três figuras para avaliar- as
envolvimento dos jovens com a violência “motoqueiras”, as meninas “mod” e as
– como no caso dos gangues juvenis hippies – e examinaram, em cada caso,
-também tendia a enfatizar o “caráter os alcances e limites das atividades e
masculino” da revolta subcultural, ainda atitudes de contestação permitidas
has come to be defined? às mulheres, que geraram, em maior
16 As autoras comentam que “With the ou menor grau, situações altamente
possible exception of sexual deviance, women contraditórias. Finalmente, passaram
constituted an uncelebrated social category, for da questão da participação das mulheres
radical and critical theorists.” (p. 114)

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nas “subculturas masculinas” para a das dentro da cultura teen. Abrir mão do
“formas complementares em que as [auto]-controle – gritar, desmaiar,
correr em banda – era em forma,
meninas jovens interagem ... para formar se não como esforço consciente,
uma cultura distintivamente própria” uma tentativa de protestar contra a
(p.119). repressão sexual, o duplo padrão da
Outras autoras (Ehrenreich, cultura adolescente feminina. Foi a
Hess e Jacobs, 1997) ofereceram um primeira e mais dramática rebelião
da revolução sexual das mulheres. .
exemplo interessante a consider no (Ehrenreich, Hess e Jacobs: 523-
texto “Beatlemania: a sexually defiant 524)17
consumer subculture?”, publicado bem Pode, segundo o argumento
mais tarde (originalmente em 1992) mas delas, muito bem refletir as formas de
tratando de um fenômeno da mesma inserção e construção de “identidades
época. Sendo a primeira manifestação sub-culturais” que foram tão instigantes
do que viria a ser um novo modelo de para outros pesquisadores em relação a
comportamento da juventude perante grupos jovens masculinos.
seus ídolos culturais, durante muito Seguindo nesta linha de
tempo foi considerado simplesmente raciocínio, podemos pensar não só na
como uma “histeria de massa” que – conquista de visibilidade feminina no
mais ainda, porque protagonizado por sentido de teóricas e estudiosos/as que
meninas - não merecia muito esforço prestam atenção nas dimensões de gênero
analítico. Mas estas autoras, seguindo a da cultura, mas também, o fato da
metodologia dos estudos culturais e sua crescente presença – as últimas décadas
forma de re-considerar os fenômenos da do século XX foram significativa neste
cultura de massas, assim como o impulso sentido – das mulheres na produção
feminista de re-considerar as experiências 17 if it was not the ‘movement’, or a clear-
femininas, têm algo mais a dizer: cut protest of any kind, Beatlemania was the first
mass outburst of the 1960s to feature women – in
...se bem não se constitui this case girls, who would not reach full adulthood
nitidamente como ‘movimento’ ou until the 1960s and the emergence of a genuinely
‘protesto’ , Beatlemania representou political movement for women’s liberation. In a
a primeira explosão massiva highly sexualized society...teen and pre-teen girls
dos anos 60 protagonizada por
were expected not only to be ‘good’and ‘pure’
mulheres – neste caso, meninas,
but to be the enforcers of purity within their teen
que não atingiriam idade adulta até
os anos 60 e a emergência de um society-drawing the line for overeager boys and
genuíno movimento político para ostracizing girls who failed in this responsibility. To
a emancipação feminina. Numa abandon control – to scream, faint, dash about in
sociedade altamente sexualizada... mobs – was, in form if not in conscious intent, to
das adolescentes e pré-adolescentes protest the sexual repressiveness, the rigid double
se esperava não somente que fossem standard of female teen culture. It was the first
‘boazinhas” e ‘puras’ mas que agissem and most dramatic uprising of women’s sexual
como agentes mantenedoras da pureza revolution
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cultural (strito e lato sensu) e na vida Estudos Latinoamericanos). A pesar das


pública em geral. O trabalho atual “áreas antigas” padecerem por vezes de
mantém continuidade com os esforços uma necessidade de “policiamento” de
de crítica cultural feminista das pioneiras, fronteiras disciplinares (Stacey, 1997), a
desde que Beauvoir no Segundo Sexo tendência na academia do Século XXI
formulou importantes questões sobre a muito provavelmente seja da proliferação
representação masculina/masculinistas de diálogos e influências recíprocas,
das mulheres, passando pelas teóricas em direção ao enriquecimento e
feministas de cinema como Mulvey complexificação das perspectivas.
(op.cit.), Kaplan (op.cit.)e Lauretis (op. No Brasil, enquanto a
cit.) – esta última interrogando, com Sociologia da Cultura em grande parte
tanta eloqüência, de quem os sonhos? de se atrela exclusivamente às perspectivas
quem as fantasias? de quem o discurso? – “clássicas” dos grandes homens (Marx e
e caminhando no sentido de perguntas Simmel, Elias e agora Bourdieu; incluindo
cada vez mais complexas e diversificadas por vezes Adorno e Horkheimer, e com
sobre as formas em que mulheres muito menos frequência, Raymond
participam dos processos de produção da Williams), 18 uma nova geração de
cultura, tanto nas suas formas “elitizadas” pesquisadoras/es, incluindo várias
como nos seus momentos cotidianos, no pessoas identificadas com os Estudos
“consumo” ou “ recepção. Culturais, incorporam a visão da cultura
A princípio, para tais finalidades como profundamente generificada. A
pouco importaria reforçar antigas socióloga Wivian Weller (2005), ao
fronteiras disciplinares entre, digamos, perceber que ainda hoje faltam estudos
a antropologia e a sociologia, ou criar sobre culturas juvenis que captem as
novas – entre, por exemplo, os Estudos experiências das meninas dentro destas,
Culturais e a Sociologia da Cultura. realizou estudos sobre jovens negras e de
De fato, a teoria feminista e os estudos origem turca nos movimentos hip hop
de gênero nascem como resultado de de São Paulo e Berlin. Segundo Weller,
esforços que acontecem – simultânea e na literatura internacional, os primeiros
interligadamente – em diversos campos estudos sobre hip hop o entendiam
interdisciplinares, e a partir deste como uma “cultura de resistência” no
momento, dialogam com e contribuem sentido de uma “ ‘expressão cultural
para o desenvolvimento dos campos da diáspora africana’ e como forma de
mais tradicionais como a sociologia, a articulação dos jovens afro-descentes
antropologia e a filosofia, assim como contra o racismo e o preconceito” – o que
se fazem presentes nas metodologias já diversificava em relação a perspectivas
e produção de outros novos campos que partiam da questão de classe para
transdisciplinares (como os Estudos
Culturais, Critical Race Theory e os 18 Apresento uma discussão maior esta
problemática noutro lugar (cf.Adelman, 2001)

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entender outras sub-culturas juvenis. Estudos sobre televisão feitos


No entanto, tendiam a reproduzir pelas antropólogos Heloisa Buarque de
o problema de gender blindness das Almeida (2003) e Esther Hambúrger
teorias clássicas. Um dos mecanismos (2005) também demonstram a
que permitia isto era um enfoque que necessidade e a riqueza analítica de incluir
privilegiava as vozes e experiências dos a dimensão de gênero na abordagem de
membros do movimento que estavam discursos midiáticos, sua produção e
mais nos holofotes, de fato, os mais recepção. Ambas examinam o lugar da
“visíveis”. Porém, não se pode concluir televisão, e mais especificamente, da
que sejam estas as pessoas que constroem telenovela, na história recente do país,
o movimento, as únicas a ter um papel mostrando como esta se torna um espaço
fundamental na elaboração dos sentidos de produção de discursos sobre questões
e significados de sua forma particular de tão diversas quanto relacionadas como a
“resistência cultural”. Weller defende a são o consumo, o privado e o público,
opção de compreender o masculino e o feminino, o rural e
o urbano e o rumo da democracia
o hip hop não somente como espaço brasileira. Ao fazer isto, trata-se também
dos rappers, dançarinos, grafiteiros de um importante espaço de produção
e DJs, mas também como cultura
juvenil daqueles e daquelas que de subjetividades, necessidades” e
participam enquanto fãs desse desejos – como demonstra claramente
“estilo que ninguém segura”, o trabalho etnográfico de Almeida (op.
veremos que a atuação feminina no cit.)- assim como um lugar onde as
movimento é significativa. Esse olhar mudanças nas relações de gênero que
diferenciado sobre as culturas juvenis
amplia as perspectivas de análise e se desenrolam noutros terrenos da vida
de compreensão dos significados social – o mundo do trabalho, as relações
construídos no interior desses familiares, os movimentos sociais, entre
movimentos. (Weller, p. ) outros – demonstram seus alcances e
limites. É neste sentido que Hamburger
Por outro lado, a luta de uma (2007) mostra a evolução da telenovela
minoria de meninas que chegam a no Brasil, que a partir de década de
formar grupos de rap ou dança se reveste 1990 consolida uma clara abertura para
de nova importância, pois através das “novas possibilidades do feminino” sem
dificuldades que elas encontram em que isto implique numa verdadeira
se afirmar e perdurar no meio revela problematização da discriminação de
também aspectos fundamentais de gênero, ainda profundamente arraigada
cultura hip hop em si, por exemplo, na sociedade e na cultura.
os significados que (re)produz sobre Para concluir, talvez seja
gênero, sobre masculinidade, sobre interessante chamar a atenção para o fato
homossexualidade, etc. de estarmos, hoje, na véspera dos quarenta

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anos do maio ’68, o momento mais freqüentemente lembrado para representar os


sonhos radicais de uma geração, de transformação social, cultural e política. Esta
época da segunda metade do século XX é muitas vezes vista como ápice de um
longo processo – um processo que abrange o século inteiro – de “feminilização” do
mundo social da (pos) modernidade (cf. Verdu, 2008)19. Mas, tanto no campo da
produção cultural quanto ao das contradições sociais, a complexa dinâmica destes
processos continuam insuficientemente compreendida. Trabalhar para destrinchar
como, por quem e por quê determinado processos culturais são significados como
femininos - ou masculinos – pode revelar muito sobre o momento que estamos
vivendo, e é minha convicção que a abordagem desenvolvida em torno dos Estudos
Culturas tenha nos oferecido poderosos e imprescindíveis instrumentos para seguir
adiante nesta tarefa.

19 Este pequeno texto, que saiu originalmente no jornal espanhola, El País, pode servir de
exemplo. Re-apresentando a visão bastante hegemônica em círculos “críticos” sobre o triunfo de
valores que abrem espaço mais para um novo consumismo do que para a transformação social, termina
afirmando que o momento representado pelo ’68 “ Foi, sem dúvida, uma grande vitória da feminilidade”.
Artigo breve, mas suficiente para suscitar ou reavivar uma persistente confusão; se lembrarmos o
argumento de Rita Felski (op, cit.) sobre a histórica tendência de autores modernos construir “a
Mulher” como o grande Outro (irracional, sensual, hedonista) do projeto moderno, ocidental e “racional”,
percebemos com clareza como continua sendo fácil escamotear longas e sérias lutas que envolveram
todos os terrenos da vida social, desde o trabalho e a política até (e na sua conexão com) a vida
privada, sexual e pessoal.

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