Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
*
Ah! Meu pequeno. Você não tem sorte, naturalmente!”
embaixo, pois deste modo poupava às suas velhas pernas o
esforço de frequentemente subir e descer escadas. Inclusive,
Nikolayev estava certo de que, no quarto contínuo ao da
duquesa, dormia a empregadinha, atitude prudente da parte
da velha, pois não convém estar muito isolado quando se
passa de certa idade.
Abriu a porta de seu quarto, lentamente,
silenciosamente. Esteve quase dois minutos escutando
algum possível ruído no corredor que levava até a escada.
Silêncio absoluto. Parece que os espiões não roncam
quando dormem. Ou não dormem?
Deslizou sempre com lentidão e cautela, adotando todas
as imagináveis precauções, pelo corredor. Olhou para baixo
e viu o vestíbulo, com manchas do luar que entrava pelas
janelas de ambos os lados da grande porta de entrada.
Desceu, sempre devagar, sempre evitando o menor ruído.
E uma vez embaixo, esteve outros dois minutos imóveis,
com todos os sentidos alerta.
Nada.
Silêncio.
Embora... Não. Não de todo. Ao fundo, no final do
corredor para o qual abriam os quartos da planta-baixa,
ouvia-se um ruído... Roncos. Ivan Nikolayev sorriu: eis aí a
diferença entre ser um pacífico mordomo e um espião. O
mordomo pode permitir- se o luxo de roncar, de dormir de
papo para o ar...
Seguindo a direção dos roncos, chegou ao corredor.
Havia ali quatro portas, duas de cada lado. Os roncos
soavam através da segunda porta à direita. Tinha que
descartar, além disso, a possibilidade de que a duquesa
dormisse no da frente. A velha, sem dúvida, escolhera para
seu aposento um dos primeiros, um quarto mais amplo.
O problema estava em saber qual deles. E ali, de pé,
imóvel na escuridão completa, a fria mente do espião
trabalhou com plena lógica. O mordomo dormia no segundo
da direita. Portanto, o primeiro da direita devia estar
desocupado, pois não era lógico pensar que Baptiste
dormisse paredes meias com a duquesa. Isso correspondia à
camareira, que assim poderia melhor ouvir o chamado da
anciã, através da parede; por outro lado, se a voz da duquesa
tivesse que cruzar todo o corredor, o serviço se dificultaria
bastante. Portanto, tudo ficou decidido assim na mente de
Ivan Nikolayev: Baptiste, o segundo à direita. Monique, o
segundo à esquerda. A duquesa, o primeiro à esquerda.
Lógica pura e simples.
Como também lhe pareceu absolutamente lógico que a
velha duquesa não se trancasse por dentro, já que, se se
sentisse indisposta ou precisasse de algo, como a Monique
poderia entrar?
Empunhou a grande maçaneta de bronze e fê-la girar
lentamente. Gastou nisso quase quinze segundos, sempre
atento, lembrando-se de que alguns anciãos têm o sono
muito leve.
Abriu a porta, devagar, segurando-a como se quisesse
aguentar sozinho com todo o seu peso. Quando obteve a
abertura necessária para passar, entrou, fechou a porta atrás
de si, agora um pouco mais rapidamente, já convencido de
que os gonzos não rangiam.
Depois, voltou-se para a cama. O luar entrava pela janela
e dava nos pés do leito. E neste ouvia-se agora,
mansamente, uma suave respiração rítmica, tranquila.
Sacou o revólver, acercou-se, sentou-se na beira da cama
e apoiou a ponta da arma na garganta da velha senhora.
— Duquesa!
Ouviu a mudança de respiração, um leve queixume. O
branco dos olhos tornou-se visível na escuridão atenuada
pelo reflexo lunar nas paredes do quarto.
— Boa-noite, duquesa. Sou Ivan Nikolayev. Tenha a
bondade de levantar-se e vestir-se. Por favor.
A mulher ergueu-se na cama, lentamente, enquanto
Nikolayev afastava-se um pouco.
— Tenho a esperança, duquesa, de que a senhora e eu
daremos um jeito para ir agora mesmo ao lugar onde...
Ivan Nikolayev calou bruscamente, porque seus olhos, já
algo acostumados à penumbra, estavam vendo agora com
muito mais nitidez a duquesa. Que não era a duquesa, mas
uma mulher jovem, formosa, de basta cabeleira escura.
Parecia...
Ivan Nikolayev estava tão surpreendido, que recebeu em
plena garganta o golpe que aquela jovem e formosa mulher
lhe aplicou com o canto da mão, lançada horizontalmente.
Foi um golpe tão inesperado, e sobretudo tão forte e
preciso, que o gigantesco russo saltou da cama, quase
desacordado. E teve sorte, porque é fácil morrer por efeito
de um golpe de karatê na garganta.
Ainda pôde apertar o gatilho do revólver com
silenciador, mas foi mais um ato reflexo que voluntário; e a
bala deu no teto arrancando brancos fragmentos de caliça.
Ao mesmo tempo, o pé descalço da jovem golpeava sua
mão, arrancando-lhe a arma. E antes que ele se pudesse
refazer da surpresa, e do primeiro golpe, o outro pé da
jovem de pijama debruado de renda alcançou-o, com o
calcanhar, no centro do estômago, sempre com aquela
surpreendente dureza e eficiência.
E Nikolayev só conseguiu ver como aquela jovem
formosa inclinava-se sobre ele e novamente golpeava-o com
o canto da mão, agora na nuca. Foi fulminante. Um homem,
por grande e forte que seja, tem os mesmos centros
nervosos que o mais raquítico indivíduo. Deste modo,
Nikolayev esqueceu-se, talvez apenas momentaneamente,
de todas as suas ambições e todos os seus problemas.
Então, a jovem e perigosa lutadora disse amavelmente,
em russo:
— Querido Ivan: você também teve pouca sorte comigo.
Mas é natural: os homens geralmente são tão frágeis!
***
Malcolm Nash despertou sobressaltado. Fora, viam-se já
os tons alaranjados do novo dia. E logo desapareceriam
esses tons para dar lugar a um céu azul. Muito rapidamente,
porque no trópico a transição da noite para o dia acontece
em frações de minuto.
Ergueu o braço esquerdo, viu a hora e soltou um
grunhido: cinco e meia. Data: nove de novembro de mil
novecentos e setenta e seis, claro. O ano era importante
porque, quando um espião dorme, pode acontecer que
desperte no dia do Juízo Final.
Levantou-se e foi até a janela. Viu lá embaixo a piscina,
as flores, as belas árvores frondosas. Ao fundo, o mar. E
algumas manchas brancas, com a inconfundível silhueta das
gaivotas. Um espetáculo digno de Jonathan Livingstone
Seagull.
Espionagem científica, dissera Melchior Leduc. Bem...
Talvez fosse certo, e a situação pudesse ser resolvida
pacificamente. Afinal de contas, havia no mundo muitos
agentes secretos, e continuavam trabalhando. Tudo é
sempre uma questão de audácia, de saber maquilar-se ou
disfarçar-se convenientemente, de não recear que se possa
ser reconhecido a qualquer momento. Além disso, com
efeito, ultimamente as coisas não estavam tão ruins. Só que,
é claro, qualquer espião pode, a qualquer momento, decidir
apertar um gatilho ou dar umas facadas...
— Por enquanto — pensou — este é um caso pacífico de
espionagem científica. Não se afobe, Malcolm.
Tornou a olhar o relógio, fez um gesto de enfado e
aproximou-se da porta. Abriu-a, olhou o corredor, depois
esteve escutando uns minutos. Por fim, com expressão
aborrecida, arrastou uma daquelas grandes cadeiras de
madeira e palha e colocou- a diante da janela. Acendeu um
cigarro e dispôs-se a esperar.
Não acreditava que a duquesa se levantasse antes das
dez.
***
Às dez menos quinze, Malcolm apareceu no salão. O
único que ali estava era o mexicano, que olhou para ele com
aquele sorriso impertinente e irônico.
— Bom-dia, Mr. Nash. Dormiu bem?
— Bem demais.
— Oh, não... Isso não, meu amigo. Dormir é... morrer
um pouco, segundo dizem os poetas. Mas que morte tão
agradável, não acha?
Nash encolheu os ombros.
— Não desceu mais ninguém?
— Claro que sim: o inglês. É um sujeito muito sério.
— Onde está?
— Mistério, meu amigo. Esteve aqui, mal disse “bom-
dia”, olhou com esse binóculo para o mar — indicou o
possante binóculo da duquesa — e saiu sem dizer “adeus”
ou “até logo”.
— Não está na praia — grunhiu Nash.
— “Pos” estará em outro lugar. É certo que trabalha para
a CIA, Mr. Nash?
— Pense o que quiser.
— Como o russo disse...
— Não me importa o que tenha dito.
— Ora, parece que todos acordaram com a cachorra,
hoje... Por que se chatear? Este é um assunto tranquilo,
sossegado, simpático. Preferia que todos andássemos aos
tiros por aqui? Não! O negócio é diferente... Olhe,
diariamente vamos por esse mundo arriscando a pele da
maneira mais idiota. Eu acho que de quando em quando faz
bem um descanso deste. Tudo sorrisos, uma senhora
elegante, e a única arma será o dinheiro. Oh, estou disposto
a perder, claro. Gostaria que me fossem atirando maços de
dinheiro em cima. Não me importaria — pôs-se a rir. —
Sim, lhes deixaria o satélite e iria com a gaita. Não é
divertido?
— Quer que lhe diga o que penso a seu respeito, Lopez?
— “Pos”... Diga lá.
— Você é um pé no saco!
Malcolm deu meia volta, saiu do salão e depois da casa.
Aproximou-se dos rochedos, onde na tarde anterior estivera
Melchior Leduc, e olhou para a praia. Mas nem dali
conseguia avistar Thomas Wallace. Não estava em parte
alguma.
Um tanto irritado, o agente da CIA regressou à casa.
Naquele momento, uma velha camioneta chegava à vila.
Deteve-se diante do portão e um mulato velho e seco como
um bacalhau apeou e bateu. Da porta traseira da casa
apareceu Monique, que avançou rapidamente para o portão.
Malcolm viu-a abrir, e o mulato entrou com a camioneta.
Disse algo à empregadinha, esta subiu, rindo, e a camioneta
prosseguiu até o lugar de onde tinha vindo a graciosa
Monique.
Nash foi até lá e encontrou-se no pátio externo da
cozinha, rodeado de alguns plátanos de largas folhas. O
velho mulato descarregando verduras, frutas, volumes.
Junto à camioneta, Baptiste, solene como sempre, ia
anotando os gêneros que eram descarregados na vila de
Madame la Duchesse.
— Mais oui: cent kilos de pommes-de-terre... c’est à
dire. Oh, Mr. Nash, bom-dia, em que posso servi-lo?
— A senhora duquesa ainda está dormindo?
— Não creio. Às dez e meia em ponto, todos os dias, faz
sua primeira refeição: café, torradas e meia maçã. Espero
que todos compareçam pontualmente à sala de jantar, Mr.
Nash.
— Esteja certo de que comparecerei. Há inconveniente
em que entre pela cozinha?
— Claro que não. Só que... estou ocupado agora...
— Por favor, não se interrompa.
Malcolm entrou na cozinha. Monique, deliciosa no seu
elegante uniforme, com a saia bem curta, mostrando as
coxas, estava diante de uma grande mesa de mármore
branco e começou a escolher maçãs para um arranjo
artístico na fruteira. Os bons aromas de café e pão torrado
pairavam no ar, mas o excitado Malcolm pensava que o
ideal mesmo era comer aquela apetitosa empregadinha em
vez do breakfast. Que seios! Que ancas!
— Bom-dia, Monique! — saudou, com voz de lobo
faminto.
— Oh!
A deliciosa empregadinha voltou-se sobressaltada, os
olhos muito abertos. Malcolm Nash sorriu, carinhoso.
— Teve medo de mim, garota?
— Oui, monsieur... mas não tem importância. É que eu
estava muito distraída aqui com meus pensamentos,
enquanto escolhia as maçãs...
Malcolm pensou que os frutos melhores estavam ali
mesmo, atrás do soutien de Monique, e deu-se à fantasia de
se imaginar conquistando aquela maravilhosa empregadinha
de Madame la Duchesse. Ah... que diabo de profissão a sua!
Não tinha tempo sequer para um discreto romance na
cozinha! Como seria Monique nua, na cama? As coxas
maravilhosas, abertas para ele, tersas, douradas como
pêssegos! Os seios juvenis, com os biquinhos cor-de-rosa,
duros, ternos, prontos para o beijo! Ele saberia tirar com
muita delicadeza aquele aventalzinho branco, a touca de
renda, depois o discreto uniforme preto... e veria o
deslumbramento do corpo jovem e firme de Monique! Sim,
ele poderia amá-la loucamente e até casar com ela, quem
sabe? Mas... que lástima! Era um espião em pleno serviço...
Tinha de dominar Seus instintos. Resolveu desconversar:
— Pensava em coisas muito interessantes, Monique?
— Oh, senhor Nash... não creio... Os pensamentos das
mulheres nunca são muito interessantes! Raciocinamos
geralmente em torno dos nossos pequenos problemas.
— E uma garota bonita como você tem problemas,
Monique?
— Não muito sérios, na verdade... Apenas umas
preocupações momentâneas, senhor Nash. Veja, estou
acostumada a cuidar de casa para três pessoas, e agora
somos oito. São mais cinco camas, e as refeições... Já vê:
pequenas coisas que os homens acham aborrecidas. Ou não,
Mr. Nash?
— Francamente, acho que sim — sorriu Malcolm. —
Você viu o inglês?
— Mr. Wallace? Oh, sim, há meia hora , talvez. Ia para
longe, passeando.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Parece que está intrigada com alguma coisa,
Monique. Que é?
— Pois Mr. Wallace levava um... aparelho esquisito nas
mãos. Não vi direito. Ia caminhando sem olhar outra coisa
que o aparelho. Parecia uma bússola.
Malcolm Nash mordeu os lábios. Ergueu bruscamente o
braço para ver a hora: dez e vinte. Certamente não iria
conseguir nada indo atrás de Wallace. Além disso, a
duquesa não tardaria a descer.
— Sente alguma coisa, Mr. Nash?
— Não. Obrigado, Monique. Irei ao salão esperar a
senhora duquesa. E lhe direi que tem uma empregadinha
excelente.
— Merci, monsieur — sorriu Monique, os olhos
brilhando de satisfação. — O senhor e monsieur Leduc são
muito amáveis.
— Sim... Muito amáveis. Até logo, Monique.
— Au revoir , monsieur.
Malcolm saiu calmamente da cozinha. Passou outra vez
junto a Baptiste e, quando esteve fora de suas vistas,
apertou o passo. Estava disposto a encontrar Tom Wallace
imediatamente. Sem dúvida, o inglês estava utilizando um...
Ocorreu-lhe olhar para as janelas do salão. Viu Tom
Wallace a uma delas, com um cigarro entre os lábios e uma
certa expressão irônica no olhar. Nash entrou na casa,
depois do salão, e dirigiu-se diretamente a Wallace.
— Escute, Wallace: se você usa truques, todos nós
usaremos também. As coisas estão tranquilas por ora, mas
se for necessário ...
— De que está falando? — indagou Wallace.
— De seu detector. Sei que anda por aí utilizando um
detector à procura do satélite. Olhe, esse russo pôs as coisas
bem claras entre nós. E acho que ele está certo: esta é uma
situação absurda.
— E qual é sua sugestão para melhorá-la, Nash?
— Aos cinquenta anos vocês serão uns velhos azedos e
apopléticos — disse atrás dele a voz de Lorenzo López. —
E o mundo continuará dando voltas. E outros satélites-
espiões estarão no céu. Não compreendem?
Malcolm voltou-se para o mexicano, cenho carregado,
justamente no momento em que Melchior Leduc, afundado
numa poltrona, dizia:
— De acordo com o espião mexicano. Vocês estão de tal
modo... ávidos, que nem sequer cumprimentam seus
colegas. E já que falamos de colegas onde está nosso
vociferante e muito expressivo companheiro russo? E não
me digam que dormindo, porque todos sabemos que isso é
impossível.
— A nós, que importa onde ele esteja? — disse López.
— Claro que importa, López, porque parece que todos
somos aqui um pouquinho... orgulhosos. E não nos
agradaria que nosso colega da URSS nos pregasse uma
peça. Não é certo, amigos? Claro que pregar uma peça é o
que melhor sabe fazer um agente secreto. Entretanto...
— Você, Leduc, fala demais! — resmungou Nash.
— Mas digo... Oh-oh a senhora duquesa!
Pôs-se rapidamente em pé e foi ao encontro de Annette
Simonet, que da porta os contemplava, sorrindo daquele
modo tão doce e amável. Estava tão encantadora e fidalga
como no dia anterior.
— Já estão discutindo, cavalheiros?
Leduc beijou-lhe a mão.
— Pequenas diferenças entre espiões, Madame la
Duchesse. Consta que Mr. Wallace está procurando o
satélite com um detector, o que não é do agrado de Mr.
Nash. Depois, o camarada Nikolayev não se dignou ainda
aparecer e temos a desagradável impressão de que está
jogando sujo... que é como melhor jogam os russos.
— Os franceses não? — sorriu a duquesa.
— Oh, bem... — disse Leduc. — Só quando é
absolutamente necessário.
Annette Simonet pôs-se a rir. Fez sinal a Baptiste, que
estava atrás dela, e mandou-lhe que fosse pedir ao senhor
Nikolayev para fazer a gentileza de vir ao salão, onde já
estavam todos reunidos. Depois, com o auxílio de sua
bengala de bambu, caminhou para a poltrona junto à janela,
sentou-se, apanhou o binóculo e esteve um instante olhando
para a praia, sem que ninguém se atrevesse a incomodá-la.
Quando pousou o binóculo, voltou-se para dentro do salão,
sorrindo.
— Há dois dias que não levo peixe para minhas gaivotas
Que é, Baptiste?
Todos os olhares estavam fixos no mordomo, que
esperara que a duquesa deixasse o binóculo, em silêncio.
— O senhor Nikolayev não está em seu quarto, Madame
la Duchesse. Nem na casa. Madame la Duchesse recordará
que ontem à noite, segundo suas instruções, devolvi a
maleta com o dinheiro ao senhor Nikolayev... Não está
tampouco a maleta, nem o dinheiro, nem nenhum objeto
pessoal do senhor Nikolayev. Havia apenas um papel.
— Mas não compreendo... De que papel se trata?
— Estava sobre a mesa de cabeceira. Achei, então, que
devia trazê-lo a Madame la Duchesse.
Na pequena bandeja onde o havia colocado, apresentou
o papel à velha senhora, que o apanhou com seus finos
dedos aristocráticos, onde discretamente viam-se alguns
anéis. Abriu-o, ergueu as sobrancelhas e olhou algo
perplexa ao seu redor.
— Não sei... Creio que o senhor Nikolayev escreveu isto
em russo. Não entendo nada. Algum dos senhores poderia
ajudar-me?
— Com sua licença — adiantou-se rapidamente Tom
Wallace. Tomou o papel, leu-o primeiro para si, depois em
voz alta. — “Senhora: estarei de volta amanhã ao
amanhecer e trarei dois milhões de dólares”.
— É o que diz essa nota, Mr. Wallace?
Malcolm Nash, que se tinha colocado atrás de Wallace,
assentiu com a cabeça.
— Exatamente, senhora duquesa.
— Bem, não sei o que pensar... Que opinam os
senhores?
— Por minha parte — disse acremente Wallace — creio
que podemos prescindir do senhor Nikolayev, senhora. Não
me parece conveniente que esperemos aqui vinte e quatro
horas pelo regresso do russo. Se os demais estão de acordo
comigo, levantem a mão.
Nash, López e Leduc assim fizeram imediatamente. A
duquesa olhou-os um a um, com expressão preocupada.
— Bem... Que acham que devemos fazer, cavalheiros?
— Somos quatro. Que necessidade temos de um quinto
espião, senhora duquesa? — disse rindo o mexicano.
— Parece que todos pensam assim. Posso sugerir-lhes
que tomemos primeiro o café e procuremos depois uma...
solução?
***
— Que solução propõe, senhora? — perguntou Wallace.
— Não sei... Deve existir uma que satisfaça a todos por
igual, imagino.
— A todos? — murmurou Nash, assombrado. — Isso é
impossível!
— Por que, Mr. Nash?
— Porque todos queremos o satélite. E tenha em conta
que ele pertence aos Estados Unidos.
— Oh, sim, mas... não estamos nos Estados Unidos, Mr.
Nash, mas na Martinica. Uma ilha onde passei quase toda a
minha vida. O berço de Josefina Bonaparte! É um lugar...
inquietante. Estamos sempre temendo uma nova
manifestação de fúria do Mont Pelée... Sabiam que em mil
novecentos e dois uma erupção, acompanhada de terremoto,
arrasou boa parte da ilha? E sepultou um lugarejo muito
simpático, chamado Saint Pierre. Desde então, todos
tememos nova fúria do Mont Pelée, mas continuamos aqui.
Diz-se que não mais entrará em atividade, porém...
— Perdão, senhora... — murmurou Wallace. — Não me
considere descortês, mas estamos tratando de outro assunto.
— Oh, é verdade... Eu dizia a Mr. Nash que não estamos
nos Estados Unidos, mas na Martinica. Bem: isto quer dizer
que o satélite, possivelmente, encontra-se nestas águas
jurisdicionais, não em águas americanas. Em todo caso,
deveria ser recolhido por nós os da ilha. Logo, o governo
dos Estados Unidos deveria solicitá-lo formalmente, e
então...
— E então tudo se arrastaria e complicaria muito —
grunhiu Malcolm Nash.
— De fato, Mr. Nash. Mas, por outro lado, é indiscutível
que o satélite pertence aos Estados Unidos. Isto, é claro,
coloca-me numa posição difícil.
— Não tanto, senhora duquesa: aceite minhas condições,
Mr. Nash?
— Quinhentos mil dólares. Diga-me onde está
exatamente e terá meio milhão de dólares para sua obra de
beneficência.
— Eu ofereci seiscentos mil — lembrou Lorenzo López,
sempre sorridente.
— E o senhor Nikolayev assegura que voltará com dois
milhões — disse com suavidade a duquesa. — Deve ter isso
em conta, Mr. Nash.
— E deve a senhora ter em conta que o satélite é meu.
— Perdão, Nash — contrapôs Leduc. — Será de quem o
encontre. Não esqueça que está entre espiões, não entre
meninos que discutem a posse de uma bola de futebol.
Nash enrubesceu.
— Cavalheiros, cavalheiros, por favor... — a duquesa
ergueu ambas as mãos. — Estamos travando um debate
amável e não devemos altercar. Na minha idade, isso é
muito penoso. Vejamos, Mr. Nash: que contém esse satélite
que possa ser considerado especial, ou seja, matéria de
espionagem?
— Não posso revelar isso! — exclamou Nash.
— Por que não?
— Mas é bastante óbvio, senhora duquesa!
— Óbvio? Diga-me: contém segredos militares?
— Não, não — mentiu Nash.
— Claro que contém segredos militares! — explodiu
Wallace. — Com cem mil demônios, Nash, você é...!
— Senhores — a duquesa pôs-se de pé —, se não se
comportam como cavalheiros, serei obrigada a retirar-me. E
se o fizer, asseguro-lhes que nenhum dos senhores
encontrará esse satélite.
Os quatro homens ficaram silenciosos. Irritados, mas
silenciosos. A duquesa olhou-os lentamente, um a um.
Depois, tornou a sentar-se, suspirando.
— Ficamos, pois, em que não contém segredos militares.
Neste caso, vamos supor que contenha... informação
científica. Aceita isto, Mr. Nash?
— Mmmm... Sim. Claro que sim.
— Então, procedamos de acordo. Para mim, e já que não
admitirei mais discussões, esse satélite contém tão-somente
informação científica. Uma só palavra mais sugerindo que
contém qualquer outra coisa, e lhes pedirei que abandonem
estas casas. Entendido, cavalheiros?
Os quatro moveram afirmativamente a cabeça. A velha
senhora deu-se por satisfeita.
— Obrigada. Então estamos todos envolvidos num caso
claríssimo de espionagem científica, como muito bem disse
monsieur Leduc. A espionagem científica, senhores, não
prejudica a ninguém. De acordo?
Novamente as quatro cabeças acenaram
afirmativamente.
— Neste caso — prosseguiu Annette Simonet — é
evidente que os segredos desse satélite são inofensivos para
todos. Mas... — fez uma longa pausa — Mas, ao mesmo
tempo, seriam benéficos para todos. Isso me parece
evidente. Aos senhores não? Bem entendido que a ciência
não prejudica a ninguém e, como digo, pode favorecer a
todo o mundo. Portanto, me pareceria justo que todos os
conhecimentos científicos estivessem ao alcance de todos os
seres humanos...
— Aonde quer chegar, senhora? — murmurou Leduc.
— É simples, monsieur Leduc. Mas antes esclareçamos
um ponto muito importante. É o seguinte: o senhor
Nikolayev ofereceu-me dois milhões de dólares para ter o
direito de recolher o satélite. Evidentemente, então,
considerando meus interesses, eu deveria dizer-lhe onde
encontrá-lo. Mas o senhor Nikolayev não está, e os senhores
sim. Estão aqui, exercendo sua espionagem... científica.
Como decidimos prescindir do senhor Nikolayev, os
senhores quatro poderão recuperar o satélite. Contanto, bem
entendido, que eu receba os dois milhões de dólares.
— Como... como disse?
— Eu serei a pessoa que terá auxiliado a Ciência,
senhores. Como agradecimento por meu auxílio, me
pagarão dois milhões de dólares, porque tiveram
conhecimento de meus propósitos de beneficência e
desejam colaborar. Todos me conhecem, na Martinica. A...
generosidade dos senhores será muito bem acolhida por
meu povo adotivo, que muito me quer e sabe que me
arruinei por ajudar a todos, em tudo. Esses dois milhões
servirão para muitas coisas, eu estarei satisfeita e os
senhores de posse de suas informações... científicas.
Malcolm Nash conseguiu sair de seu assombro.
— A senhora... — murmurou. — Refere-se aos quatro?
— Evidentemente, Mr. Nash. Cada um dos senhores
deverá proporcionar-me quinhentos mil dólares. Em
seguida, digo-lhes onde exatamente está o satélite. Os
senhores trazem-no à superfície, obtêm informações
filmadas ou fotografadas e preparam mais três cópias.
Assim, cada um terá sua cópia, sua informação científica. E
o satélite será entregue a Mr. Nash, claro. Que me dizem?
Os quatro homens olharam-se uns aos outros. Não se
enganavam, está claro. Sabiam que quando o satélite
surgisse à vista a luta seria inevitável, já que,
evidentemente, as informações que continha não deviam ser
compartilhadas. Entretanto, o único meio de convencer
aquela anciã, que lhes estava parecendo um pouco
amalucada, era aceitar. Depois...
Depois resolveriam as coisas ao modo deles, não de
acordo com as fantasias da senhora duquesa. E naquela
troca de olhares, os quatro espiões assim se entenderam.
— Aceito — disse Nash.
— Também eu.
— Também eu.
— E eu.
— Magnífico — sorriu Annette Simonet. — Agora falta
o pequeno detalhe dos quinhentos mil dólares que cada um
dará para a minha obra beneficente. Quando poderão trazer
esse dinheiro?
— Dentro de três horas — disse Leduc.
— Mais ou menos isto — afirmou Wallace.
— Quanto a mim, duas horas serão o suficiente —
garantiu Nash.
O mexicano sorriu divertido.
— Pois eu necessito de quatro horas, pelo menos,
senhores. Sinto muito.
— Não se preocupe. Acho que todos estarão de acordo
em esperar quatro horas, señor López. De modo que... são
onze horas... Às três, todos aqui com o dinheiro. Algum dos
senhores sabe mergulhar?
— Acho que sim, senhora — disse secamente Wallace.
— Esplêndido.
— Teremos que providenciar o equipamento
necessário...
— Já pensei nisso — atalhou a duquesa. — Uma
previsão de anciã distraída, mas que desta vez não o foi
tanto... Sabe quanto pesa o satélite, Mr. Nash?
— Mmmm... Uns quinhentos quilos. Duvido muito que
quatro homens possam retirá-lo da água, senhora duquesa.
Enquanto imerso, poderemos manejá-lo, pois perde mais de
sessenta por cento de seu peso. Mas quando tivermos que
trazê-lo para terra firme...
— Farão isso os quatro sozinhos, senhores. Sejam
sensatos: se estão pensando em alguma dessas jogadas sujas
tão ao gosto dos espiões... segundo dizem, reconheçam que
todos pensarão o mesmo. Então, em lugar de um, teremos
cem de cada facção. A proporção será a mesma. E talvez
alguém se exalte, faça um disparo... Entre o primeiro e o
último disparos, sempre há muitos mortos. Se algo tiver que
acontecer, é preferível que haja quatro mortos a
quatrocentos, não acham?
— Caridosa filosofia a sua, senhora duquesa —
observou Leduc. — Mas gostaria de saber como pensa que
nós quatro podemos arrastar quinhentos quilos pela areia.
— Isso, da mesma forma que os trajos de borracha, os
tubos de ar, uma lancha a motor e outras pequenas coisas,
foi previsto por mim. Às três, encontrarão na praia todo o
necessário para recuperar o satélite.
— Assombroso... — sorriu López. — E assombrosa
mulher, senhora duquesa!
— Oh, uma pobre anciã que só pensa na maneira de
ajudar os outros. Dois milhões de dólares bem investidos
serão a solução para muitos pequenos problemas e uma
necessidade grande. Por outro lado, para os seus serviços de
espionagem, meio milhão a mais ou a menos não creio que
faça muita diferença. Lamento não podermos almoçar
juntos hoje, cavalheiros.
— Não se incomode conosco — disse Leduc. — Mas
estou certo de que todos sentiremos falta de sua companhia.
— São muito amáveis, os senhores todos... Ah, Mr.
Nash, há alguma coisa que não consigo compreender a
respeito desse satélite. Não que eu seja uma especialista, é
claro, mas entendo que, quando caem ao mar, esses...
artefatos ficam flutuando. Ou não?
— Assim é.
— Mas esse afundou...
— Claro. Foi uma precaução, adotada ao ser ele
construído. Há um compartimento cuja válvula se abre
quando o satélite imobiliza-se. Então, entra água e ele
submerge.
— Como um submarino?
— Algo assim — sorriu Nash. — Como compreenderá,
a submersão estava prevista.
— E depois vocês complicam sua vida para recolhê-lo,
Nash — deslizou Wallace. — Não é assim?
— Se o sistema de rádio não se tivesse estragado,
Wallace, quando você aqui chegasse o satélite já estaria a
caminho dos Estados Unidos.
— Na verdade penso que mais alguma coisa se estragou
além do sistema de rádio — disse Leduc, rindo. — De outro
modo, nem saberíamos do que houve. Esperemos que o
sistema de fotografias esteja intato e que não tenha entrado
água por alguma fenda, arruinando tudo...
— Seria engraçado — comentou López.
— Por que engraçado? — grunhiu Nash.
— Penso — externou Leduc — que o amigo e colega
López tem senso de humor; e pensei que você também
tivesse, Nash.
— Bem... — admitiu Nash, tentando sorrir. — Seria
realmente engraçado que nenhum de nós, conseguisse essas
fotografias. Acho que não devemos perder mais tempo. Até
logo, senhora duquesa.
— Au revoir... Ah, Mr. Nash... Bem, isto é para todos,
na verdade: ficam informados que, ao menor indício de que
vocês peçam ajuda de fora, guardarei o silêncio mais
obstinado a respeito do lugar onde está o satélite. E muito
lhes custaria encontrá-lo, acreditem, sem o meu auxílio.
— Para que incomodar-nos em pedir ajuda externa? —
opinou Leduc. — Como a senhora mesma disse, a
proporção seria a mesma. Além do que, às vezes é
emocionante resolver as coisas individualmente. Não pensa
assim, Wallace?
O inglês encolheu os ombros, despediu-se da duquesa e
foi o primeiro a sair, muito apressado. Os demais não
tardaram a imitá-lo e Madame la Duchesse ficou sozinha no
salão, sorrindo. Apanhou o binóculo e enfocou a praia.
Havia gaivotas brancas. Eram, na verdade, muito bonitas...
— Madame...?
— Oh, Baptiste... Ouviu tudo?
— Oui, Madame. E devo dizer-lhe que tudo me parece
muito... perigoso. Não sei se... estaremos à altura das
circunstâncias.
— Sempre se pode estar à altura das circunstâncias.
Como se comportam nossos convidados secretos? Aposto
como não estão muito a cômodo na adega, atrás daqueles
grandes barris... Estão bem amarrados e convenientemente
amordaçados?
— Mais oui, Madame. Certamente. Devo levar-lhes
algum alimento?
— Nada. Nem sequer água, Baptiste. Às vezes é bom
passar uns dias sem comer. Liberta o organismo de uma
porção de toxinas...
Baptiste sorriu com indisfarçável admiração.
— Oh, oui, Madame. Deseja alguma coisa?
— Não, Baptiste. Obrigada. Estarei aqui, olhando a
praia, as gaivotas... Sabe que são de fato interessantes?
Acho-as muito simpáticas.
— Mmmm... Se me permite...
— Claro, Baptiste. Que é?
— Devo dizer que Madame é realmente admirável. Com
todo o respeito, Madame.
— Obrigada, Baptiste! — riu a duquesa. — E agora,
deixe-me: tenho que pensar ainda em muitas coisas. Os
espiões não podem distrair-se nunca.