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Prólogo
O ERÓTICO JUSTIFICADO
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especial em adiar minha execução. Pretendem extirpar-me
segredos, os demônios. Faltam-lhes detalhes essenciais para
completar o que já descobriram sobre o grupo subterrâneo
chefiado por Billy. Esses bravos "maquis" lhes têm dado
um trabalho constante. Ah... como gostaria de estar agora
novamente entre eles! Resolvi escrever para não pensar na
morte ou nas coisas piores do que a morte que certamente
me reservam. Facilitaram-me um lápis e alguns papéis de
embrulho. O carcereiro fez tudo isso chegar às minhas
mãos, fingindo gentileza. Doce ironia: as folhas me
recordam as da loja do meu pai, em Cannes. Os pacotes de
biscoito, na padaria tranqüila. Minha infância boa...
Os nazistas acham que a minha escrita lhes será útil.
Acham mesmo ― pois vivem achando ― que
possivelmente denunciaria os meus companheiros narrando
estes episódios. Que absurdo! Supõem-me tão ingênua
depois de me condenar à morte por muito perigosa! Estou
usando a linguagem taquigráfica dos sistemas TIFFIN
(1750) e LYLE (1762), combinada com a dos sistemas
HOLSWORTH & ALDRIDGE (1766), todas inglesas e
muito antigas, desconhecidas dos alemães que estão
habituados apenas aos sistemas PITMAN e GREGG, mais
recentes. Se, porventura ― o que parece sumamente difícil
e improvável ― estas páginas forem encontradas pelos
libertadores da Europa, talvez cheguem às mãos do meu
professor Raymond Pirrier que as decifrará. (1) Seja como
for, vou transmitindo aqui todas as lembranças destes dias
horríveis, como se estivesse confessando-me a mim mesma.
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(1) Aquilo que Giselle pensava não ocorreria senão por
milagre, aconteceu de maneira bem simples. As forças de
libertação, com os "maquis" à testa, soltaram os presos
políticos de uma pequena prisão em Lys, entregaram todos
os documentos encontrados nos armários e fichários dos
nazistas às autoridades aliadas. Entre eles as memórias de
Giselle, que despertaram maior curiosidade pelo fato de
estarem cifradas em caracteres desconhecidos. Os técnicos
em taquigrafia foram chamados. Nenhum sabia do que se
tratava. Finalmente o "maquis" Berloz lembrou que Giselle
tinha um professor. Pirrier foi localizado e fez a tradução.
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O MORCEGO E OS TARADOS
UM PORCO A MAIS
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― Levem esta mulher! ― gritava. ― Levem esta
vagabunda antes que eu a mate!
Um dos soldados levantou-me pelos pés com a ajuda
de outro, que me levantou pelas mãos. Eu já estava
insensível à dor e quase não senti quando me atiraram ao
fundo do cárcere, como um fardo.
― Ela não passa desta noite ― disse um dos guardas.
― Por quê?
― O coronel vai querer matá-la.
O outro guarda olhou longamente nos olhos do que
dava a informação de minha morte possível e disse:
― Não creio nisso. Chegou uma ordem do quartel-
general de Munique para poupá-la. A Casa Parda acha que
ela sabe de muitas coisas.
O primeiro guarda estranhou:
― Por que, então, não fazem com que ela vomite o que
sabe?
A explicação era simples. O coronel tinha ordens de
esperar um agente especial.
― O coronel suplicia até matar. E é preciso que o
torturador faça seu trabalho sem matar. Os mortos não
falam. Os mortos, como se diz na minha terra, têm boca de
peixe, E isso não convém, Rudolf.
Os dois ainda me olharam um pouco. Eu estava com os
olhos bem abertos para eles, ouvindo tudo que
conversavam, embora só agora, quando rememoro, posso
entender o que diziam. Depois, os dois saíram. Fiquei
pensando. Então, era verdade? Viria um técnico em suplício
para obrigar-me a denunciar os que estavam comigo, os
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meus companheiros, os meus amigos? Viria de Munique,
seria altamente treinado e saberia como agir comigo? Até
onde poderia eu resistir?
As torturas usadas pelos agentes da GESTAPO eram
terríveis. Algumas ultrapassavam aquele conhecido ponto
de resistência humana. Meu Deus, se, num momento de
inconsciência, eu revelasse os nomes dos dedicados e
valentes rapazes, das mulheres abnegadas que mantinham
acesa a flama da resistência, canalizando para a Inglaterra
os pilotos britânicos derrubados e os franceses que
precisavam unir-se ao exército de De Gaulle? Eles saíam
através da Suíça, pois o Canal da Mancha estava sob uma
vigilância severa. Eu sabia de tudo isso. Iria dizer o que
sabia? Nosso grupo estava organizado em células estanques,
é bem verdade. Uma não sabia da outra. Mas, havia a
possibilidade de, no momento de desespero ou de
inconsciência, eu deixar escapar de meus lábios o nome de
Paulo Zingg. E isso era um caminho. Um caminho para
muitas outras informações e dores imediatas.
Conheci Paulo Zingg alguns meses antes da guerra,
quando estive nos Alpes. Ele devia ter um metro e oitenta e
cinco, sua família descendia de suíços, seu pai fora um dos
mais famosos pintores da França, em certa época, e deixara
a Paulo uma apreciável fortuna. A tia de Zingg possuía em
São Paulo, no Brasil, terrenos valiosos. Por isso, ele dividia
a maior parte de seu tempo entre os esportes de inverno e a
direção de dois cabarés um tanto quanto importantes de
Paris. A guerra e a ocupação fizeram com que eu o perdesse
de vista, até o dia em que recebi um bilhete com as iniciais
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PZ. O bilhete me pedia que o encontrasse em certo
apartamento da Rua Grouchy. Nunca me esqueci desse
encontro. Ele estava sentado, com o rosto voltado para a
janela. Deitado, a três passos, um jovem desconhecido, que
mal ergueu os olhos para mim. Paulo Zingg, sem se voltar,
mandou que eu me sentasse.
― Chamei-a, Giselle, para saber se está disposta a
trabalhar com nosso grupo.
Sua voz era serena e quente.
― Sabemos que seu pai se encontra na Alemanha e que
seu noivo foi fuzilado. Você deve ter motivos suficientes
para odiar os alemães.
Não respondi. Aquilo parecia tão lógico que nem
deveria ser comentado. Paulo compreendeu. Houve um
silêncio e ele tornou a falar:
― Sua missão, Giselle, será a mais perigosa de todas
as que nós temos. Você vai ficar com o inimigo. Vai tocá-lo
com suas unhas. Estará tão perto do fogo que ele pode, a
qualquer momento, envolvê-la. Que é que você acha?
Paulo se voltou e, pela primeira vez, me olhou de
frente, olhos nos olhos. Eu não disse nada. Mas continuei a
olhá-lo. Se o meu olhar queria dizer sim, até hoje não sei.
Sei que estava disposta a qualquer coisa que fosse útil ao
trabalho da Resistência. Sei que desejava vingar-me de tudo
que me haviam feito os alemães.
Paulo deve ter entendido meu olhar como uma
expressão de tudo que me ia na alma. Por isso, não mais
tentando ser persuasivo, mas como um sargento que se
dirige a um soldado, disse, numa voz seca:
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― Tire a roupa, Giselle. Fique inteiramente nua!
Aturdi-me. Não esperava aquele convite. Que é que ele
queria? Fiquei fria, atônita, espantada. Que espécie de
brincadeira era aquela? O olhar de Paulo, entretanto, dizia
que não era brincadeira. Por isso, fui tirando, uma a uma, as
peças de meu vestuário. Não eram muitas. Eu estava vestida
de saia e blusa, uma anágua curta, sutiã e, naturalmente,
aquela peça mais íntima e mais difícil de tirar em ocasiões
não adequadas, como a que me tinha posto diante de Paulo
Zingg.
Completamente despida, sem o gesto (clássico) de
proteção das virgens, mas numa atitude que, depois, Paulo
Zingg classificou de "ligeiramente desafiante e
absolutamente cretina, apesar de indiscutivelmente
adorável", aguardei a explicação. A pergunta estava em
todo o meu rosto. Talvez estivesse em todo o meu corpo nu,
se é que a gente pode ter uma expressão de pergunta, por
exemplo, nos seios trêmulos, no ventre contraído e nas
pernas que procuram proteger-se. Nenhum dos dois disse
uma palavra. O que estava deitado, enquanto tirava
baforadas do cachimbo, punha os olhos em mim como se
avaliasse alguma boa mercadoria exposta à venda por preço
altíssimo. Zingg, não. Calmo, sem demonstrar qualquer
deslumbramento, levantou-se e me olhou com olho técnico,
enquanto rodeava meu corpo.
― Vista-se, Giselle. É só!
Eu não estava contente de ter dado aquele espetáculo
sem nenhuma explicação. Por que me despira? Para que me
pusera nua diante daqueles homens? Que tinha a ver a
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minha nudez o meu corpo, com meu pai na Alemanha, meu
noivo morto, a Resistência, os franceses humilhados?
Perguntei:
― Quer explicar o motivo desta cena de "strip-tease"?
Paulo disse que não se tratava de "strip-tease".
― A história é bem mais séria ― explicou. ― Sente-
se.
Sentei-me. Com voz pausada, tranqüilo e senhor de si.
Paulo Zingg começou a falar. Precisava de uma mulher que
tivesse um corpo alucinante, capaz de deixar os alemães de
queixo caído, pelo menos àqueles alemães que interessavam
ao trabalho da Resistência. Um corpo impecavelmente belo,
que modificasse a natural frieza nazista e aturdisse ao mais
rígido oficial prussiano.
Era verdade que a prática de Rudolf Hess se alastrara
rapidamente entre os mais duros homens da Wehrmacht,
dentro do próprio Estado-Maior. Mas se fosse encontrada
no meio das jovens parisienses aquela cuja carne e cujas
formas tivessem o toque excepcional, o traço de Vênus,
quem sabe, haveria uma possibilidade de êxito. Estranho e
violentamente real: meu corpo se ajustava com perfeição
àquelas normas traçadas pelo chefe da espionagem francesa.
Como se fosse uma simples máquina, uma peça de
artilharia. Eu não poderia negar que fosse bela.
Desde muito nova me habituara a ouvir dos homens, na
rua, o comentário nem sempre decoroso sobre a perfeição
das minhas ancas, ou a nitidez dos meus seios. Quantas
manhãs eu mesma não me havia surpreendido, na cama, a
olhar com meus próprios olhos admirados a maciez das
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minhas próprias pernas indiscutivelmente provocantes.
Jamais, porém, me passara pela cabeça que meu corpo
devesse ser usado, algum dia, como arma de conquista,
numa guerra subterrânea. Zingg continuava explicando:
― Queremos que alguém se infiltre no meio deles.
Procuramos dia e noite, em toda Paris sensual e profana, um
corpo vivo de mulher bonita. Como o seu, Giselle! Eu
jamais a tinha visto despida, mas adivinhava suas formas
esculturais através dos vestidos. Além do mais, seus olhos,
seus cabelos, seu rosto, são maravilhosos. Agora vejo que,
nua, é irresistível. Seu corpo é impressionante. Você vai
transformá-lo no símbolo novo do exército clandestino.
Você será a Lady Godiva dos franceses, mas de um modo
bem mais violento. Sua nudez deslumbrante servirá para
conquistar os líderes nazistas. A guerra tem estranhos
preceitos que a moral dos tempos de paz não saberia aceitar.
Mas na guerra, Giselle, a única coisa que não se pode fazer
é perder a guerra. Deixe que profanem seu corpo, mas salve
a França. Ofereça sua honra em holocausto à honra de todas
as mulheres de nossa pátria!
Zingg nunca fizera um discurso tão longo. Ou assim
me parecia. Quando terminou, mostrava-se envergonhado
de haver falado tanto, e com aquelas palavras cínicas, do
cinismo da guerra. Baixou a cabeça e ficou em silêncio.
Nada acrescentou, Mas via-se, eu estava disposta a servir a
ele. Ou à França. Foi assim que me tornei a espiã nua de
Paris.
***
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Os alemães pediam uma licença que poderiam gozar
em Hamburgo ou Bremem, com as famílias, mas vinham a
Paris. Queriam ver-me. Durante meses, desfilaram diante de
mim aquelas bocas sedentas, aqueles olhos úmidos,
enquanto eu exibia minha nudez.
― Cadela! ― disse-me a velha florista parisiense na
noite da minha estréia no CHEZ EVE para uma grande
platéia de oficiais nazistas.
― Você deve ter nascido em bom lugar e sua mãe
talvez se orgulhe da filha que pariu. Vendida aos boches!
Ela não sabia de nada. Nem poderia. Ninguém devia
saber de nada. Por isso não me incomodei quando cuspiu
para o lado e me disse as coisas que me disse. Fiquei fria,
embora intimamente constrangida.
― Que é que esta velha está dizendo? ― quis saber o
major que me conduzia pelo braço.
― Traduza o "argot" dessa velha. Mandarei castigá-la,
se lhe ofendeu.
Disse que não. Menti sobre os insultos. Expliquei que
se tratava de rixa antiga.
― Devo dinheiro a ela.
― Quanto? ― quis saber o nazista. Inventei uma
quantia, e ele pagou. Já no carro o major se dirigiu a mim
com palavras muito importantes.
― Quer ir para o meu hotel? ― neste momento nos
encaminhamos para o quartel da Gestapo.
― Mas não precisa sobressaltar-se. Nós não a
mandaremos para um campo de concentração. Você não!
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Uma preciosidade como você não pode ter este destino.
Giselle, você trabalhará para nós, aqui mesmo em Paris!
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todo caso, acho que você devia ser mais condescendente
comigo. Principalmente se deseja o salvo-conduto.
Senti que tinha ganho a parada.
― Giselle ― disse ele ― levarei o salvo-conduto ao
seu quarto, esta noite. Depois da meia-noite...
Um "frisson" me percorreu o corpo. Santo Deus, eu
teria que suportar aquela figura animalesca, aquele
brutamontes horrível, aceitar os seus galanteios e os seus
carinhos, para cumprir a minha missão? Não me faltava
vontade de lhe dizer tudo que pensava de sua barriga, de seu
nariz vermelho, de sua cara de bolacha. A voz de Paulo
Zingg, porém, quente e persuasiva, soava aos meus ouvidos
como uma advertência vinda de longe:
"Giselle, o seu corpo já não lhe pertencerá. Você sabe
que eu o adoro. Que ele, para mim, é um santuário, o lugar
de minhas orações, o centro de todos os meus desejos.
Giselle, seu corpo é um hino de beleza, um poema de carne
e o lugar-comum de todos os poetas. Eu o conservaria
para mim o resto da minha vida, adorando-o. Mas, Giselle,
o seu corpo é a melhor arma, a única arma de que
dispomos. Ele salvará muitos de nossos companheiros. Sou
o primeiro a lhe dizer que use o seu corpo. Satisfaça com
ele os apetites desses brutos. Deixe que eles profanem com
suas mãos imundas a sua carne. Entregue-se, Giselle,
durma com os alemães, deixe que eles se fartem."
Os olhos de Paulo Zingg, lembro-me bem, estavam
vermelhos quando me disse estas coisas. Mas brilhavam,
quando acrescentou:
― Giselle, o seu corpo pertence à França!
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Naquela noite, quando o Capitão Braun deixou o
serviço, eu estava no meu quarto, à sua espera; à espera do
salvo-conduto. O amor enxundioso daquele homem pelo
meu corpo é algo que conservo até hoje na lembrança, como
qualquer coisa de repugnante e rude. Braun era pegajoso.
Tinha limo. Betume sobre a pele. Quando, antes, na fúria de
seus beijos (que eu tinha de suportar de lábios cerrados,
dura e fria) resvalava sobre ele, sentia algo parecido com
lama. As frases de amor que soltava vinham misturadas com
suor e um cheiro acre de axilas. Ele me sussurrava
promessas, que eu sabia, e ele sabia, nunca seriam
cumpridas. Isso tinha outro cheiro. Muito pior.
De repente, a porta se abriu violentamente. Cinco
oficiais fardados cravaram os olhos em cima de nós. Eu
estava completamente nua. O capitão Braun puxou o lençol,
com esse pudor característico dos saxões, e ficou esperando.
Não disse nada. Mas eu sentia suas pernas tremerem. Estava
lívido e acovardado. À frente do grupo, o coronel, meu
amante oficial, não dizia uma palavra. Um tenentezinho é
que deu o primeiro passo à frente e falou:
― Capitão Braun, por ordem do coronel, tenha a
bondade de nos acompanhar.
Só então Braun pareceu estar vivo. Respondeu:
― Não têm o direito de me prender só porque estou
com uma mulher.
O coronel, até então calado, tomou a palavra, com os
lábios quase cerrados, naquela maneira de um alemão dar
ordens que eu iria conhecer depois através de muitas e
muitas oportunidades.
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― De acordo. Mas, se você fornece salvo-conduto sem
autorização do Estado-Maior, torna-se passível de punição.
Acompanhe o tenente.
Tudo isso se passou enquanto eu, sob um lençol que
puxara também, dominada, como é lógico, por um medo
terrível, escutava em silêncio. Vi o capitão Braun vestir-se e
sair. Nesses poucos minutos, as palavras de Paulo Zingg
voltaram-me a apontar o caminho:
"Giselle, sempre que você se encontrar numa situação
difícil, pense. Procure raciocinar e agir com calma.
Encontrará uma porta. Mesmo quando todas parecerem
fechadas."
Dominei-me.
O coronel avançou em direção à cama. Vinha pálido e
enfurecido. Seus olhos pareciam do chumbo, duros e
opacos. Foi nesse instante que me lembrei de minha arma,
aquela arma secreta e clandestina, arma irresistível para os
homens, de que me havia falado Paulo Zingg. Puxei o
lençol e atirei-o para longe. Nua, inteiramente nua, levantei-
me e fiquei à sua espera. Ele se deteve. A porta se fechara
sobre o último guarda. No quarto, estávamos nós dois
apenas. Ele, todo oficial, de quepe, revólver na cintura, e eu,
toda mulher, com a pele que Deus me deu. Um vento frio
entrava pela janela.
***
Escrevo apressadamente porque as lembranças se
amontoam em meu cérebro e a morte se aproxima. Será
hoje? Amanhã? Daqui a uma semana? Quando chegará a
madrugada em que terei de ser levada ao muro de
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fuzilamento e o coronel Oetting, com aquela barriga de
chope, adotará a pose de um general, apenas para dar a
ordem de fuzilamento ao pelotão? Ontem, fui conduzida a
uma cela da ala esquerda, cujas grades dão para o pátio de
execuções. Sob o pretexto de que a minha antiga prisão
fosse lavada, queriam que eu assistisse ao massacre de um
grupo de franceses. Percebi isso. Os miseráveis acreditavam
que o medo acabaria por derrubar todas as paredes da minha
resistência. Mas, se eles soubessem o que me vai por
dentro! Se soubessem as forças que tenho em minha alma!
Mesmo assim, permaneci na abertura, olhando, através das
grades, o espetáculo degradante.
― Um!
― Dois!
― Três!
O pelotão se deteve. Reconheci o tenente que o
comandava. Ernst era o seu nome. Uns trinta prisioneiros
(tentei contar), de punhos atados, aspectos cadavéricos, mal
se sustinham sobre as pernas. Dez soldados alemães vinham
depois, numa formação militar rígida. O tenente Ernst se
aproximou do coronel Oetting. Pude ouvir perfeitamente o
diálogo.
― Meu coronel, aqui existe um problema de ordem
técnica.
― Vamos resolvê-lo.
― Os condenados sobem a trinta.
Eu não estava errada.
― Os fuzis não passam de dez. Como vamos matá-lo?
― O jeito será executá-los em três turmas.
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― Nós podemos também usar a metralhadora. Um
soldado fará todo o serviço.
― Não convém esbanjar munição. Divida os soldados.
Divida também esses porcos franceses. Dê mais balas aos
soldados e mataremos a todos.
O tenente ficou pensando um pouco e depois falou:
― Sei que há problema de levar os cadáveres ao forno
crematório. A segunda turma levará para o forno os
cadáveres da primeira. A terceira levará os cadáveres da
segunda. Mas quem levará os cadáveres da terceira?
E riu com sua piada imbecil. O tenente não riu. O
tenente tomou seu posto e, em tom seco, sem levantar a voz,
deu a ordem. Fez aquilo com absoluta naturalidade. Dez
prisioneiros foram separados do grupo e levados ao muro.
O coronel Oetting se sentou na cadeira que a ordenança lhe
trouxera ― porque ele gostava de dar ordem de fogo e
assistir aos tiros de misericórdia confortavelmente. Mandou
que certo prisioneiro fosse trazido à sua presença. Tratava-
se de um rebelde que não consentira em ser fuzilado pelas
costas nem de olhos vendados. Os soldados não tinham
conseguido dobrar a sua coragem. O coronel ofereceu-lhe
um cigarro. O "maquis" (era um "maquis") não se mexeu.
Apenas seus lábios formaram a palavra que eu pude ler e
não posso reproduzir. Digo, entretanto, que era aquela
mesma palavra que Cambronne disse aos ingleses.
― Ele fica para depois. Terei uma sessão especial com
ele.
Esforcei-me do fundo de meu peito para assistir a todo
o espetáculo. Vi os fuzilamentos das três séries. Queria
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mirar-me naquele exemplo. Nem um dos condenados se
acovardou. Os vinte e nove homens e mulheres gritaram,
"Viva a França!", logo após a ordem de fogo, e caíram
secos, na laje do pátio.
O coronel aproximou-se da fileira de corpos e, aqui e
ali, como quem se desobriga de um serviço de rotina,
distribuiu tiros de pistola nos crânios dos agonizantes. Por
fim, quando todos estavam mortos, os dez soldados com o
oficial à frente deixaram o pátio, enquanto os guardas
conduziam o único sobrevivente. Isso foi tudo. Certo dia,
um bando de mulheres alemãs, todas jovens e rosadas,
entrou no pátio da prisão. Vinha à frente, com um sorriso de
inefável felicidade nos lábios, o mesmo tenente Ernst que
chefiara o pelotão da morte. As moças se aproximaram da
grande cela, onde uns duzentos homens se amontoavam
como sacos, pois não havia espaço para sentar ou deitar. O
jeito era ficar de pé, dia e noite, encostados uns aos outros.
Alguns morriam de pé.
― Espia aquele moço! ― apontou uma das prostitutas
ambulantes do Grande Reich.
Todas elas eram isso. Acompanhavam as tropas, como
se fizessem parte dos mantimentos. Havia necessidade de
sua presença para que os soldados alemães tivessem
convívio de mulheres. (E nem todas as mulheres do país
ocupado se recusavam aos seus pedidos!) Eu não sabia
disso então. Soube depois. Soube que aquelas pertenciam à
equipe ambulante, vamos chamar assim, das meretrizes a
soldo da Wehrmacht. Sua missão era acompanhar a tropa e
satisfazer as necessidades dos soldados.
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Na França, eram absolutamente necessárias, pois
muitas mulheres francesas preferiam contaminar-se com
enfermidades humilhantes a se deitarem com os soldados e
oficiais alemães. Só umas poucas consentiam nisso, e os
soldados, esses, não tinham nenhuma possibilidade de
possuí-las. Essas vivandeiras amorosas do nazismo não se
compunham apenas de alemãs. Muitas eram austríacas,
outras polonesas, outras tchecas. Todas incorporadas a esse
exército não regular. Não se fazia questão absoluta de raça.
Os médicos especializados em "dèlivrances" se
encarregavam das complicações que, por acaso, viessem a
correr. Pois bem. Chegaram. Estavam a dois metros das
grades da cela. Apesar dos guardas armados de
metralhadoras, que as protegiam, elas tinham medo dos
rostos contraídos, do ódio concentrado nos olhos daqueles
prisioneiros. O coronel Oetting fez seu aparecimento no
pátio, acompanhado por seus cães de fila.
― Bertha, não fique aí. Esses homens há meses não
vêem mulher.
Bertha era bonita. Uma espécie de "vamp"' nazista, de
acordo com os padrões eugênicos do alto Reno.
― Você deixa esses homens loucos, Bertha ―
continuou Oetting, com um estranho sorriso nos lábios. ―
Não acha que seria um espetáculo monumental se pudesse-
se fazê-la entrar na cela, nua, e obrigar esses homens a
ficarem parados sob metralhadoras?
Bertha notou a mudança no olhar do coronel Oetting
entre a recomendação de ela sair de perto daqueles homens
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e, quase sem interrupção, a sugestão para o que chamou de
"espetáculo monumental".
― Quer experimentar hoje à noite?
Ela quis.
A MENSAGEM
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fechada, pela minha vontade e pelo compromisso que me
ligava aos meus companheiros.
― Esta é a sua última palavra?
― É a verdade.
O coronel ensaiou sair de minha cela, parou quase à
porta, voltou-se e disse, com voz dura:
― Você será fuzilada amanhã, ao alvorecer.
Depois da meia-noite, o carcereiro me trouxe o que
seria a minha última refeição: um prato de sopa e metade de
um pão. Olhou-me bem no fundo dos olhos com um jeito
que eu, a princípio, julguei fosse de piedade. Mas, depois,
vi que não era. Queria dizer-me alguma coisa. Vi que ele
era um dos nossos. Não podia falar, porque o guarda nos
observava. Mas quando abri o pão achei um bilhete de
Paulo Zingg:
"Denuncie o Espanhol, o Charles e a Marie. Já estão a
salvo, Procure poupar a sua vida, que nos é indispensável,
ceda até o limite do possível."
Engoli o papel e fiquei imaginando o que fazer, durante
algum tempo. Depois, chamei o guarda e lhe disse: ―
Quero falar com o coronel Oetting.
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3
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No íntimo, eu me comprazia em imaginar como ele se
comportaria no instante de perder essas três coisas de uma
só vez. De repente, porém, meus pensamentos foram
cortados. Guardas se aproximaram da porta da cela. A
fechadura rangeu e um deles atirou um capote militar aos
meus pés.
― Vista-se.
Vesti-me e deixei-me levar. Dois minutos depois,
entramos na sala de Oetting. O coronel lia uns documentos
e, sem levantar a cabeça, mandou que os guardas se
retirassem. Só quando a porta se fechou é que ele ergueu os
olhos e murmurou com voz engasgada:
― Giselle!
Não baixei o olhar. Fixei-o. O coronel Oetting saiu de
onde estava, rodeou a cadeira que um dos guardas
empurrara para mim e pôs a mão dentro do casaco que me
cobria, acariciando-me. O seu rosto no meu pescoço era
áspero e eu sentia a respiração quente passeando pelo meu
colo. Os lábios pareciam ventosas. A impressão que eu
tinha era de que ele babava, como certos epilépticos.
― Giselle!
Fria, hirta, como a própria estátua do sacrifício, eu o
deixava fazer o que bem entendesse. Já não me importava o
capote que, a princípio, tentara segurar, num movimento de
defesa. Via o ar de louco, a expressão alucinada daquele
homem vencido pela carne e dominado pelo sexo. O
coronel Oetting era um lúbrico, um tarado, um anormal, que
me agarrava e me amassava com seus beijos e seus abraços.
Minha vontade era a de cuspir-lhe outra vez na cara,
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empurrá-lo para longe; mas as palavras de Paulo Zingg me
impediam: "Sua vida, Giselle, nos é indispensável."
Acima de todos os meus escrúpulos, de minha vida e
de meus amores, acima de meu asco e de minha revolta,
acima de tudo estava a França que eu precisava ajudar. E
por isso, apenas por isso, suportava as carícias
desordenadas daquele porco nazista. Foi assim que passei a
ser a companheira das noites de insônia e de insânia do
coronel Oetting. A princípio, obtive uma liberdade relativa.
Saia com ele, de automóvel, pelos arredores. Nunca mais
voltei à cela, desde aquele momento chamado assim,
ironicamente, de "a rendição de Giselle". Deixei que me
supusesse rendida. Mas como é difícil agüentar as carícias
de alguém que nos inspira repugnância!
O amor, pelo que pude perceber, fazia o coronel suar.
Não o esforço com que, por acaso, ele tivesse de enfrentar
uma ou outra resistência minha. Mas a simples excitação
sexual. E isso deixava a sua pele oleosa e o seu contato mais
nojento ainda. Era um suor frio que contrastava com sua
respiração ofegante e quente. As suas mãos, nessas horas, se
punham nervosas e, embora macias algumas vezes,
freqüentemente estavam crispadas e duras. Tudo isso
contribuía para que eu inconscientemente assumisse uma
atitude de retração. O coronel Oetting percebia esse
movimento e, daí, alegrar-se quando lhe parecia que eu
vibrava sob suas carícias.
Paulo Zingg recomendava que houvesse de qualquer
maneira retribuição ao amor que o coronel nazista
despendia em mim. Todas as minhas forças, toda a minha
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vontade consciente só punham a serviço dessa
recomendação. O coronel Oetting se entusiasmava:
― Consegui, Giselle! Consegui tocar em você!
A sua teoria, para quem, como eu, conhecia claramente
toda a mentira atrás do motivo que o punha satisfeito, tinha
um pouco de ridícula.
― Giselle ― dizia ele ― eu sou o bruto, a fera, o
selvagem que você odeia. Mas ninguém pode controlar a
força do sexo. E você se deixa arrastar, Giselle!
Aos poucos, fui aceitando a minha missão. Procurava
palestrar amigavelmente com ele. Buscava tirar partido, sem
deixar perceber a minha verdadeira intenção. O coronel
Oetting, até certo ponto, colaborava. Mas o fato de eu ter
pertencido a um movimento clandestino francês e ajudado
muitos oficiais ingleses a deixar a França aparecia como um
obstáculo quase intransponível. Na verdade eu desconfiava:
o coronel não me libertara apenas porque me queria junto
dele, para satisfação de seus apetites sexuais. Devia haver,
acima disso, algum plano da Gestapo.
Dias seguidos fiquei pensando que plano poderia ser
esse. Que queriam eles de mim? Como iriam utilizar-me
para obter os segredos que considerassem importantes? A
resposta veio na noite seguinte, quando estávamos, eu e o
coronel Oetting, sozinhos, frente a uma lareira. Ele me
ofereceu uma camisola de dormir, dizendo que "era herança
de uma condessa pouco amável".
― Essa condessa não nos queria em sua residência,
veja você... Quando chegamos à sua casa, nos gritou:
"Vocês são o que há de mais vil sobre a Terra!" e bateu com
33
a porta em nossa cara. Fomos obrigados a forçar a entrada.
Dei carta branca aos meus soldados.
O coronel ria, enquanto contava a história. Claro, eu
não sabia. Minha imaginação, apesar de acostumada a supor
tudo desses monstros, não chegava a me indicar nada. O
coronel, sempre com um meio sorriso nos lábios, se
levantou, pôs a mão sobre a mesa e contou:
― A mesa era parecida com esta. Estenderam sobre ela
a mulher, depois de tirarem toda a sua roupa. Ela quis
bancar a forte, cometer seu heroísmo e deixou-se trabalhar
sem dizer palavra, apenas com os olhos postos no soldado
mais próximo. Sentei-me numa cadeira e fiquei olhando o
espetáculo. Um a um, os meus homens a possuíram. Os
mais apressados não chegavam nem mesmo a tirar a farda.
Era um espetáculo estupendo! Aos poucos, a condessa foi
deixando pender a cabeça, os seus olhos perderam o brilho
duro do começo e ela desmaiou. Aquela vaca aprendeu a
receber alemães em sua casa!
De pé, estendeu-me a camisola.
― Esta é uma lembrança da condessa. Você é digna de
usá-la.
O coronel Oetting me olhava. Eu sabia que ele estava
fazendo mais uma de suas experiências comigo. Queria
observar minhas reações ante o fato monstruoso. Mas,
preparada para isso, fingi não ligar e aceitei o presente,
― Quero que a vista. Agora mesmo.
Tirei minha roupa, usando cada gesto como uma
provocação. Só depois de nua e de ter-me espreguiçado
como Vênus se espreguiçaria para conquistar os favores do
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Olimpo, é que vesti a camisola. O coronel abraçou-me pela
cintura. E apagou a luz. Nessa noite, senti que ele se estava
lembrando da condessa e de todos os seus soldados. Tinha a
fúria de um exército.
***
― Você hoje vai para a Capital ― disse-me ele, na
manhã seguinte a essa noite desvairada. ― Aguarde-me no
endereço que lhe vou dar. Ficarei em Paris algumas
semanas.
Suas últimas instruções foram pronunciadas em tom
frio e categórico:
― Lá, você deve entrar em contato com seus antigos
camaradas. Isso nos facilitará a tarefa, Giselle. Mostre que,
de fato, é uma das nossas, ou já sabe o fim que a aguarda.
Mostre que é inteligente.
Embarquei para Paris. Nessa cidade que eu amo, fiquei
instalada na Rua de Bac, à espera do coronel. Não podia
fazer muita coisa. Sabia que meus passos, todos os meus
passos, eram vigiados dia e noite, pela Gestapo. Mas Paulo
Zingg, que tomou conhecimento de minha chegada,
conseguiu furar o bloqueio da vigilância e mandou um
bilhete em que dizia: "A Gestapo ronda sua casa. Veja se
nos informa."
Utilizei a mesma mensageira que entrara em contato
comigo, disfarçada em moça procurando trabalho, e contei
o que se passava comigo e quais os planos do coronel
Oetting. Aconselhei a todos do grupo que não se
aproximassem de mim, pois corriam perigo. Achei que essa
era a melhor solução, o caminho verdadeiramente indicado
35
pelo bom-senso. Por isso, fiquei surpresa com a resposta de
Paulo Zingg:
"Três elementos suicidas do grupo clandestino vão
procurá-la" ― escreveu ele. ― "Você deve acolhê-los e,
sem demora, denunciá-los ao coronel. Será essa a única
maneira de ganhar rapidamente a confiança da Gestapo."
As palavras de Paulo Zingg me deixaram chocada. Na
verdade, a guerra me estava ensinando muitas coisas a
respeito dos homens. Então, era assim que se dispunha da
vida de três pessoas? Na situação em que me encontrava,
qualquer suspeito entrando em contato comigo tinha
declarada sua sentença de morte. Eu estava em Paris para
atrair o grupo clandestino a que pertenci e o simples fato de
um "maquis" me ter procurado iria catalisar todas as
suspeitas da Gestapo. Seria um homem morto. Paulo Zingg,
entretanto, falava de "elementos suicidas" como se falasse
de tanques, fuzis ou qualquer outra coisa sem alma. Não
eram homens. Eram pré-fantasmas. E eu devia utilizá-los,
utilizar as suas vidas, para que o coronel Oetting e a
Gestapo abrissem um crédito mais largo de confiança nessa
sua "agente". Isso me aturdia. E me deixava indecisa quanto
à importância de viver.
36
A MANIA DO CORONEL
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isso era mentira. Meu pai não passava de um escultor sem
renome).
Com os olhos pregados nos meus, Oetting fez a
pergunta que desejava fazer desde o primeiro momento.
― Você gosta da Alemanha, Giselle?
Sem esperar um segundo, respondi:
― Não, coronel. Detesto a Alemanha. Detesto os
alemães, inclusive o senhor.
Ele se abriu num sorriso completo e absolutamente
idiota:
― Se você dissesse o contrário, Giselle, eu saberia que
estava mentindo. Leio em seus olhos, nas suas atitudes, nas
suas palavras mais simples, que você detesta os alemães e a
mim.
Subitamente, irritou-se. Sua voz adquiriu o tom rouco
que anunciava tempestade.
― Sua cadela ordinária! Quem é você, uma meretriz
desclassificada, para falar dessa maneira dos alemães?
Deitada na cama, eu descansava as costas num
travesseiro. O coronel Oetting puxou-me pelo "deshabillé" e
deu-me uma bofetada. Sua boca espumava insultos. Sem
uma palavra, desci do leito. Ele me acompanhava com os
olhos. Fui até o guarda-roupa, apanhei um quimono pesado
e ia vesti-lo, quando o coronel se atirou como uma fera
sobre mim.
― Que vai fazer?
― Vou vestir-me, ora essa!
― Por quê? É uma represália, não é? Pois vou ensiná-
la a receber castigos sem pensar em represálias.
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Encarei-o duramente, os olhos nos olhos. Havia aço na
minha voz quando lhe disse:
― Coronel, se me trata como um animal, eu o
receberei como um cadáver. Não imagine que eu retribua
mais as suas carícias. Não existirá força no mundo que me
obrigue a acariciá-lo. Já lhe disse que não o suporto. Tudo
que tenho feito é procurar me acostumar a satisfazer os seus
caprichos. Por que não me trata de outra maneira? Se quer
meu corpo frio, inerte, hei-lo.
Despi-me.
― Exijo boas maneiras. Não gosto de ser chamada de
cadela nem de ordinária. Se quiser, pode me mandar de
volta para a prisão.
Desafiava-o com o olhar.
― Tem coragem?
Meu corpo estava inteiramente nu. E trepidava! O
coronel Oetting parecia não suportar por mais tempo.
Olhava-o de alto a baixo e o suor, aquele suor que eu
conhecia de tantas noites, caía em bagas pelo seu rosto. Pus
a mão instintivamente sobre um dos meus seios e verifiquei
que estava duro e trêmulo. Corri até a cama e caí de bruços,
como se fosse chorar. Todo o meu dorso, que tantos
garantiam ser perfeito, estava à disposição do olhar daquele
nazista louco. Fiz um ligeiro movimento com as ancas,
deixei que a fêmea dentro de mim se revelasse. O coronel
não tinha caráter para resistir a tanto. Aliás, segundo o
próprio Zingg, nenhum homem teria.
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4
44
Max ficou em silêncio por algum tempo e, com a
mesma voz sussurrada, traçou o plano: ― Quando você
estiver com o coronel Oetting, dê-lhe nosso endereço. Eu,
Jacques e Philippe os esperaremos. Você então terá dado
uma prova fulgurante de honestidade na defesa dos
interesses alemães.
Parou novamente, voltou o rosto para mim e estendeu a
mão. Era a mesma mão firme de sempre.
― Adeus, Giselle. Honre o nosso sacrifício. Cumpra
sua missão. Lembro-me bem de seus passos dentro da
igreja.
E me lembro também de cada minuto daquele 24 de
fevereiro em que denunciei Max Jacob, esse grande poeta
de França, aos alemães. Uma denúncia que não era tão
criminosa assim, de vez que o próprio Max e seus
companheiros sabiam das condições em que o velho e
sentimental amigo se encontrava, Estava sendo vigiado e,
de uma hora para outra, seria preso. Considerou-se de maior
utilidade a sua inclusão dentro do que tomara o nome de
"missão Giselle".
― A confiança dos alemães é o que você precisa obter,
Giselle ― mandou-me dizer Paulo Zingg, em repetidas
mensagens.
Pois bem, apesar de saber que Max Jacob estava
perdido, sem qualquer possibilidade de salvação, doeu-me a
consciência. Quando, numa das farras loucas que o coronel
Oetfing organizava em meu apartamento para os seus
colegas de armas, entreguei a ele um papel com o endereço
de Max Jacob, em Saint Benoit.
45
― Quer assistir à prisão, Giselle? Eu não achava
conveniente. Ponderei que, assim, logo todos saberiam que
eu estava trabalhando para os alemães.
― Ora, nós faremos crer que você nos está traindo.
Segurou-me pela cintura, na sua atitude favorita, e
cravou-me os olhos, acrescentando: ― E não será isso
verdade?
Sustentei o olhar. Convinha desconcertá-lo.
― Coronel, é preciso não esquecer que sou francesa.
Se houver uma oportunidade, saberei aproveitá-la.
Na manhã seguinte, cerca das 11 horas, fomos até Saint
Benoit. A Gestapo já invadira a casa de Max Jacob. Mas
nos informaram que somente à noite o levariam para
Orleans. O coronel sorriu e disse:
― Entremos. Vejamos o que diz o trovador de França.
Max Jacob estava sentado e tranqüilo, enquanto um oficial
nazista examinava gavetas. Revistaram tudo. O coronel
Oetting cumprimentou-o delicadamente. Max não
respondeu.
Foi então que o nazista, irônico, me apresentou:
― Senhorita Giselle Montfort.
Max Jacob mal pousou os olhos sobre meu rosto. Sua
atitude era de desprezo, nojo e, ao mesmo tempo, piedade.
Senti que minha face ficava vermelha, apesar de
compreender que ele representava seu papel. Por fim, Max
falou. Em tom baixo, sem erguer a voz durante todo o
tempo:
― Giselle, você é uma infeliz. Causa-me pena. É uma
boa mulher para os alemães. Uma companheira de cama,
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uma fêmea sem pudor, que perdeu os últimos vestígios de
dignidade. Você venderia sua própria mãe. Você se vende
todas as noites. Então, é verdade que foi você quem me
denunciou? Acha que isso tem alguma importância para
mim? Mais cedo ou mais tarde eles me pegariam. Mas
porque veio assistir ao resultado do seu trabalho?
Parou um pouco e balançou a cabeça.
― Não, Você está certa, Você é uma profissional.
Trabalha até o fim. Mas quero contar-lhe uma história. Um
dia destes, eu estava num café e um cidadão francês
elogiava os nazistas. Fui ao seu encontro, apertei a mão do
homenzinho e disse-lhe: "Permita-me cumprimentá-lo,
amigo". Todos me olharam revoltados. Acrescentei: "E que
Deus o perdoe!"
Max se levantou, parou à minha frente, pôs as mãos
nos meus ombros e repetiu:
― Que Deus a perdoe, Giselle.
Estava na minha frente um dos maiores poetas de
França. Eu iria saber depois que ele, de Orleans, tinha sido
removido para a prisão de Muetta, em Draney, perto de
Paris. Uma prisão úmida e miserável. Uma escuridão total
marcou, desde então, os seus dias.
Depois que deixamos Max Jacob, voltamos para nosso
apartamento. Haveria uma das festas de oficiais nazistas que
o coronel Oetting promovia de quando em quando. Essas
festas eram verdadeiras bacanais. Um espetáculo de doidos.
E note-se que nelas não eram admitidos senão de capitães
para cima. Nem aos tenentes era possibilitada a freqüência
ao meu apartamento. O que havia de menos desagradável
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nelas é que todos os convivas chegavam banhados e de
roupa limpa. Aquele cheiro de trincheira tinha de ser
arrancado da pele à custa de muito sabão e de muita escova.
Eles chegavam, eram polidos, vinham sóbrios.
Tudo começava como se fosse uma distinta reunião
social de tempo de paz. Os primeiros drinques rodavam e os
pequenos grupos que se formavam entretinham palestras
agradáveis sobre os mais diversos assuntos. Por vezes,
amigos de outros tempos se encontravam. E
confraternizavam. Tinham suas recordações. Conversavam
sobre colegas de colégio que nunca mais haviam visto.
Posso dizer mesmo que, nesses poucos instantes de começo
de farra, os alemães eram simpáticos, como, fora os nazistas
e fora a guerra, os alemães de um modo geral o são.
De repente, um grupo começava a cantar. Copo na
mão, velhas canções alemãs estimulavam toda a sala. E
vinha a farra propriamente dita. Várias moças colaboravam
nessas festas. Não muitas, por que os grupos formados pelo
coronel Oetting geralmente eram de dez ou doze oficiais
nazistas apenas. Elas se espalhavam pela sala, conversavam,
bebiam com os homens e riam. Algumas tentavam, na hora
das canções, cantar também. Atrapalhavam-se com as
palavras (eram francesas) e gargalhavam para desculpar-se.
Vi muitas dessas moças. Olhei muito os seus rostos.
Inutilmente procurei descobrir, sem dizer nada, se alguma
delas estava na minha situação. Se tinha uma missão
também junto aos alemães. Mas nunca pude perceber nada.
Ao contrário disso, quando estive com elas no banheiro,
ouvi expressões de satisfação e felicidade:
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― Aquele com quem estou é formidável, não é?
― Você viu o meu? É o tipo do homem macho. Um
lourão impossível!
Na verdade, sempre me pareceu que eu estava sozinha
em minha missão. Todas as outras queriam divertir-se,
conseguir os favores dos que dominavam nossa cidade,
obter alimentos, dinheiro, vestidos e prestígio como se o
destino da França não fosse o seu destino.
Certo dia, alguém, que eu nunca soube quem foi,
descobriu uma francesinha quase criança e levou-a para
uma dessas festas. Em tempo de paz aquela garota deveria
estar cursando os primeiros anos escolares. No máximo,
teria doze ou treze anos. Por mais incrível que pareça,
aqueles homens, vindos da guerra, a cercaram com um
interesse jamais demonstrado pelas mulheres mais velhas e
mais experientes. Despiram-na e eu pude ver que os
primeiros pêlos da puberdade ainda começavam a sombrear
seu sexo e suas axilas. Os seus seios eram apenas flores. E
seu corpo um pouco anguloso como os das crianças. Os
homens a disputaram.
O coronel Oetting, com a sua autoridade de anfitrião,
gritou uma ordem, quando começou a balbúrdia:
― Parem com isso. Vamos disputá-la nos dados.
Eu fui ao quarto, trouxe dados e os oficiais jogaram a
meninota, que sorria nua a um canto, sem nenhuma
expressão. Para ela, tanto fazia um como outro dos nazistas
o vencedor. Na verdade, seus olhos se fixavam nos dados,
ela própria toda entregue à sorte dos números. Não via
quem jogava os dados. Finalmente, um major magro e alto
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conseguiu onze pontos. Ganhou. O coronel Oetting segurou
o braço da garota e entregou-a ao major, à semelhança de
um troféu.
― Pronto, major. Ela é sua.
E sorrindo com o canto da boca:
― Agora queremos assistir esse espetáculo.
Todos se sentaram e o major, olhando em volta com o
ar superior de um verdadeiro "conoisseur", despiu-se
lentamente. Deitou a francesinha no tapete da sala e, quando
ia possuí-la, gritou:
― Mas ela é virgem!
A gargalhada foi geral. A cara do major era de espanto
e queria dizer que aquela criança, sendo virgem, não podia
ser possuída. Um capitãozinho de cabelo aparado e sorriso
cínico deitou-se sobre a jovem, vestido como estava,
levantou-se daí a pouco e disse, sempre sorrindo:
― Pronto, major, agora ela não é mais virgem!
Lá para o meio da festa, os oficiais bêbados se despiam
e dançavam uns com os outros. Chamavam a isso o baile
dos "sans culottes". Eu era respeitada. Minha atuação vinha
sempre quando a festa estava no fim.
Dançava o "Pecado Original", tema que o coronel
Oetting, possuído de imaginação coreográfica, criara para
mim. Eu aparecia toda nua, apenas tentando proteger-me
com as mãos. Em gestos rápidos, elevava os braços e
voltava a cobrir-me. Os nazistas gritavam de entusiasmo.
Os meneios de meu corpo eletrizavam a sala. Os olhos de
todos os homens se cravavam em mim. Pareciam de fogo.
― Que mulher! ― dizia um.
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― Que corpo! ― dizia outro.
Os que estavam mais sóbrios elogiavam o bom-gosto
do coronel Oetting. De repente, a coreografia do "grande
artista" me obrigava a deitar-me de ventre para cima, com
as pernas dobradas e os joelhos ligeiramente afastados. Eu
acompanhava o ritmo sensual da música com movimentos
de ventre que se aproximavam dos gestos de uma mulher
em pleno êxtase sexual.
Nessa hora, um capitão, certa vez, se atirou sobre mim,
agarrando-me e beijando-me escabrosamente. O coronel
Oetting, refeito da surpresa, puxou-o pela gola, enquanto o
capitão baixava a cabeça e pedia desculpas.
― Meu coronel, eu venho da Normandia. Lá as
mulheres fogem de nós ou se contaminam para que não as
queiramos possuir. Estive muitas semanas na Polônia e,
depois, vim direto para a Franca. Não tive sequer um
pequeno período de licença. Minha tropa é tropa de elite.
Há meses que não sei o que é mulher, meu coronel. E esta
me deixou louco.
― Qual é a sua divisão?
― Divisão Hitler, meu coronel.
Eu estava parada, na mesma posição em que a dança se
interrompera, quando ouvi, inesperadamente, a resposta do
coronel Oetting.
― Tome-a. Ela é sua por esta noite, capitão.
***
Livrei-me do irrequieto capitão ― um fauno sem
grandeza ou flauta ― que tentava arrastar-me em direção
ao quarto. Fui colocar-me face a face com o coronel
51
Oetting. Os outros oficiais, deitados sobre o tapete ou
sentados nos divãs e nas poltronas, com suas ninfetas ou
com seus companheiros de farda, tinham silenciado.
Queriam prestar maior atenção à cena, esperando, quem
sabe, uma tirada wagneriana.
― Coronel ― fui dizendo ― se imagina que me vou
transformar em depósito de imundície do exército alemão,
está muito enganado.
Ele escutava calado. Prossegui:
― Se esse aflito capitão, cujo nome ignoro, veio
mesmo do front, onde esteve tantos meses invicto de
mulheres, se ele necessita de emoções revitalizantes, se é
um herói nazista, se pertence à Divisão Hitler, isso não me
diz respeito. Por que não lhe oferece as cortesãs da casa? Há
muitas aqui, para sua escolha.
Com a mão apontei as doidivanas, inteiramente
embriagadas, que divertiam ― ou tentavam divertir ― os
oficiais. Chamei uma delas.
― Seu nome?
― Heléne.
― Quer ficar com este capitão indócil?
― E o outro? ― ela quis saber.
― Quer este?
― Tanto faz.
Chamei outra:
― Você aí. Seu nome?
― Delly.
― Está muito magra, mas tem um belo corpo e um
sorriso bonito. Agrada-lhe, capitão?
52
O huno não abria a boca. Só me espiava, com um jeito
de cão faminto e despeitado.
― Delly, prefere o capitão?
― Não faço questão de posto.
― Faz questão de quê?
A cínica fez com os dedos um sinal muito antigo.
Dinheiro era a solução.
― O capitão paga mais. Fique com ele.
Chamei outras três. Era impressionante vê-las assim,
tão disponíveis na sua honra. Heloise, Marly e Dora, esta
uma espanhola morena, conversadora. Quando o quadro
ficou completo, ofereci-o ao capitão, como uma feitora de
bacantes:
― Estão às suas ordens para fazê-lo esquecer da
guerra, capitão. Eu prefiro me abster da honra.
Cheguei mais perto do coronel. Senti que ele estava
feliz com a minha atitude. Tratava-se de outra experiência
sua.
― Muito bem, Giselle. Sou forçado a admitir que você
está magnífica. Tem a facilidade de expressão de um
Goebbels.
Pousei minha mão sobre seu braço.
― Estou quase me acostumando com sua
personalidade, coronel.
Voltei os olhos para o capitão ávido. Ele estava no
meio das cinco fêmeas, já sem dólmen, em manga de
camisa, contando a passagem do Reno por sua Divisão
Blindada. O coronel se divertia, talvez sem saber bem por
quê.
53
O GOLPE TRAIÇOEIRO
58
A DANÇA E AS VIOLETAS
O GENERAL E EU
66
AS "MENINAS"
A HISTÓRIA DE DELLY
70
― É assim que a senhorita se interessa pela sorte
dele? ― falou o nazista, com voz suave.
― O bem-estar de seu pai não significa alguma coisa
para a família?
― É evidente que sim! ― disse eu, com uma esperança
na alma.
Fez um ar irônico que me deixou ainda mais
intranqüila.
E insistiu: ― Pois viaje comigo.”
O PREÇO
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"Fique tranqüila, querida! Vou sair um pouco, só até a
casa de Hermine, em busca de alguns gramas de manteiga.
Está fazendo frio e é possível, mamãe, que eu durma lá".
Eu estava decidida a pagar um alto preço pela vida do
meu pai.”
73
QUANDO O HOMEM CANSA
74
A IDÉIA TERRÍVEL
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Mas, embora soubéssemos que a presença da jovem
assassina em nossa casa constituía um perigo virtual de
fuzilamento, continuávamos a protegê-la, à espera de um
milagre. O milagre veio na pessoa de um desconhecido.
Bateu-nos, altas horas da noite, na janela. A casa era baixa
e no alinhamento da rua. Geladas de frio e medo,
acordamos.
Minha mãe, com voz rouca, perguntou: ― Quem é?
― Um francês que está com fome ― foi a resposta.
Ouvi os passos de minha mãe na sala e o ruído da
porta se abrindo. O homem entrou e minha mãe me
chamou: ― Delly! Venha me ajudar.
E acrescentou:
― Ele está ferido. Foi apenas o tempo necessário para
vestir um robe e precipitar-me na sala. O francês estava
sentado, com as mãos sobre a mesa e a cabeça apoiada.
Pálido, quase da palidez cadavérica, via-se que perdera
sangue em quantidade. Vestia uma capa impermeável e por
isso não pudemos, de imediato, ver o ferimento. Minha mãe
ajudava-o, já, a erguer-se.
― Venha comigo, Delly. Precisamos levá-lo ao quarto.
Eu e a outra moça, secundadas por minha mãe,
conseguimos arrastar o ferido até a cama maior da casa. O
corpo tombou, enquanto eu tirava a capa que o envolvia.
Não pude conter um grito.
― Veja, minha mãe! Sobre a blusa azul do estranho
uma enorme mancha de sangue revelava a gravidade do
ferimento.
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― Deve ter atingido o pulmão ― e minha mãe,
enquanto falava, ia despindo o busto do desconhecido.
― Não podemos fazer muita coisa sem auxílio de um
médico.
― Acha que podemos arriscar?
Minha mãe voltou seus olhos para mim. Havia uma
chama diferente, um brilho estranho, quando respondeu:
― Vamos tentar salva-lo! Achei que deveria fazer uma
ponderação, àquela altura.
― Mas, minha mãe ― comentei ― acontece que
temos já conosco a assassina de um oficial alemão. Com
mais este desconhecido, certamente fugitivo de um campo
de prisioneiros, não teremos meios de nos manter por muito
tempo. Além do que é praticamente impossível ocultá-los.
Minha mãe era uma velha francesa de fibra, e
retorquiu:
― Antes de tudo, aqui não está uma assassina, mas
somente a executora da vontade divina! E este homem
ferido é um francês, lutando pela França.
― Os alemães não pensam assim ― observei ― e se
formos apanhados juntos, aqui nesta casa, teremos
encerrado nossa passagem por este mundo.
― Nossa passagem por este mundo só vale se
conseguirmos deixar nele, com um belo gesto, a nossa
marca. Do contrário terá sido inútil. No momento minha
maior preocupação é o que possa acontecer ao seu pai,
meu bom marido, naquele lugar horrível. Mas vamos
chamar o médico, quanto antes, para cuidar deste ferido!
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― concluiu minha mãe, com uma força de espírito
extraordinário.
Convenci-me dos argumentos da mamãe. Minha
mocidade, minha vontade de viver, haviam posto em mim,
nos minutos anteriores, um princípio de egoísmo. Mas
resolvi afinal dedicar-me aos meus infelizes companheiros.
E lembrei o nome do doutor Cerdan, um verdadeiro
francês.
― Está muito vigiado nesta hora. Mas só pode ser ele
mesmo ― assentiu minha mãe.
O desconhecido soltou um gemido. Bagas de suor
molhavam o travesseiro, e o pobre se contorcia em dores.
― O ferimento é gravíssimo! ― disse a menina, que o
estudava.
― Não passará desta noite se alguma coisa não for
feita.
― Só temo a gangrena! ― falou o desconhecido,
entredentes.
― Qualquer pessoa encontrada a esta hora na rua
será presa. As patrulhas alemãs devem estar rondando a
cidade, depois da morte do oficial ― comentou minha mãe.
― Mas é preciso arriscar. Do contrário, o homem não
escapa. Vocês duas ficarão ao lado dele. Eu vou à casa do
doutor Cerdan.
― A senhora? Não! ― disse eu.
― E por quê? Sou velha e não desperto suspeitas.
Prefiro que você fique, minha filha.
Como se não me ouvisse, minha mãe vestiu o casaco,
enrolou o xale no pescoço e saiu.
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A menina ficou do meu lado, fazendo-me companhia.
Era um trágico espetáculo aquele. Duas moças sentadas ao
pé de um leito onde um homem agonizava. Sangue pingava
no assoalho.
83
― Naquele tempo ― continua Delly explicando ―
jamais me passaria pela cabeça quem seria Giselle, esta
que agora, aqui na casa do coronel Oetting, diante da
lareira, ouve minha narrativa.
Giselle, mais curiosa, pediu: ― Continue, continue,
Delly! Não pare de contar!
Delly prossegue, voltando à cena daquela noite
angustiada, na sua casa, em Compiègne.
― Como disse, o ferido delirava, falando teu nome.
Num esforço desesperado, ergueu metade do corpo, mas
tombou sem forças. Quando ajeitávamos o travesseiro sob
sua cabeça, bateram violentamente na porta. Não poderia
ser minha mãe. Ela batia um sinal combinado, a espaços
longos. O ruído era agressivo.
― Quem é? ― perguntei com voz firme.
Responderam lá de fora: ― Gestapo!
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7
85
A verdade é que naquele instante eu sonhava com um
milagre, algo de sobrenatural que acontecesse depressa.
Minha mãe chegou no minuto seguinte, e aí revelou-se de
um sangue-frio excepcional. Ouvi-lhe a voz, na discussão
com os nazistas. Revelava-se rabugenta. Exagerava sua
condição de velha intransigente:
― Que querem os senhores na casa de uma anciã, a
estas horas da noite?!
Vi que procurava também ganhar tempo. Chamei a
menina, fiz com que me ajudasse a embrulhar Zingg em
toalhas e velhos jornais. Transformei-o, em poucos
instantes, numa verdadeira múmia. Meu objetivo era
esconder seu ferimento. Única providência cabível, naquele
minuto, sem qualquer esperança. Pouco depois minha mãe
abriu a porta e deixou que os nazistas entrassem. Vinha
discutindo, embaraçando-lhe os movimentos.
― Afinal, o que querem? ― perguntou.
― Queremos revistar-lhe a casa ― disse um deles,
enérgico. ― Fugiu um preso que pode bem estar escondido
aqui.
Com a voz mais tranqüila deste mundo minha mãe
concordou:
― Bem,... os senhores mandam mesmo. Vasculhem a
casa, como quiserem.
― Somente há mulheres aqui? ― perguntou o mais
rude.
A velha não tirou os olhos dele nem se perturbou
quando disse:
― Temos um homem também.
86
O ESTRATAGEMA
A LISTA
89
OS CORPOS QUE SALVAM
VOLTA AO PRESENTE
AÇÃO RÁPIDA
CONTINUA...
NOTA INFORMATIVA:
A espiã Giselle Montfort foi criada pelo jornalista David Nasser no
ano de 1948 e publicada originalmente no Diário da noite na forma de
capítulos seriados (56 capítulos). As histórias foram depois publicadas em
quatro volumes cuja primeira edicão foi publicada em 1952 pela Editora
Distribuidora Edições do Povo. Estes quatro volumes foram publicados
posteriormente pela Editora Monterrey em Março de 1964 e em Dezembro
de 1967.
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