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© 1966 – LOU CARRIGAN

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey


Ilustração de capa: Benício
Digitalização: 500709
Revisão: 500713
Um olho no espaço

Brigitte Montfort é uma espiã linda que trabalha para o


Setor de Operações Especiais da CIA e nas horas vagas se
diverte jogando tênis, praticando esgrima ou fazendo sexo
da maneira mais elegante possível.
No dia a dia, sua atividade mais conhecida é de repórter
do jornal Morning News, o matutino de maior tiragem de
Nova Iorque. Trabalha sob as ordens do carrancudo, mas
simpático Miky Grogan, seu diretor e redator chefe, e com o
apoio eventual do repórter esportivo Frank Minello, que
funciona como seu guarda-costas, nas missões arriscadas,
ou como parceiro de travessuras eróticas nos momentos de
lazer.
Como espiã, Brigitte usa o apoio de sua profissão de
jornalista e nisso consegue uma harmonia perfeita, pois seu
chefe direto na CIA, o Inspetor Charles Alan Pitzer (a quem
chama, carinhosamente, de tio Charlie) é amigo pessoal e
velho companheiro de Miky Grogan, diretor do Morning
News.
Em suma, uma mulher excepcional com atividades
movimentadíssimas, todas elas beirando o perigo e o risco
de vida. Porque Brigitte Montfort, a filha de Giselle, gosta
de flertar com a morte. Sim última façanha jornalística foi
entrevistar Chiang Ching, a passionária viúva de Mao Tse-
tung. Esta reportagem quase lhe custou o pescoço, na
China. E como agente especial da CIA, bem... como espiã
ela já fez de tudo, até mesmo roubar a favorita de um
potentado árabe para conseguir decifrar certos segredos do
mundo do petróleo.
No seu belo apartamento, uma cobertura sofisticadíssima
no 76.° andar do Cristal Building da Quinta Avenida, em
pleno coração de Manhattan, Brigitte vive como uma
princesa do século vinte, entre objetos de arte e circuitos
fechados de televisão, equipamentos quadrifônicos de som e
outros artefatos do progresso alucinante só accessíveis a
uma sociedade pós-industrial.
Neste exato momento vamos encontrá-la deitada
languidamente em sua cama de vicunha branca,
inteiramente nua, lendo um ensaio sobre a excitação mágica
das mulheres no antigo Egito. Brigitte interessa-se
vivamente por esta leitura exótica e seu corpo dourado pelo
sol de cinco continentes parece agora ligeiramente agitado
como a folhagem de uma árvore que a brisa do verão
movimentou. Suas pernas lindas acham-se flexionadas,
mostrando as linhas bem definidas dos músculos triceps
crurais, perfeitos, que dão às coxas e às nádegas aquela
textura rígida ideal que normalmente só pode ser observada
na silhueta das mulheres que fazem ginástica diária. Brigitte
Montfort é uma escultura.
De repente um zumbido muito especial brota
misteriosamente de sua mesa de cabeceira onde se acha bem
disfarçado um rádio de ondas curtas com sintonia direta
para o escritório central da CIA. É uma chamada urgente!
Brigitte interrompe a leitura, abre um compartimento
secreto dessa mesa de cabeceira, retira de lá um ultra
moderno transmissor-receptor de alta frequência, aperta um
botão vermelho em seu punho e fala:
— Agente Montfort na escuta e gravando!
A resposta, do lado da CIA, é a mais esdrúxula possível:
— Atchim!
Brigitte surpreende-se. Não pode admitir que uma
chamada urgentíssima do alto comando da Agência Central
de Informações dos Estados Unidos seja pura brincadeira,
com a transmissão de um simples e prosaico espirro em
ondas curtas.
— Alô? Que loucura é esta? — faz ela, irritada.
A resposta não demora:
— Atchim! Desculpe, Brigitte, sou eu... estou
resfriadíssimo!
— Eu quem? Que história é essa?
— Sou eu, Charles Pitzer... Atchim!
Brigitte, sem conter um frouxo de riso, responde:
— Então tio Charlie está gripado. Que grande notícia!
O inspetor Pitzer, do outro lado, rebate:
— Ora, garota, não comece com suas piadas. Estou com
uma gripe dos diabos e não há graça nenhuma nisso.
— Há sim, meu chefe querido... Significa que você é
humano. Só os seres humanos apanham resfriado. Os robôs
não adoecem nunca. Eu pensava que você era um robô...
— Deixe de brincadeiras e venha imediatamente à nossa
floricultura. Vou desligar... Atchim!
— Saúde!
Meia hora depois a linda e esfuziante Brigitte Montfort,
vestindo um chemisier de Saint Laurent capaz de
enlouquecer a homens e mulheres, dava entrada na loja
secreta da CIA em Nova Iorque, a Floricultura do Tio
Charlie, onde, entre rosas e crisântemos são feitos os
contatos mais importantes da contraespionagem americana.
Veio recebê-la, logo à entrada, um dos seus ajudantes mais
simpáticos, o Johnny I, de Manhattan. O leitor inteligente já
sabe que a nossa adorável Brigitte chama a todos os seus
colegas, indistintamente, de Johnnies, para evitar problemas
de identificação.
— Por que me chamaram com tanta urgência pelo rádio
do meu quarto? — foi indagando ela, de início.
— O chefe vai lhe dizer agora mesmo! — explicou o
Johnny, muito solícito, conduzindo-a imediatamente à sala
onde se encontrava o gripadíssimo Inspetor Charles Pitzer,
chefe direto de Brigitte dentro da CIA.
— Atchim! — fez ela, como saudação. — Vejo que meu
chefe está mesmo chumbado. Será uma gripe russa ou
chinesa?
Pitzer, afundado numa poltrona, fungando, com o nariz
vermelho, era a própria imagem do abatimento.
— Sente-se, menina! — disse ele, de mau humor. —
Vamos ao que interessa.
— Qual é o problema, tio Charlie?
— Trata-se de encontrar... atchim... um objeto que caiu...
atchim... no mar.
— Saúde, saúde, saúde! — disse ela, com uma simpática
inflexão na voz. Olhou para o ajudante: — Você conhece o
assunto, “Johnny”?
— Claro.
— Então deixemos que o tio Charlie fique caladinho e
sossegadinho, e explique-me você o assunto. Está bem
assim, chefe?
— Está bem, Brigitte. Desculpe, mas... Fale você,
“Johnny”!
— Muito bem. O caso é que alguma coisa funcionou mal
nos sistemas de direção pelo rádio, e um dos nossos espiões
caiu no mar. Acreditamos que no Caribe.
— Perdão, perdão, perdão — interrompeu Brigitte. —
Disse que um dos nossos espiões caiu no mar? Creio que
não entendi muito bem, “Johnny”.
— Oh, refiro-me a um dos espiões espaciais, está claro.
Você sabe: um desses aparelhos que lançamos ao espaço
para que vá tirando fotografias da Terra.
— Sim, sei alguma coisa... Mas nunca me interessei
muito por esse sistema de espiar o que os outros estão
fazendo. Creio que não há nada melhor que um espião com
duas pernas, dois olhos e um cérebro. Não pensa assim,
“Johnny”?
— Não sei... Talvez sim. Mas o fato concreto é que o
EE-4 caiu no Caribe. E precisamos encontrá-lo.
— Por que “EE-4”?
— Espião Espacial-4.
— Espião Espacial número Quatro. Ótimo. Isso quer
dizer que, pelo menos, há outros três ainda... em órbita.
— Temos uns trinta e oito — sorriu “Johnny”.
— Que barbaridade! Imagino que isso deva sair um
pouco... caro.
— No total, qualquer coisa assim como um bilhão de
dólares.
— Um bilhão de dólares em “cafeteiras” que vão
rodando pelo espaço! — exclamou Brigitte. — Bem,
suponho que se gastamos essa fortuna em semelhantes
artefatos será por alguma razão.
— Evidentemente. Todos os satélites-espiões estão
divididos em grupos. O satélite em questão pertence à
penúltima série lançada. Mas isto não vem ao caso. O que
importa, e muito, é que seja recuperado para conseguirmos
as informações que não pôde enviar.
— Outra falha?
— Hã-hã — concordou “Johnny”.
Brigitte sorriu. Levantou-se, foi à janela da sala de
Pitzer, da qual avistava-se o jardim cheio de canteiros que
abasteciam a floricultura, e ali, pensativa, acendeu um
cigarro. Voltou-se bruscamente.
— Diga-me como funcionam esses brinquedos,
“Johnny”,
— São colocados em órbitas por um foguete,
naturalmente. Depois, ficam girando ao redor da Terra,
segundo órbitas estabelecidas cujo perigeu é de quarenta
quilômetros e cujo apogeu é de cem, aproximadamente.
Essas órbitas são bem calculadas. Sabemos, portanto, que
diariamente passam tais e tais satélites-espiões por cima da
Sibéria, da China ou da França... Quer dizer, do lugar onde
a França, na África, realiza suas provas nucleares.
— Oh... Espionagem atômica?
— Melhor dito: nuclear.
— Claro, li algo a respeito dessas coisas. Entendo que
nossos satélites-espiões vão equipados com câmaras
fotográficas cujo alcance pode ser de cem quilômetros.
— A essa distância, o EE-4 pode fotografar uma bola de
futebol na Terra com toda a nitidez, Brigitte. Enviou
inclusive fotografias de pessoas que passeavam pela Praça
Vermelha, em Moscou. Não diremos que essas fotografias
possam servir para muita coisa, se levarmos em conta que
são tiradas de cima e portanto...
— Entendo que não poderiam servir para identificar
pessoas, por exemplo. Em compensação serviriam para
saber se, em determinado lugar da China, digamos, há uma
concentração... inquietante de tropas.
— Exato. Além disso, os satélites-espiões podem
fotografar centrais elétricas, represas, grandes construções,
instalações termonucleares... E sendo bem estudadas as
órbitas, pode-se conseguir que a cada momento haja um de
nossos satélites-espiões lá onde interessa. Já conseguimos
obter fotografias de várias explosões atômicas subterrâneas,
tanto das provas realizadas pelos russos como das nossas
próprias. É um sistema de espionagem importante, acredite.
— E de uma envergadura espantosa... — murmurou
Brigitte. — Mas terá lá seus inconvenientes.
— Claro. Agora mesmo, esse EE-4 caiu no mar...
— Refiro-me a outros inconvenientes. Por exemplo,
imagino que os russos têm também seus satélites-espiões,
não?
— Sem dúvida.
— Bem... Nesse caso, eles sabem que os Estados Unidos
também vigiam seus avanços em todos os sentidos. Então,
não seria de estranhar que durante o dia ocultem suas
instalações, e só trabalhem nelas durante a noite.
— Seria uma lamentável perda de tempo — sorriu
“Johnny.
— Raios infravermelhos? — perguntou Brigitte.
— Exatamente. Todas as nossas séries de EE estão
equipadas com câmaras de microfotos de uma precisão
admirável, assombrosa, as quais dispõem de um sistema de
detecção à base de raios infravermelhos. Seja de noite ou de
dia, os EE podem tirar fotografias sem descanso, sempre
precisas, claras, nítidas. Sobretudo ultimamente. Antes, as
fotos eram enviadas à base pelo rádio. Mas agora cada
satélite envia seus microfilmes.
— Envia-os à Terra?
— Sim, uma vez terminado um microfilme, é expelido
automaticamente da câmara, para que outro ocupe seu
lugar. Passa a uma cápsula, esta a outra de maior tamanho e
resistência, e esta é lançada fora do satélite-espião. Como é
natural, a base recebe dados sobre o lugar e momento em
que foi lançada cada cápsula contendo um microfilme.
Quando essa cápsula chega a uns oito mil metros da Terra,
abre-se um paraquedas de cores vivas, especiais. É avistada
pela esquadrilha de resgate, que consiste em meia dúzia de
aviões munidos de redes especiais, nas quais recolhem a
cápsula. Daí a enviá-la ao lugar onde o microfilme será
estudado, trata-se já de operação simples e rotineira.
— Oh, sim... Tudo muito simples e rotineiro. Que
acontece quando não se recebe notícia do lugar onde foi
expelida a cápsula contendo o microfilme?
— Bem... Isso também está previsto. O satélite-espião
expulsa as cápsulas quando tal lhe é ordenado da base, pelo
rádio, o que se faz quando passa por determinado lugar.
Então, saem várias cápsulas de uma vez, os microfilmes são
recolhidos e enviados aos laboratórios, onde são revelados,
ampliados e finalmente estudados por técnicos habilíssimos.
— Bem... — suspirou Brigitte. — Imagino que dentro de
pouco nos aposentem a todos, não é assim?
— Claro que não! — protestou Pitzer com veemência.
— Máquina alguma poderá substituir definitivamente o
homem!
— E menos ainda, uma mulher como você —
acrescentou “Johnny”.
Brigitte atirou-lhe um beijo com os dedos, sorrindo
alegremente.
— Obrigada, “Johnny”.
— Atchim...! — espirrou Pitzer.
— Pois esse é seu trabalho: ir ao Caribe e recuperar o
EE-4.
— Estão certos de que ele caiu?
— Certíssimos. Quando passava pelo Cabo Kennedy,
foi-lhe transmitida pelo rádio a ordem de expulsar as
cápsulas com os últimos microfilmes. Então, qualquer coisa
falhou. O EE-4 ficou silencioso, não expulsou as cápsulas c
foi perdendo altura... Dada sua trajetória, calcula-se que
tenha caído no Caribe. Então, é preciso ir recolhê-lo
imediatamente. Supõe-se que outros serviços de
espionagem estejam informados do fato e tememos a
afluência de numerosos espiões no Caribe, ansiosos por
conseguir esse satélite e todos os microfilmes que contém.
— Disso pode estar certo: infestam o Caribe agentes de
todo o mundo, “Johnny”. Mas... o Caribe é muito grande,
não? Esperam que eu vá até lá, tome um banho e encontre o
satélite?
— Bem, não tanto — riu “Johnny”.
— Além disso, deve pesar um pedaço a geringonça,
hem?
— Uns quinhentos quilos...
— Trabalho pesado, digo eu.
— Você não estará sozinha lá, é claro. Já mandamos uns
cem agentes, para investigar tudo.
— Cem agentes! Não posso acreditar!
— Pois assim é. Há de compreender que não é fácil
encontrar um satélite com metro e meio de altura e noventa
centímetros de diâmetro em todo o mar do Caribe. Mar que,
além disso, está todo cheio de ilhas... Alguns navios da U.S.
Navy estão utilizando radar e sonar. É natural que tenhamos
mobilizado todos os nossos efetivos naquela zona, Brigitte.
Seria... muito inconveniente que o EE-4 fosse recolhido por
um espião soviético ou chinês, por exemplo. Ou francês, ou
inglês... Por qualquer um, claro.
— Sou obrigada a aceitar esse trabalho, tio Charlie?
Pitzer pestanejou, desconcertado.
— Não entendo, Brigitte...
— Digo que a missão não me agrada. Preferia não ter
que ir ao Caribe perder tempo revistando matagais ou passar
o dia debaixo d’água procurando um objeto não muito mais
fácil de distinguir que um homem... Bem sabe que isso não
é trabalho para mim.
— Bem, você não terá que passar as vinte e quatro horas
realizando buscas. Na verdade, tínhamos pensado enviá-la a
uma casa localizada perto da praia, em missão de vigilância.
— Vigilância de quê? E em que praia?
— Na ilha Martinica, das Pequenas Antilhas. Perto de
Fort de France fica Lamentin, uma localidade simpática.
Relativamente pequena, claro. Nos arredores dessa
localidade, muito perto da praia, há uma formosa vila
construída sobre uns rochedos, chamada “La Mouette”, que
em francês significa...
— Por Deus, “Johnny”: quer ensinar-me francês?
— Perdão. Bem, essa vila que se chama “A Gaivota”,
dada sua posição um pouco, elevada sobre o mar, constitui
um excelente mirante para manter vigiada toda uma parte da
ilha, as praias, as embarcações ou aviões que passem pelas
proximidades. Inclusive as pessoas. Tudo isso,
naturalmente, com um poderoso binóculo. Neste caso...
— Neste caso não quero passar o dia sentada olhando
para o mar com um binóculo, ainda que poderoso. Além
disso, creio que chamaria atenção, “Johnny”.
— Como ia dizendo — prosseguiu “Johnny”, rindo com
astúcia —, neste caso ninguém estranharia que naquela vila
se usasse um binóculo para estudar continuamente o céu e o
mar.
— Por quê?
— Recebemos informações sobre a proprietária da vila.
É uma velha senhora francesa, que passou quase toda a sua
vida na Martinica. Conhece-a bem. É muito possível, além
disso, que saiba de muita coisa, porque passa o dia armada
de binóculo, estudando as gaivotas, qualquer outra ave
marinha, os golfinhos que se aproximam da costa, os
tubarões... Vem fazendo isto há anos, e ninguém estranhará
que continue... em nosso benefício. O que ninguém saberá é
que, várias vezes por dia, o binóculo não será usado pela
velha senhora mas por uma agente da CIA chamada
Brigitte.
— Puseram-se em contato com essa senhora?
— Ainda não. Você o fará.
— Eu? Boa ideia...
— Por que não? Você é simpática, fala o francês
certamente melhor que ela agora... Já sabe o que se passa na
Martinica: o francês de lá não é muito bom. De modo que
essa velha a acolherá com alegria quando você lhe falar em
seu impecável francês de Paris. Voilá!
— Há muitas pessoas que falam bem o francês,
“Johnny”, Não creio que isso baste para essa velha senhora
me admitir em sua vila. Quanto ao francês impecável, fala-o
quem tem boa educação, em Paris ou na província.
— Há outra coisa. Essa senhora está escrevendo um
livro sobre aves marinhas, golfinhos etc., com o propósito
de destinar a renda a não sei que obra de beneficência
naquela ilha. Não entendo grande coisa do assunto, mas
penso, que um livro de tal gênero interessará a poucos
editores e a muito pouca gente. Mas vamos supor que lhe
proporcionasse dez ou vinte mil dólares. Quantia bem
insignificante se a compararmos com cem mil.
— Tenho que oferecer cem mil dólares a essa senhora,
para deixar-me permanecer em sua vila?
— É isso. Mas faça-o com muito tato. Ela não é uma
pessoa qualquer, Brigitte. É na verdade uma grande
senhora. Seu nome completo é Annette Simonet, Duquesa
de Montpelier.
— Encantada — sorriu vagamente Brigitte. — Mas o
assunto continua não me interessando.
— A trajetória do EE-4 indica como muito provável que
tenha caído perto da Martinica.
— Ouça, “Johnny”, eu sou ave solitária. Cem agentes
estão no Caribe. Acha que cento e um resolveriam o caso?
Além disso, não me agrada muito tratar com mulheres. De
um modo geral, mostram-se desagradáveis com outras
mulheres, sobretudo com uma bonita como eu. Por outro
lado, uma velha acolheria com mais agrado a presença de
um elegante cavalheiro que falasse maravilhosamente o
francês e dissesse ser estudioso de algo bonito: Geologia,
Zoologia, Botânica... Qualquer coisa dessas que ninguém
entende.
— Essa dama é muito amável. Frequentemente desce à
praia para alimentar as gaivotas... E as gaivotas afluem, já a
conhecem...
— Eu não sou uma gaivota. E ela perceberá isso, não?
— Não sei por que temer as outras mulheres...
— As mulheres são muito invejosas. Mas, realmente,
“Johnny”, estou procurando desculpas idiotas. Sinto-me
ainda cansada e deprimida pelo que se passou em Buenos
Aires, e preferiria descansar um pouco mais.
“Johnny” olhou expectante para Charles Pitzer, que
franzia a testa e torcia o nariz.
— A ordem de mobilização geral chegou de
Washington, Brigitte, e... atchim!... não sei o que dirão ante
sua negativa.
— Não me nego — suspirou Brigitte. — Peço apenas
que me deixe descansar mais alguns dias, tio Charlie. Além
do que insisto em não considerar essa missão apropriada
para mim
— Consultaremos Washington. Chamarei depois você
pelo rádio e espero dar-lhe uma resposta satisfatória.
— Está bem. Agora, retiro-me. Quer alguma coisa
especial, tio Charlie? Bombons, revistas, jornais,
microfilmes de senhoras despidas... ?
— Não quero nada, obrigado.
— Então, até a vista, querido.
Deu-lhe outro beijo na testa, tomou o braço de “Johnny”
e os dois saíram do quarto de Pitzer. “Johnny” voltou em
seguida, todo sorridente.
— É bonita e gentil como ninguém, não acha, Mr.
Pitzer?
— Chame Washington. Vejamos o que decidem: se ela
deve ou não obedecer a ordem.
***
Brigitte pôs a revista de lado quando soou o rádio direto,
escondido na mesa de cabeceira do seu luxuoso quarto.
— Alô, “Johnny”. Temos já a resposta?
— Seu prestígio em Washington é grande, Brigitte. Pode
ficar em casa. Outro agente irá à vila “A Gaivota”. Um
barbado.
— Assim é melhor. Conheço esse agente?
— Nem eu mesmo sei quem é. Bom repouso, querida.
— Adeus, “Johnny”. Obrigada por tudo. Beijos para o
tio Charlie e você.
Fechou o contato, tornou a apanhar a revista... e ficou
pensativa. Lá ia um de seus companheiros, como outros
cem, recolher outro “companheiro”, este mecânico, em cujo
interior havia certamente uma grande quantidade de
informação filmada. Era bem interessante isso de satélites-
espiões...
— Quem teriam enviado? Provavelmente um agente
especial, dominando o francês à perfeição.
Imaginou-se no Caribe, o esplêndido sol que lá deveria
brilhar, ha Martinica a quinze graus ao norte do equador...
Imaginou as brancas gaivotas e reconheceu que teria
gostado de saber como era aquela dama francesa que há
tanto tempo vivia na ilha. Nada menos que duquesa...
Madame la Duchesse de Montpelier. De nome, Annette
Simonet...
E seu companheiro? Como seria aquele que dentro de
algumas horas chegaria à vila chamada “La Mouette”?
Encolheu os ombros esculturais. Ela precisava de
descanso. Muito descanso...
***
Seu nome era Malcolm Nash e sua profissão, agente da
CIA há sete anos. Quer dizer, desde os vinte e oito. Aos
trinta e cinco, Malcolm Nash estava um pouco acima de
todas as pequenas misérias humanas, e ainda não perdera a
fé. Em sete anos de serviços prestados à CIA, tinha
aprendido mais que nos vinte e sete anteriores. Possuía boa
vista, sabia avaliar as pessoas, fora ferido quatro vezes e já
cumprira com êxito nem mais nem menos que trinta e nove
missões. Fracassara somente em quatro. Fracassos
certamente relativos, mas fracassos enfim. Entretanto, o
confronto entre êxitos e fracassos era-lhe altamente
favorável e, por conseguinte, reconheciam-no como um dos
bons agentes da espionagem norte-americana.
Por isso, tivera que suspender umas férias em Miami e
apresentar-se em Washington, onde recebera ordem para
viajar à ilha Martinica, chegar à vila da duquesa e ali
instalar-se com os olhos bem abertos.
Realmente, Malcolm considerava o assunto um tanto
confuso. Seus anos de espionagem haviam-no feito
aprender que a casualidade ocorre bem poucas vezes. O
bom espião prepara ele mesmo uma série de “pequenas
casualidades” que o levam ao êxito. Supor que um espião
chega a um lugar, saca o revólver ou o rádio de bolso e
soluciona tudo, porque tudo está acontecendo de acordo
com determinado padrão, é coisa de cinema. É preciso
trabalhar, martelar, insistir.
Súbito, viu diante de si a aeromoça. Uma garota loura,
bonita, com um sorriso simpático. Tinha covinhas nas faces.
Estava olhando para ele e dizia-lhe alguma coisa.
— Como?
— Vamos aterrissar, cavalheiro. Por favor, queira
colocar o cinto.
— Ah, sim...
— Pode fazer a gentileza de apagar o cigarro?
— O ciga... Oh, mas claro... Desculpe, estava distraído.
A moça sorriu e Malcolm pensou que, certamente,
aquele par de covinhas era o que havia de mais simpático.
Apagou o cigarro contra o cinzeiro embutido no braço de
sua poltrona e colocou o cinto de segurança,
maquinalmente. Não se importava muito por ter
interrompido suas férias. Era um sujeito dinâmico. Em mil
ocasiões, havia-se perguntado, se, depois de uma missão,
um agente de espionagem precisava mesmo descansar.
Sim senhor. Um sujeito é ou não é espião. Se é, está
sempre preparado, seja dia, noite, verão, inverno ou o que
for. Ele sempre estava preparado. Graças a isso, quando
recebeu aquele telegrama cifrado da CIA levou menos de
vinte minutos para arrumar a mala, pagar a conta do hotel e
sair como uma bala. Menos de meia hora mais tarde, no
Miami Internacional Airport, tomava um avião direto a
Washington. Mas, que ironia do destino: ali, em
Washington, não pareciam ter tanta pressa e tinham-no feito
perder quase vinte e quatro horas entre um detalhe e outro.
Bem, estava chegando à Martinica, ia entrar em contato
com aquela duquesa, trabalharia. O resto era paisagem.
Trabalhar, trabalhar sem descanso: eis a chave do
sucesso de um verdadeiro espião, pensava ele.
Novamente a aeromoça dizia-lhe alguma coisa.
— Quê... ?
— O avião está parado, cavalheiro. Todos os passageiros
já desceram. Está sentindo alguma coisa?
— Oh, não... Estou muito bem. Já chegamos à
Martinica?
— Chegamos, sim. Precisa de alguma coisa? A
companhia terá o maior prazer em...
— Não, não. Obrigado, amorzinho. Já completei
quatorze anos.
A aeromoça sorriu.
— Não trouxe sua babá?
— Desta vez não, minha querida. O Papai deixa que eu
viaje sozinho. Como é seu nome, fadinha?
— Lucy.
— Gostei de você, Lucy. Mandarei flores para seu
próximo voo. Até breve.
Deixou a aeromoça sorrindo, encantada. Não é todo dia
que os aviões carregam passageiros simpáticos.
Malcolm Nash desceu no aeroporto de Fort de France,
com uma simples maleta, algumas centenas de dólares, um
cachimbo de espuma, sua pistola e muita malícia. Era
preciso encontrar o raio daquele satélite-espião.
Um táxi levou-o a Fort de France. Dali, e após uma
discussão em seu perfeito francês com um chofer que falava
o terrível dialeto martiniquense, fez-se conduzir a Lamentin.
E uma vez ali, com menos discussão que antes, fez-se levar
à vila chamada “La Mouette”. Lugar este que ninguém
parecia ignorar onde estava.
Justo, justo, uma elevação rochosa, com palmeiras,
craveiros e rosais. Muito bonita, acima do mar azul
chamado Caribe, numa esplanada em que se viam manchas
de verde, céspede, a água brilhante de uma piscina e, ao
fundo, sobre aquele azul inacreditável do mar, um bando de
gaivotas brancas.
— Puxa...! Que lindo lugar!
O táxi já se afastava e Malcolm Nash encontrou-se com
a maleta na mão, o cachimbo entre os dentes e o olhar fixo
na vila branca e vermelha. Washington era pouco menos
que um frigorífico em novembro; Miami, sem dúvida muito
agradável; mas a Martinica, àquela altura, parecia um
paraíso de luz, cor, alegria e verão.
Começou a caminhar para a casa, assobiando
mansamente. O portão estava aberto, de modo que pôde
entrar livremente. Percorreu devagar aquela vereda, ladeada
de flores de toda espécie. Cheirava bem, e tudo parecia
suave e sem riscos. Mas, sem dúvida, logo se compreendia
que daquele mirante que era a vila divisava-se o mar até o
infinito... Dali podia-se ver não só as gaivotas próximas à
costa, mas barcos, aviões, peixes saltando do mar. Sim
senhor: dali, com o bom binóculo podia-se ver até... até o
México.
— Que maravilha! — pensou.
Chegou ao bonito pórtico com delgadas colunas. Tinha
visto qualquer coisa assim em Nova Orleans.
O que não tinha visto em Nova Orleans era uma garota
como aquela que estava saindo da casa para recebê-lo. Era
alourada, mas tostadinha. Seus olhos pareciam enormes
abismos azuis. Sim senhor: admiráveis. Quanto ao seu
corpo, simplesmente sensacional. Usava um vestidinho sem
mangas, um diminuto avental branco, uma graciosa...
touquinha ou o que fosse, no alto da cabeça. Era o tipo
clássico da empregadinha francesa.
— Cavalheiro?
Sua voz era clara e doce, de tom amável. Era uma linda
jovem, isso era. Pés pequeninos, mãos finas, porte elegante,
uma tentação...
— Cavalheiro?...
— Quê...? Oh, sim... Sou Malcolm... Malcolm Nash...
professor de Geologia. Desejo ver a senhora Annette
Simonet.
— Madame la Duchesse não está em casa, Mr. Nash.
— Oh... Espero que não lhe tenha acontecido nada.
— Não, não... Recebeu um chamado de Fort de France,
ontem à noite, e teve que se ausentar. Não creio que
regresse tarde, porque Madame la Duchesse não gosta de
permanecer muito tempo fora de casa.
— Ah... Cada um pensa à sua maneira. Quanto a mim,
acho uma chatice ficar em casa e em minha cama.
— O senhor talvez não tenha sabido encontrar um... bom
motivo...
— É, talvez... Poderia esperar pela senhora duquesa?
— Mais oui, monsieur! Há outros cavalheiros esperando.
Também são... personalidades assim.
— Assim... como?
— Pessoas complicadas, como o senhor. Um é
astrônomo, um é icto... ictalo... ictio...
— Ictiólogo?
— Oui, monsieur! Oh, é um nome muito difícil, não?
— Sim, tem razão. Você fala inglês, baby?
— Como disse o senhor?
— Oh, baby... É um modo carinhoso de chamar. Qual é
o seu nome, que assim não a chamarei mais de baby?
— Meu nome é Monique.
— Gosto. Onde posso deixar meus trastes? Minha
bagagem, quero dizer...
— No pequeno salão. Por aqui, por favor. Oh... Madame
la Duchesse espera sua visita, Mr. Nash?
— Não. Mas estou convencido de que me receberá com
agrado.
A deliciosa empregadinha de olhos azuis e sorriso
angelical conduziu Malcolm ao pequeno salão. Um salão,
aliás, bastante grande, com ampla janela para o mar. Tudo
talvez fosse um pouco velho, mas simpático e confortável.
Com essa simpatia das coisas queridas e bem cuidadas:
quadros, esteiras de palha colorida, graciosas máscaras nas
paredes, meia dúzia de gaivotas empalhadas, um enorme
golfinho, um tubarão... Havia flores em jarrões, amplas
poltronas e, pelo menos, quinze variedades de aves
marinhas.
Malcolm Nash ficou alguns segundos com a boca aberta,
até que ouviu atrás dele a voz de um homem:
— Posso servir-lhe alguma coisa, cavalheiro?
Voltou-se, quase sobressaltado. Monique, a bonita
Monique, tinha desaparecido. Em seu lugar estava um
homem de uns sessenta anos, cabelos encanecidos, porte
orgulhoso, olhos negros ainda juvenis, de olhar intenso.
Trajava uma libré já um tanto gasta, porém mostrava-se
muito digno dentro dela.
— Servir-se? Bem, não sei...
— Talvez rum com gelo?
— Pois... Que tal se em vez de rum for uísque com gelo,
amigo?
— Sou Baptiste. E com todo o respeito, creio que o
senhor o eu não somos amigos, até o momento. Vou trazer
uísque com gelo.
— Muito obrigado. Ouça: que apito toca você aqui?
Baptiste levantou o queixo.
— Sou o mordomo, cavalheiro.
Com isto, deu tudo por dito e abandonou o salão.
Malcolm aproximou-se da vasta janela e lançou um olhar à
praia. O rochedo caía quase a pino, mas uma escada cortada
na pedra levava até o mar, terminando numa diminuta praia
de areias douradas, que brilhavam ao sol como se fossem de
ouro vermelho, já que o sol avermelhava-se no ocaso.
Pôde ver então os dois homens. Contraiu as
sobrancelhas, olhou para todos os lados... e viu o grande
binóculo. Estava sobre uma pequena mesa redonda, junto à
qual havia uma confortável poltrona, enorme, quase um
trono. Ao lado do possante binóculo, um livro de viagens
submarinas e, sobre as páginas deste, umas lentes ovaladas,
com uma haste de ouro destinada a mantê-las diante dos
olhos.
Sentou-se na poltrona, apanhou o binóculo e enfocou o
mais afastado dos homens, lá embaixo na praia. Esteve a
ponto de lançar uma exclamação quando, por obra e graça
do binóculo, aquele homem ficou praticamente ao alcance
de sua mão. Era esbelto, claro, tinha algumas sardas,
cabelos lisos, olhos agudos... Precisamente naquele
momento voltou-se para a casa e Malcolm encolheu-se,
porque teve a perfeita impressão de que ia ser visto. Mas,
claro, isso não era possível, de modo que continuou
estudando-o. Rosto sereno, expressão grave, gestos
comedidos...
— MI-5 — murmurou Malcolm Nash. — Rapaz, aposto
vinte contra um como você veio mandado pelo Serviço
Secreto Britânico.
Desviou o binóculo para o outro homem. Este era
moreno, tinha uma expressão sorridente, um elegante
bigodinho e vestia-se em roupas leves, de maneira
absolutamente adequada ao lugar. Suas mãos eram
delicadas, seu olhar escuro revelava uma viva inteligência...
— Mon cher — sorriu Malcolm —, quando sairmos
daqui, você levará minhas cordiais saudações ao Deuxième
Bureau.
O moreno de bigodinho estava trepado numas pedras,
acima do tal inglês, que passeava pela praia. E olhava-o
com uma certa ironia amável.
— Seu uísque com gelo, cavalheiro.
Malcolm quase deu um pulo, voltou-se para Baptiste e
quis sorrir.
— Diabo, você me assustou, Baptiste.
— Sinto muito. Entretanto, permito-me suplicar-lhe que
não volte a tocar nas coisas de Madame la Duchesse. Ela é
muito organizada e estamos proibidos de virar sequer uma
página do livro, tirar do lugar o lorgnon, utilizar o binóculo.
Gosta de encontrar tudo exatamente como deixou.
— Entendo: é um tanto maníaca.
Baptiste tornou a levantar o queixo.
— É uma grande senhora, monsieur. Se não estiver
disposto a levar isto em conta, será melhor que tome o seu
uísque e regresse aos Estados Unidos.
— Desculpe. Sabe então que sou um ianque?
— Conhecemos muito bem os norte-americanos. Posso
ser-lhe útil em alguma coisa?
— Sim. Quando chegar sua patroa, diga-lhe que gostaria
de falar com ela antes de qualquer outra pessoa. Estou certo
de que saberá... convencê-la.
Estendeu-lhe uma nota de cem dólares, com ar distraído.
Baptiste olhou para o dinheiro, levantou uma vez mais o
queixo e disse friamente:
— Para dar esmolas, cavalheiro, deverá dirigir-se à
igreja. Lá será recebido com muito agrado. Com sua
licença, cavalheiro.
Fez uma digna meia volta e saiu do salão. Malcolm
começou a perceber que, efetivamente, aquela casa, aquela
formosa vila, tinha algo de especial. E como bom espião
capaz de adaptar- se a tudo, tomou nota da gafe. Ponto final
nas falhas.
Apanhou o copo de uísque com gelo, olhou o binóculo e,
após certa hesitação, compreendeu que não devia tocar mais
nele.
Do modo que voltou para junto da janela, disposto a
olhar à vista desarmada os dois homens que classificara
mentalmente. Talvez se enganasse, mas tal como Baptiste,
ele possuía uma vista excelente.
***
Ouviu o motor de um carro, meia hora mais tarde.
Depois, a suave freada, o silêncio. Distante, a voz de
Baptiste. E a de Monique. Em seguida, passos na casa, no
vestíbulo cheio de plantas. Batidas lentas de tacões, mas
rítmicas, acompanhadas de pancadinhas menos rítmicas
sobre o mosaico.
Certamente a velha duquesa fazia uso de uma bengala.
Ah, essas velhas múmias que andam pelo mundo arrastando
suas enfermidades, suas tolas enfermidades que são
simplesmente achaques... Certamente iria defrontar uma
mulher cheia de enfeites e maquilagem, de olhos pintados e
pestanas postiças, esforçando-se por parecer jovem, inútil,
ridiculamente.
Esteve a ponto de engolir o cigarro quando a pessoa
esperada deteve-se no limiar do salão. E imediatamente
sentiu vontade de esmurrar a própria cabeça, insultando-se
de cretino, estúpido, perfeito imbecil.
— É o cavalheiro norte-americano?
A voz parecia feita para ler os mais belos versos do
mundo. E os olhos eram maravilhosos, talvez azuis, talvez
cinzentos, talvez cor de violeta. Através das lentes ovaladas,
aqueles olhos lançavam o olhar mais amável e senhorial que
Malcolm Nash jamais vira. Amável, senhorial... e
inteligente. Aquela dama um pouco encurvada, ajudava-se
efetivamente com uma bengala de bambu, rematada por um
punho de prata. Mas não usava pestanas postiças, nem
carmim, nem enfeites ou maquilagem de qualquer classe,
nem tingia o cabelo, nem pretendia parecer mais jovem. Era
uma anciã digna e respeitável. Todos os seus cabelos eram
brancos, seu rosto tinha um leve bronzeado natural,
magnífico. A boca conservava uma expressão doce, quase
juvenil, as mãos eram admiráveis. Mãos de duquesa,
expressão de duquesa, porte de duquesa. Naquele momento,
Malcolm Nash soube compreender toda a dignidade e
beleza que pode encerrar um corpo já com
aproximadamente setenta anos, cuja nobre cabeça
totalmente branca mantém-se erguida com a segurança que
decorre da bondade, da educação, da firmeza de caráter.
Nem sequer notou que se tinha posto de pé
imediatamente. Nem de que estava recordando as palavras
ouvidas em Washington: “Tome cuidado, Malcolm. Não é
uma mulher comum. É uma dama autêntica, uma velha
aristocrata francesa que sabe apreciar o bom e desprezar o
mau. Seja delicado, amável, paciente. E não esqueça nem
por um momento que ela é uma duquesa e você um agente
da CIA, ou seja um homem que não pode cometer gafes.
Não vai enfrentar um bando de sabotadores, mas uma velha
senhora muito especial.
Annette Simonet tinha caminhado para ele, quase
agilmente, manejando sua bengala de bambu com castão de
prata de um modo gracioso, elegante, senhoril. Deteve-se,
olhando-o profundamente, um pouco encurvada, com um
sorriso de avozinha compreensiva.
— O norte-americano que me anunciaram?
— Oh... Oh, sim, senhora duquesa! Perdão... estava
distraído.
— Isso é uma descortesia.
— Uma... Não, não, por Deus... Perdoe-me... Se quer
que lhe seja sincero...
As sobrancelhas grisalhas ergueram-se amavelmente.
— Se não há de ser sincero, Mr. Nash, melhor que
apanhe sua maleta e retire-se de imediato. Tem um carro?
— Não, não...
— Baptiste o levará a Lamentin.
— Perdoe-me... Não, por favor. Claro que serei sincero.
Posso... lançar-me a seus pés?
Annette Simonet inclinou elegantemente a cabeça.
— Parece que já está aos meus pés, cavalheiro.
— Seu servidor. Perguntei-lhe se podia ser sincero
porque pretendia dizer-lhe que a senhora me surpreendeu.
Esperava uma dama menos...
— Menos... quê, Mr. Nash?
— Menos jovem.
— Oh. Bem, isso parece um galanteio.
— Suplico-lhe que o interprete assim, senhora duquesa.
— Muito amável. Perdoará se me sento, mas estou
fatigada. Não me agrada viajar, Mr. Nash.
— Por favor, permita-me...
Embora não fosse necessário, fez o gesto de aproximar á
grande poltrona da velha senhora, que se sentou com um
suspiro, depôs a bengala e olhou para o binóculo. Depois,
voltou-se para Malcolm.
— Tenho a impressão de que alguém nesta casa ainda
não compreendeu minhas instruções, Mr. Nash.
— Eu... Fui eu quem fez uso de seu binóculo...
— Ah... É uma falta de tato... e de educação.
— Pelo que me sinto profundamente arrependido,
madame.
— Um sorriso luminoso apareceu fugazmente nos lábios
da formosa anciã. Apanhou o binóculo e dirigiu-o para o
mar. Esteve assim nada menos de três minutos, durante os
quais Malcolm Nash permaneceu a seu lado, esperando,
rigidamente cortês. Por fim, a duquesa deixou o binóculo e
olhou para ele.
— Sempre creio que durante minhas breves ausências as
gaivotas vão desaparecer, ou morrer de fome... Coisas
assim. Gosta de gaivotas, Mr. Nash?
— Até hoje não lhes tenho dado muita atenção, senhora.
— Ah... Bom, sua sinceridade já é uma desculpa. A
verdade é que as gaivotas são menos românticas do que
parecem. Claro que são belas, que têm um voo magnífico,
que são hábeis pescadoras. Ficaria assombrado se lhe
explicasse as maravilhas que tenho visto fazer essas aves.
Baixam em voo picado sobre o mar, como se quisessem
chegar ao fundo. Mergulham ligeiramente. Logo saem com
um bonito peixe prateado no bico. Mas são algo... perversas
— acrescentou sorrindo. — Bem, nem sequer isso: é uma
simples questão de sobrevivência. Os melhores devoram os
piores. O que não me agrada nas gaivotas é que se
dediquem a comer os ovos de outras aves marinhas. Além
disso, tenho observado que são um pouco comedoras de
carniça. Ignorava isto, Mr. Nash?
— Como disse, senhora duquesa, as gaivotas não me...
— Interessam. Certo. Quanto a mim, passo a vida
estudando-as. São curiosas, acredite. Algumas vezes desço
à praia com uma cesta cheia de peixes, que Baptiste
encomenda em Lamentin. Há mais de trinta anos que vêm
gaivotas à minha praia.
— Deve conhecê-las muito bem.
— Às gaivotas, tal como às pessoas, não podemos
conhecê-las muito bem. Com os golfinhos, é outra coisa...
Sei que nos Estados Unidos existem aquários com golfinhos
domesticados. Estão sendo estudados, não é verdade?
— Ouvi dizer que sim.
— Os golfinhos são simpáticos de fato, posso garantir-
lhe. São seres sociáveis, compreensivos, tolerantes... E
alegres. O senhor é alegre, Mr. Nash?
— Não sei... Penso que sim, senhora duquesa. Mas
asseguro-lhe que não sou um golfinho.
Annette Simonet, Duquesa de Montpelier, pôs-se a rir
com uma graça inimitável. Automaticamente, ingressou no
rol das pessoas que Malcolm Nash anotava mentalmente
como dotadas de senso de humor e, portanto, dignas de
confiança.
— Acho-o muito simpático, Mr. Nash. Claro que não me
parece um golfinho, mas é tão simpático como qualquer
deles.
— Sinto-me honrado com a comparação, senhora
duquesa.
— Serviram-lhe alguma coisa? Foi bem atendido em
minha casa, Mr. Nash?
— Muito bem. Baptiste é um pouco formal, mas
Monique salva a situação com muitos pontos de vantagem.
A senhora duquesa tornou a rir. Era uma senhora
encantadora e Malcolm Nash começava a sentir-se
realmente à vontade em sua companhia.
— O senhor é um malicioso ingênuo, Mr. Nash, como
todos os americanos. Aconselho-o a que não se fie no suave
aspecto de Monique.
— Por quê?
— Porque, no fundo, ela é uma passional e, um pouco
que o senhor se descuide, estará transformado em seu
marido.
— Seria um bom negócio para mim.
A simpática senhora riu novamente. Súbito, apanhou o
seu lorgnon, colocou-o diante dos olhos e olhou Malcolm
Nash de cima a baixo, não de modo ofensivo, mas
amavelmente, com sincera curiosidade.
— Mr. Nash, devo dizer-lhe que fala o francês como um
parisiense.
— Bem, estive alguns anos em Paris....
— Mas agora reside nos Estados Unidos?
— Isso mesmo.
— É norte-americano legítimo?
— Naturalmente, senhora duquesa!
— Bem... Posso saber por que veio a “La Mouette”?
— Sou geólogo... e consta que recentemente caiu um
meteorito nestas águas. Seria de grande auxílio para meus
estudos descobrir esse meteorito e examiná-lo
detalhadamente.
— Um meteorito?
— Sim... Talvez tenha visto algo caindo do céu... Algo
em brasa, talvez brilhante, que deve ter levantado uma
espumarada fervente por alguns segundos... Viu?
— Que aconteceria se tivesse visto, Mr. Nash?
— Bem... Ficaria muito grato se me indicasse o lugar
onde caiu. Caso contrário, pediria à senhora que, durante
algumas horas por dia, me permitisse ocupar sua poltrona,
utilizar seu binóculo e tentar descobrir no mar algum sinal
desse meteorito.
— Que espécie de sinal?
— Poderia ser... uma certa ebulição da água, talvez uma
leve erupção de lava... Qualquer coisa. A Ciência Geológica
lucraria bastante se eu pudesse encontrar esse meteorito e
analisá-lo devidamente.
— Compreendo. Isso significaria, Mr. Nash, que o
senhor teria que permanecer alguns dias, ou semanas, em
minha casa.
— Exato. Mas acredite que tudo farei para não ser um
hóspede incômodo. E estou autorizado a pagar-lhe por meu
alojamento e despesas que possa ocasionar. Não desejamos
prejudicá-la, senhora duquesa. Tenho autorização para
oferecer-lhe, para ficar sozinho nesta vila, a soma de cem
mil dólares americanos.
— É uma brincadeira?
— Não, senhora. Contanto, está claro, que me possa dar
esperanças quanto à pronta localização desse meteorito.
— Falei em brincadeira, Mr. Nash, porque há outros
dois senhores que também vieram a “La Mouette”. Dizem
chamar-se, se não recordo mal do que me comunicou
Baptiste, Melchior Leduc e Tom Wallace; francês o
primeiro, inglês o segundo. E, respectivamente, ofereceram
pela localização desse... meteorito, as somas de um milhão
de francos novos e cem mil libras esterlinas. Quantias
ambas que excedem seus cem mil dólares, ao câmbio atual,
Mr. Nash.
Malcolm Nash ficou de boca aberta, sob o olhar
amavelmente irônico da duquesa de Montpelier.
— Bem... Eu...
— A Ciência está disposta a pagar muito, Mr. Nash. E,
segundo parece, os norte-americanos não estão muito
interessados... já que são os que menos pagam. Certamente,
vi cair ao mar esse... meteorito. Não está muito longe daqui.
— Onde? — perguntou sofregamente Nash.
— No mar — sorriu a duquesa.
— Mas o mar... é muito grande, senhora.
— Imenso. Mas o senhor, que se permitiu a liberdade de
utilizar meu binóculo, terá podido comprovar que seu
alcance é prodigioso. Digamos que esse “meteorito” pode
estar a cem metros da praia... ou a cem quilômetros. Para o
sul... ou para o norte. Numa fossa profunda, ou a menos de
cinco braças da superfície. As velhas como eu, Mr. Nash,
tornam-se um pouco... neurastênicas, à força da solidão.
Assim, começamos a pensar que nossa vida tem sido...
inútil. E nos dedicamos a obras de beneficência.
Precisamente, estava... estou escrevendo um livro sobre
aves marinhas. Ainda não sei como se intitulará, mas tenho
a esperança de que interesse a algum editor amável. Posso
lhe assegurar que os lucros que eu obtiver serão destinados
a uma obra de beneficência muito necessária nesta ilha,
onde estou vivendo há mais de cinquenta anos. Como as
velhas não param nunca de pensar, ocorreu-me que essa
obra de beneficência seria muito favorecida com a
contribuição... voluntária de algumas centenas de milhares
de dólares. Mas, sem intenção de ofendê-lo, creio que cem
mil são pouca coisa. Já lhe disse que há ofertas melhores...
Bem, o certo é que, segundo me consta, os senhores Leduc
e Wallace afirmaram ser, respectivamente, astrônomo e
ictiólogo, mas... Não lhe parece que é um erro considerar
tolas e ingênuas as pessoas idosas? Além disso, Mr. Nash,
eu vi perfeitamente esse “meteorito”. Vi quando caiu ao
mar... Sabe de uma coisa? Eu diria que não é um meteorito
comum.
Malcolm Nash conseguiu sair de seu assombro com
grande esforço.
— Quanto, senhora duquesa? — murmurou.
O sorriso da aristocrática senhora foi o mais amável e
doce.
— Pois... Eu diria que um satélite espacial vale bastante
mais que cem mil dólares, Mr. Nash. Não é de minha
opinião?
Malcolm titubeou:
— Eu... Bem... Isto... Posso falar com os Estados Unidos
pelo seu telefone?
— Depois. Depois, Mr. Nash. No momento, creio que a
nós ambos convém ouvir as... ofertas dos senhores Leduc e
Wallace. Ainda não as recebi e seria muito descortês de
minha parte...
— Posso oferecer-lhe mais que qualquer um deles.
— Sem dúvida — sorriu a formosa anciã. — Mas, meu
caro Mr. Nash, nem sequer o dólar americano pode fazer-
me perder minha educação. Tenho visitas e, com sua
licença, desejo atendê-las devidamente, como mandam as
regras da cortesia. Agora se me permite...
— Sem dúvida — concordou Malcolm, sorrindo. —
Vejo que estou diante de uma Lady, senhora duquesa.
— Muito obrigada. Tinha a certeza de que me
compreenderia... Baptiste?
***
O Mordomo apareceu imediatamente à porta do pequeno
salão, inclinando a cabeça, em silêncio.
— Vá buscar esses cavalheiros, por favor, Baptiste.
Diga-lhes que terei muito gosto em recebê-los quando
deixarem de procurar seu meteorito.
— Oui, Madame la Duchesse.
Baptiste retirou-se. A velha dama olhou para Malcolm
com uma expressão de desculpa.
— Deve perdoar o Baptiste. Apesar dos anos em que
está ao meu serviço, o que inevitavelmente deu lugar a uma
série de pequenas... confianças, continua chamando-me
Madame la Duchesse e muito aferrado ao seu papel do
mordomo... de uma só empregada. Anos atrás, havia meia
dúzia, mas minhas rendas diminuíram, e tive que reduzir
meu serviço.
— Muito sensato. Mas parece que Baptiste ainda não se
convenceu disso.
— Ele é feliz assim. E faz milagres com o orçamento da
vila. Por exemplo, o uísque que tomou, Mr. Nash, é
provavelmente de sua própria adega secreta.
— Secreta?
Annette sorriu.
— É um velho finório. Gosta de uísque, mas obstina-se
em ocultá-lo. Nesta casa, normalmente, não há uísque...
Mas verá o senhor como haverá de tudo, se meus
convidados pedirem. Baptiste não consentirá jamais que
alguém se vá desta casa com a impressão de que as coisas
não estão bem.
— Mas não estão bem?
— Não muito. Na realidade — sorriu a anciã — creio
que essa obra beneficente que estou projetando deveria
estender-se também a mim... Sabe, Mr. Nash, que os
impostos sobre esta vila são minha preocupação este ano?
Como o foram no outro... e no outro... Entretanto, sempre
consegui sair dos meus apuros.
— E estou certo de que com toda a dignidade, senhora
duquesa.
— Naturalmente. Há um velho ditado que não sei se, lá
em sua terra, ouviu alguma vez. Diz: Deus aperta, mas não
sufoca.
— Nunca o tinha ouvido — admitiu Nash, rindo. — Mas
é bem simpático.
— É sim. Aprendi-o de um porto-riquenho... Oh, eis que
chegam a toda a pressa os seus colegas, Mr. Nash. Teremos
que atendê-los, deixando de lado a nossa boa conversa.
Malcolm Nash inclinou a cabeça, sorrindo. A velha
senhora estava olhando agora para a porta, pela qual
entravam os dois que, inclusive até aquele momento, já
quase noite fechada, tinham estado passeando pelo exterior.
Ambos detiveram-se, olharam para a duquesa, franziram
ligeiramente a testa quando depararam com Malcolm,
depois novamente olharam para ela, com ar inquieto.
O que Malcolm classificara como agente do MI-5
britânico limitou-se a um breve cumprimento de cabeça. O
que fora classificado como pertencente ao Deuxième
Bureau sorriu amplamente e precipitou-se para a anciã,
tomando-lhe a mão e aflorando-a com os lábios.
— Madame la Duchesse! Je suis dans ce moment le
plus...
— Por favor, monsieur Leduc — interrompeu ela, em
inglês. — Peço-lhe que fale em inglês, como cortesia para
com meus outros convidados. Como está, Mr. Wallace?
O inglês aproximou-se e apertou a mão que lhe estendia
a velha dama, com outra inclinação de cabeça.
— Muito bem, senhora duquesa. Obrigado. É uma honra
conhecê-la.
Annette olhou para os três homens com um leve brilho
de ironia em seus olhos juvenis.
— Suponho que os senhores dois já se conhecem...
O inglês negou com a cabeça.
— Não fomos apresentados, senhora. E assim sendo...
— Já sei, já sei. Não pode negar o senhor que é inglês.
Bem, já que Baptiste me informou de seus nomes e que
conheço a todos, farei as apresentações... Espero que
Baptiste não se tenha equivocado. Os senhores são — foi
indicando-os com o lorgnon — Melchior Leduc, francês,
astrônomo; Thomas Wallace, inglês, ictiólogo... Oh, Mr.
Wallace, espero que durante sua permanência aqui tenha a
gentileza de ajudar-me em certas passagens do meu livro
referentes aos golfinhos. Creio que um ictiologista é um
estudioso de peixes, não é assim?
— Correto, senhora. E com prazer lhe prestarei a
assistência que julgar necessária.
— É muito amável, agradeço-lhe. Bem. Falta Mr.
Malcolm Nash, americano, geólogo. Já se conhecem os
senhores. Agora, posso dizer-lhes que estão convidados a
jantar. Às nove, Baptiste lhes mostrará suas acomodações.
Estou certa de que trouxeram seus dinner-jackets.
Os três homens inclinaram a cabeça. Annette Simonet
levantou-se e dirigiu-se para a saída do pequeno salão,
sorridente. Mas quando passava junto a Wallace, este
adiantou-se um passo.
— Senhora duquesa...
— Diga, Mr. Wallace.
— Desejaria um minuto de sua atenção.., a sós.
— Estaríamos sendo descorteses com os demais
convidados, Mr. Wallace.
— Entretanto, esteve falando a sós com Mr. Nash.
— Sim. Mr. Nash teve a gentileza de esperar-me aqui,
onde o deixou meu mordomo, e não em uma praia particular
à qual ninguém lhe havia autorizado a entrar e percorrer.
Tom Wallace enrubesceu violentamente. Melchior
Leduc apenas pôde reter um sorriso divertido, quando
Malcolm pensava que aquela velha era capaz de fazer parar
um elefante.
Annette Simonet saiu do salão, com seu caminhar
venerável e ainda ágil, manejando daquele seu modo tão
gracioso a bengala de bambu com castão de prata.
— Bem — sorriu francamente Leduc — parece que à
senhora duquesa não agradam as visitas precipitadas, amigo
Wallace. Isso lhe servirá de aviso para que, no futuro...
— Não preciso de seus conselhos, monsieur Leduc.
— Pois eu diria que sim. Conheço bem essa classe de
senhoras. Vi algumas na França. São inteligentes, mas
mantêm-se apegadas a certos formalismos já esquecidos. A
Duquesa de Montpelier, obviamente, há muito tempo vive
só e acredita que tudo continua igual fora desta casa. Tato,
meu caro Wallace, muito tato. Do contrário, não poderá
estudar os peixes nesta praia. Não está de acordo, Mr.
Nash?
— Evidentemente — Malcolm consultou seu relógio. —
Acho que devemos ir mudar de roupa, aproveitando a
“casualidade” de termos todos trazidos nossos dinner-
jackets a um lugar aonde viemos exclusivamente fazer
nosso trabalho.
Leduc confirmou com a cabeça, rindo.
— Seria imperdoável que a senhora duquesa
comparecesse antes de nós à sala de jantar, Mr. Nash.
Leduc indicou amavelmente a porta e Nash foi o
primeiro a abandonar o salão. Fora, esperava-os Baptiste,
muito sério e digno.
— Permiti-me levar a bagagem dos senhores aos seus
respectivos quartos. Por aqui, por favor.
Subiram os três atrás do mordomo, que se deteve quando
chegou ao alto da escada. Dali mesmo, indicou três portas
das seis existentes.
— Senhor Wallace, senhor Nash, senhor Leduc... Peço-
lhes que não hesitem em me chamar, se precisarem de
qualquer coisa. Quanto ao jantar, Madame la Duchesse
pediu-me que lhes perguntasse se desejam alguma coisa
especial.
— Por mim estará tudo perfeito, Baptiste. Obrigado.
Baptiste inclinou a cabeça diante de Nash e olhou para
Leduc, que fez um elegante gesto de indiferença. Tom
Wallace limitou-se a encolher os ombros. Então, Baptiste
tornou a inclinar a cabeça e desceu a escada.
— Não é formidável isto? — exclamou Leduc. — Creio
que vamos passar uns dias encantadores nesta vila.
— Não pretendo ficar mais de um dia — declarou
Wallace.
— Caro amigo inglês, suas decisões e conjecturas valem
bem pouco aqui. Em compensação, vale muito que possa
pensar a duquesa. Exato, Mr. Nash?
— Acho que sim. Mais uma vez, tem razão, monsieur
Leduc. Além disso, não creio que um dia seja suficiente
para estudar os peixes.
Melchior Leduc pôs-se a rir alegremente, olhando com
ironia para o inglês, que não se alterou, já que ninguém ali
estava enganado a respeito do verdadeiro trabalho que os
reteria em “La Mouette” enquanto Annette Simonet,
Duquesa de Montpelier, o julgasse conveniente.
— Nosso companheiro americano de investigações...
científicas é um homem de palavra certeira, Wallace. E
parece simpático. Esperemos que esta cordialidade entre
nós não se modifique. Seria bastante lamentável. Ah, e
outra coisa: eu me apaixonei pela duquesa, de modo que
espero deixem-me o campo livre nesse sentido.
Malcolm sorriu ao amável gracejo do francês, que aliás
teria deixado de ser um gracejo uns poucos anos antes,
apenas. E mesmo naquela data a duquesa era uma mulher
tão encantadora que quase podia inspirar paixões.
— Está falando demais, Leduc — disse Wallace. E
entrou em seu quarto.
Leduc, após acompanhá-lo com o olhar, suspirou como
se decepcionado.
— Por que têm que ser tão sérios os ingleses, Nash?
— Na Inglaterra nunca faz bom tempo.
— E...?
— Bem, nosso amigo Wallace não deve conhecer a
fleuma dos seus compatriotas. Certamente não foi a
Oxford...
Leduc tornou a rir e permitiu-se bater no ombro de
Malcolm.
— Passaremos um serão agradável em sua companhia,
Nash. E sem dúvida a senhora duquesa será uma anfitriã
excelente, engenhosa, agradável... Até mais tarde.
— Até.
Entraram em seus quartos. Malcolm Nash fez
imediatamente o mesmo que, sem dúvida, devia estar
fazendo Wallace e Leduc: examinar o quarto à procura de
microfones, ou qualquer outro tipo de vigilância invisível.
O quarto era grande, dava para o jardim, os móveis
pareceram-lhe velhos e grandalhões, mas estavam brilhando
de limpeza. Os lençóis ostentavam na borda o brasão da
duquesa, em ouro e azul, um pouco gasto já, mas bastante
reconhecível.
Não havia microfones, nem nada. Entretanto, Malcolm
Nash compreendia que devia estar alerta, sobretudo depois
que a duquesa mostrara claramente, a ele pelos menos, que
sabia estarem procurando um satélite artificial, não um
meteorito. Como o pudera descobrir a velha dama?
Naturalmente a CIA não tinha apregoado aos quatros ventos
o sucedido com seu “Espião Espacial-4”. A presença de
Leduc e Wallace podia ter certa justificativa, levando-se em
conta que a espionagem internacional nunca dorme. Podia
haver mil meios pelos quais o Deuxième Bureau e o MI-5
soubessem da existência do EE-4, e que tinha caído ao mar
precisamente naquela zona. Mas como iria sabê-lo uma
anciã que tudo quanto fazia era estudar gaivotas?
Descartava imediatamente a ideia de que ela tinha
“visto”’ o satélite afundar na água. Podia ter visto, isso sim,
“algo” aquecido, um objeto em brasa, que caía no mar.
“Algo”. De tal modo que, mais provavelmente, ela admitiria
tratar-se de um meteorito ardendo que de qualquer outra
coisa. Impossível distinguir a forma do EE-4 àquela
velocidade. Além disso, chamejante pelo violento atrito
com a atmosfera. Então, só se podia pensar uma coisa a
respeito da duquesa: alguém lhe havia dito que o que agora
jazia no fundo do mar era um satélite artificial americano...
E isto complicava muito as coisas, já que se devia
colocar a sorridente e encantadora senhora em um ou outro
serviço de espionagem. Não podia ser de outro modo.
— Bem — pensou Malcolm — acho que todos nós
teremos que ir aceitando certas conjecturas. Espero
unicamente que ela se decida a favor da CIA, embora, está
claro, tenha eu que lhe oferecer mais de cem mil dólares.
Esta última hipótese também deu-lhe o que pensar.
Annette Simonet era uma pessoa encantadora, certamente,
mas... quem lhe garantia ser verdade que estava disposta a
levar a termo a tal obra beneficente? Bom, podia ser. Mas
certamente ela ficaria na memória dos ilhéus como uma
alma caritativa se fizesse um donativo de vinte mil dólares,
por exemplo. No entanto, achara cem mil muito pouco. Era
de esperar que pedisse o mesmo que Wallace oferecera em
moeda inglesa: cem mil libras, ou um quarto de milhão de
dólares. Quanto à oferta de Leduc, um milhão de francos
fortes, beirava os duzentos mil dólares.
Total: se ela recebesse um mínimo de duzentos e
cinquenta mil dólares, era preciso ser idiota para pensar que
os aplicaria integralmente numa obra de beneficência.
Sobretudo porque ela mesma declarara: a obra de
beneficência devia estender-se também à sua pessoa...
Mas tudo eram conjeturas, e talvez ele estivesse
pensando mal da pobre senhora.
O que parecia absolutamente certo é que alguém dissera
a Annete Simonet que o que caíra no mar era um satélite
artificial. Do contrário, ela jamais o poderia saber, por
muito que tivesse visto aquele objeto velocíssimo,
verdadeira bola de fogo, despencando dos céus.

Estava faltando um russo

O primeiro a descer fora Melchior Leduc. Estava


magnífico em seu summer-jacket branco. O rosto moreno,
recém-barbeado, exalava o aroma varonil de uma excelente
loção de Carven. Cruzava displicentemente as pernas,
sentado numa dessas poltronas que, de tão confortáveis,
quase ocultam a gente.
— Olá, Nash.
— Olá.
— Olhe, estava certo de que o primeiro a descer seria o
nosso amigo Wallace. Os ingleses são tão pontuais!
— Mas ainda é cedo! Faltam quase quinze minutos para
as nove, Leduc.
— Ah, é verdade... Não quer sentar-se? Mas vai sentir
calor. Estas poltronas não são precisamente adequadas ao
clima. Pergunto-me por que a duquesa não tem um
mobiliário mais moderno e apropriado.
— Talvez essa reforma de mobiliário lhe custasse um
dinheiro que atualmente não possui.
— É isso mesmo! — sorriu Leduc. — Mas tenha a
certeza de que alguns cientistas vão tirar Madame la
Duchesse de sua estagnação econômica. Inclusive Wallace,
que não parece muito amável, será generoso ao retirar-se,
estou convencido disto. O diabo é que... Bem devemos nos
preocupar com ele. Por que são tão rígidos os ingleses?
— Pela mesma razão que torna os americanos ingênuos
e os franceses espertos, suponho — sorriu Nash.
— Você é um homem do mundo, Nash — disse Leduc,
levantando-se da poltrona e aproximando-se. — Um
cigarro?
— Sim, obrigado... Oh, aí temos Mr. Wallace. E parece-
me pouco à vontade dentro de seu smoking.
— É verdade! Tão negro, tão sério, tão sóbrio... Um
cigarro, amigo Wallace?
Thomas Wallace aceitou o cigarro em silêncio, mas
ficou olhando carrancudo para Leduc quando este acendeu
diante dele seu bonito isqueiro de ouro. Quanto a Malcolm,
aceitara aquilo com toda a naturalidade, sem se alterar.
Havia tempo para tudo, certamente. E não seria Leduc o
único a tirar microfotos do que surgisse pela frente, pessoa,
animal, ou coisa.
Entretanto, o inglês fez honra a fleuma britânica
reconhecida no mundo inteiro, e acabou por acender o
cigarro. Destacava-se, completamente vestido de preto,
enquanto Leduc e Nash trajavam casacos brancos, mais
adequados ao clima.
— Agora o ideal seria um bom aperitivo — exclamou
Leduc. — Mas, do jeito que estão as coisas, duvido que nos
possamos dar esse gosto.
Voltou-se, porque acabava de ouvir um pigarrear à porta
do salão. Baptiste ali estava, sempre solene, enfarpelado
numa velha casaca cem vezes lavada e passada, mas ainda
respeitável.
— Madame la Duchesse descerá imediatamente.
Desejam os senhores um aperitivo?
Ficou olhando para Leduc, que contraiu comicamente as
sobrancelhas, como um rapazola apanhado em falta;
momento que Tom Wallace aproveitou para dirigir-lhe um
olhar irônico. Com todo o sarcasmo britânico, disse:
— Creio que Mr. Nash e eu não estamos particularmente
apressados e esperaremos a senhora duquesa. Mas monsieur
Leduc parece-me... impaciente.
— Que deseja tomar, monsieur Leduc? — perguntou,
impávido, Baptiste.
— Bem, esperarei que Madame la Duchesse desça.
Baptiste inclinou a cabeça e eclipsou-se. Nash e Wallace
olharam zombeteiramente para o francês, que encolheu os
ombros e sorriu.
— Acabo de perder alguns pontos — admitiu.
Madame la Duchesse não se fez esperar mais que três
minutos. E quando apareceu, os três homens ficaram
atônitos, boquiabertos, paralisados de assombro e,
sobretudo, de admiração.
— Mon Dieu... — murmurou Leduc. — Elle est
vraiment Dadame la Duchesse?
— Por favor, monsieur Leduc: eu lhe pedi... ou não?
Falemos só em inglês. É o idioma da maioria de meus
convidados.
Certo. Era uma voz para ler os mais belos versos. Mas,
sobretudo, Madame la Duchesse causava o impacto de uma
mulher belíssima. Com aquele vestido de noite, que lhe
descobria parcialmente os ombros empoados, aquele bonito
colar, o sorriso que brincava em seus lábios ainda juvenis, o
olhar luminoso de seus olhos magníficos, cercados de
pequenas rugas, seu porte senhoril, suas mãos admiráveis...
Madame la Duchesse fez compreender de imediato, a três
homens fartos de correr o mundo e aventuras de toda classe,
que aos sessenta e tantos anos uma mulher pode ainda
acender emoções,
Melchior Leduc foi o primeiro a chegar à sua mão
estendida e beijá-la, realmente compenetrado. Depois, sem
soltar-lhe a mão, ficou a olhá-la com expressão
maravilhada.
— Madame la Duchesse, eu já disse e repito: estou
apaixonado pela senhora! Posso alimentar esperanças?
Annette pôs-se a rir, retirou a mão e ofereceu-a
sucessivamente a Nash e Wallace. Baptiste entrava naquele
momento, com uma grande bandeja em que se viam quatro
cálices. Malcolm Nash apressou-se em retirar um, que
ofereceu à duquesa, a qual aceitou-o com um sorriso.
— Não me dá uma resposta? — sorriu Leduc.
— Os três são cavalheiros muito bem apessoados,
Monsieur Leduc. Creio que me seria muito difícil decidir.
Mas, sinceramente, asseguro-lhes que teria gostado de
conhecê-los quando tinha... trinta anos.
— Que teria feito então? — indagou Nash.
— Pois como os senhores eram ainda uns lindos
meninos de bochechas rosadas, eu teria podido beijar os
três.
— Ainda está em tempo — riu Leduc.
— Não, não... Baptiste não me perdoaria jamais. Não é
verdade, Baptiste?
Baptiste inclinou a cabeça.
— Madame la Duchesse não necessita nem necessitou
jamais de minhas indicações para tomar qualquer atitude. Se
Madame la Duchesse julga oportuno, servirei o jantar.
— Sim, Baptiste. Obrigada.
O mordomo retirou-se, os quatro terminaram seus
aperitivos conversando alegremente, depois Leduc quis
apressar-se em oferecer o braço à duquesa. Mas Malcolm
Nash tinha sido muito mais rápido naquela ocasião, e a
formosa mão da dama descansou em seu braço.
— Espero — sorriu — que o jantar esteja gostoso.
***
Novamente no salão, após o jantar, Annette Simonet
contemplava amavelmente seus três hospedes, enquanto
mexia o café com aquela sua aristocrática elegância
reveladora de uma alta linhagem.
— Bem, senhores, devo confessar que jamais esperei
uma afluência de visitas de tanta categoria... internacional
em minha casa. Nada menos que três homens de ciência.
Começaremos pelo senhor, monsieur Leduc: que espera
encontrar nesta vila, exatamente?
— Não exatamente nesta vila, senhora duquesa. Mas
sabemos que caiu um meteorito no mar, não muito longe
daqui. Pensamos que seria interessante uma busca no mar,
para encontrar esse meteorito e estudá-lo... É qualquer coisa
à qual um astrônomo não pode resistir, senhora.
— Assim parece... E o senhor, Mr. Nash?
— A história é parecida com a de monsieur Leduc. Se a
ele, como astrônomo, interessa o meteorito, tanto ou mais
deve interessar a mim, como geólogo, para estudar sua
composição, o grau de calor que tenha podido alcançar, sua
forma, se se compõe de materiais existentes na Terra...
— Compreendo, compreendo... Na verdade, aos
senhores dois entendo muito bem, e acho lógico seu
interesse por esse... pedaço do céu que tombou. Mas Mr.
Wallace... Não compreendo que interesse possa sentir um
cientista dedicado a estudar a vida dos peixes por um
meteorito... Que diz a isto, Mr. Wallace?
— É bem evidente que qualquer corpo vindo de além
dos limites de nossa atmosfera chega à incandescência ao
entrar em contato com o ar. Em tais condições, quando cai
no mar, seu grau de calor é tão elevado que produz uma
ebulição intensa, a qual inevitavelmente deve alterar a vida
animal ictiológica. Evidentemente, produzirá a morte de
muitos animais menores, mas alguns animais grandes
poderão sobreviver a essa ebulição. Perguntamo-nos, então:
em que condições sobrevivem esses animais à ebulição, ou
talvez ao contato? Portanto, para sabê-lo, seria interessante
encontrar alguns desses peixes grandes afetados e,
naturalmente, estudar os pequenos que tenham morrido.
Houve um segundo de estupefação ante tamanha mentira
tão bem pespegada, aparentemente tão lógica. O primeiro a
reagir foi Melchior Leduc, que aplaudiu levemente, batendo
com a mão direita sobre o dorso da esquerda, enquanto
sorria.
— Bravo, bravo! Bis!...
— Por favor, monsieur Leduc — censurou a duquesa. —
Sua ironia não me parece à altura do espírito francês... Que
se passa, Baptiste?
O mordomo estava um pouco ofegante.
— Os licores, Madame la Duchesse. Sou um desastrado.
Lamentavelmente, acaba de se quebrar a última garrafa de
Chartreuse...
— Está bem. Que mais temos, Baptiste?
— Por mim — adiantou-se rapidamente Nash —,
tomaria rum com muito gosto, senhora duquesa.
— Eu também.
— Também eu — sorriu Leduc.
— Bem. — Ela dirigiu aos três um sorriso de
agradecimento.
— São todos muito amáveis. Rum para quatro, Baptiste.
Que é, Mr. Nash?
— Ia fumar... Penso, porém, que a fumaça...
— Não me incomoda! — atalhou ela, quase rindo. —
Permitam-me oferecer-lhes uns charutos magníficos, que
são meu único luxo. Baptiste?
O mordomo foi a um armário e retirou uma caixa de
charutos, quase tão finos como cigarros, mas longos e
macios. Em primeiro lugar, ofereceu a caixa à duquesa,
depois aos surpresos espiões. E antes que Leduc fizesse
funcionar seu isqueiro, Baptiste ofereceu a chama de um
fósforo a Annette, que acendeu o charuto com evidente
prazer, saboreando a fumaça, sempre sem perder nem um
pouco de distinção, de elegância.
— Espero que não me condenem por fumar charutos,
senhores...
— Oh, não... Bem, realmente, não vemos motivo para
isso, senhora duquesa — disse Nash. — Em minha
opinião...
Fora, ouviu-se o motor de um carro. Quase em seguida,
uma freada. Annette olhou para Baptiste e fez-lhe um gesto
em direção à porta. O mordomo apressou-se a sair. Voltou
dois minutos mais tarde, evidentemente alterado. Estacou à
porta do salão, olhando para Annette.
— Então, Baptiste?
— Preciso falar com Madame la Duchesse.
Esta voltou-se para os três espiões.
— Perdoem-me?
Apanhou sua inseparável bengala e saiu do salão,
reunindo- se com Baptiste, que murmurou:
— Acaba de chegar um homem, Madame... É muito
alto, muito forte e não parece ser... muito gentil. Quer falar
imediatamente com a senhora, e afirma que o que tem a
dizer é de grande interesse para Madame...
— Veio sozinho?
— Oui, Madame.
— Acha que está armado?
— Não, Madame. Mas traz uma avantajada maleta e...
— Falarei com ele.
— Deixei-o no salãozinho azul. Deseja que vá... ?
— Não. Continue atendendo meus hóspedes. Bastante
atento, Baptiste.
— Oui, Madame.
Annette Simonet dirigiu-se ao salãozinho azul, entrou e
olhou para o homem que estava esperando, voltado para a
porta. Era na verdade um homenzarrão, muito forte, louro,
de olhos cinzentos. Devia ter entre trinta e cinco e quarenta
anos. Vestia calças escuras e um jérsei cor de canela, de
manga curta, e tinha na cabeça um boné de yachtman com
um galão vermelho sobre a viseira.
— É a duquesa? — perguntou.
— Sou, senhor...
— Ivan Nikolayev. Sim, russo, está claro. — Colocou
aquela avantajada maleta sobre a mesa, abriu-a e sacou
alguns maços de notas. — Senhora, vim oferecer-lhe
quinhentos mil dólares americanos para ocupar sua vila.
Imediatamente, deverão sair esses homens que chegaram
antes de mim. Quanto à senhora, deverá permanecer
encerrada em casa, bem como sua criadagem, e nada dizer a
ninguém.
As delicadas sobrancelhas da duquesa ergueram-se
amavelmente.
— Senhor Nikolayev, sua indelicadeza é muito superior
a quinhentos mil dólares. Tenha a bondade de retirar-se de
minha casa. Meu mordomo...
— Espere! Que está dizendo a senhora?
— Que se retire. Falei em bom francês!
— Também a senhora deveria entender meu francês:
ofereci-lhe meio milhão de dólares americanos, que lhe
entregarei agora mesmo, para fazer sair daqui esses três
homens e dizer-me onde caiu exatamente o espião
americano.
— O... espião americano?
— O satélite-espião dos americanos que caiu aqui por
perto. Centenas de agentes secretos o procuram, senhora. E
consta-me que alguém viu “algo” cair nesta zona. Quanto
aos seus hóspedes, são três espiões. Como eu mesmo.
Quanto lhe ofereceram eles? Mais de quinhentos mil
dólares? Eu oferecerei mais ainda. Quanto? Só terá que
declarar a quantia, livrar-se desses homens e indicar-me o
lugar exato... A senhora deve tê-lo visto, informei- me de
tudo sobre a pessoa que mora nesta vila e sei que, com um
binóculo...
— É muito grosseiro, senhor Nikolayev. Retire-se.
Ivan Nikolayev pestanejou.
— Perdoe... Olhe, é um trabalho que tenho que fazer. A
Rússia não admite perder, senhora. Quero esse espião
mecânico americano. Um milhão?
— Na verdade, deseja esse satélite artificial?
— Claro que sim!
— Bem... Por enquanto, ficarei com os seus quinhentos
mil dólares. Depois, se resolver dirigir-se a mim com
educação e bons modos, eu o ouvirei. Finalmente, como não
é o senhor o único que veio oferecer certa soma por certos
informes, terá que entrar na competição. Isto é: apresento-o
aos meus três convidados e, todos juntos, talvez cheguemos
a um acordo a respeito de qual dos senhores levará o
satélite.
— É absurdo perder tempo deste modo, quando posso
dar-lhe tanto quanto lhe ofereçam os três juntos, senhora.
— Disse-lhe minhas condições, senhor Nikolayev.
Aceite-as... ou retire-se.
Ivan Nikolayev compreendeu que não ia conseguir nada
à sua maneira, de modo que se conteve visivelmente, e
grunhiu:
— Aceito. Perderemos alguns minutos...
— O tempo que for necessário, senhor Nikolayev.
Agora, se me entregar sua maleta com o dinheiro... Muito
obrigada. Tenha a bondade de vir, por favor...
Ivan Nikolayev saiu do salãozinho azul, precedendo a
velha dama, que parecia ter dificuldade para transportar a
maleta com meio milhão de dólares. Pousou-a no chão, fez
um sinal a Baptiste, que se apressou a aproximar-se, e
murmurou:
— Quinhentos mil dólares, Baptiste: já sabe.
— Oui, Madame — disse Baptiste, empalidecendo.
Mas encarregou-se da maleta e afastou-se, enquanto
Annette caminhava agora para o salão onde estavam seus
outros três convidados. O russo deixou-a passar, esta vez,
talvez porque se linha acalmado e compreendesse um pouco
melhor aquela insólita situação. Ficou olhando atentamente
para Thomas Wallace, mas teve que atender ao resto das
apresentações:
— ... Melchior Leduc e Malcolm Nash. Senhores,
apresento-lhes Ivan Nikolayev, que chegou agora mesmo
com muita pressa para oferecer-me quinhentos mil dólares
americanos peio... “meteorito”.
Ivan Nikolayev não se alterou nem um pouco ante a fria
acolhida que lhe dispensaram seus colegas de espionagem
internacional. Nada para ele tinha importância, exceto
conseguir o que queria. Diante do surpreendente da
situação, era de supor que fosse igualmente surpreendente
para os demais, e se estes estavam esperando, ele também
poderia fazê-lo.
— Creio que começa a fazer verdadeiro calor aqui
dentro — sorriu a duquesa. — Por favor, Mr. Wallace: pode
abrir completamente essa janela? Obrigada... Rum, senhor
Nikolayev?
— Qualquer coisa.
— Baptiste lhe servirá em seguida. Não creio que
demore. Oh, penso que não o informei a respeito das
profissões de meus convidados... Mr. Wallace é ictiólogo,
Mr. Nash é geólogo e monsieur Leduc é astrônomo. Qual a
sua profissão, senhor Nikolayev?
— Agente da MVD soviética, senhora. Um espião, como
dizem as pessoas. Parece-me estúpido ocultá-lo quando
estes homens já me viram e serão capazes de reconhecer-me
em qualquer circunstância daqui por diante. Todos nós,
quando regressarmos ao nosso ponto de partida, a primeira
coisa que faremos será proporcionar dados sobre os aqui
presentes: se pudermos, tiraremos fotografias, tomaremos
impressões digitais, o que seja. Se não pudermos,
descreveremos seus rostos e características físicas mais
notáveis a nossos desenhistas especializados. Quanto a eles,
parece-me absurdo que insistam em ocultar sua
procedência. Pela lógica, poderíamos dizer que Mr. Nash
está trabalhando para a CIA, monsieur Leduc para o
Deuxième Bureau e Mr. Wallace para o MI-5 britânico...
Alguma dúvida mais a esclarecer, senhores?
Leduc olhou amavelmente para Wallace, sorrindo.
— E você dizia que eu falo demais, hem, Wallace?
— Sempre há quem fale mais — murmurou o inglês. —
Espero que o senhor Nikolayev compreenda a difícil
situação em que nos colocou a todos... Ele inclusive,
naturalmente.
— Não me agradam as hipocrisias, quando não são
necessárias — declarou o russo. — Espero que pelo menos
o americano esteja de acordo comigo.
— Só em parte, senhor Nikolayev — disse Nash. —
Poderíamos ter resolvido esta questão de um modo mais
delicado.
— Não seja estúpido. Nenhum de nós...
Annette Simonet ergueu a mão para Nash, que tinha
franzido a testa e avançado o queixo.
— Cavalheiros, por favor... É óbvio que, apesar da
grosseria com que se comporta, o senhor Nikolayev tem
bastante, razão. Entretanto, ele parece esquecer que quem
empunha a batuta — moveu graciosamente sua bengala —
sou eu, unicamente. Algum dos senhores sabe onde está o
satélite-espião de que falam?
Ninguém respondeu. A duquesa sentou-se, então,
suspirando, depois os olhou um a um e sorriu.
— Pois eu sei. Por favor, tenham a bondade de sentar-se.
Pressinto que minha obra beneficente vai exceder de forma
extraordinária meus cálculos e desejos mais otimistas.
Todos se sentaram. Annette Simonet apanhou seu
charuto e fumou pensativamente durante quase um minuto,
enquanto todos mantinham silêncio. Por fim, a grande dama
levantou a cabeça.
— Bem... O senhor Nikolayev, até o momento, foi o
mais generoso. Já pagou quinhentos mil dólares pelo
informe. Há quem dê mais?
— Seiscentos mil — disse alguém, na janela.
Todos se voltaram rapidamente para lá. Um homem
muito moreno, de longos cabelos pretos, olhos negríssimos
e brilhantes, moveu a mão em cordial cumprimento.
— Como estão, colegas? — perguntou, sorridente.
Olhou para a duquesa, abriu muito os olhos e exclamou: —
Valha-me Guadalupe, que linda! Estava convencido que
não seria tão velha como dizem, duquesa. Mas me humilho
a seus pés, dedicado servidor “pa” sempre.
Annette Simonet não se alterara absolutamente. Sorria
com suavidade e, enquanto inclinava levemente a cabeça,
Ivan Nikolayev grunhiu:
— Quem é você?
— “Pos” Lorenzo López... Quem senão eu? Passava
casualmente por aqui, ouvi vocês, estive escutando e, de
pronto, disse: “pos” o que seja que se vende aí dentro deve
valer muitos “pesos”, Lorenzo, porque senão ninguém daria
quinhentos mil dólares ianques... Não é mesmo, colegas?
— Não quer entrar, señor López? — convidou Annette.
— Com muito gosto, bonita...! — Saltou agilmente pela
janela baixa, sem deixar de sorrir, e abriu os braços. —
Aqui está Lorenzo López, em pessoa.
A duquesa olhava-o atentamente, com ar divertido.
Lorenzo López não era muito alto, mas robusto, e havia
demonstrado que agilidade não lhe faltava. Vestia uma
jaqueta de couro já muito velha, calças blue-jeans e sapatos
de tênis. Uma barba forte sombreava seu rosto simpático,
não escanhoado.
— Também está procurando o “meteorito”, señor
López?
— Por que não, madame? “Pos” se todo o mundo está à
procura, também procurarei!
— É mexicano, não?
— E valha-me Guadalupe!
— Do Serviço Secreto mexicano? — perguntou Leduc?
— Pode ser que sim, monsieur Leduc do Deuxième
Bureau... Não se sobressalte, homem. Já disse que estive
escutando...
— E por que não continuou? Talvez tivesse sabido o que
lhe interessa sem ter que pagar seiscentos mil dólares...
— “Pos” claro que não, meu amigo! Pensa que a senhora
vai dizer assim, lindamente, a todos de uma vez, onde está o
aparelho voador? Dirá a um só, quando bem quiser. Então,
“pos” quero entrar eu no jogo. Claro — seu sorriso pareceu
petrificar- se — com a permissão da MVD, do MI-5, da
CIA e do Deuxième Bureau.
— Tudo isto é absurdo! — resmungou Nikolayev. — Se
alguém viesse a saber, diria que estamos todos loucos.
Desde quando os serviços de espionagem confraternizaram
de um modo tão idiota e... ?
— Acalme-se, Nikolayev — recomendou serenamente
Wallace. — Não estamos em guerra. E já que as coisas
aconteceram assim, aceitemo-las. Já não há remédio. Acho
que todos somos bastante inteligentes para compreender que
não vamos começar a matar-nos uns aos outros. O mundo é
muito grande e isto é um... episódio sem importância. Uma
questão de dinheiro, apenas. Não é assim, senhora duquesa?
— Fico muito contente que adotem essa atitude. É
questão de dinheiro, mas, como talvez recebamos mais
convidados esta noite, a sessão fica levantada até amanhã às
onze. Baptiste acomodará os senhores López e Nikolayev.
Boa noite, cavalheiros.
E saiu dignamente, sorrindo, deixando atrás dela cinco
espiões entre desconcertados e furiosos.
***
Não foi muito extensa nem animada a conversa entre os
cinco espiões, depois que a duquesa se retirou. Na
realidade, tinham muito pouco que se dizer, uma vez que
tudo já havia sido dito pelo russo, Ivan Nikolayev. Podia ser
ou não seu verdadeiro nome, mas uma coisa era certa —
tinha sido ele o mais descarado e, ao mesmo tempo, o mais
sincero de todos. Talvez porque esperava obter um prêmio
maior por aquela sinceridade.
Aquele russo impertinente queria o mapa da mina antes
de todo mundo. Achava possível obter a informação da
duquesa e localizar o satélite EE-4 sem que os demais lhe
opusessem qualquer resistência. Queria ganhar no grito, na
base do dinheiro.
Que ousada pretensão! Apesar de tudo que Tom Wallace
havia dito sobre o fato de estarem todos eles numa ilha, em
paz, sob o teto de uma pacata senhora de maneiras
aristocráticas, a verdade é que eram espiões e, como bons
espiões agiriam dentro do velho sistema, procurando
eliminar os concorrentes por todos os meios que lhes
estivessem ao alcance.
Sem dúvida Nikolayev teria de contar com essa hipótese.
Na Rússia o trabalho do Serviço Secreto é implacável. As
vidas dos seres humanos não valem nada diante da
ideologia. Pode-se matar, torturar, atraiçoar, desde que a
causa triunfe. E, em nome dessa causa duvidosa, quanta
gente não vai parar nos campos de concentração da Sibéria
ou nos hospitais para doentes mentais onde os assinalados
são enterrados vivos?
De um modo geral, em qualquer país, admite-se todo
tipo de pessoa como espião. Uma empregadinha, um
mordomo, uma duquesa, um diplomata, um mecânico, um
palhaço. Todos podem trabalhar nesse ramo. É simples.
Basta ver e informar. Mas quando a espionagem é exercida
por agentes especiais — como os da CIA, do MVD ou MI-5
— então transforma-se em operação de guerra autêntica em
que o triunfo só bafeja os mais espertos e bem treinados.
Na hora difícil a empregadinha se assusta, o mordomo
troca de casa, o diplomata demite-se, o mecânico alega não
se lembrar de nada e o palhaço põe-se a rir. Mas o espião
profissional enfrenta o problema com o risco da própria
vida. Para isso ele é condicionado. Para isso ele existe,
como existem os toureiros, os corredores de Fórmula Um,
os grandes trapezistas de circo, os caçadores de tubarão. São
homens diferentes que só acham graça na vida quando
podem enfrentar a morte cara a cara.
O espião profissional é um artista. Deve saber dominar o
medo e fingir tranquilidade. Disfarçar-se como um
personagem de teatro e confiar em que não será
reconhecido. Seu passaporte pode ser falso, mas ele deverá
agir como se encarnasse o nome fictício. E acima de tudo
isso deve ter presente a audácia. Ousará tudo, como se
estivesse louco. Matará, roubará, trairá, lutará até a morte,
tudo pelo objetivo, pela missão que lhe é confiada.
Um entre cem mil espiões é considerado o gênio. Um
entre cem mil recebe missões que modificam o curso da
História.
Sim, Ivan Nikolayev sabia muito bem de tudo isso. E
estava disposto a se destacar entre os demais. Estendeu-se
na cama, acendeu um cigarro e ficou pensando que um
fracasso seu, naquela muito agitada zona do Caribe, poderia
devolvê-lo aos seus começos como estivador em qualquer
porto da América Central ou Meridional.
Mas isso não ia acontecer, porque ele, Ivan Nikolayev,
conseguiria aquele satélite-espião americano.
***
Enquanto isso, o espião francês, Melchior Leduc estava
manejando um pequeno rádio de bolso, que até então
estivera oculto sob o fundo de sua maleta.
— Jean? — perguntava, num sussurro, Melchior Leduc.
— Fale.
— Estou na vila da Gaivota neste momento. Tudo um
pouco complicado e parece que vai ser difícil conseguir o
satélite-espião norte-americano. Mas tenho já quatro
fotografias muito interessantes. Quero que você venha
apanhá-las.
— Esta noite?
— Claro. Tome nota.
— Um momento... Diga.
— Primeira fotografia: corresponde a um inglês que se
faz chamar Thomas Wallace. Naturalmente, trabalha para o
MI-5. É sardento, alto, cabelos lisos, olhos claros...
Inconfundível quando você vir a foto. Segunda, corresponde
a um homem que se diz chamar Malcolm Nash e que, tenho
quase certeza, trabalha para a CIA. É alto, atlético, cabelos
castanhos, olhos da mesma cor. Parece simpático e
inteligente. Terceira: de um homem que diz ser russo e
chamar-se Ivan Nikolayev, e que, nem mais nem menos,
trabalha para o MVD. Um tipo alto e forte como um touro,
de ideias claras e língua solta. Cabelos louros, olhos claros.
Expressão torva. Quarta fotografia: pertence a um
engraçadinho que apareceu à última hora, por uma janela, e
que diz chamar-se Lorenzo López, mexicano... Declara
trabalhar para o Serviço Secreto do México. É desenvolto,
caradura, muito moreno, cabeludo, olhos negros. Tomou
nota?
— Lógico, Melchior.
— Bem. Agora, informo sobre as primeiras fotografias.
Duas correspondem a um homem chamado Baptiste, que
parece ser o mordomo desta vila desde não sei quanto
tempo, e que está há um montão de anos a serviço da
duquesa. Há outras duas fotos de uma jovem muito bonita,
de olhos azuis, cabelos louros, corpo magnífico.
— Mulher bonita?
— Exato. É discreta, calada, parece arredia. Só a vi ao
chegar. Deve ter permanecido na cozinha, sendo além de
camareira, cozinheira e arrumadeira. Chama-se Monique.
Terá uns vinte e cinco anos, aproximadamente. Digo-lhe
que é na verdade, sensacional. E, por último, vamos à
duquesa. É uma grande dama. Tenho seis fotografias dela e
garanto-lhe que, só por seu valor... artístico, vale a pena.
Acho que não devem procurá-la nos arquivos.
Evidentemente, está a par de tudo, mas não é uma espiã
profissional, é uma amável senhora, educada à antiga, que
está fazendo o possível para tirar o melhor possível desta
situação. De qualquer modo, veja se temos algo sobre ela.
Nunca se sabe... No momento, Ivan Nikolayev ofereceu
meio milhão de dólares americanos por informações a
respeito do lugar onde caiu o satélite. Mas o mexicano
apareceu para oferecer seiscentos mil dólares. E assim estão
as coisas. Isso quer dizer que a duquesa, a estas horas, está
pensando no modo de conseguir que algum de nós lhe acene
com um milhão de dólares...
— Mon Dieu, Melchior! Un million de...!
— Calma, Jean. O aparelho vale isso e muito mais.
Agora, preste atenção: são onze horas e doze minutos. A
uma hora e cinco minutos de amanhã, quer dizer, dentro de
cento e treze minutos, você virá aqui... A pé, naturalmente.
Deixe o carro a certa distância. Seja discreto. Você entra na
vila, aproxima-se da piscina e espera por mim. Chegarei
exatamente dois minutos mais tarde. Controle?
— Onze horas... doze minutos... nove segundos...
— Perfeito. É tudo.
— Mas... Vai deixar o plano assim?
— Naturalmente, Jean. E outra coisa: não quero
ninguém por aqui. Vamos resolver esta questão entre nós,
os que estamos nesta vila. Esta é uma espionagem especial.
Temos esperança de que ninguém vai ter que morrer.
Digamos que é uma espionagem... científica. Tudo vai bem.
Nada mais, Jean. Corto.
Cortou, com efeito. Escondeu o rádio, tornou a olhar
para o relógio de pulso, fez um rápido cálculo do tempo que
lhe restava, acendeu um cigarro e espichou-se na cama, de
cuecas e camiseta. Tinha cento e doze minutos de tempo.
Quase podia dormir um soninho, antes que Jan chegasse à
vila para apanhar o microfilme com as fotografias.
Realmente, Melchior Leduc não alimentava grandes
esperanças de triunfar sobre o russo Nikolayev e,
principalmente, sobre o americano que dizia chamar-se
Malcolm Nash. Este, sem dúvida, faria o maior lance pelos
informes. Os Estados Unidos, naturalmente, não iam
permitir que a Rússia ficasse com o satélite-espião.
Mas não tinha por que pensar tanto. Jean chegaria dentro
de cento e onze minutos e ele lhe entregaria as fotos. Num
caso perdido, sempre é bom conseguir um prêmio de
consolação. Quatro espiões internacionais? Pois já era
alguma coisa.
Jean chegaria dentro de... cento e dez minutos...
Jean chegou, efetivamente, cento e dez minutos mais
tarde. Tinha deixado o carro quase a um quilômetro, mas
calculara o tempo com sumo cuidado, considerando com
toda a exatidão a distância que devia percorrer a pé.
Não lhe custou nenhum esforço especial penetrar na vila.
E uma vez dentro, foi bem fácil aproximar-se da piscina.
Acocorou-se junto ao tronco de uma árvore, na sombra
projetada pela lua, e dispôs-se a esperar.
Consultou seu relógio luminoso. Uma hora e quatro
minutos. Quer dizer que Melchior tardaria ainda três
minutos. Até ele chegava o rumor do mar, o canto de grilos.
Uma coruja ululou fora da vila, pousada em qualquer
árvore. Não se viam luzes na casa, e tudo tinha a máxima
aparência de tranquilidade. Nas quietas águas da piscina, a
lua traçava um largo risco de prata, levemente frisado.
Um tranquilidade, uma calma das que, em outra
ocasiões, tinham precedido uma luta feroz, súbita, com
inimigos que saíam de surpresa dos lugares mais
inesperados.
Mas não.
Naquele momento tudo ia bem. Percebeu a
inconfundível silhueta do elegante Melchior Leduc, de
pijama, destacando-se da casa e aproximando-se da piscina,
rodeando-a de modo que a todo momento estava sob uma
ou outra sombra de árvore.
Por fim, chegou junto a ele.
— Tudo bem, Jean? — murmurou.
— Tudo, Melchior. O microfilme?
— Voilá. — Entregou-lhe, numa pequena cápsula. —
Não se esqueça de fazer circular minha mensagem: não
quero intervenções, no momento. E comunique também que
um milhão de francos novos é quantia irrisória. Quando me
for possível, chamarei você para saber se posso oferecer
mais e qual é o limite.
— Très bien, Melchior.
— Quanto às microfotos, frise bem que são a título
informativo sobre os espiões concentrados aqui. Mais
adiante, decidiremos o que convém fazer. Mas, por hora,
devemos dar precedência à obtenção do satélite americano.
Não façam nada até que eu avise.
— Ê tudo?
— Tudo. Adieu, Jean.
— Au revoir, Melchior.
— Não se mova até que eu entre na casa.
— Bien.
Leduc afastou-se de seu companheiro, sempre seguindo
o mesmo caminho de sombras. Jean ali ficou, imóvel, até
considerar que Leduc tinha entrado em casa. Apalpou o
bolso onde guardara a cápsula contendo o microfilme e
começou a deslizar silenciosamente até o portão. Bem, pelo
menos, enquanto esperavam a decisão que finalmente
tomasse Melchior Leduc, saberiam quem eram os homens
que os outros serviços secretos tinham enviados a “La
Mouette”. Isso ia proporcionar-lhe certa vantagem, porque
consultariam rapidamente os arquivos em Paris. Talvez no
Deuxième Bureau houvesse o registro daqueles homens e se
pudesse saber algo que conduzisse ao êxito naquele caso de
espionagem científica, como dissera Melchior.
Claro que se Melchior...
Cloc!
O golpe ressoou em sua cabeça com o ruído de grandes
rochas entrechocando-se. Teve a angustiosa sensação de
que a terra se abria sob seus pés, que as estrelas adquiriam
um tom vermelho-brilhante e que a lua se...
Cloc!
Já não teve sensação alguma.
Primeiro tinha caído de joelhos. E ao receber o segundo
golpe caiu de bruços, enterrando a cara no solo esponjoso e
bem cuidado do jardim de Madame la Duchesse de
Montpelier. A magnífica silhueta feminina apareceu junto a
ele, baixando a calça do pijama. Permaneceu quieta,
mantendo a calça com os joelhos, enquanto prendia a
pistola na coxa, utilizando duas tiras de esparadrapo.
Depois, a graciosa figura inclinou-se junto a Jean e a luz
refletiu um instante em seus brancos dentes, descobertos
num sorriso amável.
— Ah, mont p’tit... Tu n’as pas de bonheur
naturellement*!
Os finos dedos femininos encontraram imediatamente a
cápsula contendo o microfilme, cápsula que passou, ato
contínuo, a um dos bolsos do pijama, tão gracioso com seus
debruns de renda. Depois, a delicada mão de mulher tocou a
nuca de Jean e novamente brilharam ao luar os brancos
dentes. Devia admitir que Jean sempre tivera um pouco de
sorte... Afinal de contas, outros homens maiores e mais
fortes que ele morriam com dois golpes na cabeça. Ele, no
entanto, estava vivo.
Muito bem. Melchior Leduc tinha feito seu jogo.
Qual seria o próximo a tentar sua cartada?
***
Ivan Nikolayev consultou uma vez mais seu relógio.
Eram duas e meia da madrugada. Ou seja, a hora própria
para surpreender a todos. Não se fazia ilusões, mas estava
firmemente decidido a sair-se com sua cartada.
E aquela hora era a melhor para tentá-lo. Se os demais
tinham feito esforços para manter-se despertos, era possível
que aquela hora tivessem já sido vencidos pelo sono. Talvez
despertassem dentro de certo tempo, mas sempre dormiriam
uma hora pelo menos. Por outro lado, se tivesse tentado sua
sortida uma hora antes, por exemplo, era provável que eles
ainda estivessem resistindo ao sono. Claro que... Bem, era
pouco provável pilhar dormindo um espião rodeado por
outros quatro, mas ele tinha que tentar.
Saiu da cama lentamente. Sabia que a duquesa dormia

*
Ah! Meu pequeno. Você não tem sorte, naturalmente!”
embaixo, pois deste modo poupava às suas velhas pernas o
esforço de frequentemente subir e descer escadas. Inclusive,
Nikolayev estava certo de que, no quarto contínuo ao da
duquesa, dormia a empregadinha, atitude prudente da parte
da velha, pois não convém estar muito isolado quando se
passa de certa idade.
Abriu a porta de seu quarto, lentamente,
silenciosamente. Esteve quase dois minutos escutando
algum possível ruído no corredor que levava até a escada.
Silêncio absoluto. Parece que os espiões não roncam
quando dormem. Ou não dormem?
Deslizou sempre com lentidão e cautela, adotando todas
as imagináveis precauções, pelo corredor. Olhou para baixo
e viu o vestíbulo, com manchas do luar que entrava pelas
janelas de ambos os lados da grande porta de entrada.
Desceu, sempre devagar, sempre evitando o menor ruído.
E uma vez embaixo, esteve outros dois minutos imóveis,
com todos os sentidos alerta.
Nada.
Silêncio.
Embora... Não. Não de todo. Ao fundo, no final do
corredor para o qual abriam os quartos da planta-baixa,
ouvia-se um ruído... Roncos. Ivan Nikolayev sorriu: eis aí a
diferença entre ser um pacífico mordomo e um espião. O
mordomo pode permitir- se o luxo de roncar, de dormir de
papo para o ar...
Seguindo a direção dos roncos, chegou ao corredor.
Havia ali quatro portas, duas de cada lado. Os roncos
soavam através da segunda porta à direita. Tinha que
descartar, além disso, a possibilidade de que a duquesa
dormisse no da frente. A velha, sem dúvida, escolhera para
seu aposento um dos primeiros, um quarto mais amplo.
O problema estava em saber qual deles. E ali, de pé,
imóvel na escuridão completa, a fria mente do espião
trabalhou com plena lógica. O mordomo dormia no segundo
da direita. Portanto, o primeiro da direita devia estar
desocupado, pois não era lógico pensar que Baptiste
dormisse paredes meias com a duquesa. Isso correspondia à
camareira, que assim poderia melhor ouvir o chamado da
anciã, através da parede; por outro lado, se a voz da duquesa
tivesse que cruzar todo o corredor, o serviço se dificultaria
bastante. Portanto, tudo ficou decidido assim na mente de
Ivan Nikolayev: Baptiste, o segundo à direita. Monique, o
segundo à esquerda. A duquesa, o primeiro à esquerda.
Lógica pura e simples.
Como também lhe pareceu absolutamente lógico que a
velha duquesa não se trancasse por dentro, já que, se se
sentisse indisposta ou precisasse de algo, como a Monique
poderia entrar?
Empunhou a grande maçaneta de bronze e fê-la girar
lentamente. Gastou nisso quase quinze segundos, sempre
atento, lembrando-se de que alguns anciãos têm o sono
muito leve.
Abriu a porta, devagar, segurando-a como se quisesse
aguentar sozinho com todo o seu peso. Quando obteve a
abertura necessária para passar, entrou, fechou a porta atrás
de si, agora um pouco mais rapidamente, já convencido de
que os gonzos não rangiam.
Depois, voltou-se para a cama. O luar entrava pela janela
e dava nos pés do leito. E neste ouvia-se agora,
mansamente, uma suave respiração rítmica, tranquila.
Sacou o revólver, acercou-se, sentou-se na beira da cama
e apoiou a ponta da arma na garganta da velha senhora.
— Duquesa!
Ouviu a mudança de respiração, um leve queixume. O
branco dos olhos tornou-se visível na escuridão atenuada
pelo reflexo lunar nas paredes do quarto.
— Boa-noite, duquesa. Sou Ivan Nikolayev. Tenha a
bondade de levantar-se e vestir-se. Por favor.
A mulher ergueu-se na cama, lentamente, enquanto
Nikolayev afastava-se um pouco.
— Tenho a esperança, duquesa, de que a senhora e eu
daremos um jeito para ir agora mesmo ao lugar onde...
Ivan Nikolayev calou bruscamente, porque seus olhos, já
algo acostumados à penumbra, estavam vendo agora com
muito mais nitidez a duquesa. Que não era a duquesa, mas
uma mulher jovem, formosa, de basta cabeleira escura.
Parecia...
Ivan Nikolayev estava tão surpreendido, que recebeu em
plena garganta o golpe que aquela jovem e formosa mulher
lhe aplicou com o canto da mão, lançada horizontalmente.
Foi um golpe tão inesperado, e sobretudo tão forte e
preciso, que o gigantesco russo saltou da cama, quase
desacordado. E teve sorte, porque é fácil morrer por efeito
de um golpe de karatê na garganta.
Ainda pôde apertar o gatilho do revólver com
silenciador, mas foi mais um ato reflexo que voluntário; e a
bala deu no teto arrancando brancos fragmentos de caliça.
Ao mesmo tempo, o pé descalço da jovem golpeava sua
mão, arrancando-lhe a arma. E antes que ele se pudesse
refazer da surpresa, e do primeiro golpe, o outro pé da
jovem de pijama debruado de renda alcançou-o, com o
calcanhar, no centro do estômago, sempre com aquela
surpreendente dureza e eficiência.
E Nikolayev só conseguiu ver como aquela jovem
formosa inclinava-se sobre ele e novamente golpeava-o com
o canto da mão, agora na nuca. Foi fulminante. Um homem,
por grande e forte que seja, tem os mesmos centros
nervosos que o mais raquítico indivíduo. Deste modo,
Nikolayev esqueceu-se, talvez apenas momentaneamente,
de todas as suas ambições e todos os seus problemas.
Então, a jovem e perigosa lutadora disse amavelmente,
em russo:
— Querido Ivan: você também teve pouca sorte comigo.
Mas é natural: os homens geralmente são tão frágeis!
***
Malcolm Nash despertou sobressaltado. Fora, viam-se já
os tons alaranjados do novo dia. E logo desapareceriam
esses tons para dar lugar a um céu azul. Muito rapidamente,
porque no trópico a transição da noite para o dia acontece
em frações de minuto.
Ergueu o braço esquerdo, viu a hora e soltou um
grunhido: cinco e meia. Data: nove de novembro de mil
novecentos e setenta e seis, claro. O ano era importante
porque, quando um espião dorme, pode acontecer que
desperte no dia do Juízo Final.
Levantou-se e foi até a janela. Viu lá embaixo a piscina,
as flores, as belas árvores frondosas. Ao fundo, o mar. E
algumas manchas brancas, com a inconfundível silhueta das
gaivotas. Um espetáculo digno de Jonathan Livingstone
Seagull.
Espionagem científica, dissera Melchior Leduc. Bem...
Talvez fosse certo, e a situação pudesse ser resolvida
pacificamente. Afinal de contas, havia no mundo muitos
agentes secretos, e continuavam trabalhando. Tudo é
sempre uma questão de audácia, de saber maquilar-se ou
disfarçar-se convenientemente, de não recear que se possa
ser reconhecido a qualquer momento. Além disso, com
efeito, ultimamente as coisas não estavam tão ruins. Só que,
é claro, qualquer espião pode, a qualquer momento, decidir
apertar um gatilho ou dar umas facadas...
— Por enquanto — pensou — este é um caso pacífico de
espionagem científica. Não se afobe, Malcolm.
Tornou a olhar o relógio, fez um gesto de enfado e
aproximou-se da porta. Abriu-a, olhou o corredor, depois
esteve escutando uns minutos. Por fim, com expressão
aborrecida, arrastou uma daquelas grandes cadeiras de
madeira e palha e colocou- a diante da janela. Acendeu um
cigarro e dispôs-se a esperar.
Não acreditava que a duquesa se levantasse antes das
dez.
***
Às dez menos quinze, Malcolm apareceu no salão. O
único que ali estava era o mexicano, que olhou para ele com
aquele sorriso impertinente e irônico.
— Bom-dia, Mr. Nash. Dormiu bem?
— Bem demais.
— Oh, não... Isso não, meu amigo. Dormir é... morrer
um pouco, segundo dizem os poetas. Mas que morte tão
agradável, não acha?
Nash encolheu os ombros.
— Não desceu mais ninguém?
— Claro que sim: o inglês. É um sujeito muito sério.
— Onde está?
— Mistério, meu amigo. Esteve aqui, mal disse “bom-
dia”, olhou com esse binóculo para o mar — indicou o
possante binóculo da duquesa — e saiu sem dizer “adeus”
ou “até logo”.
— Não está na praia — grunhiu Nash.
— “Pos” estará em outro lugar. É certo que trabalha para
a CIA, Mr. Nash?
— Pense o que quiser.
— Como o russo disse...
— Não me importa o que tenha dito.
— Ora, parece que todos acordaram com a cachorra,
hoje... Por que se chatear? Este é um assunto tranquilo,
sossegado, simpático. Preferia que todos andássemos aos
tiros por aqui? Não! O negócio é diferente... Olhe,
diariamente vamos por esse mundo arriscando a pele da
maneira mais idiota. Eu acho que de quando em quando faz
bem um descanso deste. Tudo sorrisos, uma senhora
elegante, e a única arma será o dinheiro. Oh, estou disposto
a perder, claro. Gostaria que me fossem atirando maços de
dinheiro em cima. Não me importaria — pôs-se a rir. —
Sim, lhes deixaria o satélite e iria com a gaita. Não é
divertido?
— Quer que lhe diga o que penso a seu respeito, Lopez?
— “Pos”... Diga lá.
— Você é um pé no saco!
Malcolm deu meia volta, saiu do salão e depois da casa.
Aproximou-se dos rochedos, onde na tarde anterior estivera
Melchior Leduc, e olhou para a praia. Mas nem dali
conseguia avistar Thomas Wallace. Não estava em parte
alguma.
Um tanto irritado, o agente da CIA regressou à casa.
Naquele momento, uma velha camioneta chegava à vila.
Deteve-se diante do portão e um mulato velho e seco como
um bacalhau apeou e bateu. Da porta traseira da casa
apareceu Monique, que avançou rapidamente para o portão.
Malcolm viu-a abrir, e o mulato entrou com a camioneta.
Disse algo à empregadinha, esta subiu, rindo, e a camioneta
prosseguiu até o lugar de onde tinha vindo a graciosa
Monique.
Nash foi até lá e encontrou-se no pátio externo da
cozinha, rodeado de alguns plátanos de largas folhas. O
velho mulato descarregando verduras, frutas, volumes.
Junto à camioneta, Baptiste, solene como sempre, ia
anotando os gêneros que eram descarregados na vila de
Madame la Duchesse.
— Mais oui: cent kilos de pommes-de-terre... c’est à
dire. Oh, Mr. Nash, bom-dia, em que posso servi-lo?
— A senhora duquesa ainda está dormindo?
— Não creio. Às dez e meia em ponto, todos os dias, faz
sua primeira refeição: café, torradas e meia maçã. Espero
que todos compareçam pontualmente à sala de jantar, Mr.
Nash.
— Esteja certo de que comparecerei. Há inconveniente
em que entre pela cozinha?
— Claro que não. Só que... estou ocupado agora...
— Por favor, não se interrompa.
Malcolm entrou na cozinha. Monique, deliciosa no seu
elegante uniforme, com a saia bem curta, mostrando as
coxas, estava diante de uma grande mesa de mármore
branco e começou a escolher maçãs para um arranjo
artístico na fruteira. Os bons aromas de café e pão torrado
pairavam no ar, mas o excitado Malcolm pensava que o
ideal mesmo era comer aquela apetitosa empregadinha em
vez do breakfast. Que seios! Que ancas!
— Bom-dia, Monique! — saudou, com voz de lobo
faminto.
— Oh!
A deliciosa empregadinha voltou-se sobressaltada, os
olhos muito abertos. Malcolm Nash sorriu, carinhoso.
— Teve medo de mim, garota?
— Oui, monsieur... mas não tem importância. É que eu
estava muito distraída aqui com meus pensamentos,
enquanto escolhia as maçãs...
Malcolm pensou que os frutos melhores estavam ali
mesmo, atrás do soutien de Monique, e deu-se à fantasia de
se imaginar conquistando aquela maravilhosa empregadinha
de Madame la Duchesse. Ah... que diabo de profissão a sua!
Não tinha tempo sequer para um discreto romance na
cozinha! Como seria Monique nua, na cama? As coxas
maravilhosas, abertas para ele, tersas, douradas como
pêssegos! Os seios juvenis, com os biquinhos cor-de-rosa,
duros, ternos, prontos para o beijo! Ele saberia tirar com
muita delicadeza aquele aventalzinho branco, a touca de
renda, depois o discreto uniforme preto... e veria o
deslumbramento do corpo jovem e firme de Monique! Sim,
ele poderia amá-la loucamente e até casar com ela, quem
sabe? Mas... que lástima! Era um espião em pleno serviço...
Tinha de dominar Seus instintos. Resolveu desconversar:
— Pensava em coisas muito interessantes, Monique?
— Oh, senhor Nash... não creio... Os pensamentos das
mulheres nunca são muito interessantes! Raciocinamos
geralmente em torno dos nossos pequenos problemas.
— E uma garota bonita como você tem problemas,
Monique?
— Não muito sérios, na verdade... Apenas umas
preocupações momentâneas, senhor Nash. Veja, estou
acostumada a cuidar de casa para três pessoas, e agora
somos oito. São mais cinco camas, e as refeições... Já vê:
pequenas coisas que os homens acham aborrecidas. Ou não,
Mr. Nash?
— Francamente, acho que sim — sorriu Malcolm. —
Você viu o inglês?
— Mr. Wallace? Oh, sim, há meia hora , talvez. Ia para
longe, passeando.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Parece que está intrigada com alguma coisa,
Monique. Que é?
— Pois Mr. Wallace levava um... aparelho esquisito nas
mãos. Não vi direito. Ia caminhando sem olhar outra coisa
que o aparelho. Parecia uma bússola.
Malcolm Nash mordeu os lábios. Ergueu bruscamente o
braço para ver a hora: dez e vinte. Certamente não iria
conseguir nada indo atrás de Wallace. Além disso, a
duquesa não tardaria a descer.
— Sente alguma coisa, Mr. Nash?
— Não. Obrigado, Monique. Irei ao salão esperar a
senhora duquesa. E lhe direi que tem uma empregadinha
excelente.
— Merci, monsieur — sorriu Monique, os olhos
brilhando de satisfação. — O senhor e monsieur Leduc são
muito amáveis.
— Sim... Muito amáveis. Até logo, Monique.
— Au revoir , monsieur.
Malcolm saiu calmamente da cozinha. Passou outra vez
junto a Baptiste e, quando esteve fora de suas vistas,
apertou o passo. Estava disposto a encontrar Tom Wallace
imediatamente. Sem dúvida, o inglês estava utilizando um...
Ocorreu-lhe olhar para as janelas do salão. Viu Tom
Wallace a uma delas, com um cigarro entre os lábios e uma
certa expressão irônica no olhar. Nash entrou na casa,
depois do salão, e dirigiu-se diretamente a Wallace.
— Escute, Wallace: se você usa truques, todos nós
usaremos também. As coisas estão tranquilas por ora, mas
se for necessário ...
— De que está falando? — indagou Wallace.
— De seu detector. Sei que anda por aí utilizando um
detector à procura do satélite. Olhe, esse russo pôs as coisas
bem claras entre nós. E acho que ele está certo: esta é uma
situação absurda.
— E qual é sua sugestão para melhorá-la, Nash?
— Aos cinquenta anos vocês serão uns velhos azedos e
apopléticos — disse atrás dele a voz de Lorenzo López. —
E o mundo continuará dando voltas. E outros satélites-
espiões estarão no céu. Não compreendem?
Malcolm voltou-se para o mexicano, cenho carregado,
justamente no momento em que Melchior Leduc, afundado
numa poltrona, dizia:
— De acordo com o espião mexicano. Vocês estão de tal
modo... ávidos, que nem sequer cumprimentam seus
colegas. E já que falamos de colegas onde está nosso
vociferante e muito expressivo companheiro russo? E não
me digam que dormindo, porque todos sabemos que isso é
impossível.
— A nós, que importa onde ele esteja? — disse López.
— Claro que importa, López, porque parece que todos
somos aqui um pouquinho... orgulhosos. E não nos
agradaria que nosso colega da URSS nos pregasse uma
peça. Não é certo, amigos? Claro que pregar uma peça é o
que melhor sabe fazer um agente secreto. Entretanto...
— Você, Leduc, fala demais! — resmungou Nash.
— Mas digo... Oh-oh a senhora duquesa!
Pôs-se rapidamente em pé e foi ao encontro de Annette
Simonet, que da porta os contemplava, sorrindo daquele
modo tão doce e amável. Estava tão encantadora e fidalga
como no dia anterior.
— Já estão discutindo, cavalheiros?
Leduc beijou-lhe a mão.
— Pequenas diferenças entre espiões, Madame la
Duchesse. Consta que Mr. Wallace está procurando o
satélite com um detector, o que não é do agrado de Mr.
Nash. Depois, o camarada Nikolayev não se dignou ainda
aparecer e temos a desagradável impressão de que está
jogando sujo... que é como melhor jogam os russos.
— Os franceses não? — sorriu a duquesa.
— Oh, bem... — disse Leduc. — Só quando é
absolutamente necessário.
Annette Simonet pôs-se a rir. Fez sinal a Baptiste, que
estava atrás dela, e mandou-lhe que fosse pedir ao senhor
Nikolayev para fazer a gentileza de vir ao salão, onde já
estavam todos reunidos. Depois, com o auxílio de sua
bengala de bambu, caminhou para a poltrona junto à janela,
sentou-se, apanhou o binóculo e esteve um instante olhando
para a praia, sem que ninguém se atrevesse a incomodá-la.
Quando pousou o binóculo, voltou-se para dentro do salão,
sorrindo.
— Há dois dias que não levo peixe para minhas gaivotas
Que é, Baptiste?
Todos os olhares estavam fixos no mordomo, que
esperara que a duquesa deixasse o binóculo, em silêncio.
— O senhor Nikolayev não está em seu quarto, Madame
la Duchesse. Nem na casa. Madame la Duchesse recordará
que ontem à noite, segundo suas instruções, devolvi a
maleta com o dinheiro ao senhor Nikolayev... Não está
tampouco a maleta, nem o dinheiro, nem nenhum objeto
pessoal do senhor Nikolayev. Havia apenas um papel.
— Mas não compreendo... De que papel se trata?
— Estava sobre a mesa de cabeceira. Achei, então, que
devia trazê-lo a Madame la Duchesse.
Na pequena bandeja onde o havia colocado, apresentou
o papel à velha senhora, que o apanhou com seus finos
dedos aristocráticos, onde discretamente viam-se alguns
anéis. Abriu-o, ergueu as sobrancelhas e olhou algo
perplexa ao seu redor.
— Não sei... Creio que o senhor Nikolayev escreveu isto
em russo. Não entendo nada. Algum dos senhores poderia
ajudar-me?
— Com sua licença — adiantou-se rapidamente Tom
Wallace. Tomou o papel, leu-o primeiro para si, depois em
voz alta. — “Senhora: estarei de volta amanhã ao
amanhecer e trarei dois milhões de dólares”.
— É o que diz essa nota, Mr. Wallace?
Malcolm Nash, que se tinha colocado atrás de Wallace,
assentiu com a cabeça.
— Exatamente, senhora duquesa.
— Bem, não sei o que pensar... Que opinam os
senhores?
— Por minha parte — disse acremente Wallace — creio
que podemos prescindir do senhor Nikolayev, senhora. Não
me parece conveniente que esperemos aqui vinte e quatro
horas pelo regresso do russo. Se os demais estão de acordo
comigo, levantem a mão.
Nash, López e Leduc assim fizeram imediatamente. A
duquesa olhou-os um a um, com expressão preocupada.
— Bem... Que acham que devemos fazer, cavalheiros?
— Somos quatro. Que necessidade temos de um quinto
espião, senhora duquesa? — disse rindo o mexicano.
— Parece que todos pensam assim. Posso sugerir-lhes
que tomemos primeiro o café e procuremos depois uma...
solução?
***
— Que solução propõe, senhora? — perguntou Wallace.
— Não sei... Deve existir uma que satisfaça a todos por
igual, imagino.
— A todos? — murmurou Nash, assombrado. — Isso é
impossível!
— Por que, Mr. Nash?
— Porque todos queremos o satélite. E tenha em conta
que ele pertence aos Estados Unidos.
— Oh, sim, mas... não estamos nos Estados Unidos, Mr.
Nash, mas na Martinica. Uma ilha onde passei quase toda a
minha vida. O berço de Josefina Bonaparte! É um lugar...
inquietante. Estamos sempre temendo uma nova
manifestação de fúria do Mont Pelée... Sabiam que em mil
novecentos e dois uma erupção, acompanhada de terremoto,
arrasou boa parte da ilha? E sepultou um lugarejo muito
simpático, chamado Saint Pierre. Desde então, todos
tememos nova fúria do Mont Pelée, mas continuamos aqui.
Diz-se que não mais entrará em atividade, porém...
— Perdão, senhora... — murmurou Wallace. — Não me
considere descortês, mas estamos tratando de outro assunto.
— Oh, é verdade... Eu dizia a Mr. Nash que não estamos
nos Estados Unidos, mas na Martinica. Bem: isto quer dizer
que o satélite, possivelmente, encontra-se nestas águas
jurisdicionais, não em águas americanas. Em todo caso,
deveria ser recolhido por nós os da ilha. Logo, o governo
dos Estados Unidos deveria solicitá-lo formalmente, e
então...
— E então tudo se arrastaria e complicaria muito —
grunhiu Malcolm Nash.
— De fato, Mr. Nash. Mas, por outro lado, é indiscutível
que o satélite pertence aos Estados Unidos. Isto, é claro,
coloca-me numa posição difícil.
— Não tanto, senhora duquesa: aceite minhas condições,
Mr. Nash?
— Quinhentos mil dólares. Diga-me onde está
exatamente e terá meio milhão de dólares para sua obra de
beneficência.
— Eu ofereci seiscentos mil — lembrou Lorenzo López,
sempre sorridente.
— E o senhor Nikolayev assegura que voltará com dois
milhões — disse com suavidade a duquesa. — Deve ter isso
em conta, Mr. Nash.
— E deve a senhora ter em conta que o satélite é meu.
— Perdão, Nash — contrapôs Leduc. — Será de quem o
encontre. Não esqueça que está entre espiões, não entre
meninos que discutem a posse de uma bola de futebol.
Nash enrubesceu.
— Cavalheiros, cavalheiros, por favor... — a duquesa
ergueu ambas as mãos. — Estamos travando um debate
amável e não devemos altercar. Na minha idade, isso é
muito penoso. Vejamos, Mr. Nash: que contém esse satélite
que possa ser considerado especial, ou seja, matéria de
espionagem?
— Não posso revelar isso! — exclamou Nash.
— Por que não?
— Mas é bastante óbvio, senhora duquesa!
— Óbvio? Diga-me: contém segredos militares?
— Não, não — mentiu Nash.
— Claro que contém segredos militares! — explodiu
Wallace. — Com cem mil demônios, Nash, você é...!
— Senhores — a duquesa pôs-se de pé —, se não se
comportam como cavalheiros, serei obrigada a retirar-me. E
se o fizer, asseguro-lhes que nenhum dos senhores
encontrará esse satélite.
Os quatro homens ficaram silenciosos. Irritados, mas
silenciosos. A duquesa olhou-os lentamente, um a um.
Depois, tornou a sentar-se, suspirando.
— Ficamos, pois, em que não contém segredos militares.
Neste caso, vamos supor que contenha... informação
científica. Aceita isto, Mr. Nash?
— Mmmm... Sim. Claro que sim.
— Então, procedamos de acordo. Para mim, e já que não
admitirei mais discussões, esse satélite contém tão-somente
informação científica. Uma só palavra mais sugerindo que
contém qualquer outra coisa, e lhes pedirei que abandonem
estas casas. Entendido, cavalheiros?
Os quatro moveram afirmativamente a cabeça. A velha
senhora deu-se por satisfeita.
— Obrigada. Então estamos todos envolvidos num caso
claríssimo de espionagem científica, como muito bem disse
monsieur Leduc. A espionagem científica, senhores, não
prejudica a ninguém. De acordo?
Novamente as quatro cabeças acenaram
afirmativamente.
— Neste caso — prosseguiu Annette Simonet — é
evidente que os segredos desse satélite são inofensivos para
todos. Mas... — fez uma longa pausa — Mas, ao mesmo
tempo, seriam benéficos para todos. Isso me parece
evidente. Aos senhores não? Bem entendido que a ciência
não prejudica a ninguém e, como digo, pode favorecer a
todo o mundo. Portanto, me pareceria justo que todos os
conhecimentos científicos estivessem ao alcance de todos os
seres humanos...
— Aonde quer chegar, senhora? — murmurou Leduc.
— É simples, monsieur Leduc. Mas antes esclareçamos
um ponto muito importante. É o seguinte: o senhor
Nikolayev ofereceu-me dois milhões de dólares para ter o
direito de recolher o satélite. Evidentemente, então,
considerando meus interesses, eu deveria dizer-lhe onde
encontrá-lo. Mas o senhor Nikolayev não está, e os senhores
sim. Estão aqui, exercendo sua espionagem... científica.
Como decidimos prescindir do senhor Nikolayev, os
senhores quatro poderão recuperar o satélite. Contanto, bem
entendido, que eu receba os dois milhões de dólares.
— Como... como disse?
— Eu serei a pessoa que terá auxiliado a Ciência,
senhores. Como agradecimento por meu auxílio, me
pagarão dois milhões de dólares, porque tiveram
conhecimento de meus propósitos de beneficência e
desejam colaborar. Todos me conhecem, na Martinica. A...
generosidade dos senhores será muito bem acolhida por
meu povo adotivo, que muito me quer e sabe que me
arruinei por ajudar a todos, em tudo. Esses dois milhões
servirão para muitas coisas, eu estarei satisfeita e os
senhores de posse de suas informações... científicas.
Malcolm Nash conseguiu sair de seu assombro.
— A senhora... — murmurou. — Refere-se aos quatro?
— Evidentemente, Mr. Nash. Cada um dos senhores
deverá proporcionar-me quinhentos mil dólares. Em
seguida, digo-lhes onde exatamente está o satélite. Os
senhores trazem-no à superfície, obtêm informações
filmadas ou fotografadas e preparam mais três cópias.
Assim, cada um terá sua cópia, sua informação científica. E
o satélite será entregue a Mr. Nash, claro. Que me dizem?
Os quatro homens olharam-se uns aos outros. Não se
enganavam, está claro. Sabiam que quando o satélite
surgisse à vista a luta seria inevitável, já que,
evidentemente, as informações que continha não deviam ser
compartilhadas. Entretanto, o único meio de convencer
aquela anciã, que lhes estava parecendo um pouco
amalucada, era aceitar. Depois...
Depois resolveriam as coisas ao modo deles, não de
acordo com as fantasias da senhora duquesa. E naquela
troca de olhares, os quatro espiões assim se entenderam.
— Aceito — disse Nash.
— Também eu.
— Também eu.
— E eu.
— Magnífico — sorriu Annette Simonet. — Agora falta
o pequeno detalhe dos quinhentos mil dólares que cada um
dará para a minha obra beneficente. Quando poderão trazer
esse dinheiro?
— Dentro de três horas — disse Leduc.
— Mais ou menos isto — afirmou Wallace.
— Quanto a mim, duas horas serão o suficiente —
garantiu Nash.
O mexicano sorriu divertido.
— Pois eu necessito de quatro horas, pelo menos,
senhores. Sinto muito.
— Não se preocupe. Acho que todos estarão de acordo
em esperar quatro horas, señor López. De modo que... são
onze horas... Às três, todos aqui com o dinheiro. Algum dos
senhores sabe mergulhar?
— Acho que sim, senhora — disse secamente Wallace.
— Esplêndido.
— Teremos que providenciar o equipamento
necessário...
— Já pensei nisso — atalhou a duquesa. — Uma
previsão de anciã distraída, mas que desta vez não o foi
tanto... Sabe quanto pesa o satélite, Mr. Nash?
— Mmmm... Uns quinhentos quilos. Duvido muito que
quatro homens possam retirá-lo da água, senhora duquesa.
Enquanto imerso, poderemos manejá-lo, pois perde mais de
sessenta por cento de seu peso. Mas quando tivermos que
trazê-lo para terra firme...
— Farão isso os quatro sozinhos, senhores. Sejam
sensatos: se estão pensando em alguma dessas jogadas sujas
tão ao gosto dos espiões... segundo dizem, reconheçam que
todos pensarão o mesmo. Então, em lugar de um, teremos
cem de cada facção. A proporção será a mesma. E talvez
alguém se exalte, faça um disparo... Entre o primeiro e o
último disparos, sempre há muitos mortos. Se algo tiver que
acontecer, é preferível que haja quatro mortos a
quatrocentos, não acham?
— Caridosa filosofia a sua, senhora duquesa —
observou Leduc. — Mas gostaria de saber como pensa que
nós quatro podemos arrastar quinhentos quilos pela areia.
— Isso, da mesma forma que os trajos de borracha, os
tubos de ar, uma lancha a motor e outras pequenas coisas,
foi previsto por mim. Às três, encontrarão na praia todo o
necessário para recuperar o satélite.
— Assombroso... — sorriu López. — E assombrosa
mulher, senhora duquesa!
— Oh, uma pobre anciã que só pensa na maneira de
ajudar os outros. Dois milhões de dólares bem investidos
serão a solução para muitos pequenos problemas e uma
necessidade grande. Por outro lado, para os seus serviços de
espionagem, meio milhão a mais ou a menos não creio que
faça muita diferença. Lamento não podermos almoçar
juntos hoje, cavalheiros.
— Não se incomode conosco — disse Leduc. — Mas
estou certo de que todos sentiremos falta de sua companhia.
— São muito amáveis, os senhores todos... Ah, Mr.
Nash, há alguma coisa que não consigo compreender a
respeito desse satélite. Não que eu seja uma especialista, é
claro, mas entendo que, quando caem ao mar, esses...
artefatos ficam flutuando. Ou não?
— Assim é.
— Mas esse afundou...
— Claro. Foi uma precaução, adotada ao ser ele
construído. Há um compartimento cuja válvula se abre
quando o satélite imobiliza-se. Então, entra água e ele
submerge.
— Como um submarino?
— Algo assim — sorriu Nash. — Como compreenderá,
a submersão estava prevista.
— E depois vocês complicam sua vida para recolhê-lo,
Nash — deslizou Wallace. — Não é assim?
— Se o sistema de rádio não se tivesse estragado,
Wallace, quando você aqui chegasse o satélite já estaria a
caminho dos Estados Unidos.
— Na verdade penso que mais alguma coisa se estragou
além do sistema de rádio — disse Leduc, rindo. — De outro
modo, nem saberíamos do que houve. Esperemos que o
sistema de fotografias esteja intato e que não tenha entrado
água por alguma fenda, arruinando tudo...
— Seria engraçado — comentou López.
— Por que engraçado? — grunhiu Nash.
— Penso — externou Leduc — que o amigo e colega
López tem senso de humor; e pensei que você também
tivesse, Nash.
— Bem... — admitiu Nash, tentando sorrir. — Seria
realmente engraçado que nenhum de nós, conseguisse essas
fotografias. Acho que não devemos perder mais tempo. Até
logo, senhora duquesa.
— Au revoir... Ah, Mr. Nash... Bem, isto é para todos,
na verdade: ficam informados que, ao menor indício de que
vocês peçam ajuda de fora, guardarei o silêncio mais
obstinado a respeito do lugar onde está o satélite. E muito
lhes custaria encontrá-lo, acreditem, sem o meu auxílio.
— Para que incomodar-nos em pedir ajuda externa? —
opinou Leduc. — Como a senhora mesma disse, a
proporção seria a mesma. Além do que, às vezes é
emocionante resolver as coisas individualmente. Não pensa
assim, Wallace?
O inglês encolheu os ombros, despediu-se da duquesa e
foi o primeiro a sair, muito apressado. Os demais não
tardaram a imitá-lo e Madame la Duchesse ficou sozinha no
salão, sorrindo. Apanhou o binóculo e enfocou a praia.
Havia gaivotas brancas. Eram, na verdade, muito bonitas...
— Madame...?
— Oh, Baptiste... Ouviu tudo?
— Oui, Madame. E devo dizer-lhe que tudo me parece
muito... perigoso. Não sei se... estaremos à altura das
circunstâncias.
— Sempre se pode estar à altura das circunstâncias.
Como se comportam nossos convidados secretos? Aposto
como não estão muito a cômodo na adega, atrás daqueles
grandes barris... Estão bem amarrados e convenientemente
amordaçados?
— Mais oui, Madame. Certamente. Devo levar-lhes
algum alimento?
— Nada. Nem sequer água, Baptiste. Às vezes é bom
passar uns dias sem comer. Liberta o organismo de uma
porção de toxinas...
Baptiste sorriu com indisfarçável admiração.
— Oh, oui, Madame. Deseja alguma coisa?
— Não, Baptiste. Obrigada. Estarei aqui, olhando a
praia, as gaivotas... Sabe que são de fato interessantes?
Acho-as muito simpáticas.
— Mmmm... Se me permite...
— Claro, Baptiste. Que é?
— Devo dizer que Madame é realmente admirável. Com
todo o respeito, Madame.
— Obrigada, Baptiste! — riu a duquesa. — E agora,
deixe-me: tenho que pensar ainda em muitas coisas. Os
espiões não podem distrair-se nunca.

Uma briga adiada

Às três menos dez da tarde, Lorenzo López apareceu na


praia, quase correndo, carregando uma pesada maleta de
lona vermelha que, com um suspiro deixou cair sobre a
areia. Os outros três já ali estavam e ele contemplou-os
zombeteiramente.
— “Pos” não senhores... Não tiveram sorte. Pude chegar
a tempo. Em meu relógio são...
— Sabemos que chegou a tempo, López — disse
secamente Thomas Wallace. — E esperemos que essa
maleta contenha, efetivamente, quinhentos mil dólares.
— “Pos” claro que sim, colegas.
Nash indicou um ponto algo afastado, no sentido da
praia.
— Isso é coisa da duquesa, não nossa.
— Lógico — sorriu o mexicano. — Nem vocês nem eu
pensamos em dedicar-nos a obras filantrópicas, não é
verdade?
Ficou olhando para o ponto indicado pelo espião
americano. Ali, a uns duzentos metros, via-se a
inconfundível silhueta da duquesa, completamente rodeada
de gaivotas. Fazia um sol claro e ardente, e o mar, de um
tom cinza-espesso, parecia contido pelo calor, quase
imóvel, numa calma que não inspirava confiança para as
próximas vinte e quatro horas. Quando os homens deixaram
de falar, ouviu-se apenas, a distância, o grasnido incessante
das gaivotas que rodeavam Madame la Duchesse.
— Uma senhora interessante — murmurou López. —
Mas certamente um pouco curta de vista: ainda não sabe
que já chegou o último espião.
— Já o viu, López, não tenha a menor dúvida. Mas ainda
não são três horas.
— Bem... Isso me permitirá descansar uns minutos.
— Acho que enquanto ela está com seus pássaros,
podemos ir colocando nosso equipamento. Não sei como,
mas essa senhora conseguiu uma lancha magnífica. Aposto
que pertence a algum dos ricaços de Fort de France.
— E os equipamentos?
— Não sei... Ela é capaz de conseguir qualquer coisa,
pelo visto. Devem ter sido emprestados por uma loja de
artigos esportivos. Então, López? Já descansou?
— Por Guadalupe, já estou pronto!
— A busca, mesmo seguindo as indicações da duquesa,
pode durar horas. Acho que todos estamos de acordo em
que convém encontrar o satélite antes de anoitecer.
Envergamos os trajes de borracha?
— E assim pouparemos à duquesa o espetáculo de nossa
nudez — disse rindo Leduc. — Embora... Não sei por quê,
mas acho que essa senhora já viveu o bastante para não se
assustar com quatro virilhas peludas. Vamos para a lancha.
A lancha estava ancorada a uns três metros da areia, mas
ninguém se importava de molhar as calças. Subiram a bordo
todos de uma vez e começaram imediatamente a colocar o
equipamento. Quatro trajes completos de “homens-rã”, de
cor amarela bem visível. Além de um par de reservatórios
de ar para cada um, na lancha havia mais oito pares, caso
fossem necessários. Havia facas, cinturões de chumbo, seis
fuzis de arpão, máscaras de vidro, lanternas aquáticas,
bússolas.
— Espantoso — murmurou Leduc. — Não acha, Nash?
Malcolm limitou-se a assentir com a cabeça. Era na
verdade espantoso. A previsão da velha duquesa
ultrapassava um pouco os limites lógicos. O que reforçou a
crença de Nash de que aquela mulher estava trabalhando
dirigida por alguém. Alguém que possivelmente entendia de
espionagem mais que eles quatro juntos. Difícil, mas não
impossível. Às vezes, possuindo as mesmas qualidades e
conhecimentos sobre as mesmas matérias, um espião tem
esse dom, esse talento inato que o diferencia muito
vantajosamente de qualquer outro.
— Creio que a duquesa terminou sua obra de caridade
com as gaivotas — informou López.
Todos olharam para lá, enquanto continuavam
colocando o equipamento: a duquesa, circundada por quatro
dúzias de gaivotas, pelo menos, caminhava agora para a
lancha, enterrando sua inseparável bengala na areia
dourada.
— Se estivesse de branco — riu o mexicano, —
pareceria outra gaivota.
Ela chegou quando os quatro espiões estavam dando os
últimos retoques em sua toilette subaquática, ajudando-se
uns aos outros, verificando o funcionamento dos tubos de
ar, experimentando os bocais.
— Tudo bem, cavalheiros? — perguntou, da praia.
— Muito bem — respondeu Leduc. — Estaremos pronto
em três minutos, senhora duquesa. Virá conosco?
— Oh, não... Já não sirvo para tais proezas, monsieur
Leduc. Vou esperá-los em casa, se não se importam...
— Sim, mas... Aonde vamos?
— Há um papel dobrado, metido entre o vidro e o
caixilho do para-brisa. Nele estão escritas as instruções.
Creio que qualquer dos senhores saberá interpretá-las
devidamente, com ioda a exatidão.
Leduc foi o primeiro a chegar lá. Encontrou o papel,
dobrado e bem apertado. Retirou-o e desdobrou-o de modo
que todos pudessem vê-lo. O mapa marítimo era de uma
clareza tão completa que não era preciso ser espião com
conhecimentos especiais de Geografia e Cartografia para
compreendê-lo.
— Cerca de duas milhas mar adentro... Não: duas milhas
e quatorze pés, exatamente, vejo que está anotado aqui
embaixo... A linha de referência é formada pela proa da
lancha, com a popa para oeste, e os rochedos que estão
diante da casa, que deverão coincidir com a janela da
duquesa.
— Fiuuu... — assobiou Nash. — A isso chamo eu
exatidão. É evidente que ela deve ter visto o satélite cair.
— Claro — sorriu friamente Wallace. — E também
mediu a distância de duas milhas e quatorze pés mar
adentro? Outra coisa: Seu binóculo alcança duas milhas?
— Mais — asseverou Leduc. — Bastante mais, Wallace.
O inglês moveu negativamente a cabeça.
— Vou dizer-lhes uma coisa: isto não me agrada. Essa
duquesa não me agrada.
— É uma senhora encantadora — declarou López,
sorridente.
Nash, que ainda não havia colocado o capuz de
borracha, estava coçando a cabeça.
— Acho que na CIA não me darão crédito quando eu
contar tudo isto. A única coisa que me consola um pouco é
que não tenho negócios com o MVD. Teria sido muito
desagradável.
— Acho que poderíamos fazer um pacto — murmurou
Wallace. — Somos quatro homens que arriscamos a vida
quase diariamente, cada um a serviço de seu país. Isso não
me parece reprovável. Seria diferente se fôssemos espiões
mercenários. Como não somos, podemos considerar-nos
uns cavalheiros. De acordo?
— Que está sugerindo, Wallace?
— Bem... Poderíamos obter cada um nossa parte desse
satélite. Nash ficaria com o aparelho, claro. Penso que todos
teríamos êxito e... consideraria de muito bom-gosto que
depois nos esquecêssemos completamente uns dos outros.
Afinal de contas, nosso interesse, não faz muito tempo,
foram bastante ligados.
— Quer dizer que não devemos passar os informes sobre
os outros aos nossos arquivos?
— Seria uma boa ideia.
— Acho eu — disse Leduc — que a primeira coisa é
conseguirmos o satélite. Depois... conversaremos.
— Já enviou suas fotos, Leduc? — grunhiu Wallace.
— Sim... Lamento, mas já o fiz.
— E os outros?
López e Nash negaram.
— Creio que me precipitei um pouco — sorriu Leduc.
— Por culpa minha, não poderemos selar o pacto.
— Falaremos mais tarde. Agora, vejamos esse satélite.
Você dirige a lancha, Nash?
Malcolm Nash assumiu o comando e olhou para a praia,
como todos os demais. Puderam ver a duquesa, tendo na
mão a maleta de lona de Lorenzo López, que se juntaria de
imediato, sem dúvida, com as outras três parcelas de
quinhentos mil dólares. A velha ergueu a bengala num gesto
de despedida.
— Não me agrada... — insistiu Wallace.
— Esperemos que não tenha colocado uma bomba na
lancha e... pum! Todos para o céu — disse López.
Os outros entreolharam-se, sobressaltados, mas o
mexicano pôs-se a rir e sacou do bolso um aparelhinho, que
tinha um pequeno mostrador com um ponteiro. Este
permanecia imóvel.
— Sosseguem, colegas. Meu “amigo” diz que não há
explosivos a bordo, nem mecanismo de relojoaria, nem
nada disso. Vamos ao espião voador.
Guardou o aparelho no bolso da calça e deixou-a cair na
coberta. A lancha afastava-se já da praia, onde a duquesa de
Montpelier continuava dizendo adeus com a bengala. Em
silêncio, Leduc, López e Wallace acabaram de colocar os
cinturões de chumbo. Depois, enquanto o mexicano
governava a lancha, Nash também pôs em ordem seu
equipamento. A praia ia ficando para irás, dourada,
ofuscante. No alto, as gaivotas pareciam ter esperança de
que os seres humanos atirassem resíduos de comida ao mar.
Percorreram as duas milhas em pouco mais de três
minutos, tal era a velocidade daquela lancha, que parecia
voar sobre as águas. Os quatro homens mantinham-se
silenciosos, com o olhar lixo no oceano.
E cada um deles estava plenamente convencido de que,
no mesmo momento em que o satélite estivesse num lugar
de onde pudesse ser transportado, ou onde pudesse ser
manejado, surgiriam as dificuldades entre eles. Pela lógica,
Malcolm Nash era o mais indicado para iniciar a briga, já
que, evidentemente, um agente da CIA não podia permitir
que o esforço e os gastos realizados por uma poderosa
organização redundassem em benefício do Serviço Secreto
Mexicano, do MI-5 e do Deuxième Bureau, a cujos servidos
de espionagem sairiam muito baratas umas informações que
a CIA, em combinação com a NASA, custavam nada menos
que vinte e cinco milhões de dólares.
Sim. Haveria contratempos quando o metálico aparelho
caído no mar estivesse em condições de ser transportado.
Mas até então os quatro homens permaneceriam unidos.
Lorenzo López deteve a lancha e indicou a Nash o
pequeno telêmetro que havia sobre o painel de controle.
— Vá dando as indicações, Nash.
— Está bem.
Os outros três saltaram à água e foram movendo a
lancha, a mão, enquanto Malcolm Nash com o telémetro e a
simples vista ia dando instruções, procurando a distância no
telémetro e a coincidência da proa da lancha com os
rochedos da praia e a janela de Madame la Duchesse.
— A popa à esquerda... À frente, uns três metros... Um
pouco mais à esquerda... Mais... Agora!
Deixou o telémetro e debruçou-se na borda.
— É por aqui. Cobriremos a área do fundo os quatro
juntos, nadando em linhas paralelas. É preciso calcular que
o desvio pode atingir uns setenta metros.
— O fundo está coberto de algas — informou Leduc. —
Vai ser um trabalho duro, Nash. São grandes massas,
capazes inclusive de suportar o peso do satélite. E até é
possível que as correntes submarinas tenham afastado essa
massa de algas, levando o satélite para longe daqui.
— Temos que procurá-lo, Leduc: isso é tudo. Que
profundidade máxima você calcula?
— Em alguns pontos, acho que alcança uns sessenta
metros. E talvez mais.
— E está tudo muito escuro — disse o mexicano. —
Não o encontraremos.
— Se quer desistir, López, faça-o agora. Vá buscar seus
quinhentos mil dólares e nós...
— Não sou tão grandote como você. Mas aposto dez
centavos que aguento tanto quanto qualquer um.
— Para baixo, então.
Atirou a cada um deles uma lanterna e um fuzil-arpão.
Depois, munido também de tais instrumentos, lançou-se à
água, após soltar toda a corda da âncora, no intento de fixar
a lancha. Colocou a máscara de vidro e prendeu entre os
dentes o bocal do tubo de oxigênio. Foi o último a
mergulhar.
***
Duas horas depois, os quatro homens estavam
estendidos na lancha, respirando a grande haustos o ar
salgado. Não tinham vontade nem necessidade de falar: o
satélite não aparecia, e isso era tudo. Nash tinha os olhos
fechados, e suas pernas e braços estendidos formavam um
X. Sentia o calor do sol em todo o corpo., enquanto seus
pulmões iam recuperando a energia.
Meia hora mais tarde ergueu-se e, em silêncio, tornou a
envergar o traje de borracha. Os outros o imitaram, também
em silêncio, cansados, bastante decepcionados. Não
trocaram uma só palavra. Novamente equipados e
utilizando novos tubos de ar, os quatro lançaram-se outra
vez à água. O fundo parecia agora um pouco mais escuro,
mas alguns raios de sol formavam desenhos surpreendentes
sobre as algas e ainda mais surpreendente quando as
atravessavam e chegavam mais ao fundo.
Explorada uma zona, os quatro espiões começaram
sistematicamente a busca em outra, já estabelecida.
E vinte minutos depois, Malcolm Nash variava a direção
do facho de luz de sua lanterna para o rosto de Tom
Wallace, depois para o de Lorenzo López e por último para
o de Melchior Leduc. Quando viu que todos estavam
atentos a ele, dirigiu a luz para o fundo, uns cinco metros à
sua esquerda. A luz bateu de chapa em algo que brilhou
fracamente e os quatro precipitaram-se para aquele objeto
envolto em algas, que pareciam bailar em torno dele, no
fundo, entre alguns rochedos. A sorte tinha-os favorecido: o
peso do satélite havia empurrado as algas para baixo, até o
vão existente entre os rochedos, de modo que as correntes
submarinas não puderam movê-lo.
O satélite-espião!
Lá estava, com as letras brancas NASA bem visíveis. No
outro lado, o signo de identificação: EE-4. E, embaixo, as
letras USA.
Malcolm Nash desprendeu o rolo de arame de seu
cinturão e atou solidamente a ponta a uma das anilhas de
recuperação do satélite. Depois começou a subir, seguido
dos demais. A umas quinze braças da superfície, o solo de
arame chegou ao fim e Nash, por sinais, pediu o de
Wallace. Fizeram um nó com os dois arames, enquanto
López e Leduc tornavam a descer. Leduc atou seu arame a
outra anilha, subiu, atou o de López ao extremo do seu.
Com sua extensão dobrada, os arames eram mais que
suficientes. Os quatro subiram um pouco mais, esperaram a
descompressão entre duas águas, depois surgiram à
superfície. Entraram na lancha, prenderam os arames à
borda e tiraram os trajes de borracha. Nash deixou-se cair
sobre a coberta e os demais o imitaram: já não havia muita
pressa.
Um quarto de hora mais tarde, López sentou-se.
Trazemos o bicho para bordo?
Os outros se sentaram também e Leduc indicou a
prancha.
— Temos que colocá-lo na prancha e puxar. São
quinhentos quilos, amigos.
— Reduziremos o peso para quatrocentos — disse Nash.
— Vou saltar e comprimir a válvula, para que a água
seja expelida.
— Ótimo, Nash. Assim poderemos içar com mais
facilidade o nosso fabuloso colega espacial — disse López.
Protegeram as mãos com pedaços de lona e começaram
a puxar os arames, dois em cada um. Uma tarefa dura, mas
quatro homens fortes puxando um peso que na água devia
ser de apenas duzentos quilos, tinham que triunfar. Quando
o satélite ficou à vista, colado ao casco, Nash lançou-se ao
mar, de calção, e comprimiu a válvula. Um jorro
borbulhante de água forte impulsionada abriu na superfície
do mar uma pequena cratera de espuma branca. O peso
diminuiu um pouco. Depois, baixaram a prancha e Nash
colocou-a junto ao satélite. Ficou embaixo, mantendo a
prancha o mais possível em posição horizontal, enquanto os
outros três puxavam os arames com tremendo esforço. O
suor começou a aparecer em seus rostos, escorrendo até
seus peitos ofegantes.
— Não... não podemos, Nash...
Nash tampouco podia manter a prancha em posição.
Afundava continuamente e seu aspecto refletia um
esgotamento muito maior que o dos outros três.
— López, leve a lancha até a praia... Lá será mais fácil...
— Está bem. Suba, Nash.
— Não. Irei com o satélite, apertando a válvula. Senão,
ficará novamente cheio de água. Terão que nos rebocar, os
dois...
O mexicano deu a partida. O motor da lancha rugiu e ela
começou a mover-se, cada vez mais depressa, rebocando o
agente da CIA e o satélite-espião, que agora flutuava
facilmente.
Quando a embarcação deteve-se na praia, quase varada
na areia, Wallace atirou-se à água e arrastou Nash para a
terra firme.
— Ele está bem, Wallace? — perguntou Leduc.
— Está esgotado. Descansaremos um pouco, Leduc.
— O satélite vai afundar, se não o retirarmos
imediatamente.
— Deixe que afunde. Nash expelirá novamente a água
quando se refizer. Agora já o temos, e aqui, na praia. Isto é
o importante.
***
Não havia dez minutos que tinham desembarcado,
quando ouviram o motor de um veículo às suas costas.
Inclusive Nash, já recuperado, voltou-se rapidamente.
Leduc fez mais ainda: correu para a água, abordou a lancha
e, três segundos depois, estava estirado na proa, com sua
pistola na mão, apontando para a orla de areia seca.
Mas não era necessário.
A Duquesa de Montpelier aproximava-se deles,
lentamente, com um sorriso amável em seu simpático rosto
de anciã aristocrática. Atrás dela, estava uma camioneta,
sobre a qual erguia-se um pequeno guindaste de tração
giratória manual, com uma grande manivela e um rolo de
fino cabo de aço adaptado ao eixo.
— Parecem-me bastante cansados, cavalheiros.
— Que esperava? — grunhiu Wallace.
— Bem... Pensem no que teria sido esta busca sem sabe;
onde precisamente estava o satélite. — Olhou para a praia.
— Mas não vejo...
— Tornou a afundar. Nash vai retirar a água do depósito
de imersão.
— Ah, sim. Bem, trouxe-lhes o melhor que pude
encontrar. Estou certa de que com esse guindaste poderão
colocar o satélite na camioneta. Depois disso, já não terão
dificuldades para chegar lá em cima, na casa. Oh, um
detalhe: pareceu-me prudente, em benefício dos senhores,
afastar daqui o François, que trouxe a camioneta. Sei que
não terão dificuldades em fazer tudo sozinhos... Engano-
me?
— Não, senhora, Tem mais alguma coisa prevista?
— Tudo. À medida que os fatos se sucedam. Espero-os
em casa, cavalheiros.
— Com todo o equipamento fotográfico de revelação,
ampliação, cópias... ?
— É possível, Mr. Wallace. Afinal de contas, os
senhores deram dois milhões de dólares para uma obra
beneficente. O menos que podem esperar é... um bom
serviço. Perdoem se não fico aqui mais tempo, mas começa
a anoitecer e a umidade não me faz bem. Com licença,
cavalheiros...
— Sabe alguma coisa de Nikolayev?
— Não... Tenha a impressão de que chegará tarde para a
partilha. Espero que não se aborreça comigo até o ponto de
querer me fazer mal. Sentiria por ele, pois já estou velha e a
vida pouco me pode oferecer.
— Que quer dizer com isso?
— Verá, señor López. Tenho a convicção de que a
pessoa ou pessoas que causasse dano a Madame la
Duchesse de Montpelier não poderiam sair desta ilha em
menos de cem pedaços. Seria tão desagradável... Não sei se
conhecem os ilhéus: são apaixonados, violentos, diria eu.
Sobretudo os mulatos, que parecem tão indolentes. Quase
todos trazem à cinta as suas foices de cortar cana. São
afiadíssimas! Sempre lhes digo que só deveriam usá-las
quando estão trabalhando, mas é umas dessas
recomendações que se perdem. Uma vez houve uma briga
entre dois mulatos. Lembro-me que o que ficou melhor
parecia... Mas, por favor — sorriu, — vão desculpar-me se
entro em detalhes de mau-gosto.
— Claro que desculpamos.
— Muito amáveis. Bem, espero que o senhor Nikolayev
tenha o bom senso de dar por encerrada a questão quando o
satélite for levado para longe da ilha. Esquecer a Martinica,
esquecer a Duquesa de Montpelier, Baptiste, Monique...
Algo que aconteceu e já terminou. Não sei se me explico
bem, cavalheiros.
— Explica-se maravilhosamente.
— Ah, ótimo, Mr. Wallace. Bem, espero-os em casa.
Até já.
Afastou-se com seu gracioso andar de anciã ágil.
Wallace resmungou algo e López murmurou, sorrindo:
— Velha bruxa... Ela é mais esperta que todos nós,
Wallace.
— Estou convencido disso. Não nos poderia dizer com
mais clareza que, quando isto termine, devemos esquecer-
nos dela e de tudo. E por minha parte, aconteça o que
acontecer, garanto-lhe que assim farei. Bem, transportamos
o trambolho para a camioneta?
— Vamos lá.
Gastaram nisso quinze minutos somente. O satélite,
colocado sobre as prancha, subiu à camioneta com relativa
facilidade, graças ao guindaste manual com seu forte cabo.
— Sabe abri-lo, Nash? Não nos venha agora com a
história de que não sabe como retirar os microfilmes aí de
dentro...
— Recebi uma série de instruções. Espero que possamos
consegui-lo, Leduc.
— Em marcha, então. Eu mesmo levo a camioneta.
Passou ao volante e Nash sentou-se a seu lado, na
cabina.
López e Leduc foram em cima, com o satélite. Quando a
camioneta se deteve diante da casa, já era quase noite. O
céu tinha aquele tom vermelho violento, no poente, e
podiam-se ver algumas estrelas, como pequenas luzes
remotas fazendo sinais.
López saltou e Leduc seguiu-o. Nash e Wallace saíram
da cabina. Os quatro reuniram-se junto à traseira do veículo,
olhando o satélite-espião.
— É bonito — murmurou Leduc. — Penso que até nas
coisas mecânicas há algo de belo. Na verdade, em tudo que
o homem soube construir... Que faz, López?
Lorenzo López havia retrocedido uns passos e agora lhes
apontava um grosso revólver. Ao mesmo tempo, levava
dois dedos aos lábios e emitia três curtos assobios.
Imediatamente, do arvoredo próximo à piscina surgiram
dois homens, que se aproximavam a toda a pressa. Cada um
deles empunhava uma metralhadora, presa ao pescoço por
uma correia de couro.
— Me dê a matraca — disse López a um deles,
indicando a metralhadora. — E amarrem esses três. Viram
alguém por aqui, além dos criados e da duquesa?
— O homem que trouxe a camioneta foi embora, com os
dois criados. A velhota entrou em casa.
— Está sozinha, então?
— Claro.
— Bem. Procurarei convencê-la a entregar-nos os dois
milhões de dólares.
— Não está se precipitando, López? — perguntou
Wallace.
— “Pos” creio que não, inglês.
— Entenda uma coisa: nossos respectivos serviços
secretos saberão localizá-lo. Seja qual for o país a que está
verdadeiramente servindo.
— Ao seu, por exemplo, Wallace — riu o mexicano. —
Ao que mais me pague. Não sei se me entendem.
— Não pertence ao Serviço Secreto Mexicano?
— Mas claro que não, amigo! Eu sou meu próprio
serviço secreto. Vocês me chamariam um mercenário da
espionagem. Estou a par de tudo, sempre vigilante. E
quando vejo algo de bom, intervenho. Consigo o que quero
e, então, vendo a quem melhor paga. No momento, posso
dizer que já ganhei um milhão e quinhentos mil dólares, que
a duquesa terá a amabilidade de entregar-me. Depois,
negociarei o satélite-espião dos americanos por alto preço.
Espero pôr-me em contato com Ivan Nikoiayev. Mas, claro,
se algum de vocês está disposto a dar mais... Que tal, Nash?
— Porco — disse o americano.
— Oh... Wallace?
— Porco mais uma vez, López.
— Vamos, vamos... Não tomem a coisa assim. Admitam
que vocês mesmos, por muito cavalheiros da espionagem
que pareçam, estavam dispostos a fazer uma jogada tão suja
como esta. Tudo quanto fiz foi adiantar-me. Só isso,
amigos... Leduc?
— Nada feito, mercenário.
López deu um passo à frente, golpeou Leduc no
estômago com a culatra da metralhadora, depois no queixo.
Derrubou-o e, quando o viu caído, deu-lhe um violento
pontapé nos rins.
— Amarrem-nos — disse secamente. — Os três.
— Até onde pensa que pode chegar com esse traste,
López?
— Até onde quero, Nash. A umas três milhas daqui, seis
homens que trabalham para mim estão esperando, num iate.
Embarcaremos lá o satélite, o levaremos para lugar seguro
e, então, o ofereceremos a diversas organizações. Não seja
estúpido, homem. Tenho tudo calculado e organizado.
Trouxe a bomba, José?
— Claro.
— Bem. Acabe de amarrá-los e leve-os para a adega.
Poderá encontrá-la facilmente. Deixe-os lá, regule a bomba
para daqui a meia hora e dê uma volta pela casa, para
encontrar-me. Nós dois desentocaremos a velha, esconda-se
ela onde se esconder. Já deve ter percebido o que está
acontecendo e — sorriu ferozmente — pergunto-me se
ainda vai manter aquele ar metido a besta... Estão bem
amarrados?
— Que dúvida, homem!
— Então vamos para a casa. Você, Evelio, fica junto da
camioneta: nos servirá para levar o trambolho ao iate.
Vamos, José.
Nash e Wallace ajudaram o manietado Leduc a caminhar
para a casa. Quando entraram, nada se ouvia, nem o mais
leve ruído. Devia ser verdade que Baptiste e Monique
tinham partido. Mas a duquesa, não... Estava ali, escondida'
em qualquer parte.
— Leve-os para baixo. Espero você aqui. Se encontrar a
velha, não dê cabo dela... Quero divertir-me um pouco.
— Está certo.
José desceu para a adega, levando os três espiões adiante
de si, sempre sob a ameaça da metralhadora. Sob o braço
esquerdo, o pacote contendo a bomba de tempo.
Lorenzo López esteve quase dez minutos percorrendo a
casa, cada vez de pior humor. A “velha” não aparecia em
lugar algum? Resolveu descer ao portão. A porta estava
aberta. Havia uma pequena lâmpada acesa. Ao fundo, cinco
homens sentados no chão, amarrados. Todos eles amarrados
de pés e mãos agora.
Surpreendido, López aproximou-se. Sua surpresa
aumentou ao reconhecer o russo Nikolayev. O outro, não
conhecia.
— Puxa! Não é formidável isto? — riu. — Prendo três
homens e agora tenho cinco, bem amarradinhos... Jogadas
da espionagem, não é mesmo? Qual de vocês meteu aqui
esta noite o pobre Nikolayev? E o outro? Quem é o outro?
Quem os capturou? Estão convencidos que não sou o único
a jogar sujo? As coisas estão muito claras: algum de vocês
apanhou esses dois e meteu-os aqui... E continuou com seu
jogo. Bem, tenho que ir embora. Sinto muito, mas é que...
Apontou para um dos tonéis, sobre o qual estava
colocada uma bomba-relógio. Quando ele se calou, ouviram
claramente o rítmico, contínuo “tic-tac-tic-tac-tic-tac. .
— Creio que só lhes restam vinte e dois minutos de vida.
Adeus, amigos.
Saiu da adega. Ao passar por diante da porta do salão,
olhou para dentro. Mas estava às escuras.
— José! — chamou. — José!
José não respondeu e López seguiu seu caminho para
fora da casa, ignorando que José não podia responder pela
contundente razão de que jazia degolado atrás do grande
sofá da sala, com os olhos muito abertos, surpresos,
assustados.
López saiu da casa e viu Evelio na cabina da camioneta,
atrás do volante, apoiado comodamente ao encosto do
assento.
— O José não saiu, Evelio?
Evelio também não respondeu. Já quase irritado, López
aproximou-se mais, estendeu a mão e sacudiu o homem
pelo ombro.
— Estou perguntando...!
Evelio caiu para ele, contra a janela. Seu rosto ficou
muito perto do de López, que, após olhar para aqueles olhos
já vidrados, viu o grande talho na garganta do seu
companheiro, A cabeça pendia tragicamente para um lado,
solta como se a ponto de cair.
— Evelio! — gritou o mexicano.
— Alguma contrariedade, señor López? — ouviu atrás
de si.
Voltou-se raivosamente, quase apertando o gatilho da
metralhadora. Diante dele, encurvada, arrimando-se à
bengala, estava somente a velha duquesa.
— De onde vem a senhora? — bradou López.
— Oh... Não se altere. Estive passeando pelo jardim.
— E seus criados?
— Afastei-os daqui, claro, porque pressentia o perigo.
Quero-lhes muito bem, señor López.
— E não quer bem a si mesma?
— Sim, mas um pouco menos. Esse homem a quem
chamou antes... José, se estou lembrada... é um mexicano
bigodudo, baixote, com uns olhos muito pequenos?
— Ele mesmo. Onde está?
— Pois o surpreendi no salão, e quis atacar-me. Isso me
desagradou tanto que o degolei.
— Está louca?
— Sabe, señor López? Tenho uma grande paciência com
os espiões. Procuro não abusar da morte. Mas quando
encontro personagens como o José, como esse pobre Evelio,
fico muito aborrecida. Não viu o José? O coitado
surpreendeu-se tanto quando uma velhota o degolou
limpamente... Zás!... e caiu morto. O Evelio estava sentado
na cabina quando me viu chegar. Ficou olhando para mim,
rindo baixinho... Parecia muito alegre. Disse- me: “Vai ver
uma coisa, velha asquerosa, quando o Lorenzo a
encontrar”... Evelio era muito mal-educado, señor López.
Muito mesmo. Classifiquei logo seu caráter: um desses que
matam e riem, achando graça. Eu diria que ele já estava se
divertindo só de pensar no que o seu chefe poderia fazer
com uma pobre velha como eu... Então eu o degolei, para
que não se divertisse tanto.
— Vou fazê-la em pedaços, velha doida! — berrou
López.
— Bem. Eu já esperava que suas intenções a meu
respeito não fossem muito boas. Claro: afinal de contas,
trabalhamos para facções opostas. Oh, señor López, que
decepção quando vim a saber que é um mercenário! Eu o
considerava simpático, mas agora... Diria mesmo que é
capaz de disparar contra uma anciã indefesa. Estou certa...
señor López?
— Mas, é claro, velha bruxa!
— Não deve ser tão grosseiro... Sabe? Até para matar
deve-se ter elegância. Pode-se matar com bons e com maus
modos. Eu, pessoalmente, prefiro os bons modos sempre e
sempre. Verdade que eu, señor López, sou uma espiã de
categoria, ao passo que o senhor, com bem o disseram Nash
e Wallace, é um simples porco.
— Vai engolir essa língua, velha hipócrita!
Lorenzo López apontou a metralhadora para disparar
contra Madame la Duchesse de Montpelier. Era tão fácil!
Mas a anciã saltou com pasmosa agilidade para um lado,
puxou o castão de prata de sua bengala e um longo estilete
brilhou à luz da lua, já alta no céu.
Lorenzo López quase não teve tempo de assombrar-se.
O braço direito da anciã moveu-se cheio de vigor para a
frente e a finíssima lâmina rasgou o ar com um zunido seco,
que se truncou quando a ponta, e logo quase todo o aço,
atravessou a garganta do mexicano, empurrando-o
violentamente contra a carroceria da camioneta, onde ficou
cravado pelo pescoço, instantaneamente morto.
***
Os olhos dos cinco homens abriram-se, cheios de
esperança, quando a velha duquesa apareceu no alto da
escada que descia para a adega. Ela pestanejou, apressou
quase comicamente o passo e chegou diante deles. Ficou
olhando-os muito assombrada, enquanto os cinco
esforçavam-se para gritar através das sólidas mordaças,
olhando ansiosos para a bomba de tempo que tiqueta-
queava sobre o tonel, a dois minutos apenas da explosão.
— Mas... senhores... Que está acontecendo aqui? Oh,
senhor Nikolayev... Pensei que estivesse longe...
— Mmmm! — quis gritar Nash, olhando com desespero
para a bomba-relógio. — Mmmm...!
— Oh, sim, Mr. Nash, vou desamarrá-los... Não
compreendo isto... Deverão ser pacientes comigo. Meus
pobres dedos, tão velhos, já não têm força...
Inclinou-se junto a Nash, com um pequeno queixume de
anciã decrépita. Mas, coisa assombrosa, as ligaduras
saltaram prontamente. Nash deu um último puxão com suas
munhecas, depois arrancou a mordaça:
— A bomba! — gritou, ofegante. — A bomba, duquesa!
Annette Simonet olhou para lá, franziu a testa e,
enquanto Nash dava frenéticos puxões às cordas que ainda
prendiam seus tornozelos, ela apanhou o artefato e olhou-o
com curiosidade.
— Parece um relógio...
— TRAGA-O AQUI! — gritou Nash. —
IMEDIATAMENTE!
Annette obedeceu, sem se apressar. Nash arrebatou-lhe a
bomba, abriu-a por trás, deu um puxão que arrancou três
fios recobertos de plásticos vermelho e o “tic-tac”
emudeceu. Quase ao mesmo tempo, Malcolm derrubou-se
contra a parede, lívido como um cadáver.
— Meu Deus...
— Sente-se mal, Mr. Nash? Quer um pouco de vinho da
minha adega?
Nash olhava-a como se não a visse, ofegando
lentamente. Olhou para os outros, todos eles com a testa
molhada de suor, mas já com os olhos normais e a
expressão tranquila.
— Não, Madame la Duchesse — murmurou. — Muito
obrigado, mas não necessitamos de vinho... E López?
— Pois não sei... Ao voltar para casa, há poucos
minutos, não vi nenhum dos senhores, e não sei por que
achei que devia vir aqui... Que aconteceu, afinal?
Nash estava agora desatando Wallace, o qual, apenas
livre, começou a desatar Leduc. Em menos de dois minutos,
os cinco homens estavam desamarrados e, sem nenhuma
explicação, precipitaram-se escada acima.
— Mal-agradecidos — sorriu juvenilmente a duquesa.
— É isso o que são: uns terríveis- mal-agradecidos...
E ela também subiu agilmente a escada.
***
Os cinco homens regressaram quase duas horas mais
tarde, derreados, olhos brilhantes, furiosos, exasperados.
— Ele conseguiu... López levou o satélite, senhora
duquesa.
— López? Mas eu pensei que tinha feito um pacto
amistoso...
— Qual amistoso, qual nada... A senhora onde esteve?
— Bem, François disse a Baptiste que sua mulher
parecia deprimida, e deixei que os dois fossem a Lamentin...
É que Monique é filha de Baptiste, sabem? E a mulher de
Baptiste, ou seja a mãe de Monique, está enferma em
Lamentin. Ela também trabalha para mim, mas claro,
estando enferma... Está no hospital e, como eles quiseram ir
vê-la, acompanhei-os...
— Alguém disse que a senhora tinha ficado!
— Ah, não, não, Mr. Wallace. Por favor... Duvida de
minha palavra? Pois muito me decepciona, fique sabendo...
— Está bem, está bem! López sumiu com o satélite, com
tudo...! Pois nós queremos nosso dinheiro!
A expressão de Madame la Duchesse foi a mais
consternada.
— Mas, Mr. Wallace... já não tenho o dinheiro!
Aproveitando que ia a Lamentin, levei-o comigo. Dei um
milhão de dólares ao hospital. Meio milhão ao bairro de
Saint Jacques, tão maltratado o pobre... Cem milhões
dólares a...
Melchior Leduc ergueu ambas as mãos, sorrindo.
— Não prossiga, senhora duquesa. Compreendemos que
se... apressou a levar a cabo sua obra beneficente.
— Sim, sim... Sinto muito, acreditem, por não terem
conseguido o que queriam, mas... Não sei... Não acho que
seja culpa minha. Os senhores são espiões experimentados,
deviam ter previsto o que poderia... Mon Dieu, messieurs...
Suplico-lhes que me compreendam: facilitei-lhes tudo,
incomodei amigos pedindo-lhes coisas de suas lojas, de seus
armazéns, de suas casas. Não foi fácil reunir todo esse
material, mas todos colaboraram. Que culpa temos nós, os
pobres ilhéus, se o señor López foi mais esperto que... que a
CIA, o MVD, o... ?
— A senhora me golpeou ontem à noite — disse
bruscamente Nikolayev. — A senhora ou Monique... Há
qualquer coisa aqui que não está me agradando.
— Mas, senhor Nikolayev! Que está dizendo? É certo
que passei para o quarto de Monique, porque não me sentia
tranqüila. Mas asseguro-lhe que em meu quarto não havia
ninguém, que eu soubesse...
— Pois alguém me golpeou, depois se apoderou de meus
quinhentos mil dólares e levou-me para a adega...
— Por favor, senhor Nikolayev... Está-me acusando
disso? Pensa que posso ser uma cúmplice do señor López?
Que sei eu, pobre de mim?
Melchior Leduc começou a rir, mansamente.
— Eu me retiro — disse. — Deve-se saber perder,
colegas. Vou arrumar minha bagagem. Naturalmente, virei
despedir-me da senhora Madame la Duchesse.
— Naturalmente, monsieur Leduc: o contrário me
decepcionaria muitíssimo. E me desgostaria. Na verdade,
foram todos tão amáveis, tão generosos...
***
O carro de Madame la Duchesse de Montpelier deteve-
se diante daquela bonita casa do bairro residencial de
Lamentin, cheio de flores, palmeiras... Baptiste ajudou a
senhora a apear-se, depois a acompanhou até a casa. Uma
criada mulata saía já correndo para abrir o portão. Poucos
segundos após, ambos estavam dentro da casa e uma
senhora de cabelos grisalhos e olhar espantado indicava
uma porta à duquesa. Esta se adiantou, abriu e entrou num
quarto cheio de luz.
Perto da janela, inclinada sobre uma mesa, uma senhora
de quase setenta anos, cabelos completamente brancos,
porte aristocrático. Uma senhora que, voltando-se,
pestanejou aturdida, ao ver diante de si outra senhora quase
idêntica.
— Oh... é você, minha jovem?
— Sim, senhora duquesa. Como vai o livro das gaivotas
e tudo o mais?
— Muito bem... Minha vista já está cansada, minhas
mãos são desajeitadas, mas vou tocando para frente. Além
disso, divirto-me escrevendo este livro sobre coisas que
tanto aprecio... Gostou de minha vila? Encontrou o aerólito
onde lhe disse?
— Claro que sim, senhora — sorriu a que até então tinha
sido Duquesa de Montpelier. — E todos se portaram muito
bem: Baptiste, Monique, François... Todos. Querem-lhe
muito, senhora Duquesa.
— Ajudo-os no que posso... Quando a senhorita
telefonou-me há dois dias, de Lamentin, e disse que queria
ajudar-me em minhas obras de beneficência, muito me
alegrei. E quando penso em sua caracterização, quase rio...
Nenhum de meus amigos deixou transparecer, por sua
atitude, que a senhorita não era a Duquesa de Montpelier?
— Nenhum — sorriu a falsa anciã. — Todos são muito
astutos e prestativos. Bem... Venho dizer-lhe que já pode
voltar para a sua vila, senhora duquesa.
— Oh, magnífico... Há tantos anos resido ali! E... não
queria parecer interesseira, mas a senhorita prometeu ajudar
em minha obra de beneficência a troco de toda esta... farsa.
Compreenda...
— Compreendo, senhora. Encontrará um pequeno
donativo para seus amigos necessitados. Oh, e num pacote
separado, uma quantia para a senhora mesma, a fim de que
possa resolver seus pequenos problemas de impostos e
coisas desse tipo...
— Magnífico... Espero que tenha chegado aos... vinte
mil dólares, senhora... Como disse que se chamava?
— Que importa agora, senhora duquesa? E... Sim,
cheguei aos vinte mil dólares. Esses são para a senhora
mesma. Depois há dois milhões, quatrocentos e oitenta mil
dólares para suas obras de beneficência.
— Oh... Como já estou tão velha, creio que fiquei um
pouco surda... Vai rir de mim se lhe disser que entendi um
total de dois milhões de dólares?
— É uma brincadeira divertida, não acha? — sorriu a
falsa duquesa. — Encontrará o dinheiro dentro de um dos
seus tonéis vazios, senhora duquesa. Espero que poderá
enchê-lo agora, li, se me permite, volto hoje mesmo ao meu
país. Foi um grande prazer, senhora duquesa.
— Oh, também para mim, filhinha... Sabe de uma coisa?
Caminha como eu, se parece comigo, tem um porte de
duquesa... Como conseguiu isso?
— É... questão de treinamento, Madame la Duchesse.
Até à vista.
***
Uma hora e meia depois, Madame la Duchesse, a
autêntica, recebia um pacote que, uma vez aberto, mostrou
uma peruca de cabelos brancos, um espartilho, seis
pequenos potes de creme de maquilagem, um estranho
aparelho metálico que parecia feito para adaptar-se à língua,
dois diminutos cristais que pareciam essas lentes que se
vendem nas ópticas a quem não quer usar óculos...
— Que é isso, Baptiste?
— Não sei, Madame la Duchesse. Parece um...
equipamento de atriz... Não sei. Mas foi mandado por
aquela senhora tão elegante e formosa, aquela que...
— Já sei, já sei... Era muito bonita, não é verdade?
— Muito, Madame la Duchesse. E muito elegante,
muito precisa e exata em tudo. Às vezes... Bom, Madame la
Duchesse me perdoará...
— Claro, Baptiste. Diga o que pensa.
— Pois... às vezes eu ficava convencido de que aquela
jovem senhorita era na verdade Madame la Duchesse,
dirigindo toda essa... confusão espantosa de espionagem
científica e não sei que mais... com sua licença, Madame la
Duchesse, o carro está esperando.
— Ah, voltemos para casa — suspirou a velha senhora.
— Espero que a moça de lindos olhos azuis não tenha
desarrumado as minhas coisas...
***
Brigitte Montfort levantou a cabeça e sorriu para o
visitante.
— Oh, tio Charlie... Já se curou do resfriado?
Charles Pitzer assentiu com a cabeça, sentou-se no sofá
a seu lado e anunciou:
— Vitória! O homem que enviamos à Martinica
recuperou o satélite-espião.
— Maravilhoso, querido! Como o conseguiu?
— É uma história... curiosa, relacionada com a duquesa
de que lhe falei. Lembra-se?
— A Duquesa de... Montpelier?
— Exatamente. O nosso homem encontrou dificuldades
e perdeu a partida. Quando subiu para recolher suas coisas,
encontrou em sua maleta um papelzinho dizendo-lhe que o
satélite EE-4 estava escondido em tal lugar. Chegou a
Lamentin, desenvolveu uma atividade fantástica para
conseguir auxílio e, poucas horas depois, o satélite,
completo, com suas fotos interessantíssimas, estava num
porta-aviões da U.S. Navy. Porém o mais extraordinário não
é isso. O fato deveras assombroso é que, quando o nosso
agente foi cumprimentar, no dia seguinte, a Duquesa de
Montpelier, porque ficara cativo de sua amabilidade,
encontrou-se com uma dama que não conhecia.
Os admiráveis olhos azuis pestanejaram, talvez para
ocultar aquela centelha zombeteira no fundo das pupilas.
— Não compreendo, tio Charlie...
— Onde esteve você estes últimos dias?
— Aqui... Não?
— Aqui, positivamente, não.
— Oh, é verdade... Já sabe que tenho um chalé perto do
lago... Passei lá estes dias.
— Tampouco esteve lá, porque “Johnny” telefonou para
esse chalé do lago durante dois dias seguidos, cada hora.
Quer dizer, quarenta e oito chamados sem resposta. E Peggy
não sabia onde você andava. Onde esteve realmente,
Brigitte?
— Oh, pois... Querido, não tenho tanta memória assim...
Ah, fui convidada para a casa de campo de uns amigos... Os
Carrington.
— Não diga! Pois quando aqui estive, coincidi com Mrs.
Carrington, que tinha vindo visitá-la... E não disse que você
estava em sua casa de campo.
— Puxa vida... — sorriu Brigitte. — Não seja tão
indiscreto, tio Charlie. Em algum lugar devo ter estado,
não?
Um satélite espião americano cai em águas do
Caribe. Brigitte Montfort, a espiã internacional é
convidada a resgatar o equipamento antes que os
serviços de espionagem de outros países o façam
primeiro.
Porém, a divina espiã se nega a aceitar essa
missão. A CIA então encarrega a Malcolm Nash
de ir se hospedar na formosa vila de uma velha
duquesa. Lá ele encontra dois outros agentes
secretos interessados no artefato, um francês e
outro inglês. Logo, mais outros dois espiões se
juntam a eles, um russo e um mexicano. Está
formado um estranho grupo de pessoas especiais,
interessadas em fazer a maior oferta pelas
informações que só a digníssima senhora possuí.

Ler é uma atividade inteligente e recompensadora. Todo


livro ensina alguma coisa que você ainda não sabe. Quem
não lê, mal fala, mal pensa, vê mal. Recomende livros a
seus amigos e contribua, assim, para difundir o bom hábito
da leitura em nosso país.

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